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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal do Espírito Santo
Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
Av.Fernando Ferrari, 514 - CEP 29075-910 - Goiabeiras - Vitória - ES
Tel: (27) 3335 7852 [email protected] - [email protected]
Universidade Federal do Espírito Santo
Reitor: Rubens Sérgio Rasseli
Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação
Pró-reitor: Francisco Guilherme Emmerich
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Diretor: Edebrande Cavalieri
Departamento de Línguas e Letras
Chefe: Luís Eustáquio Soares
Programa de Pós-Graduação em Letras
Coordenador: Marcelo Paiva de Souza
Conselho da Edufes:
Cleonara Maria Schwartz, Fausto Edmundo Lima Pereira,
João Luiz Calmon Nogueira da Gama,
José Armínio Ferreira, Juçara Gorski Brittes,
Maria Cristina C. Leandro Pereira,
Marcio Paulo Czepack, Sandra Soares Della Fonte,
Waldir Cintra de Jesus Junior e
Wilberth Claython Ferreira Salgueiro
Conselho editorial (PPGL / Ufes)
Alexandre Moraes, Deneval Siqueira, Jorge Nascimento, Júlia
Almeida, Lino Machado, Luís Eustáquio Soares, Marcelo Paiva
de Souza, Maria Fernanda Oliveira, Paulo Roberto Sodré,
Pedro Bisch, Raimundo Carvalho, Reinaldo Santos Neves,
Sérgio da Fonseca Amaral, Wilberth Salgueiro
Conselho consultivo
Bella Josef (UFRJ), Eneida Maria de Souza (UFMG), Flávio Carneiro (Uerj),
Evando Nascimento (UFJF), Gilda da Conceição Santos (UFRJ), Italo Moriconi
(Uerj), Jaime Ginzburg (USP), José Américo de Miranda Barros (UFMG),
José Luiz Fiorin (USP), Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP), Márgara
Averbach (Univ. Buenos Aires), Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC),
Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ), Paolo Marcello Spedicato (Universita degli
Studi di Padova, UP, Itália), Ronaldo Lima Lins (UFRJ), Sérgio Luiz Prado
Bellei (UFSC)
Editores: Marcelo Paiva de Souza, Raimundo Carvalho e Wilberth
Salgueiro
Revista do Programa de
Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal do Espírito Santo
CONTEXTO
Dossiê
Machado de Assis & Guimarães Rosa
Editora da Ufes
Vitória - 2009
Projeto gráfico: Denise R. Pimenta
Editoração eletrônica (miolo): Denise R. Pimenta
Projeto gráfico e arte (capa): Denise R. Pimenta
Catalogação: Ana Maria de Matos CRB 12/ES - 425
Revisão: os autores
Revista Contexto
Programa de Pós-Graduação em Letras
Departamento de Línguas e Letras
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Telefone: (27) 33352515
site: www.prppg.ufes.br/ppgl
Contexto / Universidade Federal do Espírito Santo, Programa
de Pós-Graduação em Letras: Mestrado em Letras – N. 15 e 16
(2008/2009) – Vitória: Ufes, PPGL-MEL, 1987376 p.; 21,5 cm.
Anual
ISSN 1519-0544
1. Literatura brasileira contemporânea – Crítica – Periódicos. 2.
Crítica literária – Periódicos. 3. Literatura e Filosofia – Periódicos.
I. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências
Humanas e Naturais, Departamento de Línguas e Letras, Programa
de Pós-Graduação em Letras, Mestrado em Letras.
S U M Á R I O
Editorial
9
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
11
Paul Dixon
Manobras do inverossímil: García Márquez e Machado de Assis
13
Marília Rothier Cardoso
Machado, narrador-crítico
25
Lenivaldo Gomes de Almeida
Esaú e Jacó e a transformação dos valores e costumes na época do
encilhamento
37
Sérgio da Fonseca Amaral
O corte e a corte do Machado
49
Ricardo Ramos Costa
A galeria machadiana
63
Ruy Perini
Loucura e paixão em Machado de Assis
79
Jorge Evandro Lemos Ribeiro
“A cartomante” no plano do jogo indiciário
95
Carla de Paula Santos
E mais uma vez ironia e dissimulação: transitando pelo
teatro machadiano – um olhar sobre “As forcas caudinas”
108
Maria Helena Laureano
A relação narrador e leitor em Dom Casmurro
120
Vitor Cei Santos
Brás Cubas e a solidariedade do aborrecimento humano
136
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
149
Alexandre Moraes
Terceiras margens, travessias misturadas (Guimarães Rosa e Nelson
Pereira dos Santos: família e abandono em dois olhares)
151
Wilberth Salgueiro
Grande sertão: veredas: romance e ensaio – par em par
163
Andréia Delmaschio
As razões do jogo em “Duelo”
171
Erlon Jose Paschoal
Uma recriação fiel: diálogos entre o autor e o seu tradutor
184
Paulo Muniz da Silva
A micrologia do cotidiano em Tutaméia: terceiras estórias
192
Sara Novaes Rodrigues
Em cárceres de preenchido silêncio, vozes entrecruzadas: um estudo
do conto “Quadrinho de estória” de Guimarães Rosa
200
Virgínia Cœli Passos de Albuquerque
O sertão intertextual de Guimarães Rosa
207
Carolina Paganine
O neobarroco em Primeiras estórias de Guimarães Rosa
225
Marcelo Luiz Cesar Mozzer
Presença da Coluna Prestes nas veredas do Grande Sertão
246
CLIPE
261
Beny Ribeiro dos Santos
Bernardo Carvalho: entre tramas e trampas
263
Rafael Campos Quevedo
Na fronteira das palavras: a teoria de Bakhtin e a poética
de Ferreira Gullar como respostas ao problema do formalismo
275
Adolfo Miranda Oleare
A múmia
290
Alessandra Fabrícia Conde da Silva
Um recado à prima hermenêutica em Um assovio de Qorpo-Santo
302
Rafaela Scardino
Cartografias instáveis: percursos pela cidade de No país das últimas
coisas, de Paul Auster
317
Angela Regina Binda da Silva
A agonia e o despertar de uma cidade em A peste, de Albert Camus 327
Rodrigo Leite Caldeira
Waldo Motta: poesia, crítica e problema
334
TRADUÇÕES
347
Alfred de Saint-Quentin / Álvaro Faleiros
349
George Popescu / Marco Lucchesi
352
Normas para publicação na revista Contexto
373
8•
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
EDITORIAL
Com dez artigos sobre a obra de Machado de Assis
e nove sobre a obra de Guimarães Rosa, esta Contexto
vem contribuir para a vastíssima fortuna crítica de ambos
os escritores, cânones de nossa cultura. Contos, peças,
romances, crônicas e cartas de Machado são estudados,
em abordagens teóricas, intersemióticas e comparatistas.
No caso de Rosa, deu-se ênfase à análise de contos,
novelas e de Grande sertão: veredas, contando ainda com
reflexões envolvendo o ato tradutório e a relação entre
cinema e literatura.
Os textos sobre os romancistas Albert Camus, Bernardo
Carvalho e Paul Auster, os poetas Ferreira Gullar e Waldo
Motta, o filósofo Nietzsche e o dramaturgo Qorpo-Santo
conferem ao volume um arco prismático instigante,
provocando, sem dúvida, a curiosidade do leitor não
domesticado.
A tradução de poemas do guianense Alfred de SaintQuentin e do romeno George Popescu revitaliza, mais
ainda, a vontade de saber, que, imaginamos, guia mentes e
corações que aqui aportaram.
Para quem tem esta revista, qualquer revista, sob os
olhos, pode parecer que a sua feitura, silenciosa, acontece
num mar de rosas, pura calmaria de bastidores. Que
pareça. Importa, agora, o presente, que é poder – porque
queremos – atravessar todas as tempestades suspensos
num livro. Sem cera nos ouvidos, nem venda nos olhos.
Sem tempo ruim, nem contexto adverso. Ótima leitura.
Os editores.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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10 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
DOSSIÊ
MACHADO DE ASSIS
O leitor atento, verdadeiramente
ruminante, tem quatro estômagos
no cérebro, e por eles faz passar
e repassar os atos e os fatos, até
que deduz a verdade, que estava,
ou parecia estar escondida. (Esaú
e Jacó)
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
12 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
MANOBRAS DO INVEROSSÍMIL:
GARCÍA MÁRQUEZ E MACHADO DE ASSIS
Paul Dixon
Purdue University, USA
Resumo: Com o conto “Adão e Eva”, Machado antecipa o
desfecho inquietante do grande romance Cien años de soledad
de Gabriel García Márquez. Nos dois casos há um espaço
parecido a um ventre, que abriga um embrião metafórico, uma
substância cuja reprodução é projetada no futuro. No entanto,
também nos dois casos há uma espécie de “aborto” que evita
para sempre tal reprodução. Constata-se um equívoco enorme,
devido ao fato de que, fora daquele espaço encerrado do relato,
a reprodução parece ter-se efetuado. Enquanto García Márquez
não entra na questão da recepção desse discurso contraditório,
Machado, num nível extradiegético, explicita uma leitura do
mesmo, representando um público primeiro bem confuso e,
depois, consciente de ter sido “logrado” pelo narrador. De
uma forma curiosa e anacrônica, o conto de Machado constitui
uma leitura “póstuma” do enigmático romance colombiano.
Palavras-chave: Machado de Assis. García Márquez. “Adão e
Eva”. Cien años de soledad.
Abstract: With the short story “Adam and Eve,” Machado
de Assis anticipates the disorienting dénouement of the great
novel Cien años de soledad by Gabriel García Márquez. In
both texts, there is a womb-like space, nurturing a metaphoric
embryo, a substance whose reproduction is projected in the
future. However, in both cases there is a sort of “abortion”
which destroys all possibility of such a reproduction. This
situation creates an enormous confusion, when it is realized
that outside that enclosed space of the immediate narrative,
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
that reproduction appears to have taken place. While García
Márquez does not enter into the question of the reception of
this confusing discourse, Machado does. On an extradiegetic
level, the short story gives a reading, representing first an
audience that is confused and later, one that understands it
has been duped by the narrator. In a curious and anachronistic
way, Machado’s story offers a “posthumous” reading of the
enigmatic Colombian novel.
Keywords: Machado de Assis. García Márquez. “Adão e Eva”.
Cien años de soledad.
Em termos estéticos, o desfecho de uma narrativa desempenha
uma função de grande importância, pois cria no receptor
um sentido de finalidade, a impressão de que as expectativas
criadas pelo enredo foram cumpridas – enfim, a satisfação
de uma experiência válida. O que Barbara Herrnstein Smith
afirma sobre a importância do encerramento na poesia, aplicase igualmente a um texto narrativo: “Os recursos da conclusão
muitas vezes têm seu efeito característico ao conceder ao
poema uma qualidade percebida pelo leitor como uma validez
notável, uma característica que o deixa com a impressão de que
o enunciado tem o ‘caráter conclusivo’, a finalidade assentada
de uma verdade aparentemente auto-evidente” (152; tradução
minha).
No catálogo dos desfechos notáveis da literatura moderna,
certamente o do romance Cien años de soledad (1967) do
colombiano Gabriel García Márquez deve figurar entre os
mais importantes. Haveria um final mais decidido do que
aquele vento, destruidor de tudo e de todos?
Vários recursos conclusivos, analisados por Smith (158-95), são
exemplificados no romance colombiano. A predeterminação
ocorre quando o desfecho apresenta um motivo cuja expectativa
foi criada no início. No começo de Cien años, Úrsula resiste à
relação sexual com seu esposo (e primo) porque teme que o
primeiro filho nasça com um rabo de porco. A última criança a
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CONTEXTO
nascer no romance, muitas gerações depois, possui de fato um
rabo de porco.
O efeito de finalidade também pode ser criado por meio de
estruturas paralelas. O segmento posterior, assim, parece
completar o segmento inicial e dá ao texto um sentido decisivo.
A história de Macondo demonstra um paralelismo simétrico,
em que primeiro há um processo de fundação e expansão, e
depois há declínio e desintegração.
O recurso da afirmação absoluta, segundo Smith, também cria
um sentido de conclusão ao “fechar” o assunto, sem lugar para
dúvida ou equívoco. O romance de García Márquez tem um
final altíssono, enfático e bombástico, comparável ao de uma
sinfonia de Beethoven. Tanto em seu conteúdo, que anuncia
uma finalidade irreversível, como em seu aspecto discursivo,
onde há um tom de grandiloqüência profética, o último
parágrafo do romance nos dá um remate dos mais decisivos,
anunciando que “la ciudad de los espejos (o los espejismos)
sería arrasada por el viento y desterrada de la memória de los
hombres [... ]. [T]odo [...] era irrepetible desde siempre y para
siempre, porque las estirpes condenadas a cien años de soledad
no tenían uma segunda oportunidad sobre la tierra” (351).
No entanto, esta linguagem supostamente definitiva se
torna equívoca quando consideramos outros fatores no
desfecho. Vou mostrar brevemente nesta comunicação que
Cien años de soledad possui uma estrutura única em que um
dénouement aparentemente forte e vociferante, por causa de
fatos contraditórios e irredutivos, fica suspenso num clima de
“second guessing” e confusão. Na realidade, esta é uma idéia
secundária em meu argumento, já que faz parte de um trabalho
meu que foi publicado há mais de vinte anos (Reversible, 89124). Meu fim principal é mostrar que mais de oitenta anos antes
da publicação de Cien años de soledad, o brasileiro Machado
de Assis criou um relato cujo desfecho, em termos estruturais
e funcionais, é igual ao de García Márquez. Já que tais jogos
narrativos fazem parte da visão estética que muitos chamam
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
de “pós-modernismo”, com minha análise do conto “Adão
e Eva” vou sugerir, como outros já sugeriram examinando
outros textos (Gill, Douglass, Fitz), que Machado de Assis,
pelo menos em alguns aspectos, é um “pós-moderno” avant
la lettre.1
Os fatores irreconciliáveis que formam o desfecho de Cien
años de soledad são os seguintes:
1. Um espaço “uterino”.
2. Um “embrião” dentro deste espaço.
3. Um evento que evita, para sempre, o “nascimento”
do “embrião”.
4. A existência, num espaço exterior, de uma reprodução
do “embrião”.
No caso de Cien años de soledad, podemos ver que a cidade de
Macondo tem o aspecto de um mini-mundo. Embora haja um
certo intercâmbio de personagens de outros lugares, Macondo
existe num estado de isolação. Longe de criar condições
infrutíferas, tal isolação parece contribuir para uma dinâmica
de vitalidade. Existe uma forte criatividade e energia sexual (às
vezes incestuosa) entre os personagens. Há uma abundância
de chuva, calor, vegetação e vida animal. A combinação do
aspecto encerrado e do aspecto dinâmico sugere que Macondo
é, em termos metafóricos, um ventre.
Um objeto de grande importância dentro deste espaço é
o manuscrito do cigano Melquíades. O manuscrito é um
“embrião” no sentido de ser um proto-discurso, cuja realização
ainda não se efetuou. Em geral, o resultado de um manuscrito
consiste no livro publicado. No caso particular do de
Melquíades, é preciso também que o manuscrito seja decifrado,
já que foi elaborado num complicado código, só descoberto
por Aureliano Babilonia no final do romance. Sendo uma
história do povo de Macondo, o manuscrito serve como um
Brian McHale discute Cien años de soledad como exemplo
do jogo de mundos paralelos ou alternativos (31-32), segundo ele
recurso central da estética pós-moderna.
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CONTEXTO
tipo de semente cujo fruto será a vida (pelo menos em termos
biográficos ou históricos) dos habitantes do microcosmo.
Justamente na hora em que Aureliano Babilonia começa a
compreender as chaves interpretativas do hermético manuscrito,
surge um “huracán bíblico”, uma força devassadora que destrói
tudo, absolutamente, convertendo Macondo num “pavoroso
remolino de polvo e escombros” (351). Metaforicamente, esta
tempestade é um aborto, porque garante que o “embrião”
do manuscrito, junto com o único homem capaz de decifrálo, sejam arrasados pelo vento, e desterrados para sempre da
memória dos homens.
Os três fatores acima coexistem sem problema (sem violência
para a lógica narrativa) no mundo de Macondo. Mas fora de
Macondo (que aliás já foi destruído) há um problema que cria
perplexidade. É que em nossas mãos existe um livro, que nos
detalhes mais minuciosos parece ser a tradução e a publicação
do manuscrito do velho cigano. Se o germe foi apagado pela
tormenta, como pode existir uma reprodução do germe?
A existência do livro, junto com a destruição do manuscrito, é
um impasse lógico que criou grandes desafios para os leitores
profissionais do romance. O registro crítico, no que diz respeito
ao desfecho de Cien años de soledad, contém vários esforços
para explicar um fenômeno que, ao meu ver, não pode ter uma
explicação satisfatória2. O final do romance, com seu desvio
Os comentários sobre o desfecho do romance não concordam
quanto à identidade do texto. Para a maioria, o manuscrito de Melquíades é
o protótipo do romance (Vargas Llosa 541; Rodríguez Monegal , “Novedad”
18; Rodríguez Monegal, “Three” 484-89; Rolfe 261; Espinosa 201-27; Monleón 19, Palencia-Roth 407). William L. Siemens, no entanto, declara que o
manuscrito e o livro não podem ser equivalentes. Para Siemens, portanto,
não há contradição lógica. Mas os outros têm dificuldade em explicar o final.
Vargas Llosa se contradiz, dizendo que o romance muda de perspectiva (de
uma terceira pessoa para o cigano), mas reconhece que o manuscrito em sua
totalidade é do ponto de vista de Melquíades; assim, ele desdiz a afirmação
da equivalência dos dois textos. Jerry Root, ao falar da “auto-destruição” (10,
13, 20) do romance, não enfrenta o fato óbvio de que o romance existe. Clive
Griffin opina que o mundo novelístico não existe depois que o leitor termina
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
lógico, desafia as convenções da verossimilhança narrativa.
O motivo do manuscrito encontrado, que normalmente é
considerado um gesto em favor do realismo, aqui o desfaz.
Falta agora mostrar como os mesmos quatro fatores também
fazem parte do jogo narrativo de “Adão e Eva,” publicado
originalmente na Gazeta de Notícias em 1885, e depois
reproduzido na coletânea Várias histórias, dez anos depois.
Para iniciar, faço um breve resumo do conto. “Adão e Eva,”
como tantos outros contos, contém um relato exterior
(extradiegético) e um relato intercalado (diegético). O primeiro
consiste num sarau na casa de uma senhora de engenho na
Bahia. Quando um dos convivas quer saber mais sobre um
dos doces servidos, o assunto da conversa torna à questão da
curiosidade. São os homens mais curiosos que as mulheres,
ou vice-versa? E no caso da família humana, quem – Adão
ou Eva – tem mais culpa pela expulsão do paraíso? Todos
oferecem uma opinião, menos certo juiz de fora. Interrogado
pelos outros, este afirma que a pergunta não tem sentido,
porque as coisas não se passaram no Éden como o registro
sagrado indica. O homem então conta sua versão da história
aos convivas curiosos. No final de seu relato, todos ficam
boquiabertos, perplexos, sem saber o que responder. Então o
narrador desfaz tudo o que contou, afirmando que “nada disso
aconteceu” (528), e volta a perguntar sobre o doce.
A narrativa intercalada, então, é uma versão da velha história
de Gênesis. Tem todos os elementos da versão bíblica—o
o livro (93), sem reconhecer que neste ponto Cien años de soledad não difere
de qualquer romance. Vários críticos evitam o impasse lógico ao “transcender” o problema físico, passando para uma leitura “metafísica”. Rodríguez
Monegal resolve a contradição no espaço metaficcional, na “inmortalidad
que confiere la palabra” (19). Doris Rolfe também percebe um desmascaramento da ilusão representada, “énfasis final e definitivo para expresar que la
novela es ficción” (261). Michael Palencia-Roth transfere o texto para um espaço eterno e cósmico (410, 414), declarando que o romance nunca termina
(415). Susana Cordero de Espinosa (201-27) e Vargas Llosa (544-45) efetuam
uma transição semelhante para o modo da ficcionalidade. Uma “solução”
menos popular é isentar o texto do furacão. Aleyda Roldán de Micolta afirma
que a tempestade parece destruir tudo menos o manuscrito.
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CONTEXTO
jardim paradisíaco, a árvore cujo fruto é proibido, a serpente
(representante de Satanás) que promete um grande futuro
como resultado da ingestão da fruta, etc. Para Eva, a serpente
prediz:
[...] serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás
Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre,
e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu e serás Débora;
cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à
terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria
de Nazaré. (527)
Até agora, é a história conhecida. Mas no relato do juiz de
fora, tanto Eva como Adão obedecem à proibição divina. Nem
uma nem o outro cai na tentação de saborear o fruto da árvore
da ciência do bem e do mal. E, em conseqüência dessa decisão,
Deus entrega toda a terra ao diabo, mandando o anjo Gabriel
para recolhê-los:
[...] então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três
subiram até a estância eterna, onde miríades de anjos os
esperavam, cantando:
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às
obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às
plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos
pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e
morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta
abominação a nota da esperança e da piedade. (528)
Um transporte divino para o reino celestial, é claro, não é um
furacão devassador. As matérias temáticas de Cien años de
soledad e “Adão e Eva” são bem distintas. Mas, estruturalmente,
as duas narrativas apresentam um paralelo completo. Podemos
voltar à lista de fatores irreconciliáveis já mencionada, e mostrar
que os mesmos elementos existem no conto de Machado.
Não será surpresa notar que o jardim de Éden, em sentido
metafórico, é um ventre. Contém, em abundância, os elementos
da fertilidade. É um espaço isolado e fechado. É o abrigo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
criado por Deus para a gestação da raça humana.
O “embrião” implantado neste espaço vital, é claro, é o primeiro
casal. Adão e Eva, nesta altura, só representam o potencial para
uma fecunda geração. Não tendo comido do fruto, ainda são
inocentes, estéreis e inadequados para a reprodução.
Quanto ao evento que incapacita o “nascimento” do germe,
a transferência de Eva e Adão para o eterno paraíso, no gozo
celeste, constitui esta etapa. Na versão bíblica a expulsão do
primeiro casal é seu “nascimento” para o mundo mortal, o
momento em que se tornam seres tanto vulneráveis como
férteis. Mas no conto, na versão do juiz de fora, está claro que
não há nem haverá nascimento, pois “nenhuma criatura” igual
a eles andará sobre a terra.
O quarto fator, a existência de uma reprodução do germe
num espaço exterior, se trata de uma mudança de um plano
para outro. Em Cien años de soledad, temos a sobrevivência do
livro, no espaço do leitor, depois de destruído o manuscrito em
Macondo. Em “Adão e Eva” o motivo equivalente consiste na
existência de todos os personagens no sarau daquela noite. Em
ambos os casos a continuidade da palavra se envolve com a
idéia da reprodução. O romance de García Márquez, impresso
e distribuído, contradiz o relato do manuscrito apagado. A
enunciação oral da história bíblica da criação, num grupo de
pessoas de carne e osso, contradiz a idéia da eterna isolação do
casal primordial.
A principal diferença entre as duas narrativas talvez resida no
fato de que o efeito, ou seja, a recepção da estranha história é
explícita em um caso, e implícita no outro. Cien años de soledad
está cheio de leitores e de representações do ato interpretativo.
Em muitas instâncias, sugere-se que a interpretação é equívoca
ou até impossível. Mas a representação da recepção do desfecho
do manuscrito de Melquíades não pode figurar no livro, pois
está nas mãos do leitor real. A única caracterização escrita
desta leitura está no registro crítico, já aqui resumido. Um
aspecto fascinante de “Adão e Eva” se encontra no fato de que
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
a recepção do conto contraditório, essencialmente semelhante
a Cien años de soledad, está narrada no próprio conto, na volta
para o nível extradiegético depois do relato intercalado:
... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu
o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce,
enquanto os outros convivas olhavam uns para os
outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam
uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido
aparente. D. Leonor foi a primeira que falou:
— Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a
gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso
aconteceu, não é, Frei Bento?
— Lá o saberá o Sr. Juiz, respondeu o carmelita sorrindo.
E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:
— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas
também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos
aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma
cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de
Itapagipe? (528)
A “leitura” do relato está bem descrito. Primeiro, há uma atitude
de estupefação, indicada pelo fato de que os ouvintes olham
uns para os outros, “embasbacados”. Há o reconhecimento
de que a narração é “enigmática” e “sem sentido”. Há uma
proposta de resolução da mensagem problemática, na sugestão
de que o narrador “estava logrando a gente”. O transtorno
desaparece se reconhecem que o modo discursivo é o de uma
broma. E, afinal, temos a confirmação do narrador de que a
interpretação proposta é válida. O valor lógico da “leitura” dos
presentes é aprovado, explicitamente, quando o juiz de fora
diz que “nada disso aconteceu” e que, “se tivesse acontecido,
não estaríamos aqui”. É reconhecida a atitude brincalhona,
implicitamente, quando o juiz deixa a narração e passa rápido
para o assunto do doce.
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Dada a congruência impressionante da estrutura narrativa de
“Adão e Eva” e Cien años de soledad, e reconhecido o fato de
que somente “Adão e Eva” entra explicitamente na questão
da recepção da narração problemática, quero, para terminar,
propor uma hipótese anacrônica. Por que não pensar em
termos de uma leitura machadiana das últimas páginas de
Cien años de soledad – uma “Análise póstuma de Machado
de Assis”? O modelo desta leitura, é claro, está no desfecho
de “Adão e Eva”. O primeiro elemento desta leitura seria o
reconhecimento de que a confusão é apropriada, porque o
relato é contraditório e carece de sentido. E o segundo seria a
aceitação da idéia de que a solução mais acessível ao impasse
lógico da narração é ver tudo em termos de uma enorme e
cósmica brincadeira3.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Obra completa. Vol. 2. Ed. Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
DIXON, Paul B. “Joke Patterns in Cien años de soledad”.
Chasqui 15.2-3 (1986): 15-22.
DIXON, Paul B. Reversible Readings: Ambiguity in Four Modern
Latin American Novels. University: U of Alabama P, 1985.
DOUGLASS, Ellen H. “Machado de Assis’s ‘A cartomante’:
Modern Parody and the Making of a ‘Brazilian’ Text”. MLN
113.5 (1998): 1036-55.
ESPINOSA, Susana Cordero de. “Cien años de soledad: un
asesinato del olvido”. In Manuel Corrales Pascual, ed. Lectura
de García Márquez: doce estudios. Quito: Pontificia Universidad
Católica del Ecuador, 1975. 201-27.
FITZ, Earl. “The Influence of Machado de Assis on John
Barth’s The Floating Opera”. The Comparatist 10 (1986): 56-66.
3
Esta é a hipótese desenvolvida no meu ensaio “Joke Patterns in
Cien años de soledad.”.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Buenos
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MCHALE, Brian. Constructing Postmodernism. London:
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MONLEÓN, José. “Historia de una contradicción”. Maize
3.3-4 (1980): 17-22.
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RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. “Novedad y anacronismo
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RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. “One Hundred Years of
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SIEMENS, William L. “Tiempo, entropía y la estructura
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 23
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
de Cien años de soledad”. Explicación de Textos Literarios 4,
suplemento 1 (1975-76): 359-71.
SMITH, Barbara Herrnstein. Poetic Closure: A Study of How
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VARGAS LLOSA, Mario. García Márquez: historia de un
deicidio. Barcelona: Monte Ávila, 1971.
Recebido em 15/08/2008
Aprovado em 20/09/2008
24 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
MACHADO, NARRADOR-CRÍTICO
Marília Rothier Cardoso
PUC-Rio
Resumo: Quando um autor é homenageado no topo do
cânone, é interessante revisar seus métodos de construção da
obra investigando não sua obra prima mas crônicas e contos
da juventude, textos publicados na imprensa e nunca incluídos
em livros. Machado de Assis colaborou regularmente nos
jornais e os editores de revistas femininas freqüentemente
exigiam estórias sedutoras. Assim ele escreveu muitos enredos
para o Jornal das Famílias que lhe serviram de laboratório
literário. Tenta-se mostrar, aqui, que, mesmo nesses exercícios
apressados, a escrita machadiana dobrava a fantasia em reflexão.
A sua era uma prosa especulativa, ávida de questionar o poder
comunicativo do discurso revelando sua margem impossível
de decifração. Os comentários semanais leves e engraçados e
as estórias para entretenimento, abandonadas nas coleções de
jornais velhos, constituem um legado que não se descarta, pois
permanece como dádiva e desafio para os leitores de hoje.
Palavras-chave: Machado de Assis. Conto. Estética e crítica.
Abstract: When an author is celebrated at the top of the literary
canon, it is interesting to review his methods of building up his
work investigating not his masterpieces but rather chronicles
and early short stories, texts he published in the press and
never included in his books. Machado de Assis was a regular
contributor to newspapers and the editors of magazines for
women often demanded exciting narratives. Thus he wrote
many plots for Jornal das Famílias which certainly served
him as a literary laboratory. We try to show, here, that even
in those hurried exercises Machado’s writing doubled fantasy
into reflection. His was a speculative prose eager to question
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
the communicative power of speech to reveal its margin
impossible to decipher. The light and funny weekly comments
and the entertainment stories left behind in the old collections
of papers make up a legacy which should not be discarded. It
remains a gift and a challenge for his contemporary readers.
Keywords: Machado de Assis. Short story. Aesthetics and
criticism.
Considerado um clássico – o clássico brasileiro, por excelência
–, Machado de Assis tornou-se uma espécie de acervo de
comportamentos escriturais modelares de que se lança mão
para fundamentar teorias do texto. O capítulo XLV, “Notas”,
de Memórias póstumas de Brás Cubas exemplifica (pela via
da paródia) a potência do fragmento, enquanto fórmula
incompleta e condensada, capaz de tirar, desse paradoxo,
efeito poético e indagação questionadora. O “inventário”
de anotações, substituindo o encadeamento narrativo, a
justaposição de pequenos quadros de temática autônoma,
os comentários breves do narrador intrometido são táticas
de romancista em crise, ambicionando – talvez como os
românticos de Jena – abolir a distinção entre relato ficcional
e “disciplinas crítico-filológicas” (Agamben, 2007, p. 9). Seus
experimentos com a língua nunca ultrapassaram os limites do
“bom uso”, pela necessidade, na circunstância em que se fez
escritor, de conservar e transmitir, enriquecido, o patrimônio
cultural que lhe coube (Cf. Santos, 1999, p. 82, 83). No entanto,
obediente à tradição do código, não preservou seu artefato dos
embates com a algaravia das ruas, nem, muito menos, com os
meios modernos de divulgação. Se persistiu no empenho de
penetrar os cânones da língua portuguesa, fê-lo, quase sempre,
no espaço público, entre notícias da política e do câmbio,
nos jornais populares; entre receitas e moldes, nas revistas
femininas. Se rompeu a lógica dos enredos romanescos
e dobrou-os em dúvida filosófica, dirigiu-se, sempre, ao
leitor comum. Quis ensinar à dona de casa a desconfiar dos
narradores, atrair o homem de negócios para a consideração
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
do desequilíbrio social e, até mesmo, acolher o trabalhador
analfabeto – platéia dos folhetins, que se liam em voz alta – no
espaço do debate de idéias e valores. Os textos machadianos
que, como especialistas, queremos retomar, neste ano de
comemorações, são os clássicos de uma cultura periférica,
onde não se ultrapassam nem as incertezas, nem a violência
dos conflitos.
Os livros didáticos cristalizaram a informação de que Memórias
póstumas é o marco da maturidade de Machado, sua entrada
efetiva na galeria dos imortais. Esse modo de classificar uma
trajetória intelectual e artística tem um lado de consistência
produtiva e um lado de simplificação equivocada. Mas, mesmo
relativizado em seu papel de marco, o relato de Brás Cubas,
com sua agressividade medida de contra-romancista, assume a
tarefa útil de explicitar o espaço escolhido para engendramento
do discurso. Situando-se “cá no outro mundo” para confrontar
o leitor, o memorialista diz que escreveu a obra “com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia”. (Assis, 1962, p. 511, v. 1) O
estatuto fantasmático e as referências contraditórias indicam
a velha tradição ocidental daqueles que, com excesso de bile
negra e regidos por Saturno, entregam-se à contemplação e ao
desejo de um objeto inalcançável, tornando-se aptos à reflexão
crítica, mesmo que sob o risco da apatia e da negatividade
radical. No século XIX, quando o pensamento europeu mais
requintado teria surgido do spleen, o brasileiro Machado de
Assis inventa sua assinatura autoral através do “defunto”
Brás, descendente da “genealogia” falsificada dos Cubas. É
um modo de inserir-se numa tradição pelas bordas, desejando
integrá-la e estranhá-la, ao mesmo tempo. A escrita, produzida
desse lugar fronteiriço, não pode ser outra senão a do humor
negro – inscrição paradoxal: grotesca e fantástica, excessiva e
elíptica, refinada e um tanto grosseira, movida pela cautela dos
eruditos e pela ousadia dos arrivistas.
A linhagem ambígua dos melancólicos – ou dos que parodiam
certo banzo dos trópicos – expressa-se por alegorias. Dos
romances retrabalhados aos folhetins semanais e aos contos,
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
redigidos às dúzias para responder à demanda das empresas
jornalísticas, a obra de Machado explorou, quase à exaustão,
o emblema do teatro. Servindo-se da popularidade dessa
instituição, onde se concentrava a sociabilidade elegante, as
intrigas – ou os resquícios de intriga – centram-se no teatro,
mas a representação, que se desenrola no palco, está ausente
do texto. Sua referência mantém-se, como um fantasma,
assombrando o diálogo dos camarotes ou da ceia, após o
espetáculo. É o espectro que desloca e subverte o significado
das ações “reais”, desencadeadas nas casas e nas ruas. Na
abertura de Dom Casmurro, um tenor, já velho e rouco, compara
a vida a uma ópera e o narrador considera que “há filósofos
que são, em resumo, tenores desempregados” (Assis, 1962, p.
817, v. 1). As memórias de Bento lêem-se, assim, como se cada
protagonista tivesse seu papel predeterminado, pelo libreto
da ordem social. Mas, ao contracenarem, um jamais consegue
depreender as razões do texto do outro. E, como a ópera,
descrita por Marcolini, o tenor aposentado, tem co-autoria
de Deus e do diabo, é bem possível que, na falta de sintonia
entre música e versos, o sentido permaneça inalcançável. Para
conhecer estágios desse percurso de decifração e ciframento de
um saber sobre a sociedade dos homens, vale a pena examinar
um par de contos, onde o emblema do teatro preside à trama
e matiza o estilo.
Nos anos de sua juventude e primeira maturidade, Machado
de Assis pertenceu, simultânea ou sucessivamente, ao corpo
de redatores de diversos jornais e revistas; nos primeiros,
ocupava a coluna do folhetim-variedades; nestas, contribuía
com contos e noveletas. Além dessas tarefas regulares, fazia
poemas e era, às vezes, convidado para a empreitada mais
longa de um romance em folhetins. Sua obra foi, assim, sendo
construída aos pedaços, guardando, no entanto, a singularidade
de certo humor sombrio mas contido. Guardando, também,
insistente, o desejo de construir um pensamento inventivo
e crítico. Como o espaço literário, que o fascinava e podia
remunerá-lo, impedia-lhe a sistematicidade do discurso
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
filosófico, sua contribuição para o acervo do saber fazia-se
fragmentária. Combinava uma erudição clássica de autodidata
com a experiência do jornalismo. Em seu conjunto irregular, os
textos machadianos constituem, para o Brasil dos Oitocentos,
um empreendimento de cultura homólogo aos Ensaios de
Montaigne – ensaios de onde o ficcionista retirava não só
ilustrações e epígrafes mas cuja forma, casual, incompleta e
autocrítica, perseguia, em meio às atribulações de suas tarefas
variadas no serviço público e na imprensa.
“Curiosidade” (Assis, 1956b, p. 127-162), como dezenas
de outras, foi uma narrativa, escrita, por certo, ao correr da
pena, para uma elegante revista de modas, A Estação, em
onze capítulos, publicados entre 31 de janeiro e 30 de junho
de 1879. Assinava-o apenas a inicial M. e não foi inserido
em nenhum dos volumes de contos organizados pelo autor.
(Cf. Assis, 1956b, p. 2), Para o estudioso, essas produções,
consideradas circunstanciais e descartáveis, mostram-se
preciosas, pois expõem, à maneira dos rascunhos, muitos
aspectos da carpintaria escritural. O enredo na noveleta repete,
sem nenhum esforço de mudança, o esquema romântico de
tratar o casamento como confronto entre o interesse prático da
família e a fantasia da moça bonita, entre o moralismo estreito
da sociedade e o ideal libertário dos artistas, entre a falta de
escrúpulos dos caça-dotes e o empenho ainda atabalhoado de
afirmação da autonomia feminina. Só o ceticismo brando do
final feliz destoa um pouco da fórmula convencional eufórica,
apropriada por Macedo e até por Alencar. De seu lado,
Machado de Assis descuida do enredo para dar destaque à
moldura alegórica do mesmo. Se motivação, suspense, clímax,
desfecho dramático e recomposição apressada do equilíbrio
familiar deveram-se à “curiosidade” de Carlota, a moça
bonita e estouvada, a significação – em termos de crítica dos
sentimentos e da sociedade – só se tece no contraponto entre
teatro e vida. Sua complexidade resulta do caráter ambíguo e
intercambiável de ambos. A quebra da rotina, responsável pela
trama, acontece porque Carlota, já noiva, deseja desvendar os
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
segredos do novo estado, indo ao teatro assistir à estréia da
peça (atribuída a Alencar) “O que é o casamento?”. Apesar
dos protestos, os pais e o noivo levam Carlota ao teatro.
No entanto, o narrador nada diz sobre o assunto do drama,
deixando claro para o leitor que a ação do palco não desvendou,
para a virgem, o segredo do casamento. A própria interessada
voltava os olhos, muito mais insistentemente, para a platéia,
que se revela o espaço, por excelência, da representação. O
triângulo dos desejos forma-se na platéia e é na rua e nas
casas que se encena o drama das engodos e falsas aparências.
Se a fantasmagoria burguesa do espetáculo social impediu
que Carlota lesse a escrita cifrada oferecida pela performance
dos atores, a transformação, ainda que apressada e canhestra,
dessa ilegibilidade em alegoria das relações afetivas foi uma
experiência capital para o escritor. Este tratou de aperfeiçoá-la,
servindo-se de sua curiosidade algo mórbida de melancólico
para engendrar tábuas de ideogramas tão intrincadas quanto
Dom Casmurro. (Cf. Benjamin, 1984, p. 191) Tão envolvido
quanto Carlota pelo sonho burguês do futuro feliz e brilhante,
Bentinho se destaca, para o leitor, por sua dubiedade complexa.
A educação ambiciosa, que lhe deram, em casa, no seminário e
na faculdade de Direito (cf. Santiago, 1978, p. 29-48), ensinou-o
a ler demais, tomando qualquer aparência por cifra enganadora
a ser desmascarada. Assim, quando foi ao teatro, assistir ao
Otelo, em vez de dar-se conta de que a traição do palco era
representada, tomou-a por revelação da verdade e traduziu-a
literalmente na língua cotidiana de sua vida. E, mesmo velho
e casmurro, quando transpôs suas memórias para a narrativa
continuou a justapor, voluntarioso e obsessivo, os atores da
ópera e os fantasmas da vida. Legou para os pósteros não a
denúncia, que pensava estar grafando, mas a inscrição cifrada
de várias camadas de possíveis equívocos.
É evidente que Dom Casmurro resultou de um processo árduo
de aprendizagem; árduo e cheio de idas e vindas. Só um enorme
dispêndio de experimentos conduz a uma escrita alegórica cujo
humor negro engendra o segredo, propõe a chave de decifração
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
desse saber fechado e, ao mesmo tempo, dobra-se criticamente
sobre a tarefa, indicando o estatuto lacunar e dúbio de qualquer
chave. Bem antes de redigir “Curiosidade”, quando ainda era
contratado pelo Jornal das Famílias, periódico popular da
empresa Garnier, Machado imaginou um relato experimental
de maior ousadia: “O Capitão Mendonça” (Assis, 1956a, p.
157-183) publicado em duas partes, durante o ano de 1870, e,
embora assinado, também esquecido, de propósito, nas páginas
da revista. O narrador deste conto é o próprio protagonista, o
que já dota a narração de maior sutileza. Nesse caso, o descarte
do lugar de objetividade é sintomático da perspectiva crítica,
pois a estória aproxima o artifício do teatro à positividade
da ciência, numa composição, produtivamente, indecisa que
mistura os parâmetros do fantástico e da verossimilhança. A
abertura também conduz a personagem principal ao teatro e, se
Carlota lá foi para matar a curiosidade, Amaral deixou-se levar
pelo tédio. Ambos, moça e rapaz, no entanto, compartilham
desventuras sentimentais e, enquanto ela se alheia do palco
para fixar o dono de um pincenez, na platéia, ele nem se informa
do título da peça, acomoda-se na cadeira, conversa com o
vizinho e, quando este se levanta, acaba fechando os olhos.
No clímax da intriga, quando o nível de suspense chega ao
grau máximo, intervém um desfecho em anti-clímax: Amaral é
despertado. O pano já havia descido, ele perdera todo o drama.
Ou não? Se esteve ausente da sala de espetáculo, foi porque
sonhava ou por ter logrado transportar-se para outro espaço
– o de um possível futuro ou o da fantasia? Para o leitor que
busca compreender os mecanismos da produção de sentido, é
obrigatório considerar todos os planos – reais, representados,
oníricos, fantásticos e alucinados.
Foi no teatro que Amaral encontrou o Capitão Mendonça,
tipo estranho, que o chamou pelo nome, dizendo-se amigo
de seu pai no passado. Apesar de intrigado pelo vizinho de
platéia, o rapaz se distrai e, enigmaticamente, vê-se atendendo
ao convite autoritário do outro para cear em sua casa. Se o
convite é inesperado e inescapável, a visita apresenta uma série
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
de surpresas: do corredor sinistro, que se atravessa, atinge-se
uma sala confortável, uma refeição requintada e a conversa
agradável com uma beldade, a filha do anfitrião exótico.
Aliás, prazer e susto misturam-se, o tempo todo, nessa casa
descrita como “purgatório” pelo próprio dono. Confortado
pela beleza da moça, Amaral se desnorteia como o choque
de sabê-la uma construção artificial, um clone, quando recebe,
nas mãos, os belos – e falsos – olhos de Augusta. Diante de
sua “obra-prima”, o Capitão descreve as experiências químicas
responsáveis pela produção daquele ente perfeito, revelandose menos pai do que “autor”. Nos dias seguintes, disposto a
enfrentar os riscos da convivência com o cientista-criador e
tirar daí proveito prático e estético-afetivo, Amaral vai sendo
admitido no laboratório e na família do velho, pois este aceita
sua união com Augusta. Há apenas uma condição, submeterse à mais recente experiência do “sábio”, que planeja fazê-lo
digno da filha, “introduzindo-lhe o gênio” (Assis, 1956a, p.
179). O frasco de éter é preparado para ser introduzido, através
de um pequeno corte em sua cabeça... É, nesse momento,
quando tudo, em volta, já assume “proporções descomunais e
fantásticas”, que a cena – sonho ou pesadelo – é interrompida.
Se, para atender às exigências da revista, o percurso da
fabulação retorna à verossimilhança do começo, o próprio
narrador já havia salvado, num dos parágrafos do texto, a
“alta potência” da falsidade dessa representação (Cf. Deleuze,
1973, p. 116-118). Lembrando o “conto de Hoffmann em que
um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir
criaturas humanas” (Assis, 1956a, p. 169), reafirma o valor
inventivo e crítico de se resgatar a dimensão fantástica do real
cotidiano.
Com a referência ao conto sobre a experiência alquímica da
criação, o sonhador melancólico, que se faz espectador distraído,
joga com o lado produtivo do perigo – o desejo insaciável de
conhecer. E é o confronto da vida entediante com a mágica do
teatro que permite perscrutar o enigma preservando sua força
pela lógica rasa de uma (suposta) decifração. Não é preciso
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
remontar aos mitos gregos, nem mesmo à ficção romântica,
para consultar o oráculo sem desqualificá-lo. Machado, à
medida que se profissionalizava, aprendia a buscar nos jornais
– especialmente nos jornais já velhos – a voz da esfinge
necessária a questionar o bom senso de seus contemporâneos.
Na coluna das “Balas de estalo”, em 30 de julho de 1884,
o cronista, fazendo o papel de cidadão comum, acalma o
fantasma das ambições políticas que o assaltam e, à maneira do
“defunto” Brás Cubas, quando “não f[o]i ministro de estado”
(Assis, 1962, p. 625, v. 1), considera filosoficamente a ordem
social. Esse momento de lucidez reflexiva é proporcionado
pela leitura de uma notícia, já antiga de dez ou quinze dias,
que reúne arte dramática e progresso tecnológico. Trata-se do
espetáculo onde, num momento preciso do 1º ato de A dama
das camélias, a “sublime atriz (Emília Adelaide)” deve iluminar
o palco, através da estrela de seu diadema, que “espargirá
esplêndida luz elétrica” (Assis, 1956c, p. 86). Desconhecendo
o efeito produzido no público por aquela promissora união
da ciência com a arte (pois não encontrou os jornais dos dias
subseqüentes), o cidadão-cronista retoma o mesmo jornal e
passa a esquadrinhá-lo, como se fosse uma tábua de hieróglifos,
cuja tarefa decifratória exigisse a combinação de signos
esparsos. Encontra, então, em outra página, um anúncio-chave
que desvenda as bases práticas do espetáculo. A mágica da
razão científico-estética apóia-se no interesse da indústria e do
comércio. O proprietário da loja Campelo “é o colaborador do
Dumas”, tendo descoberto o uso da eletricidade no destaque
das performances. Seu “gênio inventivo”, além de abrilhantar
a cena teatral, transformou o brilho em lucro, anunciando o
espetáculo ao lado de seu estoque de “binóculos (...), plumas,
penachos, leques, grampos atartarugados, etc.” (p. 87). O
escritor, fascinado pelos emblemas da modernidade inscritos
na ribalta e nos jornais, também se faz gênio inventivo, quando
transforma sua arte tradutória em profissão. Mas, na contramão
das quadrinhas publicitárias do Campelo, seus versos e seus
contos não permitem uma contabilidade equilibrada entre
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
gastos e lucros. Como a estrela do palco, o brilho produzido
por suas palavras é despesa excessiva (cf. Bataille, 1975, p. 3336), que, em lugar de acumular, dispersa os bens culturais, para
que perturbem o mercado, onde circulam. Em vez de levar
o selo da patente, os fragmentos de saber literário divulgamse para serem apropriados por outros e, assim, continuarem a
circular e a transformar-se.
Nessa crônica de 1884, como em várias outras das “Balas
de Estalo”, o teatro é o espaço emblemático onde se fazem
representar, para a interpretação, os signos da sociedade, da
economia e da política da metrópole tropical. Tal a importância
estratégica da figuração da arte dramática, que, nessa coluna
coletiva, Machado usa o pseudônimo de Lélio, personagem de
Molière – então, freqüentador assíduo dos palcos da França
e do mundo. Se o folhetinista é, sempre, uma persona, que
tipifica a opinião pública -- ou uma voz dissonante do senso
majoritário –, o destaque do teatro como alegoria caracteriza
a assunção explícita do efeito falsificador para que o discurso
investigue os caminhos da verdade. Por isso mesmo, a alegoria
teatral permanece e se refina, nas crônicas da maturidade.
Foi no espaço denominado “A Semana”, mantido entre
1892 e 1897, na edição dominical da Gazeta de Notícias, que
surgiram os folhetins machadianos mais bem urdidos, valendo,
efetivamente, como ensaios críticos. Do conjunto desses
textos, ressalta “A cena do cemitério”, de 3 de junho de 1894
(Assis, 1962, p. 649-651, v.2), excepcionalmente resgatado pelo
próprio autor para integrar suas Páginas recolhidas. Aliás, a
situação excepcional deve explicar o comportamento também
raro de dar título a folhetins. Aqui, a referência identificadora
não vem de uma comédia popular qualquer. Machado foi
buscá-la no Hamlet, o modelo dos dramas alegóricos do
século XVII. Aproveitando o clima tragicômico dos episódios
shakespearianos, insiste-se no tom agressivo do humor negro,
para tratar da morte e da crise financeira. Ao fragmento de
cena clássica, sobrepõem-se as falas da angústia moderna
diante da fugacidade dos capitais. O cronista, pressentindo o
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
mau augúrio, considera que “essa mistura de poesia e cotação
de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada
bom; eram alhos com bugalhos.” (p. 649)
No final dos Oitocentos, para atingir o imaginário burguês,
centrado no indivíduo, a crônica volta a experimentar – agora,
tirando todo efeito possível de sua força – a conjunção entre
cena dramática e figuração onírica. A personagem cronista,
na avidez de formar-se e informar-se, lê, na mesma noite, os
jornais e a tragédia. Conseqüência anunciada: o sonho terrível
em que se vê transformado em Hamlet e, atravessando a
cidade, chega a um espaço, “metade cemitério, metade sala”
(p. 649), onde os coveiros cantam a desvalorização dos títulos.
São coveiros-corretores que cavam o solo, de onde surgem
caveiras e “debêntures” – “uma fusão de aspectos, letras com
buracos de olhos, dentes por assinaturas.” (p. 650) É a deixa
para que Hamlet deplore a decadência do sistema financeiro,
pressentindo que suas economias estão prestes a enterrar-se.
Chega o cortejo fúnebre para o sepultamento de Ofélia e seu
desespero cresce; salta dentro da cova e entra em luta com
Laertes. Os contendores se agridem; tudo se mancha de sangue.
Só a voz do criado, acordando-o, pôde evitar o assassinato.
O desenlace, repentino e desnorteante, não explica nada. O
expediente verossimilizador não restabelece a tranqüilidade.
Com o fim da crônica, permanece a apreensão do pesadelo.
Nenhuma garantia para as notícias dos jornais; muito menos,
para o pregão da Bolsa.
O exame ligeiro desse mosaico, quase aleatório, de fragmentos
do percurso escritural de Machado de Assis, permite o rastreio
de seu deslizamento pela fronteira entre o senso comum e o
nonsense, a biblioteca clássica ou cosmopolita e as peculiaridades
banais da cidade periférica, a vontade de saber e o aguilhão da
dúvida. Depara-se com um exercício tenso de engendramento
narrativo, que confronta a potência comunicável do discurso
com sua necessária inacessibilidade, oferecido, num esforço
de pedagogia inusitada, ao público brasileiro em formação. O
registro de tal esforço constitui o legado, deixado pelo escritor,
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
como dádiva e desafio, para os leitores de hoje que desejem
tornar-se seus herdeiros.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias; a palavra e o fantasma na
cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2007.
ASSIS, J. M. Machado de. Contos recolhidos. Org. R. Magalhães
Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[a].
ASSIS, J. M. Machado de. Contos sem data. Org. R. Magalhães
Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[b].
ASSIS, J. M. Machado de. Crônicas de Lélio. Org. R. Magalhães
Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[c].
ASSIS, J. M. Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1962. 3 v.
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: A parte maldita.
Trad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad.
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: P. U.F.,
1973.
SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: Uma
literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Modos de saber, modos de
adoecer. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
Recebido em 20/08/2008
Aprovado em 20/09/2008
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
ESAÚ E JACÓ E A TRANSFORMAÇÃO DOS
VALORES E COSTUMES NA ÉPOCA DO
ENCILHAMENTO
Lenivaldo Gomes de Almeida
PUC-Rio
Resumo: Análise sócio-histórica do romance Esaú e Jacó
(1904), de Machado de Assis, a partir de personagens – Santos,
Batista, Nóbrega – que enriqueceram durante o período do
encilhamento.
Palavras-chave: Machado de Assis. Esaú e Jacó. Encilhamento.
Narrativa brasileira.
Abstract: Social-historical analysis of the novel Esaú e Jacó
(1904), by Machado de Assis, from the point of view of
the characters – Santos, Batista, Nóbrega – who became rich
during the period of Encilhamento (a period of financial
depression in Brazil).
Keywords: Machado de Assis. Encilhamento (a period of
financial depression in Brazil). Brazilian narrative.
PANO DE FUNDO
Apesar de a República só ter sido proclamada em 1889, a
especulação financeira, a busca desenfreada pelo lucro fácil
e pelo enriquecimento a qualquer custo são anteriores a essa
data e possivelmente foram inauguradas oficialmente com a
“febre das ações” em 1855, ainda sob as barbas do Imperador.
Como observa José Murilo de Carvalho em Os bestializados,
a liberdade de ações especulativas e da jogatina oficializada
na bolsa de valores, sem qualquer peia de valores éticos, foi
estendida ao campo da moral e dos costumes: “[...] o que
era antes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
República, se excetuarmos o governo Floriano, foros de
legitimação pública.” (CARVALHO, 1987, P. 27).
Em Esaú e Jacó, Machado de Assis faz um painel dos últimos
vinte anos da monarquia e dos primeiros anos do novo regime.
Mesmo sendo o cenário político pano de fundo da narrativa
(centrada na família Santos, no conflito entre Pedro e Paulo e
na angustiante indecisão de Flora entre os gêmeos), Machado
compõe um excelente quadro da moral e dos costumes daquele
período da incipiente República Brasileira. A família Santos,
a família Batista e o irmão das almas (mais tarde Nóbrega)
são exemplos típicos de uma nova classe social que, saindo
da periferia do poder, concentram esforços em chegar ao
centro decisório da sociedade. Cada um a seu modo, Santos
pelo enobrecimento, Batista através da burocracia do Estado,
Nóbrega pela ostentação – tem o mesmo objetivo, o poder. O
que os diferencia é o grau de consciência e as estratégias que se
utilizam para alcançar o objetivo.
A visita de Natividade à cabocla do morro do Castelo; o furto
do dinheiro das almas por quem o deveria guardar; a missa
mandada rezar por Santos – que, esvaziada do seu sentido
litúrgico, lhe serve de espetáculo de ostentação – são atitudes
típicas e delimitadoras dos códigos morais e dos costumes que
serão norteadores do comportamento dos personagens no
decorrer da narrativa.
A FÉ ESCALA MONTANHAS
No primeiro capítulo, Natividade e Perpétua penitenciam-se
no morro do Castelo: “o íngreme, o desigual, o mal calçado
da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas.” (ASSIS,
1988, P. 19).
Para terem acesso ao mundo transcendente dos espíritos, as
duas se dobram ao sacrifício e se lançam por um ambiente
pobre e sombrio. Antes de alcançarem o espaço privado da
consulta, se expõem publicamente aos olhares dos moradores
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
e passantes do local. Já na escada que as levará ao lugar da
consulta, esbarram com dois homens que, como no coro das
tragédias gregas, exteriorizam duas falas comuns na opinião
pública e na consciência dialógica dos que recorrem à cabocla:
— Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir
disparate...
— É mentira dele, emendou o outro rindo; a cabocla
sabe bem onde tem o nariz. (ASSIS, 1988, p. 20)
A exemplo do que ocorre em um dos mais conhecidos contos
do autor, “A cartomante”, Machado nos descreve um jogo
de linguagem, no qual a cabocla lança expressões genéricas,
significantes vazios para que a consulente os preencha,
acossada pela angústia da espera – Natividade está grávida –
segundo seus desejos.
Longe de revelar, o discurso dissimula. E, numa inversão da
hierarquia social, a cabocla é quem manipula a palavra, se
utilizando, para isso, das mesmas estratégias retóricas usadas
pelos padres com suas parábolas emprestadas à bíblia e pelos
políticos com seus ideários copiados aos filósofos ou aos
poetas, segundo seus interesses.
A cena da consulta é narrada como se fora um espetáculo de
teatro. Machado carrega na tinta, levando o leitor a ver aquele
ritual através de um olhar analítico e não emotivo, o olhar
distanciado do narrador de terceira pessoa. Essa estratégia fica
mais evidente se for considerado que é com esse acontecimento
que tem início a narrativa, quando ainda se desconhecem
completamente as duas personagens, Natividade e Perpétua, e
por elas o leitor não pode estabelecer nenhum tipo de relação
de empatia.
Do fato narrado, dois aspectos são bastante significativos,
considerando-se a moral e os bons costumes da época. A
quebra da hierarquia social: a cabocla é investida de um poder
ao qual Natividade se submete; o nivelamento de duas crenças
(ou religiões) que ocupam espaços diferenciados na formação
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
da sociedade brasileira: o catolicismo, dos colonizadores, e o
espiritismo não-científico (sic), trazido pelos negros vindos
da África. Esse nivelamento se apresenta discursivamente
quando a cabocla sugere o conflito entre os gêmeos, filhos
de Natividade, o que reporta às imagens arquetípicas de
Esaú e Jacó, que, por darem título ao livro, é uma nota que se
reapresenta de imediato na mente do leitor.
Encerrada a consulta, se estabelece imediatamente a finalidade
comercial do encontro. Natividade gratifica com bens materiais
(dez mil-réis) os bens simbólicos que acaba de receber: o sonho
de um futuro glorioso para os filhos.
O BANQUETE DAS ALMAS
Se para Natividade não há entraves entre o mundo dos
bens simbólicos e o mundo dos bens materiais, posto que o
segundo lhe assegura o primeiro, o mesmo não ocorre com o
irmão das almas, ao qual Natividade confia dois mil-réis para
que sejam empregados na missa das almas. Depositário de tão
alta quantia e sem a tranqüilidade material de Natividade, o
banqueiro das almas, responsável pela manutenção do mundo
eterno, se vê momentaneamente afligido com as questões
éticas já tão enfraquecidas pela nova ordem econômica e
social – o capitalismo e o surgimento de uma classe burguesa
inescrupulosa.
Claro é que essa lucidez não ocupa os pensamentos do
pobre pedinte. Sua questão é mais pragmática. Seu tempo é o
presente. Seu mundo, o das necessidades imediatas. Portanto,
seu conflito não dura mais do que o curto caminho que o
leva à igreja, quando se dá conta, pela esmolas miseráveis que
recolhe no trajeto, que aquela era uma oportunidade única.
Na polifonia de vozes da sua consciência, a vontade de viver
se expressa com mais vigor, se sobrepondo aos outros seres,
nesse conflito da vontade de viver consigo mesma, e fazendo
da representação apenas um instrumento para alcançar o seu
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CONTEXTO
objetivo, como demonstrou Schopenhauer, no clássico O
mundo como vontade e representação.
[...] ouviu uma voz débil como de almas remotas que
lhe perguntavam se os dous mil-réis... Os dous mil-réis,
dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele,
que, em primeiro lugar, também tinha alma... (ASSIS,
1988, p. 26).
No capítulo LXXV, “Provérbio errado”, o narrador, aludindo
a esse acontecimento, cita uma retificação feita por Aires a um
conhecido adágio: “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”,
dando um sopro de vida ao ditado: “A ocasião faz o ladrão”,
palavras essas já tão desgastadas pelo uso.
DE FIGURANTE A COADJUVANTE
Esquecido ao longo da narrativa, o irmão das almas ressurge
à cena vinte anos depois desse episódio. É outro homem
na aparência e ostenta uma riqueza que teve início nos dois
mil-réis tomados de empréstimo às almas. Deixou de ser um
insignificante figurante, passando a ser um coadjuvante com
aspiração ao papel principal. O acesso ao mundo material
trouxe-lhe a reboque o registro civil: Nóbrega, como o
narrador passa a nomeá-lo.
ENFIM ATOR PRINCIPAL
No teatro do círculo restrito dos eleitos, Nóbrega é a própria
representação de uma pequena-burguesia. Deserdado de
qualquer educação formal, imita caricatamente a burguesia
local, a qual, por sua vez, busca o seu modelo nas praças da
Europa. Cópia da cópia, protagoniza uma cena grotesca, que
é descrita e comentada pelo personagem Aires no capítulo
LXXIV: “Casos há – escrevia o nosso Aires – em que a
impassibilidade do cocheiro na boléia contrasta com a agitação
do dono no interior da carruagem, fazendo crer que é o patrão
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
que, por desfastio, trepou à boléia e leva o cocheiro a passear.”
(ASSIS, 1988, p. 161)”
O que se depreende da situação apresentada é a carnavalização
(como a entendeu M. Bakhtin) das relações e dos valores
estabelecidos no regime monárquico. A inversão de valores e
comportamento é própria de um mundo em crise. Naquele
momento de transição da sociedade brasileira “a vida é
desviada das sua ordem ‘habitual’, em certo sentido uma ‘vida
às avessas’, um ‘mundo invertido’ (“monde à l’envers”)”.
(BAKHTIN, 1981, p. 105).
O RITUAL E O ESPETÁCULO
No esquema de Machado de Assis, em que duas ordens de
valores se rivalizam em pé de igualdade, Santos é o duplo de
Nóbrega, numa outra escala social. Diferente deste, Santos
não é atormentado por qualquer tipo de conflito ético. É ao
mesmo tempo ator e diretor das cenas de fausto que costuma
promover em público. Como pontos em comum, têm a origem
humilde, sem tradição, e a ascensão através da especulação
com o capital alheio.
Santos é um representante da classe burguesa de origem rural
que enriqueceu com o jogo especulativo na bolsa de valores.
Como não faz parte das oligarquias que giram em torno do
poder monárquico, se vê obrigado a fazer nomeada, repetindo
com pompa os espetáculos públicos habituais à aristocracia.
É no quinto capítulo do romance, com a apresentação desse
personagem, que Machado de Assis delimita a ordem de
valores que rege aquela sociedade. A missa do coupé parece
sem propósito para Natividade, que, apesar de dominar o jogo
da sedução, não compreende a importância da máscara no jogo
social. Contudo, para Santos, aquele espetáculo tem a função
de marcar, como um ritual de passagem, a sua entrada numa
outra posição social e se desligar do seu passado na província
de Maricá.
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CONTEXTO
Para o espetáculo da missa, Santos toma todos os cuidados
necessários, a começar pela escolha da igreja que, nas palavras
do narrador, “não era vistosa, nem buscada, mas velhota,
sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo”.
O anúncio da missa estava de acordo com os propósitos
de Santos, sem nome de quem mandara rezar, sem hora e
convite, e o defunto, que era um mero detalhe em toda essa
formalidade, tivera o nome reduzido para João de Melo, e não
João de Melo Barros.
Na memória de Natividade as palavras misteriosas da cabocla
vinham se juntar a esse ato quase indecifrável do marido.
Longe dos seus pares, na periferia, Santos repete, em meio
àquela gente pobre, o cortejo imperial. A exemplo do que
ocorria nas aparições públicas do imperador, a simples presença
de Santos e Natividade é suficiente para atrair atenção curiosa
daquela platéia anônima. Esvaziado do sentido ritual do poder
monárquico, o ato se transforma em espetáculo. A missa em si,
objeto da visita do casal à igreja, bem como o motivo da missa
(o falecimento de um parente) são secundários. “A missa foi
ouvida sem pêsames nem lágrimas.” E a importância da alma
celebrada é mensurada pelos distintivos de riqueza material:
o carro de luxo, a nota de dez mil-réis entregue como paga
ao sacristão, apresentados pelo parente ilustre, patrocinador
da missa. Observe-se que a quantia ofertada ao sacristão é a
mesma que Natividade pagou à cabocla, estabelecendo assim
uma equivalência pelo valor de troca de atos simbolicamente
distintos.
O RITO DE INICIAÇÃO
Machado faz, em Esaú e Jacó, um retrospecto de quase vinte
anos antes da proclamação da República. E nos mostra
que sob o regime monárquico a nova classe dirigente vai se
formando e buscando se parecer nos hábitos e costumes com
aristocracia. “A condição para introduzir-se junto à aristocracia
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
era aristocratizar-se, isto é, elevar o ‘modus vivendi’ da família
pela adoção dos costumes e dos valores europeus, exigência
indispensável para se obter um título nobiliárquico.” (MURICY,
1985, p. 53)
Num trecho do capítulo sétimo, Machado mostra esse
aspecto de submissão de um comportamento mais expansivo
e espontâneo, denotativo de uma classe social, a um outro
comportamento mais sisudo e formal, preocupado com a
etiqueta das “almas bem nascidas” (ver a epígrafe do livro).
No referido capítulo, a passagem que se segue é exemplar
do fenômeno apontado acima: “Sem reparar no vexame da
mulher, Santos deu um abraço à cunhada, e ia dar-lhe um
beijo também, se ela não recusasse [...]. Santos conservara
alguns gestos e modos de dizer dos primeiros anos, tais que o
leitor não chamará propriamente familiares [...]. Santos, meio
arrependido da expansão, fez-se sério [...].” (ASSIS, 1988, p.
33)
Santos tem consciência deste rito de passagem, portanto faz da
sua vida e da vida da família um espetáculo público, pois precisa
do reconhecimento daqueles dos quais ele pretende ser par,
podendo assim participar do círculo dos eleitos e conseguir um
título de nobre. O que só virá a acontecer dez anos passados
após “a missa do coupé”. “Natividade não sabia que fizesse;
dava a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e
reler que no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José
dos Santos fora agraciado com o título de Barão de Santos.”
(ASSIS, 1988, p. 59/60).
Esse acontecimento demonstra de forma cabal como o mundo
aristocrático, articulado por uma concepção essencialista, vai
dando lugar a um mundo articulado pela aparência. Se para
Santos a aquisição do título de barão é um indício de ascensão
social, para a ordem aristocrática é um testamento da falência
do regime de valores que sustentava a monarquia.
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CONTEXTO
O EL-DORADO, BRASIL
As fortunas de Santos tanto quanto a de Nóbrega têm a
mesma origem, a especulação e o roubo. Fato apontado nos
capítulos: III, quando Nóbrega furta os dois mil-réis ofertados
às almas por Natividade; IV, quando o narrador nos esclarece
que Santos, provinciano de Maricá, também era pobre e
que enriqueceu por ocasião da “febre das ações” em 1855,
ganhando muito e fazendo a ruína de outros.
Machado era um grande conhecedor dos artifícios
inescrupulosos do tempo de encilhamento e, como
funcionário do governo republicano de Marechal Floriano
Peixoto, se manifestou em 30 de maio de 1892, através da
via administrativa, com uma ação acauteladora do interesse
público, pedindo a anulação da patente de uma “invenção” de
um aventureiro americano chamado George Boynton.
Sob o de “Relatório de Invenção” o postulante dissimulava
uma vasta especulação por sorteio. Descoberta por Machado
de Assis na sua leitura minuciosa do Diário Oficial, do dia
30 de maio de 1892, este se manifestou prontamente no
mesmo dia, fundamentando seu pedido para que a concessão
da patente fosse anulada o mais breve possível. A patente,
que fora concedida em 18 de fevereiro de 1892, depois de
várias interpelações de Machado de Assis, com despachos
desfavoráveis, teve sua revogação oficializada em 08 de
novembro de 1892. (MAGALHÃES JUNIOR, 1981, vol. O3,
p. 200-211).
Esse episódio, bem como muitos outros, inspirara o capítulo
LXXII, “Um El-Dorado”, no qual Machado volta à carga
contra a especulação que tomou conta do Império nas suas
últimas décadas e da República no seu início. No trecho a
seguir pode-se ter uma idéia aproximada do escândalo que foi
esse episódio na vida da incipiente nação brasileira: “Certo,
não lhe esqueceste o nome, encilhamento [...]. Quem não
viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de
concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares
de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de
réis.” (ASSIS, 1988, p. 159)
Toda a situação narrado no capítulo, em que Santos explica
a Batista o seu novo empreendimento, é semelhante à do
aventureiro norte-americano que buscava a fortuna fácil, na
terra que, no imaginário daquela época, se configurava como o
lugar idílico, cheio de riquezas à disposição daqueles que aqui
quisessem se aventurar.
Sobre aquele período histórico de franca especulação, que teve
início no ano de 1851 (quando Machado tinha apenas 12 anos),
dirá Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil: “A ânsia
de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades
de crédito, contaminou logo todas as classes e foi uma das
características notáveis desse período de ‘prosperidade’.”
(HOLANDA, 1995, p. 77)
Esaú e Jacó, romance dos mais complexos de Machado, é
também uma síntese do contexto histórico e da ambivalência das
instituições brasileiras nos cinqüenta anos que compreendem
as décadas finais da Monarquia e a primeira década do governo
republicano no Brasil. É nesse ambiente de debilidade
institucional, entre o final de um regime e o início de outro,
que o “capitalismo predatório”, como o qualificou José Murilo
de Carvalho, no seu livro Os bestializados, vai encontrar campo
fértil na burguesia brasileira ascendente, sem a tradição política
da aristocracia: “[...] se deu a vitória do espírito do capitalismo
desacompanhada da ética protestante.” (CARVALHO, 1987,
p. 26).
Pode-se dizer que o personagem Santos e o retrato modelar
dessa nova classe social que, na falta do Imperador, elege
como heróis os grandes especuladores da bolsa, como afirma
ainda José Murilo de Carvalho, que em outro trecho revela
uma perversão da política econômica daquela época, que
nos acompanha até os dias de hoje, sendo já um traço da
cultura brasileira: “A confiança na sorte, no enriquecimento
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CONTEXTO
sem esforço em contrapartida ao ganho da vida pelo trabalho
honesto parece ter sido incentivado pelo surgimento do novo
regime.” (Idem, p. 28)
Essas análises demonstram que Machado de Assis estava
atento às questões da formação do imaginário da sociedade
brasileira em sua época. Soube apontar com fina ironia as
contradições da classe dirigente que chegou ao poder com
a República. Pode-se afirmar que Esaú e Jacó traz em suas
páginas, como pudemos ver, os tipos que se estabeleceram com
o “encilhamento” e a extensão do liberalismo econômico aos
costumes e valores da burguesia capitalista que se fartou com
a política econômica da época. A ascensão da família Santos,
retrato fiel de uma burguesia brasileira, caricata e ignorante,
demonstra o grotesco do processo de aristocratização de um
grupo social que vislumbrou na mudança político-social, que
então ocorria, uma oportunidade de fazer parte do reduzido
grupo que governava o país.
Não se deve esquecer que Machado publicou Esaú e Jacó em
junho de 1904, quase quinze anos após a proclamação da
República, tendo, portanto, presenciado a gênese de todo o
processo que culminou com a mudança de regime. Leitor
atento de tudo que ocorria à sua volta, Machado legou-nos,
não apenas uma análise da alma humana (como sempre se
afirma), mas um tratado de história e sociologia, no qual até
hoje se pode debruçar para melhor entender como se constitui
o imaginário, que orienta a vida da classe dirigente no Brasil.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Liv. Garnier,
1988.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado
de Assis. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília,
INL, 1981.
MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões
do seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1985.
Recebido em 20/08/2008
Aprovado em 20/09/2008
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CONTEXTO
O CORTE E A CORTE DO MACHADO
Sérgio da Fonseca Amaral
Ufes
Resumo: Apresentarei algumas das recepções de Machado de
Assis realizadas ao longo de 100 anos, criadoras e constituintes
de uma obra permanente ante públicos diversos, movidas
por interpretações de uma escrita provocadora de diferentes
tomadas de posição crítica e ideológica frente à sociedade
brasileira.
Palavras-chave: Machado de Assis. História. Recepção.
Abstract: Je présenterai une partie des réceptions critiques de
Machado de Assis, effectuées pendant 100 ans, créatrices et
constitutives d’une ouvre permanente devant pubblics divers,
mis en mouviment grâce à les interprétations d’une écriture qui
provoque différents positionnements critiques et idéologiques
face à la societé brésilienne.
Mots-clés: Machado de Assis. Histoire. Réception.
Comemorar 100 anos do desaparecimento de um escritor
significa, antes de mais nada, que o autor não morreu. Contudo,
neste ano de 2008, estamos voltados para o centenário da
morte de Machado de Assis. Pensei, inicialmente, em fazer
um trabalho comentando o teatro machadiano. Mas, lendo
as peças, resolvi abandonar o projeto: primeiro, são trabalhos
menores e a importância maior do autor reside em outras
produções; segundo, diante da escolha de se fazer uma análise
fechada dos textos ou de uma leitura comparativa com o
teatro da época, renunciei às duas propostas, pois creio que
o autor sairia perdendo. Dessa forma, não cumpriria o papel
esperado para este evento. Por outro lado, falar apenas da
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
biografia de Machado de Assis, ou, por assim dizer, o que foi
o homem, pouco acrescentaria aos costumeiros levantamentos
retroativos para se tentar compreender a obra através da
pessoa. Ora, homenagear um escritor requer falar do autor,
por conseguinte, a marca Machado de Assis representa mais
do que a vida de um indivíduo, mas a de uma escrita. Dessa
forma, ao retomar a biografia de um escritor pretende-se
recuperar, e discutir, leituras constituintes da esfinge Machado,
provocadas, e evocadas, ao longo do tempo, consolidando,
mas também, por vezes, colocando sob suspeita suas criações
literárias, como veremos a seguir.
Machado notabilizou-se como ficcionista, além de ter sido
poeta, dramaturgo, cronista, crítico, epistológrafo e... letrista de
música – portanto um polígrafo. Aqui, interessa o ficcionista,
cujo largo espectro nos faz entender melhor o aspecto
provocante de uma obra exposta às controvérsias críticas.
Quando falamos em Machado, pensamos imediatamente
na sua obra ficcional. Cada momento da recepção assinala
um Machado e um leitor, uma maneira de ler e uma maneira
de ser Machado. Talvez a dificuldade maior em entender
qualquer autor esteja nesse ponto: ao procurar precisar uma
leitura, pode-se ficar refém da exigência de lê-lo como ele
pretensamente haveria escrito. Contudo, há maneiras difusas
que se entrechocam em relação a qualquer escritor, pois as
leituras são conflitantes exatamente porque não há leitores
em abstrato, mas representativos de interesses particulares.
Haverá tantos Machados quantas representações sociais de
leitores existirem. Ou de interesses sociais motivados para
haver uma determinada interpretação. Assim sendo, destaquei
algumas leituras críticas sobre Machado de Assis realizadas no
aludido período de 100 anos, que dirão bastante do porquê de
estarmos aqui hoje, ouvindo e falando sobre um escritor cuja
reflexão ficcional parece conter e revelar o enigma de um país,
constituindo-se, assim, ele próprio um enigma. Tais leituras por
vezes foram contundentes, tanto para elogiá-lo, quanto para
atacá-lo. Em síntese, é um escritor emblemático produzido
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CONTEXTO
pela cultura brasileira, além de representar uma contradição
viva da sociedade que o gerou. Comemorar a sua morte revela
o autor estar bem vivo e passar bem.
As épocas lêem de acordo com seus juízos e seus esquemas de
valores e circunscrevem uma dada maneira de viver teórica e
praticamente. Logo, é lícito imaginar a recepção de um escritor
como condicionada a tais variáveis temporais. Uma dada
comunidade, num certo tempo e espaço, recebe, interpreta,
avalia, julga, aceita ou repudia uma obra sob determinados
paradigmas de crenças. Os tão decantados valores imortais de
uma obra ou autor dependem menos do texto do que de seus
intérpretes. Um crítico, por princípio, deve ser um leitor mais
aparelhado. A seu modo, e aí reside a marca própria, traduz um
juízo de um tempo sobre um escritor em questão. Legitimado
para cumprir um papel no contexto social de pensamento,
portanto, desencadeador de uma leitura que, necessariamente,
exige do lido um direcionamento teórico e prático, tal
abordagem, por isso mesmo, estará apta a representar um
conjunto de idéias; não só as do crítico, mas também de uma
parcela representativa da comunidade de leitores. Sintetiza as
vozes e inquietações de um dado momento. Quanto a isso José
Veríssimo já nos chamava a atenção, no início do século XX,
na introdução de seu livro História da literatura brasileira, de
1912:
Parece um critério, não infalível mas seguro, de
escolha, a mesma escolha feita pela opinião mais
esclarecida dos contemporâneos, confirmada pelo
juízo da posteridade. Raríssimo é que esta seleção,
mesmo no Brasil, onde é lícito ter por menos alumiada
a opinião pública, não seja ao cabo justa, e só os que
lhe resistem são dignos da história literária. Não
pode esta, a pretexto de opiniões pessoais de quem
a escreve, desatender à seleção natural que o senso
comum opera nas literaturas.
Como se vê, o crítico reconhecia haver no seu trabalho uma
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
pregnância de seus contemporâneos. As leituras e interpretações
sucedem-se e, por vezes, chocam-se, contradizem-se, ou, por
outra, uma ponta se laça a outra em grandes saltos de tempo
que se reencontrariam. Contudo, cada momento histórico e
cada comunidade fazem uma leitura singular dos textos a lhes
ser propícios receber. Dessa forma, enfeixando algumas das
leituras feitas sobre Machado, pretende-se traçar e entender um
percurso e uma imagem de um autor como uma singularidade
constantemente criada, repensada, revalidada e legitimada
socialmente.
Partirei de um perfil público de Machado, já famoso no final
século XIX, do qual Silvio Romero (1851-1914), já destoante,
nos dá notícias e sobre o qual procura analisar sob uma
outra medida, num livro intitulado Machado de Assis: estudo
comparativo de literatura brasileira, publicado em 1897. Com
variantes, atenuantes e inversões, o pensamento crítico de Silvio
Romero permanece até os dias de hoje. Primeiro, pretendia ele
aparar as arestas do exagero dos elogios; segundo, tratava-se
de avaliar a obra do ficcionista em relação ao universo social e
político brasileiro; e, terceiro, dentro de uma lógica de combate,
cobrar uma tomada de posição sobre as questões nacionais. Se,
antes da morte de Joaquim Maria Machado de Assis, a exigência,
no calor da hora, era no sentido de atacar o ficcionista naquilo
que representava, ideologicamente, a manutenção do atraso
brasileiro ante a premência da modernização e do pensamento
científico, futuramente, como topo do cânone, em nome de
uma arte pensada como puro pensamento critica-se o autor
por atenuar as desigualdades sociais dentro da representação
ficcional, num crítico como Flávio Koethe, por exemplo, que
veremos mais adiante. Mas, retornando, é interessante observar
a forma irritada, impaciente, impiedosa, mesmo, como Sílvio
Romero aborda Machado de Assis. No entanto, para o crítico
elucidar aquilo que ele considera o verdadeiro escritor tem de
atravessar a fama do autor já firmada pelo consenso da opinião
pública e da crítica. Para isso, paga o tributo necessário,
destacando, inicialmente, as qualidades do autor e do seu
52 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
talento. Aos poucos, porém, no desenrolar do ensaio, chega
ao ponto de interseção cujo vértice é o contraponto entre um
estudo sério, o seu, e as considerações elogiosas fáceis, para
inglês ver. Não entrando no mérito da questão, essa é a senha
para Silvio Romero demarcar a escrita de Machado de Assis,
compará-lo com escritores da Escola de Recife, de onde ele
próprio era originário, e analisá-lo sob a ótica de uma crítica
que se queria científica (evolucionista), procurando situar na
justa medida o homem, a obra e a sociedade. Tal entendimento
era um esforço concentrado de, ao mesmo tempo, escapar
da tradição retórica brasileira e de compreender racional e
modernamente o papel, a contribuição, o valor e o poder de
persuasão da obra do escritor Machado de Assis na sociedade
brasileira. Não estava em questão apenas uma apreciação
estética, beletrista, de um autor. O exame de Machado feito
por Sílvio Romero passa pelo tripé: biografia, obra e meio
social. Segundo a análise proposta, esse modelo interpretativo
explicaria e colocaria o autor no devido patamar do panteão
dos escritores.
Assim sendo, podemos destacar algumas categorias escolhidas
pelo analista para compreender o ponto de vista de uma crítica
fundada em “sóbrias observações solidamente racionais”
e que hoje percebemos facilmente o quão frágil são os seus
fundamentos. Na avaliação do crítico, pouca coisa fica de pé,
pois a ficção do autor é medida, comparada, corrigida, reescrita
segundo a necessidade de significar algo compromissado de
antemão. Portanto, existem modelos e conceitos a priori sobre
o que a ficção deve obedecer. A escolha do crítico, para julgar
a ficção do autor, recai em quatro tópicos: estilo, humor,
pessimismo, tipo.
Com os quatro elementos destacados acima, o crítico procura
desancar o autor fluminense. Estabelece uma simetria entre a
escrita do autor com a fala acometida de gagueira, como se
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
uma fosse reversível na outra4. No famoso humor machadiano,
o crítico não vê graça nenhuma. Quanto ao pessimismo, seria
esse de fancaria, copiado de ingleses e alemães com veleidades
de profundidade. Sílvio Romero, no entanto, destaca Machado
no que ele teria de criador de tipos e lamenta o autor não ter se
dedicado mais a tal característica por impregnar os personagens
de uma cor tipicamente local. Logo, vê o escritor como um
legítimo narrador em que o nacional (ou local) se afigura como
um traço forte5, em detrimento do universalismo pontuado
por José Veríssimo (mais tarde aceito). Não na recorrência ao
típico ou ao exótico, mas na captura do característico, porém
abstrato, da gente brasileira. No saldo, Sílvio Romero coloca
Machado de Assis abaixo da opinião geral, pois, para ele, o
escritor andava em desacordo com, pelo menos, duas ordens: o
projeto artístico era de menor monta do que se dizia, e as idéias
do autor poderiam ser mais influentes na sociedade brasileira
desde que permanecesse como pintor da alma nacional e não
se metesse a copiar características alheias, como as filosofadas
humorísticas e pessimísticas. Observe-se ainda o crítico não
separar as já famosas duas fases do escritor como se fosse uma
gritante ruptura, mas como uma continuidade natural de uma
na outra.
Como se vê, a crítica romeriana tinha um tom normativo
ao vincular o trabalho do escritor ao papel da literatura na
sociedade. Mesmo assim, ou apesar disso, a análise de Sílvio
Romero, como todos os críticos da época, ainda permanecia,
“O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem
ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata de seu espírito,
de sua índole psicológica indecisa. [...] Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa
e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra.
Sente-se o esforço, a luta. ‘Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como
fazem outros na palavra falada’, disse-me uma vez não sei que desabusado
num momento de expansão, sem reparar talvez que dava-me destarte uma
verdadeira e admirável notação crítica.” Sílvio Romero. Machado de Assis, p.
122.
4
5
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Ver páginas 64, 65 e 66. Op. cit.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
a despeito de se proclamar científica, desconhecendo a relação
texto/contexto, mesclando autor, obra e mundo social sob
um mesmo padrão de interpretação. Ou, de outra maneira,
associava-se, e ainda hoje se repete o mesmo preceito,
imediatamente as disposições do escritor às linhas do texto.
Em seguida, passo, de forma breve, ao crítico e historiador
da literatura José Veríssimo (1857-1916). Embora falando de
Machado numa clave diferente, e até inversa à de Sílvio Romero,
há pontos de contato entre esses dois analistas do final do século
XIX e início do XX. Enquanto Sílvio Romero desqualifica
Machado, José Veríssimo o aponta como o ápice da criação
literária no Brasil. Romero, submetendo o escritor à rigidez
do ponto de vista de que arte, meio social e, sobretudo, raça
andam pari passu e são os fatores determinantes para explicar
uma produção estética, entra em confronto com Veríssimo
que julga um escritor a partir do olhar estilístico e beletrista.
Nesse sentido, os torneios das frases e todo o arcabouço
lingüístico gramatical figuram como importantes recursos
para fazer da obra de Machado uma grande obra de arte da
literatura brasileira. Ou seja, o aspecto vernacular sobressai-se
sobre o literário. Logo, Veríssimo encontra uma outra forma
de explicar a arte literária para julgar positivamente Machado.
Passa também pelos critérios destacados por Romero, como
estilo, humor, pessimismo, tipo. Porém, ao contrário daquele,
esses se lhes afiguram como sobejamente realizados pelo
nosso autor, como podemos deduzir do seguinte louvor:
“Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto
como ele, estranho a toda espécie de cabotinagem, de vaidade,
de exibicionismo.” (História da literatura brasileira, p. 393).
Dois representantes da crítica naturalista, apesar de partirem de
vizinhas fontes teóricas e conceituais, terminam por desfechar
considerações analíticas diferentes sobre Machado. Crítica
nascente, pretendendo assentar-se em bases científicas, traçou
um perfil de Machado de Assis que será revisto e revisado
posteriormente. Contudo, ao final alavanca e propaga o nome
do escritor para ser solicitado mais a frente pelos novos críticos
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
a vir.
Um nome importante da crítica da primeira metade do século
XX é o de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959). (Lúcia, também
biógrafa e romancista, morre em 1959 num acidente de avião).
Após a fase que podemos dizer inicial da crítica brasileira,
Lúcia retoma Machado sob outros parâmetros. De formação
católica, ela entra em confronto com as críticas chamadas
sociológicas e vai buscar no aspecto biográfico e psicológico as
bases para se calçar e entender Machado de Assis, o homem e
a obra. Isso é feito num livro monumental intitulado Machado
de Assis, em 1936. Aí, pretende projetar um quadro psicológico
por intermédio de dados biográficos para interpretar a obra.
Ou, quiçá, o contrário: a partir da obra falar do homem. Tal
empreitada merece da autora um emaranhar-se em todas
as fases da vida do escritor desde a infância até à velhice.
Quando há falta de documentos, o próprio texto ficcional de
Machado serve de base para se traçar o perfil; quando há o
testemunho documental este serve de apoio para se interpretar
o texto ficcional. Como se pode ver, tal crítica, se não fundou,
pois já vem de antes, ganha na autora um sistema acabado
de relacionar imediatamente psicologia, traço biográfico e
ficção6. Que faz fortuna até os dias de hoje. Semelhante crítica
também plantava um pé no discurso científico, dessa vez não
mais no determinismo, positivismo ou evolucionismo do
período naturalista, mas na psicologia. Nesse sentido, Lúcia
Miguel Pereira, juntamente com Augusto Meyer (1902-1970),
proporcionará uma ruptura com a crítica anterior, libertando
Machado da concepção oficial da leitura voltada apenas para
as articulações entre homem e meio. No caso de Meyer, há,
além disso, uma clareza em relação à importância do leitor para
a sobrevivência de um autor, pois como ele próprio afirma
impossível imaginá-lo senão em andamento no tempo, avultando
“Pelo que conhecemos da sua vida, Dom Casmurro – a sua única
história de amor – deve ser aquela em que Machado nada pôs de autobiográfico. Mas será mesmo? Essa única exceção numa obra tão grande, e quase
sempre tirada de dentro do autor, será possível? Além dele, só Ressurreição
não parece encerrar nenhuma confissão.” Machado de Assis, p. 238.
6
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
ou decrescendo de importância, quase esquecido às vezes, para
ressurgir mais tarde, transfigurado à imagem de outras gerações.
Essa nota dá o tom para a guinada da crítica que estava se
operando.
Contudo, devemos não nos esquecer que as leituras de uma
época se fazem em confrontos diretos, encontros e desencontros
umas com as outras. Além disso, uma época posterior termina
por se defrontar com as anteriores, corrigindo, revisando,
acrescentando e suprimindo.
Por isso, para melhor mapear algumas das principais leituras
estabelecidas sobre Machado nesses 100 anos, recorremos ao
artigo “Esquema de Machado de Assis”, de Antonio Candido,
publicado em Vários escritos em 1970. Segundo o crítico, podese rastrear um certo esquema de leitura da obra de Machado.
Além daquelas acima destacadas, ou seja, a ironia e o estilo
como linguagem refinada; o pessimismo expresso por uma
“filosofia” ácida, mas acessível a todos; o dado biográfico da
discrição, da reserva e da urbanidade, Antonio Candido rastreia
os seguintes assuntos levantados a partir da obra de Machado:
1 – o problema da identidade (quem sou eu? O que sou eu?
Em que medida existo por meio dos outros? Haverá mais
de um em mim?). Aí reside a questão do desdobramento da
personalidade (“O espelho”) ou da loucura (“O alienista”);
2 – a relação entre fato real e fato imaginado, em que o ciúme
é o impulso central. Como exemplo, a leitura de D. Casmurro;
3 – qual o sentido de um ato praticado? Tema tratado em Esaú
e Jacó;
4 – a temática da perfeição, a aspiração ao ato completo. Um
exemplo seria o conto “Um homem célebre”;
5 – há diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo
e o injusto? Ver Memórias póstumas de Brás Cubas;
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
6 – a transformação do homem em objeto do homem, ou
seja a exploração econômica, social e espiritual. Tema caro ao
próprio Antonio Candido e tem na filosofia do Humanitismo
o melhor exemplo.
Como se percebe, há um andamento das leituras sobre
Machado. Claro está que tal esquema não significa um processo
evolutivo em linha reta das interpretações feitas, mas ajuda a
esclarecer como um escritor vai sendo “criado” ao longo de
um tempo, das épocas e das comunidades de leitores.
Vindo um pouco mais para frente, podemos destacar três
situações de leituras sobre Machado. Uma tem como suporte
metodológico a teoria do efeito estético. O maior representante
no Brasil é Luiz Costa Lima. Uma outra filiada à tradição
marxista, e a Antonio Candido, pode ser chamada de crítica
dialética, aqui representada por Roberto Schwarz. A terceira,
também filiada à tradição marxista, pode ser apelidada, na
falta de um termo melhor, de crítica radical ou de esquerdista,
destaquei Flávio Koethe como o seu expoente.
É interessante notar que as três críticas têm como mote
a articulação entre mundo social e ficção, a diferença será
acentuada pelo método utilizado. No primeiro caso, Costa
Lima, embora não tenha dedicado nenhum livro específico ao
autor, por outra escreveu alguns ensaios, analisando algumas
de suas produções ficcionais, inclusive o conto “O alienista”,
a ser lido aqui hoje. Não deixa de avaliar um caminho
antes percorrido pela crítico brasileira para balizar a sua
interpretação. Costa Lima procura afastar de si duas vertentes
opostas: a análise imanente e a transcendente do texto literário.
Seus ataques mais contundentes vão contra o sociologismo, de
marxistas ou não marxistas. Desse modo, o conceito-chave de
sua obra é o de mímesis, cuja reinterpretação vem perseguindo
ao longo da vida, na qual procura dessubstancializá-la. Isso
significa dizer que, ao se deparar com um objeto de arte, o
sujeito tanto encontra, quanto põe experiência estética. Nesse
caso, nem o mundo é apenas representado, negando as análises
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
sociológicas, ou a obra basta a si mesma como estilo, ou
artefato lingüístico, rebatendo as considerações imanentistas.
No livro Dispersa demanda, de 1981, há um capítulo dedicado a
Machado intitulado “Sob a face do bruxo” que dá um pequeno
exemplo de tal prática de leitura. Usando o conceito de alegoria,
tomado de empréstimo a Benjamin, para estudar os romances
do autor, demarca claramente a historicidade da obra de arte
e, conseqüentemente, de Machado. Ou, como afirma o crítico,
[...] à medida que a consciência da historicidade da
interpretação dos objetos literários constitui uma
das bases da maioria das teorias contemporâneas
da literatura, os escritores ‘alegóricos’ se tornam
favorecidos. O interesse que hoje Machado desperta
não é pois uma prova da perenidade da arte, mas
apenas que sua poética [...] tornou-se para nós
privilegiada. (p. 77).
Portanto, a posição de Costa Lima toma como princípio
norteador de leitura da obra de Machado o seu lugar no
tempo histórico, porém não como representação social, ou
traços biográficos ou psicológicos, nem o estilo, nem apenas
o aspecto intrínseco da obra, ou a forma, mas na articulação
entre o fictício e a realidade histórica determinada.
Com Roberto Schwarz, a crítica marxista dialética ganha um
ponto alto na análise do texto literário e machadiano. Schwarz,
em conformidade com o seu mestre Antonio Candido, procura
estabelecer o nexo preciso entre ficção e realidade, forma e
conteúdo, texto e contexto. Nessa dialética, num diálogo
permanente, traça o perfil do autor e da sociedade de onde emana
a obra. É o caso de citar os livros Ao vencedor as batatas (1977)
e Um mestre na periferia do capitalismo (1990), cujas análises,
respectivamente, dos primeiros romances machadianos e de
Memórias póstumas demonstram tal articulação.
Entretanto, para o interesse desta apresentação, é forçoso
destacar que os dois críticos mencionados partem tanto
das teorias reconhecidas contemporaneamente, quanto de
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
uma tradição crítica existente no país para alçar novos vôos
nas leituras de Machado. Independente das diferenças e
embates que uma tenha entrado com a outra, os dois críticos
reconhecem um lugar maior de Machado, e nisso seguem a
corrente da tradição, no cânone da literatura nacional.
O último a ser listado aqui, Flávio Kothe, procura destoar
daqueles que ele considera os críticos canonizantes. No seu
livro, O cânone imperial (2000), precedido por O cânone colonial,
passa em revista os escritores da historiografia literária para
atacar toda a construção da literatura nacional. A alegação é de
que o critério utilizado para isso foi a conveniência ideológica.
Os escritores consagrados, já por si uma marca ideológica,
transformaram-se em tabus de par com as suas presenças nas
antologias escolares. Por isso ele aponta para a desconstrução
do cânone e da crítica. Seu critério de reavaliação pretende
defender a literatura como arte. Vejamos se assim se procede.
No livro há três capítulos dedicados a Machado. No primeiro,
“Machado e o negro”, as formulações sobre o autor baseiamse na clave biográfica, psicológica e sociológica da velha crítica.
Numa torção histórica vislumbramos a sombra de Sílvio
Romero. É interessante observar, lembrando-nos de Marx, de
como a história retorna. Além, das mencionadas claves, há erros
de informação, e uma deliberada anacronia nas “análises” dos
textos machadianos. Como exemplo, tomemos o comentário
do crítico sobre o capítulo XCII de Dom Casmurro durante
uma conversa de Bento com Escobar sobre a fazenda da
família de Bentinho:
Aí se evidencia a riqueza de Bentinho, a sua posição
de classe. E ele é também o narrador. Sob a aparência
de mostrar a cordial simpatia de Escobar, o narrador
quer demonstrar a intrínseca falsidade dele; sob a
aparência de dar a palavra ao escravo, faz com que
a sua fala mostre o seu espírito subalterno. Dá-se a
fala para melhor calá-lo. É manifesto o conformismo
do escravo com a sua humilde situação: quem assim
“aceita” ser escravo, como que merece a escravidão.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
Ele “é” porque “merece”, porque “quer”, porque
nem pensa em outra situação: ele não é assim porque
isso lhe foi imposto. Seria ingênuo esperar do preto que
ele pudesse ser melhor do que o senhor branco que
o explorava. Machado procura provar que o senhor
branco é melhor, sem ver em um o espelho do outro,
o retrato avesso. [...] Dom Casmurro é, de modo típico,
escrito da perspectiva de um senhor de escravos
e herdeiro da oligarquia latifundiária: não há um
estranhamento quanto a isso. [...] O narrador provém
de uma família de latifundiários e donos de escravos:
automaticamente é o dono da palavra. [...] Ele é o
senhor do dinheiro, dos destinos, do discurso. [...] Aí
se mostra de modo representativo o gesto semântico
do cânone brasileiro, a sua coesa perspectiva senhorial.
(Pp. 472-3. Grifos meus).
Não me alongarei mais nas citações e considerações do crítico.
Basta dizer que as seqüências de análise obedecem ao mesmo
paradigma. Como se pode depreender, a crítica é radical. Mas,
há um problema nela: estreitar demais as relações entre ficção e
mundo social. Não basta dizer as palavras mágicas – narrador,
gesto semântico etc. – para que a análise faça a mediação
necessária entre uma instância e outra. Koethe só leva em
consideração as informações historiográficas sobre a situação
social brasileira do séc. XIX, não se preocupa em interrogar
mais de perto a trama ficcional. Tudo para justificar a defesa
de uma tese. Nesse sentido, encontra-se com Sílvio Romero:
para ajustar a teoria precedente ao objeto a análise perde seu
rigor e direção e torna-se um julgamento a posteriori de quem
se quer condenar. Ou seja, a ideologia do crítico se hipertrofia
em relação ao objeto ficcional. Contudo, para encurtar,
poderíamos fustigar o crítico e perguntar de onde pôde ele
alimentar os ataques frontais. Pois, mesmo contra si mesmo,
o texto machadiano oferece elementos para que se deitassem
palavras sobre o escravo, percebesse a situação de classe do
narrador e a situação desproporcional em tal relação de poder.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Finalizando, estão aí, em linhas bem gerais, algumas das
recepções de Machado e de sua imagem paulatinamente
construída ao longo desses 100 anos, o que prova o autor não
estar morto.
Espero ter deixado claro como um autor situa-se além
dele mesmo, em conjunto, primeiro com a rede social que
estabelece a importância de um escritor, pois ao se privilegiar
um em detrimento de outro entra em questão uma série de
componentes, interesses históricos e valores sociais; segundo,
de como a marca de um escritor Machado de Assis, por exemplo,
solicita um certo panorama de recepção por ser socialmente
construída, fundando expectativas de leituras dentro de um
quadro ficcionalmente determinado.
Recebido em 27/07/2008
Aprovado em 29/08/2008
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CONTEXTO
A GALERIA MACHADIANA
Ricardo Ramos Costa
Uerj
A obra de arte é uma mensagem fundamentalmente
ambígua, uma pluralidade de significados que
convivem num só significante. Essa condição
constitui característica de toda obra de arte.
(Umberto Eco)
Resumo: A proposta deste estudo é analisar a presença das
Belas-artes na prosa machadiana. Para isso, buscamos investigar
como as citações, as descrições, a fruição estética e outros
contatos com obras artísticas são apresentados na obra do
escritor e compõem um espaço das artes visuais na literatura.
Palavras-chave: Machado de Assis. Estética. História da Arte.
Abstract: The purpose of this study is to analyse the presence
of the Fine Arts in Machadian prose. In order to do so, we
try to investigate how quotations, descriptions, the aesthetic
use and other contacts with artistic works are presented in the
writer’s work and make room for the visual arts in literature.
Key words: Machado de Assis. Aesthetic. History of Art.
A vasta fortuna crítica que a obra de Machado de Assis criou
e tem motivado durante as últimas décadas indicam, dentre
várias faces desta imensa obra, a importância da biblioteca
do escritor na formação de suas peças (romances, contos,
poemas). O livro A Biblioteca de Machado de Assis, organizado
por José Luiz Jobim em parceria com outros pesquisadores
brasileiros e estrangeiros, explora através de vários ensaios a
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• 63
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
biblioteca pessoal do escritor, buscando encontrar as relações
da mesma com as obras literárias de Machado, através das
citações diretas ou indiretas a autores que se encontram nesse
rico mosaico de referências.
De modo análogo, propomos neste trabalho uma pequena
exposição das referências artísticas (principalmente de vertente
pictórica) na obra do autor em causa, pois consideramos que
o seu “museu imaginário” é tão importante quanto a sua
biblioteca. Para isto selecionamos alguns trechos de romances e
contos do autor onde podemos constatar referências, citações,
descrições de obras de arte e momentos de fruição estética.
A galeria machadiana é composta quase que exclusivamente
por obras acadêmicas, ou seja, por obras que fazem parte de
alguma corrente estilística, que foram produzidas por artistas
formados dentro de uma tradição artística (proeminentemente
de vertente européia) e que possuem um conjunto de preceitos
técnico-formais e ideológicos, e que foram aceitas como
produtos artísticos genuínos dentro do contexto histórico em
que foram criadas.
No livro Quincas Borba temos a seguinte menção à presença
de obras pictóricas e escultóricas na residência de Rubião:
O barbeiro relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia
a principal figura a secretária, e sobre ela os dous bustos
de Napoleão e Luís Napoleão. Relativamente a este
último, havia ainda, pendentes da parede, uma gravura
ou litografia representando a “Batalha de Solferino”, e
um retrato da imperatriz Eugênia. (ASSIS, 1971, p. 766)
E o próprio barbeiro francês, Lucien, comenta sobre as
esculturas: “Ah! O imperador! Bonito busto, em verdade. Obra
fina. O senhor comprou isso aqui ou mandou vir de Paris? São
magníficos. [...]” (ASSIS, 1971, p. 766). Rubião tem especial
interesse pela imagem de Napoleão, nesta passagem de
Quincas Borba pede ao barbeiro que dê ao seu rosto as formas
da “pêra” e dos bigodes do imperador francês.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
(Batalha de Solferino, Autor desconhecido, 1859-1860)7
O quadro Batalha de Solferino representa o combate que opôs
os exércitos aliados da Sardenha e da França ao exército da
Áustria-Hungria, durante a segunda guerra da independência
italiana; o exército francês saiu vitorioso deste combate,
liderado por Napoleão. A outra gravura de que trata a citação,
a imperatriz Eugênia, foi esposa de Napoleão III com quem
se casou em 1853. Esta pintura insere-se nas características do
Romantismo, principalmente pela forte dramaticidade em que
representa esta cena histórica.
Numa outra obra, o conto “Uma excursão milagrosa”, temos
a seguinte descrição do personagem Tito:
Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos
e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do
de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o
verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de
modelo à pintura e de objeto amado aos corações de
quinze e mesmo de vinte anos. (ASSIS, 1971, p. 760:
destaques nossos)
Disponível
em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Imagem:Battaglia_di_Solferino_(Henry_Dunant).jpg>. Acesso em: 05 nov.
2008.
7
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Neste trecho a figura de Tito é comparada a de Alcibíades,
rapaz de rara beleza e de família da elite ateniense que viveu
entre os anos 450 e 404 a.C. Foi discípulo de Sócrates; dotado
de brilhantes qualidades, cometeu inúmeros desvios por
causa de sua personalidade extravagante. Representações de
temática da história e da mitologia grega fazem parte do estilo
Neoclássico na pintura, como podemos observar na seguinte
obra de Jean-Léon Gérôme:
(Sócrates ao encontro de Alcibiades na casa de Aspásia, JeanLéon Gérôme, 1861)8
Esta pintura faz parte de uma seleção de obras conhecidas nos
meios intelectuais e pela aristocracia brasileira do século XIX.
Machado de Assis explora este repertório visual na descrição
de seus personagens. Acreditamos que os leitores de seu
tempo, em sua maior parte, conheciam as várias referências
apresentadas (inclusive as de obras de arte), como podemos
notar ainda no livro Ressurreição, onde o personagem Luis
Batista descreve um capricho de sua amante e a semelhança
desta com outra gravura:
Disponível
em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Imagem:AspasiaAlcibiades.jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008.
8
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
Pela conversa adiante falou-me duas ou três vezes numa
gravura que vira na Rua do Ouvidor, e que o dono
vendera quando ela lá voltou, disposta a comprá-la. O
assunto era o mais ortodoxo possível: a Israelita Betsabé
no banho e o rei Davi a espreitá-la do seu eirado. [...]
A gravura creio que era finíssima; mas tinha, além disso,
um merecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que
a figura de Betsabé era a cópia exata das suas feições.
(ASSIS, 1971, p. 182: destaques nossos)
(Betsabé com a carta do rei David, 1654, Rembrandt
Harmenszoon van Rijn)9
A pintura que selecionamos para ilustrar essa passagem é a célebre
“Betsabé com a carta do rei David” de Rembrandt. Notamos
Disponível em: <http://moinho-vermelho.blogspot.com/2005/04/artede-transformar-xxx-rembrandt-ii.html>. Acesso em: 05 nov. 2008.
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
que Machado de Assis usa a expressão “gravura” reiteradas vezes
para se referir na verdade à reproduções de trabalhos de pintura.
Na sociedade aristocrática brasileira do século XIX, assim como
a descrita pelo escritor em várias obras, era comum a compra
de cópias de quadros de pintores famosos, em sua maioria
provenientes da Europa, como sugere ainda o personagem Luis
Batista em Ressurreição: “[...] eu deveria aproveitar o paquete que
partiu ontem e mandar vir da Europa a gravura. [...]” (ASSIS, 1971,
p. 183). Estas reproduções eram chamadas de “gravuras”, embora
devemos lembrar que a gravura é uma técnica artística distinta
(com as variantes litogravura, xilogravura e gravura em metal), com
procedimentos e resultados diferentes da pintura.
(Luís XVI da França, [s.d.], A. F. Callet)10
10
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Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Ludvig_
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Em Esaú e Jacó temos mais uma referência à “gravura” no
constante embate entre os irmãos Pedro e Paulo: “Logo depois,
Pedro viu pendurado um retrato de Luís XVI, entrou e comprou-o
por oitocentos réis; era uma simples gravura atada ao mostrador
por um barbante. Paulo quis ter igual fortuna, adequada às suas
opiniões, e descobriu um Robespierre” (ASSIS, 1971, p. 978).
Machado de Assis explora estas referências pictóricas para sugerir
o perfil de personalidade de seus personagens. Há certa relação de
espelhamento entre o perfil sugerido dos personagens com as pinturas
apresentadas, ou pelo menos os personagens buscam certa identificação
com as figuras retratadas. Rubião com Napoleão, Pedro com Luís XVI
e Paulo com Robespierre. Podemos notar que as figuras das pinturas
são sempre personalidades importantes da história, admiradas por seus
grandes feitos: Imperadores, Reis e Revolucionários.
(Robespierre, Anônimo, 1790)11
XVI_av_Frankrike_portr%C3%A4tterad_av_AF_Callet.jpg>. Acesso em: 05 nov.
2008.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Robespierre.
jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008.
11
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 69
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
É particularmente curiosa a alusão a Luís XVI e Maximilien
Robespierre (referentes a Pedro e Paulo respectivamente), pois
se tratam de dois rivais na história da França. Robespierre (17581794) foi um dos mais conhecidos líderes da Revolução Francesa,
e Luís XVI (1754-1793) foi deposto e decapitado pela Revolução
Francesa. Esta evidência acentua a relação conflituosa entre os
personagens irmãos (rei versus revolucionário – Pedro versus Paulo).
No início do conto “As bodas de Luís Duarte” a decoração da casa
com novas “gravuras” cria uma situação controversa entre José
Lemos e a esposa:
O respeitável dono da casa, trepado num banco, tratava
de pregar à parede duas gravuras compradas na véspera,
em casa do Bernasconi; uma representava a “Morte de
Sardanapalo”; outra, a “Execução de Maria Stuart”. Houve
alguma luta entre ele e a mulher a respeito da colocação da
primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um
grupo de homens abraçado com tantas mulheres. Além
disso, não lhe pareciam próprios dois quadros fúnebres
em dia de festa. José Lemos, que tinha sido membro de
uma sociedade literária, quando era rapaz, respondeu
triunfantemente que os dois quadros eram históricos. E que
a história está bem em todas as famílias. (ASSIS, 1971, p.
192)
70 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Na página anterior (A Morte de Sardanapalo, 1827-28, Eugène
Delacroix)12
(A execução de Maria, rainha da Escócia, 1867, Robert
Herdman)13
Nesta passagem do conto, entram em cena duas importantes
pinturas de fatos históricos. A primeira representa a história
de Sardanapalo – suposto rei da Assíria de 836 a 617 a.C. –,
que prestes a ser aprisionado na Babilônia mandou fazer uma
Disponível em: <http://www.pintoresfamosos.com.br/?pg=delacroix>.
Acesso em: 05 nov. 2008.
12
Disponível em: <http://www.marie-stuart.co.uk/Mariaregina.htm>.
Acesso em: 05 nov. 2008.
13
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 71
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
fogueira no pátio do palácio e nela se atirou, com todas as suas
mulheres e tesouros. O quadro é de Eugène Delacroix, pintado
em 1827 e hoje exposto no Museu do Louvre. Delacroix
(1798-1863) é um importante pintor francês do romantismo;
dentre suas obras mais conhecidas está “A liberdade guiando o
povo”. A segunda pintura retrata a execução de Maria Stuart,
rainha da Escócia (1548-1587). Maria Stuart pretendeu o trono
inglês, mas foi presa por ordem de sua prima Elizabeth I
(1533-1603), que, depois de mantê-la em cativeiro por 18 anos,
mandou decapitá-la. Na época em que se passa o conto há
várias representações deste fato, porém a que se tornou mais
conhecida é a pintura de Robert Herdman “The Execution of
Mary, Queen of Scots” pertencente à Glasgow Art Gallery.
O conflito de opiniões entre José Lemos e D. Beatriz revela,
também, os diferentes modos de fruição gerados pelas obras
de artes. D. Beatriz preocupa-se com o aspecto descritivo das
obras em questão, suas aparências imediatas, sem compreender
o contexto em que as obras surgiram e de que tratam. Já José
Lemos tem maior conhecimento das obras colocadas à sala,
porém a exposição dos quadros indica mais uma tentativa de
afirmar uma condição social elevada (ou almejada), onde a
apreciação artística é algo valorizado como dote de cultura.
Ainda no conto “As bodas de Luís Duarte” notamos que
alguns personagens manifestam interesse pela arte de forma
dissimulada, apenas para apresentarem-se como pessoas
“finas” e de bom gosto, isto expressa estratégias que alguns
personagens empregam para melhor aceitação ou ascensão a
um grupo social aristocrático na obra. É o que podemos notar
na passagem a seguir onde Calisto Valadares revela a sua falsa
opinião sobre o quadro “A morte de Sardanapalo”:
Soltou um grande suspiro e começou a contemplar as
gravuras compradas na véspera.
— Que magnífico é isso! exclamou ele diante do
72 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
“Sardanapalo”, quadro que achava detestável.
— Foi papai quem escolheu, disse Rodrigo, e foi essa a
primeira palavra que pronunciou desde que entrou na
sala.
— Pois, senhor, tem bom gosto, continuou Calisto; não sei
se conhecem o assunto do quadro...
— O assunto é “Sardanapalo”, disse afoitamente
Rodrigo.
— Bem sei, retrucou Calisto, estimando que a conversa
pegasse; mas pergunto se...
Não pode acabar; soaram os primeiros compassos.
(ASSIS, 1971, p. 197: destaques nossos)
Em outro conto, “Habilidoso”, Machado de Assis apresenta a
personagem D. Inácia dos Anjos como uma pessoa de pouco
conhecimento sobre a arte:
E seja dito isto em honra dos seus sentimentos filiais,
porque a mãe, D. Inácia dos Anjos, tinha tão pouca
lição de arte, que não lhe consentiu nunca pôr na sala
uma gravura, cópia de Hamon, que ele comprara na
Rua da Carioca, por pouco mais de três mil-réis. A cena
representada era a de uma família grega, antiga, um rapaz
que volta com um pássaro apanhado, e uma criança que
esconde com a camisa a irmã mais velha, para dizer que
ela não está em casa. O rapaz, ainda imberbe, traz nuas
as suas belas pernas gregas.
— Não quero aqui estas francesas sem vergonha! bradou
D. Inácia; e o filho não teve remédio senão encafuar a
gravura no quartinho em que dormia, [...]. (ASSIS, 1971,
p. 1051-1052)
Por ter poucas lições de arte, D. Inácia não aprovava a
exposição do quadro em sua casa. O autor explora esta falta
de afinidade da personagem com as artes como uma marca
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 73
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
distintiva de sua condição social inferior. Cria-se mais uma
vez uma situação conflituosa – como metáfora das complexas
relações sociais no Brasil –, entre mãe e o filho João Maria – o
“habilidoso”; pois este, embora estivesse na mesma condição
social de D. Inácia, tinha na arte (criando pinturas, ainda que
de forma rudimentar) esperança de fama e consequentemente
de mudança de vida, pois ele acreditava ter um gênio de artista.
Pela descrição da pintura na citação anterior, trata-se muito
provavelmente de uma reprodução da tela “Ma souer n’y est
pas”, de 1853, comprada pela Imperatriz Eugênia, mulher de
Napoleão III, para a coleção imperial, que rendeu ao grego
Jean-Louis Hamon (1821-1874) um enorme sucesso popular.
Hamon cria em suas pinturas composições graciosas e
delicadas, explorando principalmente representações de cenas
infantis, características que podemos notar na pintura a seguir:
(Aurora, 1864, Jean-Louis Hamon)14
14
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Disponível em: <http://www.askart.com/AskART/artists/seRevista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
A presença das Belas-artes na obra machadiana revela um
“gosto” artístico comprometido com a aristocracia brasileira
do século XIX e com os meios intelectuais ligados a ela.
Embora o escritor mulato seja celebrado como um dos mais
importantes da literatura brasileira, as obras da maturidade do
autor, denominadas de “realismo machadiano”, não apresentam
as manifestações artísticas ligadas às classes populares e aos
negros. A arte é exaltada a partir de um cânon eurocêntrico –
que na maioria das vezes reflete a estagnação das classes sociais
brasileiras –, herança do colonialismo no Brasil. A apropriação
da arte torna-se mormente atributo de distinção de classe.
Mais uma vez em Quincas Borba, temos a referência a pintura
na obra machadiana. Nesta citação podemos tomar as obras de
arte como as últimas recordações de um passado próspero do
Major Siqueira e sua filha, agora em situação precária:
Certo, a casa dizia a pobreza da família, poucas cadeiras,
uma mesa redonda velha, um canapé gasto; nas paredes
duas litografias encaixilhadas e em pinho pintado de
preto, uma era um retrato do major em 1857, a outra
representava o “Veronês em Veneza”, comprado na Rua
do Senhor dos Passos. (ASSIS, 1971, p. 757)
O texto sugere que o “Veronês em Veneza” seja o título de um
quadro, o que levaria a supor que se trata de um auto-retrato
de Paolo Cagliari, conhecido como “Il Veronese” (1528-1588),
importante pintor italiano do período maneirista, que, nascido
em Verona, estabeleceu-se em Veneza por volta de 1552; mas
pode tratar-se também de um retrato de Veronese, pintado por
outro artista. Sua produção e vida artística desenvolveram-se
em Veneza onde incorpora ao estilo aprendido o Maneirismo,
com suas complexas perspectivas, as posturas forçadas dos
modelos, o ponto de vista particular e a marca individual do
artista, características que podemos notar em outra obra do
artista:
arch/Search_Repeat.aspx?searchtype=IMAGES&artist=9000982>. Acesso
em: 05 nov. 2008.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 75
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
(Alegoria sabedoria e força, 1580, Paolo Veronese)15
As referências artísticas estendem-se a outras obras como os
contos “Frei Simão”, “A mulher de preto”, “A chave”, “Um
erradio”, “Miss Dollar”, “A linha reta e a linha curta”, e em
livros como Memorial de Aires (com interessante referência à
música de Schumanns), alusão à escultura ainda em Quincas
Borba, e outros livros. Percorrer toda esta galeria machadiana
requer uma pesquisa mais e detalhada da obra de Machado de
Assis.
Notamos pelo modo que o autor explora estas referências
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Veronese_Allegory_of_Wisdom_and_Strength.jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008.
15
76 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
artísticas que elas eram conhecidas dos leitores de seu tempo
(embora entendemos este grupo de leitores como uma parcela
da sociedade). Machado de Assis articula uma seleção de
imagens em sintonia com seus contemporâneos. Hoje o nosso
distanciamento histórico dificulta o estabelecimento destas
relações, principalmente quando desconhecemos os quadros
referidos em sua prosa. A proposta deste trabalho é sinalizar
para a presença deste campo de referência dentro da obra do
autor, e em parte, diminuir esta distância entre literatura e arte
no universo de Machado de Assis, assim como sugere o conto
“Linha reta e linha curva”:
Viu a sombra de Dante nas ruas de Florença; viu as almas
dos doges pairando saudosas sobre as águas viúvas do
mar Adriático; a terra de Rafael, de Virgílio e Miguel
Ângelo foi para ele uma fonte de viva de recordações
do passado e de impressões para o futuro. (ASSIS, 1971,
p. 128)
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar,
1971, v. 1.
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar,
1971, v. 2.
JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2007.
ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Teoria da ficção:
indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: Ed. UERJ,
1999.
UPJOHN, Everard M.; WINGERT, Paul S.; MAHLER, Jane
Gaston. História mundial da arte III: O Renascimento. Trad.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 77
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Maria Teresa Tendeiro e Rui Mário Gonçalves. São Paulo:
DIFEL, 1975.
UPJOHN, Everard M.; WINGERT, Paul S.; MAHLER,
Jane Gaston. História mundial da arte IV: do Barroco ao
Romantismo. Trad. Maria Teresa Tendeiro e Rui Mário
Gonçalves. São Paulo: DIFEL, 1975.
SITE: http://pt.wikipedia.org
Recebido em 17/07/2008
Aprovado em 19/08/2008
78 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
LOUCURA E PAIXÃO EM
MACHADO DE ASSIS
Ruy Perini
Ufes
A loucura, muitas vezes, não é outra coisa do
que a razão apresentada de forma diferente.
(Goethe)
Resumo: O artigo traça um perfil da virada que Machado de
Assis promove no estilo e no conteúdo da sua obra a partir
da publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas e de “O
alienista” no início da década de 1880. Aborda os temas da
loucura e da paixão na obra ficcional, nas crônicas e no teatro
do autor, mostrando como esta mudança na obra machadiana
pode ser inserida numa linhagem de autores identificados com
a chamada sátira menipéia.
Palavras-chave: Machado de Assis. Loucura. Paixão.
Abstract: The article draws a profile of the turnover that
Machado de Assis promotes in the style and content of his
work from the publication of “Memórias Póstumas de Brás
Cubas” and “O Alienista” in the early 1880s. It brings up the
theme of madness and passion in the author’s work, including
fiction, chronics and the theatrical work. It shows how this
change in the Machadian work can be inserted in a line of
author identified with the known “Menipeia” satire (from the
philosopher Menipo de Gadara).
Keywords: Machado de Assis. Madness. Passion.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 79
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
LOUCURA E PAIXÃO
Loucura e paixão, duas coisas perigosas; só que
a loucura não mata, mas a paixão pode matar.
(Clarinda Ferrari)
O tema central da minha apresentação é o tema do meu livro
“Não há remédio certo” – Loucura e paixão na obra de Machado
de Assis, que, por sua vez, é um desenvolvimento da minha
dissertação de mestrado onde abordei o tema da loucura em
Machado. Como a paixão tem tudo a ver com a loucura –
paixão e patologia têm a mesma etimologia – resolvi trazer
esta característica tão presente nos personagens machadianos
para o meu livro que pretende sair do âmbito acadêmico das
dissertações, para atingir um público maior e mais diversificado.
O ponto de partida, obviamente, foi o conto “O alienista”, mas
como são assuntos sempre recorrentes na obra de Machado,
estendi-me por outros contos, romances, crônicas e peças do
“bruxo”.
A frase em epígrafe, dita espontaneamente e em tom de
reflexão ao observar a capa do meu livro, é de uma senhora
divertida, bem humorada e muito sábia, embora com pouca
instrução formal. Machado, provavelmente, babaria com a
frase e ficaria encantado com a autora.
O estudo da obra de Machado não deixa dúvida, embora
haja algumas opiniões discordantes, sobre as duas fases bem
distintas, quais sejam, antes e depois da publicação de Memórias
póstumas de Brás Cubas, no início da década de 1880. Não por
simples coincidência a publicação de “O alienista” é do mesmo
período. Vários fatores costumam ser considerados para a
mudança de rumo na obra de Machado, como o sério problema
de saúde que quase o levou à cegueira, ou pelo menos o que
era o seu temor na época. Não podemos deixar de aventar
para esta ameaça a hipótese de uma cegueira simbólica, o que
representaria uma tomada de consciência do autor quanto
à necessidade de rever o seu estilo. O fato é que o que há a
considerar mesmo é o desprendimento da forma acadêmica
80 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
com que, até então, buscava a aceitação pública, dentro de uma
estética romântica, embora com uma proposta realista. Na
verdade, todas estas classificações em escolas sempre foram
rejeitadas pelo autor. Machado não comungava com a forma
romântica de urdir os ambientes e personagens da sua ficção,
mas também rejeitava com veemência o Real-naturalismo,
que engessava a fantasia, criando romances “científicos”,
comprometidos com a realidade, mas, por isso mesmo, pouco
comprometidos com a realidade psíquica. Numa crítica ao
Primo Basílio, de Eça de Queiroz, foi contundente:
Não peço, decerto, os estafados retratos do Romantismo
decadente; pelo contrário, alguma coisa há no Realismo
que pode ser colhido em proveito da imaginação e da
arte. Mas sair de um excesso para cair em outro, não
é regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. [...]
Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o
Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética.
(Assis, 1994a:912)
Esse desprendimento formal e estrutural é atribuído por
Enylton de Sá Rego em O calundu e a panacéia: Machado de
Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica, principalmente
à influência das leituras de Luciano de Samósata, de quem
Machado tinha a obra completa numa edição francesa de
1874. Essa “tradição luciânica” teria origem em uma linhagem
iniciada em Menipo de Gadara, passando por Varrão, Sêneca,
Luciano, Erasmo de Roterdam, Robert Burton e Laurence
Sterne. Logicamente vários autores poderiam ser incluídos
nessa linhagem, considerando a vasta galeria citada por
Machado. Para se ter uma idéia da modificação no estilo
machadiano, basta lembrar que a forma tão elegantemente
formal encontrada nos seus quatro primeiros romances dá
lugar àquela chamada sátira menipéia em Memórias Póstumas
de Brás Cubas e Quincas Borba. Os três últimos romances –
Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires – abandonam o
tom explicitamente satírico, mas mantém a ironia sutil – e meio
sardônica – que dá o tom da prosa machadiana a partir dessas
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• 81
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
mudanças, longe do formalismo dos primeiros romances,
antes de 1880.
Dante Alighieri, autor muito citado por Machado, inspirou-se
na Descida de Menipo ao Inferno de Luciano para escrever a sua
Comédia. Dante registrou a comédia para distinguir da tragédia
que tem um “princípio ‘admirável e calmo’ e um desenlace
‘fétido e cruel’, como corresponde à etimologia ‘canto do
bode’ e segundo se vê nas tragédias de Sêneca. Por outro lado,
a comédia principia ‘áspera’ e termina feliz -, veja-se Terêncio”
(Curtius, 1996: 441).
Menipo representa a maior influência na tradição satírica da
literatura helênica, sendo apresentado por Capistrano de Abreu
como o gato de Alice no país das maravilhas, que “desapareceu
deixando apenas um sorriso” (apud Rego, 1989:31). Para
ilustrar melhor a influência dessa linhagem em Machado, cito
a seguinte passagem de Memórias póstumas: “[...] Suetônio deunos um Cláudio que era um simplório, – ou ‘uma abóbora’,
como lhe chamou Sêneca, e um Tito que mereceu ser as delícias
de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de
demonstrar que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiro
delicioso, foi o ‘abóbora’ de Sêneca” (Assis, 1994b: 516). A
sátira de Sêneca a que se refere Machado é marginal na obra do
escritor, composta em geral de textos mais “sérios”, e trata da
deificação do Imperador Cláudio, decretada pelo Senado, após
a sua morte. O título – Apokolokyntosis – formado de apotheosis
(deificação) e kolokinte (abóbora) dá uma idéia da ironia do
autor ao tratar de leis estapafúrdias. Sêneca transforma Cláudio
em abóbora, mas a deformação é tamanha que a sua suposta
chegada ao céu causa enorme reboliço na tentativa de se
identificar o que seria o novo “morador”. Hércules, chamado
a ajudar, espanta-se e pensa: “Não acabei: eis o meu décimo
terceiro trabalho!” (Sêneca, 1988: 253).
A técnica de observar o mundo do alto, com um olhar
distanciado – kataskopos –, faz parte desta tradição grega
luciânica, seguida por Machado, gerando duas formas de se
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
reagir conforme retomado por Montaigne nos Ensaios:
Demócrito e Heráclito foram dois filósofos, dos quais
o primeiro, com uma face zombeteira e sorridente:
Heráclito, tendo piedade e compaixão desta mesma
condição nossa, levava sempre uma face continuamente
entristecida, e os olhos marejados de lágrimas.
Gosto mais do primeiro humor [...]. (apud Rego, 1989:
127)
UM ANTIPSIQUIATRA AVANT-LA LETTRE
A primeira leitura de “O alienista” deixa clara a posição de
crítica à medicina psiquiátrica da época. Como outros campos
científicos, a medicina, embora ainda praticada de forma muito
empírica, estava imbuída em achar os fundamentos científicos
para a sua prática. No conto o Dr. Simão Bacamarte torna-se
risível pelo rigor científico e não pela inépcia com que lida com
a loucura. Os erros cometidos ao diagnosticar e trancafiar toda
a população no seu hospício estão na falta de maleabilidade
em enxergar a relatividade da condição humana, dessa loucura
como uma infinidade de estados do ser, como queriam os
surrealistas.
Porém, uma leitura mais atenta do conto mostra que a crítica
é muito mais abrangente implicando toda a estrutura social
que serve de cenário para a ficção machadiana. O positivismo
inspirador do golpe militar que instalou a república brasileira
também primava pelo cientificismo. O lema “Ordem e
Progresso” não admite o status que foge aos princípios
dos meios de produção e boa conduta, deixando assim na
marginalidade os loucos e os que “sofrem” de alguma forma
de paixão, por serem desviantes dessa ordem.
A importância da linguagem no processo cultural pode ser
detectada na literatura de Machado. No conto “O anel de
Polícrates”, que relata as peripécias do eufórico e verborrágico
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Xavier, podemos encontrar, sem nenhuma pretensão de
teorização lingüística, um exemplo da função da linguagem,
mostrando e encobrindo a realidade interna do sujeito. Numa
sacada genial, digna da melhor literatura psicanalítica, mostra o
valor terapêutico da palavra, “diagnosticando” e esclarecendo
a “terapêutica” para o caso: “Se não tivesse o verbo fluente,
morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo”
(Assis, 1994c:330).
O homem civil vive um mundo de representações, muito
diferente do mundo instintivo do homem natural, ou que espécie
de hominídeo teria representado o elo entre o estado selvagem
e o estado civil. A impressão é que a espécie humana atual surge
já neste estado de civilidade, ou seja, o homem falante, o que
tornou viável a sua sobrevivência, mas também o condenou à
condição de presa de convenções e transgressões recíprocas.
O artista tem a função de “antena da raça”, segundo a expressão
de Ezra Pound, ou a função de não deixar o homem morrer
da verdade, segundo Nietzsche. Machado em crônica de 19 de
novembro de 1893 disse: “Quando a gente não pode imitar
os grandes homens, imite ao menos as grandes ficções”. No
capítulo LXXXVII de Memórias póstumas de Brás Cubas,
denominado “Geologia”, o protagonista compara a dignidade e
a probidade humanas a uma camada de rocha, sob “as camadas
de cima, terra solta e areia”. Cita um encontro com o amigo, Jacó
Tavares, que era “a probidade em pessoa”, mas que para tentar
evitar uma visita desagradável mente quatro vezes. Quando Brás
Cubas observa isso ao amigo, este “desculpou-se dizendo que
a veracidade absoluta era incompatível com um estado social
adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa
de embaçadelas recíprocas [...]” (Assis, 1994b: 595-6). O que
quero demonstrar é que estes e outros conceitos valorizados
pela antipsiquiatria – movimento surgido na Europa em fins da
década de 1960 e logo a seguir no Brasil – estão presentes em
Machado de Assis quase um século antes. Machado subverte
a certeza das ciências humanas que costumam ser cegas aos
fatores não perceptíveis à visão objetiva cartesiana. Isso
84 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
mostra como a literatura antecipa formulações teóricas de
várias disciplinas, entre elas a psiquiatria.
A LOUCURA NO TEATRO DE MACHADO DE ASSIS
A passagem de Machado de Assis pelo teatro deu-se de
múltiplas formas. Como espectador, crítico e estudioso de
textos teatrais, trouxe muita influência para os seus escritos.
Como censor teve o seu envolvimento mais polêmico com o
teatro. Chegou a criticar a atuação do Conservatório Dramático
Brasileiro por este condenar textos ofensivos ao governo e
apenas aconselhar o autor que pecasse “contra a castidade
da língua e aquela parte relativa à ortoepia”. Depois chegou
a exercer a função de censor no Conservatório, por defender
uma seleção de textos fundamentada no “mérito puramente
literário, no pensamento criador, na construção cênica, no
desenho dos caracteres, na disposição das figuras, no jogo da
língua” (Pontes, 1968:7).
Como autor de peças teatrais não emplacou uma produção
significativa, pois os seus textos eram muito eruditos para o
gosto do público que freqüentava o teatro. A linguagem teatral,
mesmo para um público mais culto, exige uma comunicação
mais rápida, em linguagem mais coloquial para ter uma boa
aceitação, o que não se dava com os textos de Machado. Pelo
menos essa é a visão do crítico e amigo do autor, Quintino
Bocaiúva.
Com referência ao nosso tema, quero citar a peça “Não
consulte médico”. O título é baseado num suposto provérbio
grego: “Não consultes médico, consulte alguém que tenha
estado doente”. O que chama a atenção na peça estudada é
a abordagem pretensamente técnica, colocando em xeque
preceitos terapêuticos da medicina, que muitas vezes é cega
aos vários fatores predisponentes do adoecer, principalmente
quando se trata do adoecer psíquico, ou “doenças morais”
como são chamadas no texto, seguindo uma tendência da
época. O termo remete ao “tratamento moral” de Philippe
Pinel. Dona Leocádia intitula-se “médico” e tem a mania de
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
curar “doenças morais” entre os familiares e amigos. À filha
Adelaide, por exemplo, proíbe tomar os remédios prescritos
pelo verdadeiro médico: “o médico receitava-lhe pílulas,
cápsulas, uma porção de tolices que ela não tomava, porque
eu não deixava; o médico devia ser eu”. Ao que Adelaide anui:
“Foi uma felicidade. Que é que se ganha em engolir pílulas?
[...]. Apanham-se moléstias, responde D. Leocádia” (Assis,
1994d: 1158). Cavalcante, deprimido pelo fim do noivado, é o
novo “paciente” de Dona Leocádia. Seduzido pela perspicácia
do “médico”, solta a frase: “Seu marido era, talvez, um erudito.
Minha senhora, não se aprende amor nos livros velhos, mas
nos olhos bonitos; por isso, estou certo de que ele adorava a V.
Excia” (Id.:1164). Mas o “médico” está atento. Parece conhecer
por experiência a transferência de antigos sentimentos do
paciente e que são atualizados e direcionados ao médico. A
transferência é necessária para o vínculo terapêutico, mas
serve também de resistência para a continuidade do mesmo.
Dona Leocádia é rápida e eficaz: “Ah! Ah! Já o doente começa
a adular o médico. Não, senhor, há de ir à China. Lá há
mais livros velhos que olhos bonitos. Ou não tem confiança
em mim?” (Ib.). Confiança, Suposto Saber, Abstinência – o
manejo da transferência em Freud provavelmente não seria
muito diferente.
A PAIXÃO E O CIÚME DE BENTINHO
Na garimpagem por novas revelações na obra de Machado,
gostaria de trazer uma questão relativa ao ciúme de Bentinho,
que, julgo, poderá enriquecer a fortuna crítica do autor. Freud
propõe três causas para o sentimento de ciúme experimentado
pelo homem:
1º - o ciúme normal: é o sentimento de pesar e ferida narcísica
pela perda do objeto amado e a autocrítica que procura
responsabilizar o próprio ego pela perda. Freud não situa este
sentimento de perda “normal” como elaboração puramente
consciente, mas enraizado no inconsciente, por ser uma
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CONTEXTO
continuação das primeiras manifestações da vida emocional da
criança e originar-se do complexo de Édipo.
2º - o ciúme projetado: deriva-se da própria infidelidade, seja
concreta da vida real ou de impulsos nesse sentido que são
reprimidos pela convenção do matrimônio.
3º - o ciúme delirante: este também tem origem em impulsos
reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nesses
casos, é do mesmo sexo do sujeito. No caso do homem a
fórmula defensiva seria: Não sou eu que o amo; é ela que o
ama.
Não é novidade questionar-se uma possível homossexualidade
entre Bentinho e Ezequiel Escobar. Não insinuo uma atração
homoerótica em nível de homossexualismo, mesmo que
latente, mas não parece haver dúvida de que o amigo é o
principal objeto de interesse por parte do narrador. A hipótese
que sugiro é da existência de uma demanda por insígnias
mais potentes – e mais patentes – do que as que portava o
protagonista. A sua posição frente ao amigo é sempre mais
passiva. Já no seminário, o encanto de Bentinho pelo amigo
três anos mais velho é explícito. Mais do que uma amizade,
há uma grande admiração, e um abraço afetuoso, durante um
recreio no pátio do seminário, gerou uma crítica dos colegas,
uma reprimenda dos padres e o início de uma cumplicidade
amorosa dos dois amigos. Compara a alma humana com uma
casa que pode ser aberta com janelas para todos os lados, ou
fechada e escura. Confessa que a sua é do primeiro tipo, “com
as portas sem chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e
Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou”
(Assis, 1994e:868). Grande parte do romance dedica-se à fase
da adolescência dos dois protagonistas. É aí que irrompem a
sexualidade e os conflitos resultantes da formação do caráter
dos mesmos. Na velhice, Bentinho faz reconstruir a casa da
sua adolescência, decisão cujo “fim evidente era atar as duas
pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. [...] não
consegui recompor o que foi nem o que fui. [...] Se só me
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos
das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é
tudo” (Id:810).
Ao querer driblar o tempo atando as duas pontas da vida parece
querer desvendar as dúvidas que o angustiam. Com esta tarefa
Bentinho parece repetir Sísifo – o esperto herói grego que
por enganar Tânatos, adiando a própria morte, é condenado a
arrastar uma grande pedra montanha acima, tarefa que nunca
finda, pois ao chegar no topo a pedra sempre rola montanha
abaixo. A eterna dúvida e o conflito entre o ciúme da mulher e
a atração que sente pelo rival, com quem se identifica, seriam
a sua penitência.
Frente ao possível triângulo amoroso Bento supõe ser objeto
de sedução por parte de Sancha, mulher de Escobar. Na
ocasião o amigo comunica que vai nadar no mar em ressaca
(como os olhos de Capitu), vangloriando-se de ter braços
fortes, convidando-o a apalpá-los. Bentinho os apalpa “como
se fossem os de Sancha, mesmo que lhe custe esta confissão”
(Id:924). Teríamos assim, um outro triângulo entre ele, Escobar
e a mulher, triângulo mais edipiano, pois chegou-se a cogitar o
casamento da mãe de Bento, viúva, com Escobar, o que reforça
a função paterna deste. Assim, a homossexualidade prendese ao desejo de um modelo masculino identificatório mais
potente do que o que tinha em casa. Capitu – o nome já sugere
a condição de “cabeça do casal” – é forte e decidida, enquanto
Bento sujeita-se à vontade da mãe que o quer no seminário
para ser padre. O pai morreu quando ele ainda era muito novo.
As outras pessoas da casa são tia Justina – outra ironia, pois a
sua única “justiça” é espicaçar todos com fofocas –, o tio Cosme,
que, viúvo, vai morar com a irmã e “[...] formado para as serenas
funções do capitalismo, [...] os anos levaram-lhe o mais do ardor
político e sexual” (Id:815-6), e o agregado José Dias, assexuado
e sem qualquer expressão masculina que aceita qualquer papel
em troca de casa e comida. Bento chega a reconhecer, após o
primeiro beijo forçado por Capitu, que é homem e os homens
não são padres, mas acaba cedendo e indo para o seminário, de
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CONTEXTO
onde só consegue sair com a intervenção do amigo.
Na primeira visita de Escobar à família de Bentinho, ao se
despedirem há o seguinte relato de Bentinho: “Separamo-nos
com muito afeto: ele de dentro do ônibus, ainda me disse adeus,
com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda
olharia para trás, mas não olhou” (Id:883). Segue uma cena de
ciúme de Capitu que assistira, escondida, à cena de despedida:
“Que amigo é esse tamanho?” (Ib.), pergunta. Fica notória a
dependência ao amigo criada por Bentinho a partir dessa visita.
Quando ele anuncia a visita, diz: “Nunca me visitara até ali, nem
as nossas relações estavam já tão estreitas” (Id:882). Na descrição
do protagonista, Escobar era muito polido, mas encanta a todos
com a sua maneira educada, mas expansiva.
O ciúme projetivo e delirante de Bentinho teria, então, a
seguinte fórmula: “Eu não o amo, é ela, minha mulher que
o ama”. É principalmente a partir da morte de Escobar que
Bento desencadeia a corrente de ciúme que o leva afinal a
rejeitar a mulher e o filho Ezequiel e exilá-los na Suíça.
É possível fazer um cotejamento entre a atitude vacilante
de Bentinho com a de Hamlet. Ambos, talvez movidos por
fortes sentimentos éticos, não podem levar a termo a vingança,
sempre adiando o ato final. Porém, além da ética, o que está em
jogo é muito mais a própria condição do desejo humano, que é
sempre o desejo de outro desejo. Mesmo quando se deseja um
objeto, deseja-se na medida em que esse constitui o objeto do
desejo de outros homens. Tanto Hamlet como Bentinho, após
muitas vacilações, conseguem afinal vingarem-se, mas de uma
forma canhestra, causando estragos à sua volta e a si mesmos.
Ambos querem e podem vingar-se, o que não conseguem é
formular o próprio desejo; não podem querer o que seria o
reconhecimento do próprio desejo inconfesso. Dentro de uma
leitura psicanalítica, pela via do complexo de Édipo, Hamlet
tem convicção da sua obrigação de vingar o pai, mas não pode
matar o tio, usurpador do trono e assassino do pai, pois com
ele se identifica ao compartilhar o próprio desejo, que só o
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
tio consegue realizar. Bentinho, também impotente, não pode
explicitar a sua dúvida e resolver a pendência com a mulher.
Para Lacan, Hamlet compara o seu pai a Hiperion, aquele que
os deuses marcaram com todos os seus selos. Bentinho elege
Escobar também para este lugar de potência (para interferir
junto à mãe e livrá-lo da promessa de se tornar padre e para
seduzir a sua mulher e lhe fazer um filho, mesmo que este fato
seja apenas na imaginação do protagonista). O amigo é muito
mais do que um possível amante da mulher e pai do seu filho;
representa toda a sua vontade de potência. Morto o amigo,
Bentinho fica impotente, decidindo-se então pelo suicídio.
Chega a pôr veneno no café, mas, mais uma vez, protela a
ação. Espera que Capitu e o filho saiam de casa, depois resolve
tomar o café logo e está prestes a ingeri-lo quando o filho entra
no seu escritório. A interrupção o faz desistir e ele resolve dar
o café ao filho, mas desiste na hora de colocar a bebida na boca
do menino. Fala então para o filho que não é seu pai. Capitu
não ouve o diálogo, mas percebe a tensão e obriga Bentinho
a revelar o que se passara, ficando estupefata e indignada
com a revelação. Bentinho, com a atitude da mulher, chega a
duvidar da infidelidade, mas não pode voltar atrás e decide pela
separação, que é disfarçada na viagem de Capitu e Ezequiel
para a Suíça.
OS SONHOS EM MACHADO DE ASSIS – O CRONISTA
GALHOFEIRO
Um tema muito caro a Machado é o sonho versus a realidade.
Fácil entender esta tendência num autor que privilegiava a
realidade psíquica no lugar da realidade natural e científica.
É digna de nota a percepção do sonho como formação
inconsciente e realização de desejo, no melhor estilo freudiano.
E essa complexidade do pensamento de Machado aparece
muito frequentemente nas crônicas, onde nunca se sabe com
certeza o que tem de real e de ficção. É nessa literatura que
ele exerce com toda a força a sua ironia e sarcasmo, um estilo
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CONTEXTO
semelhante com o de Millôr Fernandes, um século depois. Cito
um exemplo de sonho como realização de desejo na crônica de
16 de julho de 1893:
Deixem-me sonhar, se é sonho. A realidade é o luto do
mundo, o sonho é a gala. Desde que a pena me trouxe
até aqui, sinto-me rei e grande rei. Já uma vez fui santo e
fiz milagres. Já fui dragão, íbis, tamanduá. Mas de todas
as cousas que tenho sido, em sonhos, a que maior prazer
me deu, foi panarício. Questão de amores. Eu suspirava
por uma moça, que fugia aos meus suspiros. Uma noite,
como lhe apertasse os dedos, interrogativamente, ela
puxou a mão e deitou-me um olhar de desprezo, que
me tonteou. Vaguei até tarde, jurei matá-la, recolhi-me,
e fui dormir. Dormindo, sonhei que, sob a forma de
panarício, nascia e crescia no dedo da moça. O gosto
que tive, não se descreve, nem se imagina. É preciso ter
sido ou ser panarício, para entender esse gozo único
de doer em uma carne odiosa. Ela gemia, mordia os
beiços, chorava, perdia o sono. E eu doía-lhe cada vez
mais. Doendo, falava; dizia-lhe que o meu gesto de afeto
não merecia o seu desprezo, e que era em vingança do
que me fez, que eu lhe dava agora aquela imensa dor.
Ela prometia a Nossa Senhora, sua madrinha, um dedo
de cera, se a dor acabasse; mas eu ria-me e ia doendo.
Nunca senti regalo semelhante ao meu despeito de
tumor (Assis, 1937a:327-8, grifos meus).
Na última crônica assinada por Machado, em 11 de novembro
de 1900, ele começa: “Eu gosto de catar o mínimo e o
escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a
curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto” (Assis,
1937b:435). O seguinte trecho deixa claro o estilo do autor:
Deixei taxas e mortes e fui à casa de um leiloeiro,
que ia vender objetos empenhados e não resgatados.
Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no
prego. Não é lá muito engraçado, mas é natural, exato
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
e evangélico. Está autorizado por Jesus Cristo: ‘Tu es
Petrus etc’. Mal comparando, o meu ainda é melhor. O
da Escritura está um pouco forçado, a passo que o meu
– o martelo batendo no prego – é tão natural que nem
se concebe dizer de outro modo. Portanto, edificarei
a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo
(Id:436).
Na crônica de 15 de janeiro de 1877, no limiar da época em
que Machado faria a grande virada no seu estilo, há o seguinte
trecho: “Eu e todo este povo andávamos tristes, sem motivo
nem consciência; andávamos sorumbáticos, caquéticos,
raquíticos, misantrópicos e calundúticos”(Assis, 1937c:169).
Na mesma crônica o autor, comparando várias especialidades
farmacêuticas, sugere que Rocambole, o divertido herói de
Ponson du Terrail, seria o melhor remédio para restaurar o
bom humor. Traça uma linha que liga os heróis Aquiles, Enéas,
Dom Quixote e Rocambole para mostrar o charlatanismo em
de um tal Vindimilla que criou uma panacéia digestiva capaz
de digerir qualquer alimento independentemente do estado em
que se encontrasse o estômago do usuário. Sugere então que o
avançar da ciência trará um “vinho reflexivo”, que nos dará um
meio de pensar sem cérebro.
Da mesma forma, em “O alienista” o humor, meio irônico
meio escrachado, dá-se não pela inépcia, mas pelo rigor
acadêmico do doutor Simão Bacamarte. Embora a data do
enredo deste conto não esteja bem estabelecida e pode sugerir
a época colonial, os dados são contemporâneos de Machado,
época em que os ideais das ciências médicas destinadas ao
tratamento das doenças mentais limitavam-se à internação
com o fim de classificar as “doenças” à procura de uma
terapêutica. Entretanto, tais práticas propiciavam a segregação
dos loucos e inspirou o higienismo, fonte de tendências mais
nocivas como o modelo da psiquiatria alemã que pregava a
esterilização e mesmo a eliminação de todo sujeito desviante
dos padrões dos modelos produtivos essenciais para a ordem
e o progresso da sociedade. A medicina, em sua essência,
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CONTEXTO
identifica-se com os ideais progressistas da ciência e da
democracia, possibilitando ao grande público o acesso aos
seus benefícios conquistados. Entretanto, nem sempre
estes ideais são cumpridos e Machado denuncia sempre
com precisão estes desvios, usando o sarcasmo cruel da sua
pena. Não condena o curandeirismo, embora lhe condene os
excessos, e propõe ironicamente os recursos médicos para
solucionar vários problemas, como a falta de uma escola
dramática na capital do império, brincando com a etimologia
da palavra medicina:
A etimologia de medicina é, como acontece com outras
palavras, uma lenda. Conta-se que no tempo do rei
Numa, o corpo médico era composto unicamente de
coveiros, regidos por um coveiro-mor, chamado Cina.
Adoecia um romano iam os coveiros à casa do doente
medir-lhe o corpo para abrir a sepultura.
— Mediste, Caio? Perguntava o chefe.
— Medi, Cina. Respondia o coveiro oficial. (Assis,
1937c:44)
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Crítica. In: Obra completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994a. v. 3.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In:
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994b. v. 1.
ASSIS, Machado de. O anel de Polícrates. In: Obra completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994c. v. 2.
ASSIS, Machado de. Não consultes médico. In: Obra completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994d. v. 2.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: Obra completa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994e. v. 1.
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
ASSIS, Machado de. A semana. In: Obras completas de Machado
de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937a. v. 24.
ASSIS, Machado de. A semana. In: Obras completas de Machado
de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937b. v. 26.
ASSIS, Machado de. Crônicas. In: Obras completas de Machado
de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937c. v. 22.
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e idade média
latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo:
Hucitec/EDUSP, 1996.
PONTES, Joel. Apresentação, comentários e bibliografia.
In: ASSIS, Machado de. Teatro. Rio de janeiro: Agir, 1968.
[Coleção Nossos clássicos].
REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panacéia: Machado de
Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.
SÊNECA, Lúcio Aneu. Apocoloquintose do divino Cláudio.
Tradução e notas de Giulio Davide Leoni. São Paulo: Nova
Cultural, 1988. [Coleção “Os pensadores”].
Recebido em 19/06/2008
Aprovado em 17/07/2008
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CONTEXTO
“A CARTOMANTE” NO PLANO DO
JOGO INDICIÁRIO
Jorge Evandro Lemos Ribeiro
Ufes
Resumo: Este trabalho se dedicará a analisar o conto “A
cartomante” de Machado de Assis a partir da tradução de
sinais segundo Carlo Ginzburg. Por isso, antes de chegarmos
ao objeto principal, vamos discorrer ainda sobre dois textos
literários que nos servirão como base ilustrativa ao falarmos
do leitor indiciário. Um deles trata-se de uma narrativa judaica
cujo personagem principal é um hassid, o outro é a respeito do
personagem Zadig criado por Voltaire.
Palavras-chave: Leitor. Indício. Jogo.
Abstract: This work is an analysis of the short story “A
cartomante” (The Fortuneteller) by Machado de Assis, from
the translation of sign language according to Carlo Ginzburg.
Thus, before we get to the main object, we analyze two
literary texts which work as an illustration when we talk about
the reader. One of them is a Jewish narrative whose main
character is a hassid; the other is about Zaig, a character created
by Voltaire.
Keywords: Reader. Index. Game.
A partir da tríade Morelli-Freud-Conan Doyle, Carlo Ginzburg
discute, em seu texto “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”,
como uma vertente da ciência traça seu caminho baseado no
paradigma indiciário. O autor vai dizer que o homem por
milênios foi um caçador que desenvolveu a capacidade de
“reconstituir as formas e movimentos das presas invisíveis
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco,
tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados”
(GINZBURG, 1999, p. 151). Assim, o homem aprendeu com
o tempo a perceber em pistas infinitesimais os motivos para
novas interpretações, bases para classificações, fundamentos
para registros que contribuíram no decorrer dos anos para o
enriquecimento do patrimônio cognoscitivo da humanidade. A
psicanálise de Freud, por exemplo, se apóia nos sinais, ou mais
apropriadamente, em sintomas demonstrados por alguém,
para assim tirar conclusões a respeito até do inconsciente
deste indivíduo. Não obstante, como Carlo Ginzburg trata até
certo ponto não só da ciência da psicanálise, mas de outras
também, como a medicina; em certo momento ele diz que irá
desarticular o paradigma indiciário até então tratado em seu
sentido lato. É quando o autor vai dizer que “uma coisa é
analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas), catarros,
córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro; outra
é analisar escritas, pinturas ou discursos” (GINZBURG, 1999,
p. 171). Distinguindo assim a natureza da cultura, que é mais
mutável e superficial, é possível, então, por meio da análise dos
“traços mínimos e involuntários”, se aperceber da noção de
indivíduo. Mas, para perceber esses traços, faz-se necessário o
que Ginzburg chamará de baixa intuição. Trata-se de intuição
na medida em que, segundo ele, “ninguém aprende o ofício de
conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática
regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em
jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro,
golpe de vista, intuição” (GINZBURG, 1999, p. 179). Esta
baixa intuição não é aquela intuição supra-sensível, como disse
Ginzburg, mas a que “está arraigada nos sentidos (mesmo
superando-os)” (GINZBURG, op. cit.) e é por isso mesmo
privilégio de poucos.
Antes mesmo de chegar ao conto “A Cartomante”, objeto
principal de nosso estudo, gostaria de passar brevemente por
dois contos ainda. O primeiro trata-se de uma narrativa judaica
cuja história se desenvolve em uma aldeia polonesa de nome
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CONTEXTO
Shebreschin. Lá vivia com a mulher um hassid que se sustentava
a partir do leite de cabra que ele vendia na cidade. Um dia a
sua mulher não encontrou as cabras. Ela se desesperou. Mas o
marido, brando, dizia que tudo viria do Alto. No final da tarde
as cabras regressaram e então se tornou rotina: os animais
sumiam durante o dia e retornavam ao entardecer. O mais
curioso, no entanto, não era isso, mas o fato de o leite delas
agora ser abençoado porque curava as doenças de quem o
bebia. O hassid, no sétimo dia, decidiu então ir atrás das cabras.
No meio da floresta, elas entraram em uma caverna. Hassid
seguiu-as. Ele podia ver ao longe um facho de luz. E o hassid
correu atrás delas. Entre diabos, pedras caindo e mulheres
nuas, hassid continua seu trajeto guiado pela fé.
O hassid havia encontrado o paraíso. Depois de ele ter beijado
muito o chão, o hassid decide enviar uma carta para os judeus
de Schebresquin escrita em uma folha de figueira que uma
cabra levaria de volta. Mas a mulher não vê a carta, acha que o
marido havia sido assassinado por ladrões na floresta e resolve
depois de um tempo abater as cabras e vender a carne. Só
depois de abatê-las é que encontraram a carta. O rabino toma
conhecimento do caso, lê a carta, e então “o rabino decidiu
que os judeus de Shebreschin não deviam comer nem beber,
durante três dias; deveriam rezar. Provavelmente, por causa de
suas más ações, a carta não fora encontrada a tempo e eles
não poderiam chegar à Terra Santa.” (NOY, Dov (org.), 1966,
p. 15). Percebe-se claramente que a fé sustentou uma firme
posição do personagem hassid. A sua leitura de mundo é a que
se baseia na fé, portanto. Este teve a sua recompensa. Mas
agora preciso contar um pequeno trecho da história de Zadig,
um herói de Voltaire que será mais tarde comparado ao que foi
agora mencionado.
Dizia Zadig que “ninguém pode ser mais feliz do que um
filósofo que lê nesse grande livro colocado por Deus diante
dos nossos olhos” (VOLTAIRE, 1972, p. 14). Acrescenta ele
que esse homem capaz desta leitura seria “dono da verdade
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
que descobre; alimenta e eleva a alma; vive sossegado”, e
outras coisas a mais que, lógico, vindo de Voltaire, não poderia
passar de ironia, o que adiante constataremos. Zadig, certa vez,
passeando pelo bosque, chega para ele um eunuco e pergunta
desorientado e inquieto se não viu um cachorro por ali que
pertenceria à rainha. Primeiro o Zadig responde dizendo que
não é um cão, mas uma cadela, depois afirma ainda que a
cadela é caçadora, é pequena, e que deu cria não fazia muito
tempo e, além disso, se não bastasse o já dito, afirmou que a
cachorra mancava da pata dianteira esquerda e tinha orelhas
cumpridas. A conclusão aparentemente óbvia foi a mesma que
teve o eunuco: “Então você a viu?” – Perguntou ele. Zadig,
no entanto, responde que nunca em sua vida a tinha visto. Por
coincidência, havia também escapado do rei o melhor cavalo
de sua coleção e o monteiro-mor estava atrás dele quando vê
Zadig e o pergunta se não tinha visto o animal por ali. Zadig
descreve o cavalo em detalhes.
O monteiro-mor não teve dúvida de que o homem que passeava
pelo bosque sabia onde estava o cavalo. Mas a resposta de Zadig
foi negativa. Concluíram o eunuco e o monteiro-mor que Zadig
não só sabia onde estava o cavalo e a cadela como teria roubado
ambos. Levaram-no então para uma assembléia. Depois de
ser condenado ao exílio na Sibéria, encontraram o cavalo e
a cadela. Reformularam a sentença, com a condição de que
Zadig deveria agora pagar 400 onças por ter negado ver aquilo
que viu. Só depois de pagar a multa, teve o perspicaz herói a
chance de se defender na assembléia. Afirma ele que realmente
não viu os animais e esclarece como chegou a tais conclusões
a respeito do animal analisando os indícios, como a impressão
das pegadas das patas, tetas que arrastavam pela areia, e até
das orelhas cumpridas. Quanto ao cavalo, Zadig descobriu, por
exemplo, o seu tamanho a partir das folhas recém-caídas das
árvores. Enfim, todos pasmaram com tão eloqüente explicação
de como ele deduziu caracteres dos animais procurados. Mas
essa reação não livrou Zadig totalmente da pena. O rei até que
ordenou que lhe restituíssem as 400 onças, mas “retiveram
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CONTEXTO
somente 398 para as custas do processo, e os seus ajudantes
reclamaram gratificação” (VOLTAIRE, 1972, p. 17). O herói
de Voltaire conclui que é perigoso ser sábio. Prometeu a si
mesmo que não testemunharia mais. Entretanto, em outro dia,
um prisioneiro foge, ele não depõe, mas provam que Zadig
olhou pela janela de sua casa, logo teria visto o preso. Foi
multado por 500 onças de ouro.
Ao contrário de hassid, o protagonista do conto anterior, o
herói de Voltaire, ironicamente, é multado pela sua procura
da verdade. Zadig lê o mundo de uma maneira diferente se
comparado ao protagonista de Shebreschin. Ele, como um
herói típico do Iluminismo, percebe suas pistas com a dedução
do raciocínio. Distintamente do hassid que, como já vimos, lê os
sinais com os olhos da fé. Esses dois personagens nos servirão
como base para, agora sim, analisar o conto “A Cartomante”
de Machado de Assis. É importante que tenhamos em mente
este dois protótipos de leitores ao ler o conto, – o leitor hassid
e o leitor Zadig.
O conto de Machado de Assis em si já começa com um
desses leitores acima mencionados se manifestando. Há uma
antecipação de um episódio. É quando Rita fala para Camilo
sobre a cartomante que fica na Rua da Guarda Velha. Camilo
ria de Rita. Esta defendia, com outros termos, a mesma idéia
de Hamlet que dizia: “há mais cousas no céu e na terra do
que sonha a nossa filosofia”. Camilo, que pousava de cético,
ria com deboches. É mais importante notar, no entanto, que
a cartomante impressionou Rita ao se antecipar dizendo que
esta gostava de uma pessoa. Observe que essa informação é
generalizante. Tanto seria fácil deduzir o motivo pelo qual Rita
estaria ali, que o próprio Camilo repreende-a dizendo que é
imprudência aparecer nesses lugares na medida em que Vilela, o
marido, poderia tomar conhecimento disso, o que seria motivo
de levantar suspeitas da traição. O fato é que Rita foi consultarse e saiu de lá aliviada de suas dúvidas. Às vezes, o narrador
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
lança um discurso indireto livre, o que dá ao texto um certo
tom eloqüente e enganador, isto é, o leitor que não percebe
de que discurso se trata, se convence daquilo que na verdade
é ironia: “Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a
cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora
estava tranqüila e satisfeita“ [grifo nosso] (ASSIS, 2003, p. 38).
Observe também que a prova para veracidade do que disse a
cartomante é a satisfação da cliente. É obvio que essa lógica não
é exatamente a do narrador que quer com astúcia levar o leitor
para outros meandros da leitura, mas é o raciocínio conivente
da personagem, que carece de um anestésico para suas dúvidas
amorosas. Já Camilo, informa o narrador, já fora supersticioso
e perdeu as crendices do legado materno aos vinte anos. Com
o tempo, passou a negar tudo. Não sabia dizer por quê, mas
negava. Não obstante, sentia-se lisonjeado por ver Rita se
arriscando por ele. Em suma, percebe-se neste episódio um
jogo de conivências: todos saíram felizes com a cartomante,
inclusive ela mesma. Porém, a “leitora de cartas” – antes leitora
‘indiciária’ – é a responsável pela própria satisfação de garantir
seu sustento. Já os dois amantes, cuja satisfação está em um
capricho amoroso, não passam de passivos na própria alegria.
O narrador então retorna no tempo e diz como os três se
conheceram. Vilela e Camilo eram amigos de infância: “Eram
amigos deveras” – diz o narrador com ironia. Vilela tinha um
ar de maturidade, “enquanto Camilo era um ingênuo na vida
moral e prática” (ASSIS, 2003, p. 39). Acrescenta que Camilo
não tinha nem experiência, nem intuição. Isso se mostrará por
meio de fatos mais tarde no desenrolar do enredo. O tempo
proporcionou a Camilo e Rita intimidade, daí ela passa a ser
quase uma irmã, e o seria se não fosse mulher e bonita. Um dia
Camilo ganha de presente de aniversário uma “rica bengala” de
Vilela, “e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento
a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não
conseguia arrancar os olhos do bilhetinho” (ASSIS, 2003, p.
40). Como o próprio texto diz, o que seria comum, vulgar, se
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
tornou sublime. Observe que a expressão usada no texto, “ler
no coração”, já denota a presença marcante da subjetividade de
Camilo. O leitor, por sua vez, estrategicamente, não tem acesso
ao que estava escrito no bilhete, mas ele fica sabendo ao menos
que o bilhete fez Camilo se deleitar. Sem se ater muito aos
acontecimentos em si, mas sim às narrativas psicológicas dos
personagens, é típico do Bruxo do Cosme Velho fazer uso de
metáforas que organizam e conciliam os fatos e as confusões
dos sentimentos humanos. É o que acontece quando o
narrador comenta a respeito da tentativa de Camilo resistir
ao ataque de Rita que, “como uma serpente, foi-se acercando
dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e
pingou-lhe o veneno na boca” (ASSIS, 2003, p. 40).
Uma carta anônima chega a Camilo dizendo que o caso é do
conhecimento de todos. Não só a origem dessa carta é negada
ao leitor como também o modo como souberam da aventura de
Camilo e Rita. Fica para o leitor, portanto, a chance de especular
as razões mais vulgares. Além disso, é estratégico que o leitor
saiba até o ponto que sabe Camilo sobre as coisas, para, assim,
garantir o suspense por que passará Camilo e, por conseguinte,
também o leitor. O amante, por medo, evita ir à casa de Vilela.
Este percebe a ausência e cobra do amigo uma explicação.
Assim como o leitor em relação à procedência das cartas, Vilela
tem um indício que lhe sugere apenas uma introdução, mas
não fornece uma justificativa que lhe complemente o “texto”.
“Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de
rapaz”. Com essa resposta, o amante de Rita ironicamente dá
uma falsa pista para uma equivocada leitura, ao mesmo tempo
em que diz de certa maneira a verdadeira razão pela qual tem
rareado suas visitas. “Candura gerou astúcia”, diz o narrador.
Foi neste tempo que Rita recorre à cartomante para saber por
que motivo Camilo estaria tão ausente. Não tendo o texto num
todo, ela recorre a “leitora de cartas” para que lhe complete
sua leitura de modo que a alivie o incômodo da ânsia de fazer
sentido. Como não se vê capaz de ler com a mesma perspicácia
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
que Zadig, recorre à maneira de ler do hassid. Camilo não pára
de receber cartas. São mais umas três delas. Rita vê interesse
nas cartas. O ciúme lhe induz a arquitetar um pensamento: “a
virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só
o interesse é ativo e pródigo” (ASSIS, 2003, p. 41). Se ela tem
razão de fato ou não, o leitor nunca poderá ter certeza. Mas seja
quem for que estivesse escrevendo as cartas, o fato é que Vilela
agora parece também saber da traição. Ele começa a mostrarse sombrio e é de falar pouco. Neste momento, Rita e Camilo
reage cada qual segundo o seu temperamento: um com astúcia
e o outro com receio. Rita quer que Camilo volte a freqüentar
a sua casa para ver se não tira alguma confidência de Vilela;
já Camilo não acha prudente aparecer depois de tanto tempo
ausente. Enquanto a primeira quer ler o comportamento do
marido, o segundo não quer cometer algum deslize dando-lhe
mais um sinal da aleivosia.
A última carta agora é de Vilela. Um bilhete, na verdade. Dizia:
“Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Camilo
logo combinou as outras cartas com esta última. Fez delas um
só texto. A letra lhe parecia trêmula. Estando ela trêmula ou não,
este era um sinal resultante de sua aflição, aflição de Camilo. E
é partir dela ainda que ele constrói um texto que será, em boa
parte, o desfecho da história: “Imaginariamente, viu a ponta
da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela
indignado, pegando a pena e escrevendo o bilhete, certo de
que acudiria, e esperando-o para matá-lo” (ASSIS, 2003, p. 42).
E é o mesmo Camilo que supõe uma possível leitura de Vilela:
“A mesma suspensão de suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto” (ASSIS,
2003, p. 42). No caminho para casa de Vilela, Camilo “não
relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos
olhos, fixas”. Enquanto o personagem lê imaginariamente o
bilhete, o leitor lê a aflição do personagem apoiado no ombro
do narrador.
A caminho da casa de Vilela, o tílburi teve que parar por conta
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
de uma carroça que estava ali atravancada. Com o tempo,
Camilo repara que estava do lado da casa da cartomante. Neste
instante, o cético rapaz sente-se tentado por antigas crendices
que deixou para traz há muito tempo. Passava por sua cabeça
a idéia de ir ter com a cartomante, mas logo fazia um gesto
incrédulo. Mas como era, em verdade, de caráter mais voltado
às vontades subjetivas, mesmo que pretensiosamente cético,
quando menos se espera, já lá estava ele subindo as escadas
da cartomante. Na dúvida, até o que os homens gritavam ao
tentar levantar a carroça parecia ser palavras de incentivo para
Camilo que carecia acalmar as ansiedades: “— Anda! agora!
empurra! vá! vá!”. Os acontecimentos em volta contribuem
para a composição do texto para os olhos e ouvidos de
Camilo. Quando se trata do texto de hassid, as concatenações
tornam-se mais fáceis de tecerem-se. “Ele via as contorções do
drama e tremia. A casa olhava para ele” (ASSIS, 2003, p. 43).
Enquanto Camilo lia o que era quase óbvio – o fim trágico –,
a casa da cartomante estava ali parecendo lhe chamar. Por isso,
todas as histórias que a sua mãe lhe contava quando criança
colaboravam para a composição deste novo texto. Quando
se dá conta, já está subindo as escadas. O ambiente sombrio
e pobre participa para aumentar o prestígio, diz o narrador.
Logo, o ambiente também participa para uma leitura. “A
cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado
oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz
de fora batia em cheio no rosto de Camilo” (ASSIS, 2003, p.
44). O rosto de Camilo se torna iluminado para a cartomante
poder lê-lo. Ela o olhava por baixo dos óculos, como quem
perscruta, analisa, deduz. O narrador confirma a sagacidade da
cartomante quando diz que ela tinha “olhos sonsos e agudos”.
Fica fácil então deduzir por alto o que está fazendo lá um
homem distinto quando este está com medo de um desfecho
trágico de sua aventura. Que outra aparência poderia ter este
homem senão o de assustado? E foi o que a cartomante disse:
“Vejamos primeiro o que o traz aqui. O senhor tem um grande
susto...” (ASSIS, 2003, p. 44). Isso impressiona Camilo. Além
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
de astuta leitora de sinais, a cartomante sabe ainda muito bem,
ao mesmo tempo, dissimular bem um texto que lhe convém.
De maneira ainda generalizante, ela diz que ele quer saber se
lhe acontecerá alguma coisa ou não. Ele, ingênuo, envolvido
pelo espanto do mistério (hassid), entrega o mote à cartomante
dizendo: “A mim e a ela”. O narrador, curiosamente, diz que a
cartomante não sorriu. Ora, e por que haveria de sorrir senão
pelo fato de agora ter toda uma introdução de uma história
para dar apenas o remate da suposta clarividência? Então ela
declara uma leva de “conselhos” que servem para a maioria das
circunstâncias parecida com a de Camilo. Ela diz para ele que
não precisa temer a nada e que um amor bonito como o dos
dois causaria despeito de outros.
Como Rita anteriormente, Camilo é que agora está aliviado
de uma angústia. Ele acaba por submeter-se à lógica de hassid.
Tamanho entusiasmo observa-se no fato de ele ter dado à
cartomante dez mil-réis quando o preço era apenas dois milréis. Ela não perde a chance de ler e propor leituras coniventes a
Camilo: “Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem;
ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo” (ASSIS, 2003,
p. 45). Tão tranqüilo foi ele para a casa de Vilela que agora
até a natureza e as pessoas pareciam participar do contexto de
seu entusiasmo: “o céu estava límpido e as caras joviais”. Acha
agora pueril o próprio receio. Antes a letra aparentemente
estava trêmula demonstrando nervosismo por parte de quem
a escreveu, mas agora o tom da carta é íntimo e familiar. A
cartomante desfez o tecido indesejado para oferecer a Camilo
uma substituição mais aprazível, confortável, tanto que não
são mais as palavras de Vilela que lhe repercute na cabeça, mas
as da cartomante. “(...) reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante”. E como Rita, também ele elabora um sofisma
para garantir para si a veracidade das palavras da “sibila”:
“Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado
dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o
resto?” (ASSIS, 2003, p. 46). Isso é dito não pela voz direta do
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
personagem, mas pelo narrador. Com esse recurso do discurso
indireto livre, como já se disse aqui, o narrador dá outra vez
sinais “falsos” para o leitor. Neste instante de leitura, quem
lê é despreparado para o final que está por vir, o que garante
a surpresa antecipada do desfecho. Digo antecipada porque
Camilo já havia pensado neste final trágico. Mas agora, como
fez a cartomante com Camilo, faz o narrador com o leitor: tece
um outro panorama de leitura mais otimista... ingênuo, porém
otimista. Agora tem Camilo “uma fé nova e vivaz”. Ele olha
para o horizonte e tem “assim uma sensação de futuro, longo,
longo, interminável”. Como o hassid de Shebreschin indo ao
encontro do paraíso, Camilo vai em direção à casa de Vilela.
Contaminado pelo otimismo, Camilo não vê que, ao chegar e
bater na porta de Vilela, este “tinha as feições descompostas”.
“Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: —
ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada.
Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o
morto no chão” (ASSIS, 2003, p. 47). Como se vê, Camilo não
teve, no entanto, a mesma sorte que hassid.
É possível entrever no conto “A Cartomante”, portanto, dois
planos de um jogo de leituras e sinais. Um aspecto desse jogo
‘indiciário’ se estabelece entre os quatro personagens, um
outro aspecto se estabelece entre o narrador e o leitor. Entre
os personagens há uma relação de olhares, gestos, insinuações
que contribuem para a dádiva de uns sinais e dissimulação
de outros, travando assim uma batalha em que vence aquele
que lê melhor. É interessante notar que uma peça do jogo
movimentada vale às vezes por duas ou mais jogadas, como
foi o caso, por exemplo, da cartomante quando falou para
Camilo que ele estava com algum susto: ao mesmo tempo
em que leu um sinal, lançou um outro – a adivinhação – e
ainda soltou uma deixa para ele “dá as cartas”, assim ela supôs
o contexto de sua aflição. A cartomante é a que melhor lê e
mais sabe dá as pistas. Pistas estas que motivam outros sinais
que lhe servirão para outras leituras. Depois há a Rita que
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
mais dissimula indícios que propriamente os lê. Já Camilo e
Vilela, pouco ou quase nada sabem jogar o jogo ‘indiciário’.
Se o fazem, é ainda coxa a maneira que jogam. No caso de
Camilo, sua inocência e subjetividade predominante não o
deixam lê com clareza. Como diz o narrador, ele não tem nem
experiência nem intuição. Camilo não passa então do “caricato”
personagem machadiano que joga mais com a aparência, e
muitas vezes o aparecer contrasta com aquilo que realmente
é. Digo “caricato” porque esse tema se repete em outras de
suas obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, nos contos
como “Noite de Almirante”, “Teoria do Medalhão”, etc. Um
outro aspecto do jogo indiciário, como já se disse, é entre o
narrador e o leitor. Neste plano, no entanto, um está em parcial
desvantagem: o leitor, que é passivo diante do que o narrador
diz. Se ele não é passivo, pelo menos então paga uma multa
por tentar ler como Zadig. Carece de uma leitura minuciosa,
que desvenda sinais para que o texto se revele pleno, ou quase
pleno diante de seus olhos. A multa é que o leitor sai em débito
com essa plenitude e sabe disso – ao menos deveria saber. É
claro que não estou falando do leitor indiciário que pretende
ler como hassid. Este leitor hassid apenas se deleita com o
paraíso e não questiona “o que vem do Alto”. Neste plano de
jogo, o narrador dribla as informações para desviar a atenção
do leitor. O narrador faz isso sem, entretanto, passar por
falsário, “mentiroso”, uma vez que, como já observamos, faz
uso de recursos textuais que mescla a voz do personagem com
a sua voz, a do narrador. Estes dois planos do jogo indiciário –
personagem/personagem e narrador/leitor –, não se excluem,
mas, ao contrário, se complementam. Exemplo disso está no
episódio em que Camilo lê na letra trêmula um indício de um
drama trágico, enquanto o leitor, pelo ombro do narrador lê
na leitura do personagem sua aflição, além de imaginar junto
com Camilo a possibilidade do desfecho fatal. Assim, o leitor é
cativado pelo jogo dos sinais estabelecido entre os personagens
e o narrador. Mesmo que ele pague a sua multa, há algo de
deleitoso neste jogo da ficção na qual se ganha na medida em
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
que se descobre perdedor. O fato é que, desse jogo indiciário,
nenhum leitor poderá sair incólume.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. “A cartomante”. In: Contos consagrados.
São Paulo: Ediouro, 2003.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo:
Companhia das letras, 1999.
NOY,
Dov
(org.).
Contos
da
Tradução: Elena Moritz, J. Guinsburg
São Paulo: Perspectiva, 1966.
dispersão.
et al.
VOLTAIRE, François M. Arouet. Contos. Tradução: Mário
Quintana. Porto Alegre: Abril Cultural. 1972.
Recebido em 15/08/2008
Aprovado em 20/09/2008
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
E MAIS UMA VEZ IRONIA E DISSIMULAÇÃO:
TRANSITANDO PELO TEATRO MACHADIANO
– UM OLHAR SOBRE “AS FORCAS CAUDINAS”
Carla de Paula Santos
Ufes
Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde
ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a
curiosidade estreita e aguda que descobre o
encoberto.
Coisas miúdas, coisas que escapam ao maior
número, coisas de míope. A vantagem dos
míopes é enxergar onde as grandes vistas não
pegam. (Machado de Assis)
Resumo: A ironia e a dissimulação, elementos presentes
nos romances e contos de Machado, também transbordam
do caráter das personagens teatrais. É visando destacar esse
comportamento, tão comum nas obras consagradas desse
escritor, que procuraremos fazer uma breve análise da peça As
forcas caudinas.
Palavras-chave: Teatro machadiano. Ironia. Dissimulação.
Abstract: Irony and concealing are present elements in the
novels and stories by Machado. Those elements also overflow
of the character of theatrical characters. It is aiming to highlight
this behavior, so common in Machado’s works, that we make a
brief analysis on the play As forcas caudinas”.
Key words: Machadiano theater. Irony. Concealing.
Contrário aos demais dramaturgos brasileiros, as comédias de
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CONTEXTO
Machado de Assis não apresentam estapafúrdios teatrais. O
que se sobressai é um riso domiciliar pautado em situações
cotidianas. Aliás, como afirma Sábato Magaldi (2004, p.
125), “é forçoso concluir: as peças de Machado de Assis não
apresentam grandes qualidades em si. Tivesse o autor cultivado
apenas o teatro, seu nome seria absolutamente secundário na
Literatura Brasileira”.
Rompendo o tradicional, Machado frustra seu público teatral.
Por mais estranho que possa parecer, nosso grande escritor não
alcançou sucesso como dramaturgo. Suas comédias possuem
intrigas simplórias e uma trama linear, ausência de peripécias
complicadas e escassez de assuntos. As virtudes prendem-se
a negações: não apresentam mau gosto, não se entregam a
exageros, não admitem melodramaticidade. São peças curtas
(às vezes com um só ato), cuja preocupação figura, quase
sempre, em episódios relativos ao matrimônio, aos amuos do
casal ou as primícias do amor.
O teatro machadiano é conhecido como o teatro da brevidade.
E nesse quesito, Machado é tido como o dramaturgo da
limpeza, da economia. O que sustenta o andamento da peça
não é a ação, propriamente dita, mas os sofisticados diálogos
proferidos pelos seus personagens; uma linguagem fina e
requintada. Para saber se determinado personagem ama outro
é necessário que esse o diga, pois o espectador não o percebe,
não o sente.
Quando é necessária a ausência de uma personagem
no palco, as escusas menos elaboradas socorrem o
andamento da trama: faz-se que um leque caia das mãos
para o jardim; que alguém esteja a esperar o interlocutor
em casa; que este saia para deixar um cartão de visita
na propriedade vizinha: ou que simplesmente se recolha
aos aposentos, para logo depois voltar. É verdade que é
esse o estilo do cotidiano, formado mais dos pequenos
hábitos do que dos gestos excepcionais. O leitor sente-se
contrafeito, porém, com a pobreza do poder inventivo,
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
acanhamento de meios que acaba por depauperar o
resultado (LOYOLA, 1998, p194).
Entretanto, a ironia e a dissimulação, elementos presentes
nos romances e contos de Machado, também transbordam
do caráter das personagens teatrais. É visando destacar esse
comportamento, tão comum nas obras consagradas desse
escritor, que procuraremos fazer uma breve análise da peça As
forcas caudinas.
Comédia realista, escrita entre 1863 e 1865, não apresenta
a figura do resoneur. O público retratado é a elite carioca; o
ambiente, familiar. É uma peça em dois atos com um núcleo
reduzido: o casal Margarida e Seabra, recém-casados; o amigo
ausente que retorna, Tito; a amiga íntima do casal, Emília, e o
coronel Aleixo Cupido V, enamorado desta.
Apesar de se tratar de uma peça breve, As forcas caudinas
apresentam todos os elementos característicos da comédia.
Os personagens aparecem como peças dispostas sobre um
tabuleiro de xadrez, prontos para proferirem audaciosos
diálogos. A comicidade pauta-se na linha do seguinte provérbio
popular “o feitiço que cai contra o feiticeiro”; idéia espirituosa
com feitio moral comum nas peças de Machado. Aquele que
procura enganar e simular, acaba sendo o enganado.
Aliás, as primeiras peças machadianas seguem o modelo dos
provérbios franceses, observação feita por Quintino Bocaiúva:
“As tuas comédias são para serem lidas e não representadas”
(MAGALDI, 2004, p. 125). Uma e outra coisa lembram o
teatro de Musset, o teatro para ser apreciado numa poltrona,
não num palco. Entretanto, sobressaem das peças machadianas
diálogos cobertos de uma polidez impecável. Uma sofisticação
encantadora.
O título da peça já nos põe frente à marca registrada desse
escritor. Constitui-se de uma expressão idiomática rebuscada:
passar pelas forcas caudinas é como render-se, dar-se por
vencido. É uma metáfora referente à guerra; nesse caso, uma
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CONTEXTO
guerra sentimental, uma luta entre dois seres apaixonados e
egoístas, reféns da vingança: Tito e Emília.
Quanto ao ambiente sob a qual a peça é montada, percebemos
que se trata de um espaço doméstico: ora o recanto de amor
de Margarida e Seabra, ora a casa de Emília. Diremos, ainda,
que se trata de um “campo de batalha”: de um lado o feliz casal
em clima de lua-de-mel, gozando das delícias do amor; uma
espécie de “casamento perfeito”.
Seabra (fechando o livro): É melhor. As coisas boas não
se gozam de uma assentada Guardemos um bocado
para a noite. Demais era já tempo que eu passasse do
idílio escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti.
Margarida: Jesus! Parece que começamos a lua-de-mel.
Seabra: Parece e é. E se o casamento não fosse
eternamente isto o que poderia ser? A ligação de duas
existências para meditar discretamente na melhor
maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor
de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um eterno
namoro. Não pensas como eu?
Margarida: Sinto...
Seabra: Sentes, é quanto basta (ASSIS, 2003, p. 01).
Vale destacarmos que por mais romântica que possa parecer a
cena, há certo exagero amoroso nas palavras de Seabra. Este
profere todo um “discurso filosófico” sobre as faces do amor,
os nuances do casamento e as alegrias que este proporciona;
entretanto, ao finalizar, encaminha o espectador/leitor para o
cômico, causando certo lisonjeio na platéia que, talvez, esperava
que o discurso terminasse deixando uma aura romântica: “A
ligação de duas existências para meditar discretamente na
melhor maneira de comer o maxixe e o repolho?”. Afinal,
que ligação haveria entre o amor e a gastronomia? Artifícios
machadianos.
Se Seabra e Margarida desfrutam da felicidade conjugal,
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
em posição de defesa, no lado adversário há o amigo Tito;
totalmente alheio ao casamento, incisivo e irônico com relação
ao amor.
Margarida: Tem horror ao casamento?
Tito: Não tenho vocação. É puramente um caso de
vocação. Quem a não tiver não se meta nisso que é perder
o tempo e o sossego. Desde muito estou convencido
disto.
(...)
Tito: [...] Entre um amor que se oferece e... uma partida
de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete (ASSIS,
2003, p. 05-06).
É importante atentarmos para a figura de Tito que é o
personagem norteador da ação, é ele quem motiva a “guerra”
que se desencadeia na peça. Ao entrar em cena, interrompendo
o diálogo íntimo entre Margarida e Seabra, dá início ao
intrigante jogo de dissimulações que se desenrolará. A paz
reinante e o clima romântico é interrompido pela chegada
inesperada deste.
Também contrastando com a perfeição do amor conjugal,
temos a figura de Emília, que entra em campo com um único
objetivo: derrotar Tito e fazê-lo passar pelas “forcas caudinas”;
e, assim, lógico, enaltecer o seu ego feminino. Aliás, Emília nos
parece, de certo modo, a figura incisivamente mais dissimulada
desta peça, ficando a ironia machadiana, aqui, muito bem
representada por Tito.
Além de ser uma jovem viúva (vinte e cinco anos) e ter segundo
Tito “exportado dois maridos para o outro mundo, estando à
espera de exportar o terceiro”, tudo isso em menos de dois
anos, é Emília quem demonstra entender mais de amores e
relacionamentos em toda a peça. Personagem complexa,
revela o prazer que sente em subjugar o sexo oposto aos seus
caprichos e, posteriormente, desprezá-los.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
Emília: Lembra-me um do mesmo gênero que este...
Foi já há tempos, andava sempre a gabar-se da sua
isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos
da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Caiu em
menos de um mês. Margarida, vi-o beijar-me a ponta
dos sapatos... depois do que desprezei-o.
Margarida: Que fizeste?
Emília: Ah! Não sei o que fiz. Fiz o que todas fazemos.
Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o
sexo e abati o orgulhoso (ASSIS, 2003, p. 13).
É com esse pensamento, “Vinguei o sexo e abati o orgulhoso”,
que Emília trava com Tito um intrigante combate. A partir daí
desenrola-se todo um jogo de dissimulações com relação ao
seu comportamento. O que ela não sabe é que seu fingimento
é, na verdade, reflexo da sua alma.
Os personagens presentes na peça em questão são modelos
machadianos. Segundo Magaldi (2004, p. 129) “Os tipos são
simples, definidos numa ação linear, distantes das paixões mais
ardorosas que poderiam abrir-lhes perspectivas amplas, e ainda
assim, desenham-se, no mais das vezes, com sutileza que faz
supor lutas íntimas”.
É importante atentarmos para o modo como é dissecado o
caráter de Emília. Para Seabra, apesar de ser uma “boa senhora”
falava demais.
Seabra: A Emília faz um grande cavalo de batalha da sua
isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está
ainda nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e
casar-se menos (ASSIS, 2003, p. 02).
Para Tito, uma mulher audaciosa, galanteadora, caprichosa e
“sem raríssimas qualidades”.
Tito: Não sei... ela é uma boa senhora, um pouco
secantezinha...muito dada à poesia...ora eu sou todo
prosa...(batendo no estômago). Há prosa? (ASSIS, 2003,
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• 113
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
p. 24)
Observemos, ainda, o descaso de Tito, na verdade, certo
despeito; como se a presença de Emília não lhe causasse
nenhuma comoção: ela é dada a sentimentos, galanteios,
preocupada com as palavras; ele, preocupado com a razão,
com os sentimentos físicos, a fome, nesse caso.
De acordo com Margarida, Emília era a amiga de todas as horas,
mas “perigosa” e vingativa. O que, entretanto, não a impede de
compactuar com o joguinho de conquista e vingança. Talvez,
fosse justamente esse poder de dissimulação presente no
comportamento da amiga o que a intrigava e a seduzia.
Margarida: Dissimulada!
Emília (rindo): Por que dizes isso?
Margarida: Por que já te vejo tentada a uma vingança
nova.
Emília: Eu? Ora, qual!
Margarida: Que tem? Não é crime...
Emília: Não é, decerto; mas...Veremos!
Margarida: Ah! Serás capaz?
Emília (com um olhar de orgulho): Capaz?
Margarida: Beijar-te-á ele a ponta dos sapatos?
Emília (apontando com o leque para o pé): E hão de ser
estes... (ASSIS, 2003, p. 14-15).
Em As forcas caudinas as relações entre as personagens são
enredadas e enigmáticas. A peça constitui-se de um grande
jogo de vaidade e dissimulações, fortemente marcada pelo
tom dos diálogos, tonalidade característica das conversas de
salão. A linguagem de meios tons apresenta falas insinuantes e
estudadas; as personagens parecem pesar o que dizem. E em
alguns momentos, os diálogos apresentam uma escala que vai
da ironia ao sarcasmo.
114 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Como em toda comédia há sempre uma personagem
ridicularizada, o grotesco é, aqui, muito bem representado
na figura estapafúrdia do Coronel Aleixo Cupido V. Nome,
por sua vez, bem sugestivo para uma figura de alta patente
no exército. Se sua posição social impõe certo respeito, seu
comportamento é dos mais intrigantes e cômicos. Se para
Aristóteles, a ação cômica deve ser absurda (BENDER, 1996,
p. 22), o coronel faz jus ao papel.
Alvo das ironias de Tito e das zombarias de Emília, o coronel
é na verdade um parvo. Primeiro: “Namora a Emília, sem ser
namorado” (ASSIS, 2003, p. 08). Segundo: é capaz de tudo
para conquistar a amada. Aliás, o presente encomendado para
Emília é bastante cômico, chegando a transformar o coronel
numa figura inimaginável.
Emília: Sabem que o Sr. Coronel vai fazer-me um
presente?
Seabra: Ah!...
Margarida: O que é?
Coronel: É uma insignificância, não vale a pena.
Emília: Então, não acertam? É um urso branco.
Seabra e Margarida: Um urso!
Emília: Está para chegar, mas só ontem é que me deu
notícia...
Tito (baixo a Seabra): Com ele faz um par.
Margarida: Ora, um urso!
Coronel: Não vale a pena. Contudo mandei dizer que
desejava dos mais belos. Ah! Não fazem idéia do que é
um urso branco! Imaginem que é todo branco!
Tito: Ah!...
Coronel: É um animal admirável.
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• 115
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Tito: Eu acho que sim. (a Seabra) Ora vê tu, um urso
branco que é todo branco! (ASSIS, 2003, p. 07-08)
Além da insensatez do presente, não podemos deixar de
destacar a estupidez de Aleixo Cupido; bem como a ironia nas
palavras de Tito, ditas a meia voz para Seabra. Quando Emília
diz que ganhará um urso do coronel, Tito responde: ”Com ele
faz um par”; ou seja, ambos gordos, sonsos, inúteis e parvos.
A redução da tonalidade de voz, representada na peça pelo uso
dos parênteses, revela o sarcasmo íntimo e o veneno destilado
pelas personagens. Esse jogo de afinações da linguagem
representa recursos polifônicos empregados por Machado
para proporcionar o riso do leitor; e são usados, ainda, para
medir o grau de ironia dos diálogos.
Vale destacarmos, também, o uso de “conversas e
desconversas”, utilizado aqui como mecanismo cômico: ao
mesmo tempo em que Tito conversa com o Coronel, fala deste
para Seabra. Esses recursos representam o contraste entre os
sentidos manifestos e os sentidos ocultos, o que se diz e o que
realmente se queria dizer.
Quanto à figura do coronel, apesar da estupidez de sua pessoa,
este “serve” para suprir as vaidades de Emília; mesmo que
o tempo todo, ela passe tentando se livrar de sua presença
inoportuna.
Emília: Eu sei lá! Mas afinal de contas, não é mau
homem. Tem aquela mania de me dizer no fim de todas
as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.
Margarida: Enfim, se não passa da declaração semanal!...
Emília: Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro
infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de
casa[...] (ASSIS, 2003, p. 12)
Com relação a Tito, não podemos deixar de realçar características
de seu caráter, que o faz um “jogador” à altura de Emília. Se
para Seabra ele é o amigo que sofreu uma desilusão amorosa, e
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
por isso, alheio ao casamento; para Margarida e Emília Tito é uma
espécie de “coisa”, um “homem incapaz de amar”, um vaidoso e
orgulhoso, um dissimulado que merece ser corrigido, domado.
O comportamento de Tito com Emília revela-nos, também, um
homem frio e calculista; disposto a irritá-la e desprezá-la como
mulher. Há uma passagem de destaque na peça, em que fica bem
latente o descaso do personagem e a falta de sentimentos levando
o leitor/espectador a rir e, até mesmo, a sentir certa “pena” de
Emília. A ironia nas palavras de Tito chega a ser gritante.
Tito (folheando o livro): Oh! Essa... está salva!
Emília (depois de uma pausa) Está admirando a beleza dos
versos?
Tito: Não senhora; estou admirando a beleza da impressão.
Já se imprime bem no Rio de Janeiro. Aqui há anos era uma
desgraça. V. Exa. há de conservar ainda alguns livros de
impressão antiga...
Emília: Não, senhor; eu nasci depois que se começou a
imprimir bem.
Tito (com a maior frieza): Ah! (deixa o livro)
(...)
Emília: [...] Em que medita? No amor? Sonha com os anjos?
(ameigando a voz) A vida do amor é a vida dos anjos... é a
vida do céu...(vendo-o com os olhos fechados) Dorme!...
Dorme!...
Tito (despertando, com espanto): Dorme?... Quem? Eu?...
Ah! o cansaço...(levanta-se) desculpe...é o cansaço...cochilei...
também Homero cochilava...Que há? (ASSIS, 2003, p. 2122)
Na cena nove do segundo ato, ocorre a queda das máscaras
das personagens Quando Emília e Tito encontram-se só, ela
lhe confessa o amor, deixando-o perturbado. Nem mesmo
o descaso recebido e as ironias investidas, fazem Emília se
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
calar. Como ela mesma afirma para Margarida: “Quis fazer
fogo e queimei-me nas mesmas chamas! (ASSIS, 2003, 41).”
Assim, esse jogo de relações de poder entre Tito e Emília, acaba
tendo um final inesperado. Emília propõe o duelo e Tito vence
sem precisar lutar. É ela quem, na verdade, acaba passando pelas
“forcas caudinas”. Ao tentar seduzir para depois desprezar, acaba
se apaixonado e sendo correspondida. Tito, lógico, se rende, mas
com certa categoria, não perdendo a oportunidade de se mostrar
incisivo e superior com relação ao amor, levando Emília a confessar
a derrota.
Tito: (a Emília) Aceita a minha mão? (estende-lhe a mão)
Emília (alegremente): Oh! Sim! (dá-lhe a mão)
Margarida: Bravo!
Tito: Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu
devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um
tanto original e gosto de fazer inversão em tudo.
Emília: Pois, sim; mas de um ou de outro modo sou feliz.
Contudo, um remorso me surge na consciência. Dou-lhe
uma felicidade tão completa como a recebo?
Tito: Remorso, se é sujeita aos remorsos, deve ter um, mas
por motivo diverso. Minha senhora, V. Exa. está passando
neste momento pelas forcas caudinas (ASSIS, 2003, 42.)
Após o “final do jogo”, como artifício machadiano, a peça não
poderia apenas terminar com a promessa de casamento entre
Emília e Tito. Era necessário, ainda, que o cômico desse suas caras
pela última vez. Entra em cena, assim, Aleixo Cupido, para fechar
“com chave de ouro” tal comédia.
E, mais uma vez, Machado lança mão da ironia para conquistar
seus leitores/espectadores.
Coronel: Tenho estado à espera de dar uma boa notícia.
Recebi uma carta que me dá parte de que o urso está na
alfândega.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Emília: Pois vá fazer-lhe companhia
Coronel: O quê?
Tito: D. Emília só precisa agora de um urso: sou eu
(ASSIS, 2003, 44).
Desse modo, fica para nós leitores críticos a seguinte questão:
será mesmo o teatro machadiano um teatro de poltrona? E
suas peças, não apresentam qualidade? Não são para o palco?
Bom, que o nosso amigo Quintino de Bocaiúva continue
esperando compreender Machado apenas de sua poltrona. Ah!
E que lhe faça companhia um certo urso branco que, por sinal,
é todo branco!
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 01. Textos literários em meio
eletrônico. Disponível em http:// www.dominiopublico.gov.
br. Acesso em 08 de outubro de 2008.
BENDER, Ivo. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico.
Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 1996.
LOYOLA, Cecília. O teatro de Machado de Assis: legado
póstumo. In: SECCHIN, Antônio Carlos; ALMEIDA, José
Maurício Gomes de; SOUZA, Ronaldes de Melo e (Org.).
Machado de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998,
p. 191-204.
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo:
Global, 2004.
Recebido em 14/08/2008
Aprovado em 21/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
A RELAÇÃO NARRADOR E LEITOR EM DOM
CASMURRO
Maria Helena Laureano
Ufes
Resumo: Nos romances do século XIX, narrados em primeira
pessoa, como Dom Casmurro, há uma pré-seleção de fatos e
idéias com a possibilidade ou não de confirmação desses fatos.
Isso ocorre porque o narrador é o tradutor de sua história, o
autor é o tradutor de seu tempo (de sua visão sobre o mundo),
o leitor é o tradutor da história contada pelo narrador no tempo
real da leitura: hoje. Por isso, a relação narrador e leitor desse
romance deve ser analisada levando em conta as interferências
do passado na fala do narrador e do presente na interpretação
do leitor.
Palavras-chave: Narrador. Leitor. Tradução.
Abstract: In the novels of the nineteenth century, narrated in
first person, as Sun Casmurro, there is a pre-selection of facts
and ideas with the possibility of confirmation or otherwise of
these facts. This is because the narrator is the translator of its
history, the author is the translator of his time (of his vision on
the world), the reader is the translator of the story told by the
narrator in real time of reading today. Therefore, the reader
and narrator of this novel should be considered taking into
account the interference of the narrator speaks in the past and
the present in the interpretation of the reader.
Keywords: Narrator. Reader. Translation.
DA NARRATIVA
Dom Casmurro: uma narrativa que, logo no início, ainda no
título, se apresenta como um romance autobiográfico, pois
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
utiliza como título o nome do personagem principal e, como
deixa claro nos primeiros capítulos, vai narrar em primeira
pessoa fatos de sua vida. Logo, trata-se de uma autobiografia
escrita e narrada em vida por um narrador-personagem.
Comecemos por aí: narrador personagem? Romance
autobiográfico? Dom Casmurro? Ora, já temos vários
indícios de que não se trata de um romance tradicional, pois
o personagem principal, que também é o autor e narrador da
história, vai contar sua vida estando ainda vivo (ao contrário
de Brás Cubas do mesmo autor), mas ele próprio é uma ficção,
sua vida é uma história inventada. Talvez até por isso, nos dois
primeiros capítulos, uma narrativa introspectiva e altamente
psicológica dá o “pontapé” inicial no romance, traçando seu
perfil na tentativa de se auto-afirmar como real para a ficção,
confirmando também a veracidade do que vai contar. (Dar seu
próprio nome à história, explicar o porquê (DO TÍTULO, p.
15-16)) e expor os motivos que o levaram a essa empreitada
é apenas o início de uma tentativa de se apresentar para o
leitor, numa entrega total, falar de seu drama pessoal: “O meu
fim era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência.” (DO LIVRO, p. 17). Em seguida, com um ar
de melancolia, herança do Romantismo que ainda impregnava
as obras daquela época, denuncia-se a si mesmo morto por
dentro, feito só de aparências, um “vivo-morto”:
[...] Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem
o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é
diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem
consola-se mais ou menos das pessoas que perde;
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui
está é, mal comparando, semelhante à pintura que se
põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o
hábito externo, como se diz nas autópsias; o inferno
não agüenta tinta. Uma certidão que desse vinte anos
de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
documentos falsos, mas não a mim [...].
Nesse trecho, distancia-se de si mesmo, do que fora, para
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 121
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
recompor sua história; surge, agora, o narrador onisciente
e onipresente, mas que precisa afastar-se do que viveu
como experiência própria para deixar o personagem “Dom
Casmurro” revivê-la.
O Dom Casmurro narrador faz parte da realidade da ficção
e cria um Dom Casmurro personagem que irá reviver os
acontecimentos na ficção da ficção – ficção criando ficção.
Como já foi dito anteriormente e poderemos perceber no
decorrer desta argumentação, não é uma narrativa tradicional,
pois não tem nenhuma intenção de ensinamento, apenas cria
tensões e não as resolve, gera conflitos, desorienta e não decide
nada. Não pretende resolver tensões e sim instaurá-las. Para
isso, o narrador recorre somente às suas memórias e à de mais
ninguém; uma memória romancista, individual, mas que reflete
o universal ao representar a vida do homem moderno com
os ranços da aristocracia decadente no Brasil do século XIX.
Uma narrativa que tem um fim em si mesma é, ou quase é,
um solilóquio, fechada como um “casmurro”, que segundo
o narrador, significa “calado, metido consigo mesmo”. (DO
TÍTULO, P. 15).
No entanto, embora seja típico dos romances do século XIX,
narrados em primeira pessoa, essa pré-seleção de fatos e idéias
com a possibilidade ou não de confirmação no decorrer do
texto, em Dom Casmurro é o desencadeamento de diversas
“traduções” que vão interferir e direcionar os rumos da
história. Tradução, aqui, não no sentido interlingüístico, mas
no sentido intralingüístico, onde quem lê faz a tradução para
si mesmo, levando em conta sua competência para leituras
previsíveis (paráfrases) e leituras possíveis (polissêmicas). Em
Dom Casmurro o narrador é o tradutor de sua história; o autor
é o tradutor de seu tempo, de sua visão sobre o mundo; e o
leitor é o tradutor da história contada pelo narrador no tempo
real da leitura: hoje.
Portanto, para analisar a relação existente entre narrador e leitor
em Dom Casmurro, é preciso “entrar no jogo do narrador”,
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
passar a fazer parte da história, por mais fechada que ela seja.
Só assim o leitor e analista conseguirá entender a história:
vivendo a narrativa, sentindo-a com a mesma profundidade
que o narrador narra, tornando-se um tradutor do que o
narrador conta, traduzindo para si mesmo.
Até certo ponto, podemos dizer que o leitor projeta em seu
cérebro os sentimentos e pensamentos do outro (o narrador)
e faz o mesmo percurso do narrador para compreendê-lo,
identifica-se com ele e insere-se nesse ciclo que envolve narrador,
leitor e personagem, como numa teia, e passa a ser responsável
pelo texto, porque cria significados. Aí está o limite dessa
relação: por mais que o leitor se deixe levar passivamente pela
narrativa, os significados de leitura que ele cria se darão a partir
de suas próprias experiências. Nesse processo de tradução ele
passa a ser responsável pelo texto que recria, porque interfere
nele. Torna-se um leitor-autor, porque traz a ficção para a sua
realidade, compondo seu próprio significado. Por mais fechada
que seja a narrativa, o leitor sempre encontrará orifícios pelos
quais fará sua intervenção no texto.
A RELAÇÃO NARRADOR E LEITOR DE DOM
CASMURRO: PASSIVIDADE OU INTERAÇÃO?
O narrador de Dom Casmurro inaugura sua história com um ar
de pessimismo, de descrença com o mundo, com seu meio, um
niilismo próprio dos românticos:
Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos,
outras de menos, e quase todas crêem na mocidade.
Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua
que falam obrigam muita vez a consultar os dicionários,
e tal freqüência é cansativa.
[...] Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações
raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler;
como bem e não durmo mal (DOLIVRO, p. 17).
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• 123
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
Mas, apesar de deixar transparecer tanta desesperança e
melancolia, todo esse niilismo denuncia uma relação artificial
do personagem com o meio; um niilismo que o próprio ato da
escrita contradiz:
[...] Foi então que os bustos pintados nas paredes
entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles
não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse
da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a
ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao
poeta, não o do trem, mas o Fausto: Aí vindes outra vez,
inquietas sombras...? (DO LIVRO, p. 18, grifo do autor).
Queria reviver na escrita seu passado, suas memórias; ainda
que fossem momentos sofridos e dignos de esquecimento,
queria revivê-los. E escrever era a melhor forma de eternizar.
Até que ponto é possível escrever suas próprias experiências
com imparcialidade, sem reconstruí-las de outro modo, a seu
modo, de um modo que justifique seus atos e a si mesmo?...
Ninguém está imune às interferências do tempo e espaço em
que vive. Nesse sentido, uma autobiografia nunca é trazer de
volta o passado tal qual ele fora, pois, estando em um outro
tempo, o presente, essa escrita vai sofrer as influências desse
tempo, será uma escrita ideal. Quem escreve já é um outro ser
porque, no momento da escrita, já foi afetado e transformado
pelas experiências que vai contar. Quem escreve não é o mesmo
que viveu. Por isso, precisamos suspeitar da intencionalidade
de Dom Casmurro em relação ao leitor para quem ele escreve,
e questionar, o tempo todo, seu tom filosofante e seu ar de
vitimado.
Através da pena convincente de Machado de Assis, Dom
Casmurro recria-se, duplica-se, pois cria uma outra ficção
para um texto que já é ficcional, levando o leitor a sentir-se
penalizado com o sofrimento do personagem, tornando-se seu
defensor, seu advogado e, de certo modo, seu cúmplice.
Apesar de uma aparente linearidade, Dom Casmurro é toda
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
feita de digressões e, poderíamos dizer que, o personagem
é duplo e bipolar, pois, quem escreve é Dom Casmurro,
quem vive a escrita é Bentinho. Dom Casmurro é, então, um
autor-narrador quando escreve suas memórias, e narradorpersonagem quando vive o que narra como Bentinho. Bentinho
é o personagem principal da ficção criada por Dom Casmurro;
mas Dom Casmurro é o personagem principal da ficção criada
por Machado de Assis. Uma ficção dupla, uma dentro da outra,
que gera um personagem também duplo.
Se pudermos utilizar o termo “morte do autor” num sentido
amplo e poético da palavra é nesse caso, pois o autor cria uma
ficção para um texto que já é ficcional e, nem assume, nem
nega sua autoria, porque Dom Casmurro assume o papel de
autor. Se o leitor não ficar atento, esquece tais aspectos e se
perde (ou se encontra) na leitura.
NA SEQÜÊNCIA DA HISTÓRIA: DO TÍTULO. DO
LIVRO. A DENÚNCIA...
Apesar da aparente linearidade, talvez fosse mais correto afirmar
que se trata de uma circularidade: “O meu fim evidente era atar
as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.
[...]” ( DO LIVRO, p. 17). Feito. Embora não tenha conseguido
ligar as duas pontas da vida, ligou as da narrativa. Narra do
presente, dá certo corte, ou seja, interrompe o tempo para
voltar ao passado. A história dele começa, realmente, ali, com
“A Denúncia”. A partir daí desenvolve-se linearmente no
tempo até chegar novamente ao ponto de partida, o presente.
Atando as duas pontas da linha do tempo só pode resultar em
um círculo que, no final, volta ao começo.
Mas, esta não é a finalidade deste capítulo, antes, sua finalidade
é observar, na seqüência da história, pontos relevantes para o
entendimento da relação entre narrador e leitor. Comecemos,
pois, do que julgamos ser o começo: “Denúncia”. O narrador
apresenta-nos Bentinho já sob os olhares atentos da família e
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
despertando para o amor de Capitu. Analisa, em “Um dever
Amaríssimo”, todos os traços do perfil físico e psicológico de
José Dias, seu denunciante e “O agregado” da família. Não por
acaso o primeiro personagem secundário a ser apresentado foi
José Dias, autor da denúncia, antes mesmo de nos apresentar
o núcleo genealógico da família no capítulo “D. Glória”.
O agregado foi o primeiro a perceber que os olhares entre
Bentinho e Capitu não eram mais olhares pueris. A denúncia foi
a semente daquele amor que, jogada em terra fértil, germinou.
E Bentinho disse para si mesmo: “É Tempo”
No capítulo seguinte, “A Ópera”, o narrador faz uma
regressão ao presente da ficção “[...] Vinha aqui jantar comigo
algumas vezes [...]”, para explicar a comparação que fazia um
amigo tenor entre a vida e a ópera. Comparações aceitas e
reformuladas por Dom Casmurro tendo como a ópera sua
própria vida, iniciam-se as justificativas em favor de Bentinho
e os contatos diretos com o leitor.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini,
não só pela verossimilhança, que é muita vez toda
a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à
definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio,
depois um quatuor... Mas, não adiantemos; vamos à
primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava,
porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada
principalmente a mim. A mim é que ela me denunciou.
Entre os detalhes de sua criação e educação e os projetos para
o futuro de Bentinho, o narrador tece a história capturando o
leitor para ser sua testemunha. Já que todos morreram, ele quer
o leitor como seu grande jurado. Vai construindo sua Verdade,
justificando-se o tempo todo:
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de
José Dias, que denunciara a mim mesmo, e a quem eu
perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e
o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante,
a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a
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CONTEXTO
eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu
amava Capitu! “Capitu amava-me” E as minhas pernas
andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa
revelação da consciência a si própria, nunca mais me
esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer
outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser
minha. Naturalmente por ser a primeira.
Mesmo quando Capitu dá o primeiro passo para a
concretização daquele romance, escrevendo seu nome junto
ao dele, no muro, o narrador defende Bentinho. Uma defesa de
coisa alguma, pois nada havia acontecido ainda. Talvez apenas
para ir confirmando a inocência, a ausência de culpa por parte
dele de qualquer coisa que viesse acontecer: “[...] Confissão
de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero
ser poupado [...]”; “[...] Conhecia as regras do escrever, sem
suspeitar as do amar; tinha orgias do latim e era virgem de
mulheres. [...]”. (BENTO/CAPTOLINA, p. 38).
Nos muitos capítulos que se seguem é notável o esforço do
narrador para convencer o leitor da ingenuidade de Bentinho
e da astúcia de Capitu, como se ela fosse desde sempre, quem
direcionava e manipulava toda a situação com propósitos
escusos e pré-concebidos. Claros ficam tais propósitos na
narração de uma explosão nervosa de Capitu ao saber da
intenção da mãe de Bentinho de mandá-lo para o seminário:
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e
minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha
explosão. È verdade que também gostava de mim, e
naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa
bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça
da separação; mas os impropérios, como entender que
lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para
deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que
ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe
é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis
defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a
chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo
fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada como
então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os
dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não sabia que
fizesse; [...] (UM PLANO, p. 45, grifo do autor).
Quando passou a explosão “Capitu refletia. A reflexão não era
coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos
olhos [...]”; “[...] Capitu deixou-se ir rindo; depois a conversa
entrou a cochilar e a dormir [...]” (UM PLANO, p. 46). Depois
da reflexão, a conclusão: “-Se eu fosse rica, você fugia, metiase no parque e ia para a Europa.”; “Como vês, Capitu, aos
quatorze anos, já tinha idéias atrevidas, muito menos que
outras que lhe vieram depois, mas eram só atrevidas em si, na
prática, faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim
proposto, não de salto, mas aos saltinhos, não sei se me explico
bem [...]” (UM PLANO, p. 47).
Neste momento, já está plantada no leitor uma semente
de desconfiança por Capitu e uma árvore, já crescida, de
cumplicidade com Bentinho – ou Dom Casmurro. Sim,
porque é no momento em que o narrador começa a apresentar
Bentinho como “o manipulável e passível de traição” da
história, que Dom Casmurro ganha vida para a narrativa.
Antes, Bentinho era o adolescente que vivia um grande amor
correspondido. Vários outros pontos da narrativa nos mostram
que Capitu era astuciosa, apesar da pouca idade. De forma que
fica difícil não crer em sua traição no final. Mas o leitor, aqui
representado por quem analisa esta relação, é capaz de levantar
outras hipóteses. Tracemos, então, o perfil do narrador, Dom
Casmurro.
REFLEXÕES DE LEITOR
O PERFIL DO NARRADOR
Dom Casmurro era advogado, aristocrata, composto bem à
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
figura dos proprietários escravagistas do século XIX, rico por
herança, um homem relativamente comum, mas de caráter
ilustre socialmente, melancólico e bom representante do
egocentrismo romântico. Entretanto, o tema que ele narra
se dá no tocante a uma questão que atinge a qualquer ser
humano que, sendo rico ou pobre, do século XIX ou XXI, está
predisposto, de alguma forma: a traição. Sua filosofia de vida –
a busca incansável pela Verdade – o faz transitar sempre entre
as fronteiras da Certeza e da Suspeita, da Mentira e da Verdade,
fronteiras vulneráveis e que, em determinados momentos, não
são opostas, mas constituem apenas pontos de vista diferentes:
“[...] Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se
descrevem; não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos,
claros, lúcidos [...]” (UM MEIO-TERMO, p. 103).
O PERFIL DO LEITOR
Eis a questão: qual o leitor? O do século XIX, contemporâneo
do narrador, com um perfil bem parecido com o dele por
fazer parte da mesma sociedade, ou o leitor do século XXI?
Certamente, naquela época, os leitores desta ficção, homens
e mulheres reais, apedrejariam (ou apedrejaram) mentalmente
Capitu. Nada poderia ser feito em sua defesa, pois as provas
apresentadas por Dom Casmurro seriam suficientes para
sua condenação. Mas, o leitor de hoje lhe daria, no mínimo,
o benefício da dúvida. Embora o narrador tenha o firme
propósito de convencer o leitor de sua Verdade, as fronteiras
que separam a realidade da ficção são, hoje, bastante tênues,
vulneráveis. Fica impossível não fazer uma aproximação entre
a ficção e a realidade, para entender o texto com profundidade.
Nessa aproximação e comparação é que acontece o julgamento
do leitor e uma leitura competente se constitui. Como numa
interação entre as linguagens do século XIX e XXI, o leitor
refaz, reinventa a história num processo de tradução interna
do que lê. Afinal, ninguém e nada está imune às influências e
transformações deste eterno girar universal.
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• 129
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
O PERFIL DE BENTINHO
Jovem, ingênuo, homem sem determinação.Vive das denúncias
de José Dias: “Juro! Deixe ver os olhos, Capitu. Tinha me
lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana
oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas
dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim [...]”
(OLHOS DE RESSACA, p. 71); Vivia dependente também
da determinação de Capitu, algo que ela trazia estampado nos
“olhos de ressaca” e nos gestos. Mais tarde, também passa a
viver de outras denúncias, como a de Otelo, personagem de
Shakespeare numa peça de teatro: “Nem eu, nem tu, nem ela,
nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder
mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não
anuncia as peripécias nem o desfecho [...]” (UMA REFORMA
DRAMÁTICA, p. 141). Até as imitações do filho Ezequiel lhe
servem como denúncias, como indícios de uma traição: “[...]
já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...”
(AS IMITAÇÕES DE EZEQUIEL, p. 201); “[...] Alguns dos
gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das mãos e
pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar
da cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair , quando ria
[...]” (FILHO DO HOMEM, p. 208).
Assim, vai construindo a traição da esposa e do amigo sobre
os gestos de Ezequiel, embora ele mesmo admitisse, eram só
imitações: “Escobar concordou comigo e insinuou que alguma
vez as crianças que se freqüentam muito acabam parecendo-se
umas com as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas
matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia se [...]”
(AMIGOS PRÓXIMOS, p. 210).
O LEITOR, ADVOGADO DO DIABO
Após traçar o perfil do narrador e situá-lo no tempo e espaço
em que a obra foi escrita, e situar o leitor como sendo o dos
dias atuais, considerando todas as referências tecnológicas que
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
a contemporaneidade nos oferece, é possível confirmar que o
leitor de hoje, ao ler Dom Casmurro, torna-se também autor
da obra, pois recria, compõe uma nova realidade para a ficção.
Dessa forma, é impossível não analisarmos a narração de Dom
Casmurro sem dar voz e vez aos outros personagens. Como se
trata de uma narração onde apenas o narrador fala, até mesmo
quando as falas e pensamentos são dos outros personagens é o
narrador quem os transmite, moldando-os e interpretando-os
a seu modo, para convencer o leitor.
No entanto, em várias passagens o próprio narrador se
contradiz e demonstra suas dúvidas frente à Verdade, que
parecia já incontestável: “A viúva era realmente amantíssima.
Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não
seria o mesmo caso de Capitu?” (CISMANDO, p. 220).
O narrador também se trai ao escrever uma passagem onde
expressa uma ingenuidade incomum em Capitu, até então:
“-Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão
esquisita? Perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um
amigo de papai e o defunto Escobar [...]” (ANTERIOR AO
ANTERIOR, p. 225). Também deixa transparecer o quanto
Capitu se submeteu às suas vontades e tentou desviá-lo do
verme do ciúme que o corroía: “[...] Dali em diante foi cada vez
mais doce comigo; não me ia esperar à janela para não espertarme os ciúmes [...]” (DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS, p. 206);
“[...] E, sem se lhe dar das visitas, nem repara se havia algum
criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era
preciso pensar primeiro na minha vida. [...]” ( PUNHADO
DE SUCESSOS, p. 222); “As minhas cessaram logo. Fiquei a
ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a
gente que estava na sala [...]” (OLHOS DE RESSACA, p. 216).
AO VERME QUE CORRÓI O HOMEM, O CIÚME
Naquela busca incansável pela Verdade, ela se tornou idéia
fixa; havia algo de insano nesta busca, incomum para o leitor
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
de hoje talvez, mas muito compreensível para um narrador do
século XIX, melancólico, introspectivo, que queria a qualquer
custo encontrar justificativa para sua “casmurrice”. Construiu
sua “casmurrice” com bases bem sólidas, seu alicerce foi o
ciúme. Bentinho foi se transformando em Dom Casmurro aos
poucos, à medida que seu ciúme crescia. Tinha ciúme de tudo;
do cavaleiro que passasse à rua, dos braços de Capitu e até do
mar:
[...] O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas
voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e
olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava,
a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás.
Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. [...]
(O CONTRA-REGRA, p. 143); Escapei ao agregado,
escapei a minha mãe não indo ao quarto dela, mas não
escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás
de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à
cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços
com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela
tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez.
[...] (O DESESPERO, p. 144); [...] Eram os mais belos
da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento.
Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los,
por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas
alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando
vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de
os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles, as
mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro
não fui [...]. (OS BRAÇOS, p. 188-189); [...] Uma noite
perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração,
que me deu ciúmes (DEZ LIBRAS ESTERLINAS, p.
189-190).
Por fim, então, passou a ter ciúme de Escobar: “[...] saí, mas
voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do
corredor”. (EMBARGOS DE TERCEIROS, p. 202); e até do
cadáver de Escobar: “[...] Capitu olhou alguns instantes para
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira
lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (OLHOS
DE RESSACA, p. 217). Com o ciúme, cresce também a
desconfiança; e junto aos dois cresce Ezequiel:
Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o
corpo, a pessoa inteira, iam se apurando com o tempo.
[...] Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do
seminário e do Flamengo para sentar-se comigo à mesa,
receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã,
ou pedir-me à noite a bênção de costume. Todas essas
ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para
não me descobrir a mim mesmo e ao mundo [...] (O
DEBUXO E O COLORIDO, p. 227).
O capítulo citado anteriormente mais parece um descrever
de um narrador personagem no limiar da sanidade para a
loucura. E Otelo determina sua própria desgraça e a de
outros, que está a caminho. Bentinho encontra na peça de
teatro a gota que faltava para seu devaneio total: “Jantei
fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente
Otelo, que não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto
e estimei a coincidência [...]”; “[...] O último ato mostroume que não eu, mas Capitu devia morrer. [...]” (OTELO,
p. 231-232). Na época de Otelo, “um lenço bastou para
acender os ciúmes”; na época de Bentinho, ou Dom
Casmurro, “alguma vez há em que nem lençóis há, e valem
só as camisas” (p. 231), e hoje, para o leitor? O que seria
necessário para comprovar a traição de Capitu? A aparência
de Ezequiel seria suficiente?
Certo é que Dom Casmurro, o narrador, criou essa Capitu
infiel pelo seu ciúme, ou melhor seria dizer, pelo ciúme de
Bentinho: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória
já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada
naquela por efeito de algum caso incidente.[...]”
Mas, nem mesmo ele acredita tanto assim nessa Verdade:
“[...] Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: ‘Não
tenhais ciúme de tua mulher para que ela não se meta a
enganar-te com a malícia que aprender de ti’[...]”.
Por isso, precisa do leitor como seu cúmplice, como um
jurado seu: “[...] Mas eu creio que não, e tu concordarás
comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de
reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta
dentro da casca”.
Para a ficção, a traição de Capitu e Escobar é fato
comprovado. O narrador garante isso:
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica,
e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber,
que a minha primeira amiga e o meu maior amigo,
tão extremosos ambos e tão queridos também, quis
o destino que acabassem juntando-se e enganandome... A terra lhes seja leve![...] (E BEM, E O RESTO,
p. 250).
Para o leitor, a conclusão vai depender da relação
estabelecida por ele com o narrador: se foi de passividade
ou dialética. Machado que nos perdoe, a nós leitores mais
abusados do século XXI, mas se o leitor se constitui no ato
da leitura e é como leitura que um texto ganha sentido, novas
interpretações surgem e vão surgir sempre, e precisam ser
consideradas. É assim que a literatura renova-se a cada dia
e um texto literário mantém-se vivo através dos séculos.
Afinal, “a obra em si mesma é tudo”.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Klick
editora/O Globo, 1997.
Recebido em 14/08/2008
Aprovado em 21/09/2008
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
BRÁS CUBAS E A SOLIDARIEDADE DO
ABORRECIMENTO HUMANO
Vitor Cei Santos
Ufes
Resumo: Seguindo a máxima do personagem-narrador de
que “a obra em si mesma é tudo”, o artigo visa ler o romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas a partir dos recursos
oferecidos pelo próprio texto. Nesse sentido, pensamos uma
questão intrínseca à narrativa, a saber: o que é a solidariedade
do aborrecimento humano e qual a sua relação com galhofa e
melancolia, disposições que perpassam e impulsionam toda a
obra. A questão é pensada a partir de uma análise do capítulo
XLII, “Que escapou a Aristóteles”, em comparação com
outros trechos da obra.
Palavras-chave: Galhofa. Melancolia. Páthos.
Abstract: Following the maxim of the character-narrator that
“the work itself is everything”, the article aims to read the
book Memórias Póstumas de Brás Cubas from the resources
offered by the own text. Thus, an intrinsic question on the
narrative is thought: what solidarity of human annoyance is,
and what is its relation with mockery and melancholy, passions
that permeates and drives the entire book. This question is
analyzed from a reading of the chapter XLII, “Que escapou a
Aristóteles”, in comparison with other passages of the book.
Keywords: Mockery. Melancholy. Páthos.
O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis, que foi lançado em folhetim na Revista Brasileira em
1880 e publicado em livro em 1881, é uma das obras mais
estudadas do escritor com maior fortuna crítica da literatura
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
brasileira. Seguindo os acenos oferecidos pelos professores
Bernardo Barros Coelho de Oliveira e Fernando Mendes
Pessoa durante o curso “A obra em si mesma é tudo”: Leituras de
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, ministrado
no segundo semestre de 2007 no Programa de Pós-Graduação
em Letras da UFES, nossa proposta é ler a narrativa de Brás
Cubas a partir dos recursos oferecidos pelo próprio texto
ficcional, sem intermediação da fortuna crítica.
Nesse empreendimento de duplo risco, por seguir uma
orientação de narrador tão suspeito como Brás e por abrir mão
do auxílio proporcionado pela secular tradição de leitores e
pesquisadores machadianos, buscaremos pensar uma questão
intrínseca à estrutura narrativa da obra, a saber: o que é a
solidariedade do aborrecimento humano e qual a sua relação
com galhofa e melancolia, disposições que perpassam e
impulsionam toda a obra. Esta questão será pensada a partir
de uma análise do capítulo XLII, “Que escapou a Aristóteles”
em comparação com outros trechos da obra.
Tratando-se de memórias, refresquemos a nossa. Segue a
transcrição integral do sucinto capítulo XLII:
Outra coisa que também me parece metafísica é isto:
Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola
esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso,
e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou.
Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela,
- é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; - a
terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um
piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, - o
qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também
até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a
primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de
uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece
uma coisa que poderemos chamar - solidariedade do
aborrecimento humano. Como é que este capítulo
escapou a Aristóteles? (ASSIS, 1999, p. 114).
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
O narrador, galhofeiramente, apresenta um “conceito” que
teria escapado ao filósofo Aristóteles: a solidariedade do
aborrecimento humano. De metafísica, só há casca, verniz
intelectual e galhofa. A metafísica de Brás pode ser lida como
uma pilhéria com os medalhões, aqueles pseudo-intelectuais
apresentados por Machado no conto “Teoria do Medalhão”
(ASSIS, 2002).
Mas não apenas os medalhões são vítimas da pena da galhofa
de Brás Cubas, os grandes pensadores também são. O capítulo
XLII não é o único da obra em que o narrador zomba de
grandes personagens da história. A obra, que o defunto autor
caracteriza como “[...] supinamente filosófica, de uma filosofia
desigual, agora austera, logo brincalhona [...]” (ASSIS, 1999,
p. 37), se encaminha em ritmo digressivo e desconcertante,
conforme o capricho de Brás, desrespeitando qualquer norma
ou convenção de estilo, atacando a tudo e a todos.
No capítulo I, ele se compara a Moisés e afirma que sua obra
é mais galante que o Pentateuco; no VII, ele se transforma na
Summa theologica de Tomás de Aquino; no XXVII, a teoria
das edições humanas de Brás discorda de Pascal: o homem
não seria um caniço pensante, mas sim uma errata pensante.
Em toda a obra encontramos galhofas em relação à Filosofia
e à racionalidade, na forma de reflexões, teorias, categorias e
alegorias.
Em diversos capítulos a filosofia ocupa a função de verniz
intelectual, sendo um recurso para conceder aparência de
veracidade e erudição à narrativa do defunto autor. Os seguintes
títulos são exemplares: “A idéia fixa” (IV), “Razão contra
sandice” (VIII), “O filósofo” (CIX), “Filosofia das folhas
velhas” (CXVI), “O Humanitismo” (CXVII) e “Filosofia dos
Epitáfios” (CLI).
Galhofas à parte, a noção de solidariedade do aborrecimento
humano, que se encontra no cerne do capítulo XLII, aparece
como fundamental para a compreensão da narrativa de Brás.
Nesse sentido, o assunto que nos convida e reúne a pensar é a
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CONTEXTO
solidariedade do aborrecimento humano em sua relação com a
galhofa e a melancolia.
A solidariedade, segundo o dicionário Houaiss (2006),
é uma ligação mútua entre duas ou muitas pessoas que,
dependentes umas das outras, dividem igualmente entre
si as responsabilidades de uma ação, de uma empresa ou
negócio, respondendo todas por uma e cada uma por todas.
Aborrecimento, por sua vez, é um sentimento provocado
por situação, coisa ou pessoa desagradável, que oscila entre a
aversão e o horror, a lassidão e o tédio.
A solidariedade do aborrecimento humano é, pois, a reunião
dos personagens e da humanidade como um todo em torno
do aborrecimento. Tal disposição perpassa e impulsiona toda
a obra, sob diversas metáforas e metonímias: melancolia,
volúpia do aborrecimento, rabugens de pessimismo, flor da
hipocondria, flor amarela, borboleta preta, enxurro da vida,
baba de Caim, pão da dor e vinho da miséria. No início da obra,
em prólogo intitulado “Ao leitor”, o defunto autor resume a
natureza da obra em questão: “[...] não sei se lhe meti algumas
rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a
com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil
antever o que sairá desse conúbio” (ASSIS, 1999, p. 29).
Nossa hipótese é que a galhofa e a melancolia são os princípios
de composição ficcional da narrativa das Memórias Póstumas
de Brás Cubas. O páthos da melancolia é a tinta a partir do
qual o memorialista Brás Cubas escreve, enquanto a galhofa
é a estratégia narrativa, a pena que conduz a tinta ao papel.
Do conúbio entre ambas, como veremos, surge a idéia de
solidariedade do aborrecimento humano.
Podemos pensar que não foi por mero capricho que o defunto
autor mencionou Aristóteles. O filósofo grego analisa o páthos,
a paixão, no segundo livro da Retórica (ARISTÓTELES, 2000),
sendo o suposto autor do Problema XXX, 1 (ARISTÓTELES,
1998), texto dedicado à melancolia. A retórica, téchne que se
dedica ao domínio do discurso em todos os seus níveis, tendo
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
em vista obter a maximização dos seus efeitos sobre o público,
pode dispor o receptor em determinados páthos. Neste sentido,
a retórica intenta compreender e explicar como o discurso se
torna eficaz para persuadir o público.
Na Retórica, o filósofo afirma: “As paixões são todos aqueles
sentimentos que, causando mudanças nas pessoas, fazem variar
seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e prazer, como a
cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas,
assim como seus contrários” (ARISTÓTELES, 2000, p. 5).
Páthos, palavra grega que pode ser traduzida por paixão ou
disposição, remonta ao verbo páskhein, sofrer, suportar,
agüentar, indicando um humor que nos afeta e arrebata,
dispondo-nos em um modo de ser e estar a partir do qual
interpretamos a realidade. As paixões, inseparáveis do prazer
ou do sofrimento, embaçam ou aguçam nosso olhar, fazendo
variar nossos julgamentos e nossas ações. De acordo com
Aristóteles:
[...] com efeito, para as pessoas que amam, as coisas não
parecem ser a mesma que para aquelas que odeiam, nem,
para os dominados pela cólera, as mesmas que para os
tranqüilos, mas elas são ou totalmente diferentes ou de
importância diferente; aquele que ama tem por certo
que a pessoa sob julgamento ou não pratica ato injusto
ou comete delitos de pouca importância, e aquele que
odeia tem por certo o contrário [...] (ARISTÓTELES,
2000, p. 03).
O páthos da melancolia dispõe a pessoa em um estado afetivo
caracterizado por profunda tristeza e desencanto geral, vaga e
doce tristeza, prostração e depressão. Aristóteles, ao mesmo
tempo em que partia de uma concepção ética da virtude (areté)
que coloca o melancólico como um homem de gênio, alguém
excepcional, tinha como referência a concepção médica grega,
na qual a melancolia é um tipo natural de temperamento.
Etimologicamente, a palavra melancolia apresenta o sentido de
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
“condição de ter bile negra”, pois a medicina grega, ratificada
por Aristóteles, acreditava que o excesso do fluido corporal
conhecido como bile (kholé) negra (mélaina) provocava
torpor, terror, desânimo profundo, derramamento de sangue
no interior de um órgão, acesso de loucura e outros males
(ARISTÓTELES, 1998).
Por que Brás é melancólico? Ele afirma, no segundo capítulo,
que a humanidade é melancólica. Não se trataria, portanto, de
um sentimento subjetivo, mas sim de um páthos constituído
historicamente enquanto estrutura de relações de sentido no
qual habita(va) a humanidade (do século XIX). A tinta da
melancolia que marca a narrativa do defunto autor, mesmo
que seja própria do ser humano, ganhou sua cor ao longo
da formação de Brás Cubas enquanto homem (personagem)
situado em espaço e tempo definidos (pela narrativa).
O personagem Brás Cubas (1805-1869), que nasceu no Rio de
Janeiro três anos antes da chegada da família real portuguesa
ao Brasil, viveu durante o Primeiro Reinado, a Regência e
três décadas do Segundo Reinado, época de consolidação do
sistema escravista-patriarcal e do parlamentarismo oligárquico.
Enquanto tipo histórico ele é uma caricatura, pois possui em
grau exagerado - e deformado, jocoso - os caracteres distintivos
dos homens de sua época. De modo restrito, ele é caricatura
da elite brasileira que vivia na Corte no século XIX. De modo
mais amplo, ele é caricatura do homem ocidental moderno.
O homem moderno, com sua prática desenvolvimentista, agindo
como um torvelinho em perpétua desintegração e renovação,
convertendo o tempo em dinheiro, provocou a constante
sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal
e social, profanando e dissolvendo os valores anteriormente
estabelecidos. Instaurou-se, assim, no mundo globalizado, uma
racionalidade discursiva, abstrata, instrumental, burocrática e
opressora.
Livre para buscar o apoderamento do planeta, o homem
moderno loteou e estatizou ou privatizou as terras, oceanos e
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
céus, escravizando e subjugando os povos ditos “primitivos”.
O homem ocidental passou a impor seu modo de vida a todo
o planeta, tornando-se “senhor da terra”, para usarmos uma
expressão de René Descartes empregada por Brás Cubas
no capítulo XXVII (ASSIS, 1999, p. 94). Uma das poucas
conquistas que a modernidade não conseguiu alcançar foi a
imortalidade, que dinheiro nenhum pode comprar e exército
algum pode conquistar. A morte, a finitude da vida, justamente
aquilo que Brás Cubas, enquanto vivo, tanto temia.
No Brasil, aconteceu um fenômeno de hipertrofia da
modernidade, acrescida de uma dose de arcaísmo, visto que
o escravismo, abominação nacional, era uma empreitada
capitalista, abominação internacional. Se, como ensina Fredric
Jameson (2005), é impossível traçar uma história universal do
sistema capitalista, pois todos os caminhos para o capitalismo
são únicos e excepcionais, contingentes e determinados por
uma situação nacional singular, Machado de Assis já buscava
compreender as especificidades no papel do capital na
formação social brasileira.
Ao contrário da moderna burguesia ocidental, a escravocrata
aristocracia brasileira do período colonial, acostumada às
práticas de mandonismo e paternalismo, em que triunfam as
vontades e os caprichos individuais, não precisava trabalhar e
desprezava os que tinham que ganhar o pão com o suor do
próprio corpo. Nesse sentido, a elite brasileira reinventou o
capitalismo em um modo mais eficiente do que o original no
que se refere à acumulação de capital a partir de extração de
riquezas materiais e exploração de mão de obra. Dessa terra e
desse estrume nasceu Brás Cubas.
Rentista que vive da fortuna paterna, Brás retrata seus pares
como um conjunto de indivíduos vorazes, lascivos, egoístas
e genocidas, que perseguem, num ritual de aparências e
hipocrisia, os próprios interesses e prazeres. Os valores que lhe
foram inculcados em sua formação familiar foram resumidos
no capítulo “O menino é o pai do homem”:
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CONTEXTO
Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha
educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral
viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. [...] O que
importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa
aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das
aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade,
domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse
estrume é que nasceu esta flor (ASSIS, 1999, p. 55-57).
Para uma classe em que, sob o domínio do capricho, triunfa
a vontade individual, o único limite que não pode ser
ultrapassado é a morte. Esta é mais forte que a vontade. Por
isso, hipocondria, melancolia. Por sinal, a morte da mãe de
Brás é uma das poucas passagens do livro sem galhofa. Após
a morte da mãe, ele afirma: “Renunciei tudo; tinha o espírito
atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em
mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de
um cheiro inebriante e sutil” (ASSIS, 1999, p. 89).
Até ali, o voluntarioso Brás Cubas, desmedido, egoísta, defensor
de um individualismo extremista, buscava desmedidamente a
satisfação de seus caprichos, encontrando poucos limites que o
aborrecessem. O maior de todos os limites que encontrou até
então foi a finitude da vida. Se diante da sociedade ele podia
tudo, por ter dinheiro e poder, diante da morte ele não podia
nada. A morte da mãe é um momento crucial na formação do
personagem-narrador, que o leva ao páthos da melancolia.
Como contraponto à tinta da melancolia, Brás escreve suas
memórias com a pena da galhofa. A galhofa, no capítulo XLII e
em toda a obra, é um estratagema narrativo de auto-afirmação,
sendo um modo de sobrepujar a melancólica decadência da
vida. Assim, o narrador visa purificar suas memórias do cheiro
da flor amarela. Neste sentido, também visa criar complacência,
angariando cumplicidade e simpatia do leitor. Por isso, o chiste
com Aristóteles, Marcela e Virgília.
Dessa pena e dessa tinta, da interpenetração de melancolia
e galhofa, nasce a idéia de solidariedade do aborrecimento
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
humano apresentada no capítulo XLII. Para alcançarmos
nosso objetivo de compreender esta idéia, precisamos analisar o
movimento das três bolas: Marcela, Brás e Virgília.
Marcela, a primeira bola, cortesã espanhola que dá título ao capítulo
XV, foi a primeira paixão do jovem Brás. Típica personagem
feminina machadiana, ambiciosa e dissimulada, ela submete os
homens apaixonados aos seus interesses materiais. O jovem Brás,
seduzido, tornou-se cliente do comércio dos corações e endividouse, gastando a herança paterna, que ele devia crer ilimitada, para
poder presentear a cortesã. A relação de Brás e Marcela, que durou
quinze meses e onze contos de reis, faz parte da lógica interna da
obra, por revelar, de modo dissimulado, os valores do narrador.
O relacionamento entre Brás e Marcela é coerente com o meio
doméstico em que ele foi criado. Entretanto, Bento Cubas, o pai,
sobressaltado com a desmedida do filho, aproveitou a ocasião
como pretexto para enviar Brás para estudar na Universidade de
Coimbra, destino previsível, visto que esta instituição era uma das
mais procuradas pela elite brasileira dos séculos XVIII e XIX.
Segundo o historiador José Murilo de Carvalho (2004, p. 23):
“Os brasileiros que quisessem, e pudessem, seguir curso superior
tinham que viajar a Portugal, sobretudo a Coimbra. Entre 1772
e 1872 passaram pela Universidade de Coimbra 1242 estudantes
brasileiros”.
Para um rentista da Corte que ganhou de berço fortuna, certo
poder e o título de “doutor”, o diploma de bacharel era mera
insígnia social. O estudo universitário era válido por seu caráter
ornamental, pois, numa nação de analfabetos, propiciava insígnias
de poder e nomeada: o título de doutor ou bacharel, o diploma e o
anel de grau. Este caráter é confirmado por Brás:
Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a
Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu
decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto.
Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio,
dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas,
para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a
fraseologia, a casca, a ornamentação... (ASSIS, 1999, p. 87).
Bacharel não se sabe em que área, pois o narrador não diz, o que
não faz diferença, pois a Universidade lhe atestou em pergaminho
uma ciência que “estava longe de trazer arraigada no cérebro”
(ASSIS, 1999, p. 81), Brás Cubas formou-se mesmo em “Teoria do
Medalhão”, na mesma escola de Janjão:
Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos
jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os
discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento.
[...] Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de
mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais,
as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória
individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não
obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono
agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício
te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o
pensado (ASSIS, 2002, p. 37).
Após o retorno da Europa, o pai de Brás tentou arranjar o
casamento do filho bacharel com a filha de uma influência política
da Corte, a fim de impulsionar a carreira política do jovem bacharel.
“Demais, a noiva e o parlamento são a mesma cousa...”, afirmou
Bento Cubas (ASSIS, 1999, p. 95). A eleita foi Virgília, filha do
Conselheiro Dutra. Já no primeiro encontro entre os Cubas e
Dutra (cap. XXXVII), este afirmou que a candidatura de Brás era
legítima – legitimidade da hipocrisia.
Virgília, a terceira bola, no capítulo XXVII recebe um retrato
moral do narrador: atrevida, por se julgar melhor que a maioria e
não se submeter facilmente; voluntariosa, por seguir seus próprios
caprichos, sem reflexão; faceira, pela extrema vaidade; ignorantona,
por ser pretensiosa e ignorante; devota, por ser religiosa e temente
ao pai e a Deus.
No capítulo XXXVIII, “A quarta edição”, o narrador relata
um encontro inesperado com Marcela, num dia em que fora
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• 145
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS
convidado para jantar na casa do Dutra. Brás, com o vidro do
relógio quebrado, entra numa ourivesaria pensando tratar-se de
uma relojoaria. Lá encontrou Marcela, proprietária do local. De
início não a reconheceu, pois seu rosto estava amarelo e cheio
de lesões cutâneas provocadas por bexiga (varíola). Porém, em
seus olhos ainda ardia a flama da cobiça. A paixão do lucro
era o verme roedor de sua existência. Os sinais de decrepitude
chocaram o olhar de Brás.
Na ocasião, o sentimento do narrador por sua antiga paixão era de
repulsa. Em seu coração bateu o dobre de finados, soar do sino
que dá volta sobre o eixo a fim de anunciar a morte de alguém. A
antiga cortesã, página virada na vida de Brás, teria que se contentar
com o amor de uma menina de quatro anos. Maricota, a menina,
vizinha de Marcela, amiga e admiradora da atual comerciante, sente
tanto carinho pela mulher que a chamou de “Santa Marcela”. O
protagonista, incapaz de emocionar-se ou compadecer-se com a
dor alheia, não consegue compreender o carinho que a menina
sente por Marcela.
Brás, ao sair da ourivesaria, meteu-se apressado na carruagem que
o levaria para a residência de Dutra. O atraso fez com que Virgília
o recebesse com mau humor e desdém. Este acontecimento foi o
início da ruína dos planos de Bento Cubas. O arranjo se desfez, de
fato, com a chegada do impetuoso Lobo Neves que, em poucas
semanas, arrebatou Virgília e a candidatura (capítulo XLI).
No capítulo XLII, inconformado com os limites que a vida impõe,
Brás estava mergulhado em aborrecimento e melancolia: em luto
pela mãe, enojado com o estado decrépito de Marcela, ameaçado
de perder a noiva e o cargo de deputado, perdas que se concretizam
no capítulo seguinte. Por isso, a noção de uma solidariedade do
aborrecimento humano que toca os extremos sociais: Marcela,
Brás e Virgília.
A solidariedade do aborrecimento humano é, portanto, a ligação
mútua entre Marcela, Brás e Virgília, personagens que dividem
entre si as conseqüências de certas ações e acontecimentos
desagradáveis. Esse enlace provoca em Brás a oscilação entre a
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
aversão e o horror, a lassidão e o tédio, culminando no capítulo
CLX, “Das Negativas”, em ele nos relata tudo o que não foi e não
fez, gabando-se de não haver transmitido “a nenhuma criatura o
legado de nossa miséria” (ASSIS, 1999, p. 251).
Para compreendermos o movimento das três bolas também é
fundamental termos em mente uma passagem do capítulo “O
recluso” (XLVII): “Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir
todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem
mais do que modos de ser da minha afeição interior” (ASSIS, 1999,
p. 120). Brás, que como é sabido cultiva de modo exagerado a sua
vontade individual, pensa apenas nos próprios valores e interesses,
a despeito dos de outrem. Compreendendo o mundo a partir do
ponto de vista exclusivo de seu próprio interesse, o narrador vê
Marcela e Virgília apenas como formas de seu próprio modo de
ser.
Esse modo de ser dá a entrever uma vida marcada pela inação típica
dos melancólicos. Os páthos do aborrecimento, da melancolia e da
hipocondria, perpassam e impulsionam toda a narrativa do defunto
autor, constituindo a tinta negra com a qual a pena da galhofa
escreve a obra. Se o páthos da melancolia mostra-se determinante
para a configuração do Brás Cubas narrador, a galhofa também
serve de fio condutor a toda sua narrativa, com toda a ambigüidade
que isso implica.
A galhofa, princípio formal da narrativa, tem o intuito de romper
com a gravidade das mortes relatadas, que aparecem aos montes
durante o livro. São muitos os falecimentos de personagens
e as mortes simbólicas, dentre as quais os fracassos de Brás em
casar com Virgília, em conseguir uma cadeira no Parlamento, em
alcançar a celebridade e em trazer a público o seu emplasto antihipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.
Enquanto recurso narrativo, a galhofa não apenas oferece leveza ao
peso de gravidade do medo da morte, mas também faz gracejo com
as ações imorais do brejeiro Cubas, justificando ou dissimulando
seus inúmeros atos perversos e corruptos, proporcionando-lhe
ainda ares de superioridade, negaceando seu inconformismo
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• 147
diante da finitude.
A noção de solidariedade do aborrecimento humano, apresentada
no capítulo XLII, é uma digressão ácida que ratifica o conúbio
entre galhofa e melancolia, pois na medida em que a galhofa corrói
toda esperança – herança de Pandora, mãe e inimiga - acaba por
intensificar os traços da tinta da melancolia. Para o melancólico
Brás Cubas, se todos nós vamos morrer, não há esperança. Mas,
por melancólica sede de nomeada, como não alcançou fama em
vida, tornou-se defunto autor para fazer galhofa da vida e da morte.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema
XXX, 1. Trad. Jackie Pigeaud/Alexei Bueno. Rio de Janeiro:
Lacerda Editores, 1998.
ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Trad. Isis B. B. da
Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de.Teoria do Medalhão. In:
Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo
caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário eletrônico Houaiss da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 01 CD-ROM.
JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a
ontologia do presente. Trad. Roberto Franco Valente. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Recebido em 31/08/2008
Aprovado em 18/09/2008
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
DOSSIÊ
GUIMARÃES ROSA
Tem uma verdade que se carece
de aprender, do encoberto, e que
ninguém não ensina: o beco para
a liberdade se fazer. (Grande
sertão: veredas)
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
TERCEIRAS MARGENS, TRAVESSIAS
MISTURADAS (GUIMARÃES ROSA E
NELSON PEREIRA DOS SANTOS: FAMÍLIA E
ABANDONO EM DOIS OLHARES)
Alexandre Moraes
Ufes
As pontes são inúteis, a menos que nos cubram
totalmente a distância entre as margens – mas
no “viver juntos” a outra margem está envolta
numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém
deseja dissolver nem tenta afastar. Não há como
saber o que se vai ver quando (se) a névoa se
dispersar – nem se de fato existe alguma coisa
encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou
será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão
criada pela neblina, uma fantasia da imaginação
que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que
passam? (Zygmunt Bauman, Amor líquido)
Resumo: Analisando o texto “A terceira margem do rio”, de
João Guimarães Rosa e também o filme homônimo, de Nelson
Pereira dos Santos, vamos discutir a noção de pai e de amigo
bem como sua quebra a partir das transformações psicológicas
e sociais com início em finais dos anos 1960. Verifica-se como
a noção de pai, tornada líquida, cria o abandono e a deriva
presentes na obra rosiana, como se exemplifica também em
diversos autores literatura da América Latina.
Palavras-chave: Pai. Amigo. Estrutura familiar. Modernidade
líquida. Abandono.
Abstract: Analyzing the text “A terceira margem do rio”,
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 151
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
by João Guimarães Rosa and also the movie with the same
name, by Nelson Pereira dos Santos, we discuss the notion of
father as well as the notion of friend and the its break since
psychological and social changes in the beginning of the
sixties. We study and check how the notion of father when
made liquid creates abandon in Rosa’s work, as we exemplify
and also in many authors of Latin American literature.
Keywords: Father. Friend. Family structure. Liquid modernity.
Abandon.
1
Discutir, ainda que de forma muito breve, “A terceira margem
do rio” constitui uma temeridade e um conforto em navegação
discursiva carregada de névoa, de paragens deslocadas, de
repetições e de possíveis miragens críticas. Todas, assim bem
ao gosto borgeano, mais ou menos incompletas e, quando
não, equivocadas. A ousadia de discutir texto tão fartamente
estudado da literatura brasileira, aliás, texto considerado um “dos
melhores contos” de nossa literatura, pode trazer os costumeiros
resultados, quer dizer, ordenamos o já dito nas investigações
críticas que cada autor canônico tem acrescentadas à sua
obra. Ainda assim, as águas turvas da ousadia nos trazem um
conforto: podemos nos amparar nas coisas ditas, imagens
críticas de uma verdade que pede para ser esmiuçada, estudada,
recolocada, como se essa possível verdade pudesse submeterse a ordem e estrutura de um dogma.
Sobre a “A terceira margem do rio” e sobre Guimarães Rosa,
já sabemos, temos de passar quase que obrigatoriamente pela
“linguagem”, pela “loucura”, “pelo lugar “metafísico” do
discurso e do texto. Como diria Derrida, “um texto só é um
texto se ele esconde, ao primeiro olhar, ao primeiro que aparece,
a lei de sua concepção e a regra de seu jogo”1. Ora, nesta linha,
os textos roseanos são legitimamente textos para uma infinita
Cf. SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1976, p. 93.
1
152 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
discussão (aí sim, o infinito é um lugar palpável), e vivem de
esconder, revivem na tarefa de negar e ofertar, refazem aos
olhos segundos e terceiros um jogo que esconde marcas,
regras, degraus de construção, diversidade de possibilidades,
enfim, em “A terceira margem do Rio”, o texto se refaz e, se
não necessariamente discordamos da crítica quando parece
reafirmar a cada estudo, “a linguagem, a loucura, a metafísica”
e questões sociais ambíguas, também não podemos deixar de
assinalar que muitas e variadíssimas margens ainda não foram
visitadas e, quando parecem ter sido, essas margens outras
ficam deslocadas sob o manto avassalador dos estudos sobre
a linguagem e seus sistemas e, desta forma, o texto se esconde
mais uma vez. O que tentamos aqui é surpreender o texto
na sua impossibilidade de desvelamento, nos sistemas que se
fecham e se abrem a teorizações, quer dizer, etimologicamente,
a visões que se sobrepõem, se repetem, se desdizem e se
refazem também ao sabor de uma turva navegação em neblinas.
Com Bauman, perguntamos: essa “terceira margem” do título
do conto e do filme é mais uma armadilha? Em outras palavras,
existe lá onde parece estar? Existe lá na quebra do jogo dual, das
duas margens, essa terceira, essa outra margem a que desejamos
compreender? Existe realmente uma margem terceira fora das
margens que o texto coloca? Quando pensamos no cinema
de Nelson Pereira dos Santos, a pergunta ainda se faz mais
urgente.
Se no filme há, como dizem os teóricos do cinema, “um modo
de endereçamento do texto fílmico”, ou seja, uma forma aberta
de perguntar e conceituar “quem este filme pensa que você é”2,
podemos afirmar que os textos, de um modo geral, perguntam
sobre seus possíveis consumidores, a quem são endereçados
e se interpelam de formas diversas nas mais variadas épocas.
O destinatário do texto, já se pode observar, como nos dizem
ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: uma coisa
de cinema; uma coisa de educação. In: SILVA, Thomaz Tadeu da (org). Nunca fomos humanos. Nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.
25 e sg.
2
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• 153
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
os estudos sobre cinema e literatura, na feitura do texto (não
apenas o fílmico), sobretudo na estrutura mesma com que o
texto vai se apresentando à leitura de cada época. O “modo
de endereçamento de um texto” ou “destinatário”, o “lector
in fábula” de um texto é um conceito que se apresenta como
leitura social de um texto. Dessa forma, o que Guimarães
Rosa e Nelson Pereira dos Santos se perguntaram quando
construíram seus textos? A que “terceiras margens” e a que
leitores endereçavam seus trabalhos?
Nesse ponto vamos dividir nossa discussão em duas partes.
Na primeira, vamos nos perguntar sobre a “terceira margem”
e possíveis significados, nos afastando tanto de estudos sobre
a linguagem quanto de estudos sobre a loucura e, ainda assim,
nos perguntaremos sobre o mal-estar da modernidade e da
família colocados e disseminados pelo filme e pelo conto.
Na segunda parte, vamos tentar discutir uma questão que
nos parece central, o abandono nos dois textos, o fílmico e o
literário.
2
Se há, como pensava Freud3 e, depois de maneira diversa,
Bauman, uma espécie de “mal-estar” da civilização moderna e da
assim chamada “modernidade líquida”4 ou “pós-modernidade”
que perpassa a estrutura e comportamento social5 e, também,
o que vai sendo descrito e encenado nos textos aqui discutidos,
um dado logo sobressai aos olhos no filme e no conto: um
enorme mal-estar pela via do esfacelamento de conceitos,
impulsos e formas de ação cobre os textos com seu manto de
FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. Rio de Janeiro:
Imago, 1986.
3
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
4
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
5
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
estranhamento e de problemas.
Um pai inseguro de seu lugar com uma “resposta suspensa”6,
antes assentado num rigoroso lugar de família, num momento
em que a família produtiva, com terras, empregados, uma
mulher “por trás” que se fazia importante no lugar doméstico
de decisões, ou seja, um modelo de família em que ter filhos era
muito lucrativo, resolve abandonar, toda a estrutura patriarcal,
sem deixar de lançar um olhar de compreensão ao filho que, a)
num momento primeiro gostaria de ficar com este pai e seguir
o seu caminho e, b) depois, ficar no seu lugar e, ainda, c) ao
final, recusa este lugar impossível da figura paterna. Esse lugar
inseguro do pai, aliás, o lugar de pai, com toda a genealogia
já conhecida do conceito social no ocidente, passando por
diversas legislações, algumas que nos parecem francamente
cômicas hoje — lembremos da legislação que estabelecia a
figura do pai na Roma imperial — é um lugar antes de qualquer
outra afirmação possível, inseguro. Insegurança de per si e
estrutural. O lugar do pai e do conceito de pai no ocidente
moderno tem sido de trepidação e deslizamento.
A figura do Pai tem sido a daquele que goza e possui esse
lugar violento do gozo e a da formulação de suas regras e do
domínio ameaçado por outro, o filho, e paradoxalmente, a
continuidade da figura de pai e a “alegria” desse tipo de pai
estão justamente nesse domínio violento. O pai roseano que
nos aparece, no dizer do texto, “sem alegria e sem cuidado”,
é o pai cujo lugar fracassado não mais impulsiona um devir
estrutural do movimento de formação e que não se sustenta
mais como figura paterna.
Guimarães Rosa tematizou em muitos de seus textos esse pai
fracassado. Lembremos, a título de exemplo, de “Conversa
de bois”, em Sagarana, em que encontramos um pai sem
lugar, sem alegria, semimorto, ou natimorto. O pai, também
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras
estórias. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 32. “Nosso pai suspendeu a resposta.”
6
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
lá, “cumpridor”, mas que se impossibilita de continuar
cumprindo os desígnios do lugar que precisa com urgência
ocupar. A “decisão do adeus”, em “A terceira margem do rio”,
quer dizer, a saída desse pai rosiano da estrutura latifundiária
e familiar da modernidade agrária brasileira, não apenas indica
uma mudança maior e geral que se iniciava nos anos finais da
modernidade, quando os textos roseanos foram escritos, bem
como evidencia o lugar de fragilidade do conceito de pai nesse
momento de mudança também captado por Nelson Pereira
dos Santos de forma instigante no filme em que aparecem os
objetos da modernidade chegando ao latifúndio isolando e
tornando obsoletas figuras e conceitos tradicionais do mundo
agrário e social brasileiro.
O pai de “A terceira margem do rio” é pai desse menino ou
passa, num primeiro momento, de pai a amigo e, depois, num
segundo segmento, de amigo a pai novamente até perder
qualquer configuração tanto de amigo quanto de pai? Por outras
palavras: se a autoridade do amigo é vivida na sua distância e
dispersão, ou seja, o amigo se faz autoridade quando introjeta
algo do mesmo que há no outro e essa introjeção é consentida,
o pai desse menino-narrador, tanto no texto rosiano quanto
no filme de Nelson, é também amigo, não mais violentando,
mas fazendo-se disperso e desejado e não mais concorrente
na seqüência da continuidade sistêmica. A perda da autoridade
faz iniciar a quebra da noção de pai como autoridade imposta,
dominante, dominadora e patriarcalista. O pai que vai à busca
de uma possível “terceira margem” é um antes-pai, um anti-pai
e um proto-amigo. A autoridade se desfaz para se dispersar
no desejo. Se o pai é o motivo do desejo do filho, o lugar
inseguro do pai determina um lugar ainda mais frágil de filho.
O pai rosiano de “A terceira margem do rio” não consegue
continuar o pai nem latifundiário, nem “o dono das mulheres”,
como diria Lévi-Strauss, nem tampouco consegue manter os
vestígios de sua autoridade.
Nem loucura nem um efeito de linguagem; uma margem
terceira, alternativa: é a margem do amigo possível, num dado
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CONTEXTO
momento do texto. O filho cujo frágil lugar é colocado em
tensão, também perde seu lugar de filho. A tensão que se instala
não é a da loucura, tampouco a da doença estigmatizada ou
mortal, mas a da perda dos lugares de pai e de filho: ambos vêem
seus lugares desfazendo-se no mal-estar dominante em que as
estruturas familiares começam por não mais responderem a
ações e impulsos de um sujeito que não cabe em seus limites
rígidos e modernos. Guimarães Rosa aponta a mudança (ou a
falência) da noção de pai inserida nos finais da modernidade
brasileira e, também, no latifúndio e nas comunidades rurais.
Nem campo nem cidade, loucura ou uma margem distante das
margens estabelecidas pela família e seus lugares muito rígidos.
Essa terceira margem que nos faz voltar a Guimarães Rosa e
ao cinema de Nelson Pereira dos Santos é aquela que estava
se colocando com a transformação das relações familiares nos
finais da modernidade. A tensão dessa margem, não menos
insegura, como poderia nos lembrar Bauman7 uma vez mais,
isto é, aquela da dissolução da família lucrativa, da figura do pai
totêmico, encontra-se dispersa em todo o texto de Guimarães
Rosa e no filme de Nelson Pereira dos Santos. O movimento
imposto — se é que podemos usar o verbo impor no caso —
ao filho pelo pai é a única marca ou vestígio último de sua
“autoridade” paterna e esse movimento, não se pode esquecer,
dá-se como recusa de autoridade, como refutação de um estarsendo pai e pela sua saída do lugar de pai e do domínio dos
negócios agrários da família e da formação e continuidade
familiares. Muito menos que “infinito”, esse “eu, rio abaixo, rio
a fora, rio a dentro — o rio” circunscreve, sobretudo, fluxos
descontínuos de uma autoridade que se perde e de um desejo
que persiste, delimitações de um filho que não mais se coloca
e que também perdeu uma quase possível figura de amigo8.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços
humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
7
VINCENT-BAUFFAULT, Anne. Da amizade. Uma história do
exercício da amizade nos séculos XVIII e XIX. Trad. Maria Luiz Borges. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Esse “rio”, que parece infinito com suas margens tantas e
todas inscritas num tecido social que se desfazia nos limites do
latifúndio e da natureza, coloca um sujeito inerte, sem futuro
desenhado ou com um desenho trágico nas mãos.
O pai fraco e aquele forte que se opõem em Grande sertão:
veredas, por exemplo, já anunciavam a discussão ficcional de
Rosa dessa “figura metafórica” (no sentido aristotélico, quer
dizer, “algo que indica uma coisa que é outra”) do pai9. A
figura do pai — sempre inserida nos discursos freudianos e
lacanianos — nos textos de Rosa, parece indicar tanto um
impulso originário, como controvertidamente queria Freud,
quanto uma situação social em que os atores e os conceitos
a que são submetidos estes atores na dramaturgia social estão
em movimento.
Para ficarmos com apenas três exemplos na obra rosiana,
vejamos a figura do pai de Diadorim, em Grande sertão: veredas.
Este pai nos aparece, ainda quando morto, sobrevoando a
ação e o impulso de ação da personagem que se mimetiza para
dar vazão histérica ao desejo de pai e do pai. O Pai do menino
Tiãozinho, em “Conversa de bois”, de Sagarana, ao contrário,
é um pai fraco, vencido, mas eternamente presente, mesmo
quando já morto. Diferentemente destes dois pais, a figura
de pai e do pai de “A terceira margem do rio” é este pai que
sobrevoa, também, os impulsos formadores do personagemnarrador-filho bem como as ações (histéricas, diriam muitos)
desse filho enfraquecido sem a figura enorme do pai que se
esvazia enquanto pai dando lugar a algo como um “amigo”,
um igual que se vai e que só volta a ser pai no momento final
do filme e do conto.
Neste momento final dos textos (o filme e o conto), o filhonarrador, perde definitivamente esta figura de pai em um dos
momentos em que o paradoxo mais e melhor se coloca no texto.
Em “A terceira margem do rio”, a recusa do pai ausente, mas
AZEVEDO, Ana Vicentini. A metáfora paterna na psicanálise e na
literatura. Brasília: Edunb/São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.
9
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CONTEXTO
evocado, de conhecer o neto, revendo assim a continuidade da
família, não apenas desaponta o filho-narrador, mas também
o faz perceber algo muito complexo e que na ficção rosiana
parece um movimento a mais.
O filho-narrador que anteriormente desejou ir com o pai
para esta terceira e desconhecida margem e, simultaneamente,
ainda anseia o lugar do pai na canoa e no rio neste momento
final, percebe que não poderia ter ido com o pai, já que este
pai se afigurava como amigo, um “igual do igual da gente”,
no dizer rosiano de Riobaldo e, por outro lado, também não
pode ocupar o possível lugar do e de pai, uma vez que não
existe pai para ser substituído nem tampouco figura para
ser colocada como totêmica em introjeção e perpetuação de
autoridade. Desaparece, desse modo, a figura do pai como
impulso (possivelmente originário, diria Freud) de uma forma
social e de uma psiquê desenvolvidas em torno e à sombra de
uma figura que, forte ou fraca, estaria ali naquela região de
turbulências onde se formam as relações e as figurações da
ação e do impulso. O impulso e ação em torno da figura de pai,
portanto, desaparecem.
A possível concordância do pai em aceitá-lo na canoa, fora
afastada pelo temor e ansiedade do filho, quer dizer, esse filhonarrador que perde o amigo e também a figura do pai passa
a duvidar de sua humanidade depois de seu enorme fracasso.
Pergunta-se o fracassado filho depois de todas as perdas:
“Sou homem, depois desse falimento?” A pergunta do filhonarrador aponta a própria falência e o desejo de morte que
instala, no movimento social da formação da figura de pai, a
descontinuidade feita única no seu sentido de pessoa passando,
então, a conferir a este si-mesmo um ethos não mais de filho
tampouco de amigo e muito menos de pai ou de figuração
de pai, daí a perda do sentido de humanidade e de pessoa
inscritos após sua constatação de perdas múltiplas. O instinto
de destruição não mais se volta no sentido de dar continuidade
a uma figura e de ocupação de lugares e posições, mas volta-se
contra um si-mesmo, criando uma ética da perda e da destruição
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
da noção de pessoa: “sou homem (...)?”.
3
Quando no filme homônimo do texto de Guimarães
Rosa, Nelson Pereira dos Santos ao introduzir os objetos
da industrialização (tratores, marcas de multinacionais,
movimentação de operários, transformação do ambiente
ecológico etc.) toda a violência que subjaz inscrita no tecido
narrativo rosiano, são também percebidas em “A terceira
margem do rio”, de Rosa, os anúncios nada tímidos de um tipo
claro de transformações nas formas sociais. Nelson enfatiza a
mudança que se processa na noção de pai, mas vê isto como
fruto da estrutura social formadora de noções, de um ethos e de
uma pragmática inscritas no texto. Se no filme, vários contos e
seus segmentos de eventos são misturados, um dado não passa
despercebido: a mudança que já apontava Guimarães Rosa nas
formas sociais e o surgimento de um tipo de personagem não
pouco comum na América Latina: a personagem itinerante,
sem rumo, sem destino, que vaga, sem pai, talvez em desespero
em um espaço sem delimitação, alternativo, terceiro. Veja-se a
título de lembrança a personagem Larsen, em “El astillero”,
narrativa do uruguaio Juan Carlos Onetti ou Oliveira e Traveller,
na Rayuela, de Julio Cortázar, mais contemporaneamente, as
personagens de Chico Buarque de Holanda em seus romances
e de João Gilberto Noll, para ficarmos com alguns poucos
exemplos na América Latina em dois tempos.
Todos esses personagens vagam e perambulam de um
lado para outro indicando formas anteriores e ainda não
solidificadas aqui de um mundo que se desfaz em algumas
de suas importantes formações e vai se tornando “líquido”.
Personagens abandonados ao destino de um descaminho que se
dá como única saída de caminho. Vagar e seguir sem seguir, estar
na mais completa ausência, desejar o que não se pode desejar,
tornando o desejo mais impossível do que poderia imaginar
Lacan, quer dizer, tornando o desejo sua própria ficção.
160 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
O Pai de “A terceira margem do rio” só poderia vagar.
Abandonando uma estrutura que não mais suportava, indigente
de si mesmo numa ordem opressiva e substituída por outra não
menos opressora, “insatisfeito com as margens”10, só lhe resta
como caminho o descaminho que também trilha, na cidade, a
personagem Estorvalino, de Chico Buarque, em Estorvo, para
não esquecermos de nosso exemplo atrás colocado.
O mundo passa a não ser mais uma intuição e prosseguimento
da experiência que, também esta, não mais pode ser transmitida,
ou seja, é este mundo de experiências impossivelmente
transmitidas que faz deslizar a noção de pai inscrita nos textos
de Rosa e Nelson. A errância desse pai é também a forma mais
sólida do que se esvaneceu e, tornando-se “líquido”, passa a ser
a configuração do e de pai, num país, bom lembrarmos, em que
ser pai é uma problemática não pouco expressiva e em que o
abandono e as perdas do pai e do filho estão inscritas, inclusive,
nos folhetins populares como angústia remanescente de um
tempo em que a família nuclear lucrativa ainda poderia dar-se
como instituição mantenedora da transmissão da experiência.
O que este pai rosiano de “A terceira margem do rio”
experimenta é sensação de abandono inscrita como matriz
de outras formas, ainda “líquidas”, muito dolorosas e
colocadas nas mudanças estruturais do capitalismo que vem se
desenhando desde os anos sessenta em que o texto foi escrito.
O abandono liquefaz a experiência tornando-a ora impossível,
ora outra forma ainda não inteiramente dada no momento
narrado da quebra e transformação. A terceira margem rosiana
se afigura muito mais uma “terceira perna” problemática,
onde se vê a errância, a ausência de transmissão da experiência
nunca passada como um dado constituinte e que se efetiva
como recusa ou impossibilidade.
“A terceira margem do rio” está ali, à frente, líquida,
GOULART, Audemaro Taranto. A insatisfação com as margens.
In: DUARTE, Lélia et alii. Outras margens. Estudos da obra de Guimarães
Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 75.
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
dissolvida e dissolvendo uma forma social de pai e de mundo,
deslocando figuras e afastando os desejos ainda para mais
longe da “idealidade intensiva” de todo desejo. O filhonarrador, abandonado pelo pai que se abandona e também é
abandonado, duvida de sua experiência humana, não possui
o outro como experiência sensível, mas somente a perda da
noção deste outro como experiência. O abandono é a perda
da noção de outro como experiência dada e concretizada e a
errância do pai (também presente no desejo do filho), dá-se no
momento da quebra de um mundo social, de sua formação e
das mudanças que seriam feitas e estavam se dando.
Rosa insere um personagem itinerante como marca de um
mundo novo e trágico em que a experiência pode ser o silêncio,
ou seja, um mundo que se dá e está se ofertando assim, como
nos diz o filho-narrador, “no que num engano”. Esse pai que
não foi “a parte nenhuma”, mas que “não voltou”, constrói na
errância a sua possibilidade de experiência e tem no abandono
sua falência e sua novidade.
O paradoxo, como medida de mundos novos e margens
outras e terceiras inscritas ali num tecido social de figuras e
figurações que se desintegravam, como vemos no filme de
Nelson e no texto de Rosa; a família se inscrevendo num
“mundo líquido”, no qual mergulhar e viver, antes de significar
abandonar-se e abandonar simplesmente pode ser, sobretudo,
não ter “ido a nenhuma parte” e, por outro lado, não indicar
“loucura” ou “um lugar metafísico”; ao contrário, indica antes
transformação e quebra, margem terceira que se faz diante das
novas proposições ao humano e seu vir a ser.
Recebido em 16/06/2008
Aprovado em 15/07/2008
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
GRANDE SERTÃO: VEREDAS: ROMANCE E
ENSAIO – PAR EM PAR
Wilberth Salgueiro
Ufes
O senhor espere o meu contado. Não convém
a gente levantar escândalo de começo, só aos
poucos é que o escuro é claro. (Riobaldo)
Resumo: Leitura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa,
considerando certos pares suplementares: deus e demo, fala
e escrita, totalidade e ambigüidade, amor e amizade, ficção e
vida etc.
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.
Amor. Amizade.
Abstract: Analyze of Grande sertão: veredas, by Guimarães
Rosa, considering certain suplemental pairs: god and demon,
speak and written, totality and ambiguity; love and friendship,
fiction and life etc.
Keywords: Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Love.
Fiendship.
A certa altura de seu ensaio “Jagunços mineiros de Cláudio
a Guimarães Rosa”, Antonio Candido afirma: “(...) todos
nós somos Riobaldo, que transcende o cunho particular do
documento para encarnar os problemas comuns da nossa
humanidade, num sertão que é também o nosso espaço de
vida. Se ‘o sertão é o mundo’, não é menos certo que o jagunço
somos nós” (Candido, 1995, p. 168).
Mas o que será ser – sendo Riobaldo? O que é, quem é
Riobaldo, esse que, segundo o ensaísta, somos nós? Ser
Riobaldo pertence a todos, ou a poucos? Pode-se escolher
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
não ser Riobaldo, ou tal acontecimento é inexorável? Se é
Riobaldo sempre ou só às vezes? Como, sendo sangue, podese ser a experiência de ser um outro ser de papel, personagem
que se materializa graficamente na página e dela escapa,
virtualizando-se em nosso pensamento, imaginário, corpo? Se
Bovary – em outro contexto, decerto – vinha das entranhas de
Flaubert, o que estou dizendo ao dizer “Riobaldo c’est moi”?
Ainda: Diadorim c’est moi? Mais: Hermógenes c’est moi?
Afinal, quem é esse eu-Riobaldo?
Em Roland Barthes por Roland Barthes, Roland Barthes fazse passar por Roland Barthes, inscrevendo esse outro no
punctum da escrita, entre a reminiscência memorialística, a
reflexão teórico-crítica e o gesto ficcional, declarando, por
vezes, não saber, nem querer saber, quando um desses atos
prevalece sobre outro, fundando uma hierarquia. “A intrusão,
no discurso do ensaio, de uma terceira pessoa que não remete
entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade
de remodelar os gêneros: que o ensaio confesse ser quase um
romance: um romance sem nomes próprios” (Barthes, 1977,
129).
Torcendo a frase de Barthes, sugiro, para inaugurar nova
lógica, que Grande sertão confesse ser quase um ensaio: um
ensaio com nomes ficcionais. E o que Guimarães Rosa ensaia
ali, por meio de seu alter ego (Barthes por Barthes, Rosa por
Riobaldo), a ponto de considerá-lo, no surrado diálogo com
Günter Lorenz, “meu irmão”? Posso, então, com imodesto
orgulho, se sou Riobaldo, declarar-me também irmão de
Guimarães Rosa? O que nos uniria aos três? Diria, por nós:
interesses e afetos. (Por isso, não posso ser, eu, Diadorim, nem
Hermógenes, nem Sô Candelário, nem Quelemém: interesses
e afetos outros, que me escapam.)
Interesses e afetos que se dão – digo sem temor: sempre –
em movimentos (como a vida, o mundo, o tempo, o sertão,
a narrativa, a subjetividade é movimento). Rosa, Riobaldo,
eu, nós somos migração, superposição, transformação;
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
somos passagem, acréscimo, mudança de forma; somos
passagem-migração de fluxos, somos acréscimo-superposição
de máscaras, somos mudança de forma-transformação de
desejos. Interesses e afetos que se dão, portanto, sempre em
movimento: no fluir do fluxo, no contínuo mascarar-se, nos
desejos renascidos (o quereres).
O que se ensaia num romance são movimentos. Sabemos,
desde os primeiros passos, que qualquer movimento altera a
relação entre (entre peças, personagens, atitudes, perspectivas
etc.). Nesse devir louco, é tão-somente impossível algum tipo
de reflexão “parada”, que pare o jogo para o pensamento
se pôr em ação. Eis um paradoxo insolúvel, posto que todo
pensamento é movimento e, por princípio, irredutível ao
congelamento de qualquer ordem sígnica.
Estamos assim: posso ser Riobaldo porque, por uma torção
no sistema de gênero, tomei o romance de Rosa como ensaio
que pensa o movimento dos interesses e afetos dos fluxos,
das máscaras e dos quereres do personagem – máquina com
que me identifico no ato mesmo da incorporação que dele
faço. Experimento-me Riobaldo, seres de papel e sangue em
convulsão. E tudo que flui, acresce, muda supõe lugares. Não
de um lugar a outro, como abandono, mas de um lugar e outro,
como suplemento. O movimento é já suplemento.
Por estratégia de exposição, e para enganar o paradoxo do
“pensamento parado”, elejo alguns pares (lugares), para
tornar visível o movimento que fazemos, Riobaldo e eu, nós.
“Sendo a figura da oposição a forma exasperada do binarismo,
a Antítese é o próprio espetáculo do sentido” (Barthes, 1977,
p. 148). Em linguagem de em dia-de-semana, os pares que
veremos a seguir – para verificar o movimento que Riobaldo
faz comigo quando nele me finjo – devem funcionar numa
relação suavizada, como uma ponte que vai e vem, não numa
relação unívoca, como uma pista de mão única.
Um alerta: a fortuna crítica sobre a obra de Rosa, em
particular Grande sertão: veredas, a cada vez que devasta uma
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
área, outra renasce, qual fênix, enquanto aquela descansa para,
oportunamente, revigorar-se. Mesmo a crítica, vê-se, compõese de movimentos (com alguns incêndios criminosos). Isso a
torna – a obra literária – clássica, porque, com Calvino, “Um
clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem
de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele
para longe” (Calvino, 1993, p. 12).
Não há novidade nos pares que proponho, a não ser se
pensados em conjunto e no trânsito entre aquilo que posso
entender acontecer com Riobaldo e comigo, seu irmão.
Trazendo para minha vida alguns dos impasses daquele que
– por um intrincado processo de contigüidade entre ficção
e realidade, e entre personagem e pessoa – elegi meu par,
testo a eficácia de seu efeito em mim, testo a atualidade de
seus dilemas, testo até onde pode ir minha imaginação,
testo a hipótese de poder me fingir ser ele, testo um tipo
de saber pouco usual nos trâmites acadêmicos: “O saber
instável é o que participa da atividade das significações, é
aquele que se move, percorrendo outros lugares e superfícies,
aproximando paisagens díspares, acionando-as. Encontra-se
menos próximo da ideologia – pois esta, reflexológica, acata
a representação – que da escritura, indecidível ela mesma.
O saber instável da escritura consiste numa prática que tem
como valor a produção prazerosa” (Santos, 1989, p. 27). Dirá
Roberto Corrêa à frente: “A instabilidade vem do rompimento
do contrato, do rompimento do contrato da transmissão e da
recepção tradicionais” (p. 37).
O espetáculo dos pares apresenta-se ao meu bel-prazer. Serão
14 pares escolhidos quase que ao léu. Vamos a eles, Riobaldo
e eu, sabendo-nos, pela força das circunstâncias e dos
propósitos, inevitavelmente aforismáticos e, às vezes, mesmo
epigramáticos:
1. Deus e demo: Riobaldo revive, de cabo a rabo, essa dúvida
arcana: “(...) o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma...
(...) A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador...” (ROSA,
1994, p. 308)11. Problema menos de fé que de cultura, faço
minha a “intuição esclarecida” de Riobaldo, seres perpassados
por mitos ancestrais num mundo desencantado.
2. Senhor e leitor: a existência de Riobaldo se dá na medida em
que há um silencioso feed-back, marcado por insinuações de
caráter fático. O ouvinte de Riobaldo age como age um leitor
diante de um livro: vivo. Ora há reticente desconfiança ­– “O
senhor ri certas risadas...” (p. 11), ora deferência – “O senhor
pode rir: seu riso tem siso.” (p. 112), deferência que retorna
­– “Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade.” (p.
262). Este senhor sem nome que nos lê, despegado de toda
baixa direção religiosa, “é homem de pensar o dos outros como
sendo o seu” (p. 67), sem imposição, mas sem subserviência.
É nessa troca de falas e silêncios que se pode aferir, entregar,
pedir: “O senhor escute meu coração, pegue o meu pulso.” (p.
371) A felicidade necessariamente clandestina da confiança.
3. Prosa e poesia: Riobaldo é narrador e poeta. Isto, por si,
justifica o seqüestro dos gêneros. “Revirei meu fraseado. Quis
falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o
que eu sincero queria – como em fala de livros, o senhor sabe:
de bel-ver, bel-fazer, e bel-amar.” (p. 127) Riobaldo, como eu,
gosta da rosa no Rosa; como Barthes, tem uma doença: “vê a
linguagem” (Barthes, 1977, p. 171).
4. Folhetim e romance: peça única, não desfiada, o romance
todo perfaz uma vida. Uma vida, como o romance, se compõe
de pequenas histórias. Quantas Marias Mutemas passaram
ao nosso lado sem que percebêssemos? E a quantas demos
ouvidos?
5. Sertão e cidade: Willi Bolle (1994) já mostrou a cidade no
sertão rosiano, pela figura mediadora e impressionante de Zé
Bebelo. Desmantela-se assim esse abismo que certa crítica
quis, um dia, entre o regional (leia-se o pitoresco, o roceiro, o
Nas citações seguintes do romance, indicar-se-á no corpo do texto apenas o número da página entre parênteses.
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
interiorano) e o universal (leia-se o urbano, moderno, civilizado).
A diferença nunca esteve na exterioridade do local, mas no
preconceito mal disfarçado do paternalismo, coisa que o romance,
com o bom senso costumeiro, refuta: “(...) cidade acaba com o
sertão. Acaba?”. (p. 111)
6. Sistema e fragmento: “Um sistema é um conjunto de conceitos.
Um sistema é aberto quando os conceitos são relacionados a
circunstâncias, e não mais a essências.” (Deleuze, 1992, p. 45).
Escapando às fronteiras duras dos sistemas fechados do tipo
hegeliano, uma obra, tal como uma vida, não se perde pelo
fragmento: “escrever por fragmentos: os fragmentos são então
pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o
meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (Barthes,
1977, 101) O fragmento, o estilhaço, é, a seu modo, um peculiar
sistema. “Só aos poucos é que o escuro é claro”, declara Riobaldo.
7. Saber e não-saber: a arte de não-saber é pura sabedoria. O amor,
por exemplo. Foge. Fulge. Ele: “Diadorim me veio, de meu nãosaber e querer. Diadorim – eu adivinhava.” (p. 200) Ela: “Riobaldo,
hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber
o que sabia...” (p. 339) Saber muito até atrapalha.
8. Mandar e obedecer: ser inquieto, com freqüência vem-lhe a
sensação de que não deve obedecer, ignorar a hierarquia (do chefe,
do amigo, do amado, do demo, de deus); noutras vezes, tomalhe o corpo a recusa em mandar. Porque, a mandar e a obedecer,
sempre há um outro. E o ser só que é o homem, que é Riobaldo,
que somos nós, não quer o prévio. Quer o lance, a aposta, o
acontecimento: aí, sim, mandar e obedecer se naturalizam, como
o vôo de uma borboleta – sem ordens.
9. Jagunço e letrado: “Inda hoje, apreceio um bom livro,
despaçado.” (p. 15) Em “A fala agônica”, Hansen analisa esse
fração de frase, mostrando como na enunciação a palavra, circular,
“roda em todos os sentidos, deslocando o que diz enquanto fixa,
fixando o que desloca enquanto diz” (Hansen, 2000, p. 52). Um
leitor inapto, que não entenda isso, será ele o “ser jagunço”, inepto,
que atribui ao personagem.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
10. Totalidade e ambigüidade: há quase que por unânime uma
decisão entre os exegetas de Grande sertão: é obra calcada na
ambigüidade, para o que não falta a deliciosa, redundante e
intransitiva frase: “Tudo é e não é...” (p. 13) Nesse sentido, porém,
menos que ambíguo, tudo tende para o total, porque inclui, soma,
suplementa – é da ordem do mais (“e”), não da dúvida (“talvez”).
Deus e Demo! “Vivendo o narrado e narrando o vivido”! (Galvão,
1986, p. 111) Reinaldo e Diadorim!
11. Infinito e finitude: entre o travessão inicial, “—”, nascimento
de “nonada”, e o infinito que perpetua a “travessia”, "∞”, está o
real. “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe
para a gente é no meio da travessia.” (p. 46) O real não está nem
aí pra gente. Por isso se diz, com fundo coercivo, “cair na real”,
abreviando-se a intangível palavra realidade. Riobaldo sabe: “No
real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.
Melhor assim.” (p. 59)
12. Presente e passado: atar as pontas da vida, bentinhos que somos
querendo entender nosso passado-capitu. “São tantas horas de
pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.”
(p. 121) Passam os personagens a morar na retentiva, aumentando
a população fantasmática de nossas retinas tão fatigadas.
13. Amor e amizade: “quem há de negar que esta lhe é superior?”
Riobaldo, eu. Não há mais nem menos, porque “amor é a gente
querendo achar o que é da gente”. (p. 234) E amigo “é que a
gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é”. (p. 119).
Quando se encontram, “Amizade de amor surpreende uns sinais
da alma da gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete
serras?” (298) Amizade é ética, amor é descoberta.
14. Ficção e vida: Como todos os pares, vida e ficção se querem e se
mascaram – por se quererem. Decididamente indecidível quando
uma e quando outra. O romance, a memória, o ensaio de Rosa, de
Riobaldo, do senhor e desse leitor: quem poderá decantar?
Riobaldo faz com o demônio o chamado pacto nu, sem contrato
escrito – bastaram as impressões. Por mim, chego ao fim não
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
sabendo o que sabia: Riobaldo c’est moi? Não. Riobaldo c’est nous,
como queria Candido? Também não. Riobaldo é, sim: como cada
um de nós é, irrepetível em sua existência ficcional, tanto quanto
somos, ele também, ímpares nesse acontecimento que se chama –
que se chama a vida.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução:
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977.
BOLLE, Willi. Grande sertão: cidades. In: IV Congresso ABRALIC.
Literatura e diferença. São Paulo; ABRALIC, 1994, p. 1065-80.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,
1977.
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução: Peter Pál
Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a
ambigüidade no Grande sertão: veredas. 2 ed. São Paulo: Perspectiva,
1986. (Debates, 51)
HANSEN, João Adolfo. O O: a ficção da literatura em Grande
sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Ficção completa,
2 v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Biblioteca luso-brasileira.
Série brasileira)
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Para uma teoria da interpretação:
semiologia, literatura e interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1989.
Recebido em 15/09/2008
Aprovado em 10/10/2008
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
AS RAZÕES DO JOGO EM “DUELO”
Andréia Delmaschio
UFRJ / IFES
Resumo: No conto “Duelo”, a partir de uma vendeta mortal
cometida por engano, inicia-se uma nova contenda, esta entre
dois duelistas que nunca se encontram, distraídos da sua
trilha bélica e lúdica, ora pelos achaques de saúde, ora pelas
pistas falsas que espalham e que acabam funcionando como
auto-engano. Acompanhamos a ironia dessas pistas e rastros,
constituintes de um jogo de duplo engodo que perverte a
lógica cartesiana simples, e cujo paroxismo consiste no fato
de os rivais se cruzarem pelo caminho sem que o percebam,
criando-se assim uma atmosfera complexa, eivada de uma
lógica suplementar e paradoxal – um jogo de morte que acaba se
revelando como a razão de vida dos adversários.
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Sagarana. Duelo.
Abstract: In the short story “Duel”, from a mortal vengeance
committed by mistake, it starts a new dispute, this one between
two duelers who had never met each other, distracted from
their war and playful affair, either by the health ailments or by
the false clues that are spread and end up working as a selfmistake. We follow the irony of these clues and traces, that
constitute a game of double lure which perverts the simple
cartesian logic, and whose paroxysm consists of the fact that
the rivals meet through the path without realizing that, creating
a complex atmosphere, contaminated by a supplemental and
paradox logic – a death game which ends up revealing itself as
the opponents’ reason of life.
Keywords: Guimarães Rosa. Sagarana. Duelo.
De acordo com o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
palavra “duelo” designaria qualquer tipo de luta ou oposição
entre duas partes. Considerando-se essa definição, o conto
de Guimarães Rosa intitulado “Duelo”, do livro Sagarana, de
1946, desdobra, a partir do título, uma ponta de ironia, já que a
narrativa se desenvolverá, até o final, em torno dos primórdios
e na preparação sempre frustrada do encontro, sem que as
personagens envolvidas se enfrentem para a verdadeira luta,
indo chegar a termo por meio de outros elementos, estranhos
ao combate, as vidas de ambos os contendores.
O enredo daquelas duas vivências (os “duelistas” são Turíbio
Todo e Cassiano Gomes) se dá a partir de um ponto de contato
que é D. Silivana, a mulher de “grandes olhos bonitos, de cabra
tonta” (ROSA, 1884, p. 160)12. Turíbio, seu companheiro, é um
fabricante de selas furtado ao trabalho pela crescente abertura
de estradas de ferro e de rodagem na região onde nascera, às
margens do Rio Borrachudo, no qual ainda pesca, na ocasião
em que tem início seu desentendimento com Cassiano.
Vejamos como ele é descrito na abertura do texto:
Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, era
seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas,
e chorava sem fazer caretas; palavra por palavra: papudo,
vagabundo, vingativo e mau. Mas, no começo desta
estória, ele estava com a razão. Aliás, os capiaus afirmam
isto assim peremptório, mas bem que no caso havia
lugar para atenuantes. Impossível negar a existência
do papo; mas papo pequeno, discreto, bilobado e
pouco móvel – para cima, para baixo, para os lados – e
não o escandaloso ‘papo de mola, quando anda pede
esmola’... Além do mais, ninguém nasce papudo nem
arranja papo por gosto: ele resulta das tentativas que o
grande percevejo do mato faz para se tornar um animal
doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há, também
cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais
A partir desta, as citações que vierem sem referência bibliográfica
no corpo do texto foram retiradas do conto “Duelo”. Conferir: ROSA, João
Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
12
172 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
ou menos, de tatus. E, tão modesto papúsculo, incapaz
de tentar o bisturi de um operador, não enfeava o seu
proprietário: Turíbio Todo era até simpático: forçado
a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo
elegante. Não tinha, porém, confiança nesses dotes,
e daí ser bastante misantropo, e dali ter querido ser
seleiro, para poder trabalhar em casa e ser menos visto.
(...) Agora, quanto às vibrissas e ao choro sem visagens
podia ser que indicassem gosto punitivo e maldade, mas
com regra, o quanto necessário, não em excesso.13
Cassiano Gomes, o seu rival, é ex-soldado, afastado do serviço
militar por ser portador de problemas cardíacos. E é no leito
de D. Silivana que seus destinos se cruzam. Vamos à ocasião
do encontro:
Mas, por essa altura, Turíbio Todo teria direito de queixarse tão-só da sua falta de saber-viver; porque avisara à
mulher que não viria dormir em casa, tencionando chegar
até ao pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pernoitar em
casa do primo Lucrécio, no Dêcàmão. Mudara de idéia,
sem contra-aviso à esposa; bem feito!: veio encontrála em pleno (com perdão da palavra, mas é verídica a
narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado e
descuidoso, dos idílios fraudulentos.14
Assim, retornando mais cedo da pescaria, Turíbio, um homem
de hábitos silenciosos e previsíveis, vê, sem ser visto, sua mulher
na cama com o soldado. Vê, silencia e espera o momento certo
para a vingança. Alguns dias depois, moralmente apoiado nos
códigos de honra da localidade, que pregam a morte do traidor
por parte do traído, dirige-se, devidamente armado, à casa de
Cassiano Gomes, onde, graças a enorme semelhança, acerta
pelas costas o irmão do soldado, com um tiro na nuca. Tem
início, então, o duelo irrealizável entre os dois.
13
ROSA, 1984, p. 157.
14
ROSA, 1984, p. 158.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 173
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Esse “duelo”, cujo desfecho jamais se dará, vemo-lo aqui como
um complexo jogo em que, perseguindo-se mutuamente a cavalo
pelo sertão, cada um lança pistas que o outro irá interpretar.
As pistas, rastros e sinais anunciados oralmente a pessoas que
passam pelas estradas formam uma longa estratégia mutável e
são por vezes falsos, com o intuito de desviar o inimigo; por
outras são verdadeiros, e lançados no afã de que o rival, ao
tomar conhecimento deles, interprete-os como sendo falsos,
num jogo de duplo engodo que terá resultados imprevisíveis,
conduzindo o conflito ao paroxismo mesmo de os rivais se
cruzarem pelo caminho sem que o percebam:
Mas, nesse depois, deu que um dia Cassiano, surgindo
nas Traíras, escutou conversa de que o outro estava
na Vista Alegre, aonde viera ter, aquerenciado, com
saudades da mulher. Cassiano Gomes tirou suas
deduções e tocou riba-rio, sempre beirando o Guaicuí
(...) isso enquanto Turíbio Todo, um pouco além
norte, fazia uma entrada triunfal em Santo Antônio
da Canoa, onde ainda ousou assistir, muito ancho, às
festas do Rosário, com teatrinho e leilão. Dançando
de raiva, Cassiano fez meia-volta e destorceu caminho,
varejando cerradões, batendo trilhos de gado, abrindo
o aramado das cercas dos pastos, para cair, sem aviso,
no meio dos povoados tranqüilos dos grotões. Mas
eram péssimos os voluntários do serviço de informes,
e, perto do Saco-dos-Cochos, eles cruzaram, passando
a menos de quilômetro um do outro, armados em
guerra e esganados por vingança. (...) e, se parassem
e pensassem no começo da história, talvez cada um
desse muito do seu dinheiro, a fim de escapar dessa
engronga, mas coisa isso que não era crível nem
possível mais.15
No jogo intrincado de perseguição, chega mesmo o momento
15
174 •
ROSA, 1984, pp. 163-164.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
em que, no afã de enganar Turíbio Todo, Cassiano Gomes
engana a si próprio, espalhando aos que encontra pelo caminho
uma pista falsa que acaba por se mostrar, no fundo, verdadeira.
Depois de muito campear atrás do inimigo, o soldado anuncia
que irá se recolher, esperando que assim Turíbio baixe guarda
e possa ser pego de surpresa. Ele segue, dizendo àqueles que
encontra: “- É... Deste jeito eu não arranjo nada, e fico me
acabando à toa... É melhor eu voltar p’ra casa e deixar passar
uns tempos, até que ele sossegue e pegue a relaxar...”16. O
narrador esclarece: “E Cassiano Gomes estava enganando
a si próprio, pois na realidade se sentia de repente cansado,
porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício
cardíaco começara a dar sinal de si.”17
O conjunto dessas estratégias põe em xeque, entre
outras, questões como a do valor de verdade. Inexistindo
aprioristicamente, ela apenas se perfaz como tal a cada nuance
dos movimentos dos duelistas, dependente da intenção
que os move, de sua interpretação das pistas deixadas e do
ponto de vista que então os guia. No desenrolar desse jogo
a imprevisibilidade dos atos funciona como uma metáfora
da vida, enquanto a morte, como única certeza, coroa o seu
desfecho vindo de onde menos é esperada.
Num jogo de morte de tal modo imbricado exclui-se já de
início uma lógica cartesiana simples, multiplicando-se, por
detrás de certa aparência de simplicidade, diversos elementos
complicadores. O narrador anunciara essa atmosfera complexa
ao substituir a lógica excludente de relações de causa e
conseqüência, praticada pelos capiaus, por uma outra inclusiva,
relativa, suplementar e paradoxal. Vejamos:
E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam
muito de relações de efeito e causa, leviana e
dogmaticamente inferidas: Manuel Timborna, por
exemplo, há três ou quatro anos vive discutindo com
16
ROSA, 1984, p. 171.
17
ROSA, 1984, p. 171.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 175
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
um canoeiro do Rio das Velhas, que afirma que o
jacaré-do-papo-amarelo tem o pescoço cor de enxofre
por ser mais bravo de que os jacarés outros, ao que
contrapõe Timborna que ele só é mais feroz porque
tem a base do queixo pintada de limão maduro e
açafrão. E é até um trabalho enorme, para a gente
sensata, poder dar razão aos dois, quando estão
juntos.18
Do mesmo modo que é impossível chegar a uma conclusão, no
caso dos jacarés, escolhendo uma das assertivas e apontando-a
como causa (é bravo porque tem o papo amarelo ou tem o
papo amarelo porque é bravo?), também no caso desse outro
papudo (Turíbio Todo) a busca de uma razão simples para suas
atitudes impossibilita a opção. Ele é “vingativo e mau” (palavras
do narrador) porque fora traído? Ou será o oposto? Ou ainda
– pois não é de se desprezar a relação entre “papudos” que o
texto oferece: É da existência do papo que lhe vem o mal estar
com o entorno ou será o defeito físico antes um sintoma da
sua inadaptação? Note-se a descrição do dia da pescaria:
Tinha sido para ele um dia de nhaca: saíra cedo para
pescar, e faltara-lhe à beira do córrego o fumo-de-rolo,
tendo, em coice e queda, de sofrer com os mosquitos;
dera uma topada num toco, danificando os artelhos
do pé direito; perdera o anzol grande, engastalhado
na coivara; e, voltando para casa, vinha desconsolado,
trazendo apenas dois timburés no cambão. Claro que
tudo isso, sobrevindo assim em série, estava a exigir
desgraça maior, que não faltou.19
Nesse começo, antes mesmo de descoberto o envolvimento
da companheira com Cassiano, já está instalada a idéia da ação
violenta dirigida, no caso, contra uma totalidade negativa do
entorno. Impossível portanto querer achar causa simples para
o seu trajeto vingativo apenas no fato de encontrar Cassiano
18
ROSA, 1984, p. 158.
19
ROSA, 1984, p. 158.
176 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
na cama com D. Silivana. Se se for em busca de uma causa ou
origem para os acontecimentos, caminhar-se-á a cada vez um
passo atrás, encontrando-se lá, na suposta origem, sempre uma
outra origem, que é antes conseqüência de uma outra.
A humilhação longa e silenciosamente curtida por ele pelas
desvantagens físicas de que é portador, a clareza com que o
contato com Cassiano Gomes traz à tona esses e outros traços
seus, o ócio a que se entrega contra vontade, por ausência
de trabalho (a abertura das estradas de rodagem reduzem a
demanda de selas, produto do seu trabalho), a má-consciência
pela sua suspeitada falta de “saber-viver”, no dizer do narrador,
e os próprios acontecimentos desagradáveis que o contemplam
naquele dia são todos determinantes para o que sucederá e se
substituem numa linha de suplementaridade.
O fato de ser Cassiano e não um outro o traidor de Turíbio
serve ainda para enfatizar a condição miserável do seleiro, já que
o outro é um militar (o que denota respeito, naquele contexto)
um homem bonito e que, afinal, lhe conquista a companheira.
Na cena em que Turíbio os avista na cama, a descrição que faz
do arsenal de que se cerca para ele a imagem de Cassiano, em
comparação com seu parco armamento, que se resume a uma
“faquinha de picar fumo e tirar bicho-de-pé”20 bem mostra a
humilhação a que é submetido. O contraste entre a situação
social dos dois terá grande participação no fomento do ódio
já crescente do seleiro pelo ex-militar: “(...) o outro era o
Cassiano Gomes, ex-anspeçada do 1º pelotão da 2ª companhia
do 5º Batalhão de Infantaria da Força Pública, onde as gentes
aprendiam a manejar, por música, o ZB tchecoslovaco e até
as metralhadoras pesadas Hotchkiss; e era, portanto, muito
homem para lhe acertar um balaço na testa, mesmo estando
em sumaríssima indumentária (...)”21.
Lógica e razão são termos que, por vezes sinônimos, têm ali
aplicações que fogem diligentemente ao uso comum. A palavra
20
ROSA, 1984, p. 159.
21
ROSA, 1984, p. 159.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 177
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
“razão”, por exemplo, desliza, no texto, entre diferentes
acepções: há a “razão” inicial de Turíbio Todo para sentir-se
humilhado e aquela que lhe é agregada socialmente para vingarse perante a ofensa moral sofrida, “razão” que o leva a desviarse e, num erro, eliminar o irmão do verdadeiro “devedor”. Há,
em contrapartida, as “razões” que permitem a Cassiano Gomes
revidar a morte indevida do irmão. Há também as “razões” de
adaptação e luta que justificam, a princípio, tanto a conduta de
Turíbio quanto a de Cassiano, e que depõem contra a idéia de
uma razão una e mesmo de uma apriorística da razão, que teria
de se basear na idéia de uma lei também una e a priori posta.
Há ainda a tal “razão” das mulheres, que o narrador defende,
ironicamente, como devendo primar sobre as demais (notese ainda que é do contato com D. Silivana que provêm as
“razões” da contenda, justificativas para a morte, e que acabarão
se mostrando, positivamente, como a “razão” de vida dos
adversários). As diferentes acepções do termo se misturam no
texto. A ausência de uma razão apriorística ou transcendental
amplia indefinidamente o jogo e seu campo de atuação. Por
isso não há uma verdade ou lógica simples a defender ou
interpretar. Nada para além das regras do jogo.
Cassiano Gomes, aquele que “primeiramente” é marcado para
morrer (e que traz a lembrança da caça, foneticamente, no
nome), carrega em si o gérmen da morte, latente na doença que
o persegue, e representa, por meio desse traço, toda a categoria
humana, incluído aí também o seu algoz ou caçador. Eles
seguem no seu jogo letal, como numa roleta russa, adiando e
adiantando a morte, fugindo dela e para ela, que cedo ou tarde
se mostrará, se não como resultado específico do combate,
provindo de algo exógeno a ele ou de dentro de cada um deles.
Apesar da série de contrastes que a priori delegariam a Turíbio
uma condição irremediavelmente inferior com relação a
Cassiano, o texto, pela visada altamente reversível que propõe,
irá recuperar e transformar uma certa predestinação que muitas
vezes as preconceituações fazem supor e mantêm. É através de
178 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
um traçado que reconhece o poder como algo que se exerce
antes que se possui que o conto de Rosa o faz.
Esse conceito de poder, formulado pelo pensador francês
Michel Foucault, é trazido aqui para o acompanhamento do
trajeto dos personagens por considerarmos que as diferentes
estratégias por eles desenvolvidas durante o seu “duelo” não
cristalizam o poder num centro emanador, nem distribuem
em escalas hierárquicas os “poderosos” e os “sem-poder”,
estabelecendo sim jogos de poder e não lugares de poder,
algo que os jogadores bem intuem. Daí que a desconfiança
de cada um sobre as pistas deixadas pelo inimigo se amplie
até quase passarem paradoxalmente a considerar, de forma
consciente, nos atos de defesa, a importância do acaso. Uma
verdadeira aporia: as regras do jogo são inescapáveis, ou seja,
tudo se dá sempre e somente dentro de uma certa ordem de
jogo; no entanto é tamanha a imprevisibilidade das normas
que o governam, criadas sempre no devir do próprio jogo
pelos duelistas, que o conjunto de regras tangencia o acaso e
mesmo ameaça com a completa dispensabilidade das normas,
anulando assim o sistema. Somente desse modo se explicam
situações como aquela em que os jogadores se buscam até que
se encontrem, e então, de forma surpreendente, não se vêem.
Assim sendo, se uma grande diferença de situação social
separa Turíbio de Cassiano, a partir do momento em que seus
destinos se cruzam, arma-se um outro contexto, em que de
alguma forma eles se igualam, porque são outras as regras que
norteiam agora essa vida dentro da vida, que os une no seu
quase-duelo e, para nós, no texto. Pode-se pensar mesmo que o
verdadeiro “acerto de contas” já se dera, de forma paradoxal,
no erro cometido por Turíbio ao matar o irmão de Cassiano,
erro que afinal deixa o soldado livre para a vida, o que nesse
caso significa a possibilidade de lutar até a morte, e “de igual
para igual”. Somente a partir desse engano inaugural é que se
inicia de fato a perseguição entre eles, contraditoriamente.
Desde então, Turíbio e Cassiano passam a ser, de certo modo,
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 179
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
um personagem do outro, nesse teatro mortal, e a se guiarem
por pistas que, de muito voláteis e armadas sobre tantos
artifícios, resultam quase tão pouco úteis ao perseguido e ao
perseguidor quanto crer no puro acaso. A um tempo em que
o narrador apresenta ao leitor os personagens, no contexto
interno à narrativa, cada um dos protagonistas faz do outro
uma espécie de criação sua, pelo modo como tece comentários
injuriosos acerca do rival junto aos transeuntes nas estradas
em que segue à sua procura. Assim o percurso de cada um é
traçado, de certo modo, pelo inimigo, nas pistas – verdadeiras
ou falsas – que lhe deixa, pistas às quais a criatura tenta, apoiada
em suas interpretações, escapar. Por fim, o fato de cada um
perseguir, no/do outro, a própria vida, faz com que assuma
mais plenamente a função de criador/destruidor.
No desfecho, cada um se revela, enfim, o personagem prófugo
do outro, escapando-lhe quase que completamente ao traçado,
para viver sua própria vida - e sua morte: Cassiano morre de
“causa natural”, burlando o desfecho lúdico, e o outro, no meio
do jogo - e da narrativa -, parte para São Paulo, indo morrer, ao
retornar, pelas mãos de um terceiro. Vejamos o momento em
que Turíbio Todo resolve abandonar a luta:
Depois, uma turma de sujeitos alegres o interpelou.
Iam para o sul, para as lavouras de café. Baianos sãopauleiros. E um deles: -Eh, mano veélho! Baâmo
pro São Paulo, tchente!... Ganhá munto denheêro...
Tchente! Lá tchove denhêro no tchão!... Sentiu
saudades da mulher. Mas, era só por uns tempos.
Mandava buscá-la, depois. Foi também.22
Para o leitor que acompanhara até então cada lance da
perseguição mútua, é surpreendente a atitude de Turíbio,
de partir com uma tropa que encontra no caminho, tendo
trocado com seus componentes apenas algumas palavras e
deixando pelo meio a contenda com Cassiano. No entanto
o fato não é incompreensível, já que, de forma não de todo
22
180 •
ROSA, 1984, p. 175.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
consciente, o que ele procurava mesmo era uma razão para a
vida. Considere-se também que nesse ponto o jogo já vinha se
tornando ora monótono, ora arriscado demais, segundo sua
própria avaliação, o que poria em perigo seu motivo maior até
então: a busca paradoxal de uma mudança para a vida, ainda
que por meio da morte, sua e/ou de outrem.
Nesse ínterim, e quando o embate entre os dois ainda
prosseguia, é que o sistema estabelecido com a perseguição
perde verdadeiramente qualquer possível centro: Turíbio segue
para São Paulo e Cassiano chega a esquecer por completo o
motivo que conduzia seu ódio contra Turíbio, ou seja, a morte
do irmão. Apenas quando já bastante debilitado pela doença é
que, certo dia, Cassiano Gomes se lembra do falecido: “E ficava
calado, recontando os caibros, negros de picumã, e espiando
a mexida das aranhas, que jogavam fios-a-prumo para subir e
descer. E, pela primeira vez nesses meses, se lembrou do irmão
assassinado, realizando ser por causa da morte do mesmo que
ele andara em busca de Turíbio Todo”.23
Turíbio, ao retornar de São Paulo, chega transformado. Nas
palavras do narrador: “Saltou do trem com uma piteira, um
relógio de pulseira, boas roupas e uma nova concepção do
universo”24. Retorna com saudades da mulher, disposto a tudo
esquecer e portando mesmo um discurso pacifista. E é aí, no
hiato do ódio, razão desarrazoada que insuflava o seu viver,
que ele é pego de surpresa e, desarmado, recebe a morte pelas
mãos de um capiau franzino em cuja companhia perfizera
parte do caminho e a quem já então se afeiçoara bastante.
Esse capiau, chamado Vinte-e-Um, que se apresentara como
compadre do falecido Cassiano Gomes, fora ajudado pelo
soldado já moribundo, ocasião em que lhe prometera, como
último desejo, vingar a morte do irmão, dando fim ao tal
Turíbio Todo.
23
ROSA, 1984, p. 180.
24
ROSA, 1984, p. 182.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 181
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Na narrativa, Vinte-e-Um é a prova maior do alcance dos
lances daquele jogo e da sua perda de centro: jogada a primeira
pedra, impossível conceber que seu raio de ação permaneça
no entorno dos principais jogadores sem contaminar outros
elementos, que serão envoltos também nessa rede ao mesmo
tempo lúdica e bélica. O próprio nome do personagem Vintee-Um, que designa também um jogo de cartas, reforça a
relação com o jogo e faz retornar a imagem do baralho, que
aparece mais de uma vez no conto para ilustrar a contenda
entre Turíbio e Cassiano: “- Tem tempo... - disse. E continuou
a batida, confiado tão só na inspiração do momento, porquanto
o baralho fora rebaralhado e agora tinham ambos outros
naipes a jogar.”25
Mais uma vez, apenas o devir-estória e a observação aproximada
das partes é que pode criar, para os acontecimentos, alguma
realidade, dando mostras de que ali é improvável poder se
fiar, para agir, em uma razão plena, única ou previamente
considerada. Assim como na estória dos jacarés, que abre a
narrativa, observados de perto os duelistas é preciso dar-lhes, a
ambos, as suas “razões”, agora plurais.
Ao invés de reconhecer-se levianamente uma razão que
governe a totalidade dos acontecimentos, o que se nota é uma
determinada lógica de poder presente na fala de Cassiano
Gomes. Diz ele, referindo-se a Turíbio Todo: “- Ele vai como
veado acochado, mas volta como cangussu... No meio do
caminho a gente topa, e quem puder mais é que vai ter razão...”26.
A “razão” que se reconhece então é a da força, a do poder do
mais forte no momento do encontro, em pleno caminhar, e
aparece como uma nova “razão”, suplementar às apresentadas
anteriormente. Daí a importância de se acompanhar os lances
lúdicos e bélicos em que os personagens se revezam e a
alternância de papéis que vem expor a não-fixidez das relações
e das razões que as regem, revolvendo valores e verdades
25
ROSA, 1984, p. 162.
26
ROSA, 1984, p. 161.
182 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
comumente aceitos. Esse entranhamento radical de diferentes
posições e pontos de vista lança a necessidade de uma revisão
de construções que se baseiam na lógica cartesiana de causa e
conseqüência e de concepções como a de razão, mantenedora,
no pensamento ocidental, de toda suposta verdade e,
juntamente, de muito engano. O paradoxo e a ambivalência
são respostas sempre provisórias aos enigmas incorporados
pelos protagonistas nessa história de vingança e morte, e de
luta pelo poder, perante a efemeridade de todos os seres.
REFERÊNCIAS
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução: Maria
Beatriz M. Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam
Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,
1973.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário
Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução: Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1995.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
Recebido em 15/07/2008
Aprovado em 16/08/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 183
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
UMA RECRIAÇÃO FIEL: DIÁLOGOS ENTRE O
AUTOR E O SEU TRADUTOR
Erlon José Paschoal
USP
Resumo: A correspondência entre Curt Meyer-Clason, um
dos tradutores de literatura brasileira em língua alemã mais
premiados em nosso país, e João Guimarães Rosa lança
luz sobre os aspectos do ofício e da missão do tradutor, no
qual “cada palavra está por fio”. Nessa convivência intensa
debatem-se as possibilidades e impossibilidades da tradução,
sempre com muito paixão pela arte literária e zelo pelo leitor.
Palavras-chave: Tradução. Tradutor. Convivência.
Abstract: The correspondence between Curt Meyer-Clason,
one of the translators of Brazilian literature in German
language more rewarded in our country, and João Guimarães
Rosa, throw light on the aspects of the craft and the mission
of the translator, in which each word hung by a thin thread. In
this intense relationship the possibilities and impossibilities of
the translation are struggled, always with much passion for the
literary art and zeal for the reader.
Keywords: Translation. Translator. Relationship.
Em um seminário realizado em Berlim em Setembro de
2007 para comemorar os dez anos de existência do Deutscher
Übersetzerfonds (Fundo Alemão para a Tradução) alguns
pontos relevantes sobre a tarefa do tradutor foram discutidos
e valeria a pena mencioná-los27: que concepção lingüística
orienta as nossas traduções? Até que ponto é realmente
possível traduzir? Como variou ao longo do tempo o conceito
de tradução? Existem critérios para uma boa tradução? Quais
27
184 •
Revista Humboldt, nº 96, 2008, pág. 84.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
seriam eles?
As palavras rotulam coisas. Assim as palavras seriam como
etiquetas de coisas que se reconhece sem a língua. Esse
raciocínio está fundamentado no Crátilo de Platão. Para ele a
língua atrapalha a compreensão do mundo e só existe como
meio de comunicação entre os homens. Nesse caso traduzir
seria fácil. Bastaria substituir uma palavra associada a uma
coisa, a um conceito, na língua de partida à palavra equivalente
na língua de chegada.
Quase dois mil anos depois, Wilhelm von Humboldt assumiu
a posição oposta. Segundo ele, as palavras não são apenas sons
e sim a combinação da dimensão material com a dimensão
espiritual. Só a partir das palavras é possível compreender o
mundo e são elas que determinam a nossa visão de mundo.
Como cada palavra é única em sua qualidade sonora e
significativa, o acesso ao mundo depende da língua utilizada.
Aceitando-se esse fato, traduzir seria impossível ou, no mínimo,
extremamente difícil. Schleiermacher chegou a afirmar que
cada tradução deveria deixar transparecer que é uma tentativa
impossível.
Em resumo, o conceito de tradução se modificou através dos
séculos, mas sempre oscilando entre dois pólos: o da fidelidade
ao texto e o da interpretação do tradutor. São conceitos
curiosos, bem semelhantes aos de uma relação afetiva: ou você
é fiel ou comete traição, traindo o autor ao se envolver com
outras palavras. Daí que a falsidade, a traição e a infidelidade
sejam até hoje os piores crimes do tradutor.
Para muitos o tradutor não passa de um simples decodificador
passivo, que deve se submeter ao autor em função de um
conceito de obra original, como uma aura quase sagrada. Vale
lembrar que o conceito de autoria e o de originalidade literária
são por si só temas complexos e relativamente recentes,
remontando fundamentalmente ao século XIX. Nesse contexto
é importante ressaltar que o tradutor literário também é um
autor, o autor de sua própria tradução, uma autoria garantida
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 185
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
pela lei de propriedade intelectual.
A verdade provavelmente está no meio termo porque todo
tradutor oscila sempre entre dois pólos: a modéstia própria de
sua posição de servidor, de submisso, e o orgulho produzido
pela consciência instintiva de sua condição de criador. Mantém
assim um equilíbrio sempre instável entre esses dois extremos;
é esse o maior desafio do tradutor. Como afirmou certa vez
Ezra Pound, existem tradutores que fracassam mais por falta
de caráter do que por falta de inteligência.
O tradutor espanhol Miguel Saenz, ironizando essa situação,
sugeriu que no caso dos primeiros tradutores da Bíblia havia
entre autor e tradutor uma relação monacal28. O tradutor, como
um monge beneditino, estaria ligado ao texto por votos não
expressamente formulados de castidade, pobreza e obediência.
Castidade, porque está proibido de manter com o texto original
relações que não sejam puramente platônicas e formais. Além
disso, o tradutor deveria praticar uma espécie de celibato
intelectual e enfrentaria dificuldades sempre que pretendesse
afirmar-se como escritor original. A pobreza não se devia tanto
à baixa remuneração, mas a sua voluntária anulação frente ao
autor: só muito recentemente, por exemplo, conseguiu-se que
o seu nome aparecesse na obra traduzida.
Deixando de lado os exageros de tais comparações, é curioso
assinalar como essa relação entre autor e tradutor foi alvo de
interesse de grandes escritores. Ao longo dos últimos séculos
a postura do autor frente ao tradutor vai do desprezo altivo à
amizade mais estreita.
O escritor austríaco Thomas Bernhard, por exemplo, do qual
tive o prazer de traduzir a obra teatral Ludwig e suas irmãs,
afirmou em sua obra Der Weltverbesserer 29 que todo livro
traduzido “é como um cadáver destroçado por um automóvel
Eizie, www.eizie.org/es/Argitalpenak/Senez/19930701/Saenz ,
julho de 1983, Autor y Traductor.
28
Der Weltverbesserer (O consertador do mundo), de Thomas Bernhard, em Die Stücke, Editora Suhrkamp, 1983, págs. 103 e 104.
29
186 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
até se tornar irreconhecível”. Para ele, um livro traduzido
não tem nada a ver com o original e precisamente por isso
reconhece que a sua autoria pertence ao tradutor. E leva adiante
o seu raciocínio: “os tradutores desfiguram os originais”; “o
material traduzido chega ao mercado como deformação”; “são
o diletantismo e o desleixo do tradutor que tornam a tradução
tão repulsiva”; “o texto traduzido é sempre asqueroso”.
Por outro lado, para muitos autores a relação com o tradutor
era uma verdadeira história de amor. Milan Kundera, por
exemplo, cuida e se ocupa intensamente das traduções de suas
obras, e declarou que elas representam o que o mundo conhece
dele. Günter Grass, por sua vez, não somente lê, analisa e
acompanha as traduções de cada um de seus livros, como
também recebe os tradutores em casa, convive com eles e
certa feita fez uma afirmação favorável aos tradutores: quando
pensou na possibilidade de não conseguir escrever, deu-se
conta de que não poderia mais se reunir com seus tradutores
e por isso decidiu continuar escrevendo. Jorge Luiz Borges
e Ezra Pound chegaram a recomendar aos seus tradutores
que traduzissem não o que escreveram, mas o que tiveram a
intenção de escrever. Miguel Saenz cita também o exemplo
do escritor espanhol Javier Tomeo que chegou a propor a sua
tradutora alemã, Elke Wehr, um plano para quando acabasse
a sua inspiração para escrever. Ele traduziria de volta para o
espanhol a sua última obra traduzida para ao alemão, que seria
novamente traduzida para ao alemão pela tradutora, que seria
novamente traduzida para o espanhol, e assim por diante.
Guimarães Rosa definiu a tradução como convivência: “traduzir
é conviver” 30. Ele é um dos exemplos mais notáveis de uma
grande amizade surgida entre autor e tradutor, chegando
algumas vezes a uma verdadeira simbiose. Em relação ao
seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Rosa afirmou: “com
você não tenho medo de nada!”31 Numa das últimas edições
30
Revista Humboldt, nº 16, 1968.
31
João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor italiano
Edoardo Bizzarri, Ed. Nova Fronteira/UFMG, 3º edição, 2003, pág. 51.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 187
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
de Grande Sertão: Veredas, ele exigiu que se publicasse em fac
simile a primeira página da tradução italiana.
Segundo Guimarães Rosa, a tradução de Curt Meyer-Clason
para o alemão era “magistral e definitiva”32. Quando da
publicação de suas obras em alemão, afirmou em uma de
suas cartas que a língua alemã seria mais apta que o português
para captar o universo sertanejo: “a tradução e a publicação
em alemão me entusiasma, por sua lata significação cultural, e
porque julgo esse idioma o mais apto a captar e a refletir todas
as nuanças da língua e do pensamento em que tentei vazar os
meus livros”33.
Essa relação entre autor e tradutor expressa-se de maneira
eloqüente nas cartas trocadas entre ambos no período de
janeiro de 1958 a agosto de 1967. Elas tratam da tradução para
o alemão das principais obras de Guimarães Rosa – Grande
Sertão: Veredas, Corpo de Baile, Primeiras estórias e Sagarana
(Grande Sertão, Corps de Ballet, Das dritte Ufes des Flusses, Mein
Onkel der Jaguar e Sagarana) - e revelam muito da intimidade
entre duas pessoas sensíveis de mundos e línguas distintas e dos
meandros do trabalho de um tradutor empenhado em obter o
melhor resultado das criações lingüísticas de Guimarães Rosa
em sua própria língua. Uma missão de vida na qual cada palavra
está por fio, pois está recheada com os respectivos tesouros
de seu país e só deixa entrever a sua verdadeira importância
quando “pesada pelo intermediário na balança de seu coração
e transformada em moeda corrente em seu país”.34
As cartas tratam pormenorizadamente das possíveis traduções
para palavras e expressões utilizadas e criadas pelo autor e
endereçadas a um leitor que não possuía nenhuma referência
do universo por onde circulavam os personagens. O autor
João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor alemão
Curt Meyer-Clason, Ed. Nova Fronteira/UFMG/ABL, 1º edição, 2003,
pg.43.
32
33
Idem, pág. 25.
34
Idem, pág. 110.
188 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
participa então ativamente da tradução, dando sugestões,
fazendo esclarecimentos e comentários e, muitas vezes,
propondo soluções, em função do seu vasto conhecimento
lingüístico, que incluía o alemão. Essa relação de amizade, na
qual ambos compartilhavam objetivos comuns – Guimarães
Rosa considera a tradução para o alemão a mais importante
–, visa não somente à tradução das palavras, mas também
do ambiente, da musicalidade e da linguagem poética que
compõem a obra. Em tese, ninguém melhor que o autor para
explicar as suas próprias intenções, decifrar o texto e ressaltar
o que merece destaque. Essa forte amizade fazia Guimarães
Rosa se referir a Curt Meyer-Clason como o melhor dos seus
tradutores e o melhor tradutor do mundo, “um diabo de
homem, um gênio da tradução”35.
Nesse sentido, a tradução perfeita poderia ser talvez aquela
feita pelo próprio autor. Não temos na história muitos
exemplos. O melhor seria, sem dúvida, o de Samuel Beckett,
que na realidade escreveu a sua obra em duas línguas – o
francês e o inglês. Para muitos são obras que não foram de
fato traduzidas, mas escritas em duas versões, a ponto de
não se saber qual é a original. O autor e o tradutor chegam
ao resultado por caminhos diferentes. O tradutor parte de um
texto previamente dado e a todo momento precisa assumir
posições, fazer escolhas e tomar decisões. O autor tem em
princípio uma liberdade absoluta. Poderíamos até deduzir daí
que traduzir uma obra é mais difícil do que escrevê-la, o que
naturalmente seria bastante discutível.
O tradutor tem, por outro lado, o distanciamento necessário, e
o contato com o autor pode aumentar as possibilidades de se
atingir o melhor resultado. Numa entrevista dada ao escritor e
jornalista alemão Günter Lorenz, em 1965, Guimarães Rosa
afirmou: “Confesso com muito prazer que Curt Meyer-Clason
me convenceu de que uma passagem de meu romance era mais
convincente em alemão que em meu original. É claro que aceito
35
Idem, pág. 14.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 189
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
isso, e em uma nova edição brasileira pretendo adaptar esta
passagem à versão que Meyer-Clason encontrou em alemão. A
isto eu chamo cooperação, co-pensamento.”36.
Para Meyer-Clason, a linguagem do sertanejo presente na obra
de Guimarães Rosa é muito difícil de ser traduzida. Afirmou
ele: “Se tentasse criar uma língua de, digamos, ‘caboclos
alemães’, das várias províncias alemãs, teria sido um erro grave,
já que o leitor alemão teria sido tirado do ambiente brasileiro.
Inventei então uma língua nova. Uma linguagem que não fosse
da cidade, uma linguagem diferente que pudesse acompanhar o
tom e a música da língua brasileira. O alemão do Grande Sertão
é facilmente compreendido pelo leitor. Ele apenas percebe que
não é uma linguagem usual. Criei uma ilusão para expressar
as intenções do gênio sertanejo. Como vivi no Brasil quando
jovem, tinha alguma intuição do sentir do brasileiro. E por isso
creio que minha tradução conseguiu reativar, imitar, recriar um
pouco o âmbito, o sentir do homem brasileiro do interior. Essa
era minha ambição mais alta e o Guimarães Rosa, se bem me
lembro, com sua intuição de grande artista, sentiu que o tom e
o som da minha fala tinham uma qualidade igual”37.
Guimarães Rosa assim se manifestou no tocante à recriação
do universo singular de sua obra: “Naturalmente, eu mesmo
reconheço que muitas das ‘ousadias’ expressionais têm de ser
perdidas, em qualquer tradução. O mais importante, no livro,
o verdadeiramente essencial, é o conteúdo. A tentativa de
reproduzir tudo, tudo, tom a tom, faísca a faísca, golpe a golpe,
o monólogo sertanejo exacerbado, seria empreendimento
gigantesco e chinesamente minuciosíssimo, obra de árdua
recriação, custosa, temerária e aleatória. Sei que nem o editor,
nem o tradutor, nem o autor, podemos correr tamanho risco.
E pensando assim, reconheço também que temos de fazer
Idem, pág. 12/13, entrevista a Günter Lorenz em 1965 reproduzida no Correio da Manhã de 3 de junho de 1971.
36
37
190 •
O Estado de São Paulo, Caderno 2, 27 de Maio de 2006.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
sacrifícios”38.
Pode-se concluir dizendo que as traduções de Meyer-Clason
contribuíram enormemente para o enriquecimento do idioma
alemão e para o alargamento dos horizontes de sua literatura.
As obras traduzidas acabam fazendo parte da literatura do país
para o qual elas foram traduzidas.
Afinal, ao incorporar Guimarães Rosa, a língua alemã teve de
fazer malabarismos profundos, o que a obrigou a se flexibilizar,
o que significa se desenvolver e fortalecer-se. Colocando em
prática o princípio estabelecido por Walter Benjamin, o alemão
se aportuguesou através da literatura de Guimarães Rosa
por intermédio da tradução de Curt Meyer-Clason. Ou, nas
palavras do escritor mineiro “a gente morre é para provar que
viveu”39.
Recebido em 15/09/2008
Aprovado em 25/09/2008
João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor alemão
Curt Meyer-Clason, Ed. Nova Fronteira/UFMG/ABL, 1º edição, 2003, pág.
113.
38
Discurso de posse da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 15
de novembro de 1967.
39
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• 191
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
A MICROLOGIA DO COTIDIANO EM
TUTAMÉIA: TERCEIRAS ESTÓRIAS
Paulo Muniz da Silva
Ufes
Resumo: Breves apontamentos sobre o cômico e o riso na
linguagem de Tutaméia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa.
Palavras-chave: Literatura. Humor. Riso.
Resumé: Brèves notes sur le comique et le rire dans la langage
de Tutaméia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa.
Mots-clés: Littérature. Humeur. Rire.
Apresentação
[...] balizando a posição-limite da irrealidade
existencial ou de estática angústia [...] será aquela
do cidadão que viajava de bonde, passageiro
único, em dia de chuva, e, como estivesse justo
sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o
condutor por que não trocava de lugar. Ao
que, inerme, humano, inerte, ele respondeu: –
“Trocar... Com quem?” (ROSA, 1985, p. 8).
Como anuncia essa epígrafe, propomos breves apontamentos
sobre a comicidade e o humor na linguagem de Tutaméia
(terceiras estórias), em três contos: “Antiperipléia”, “Como
ataca a sucuri” e “– Uai, eu?”. Nossa base teórica para enfrentar
os textos será o primeiro prefácio “Aletria e hermenêutica”,
associado a Vladímir Propp e Henri Bergson.
192 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Se partirmos de uma poética construída com a linguagem que
se assemelha àquelas que circulam na micrologia do cotidiano40,
poderemos ouvir, nas terceiras estórias, vozes que se movem,
como num fugato musical, produzindo intervalos em que se
pode saltar do cômico ao sublime. O discurso micrológico, de
conteúdo aparentemente inexpressivo, afina-se com o diapasão
semântico da palavra “tuta-e-meia”, ou seja, ninharia, quase
nada, para concertar, scherzando,41 com o prefácio “Aletria e
hermenêutica”, as narrativas polifônicas, às vezes, em tom
menor, mas divertidíssimas.
Há passagens, nos contos, em que os intervalos estreitos de um
acorde diminuto, evocariam a melancolia em face da morte,
por exemplo, no conto “Antiperipléia”. Mas até aí o clima é
de comédia. A possibilidade do riso diante da precariedade da
linguagem do narrador dissipa a tristeza. Ditados populares e
anedotas de extração oral insuflam a poesia contra a lógica,
tornando-se instrumentos de questionamento das fronteiras
que separariam o ridículo do sublime.
Micrologia e tuta-e-meia
A partir do sintagma micrologia do cotidiano, intentamos,
inspirado por Paulo Rónai, fazer um contato com o título
Tutaméia, passando pela palavra “tuta-e-meia”, que, no
dicionário do Aurélio (FERREIRA, 1986), de língua
Aproprio-me de termo dicionarizado. MICROLOGIA. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da língua portuguesa.
2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1729.
40
Refiro-me aqui ao scherzo: tipo de canção profana, viva e alegre,
executada a várias vozes, que Beethoven inseriu definitivamente nas grandes
formas da sonata, da sinfonia e do quarteto, substituindo o minueto.
41
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 193
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
portuguesa, se circunscreve às expressões “ninharia, quase
nada, preço vil, pouco dinheiro”. A palavra “micrologia”
registra-se como discurso frouxo, de conteúdo inexpressivo.
Assim, com “micrologia” e Tutaméia sugerimos que as
terceiras estórias podem referir-se à obra de arte literária como
um lugar fugidio; um corpo discursivo que se movimenta na
reta de colisão com o paradoxo, ou seja, com aquilo que pode
ser ou apenas parecer um contra-senso, um absurdo (SILVA,
1994, p. 11).
Podemos chegar às estórias por meio das vias sinuosas do
humor, indicadas pelas anedotas que se lêem no prefácio
“Aletria e Hermenêutica”. Nas palavras de Benedito Nunes, “o
clima geral de Tutaméia, mesmo quando se mata ou se morre,
é o clima da comédia” (NUNES, 1976, p. 204). A comédia,
explica Nunes, imprime um “ritmo dramático”, em prol da
vida e da restauração de suas forças. Esse ritmo determina,
nos contos, a solução das contradições da ação, a interrupção
do sofrimento e o restabelecimento espontâneo do equilíbrio,
para que se dê prosseguimento à existência.
Aqui já se põe uma armadilha. Se o discurso for chistoso,
micrológico, a literatura que dele se constitui valerá mesmo
uma tuta-e-meia? Não. E o próprio Guimarães Rosa o
justifica. “Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque
escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior
e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.”
(ROSA, 1985, p. 7)
Diante do discurso anedótico, a “hermenêutica” não trará para
as “aletrias” apenas a interpretação do sagrado. Poderá ater-se à
reciclagem e à constante atualização semântica das construções
de linguagem que perdem o ineditismo em que consistiria um
final inesperado ou contrário ao esperado de uma estória. Aí,
na reiteração desse final, estaria o drolático (que provoca o riso,
que diverte), respondendo a uma operação mental necessária
para a fruição das “anedotas de abstração” e das estórias
propostas por Tutaméia. As “anedotas de abstração” seriam
194 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
aquelas que, tangendo o não-senso, refletiriam “por um triz
a coerência geral, que nos envolve e nos cria.” (Ibid., p. 8).42
Assim, reformulando locuções e provérbios que tendem a
representar a sabedoria consagrada e popular, Guimarães Rosa
propõe, a partir da reciclagem desses pequenos discursos orais,
a mobilização dos sentidos alojados nas dobras do não-senso.
No primeiro prefácio, “Aletria e hermenêutica”, a abstração
de tais anedotas, na linguagem de Tutaméia, ora nos eleva
ao universal abstrato, ora nos baixa ao concreto, à terra do
cotidiano, ao chão, para que aspiremos o húmus, o suor da
realidade circunstante por meio de temas como, a mendicância
e a dignidade, no conto “Antiperipléia”; o desprezo e a
admiração, no conto “Como ataca a sucuri”; a violência, a
homoafetividade viril e a fidelidade, no conto “– Uai, eu?”.
Mas muito outros temas lhe captam também, esses foram os
que elegemos para pontuar brevemente aqui.
Nesses contos, não se escamoteiam os efeitos desagregadores
da pobreza, grassando, sem piedade, sobre as gentes que
vegetam por esses brasis de infindáveis transumâncias e,
porque não, catrumâncias: cangaços, romarias, sertões,
cidades, lupanares e linguagens. Entretanto, não se fazem da
apreciação dessas paisagens sociais reivindicações populistas,
porque os personagens aí atuando emitem, sobre si e outrem,
opiniões compactas e sem espírito de conciliação com o
mundo que os cerca. Por isso, o riso torna-se possível até aí
onde, aparentemente, a piedade dominaria. Talvez, como
queria Freud, até o riso como uma atitude defensiva contra a
possibilidade do sofrimento.
A partir daqui, apontaremos breves possibilidades do riso na
linguagem micrológica dos contos “Antiperipléia”, “Como
ataca a sucuri” e “– Uai, eu?”, aproximando-os de Vladímir
Propp, pelas vias do humor. Tomaremos o humor como
uma predisposição mental com capacidade para perceber
Quando me referir mais de uma vez a este livro de Guimarães
Rosa, de forma consecutiva, indicarei apenas o número das páginas citadas.
42
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 195
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
o cômico e o risível, no momento em que ocorrem, e para
desvelar, inesperadamente, um lado escondido da realidade
aparente, que a visão habitual não apreende. Nos três contos,
a comicidade pode repousar também “nas fraquezas e nas
misérias humanas” (HARTMANN apud PROPP, 1992, p. 44).
Em “Antiperipléia”, pode-se rir da e com a comicidade do
picaresco Prudencinhano, personagem-narrador da estória.
Ali, ele está posto sob suspeita de ter causado a morte de “sêo
Tomé”, o cego galã que ele guiava. Em suas palavras dirigidas
ao narratário, “Sêo Desconhecido”, elogia o cego, que lhe
superava no quesito objeto de desejo das mulheres, e depreciase, expressando-se por meio da reutilização de vários ditados
populares, entre os quais um que autoriza explicitamente o
riso: “o roto só pode mesmo rir é do esfarrapado.” (ROSA,
1985, p. 19).
Circunscreve-se ao caricatural o efeito humorístico obtido
pela configuração física e psicológica do ébrio Prudencinhano.
Em suas palavras, ele era “[...] assim calungado, corcundado
cabeçudão” (p. 19). A possibilidade de se compadecer de
seu aspecto físico deformado atenua-se, no entanto, com a
comicidade suscitada pela aparente embriaguez de raciocínio
que seu discurso indica. Ele organiza sua fala num discurso
fugidio, frouxo, micrológico, e possibilita o cômico na
formulação de paradoxos involuntários e nos alogismos
implícitos. Segundo Propp, os alogismos se produzem na vida
e na arte literária. Na vida, pela realização de ações insensatas;
na literatura, pela expressão de coisas absurdas (PROPP, 1992).
Vejamos um trecho de “Antiperipléia” em que a concentração
não-convencional das formas que expressam o absurdo pode
provocar o riso na fala desse personagem, que nega ter matado
o patrão cego: “Me prendam! Me larguem! A mulher esteja
quase grávida. Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não
enxerga mais... A culpa cai sempre é no guiador?” (p. 21). Isso
nos remete a Vladímir Propp que, estudando a comicidade
e o riso, aponta como possibilidades do cômico, os defeitos
196 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
físicos, “mas somente aqueles cuja existência e aspecto não
nos ofendam e nos revoltem, e ao mesmo tempo não suscitem
piedade e compaixão. Desse modo, um corcunda só provoca o
riso numa pessoa moralmente imatura” (PROPP, 1992, p. 60).
Os contos “Como ataca a sucuri” e “– Uai, eu?” tendem a
desviar nossa atenção do conteúdo do discurso, para as formas
exteriores de sua expressão. Aí, nessas formas, pode-se cercar
drolático. O narrador de “Como ataca a sucuri” medeia a
possibilidade de atritos quase letais entre dois personagens:
Drepes, um tipo de pescador-caçador moderno, e Pajão, um
personagem de compleições físicas disformes e humanidade
tosca; um “catrumano” habituado aos “cenários ermos e
rústicos, intocados pelo progresso” (RÓNAI, 1985, p. 220).
Nessa mediação de choques culturais, o narrador gravita entre
a ironia de um e a rispidez do outro. No trecho que ora cito,
destacam-se, nas palavras de Pajão, a solidariedade ríspida e a
alteridade áspera mediando as relações entre os dois homens
no terreno do conhecimento que cada um teria acerca do que
se fala e do que se pode constatar sobre a periculosidade da
cobra sucuri:
“Pega homem?!” Desaforo. E o cujo, eh, botava para rodar
os carretéis daquele relógio cego. Saía, aventado, no
outro dia, para o dormido poço do marimbu, hum, com
receio nenhum, seguro de tudo. Sozinho, xê. Delatava
a ele o caminho uma caixeta redonda que tinha, boceta
de herege. Zanzava, mexia, vai ver não voltava! “Sucruiú
come homem?” Deus querendo come. (ROSA, 1985, p.
39: itálicos e aspas do autor).
No conto “– Uai, eu?”, Jimirulino, detento, condenado por
três assassinatos, destaca, em primeira pessoa, as qualidades do
Doutor Mimoso, seu ex-patrão, com uma admiração que beira
as inclinações homoeróticas. Quando o descreve, o personagem
investe nas multiplicidades de um mundo de sensações
associadas ao amor, que não o conectam afetivamente ao expatrão, mas o rodeiam, evocando possibilidades de experiências
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• 197
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
prazerosas circunscritas ao espaço doméstico: a cama e a mesa.
Ah, que saudades que eu não tenha... Ah, meus bons
maus-tempos! Eu trabalhava para um senhor Doutor
Mimoso. Sururjão, não; é solorgião. Inteiro na fama
– olh’alegre, justo inteligentudo – calibre de quilate
de caráter. Bom até-onde-que, bom como cobertor,
lençol e colcha, bom mesmo quando com dor de
cabeça: bom, feito mingau adoçado. (p. 197).
Movendo-se nas dobras da linguagem com uma liberdade
limitada por uma aparente pobreza vocabular, Jimirulino toca
os limites de seu lugar de origem como se fosse também desse
lugar prisioneiro. A sugerida espontaneidade de seu discurso
provoca o riso, porque também nos conduz ao deslocamento
do conteúdo para as formas exteriores de sua expressão. Ele
fala de sua afeição pelo Doutor Mimoso por meio de figuras
semelhantes à catacrese, criando configurações especiais de
uma arbitrariedade necessária, a fim de ligar o signo lingüístico
às construções de suas lembranças.
Jimirulino passeia sem preconceitos e, às vezes, sem princípios,
entre o kitsch e o sublime, entre sacrifícios sublimes e baixarias,
talvez, a fim de justificar sua homoafetividade viril e pacificar as
tensões que intermedeiam suas “saudades”. Se, com o sublime,
tentará explicar sua afetividade, com a lembrança das baixarias
(dos três assassinatos) não justificará sua virilidade nem
pacificará as inquietudes que o ligam a “um certo Doutor”.
Com esses excertos de Tutaméia, destacamos na linguagem
que marcaria o intervalo entre o concreto e abstrato, entre o
cômico e o excelso, o questionamento da eficácia das palavras,
no mundo de signos que nos cerca. Pode-se saltar do discurso
micrológico ao poético-filosófico, sem passar pelos adornos
da retórica. Pode-se zombar do convencional que baliza os
deslocamentos das palavras para as coisas e vice-versa, nas
interações mediadas pela linguagem no dia-a-dia: poética e
anedótica. Essa possibilidade mobiliza, no signo verbal, a
multiplicidade dos significados que o precedem e o sucedem
198 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
ad infinitum. Retornamos às palavras de Benedito Nunes:
“Tutaméias não existem por si. São episódios de divina e
altíssima comédia, mito em que nos compreendemos sem nada
compreender” (NUNES, 1976, p. 210).
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do
cômico. 2. ed. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de
Janeiro: Editora Guanabara, 1987. 105 p.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da
língua portuguesa. 2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
NUNES, Benedito. Tutaméia. In: NUNES, Benedito. O dorso
do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 203-210.
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora
Fornoni Bernardini e Homero F. de Andrade. São Paulo: Ática,
1992. 215 p.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia (terceiras estórias). 7. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 227 p.
SILVA, Paulo Muniz da. A micrologia do cotidiano em Tutaméia.
1994. 27 f. Monografia (Graduação em Letras-Português) –
Departamento de Línguas e Letras, Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 1994.
Recebido em 02/08/2008
Aprovado em 10/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 199
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
EM CÁRCERES DE PREENCHIDO SILÊNCIO,
VOZES ENTRECRUZADAS: UM ESTUDO DO
CONTO “QUADRINHO DE ESTÓRIA” DE
GUIMARÃES ROSA
Sara Novaes Rodrigues
Ufes
Resumo: A leitura do conto “Quadrinho de estória”, de
Guimarães Rosa, traz um personagem múltiplas vezes
encarcerado e totalmente imerso em recordações do passado.
Que ecos ressoam dentro dos limites do conto? Este trabalho
propõe uma análise do texto em questão, em busca de respostas
que dêem conta dessas e outras indagações suscitadas pelo
próprio texto e seu personagem central.
Palavras-chave: Personagem. Vozes. Diálogo. Cárcere. Leitura.
Abstract: The short story “Quadrinho de estória”, by
Guimarães Rosa, has a character who is incarcerated and lives
totally immersed in memories of the past. What echoes sound
within the limits of his cell and the story? This paper analyses
the text in search for answers to this and other question that
might arise from the reading.
Keywords: Character. Voices. Dialogue. Reading.
Discutir Guimarães Rosa é sempre um prazer, só suplantado
por outro: o da leitura de suas obras. Escolher um de seus
textos para estudo, porém, é mais do que difícil: é um desafio.
Na verdade, ler Rosa é vivenciar um jogo especial da linguagem,
criado por um mestre na arte de narrar. Esta leitura se justifica,
no entanto, na esperança de que o atalho selecionado para as
reflexões propostas não se afaste de teorias e/ou interpretações
de outros estudiosos, ou que, mais ambiciosamente, traga
200 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
novas possibilidades à cena.
Feita a seleção do conto, “Quadrinho de estória”431 (ROSA,1985,
p. 138-141), busco, inicialmente, algumas considerações sobre
o gênero narrativo em questão e destaco, de início, um trecho
do pensamento de Júlio Cortázar (CORTÁZAR, 1974, p. 1512), que diz ver o conto, em sua forma fechada, como uma
esfera em que “a situação narrativa em si deve nascer e dar-se
(...) como se o narrador, submetido pela forma que assume, se
movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão.”
Em “Quadrinho de estória”, a tensão nasce do não dito, daquilo
que o autor apenas sugere, deixando ao leitor a oportunidade
de criar sua própria narrativa. É oportuno, também, destacar
a noção de demarcação de limites, que se revela crucial para a
análise proposta.
A sensação de cárceres múltiplos, de espaços cercados, é
sugerida pelo próprio título do conto, que já insinua a idéia
de moldura e seqüência de imagens. A leitura atenta capta
termos que remetem a desenho, quadros e fotografias. Junto
com alusões ao teatro, esses termos se combinam na formação
do enredo, que vai aqui resumido: um encarcerado se debate
entre recordações do passado ao ver, “de seu caixilho de pedra
e ferro”, a imagem de uma “qualquer mulher que agora vem
e está passando é uma de vestido azul, por exemplo, nova, no
meio do meio-dia, no foco da praça.” Por trás das grades, ele a
observa sob os efeitos da lembrança de outra mulher, uma que
se vestia de vermelho. Num poste em frente, uma aranha verde
tece uma teia na lâmpada.
Segundo Arlindo Machado (MACHADO, op. cit., p. 45),
“(...) seja qual for o referente que a motiva, [a fotografia] é
sempre um retângulo que corta o visível.” Em “Quadrinho
de estória”, somos guiados pelo autor como se alguém nos
mostrasse fotografias ou como se obedecêssemos às rubricas
de um diretor que, sem deixar que o espectador perceba a
43
As citações não acompanhadas de referências são frases do conto em estudo (conf. bibliografia).
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
sua presença, organiza um palco para obtenção do melhor
efeito. Desses recortes entrevistos, desses detalhes que vão
sendo acrescentados ao desenho, então, é que surgem as
possibilidades de sentido, ou seja, as interpretações.
Que imagens formam narrativas (LOOMIS, 2003, p. 8), prova-o
bem o texto de Guimarães Rosa. De quadro em quadro, a
estória flui através da sintaxe e dos vocábulos característicos do
mestre mineiro. O foco principal não abandona o personagem
central, mesmo quando luzes secundárias destacam este ou
aquele detalhe, confirmando o que se lê em Arlindo Machado
(op. cit., p. 29):
[t]oda visão pictórica, mesmo a mais ‘realista’ ou a
mais ingênua, é sempre um processo classificatório,
que joga nas trevas da invisibilidade extra-quadro tudo
aquilo que não convém aos interesses da enunciação e
que, inversamente, traz à luz da cena o detalhe que se
quer privilegiar.
O “início de uma narrativa é sempre arbitrário” (LOOMIS, p.
10) e Rosa escolhe iniciar seu relato ao meio-dia. Tarde, noite
e amanhecer, completam o círculo temporal da estória, fadado
a se repetir a cada leitura. Os quadros, feitos de fragmentos
de “realidade” e lembranças, unem-se, então, na elaboração
do enredo. Contrapondo o confinamento do homem à vida
fora dos muros da prisão, o autor constrói um ambiente
repleto de reflexões psicológicas e filosóficas tais como: “A
vida, sem escapatória, de parte contra parte”; “(...) nem pode
sozinho lembrar-se, sufoca-o refusa imensidão, o assombro
abominável”; “Viver seja talvez somente guardar o lugar de
outrem, ainda diferente, ausente”, “Sejam quais o sol e céu,
a palavra horizonte é escura” ou, ainda, a frase que conclui o
conto: “A liberdade só pode ser um estado diferente, e acima.
A noite, o mundo, rodam com precisão legítima de aparelho.”
Silencioso, o personagem ocupa um centro de limites bem
demarcados: autor, forma e enredo se sobrepõem e o cercam.
O primeiro, demiurgo, cria-o já julgado e culpado, condenado
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CONTEXTO
ao silêncio a ao turbilhão da memória. A segunda, a forma
narrativa, localiza-o no centro de um conto. Cárcere de
tamanho variável, o conto é recorte, é um contorno a mais ao
redor de um flagrante especial da vida (GOTLIB, 1998, p. 82).
O enredo, por sua vez, fornece-lhe apenas um pedaço dessa
existência. Do antes e depois, sabe-o mais o leitor, que infere,
preenchendo os vazios, de acordo com seu próprio momento.
Mikhail Bakhtin (2000, p. 32-3) nos lembra que o autor é o
“depositário do todo do herói e o todo da obra.” Ele é
a consciência de uma consciência que engloba e acaba
a consciência do herói e do seu mundo (...). Ele vê e
sabe tudo quanto vê e sabe o herói em particular e
todos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe
mais do que eles, vendo e sabendo até o que é por
princípio inacessível aos heróis; é precisamente esse
excedente, sempre determinado e constante de que se
beneficia a visão e o saber do autor, em comparação
com cada um dos heróis, que fornece o princípio
de acabamento de um todo – o dos heróis e o do
acontecimento da existência deles, isto é, o todo da
obra.
Ao optar pelo conto, o autor sabe da exigüidade de tempo e
espaço à sua disposição. E mais, sabe que é preciso condensar
ali a linguagem exata, justa, mágica, que transcenda seus
próprios limites a fim de libertar-se nas dobras reflexivas das
entrelinhas.
Fixado num tempo privado de esperança, o encarcerado se vê
agrilhoado a um momento de sua história. Vê-se em Bakhtin
(p. 33) que “[o] interesse (ético-cognitivo) que o acontecimento
apresenta para a vida do [personagem] é englobado pelo
interesse que ele apresenta para a atividade artística do autor.”
Assim, ao selecionar os acontecimentos que servem de cenário
ao conto, Guimarães Rosa desenha mais um círculo ao redor
do prisioneiro, dando-lhe apenas memórias despertadas pela
visão de uma mulher vestida de azul. Diferente da passante
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
baudelairiana, que faz o poeta viver uma grande história de
amor, a mulher na rua traz , além de tudo, a recordação do ato
que o colocou ali, entre quatro paredes.
É também Bakhtin (op. cit., p. 33) quem lembra que o
texto é muito mais do que se vê; que há, entre suas linhas,
um cruzamento de vozes que transcende forma e enredo, e
o enriquece infinitamente. No ambiente do conto rosiano, o
silêncio predomina. Sons, só os que vêm do mundo lá fora
e da voz maquinal de um carcereiro que não completa suas
frases. Diálogos, porém, realizam-se no interior do texto. Em
primeiro lugar, pode-se reafirmar o do próprio autor com a
fotografia e com o desenho. Rosa já o aponta no início do
conto quando usa termos que remetem ao sentido da visão
em frases do tipo “foco”, “apreende”, “demarcada”, “pessoa
sozinha numa página”, “encentrada, em moldura”, “A figura
no tetrágono” e tais expressões continuam aparecendo ao
longo do texto: “descontornada”, “perímetro de sua visão”,
“retrato em branco”, “A pequena fenda na parede seqüestra
uma extensão, afunda-a, como um óculo: alvéolo.”, “o vão
por onde vê, recorta pedaço de céu”, “Seu cluso é uma caixa,
com ângulos e faces” ou, ainda, “O sol (...) invade a quadrada
abertura por onde ele é avistado, e vê, fenestreca.”
Diante de fotografias, diz Arlindo Machado (p. 52), esquecemonos que “apenas simbolicamente penetramos o espaço da
imagem.” O nosso olhar é o de quem vê do exterior, quem
só pode julgar a partir de suas próprias experiências. A grande
diferença, porém, é que ao leitor só é dado a ver aquilo que o
autor julga essencial para aquela narrativa. O diálogo leitor/
texto, assim, é sempre mediado pela criação e realizado pela
interpretação.
Vale apontar, também, a interação entre o próprio personagem
com suas lembranças. Nesse espaço, tecem-se considerações
em que se filtram idéias sobre a vida – às vezes em forma de
aforismos – como nas frases: “uma cadeia é o contrário de um
pombal; recorde, aos despreocupados, em rigor, a verdade”; “A
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liberdade só pode ser um estado diferente, e acima”, ou ainda:
“(...) chorar seria como presenciar-se morrer.” É preciso não
se esquecer da interface com a sabedoria popular representada
por provérbios que o autor modifica: “mãos vazias e pássaro
voando”, “Seja tudo pelo amor de viver”, “O sol morre para
todos”.
Ainda outros diálogos podem ser encontrados à medida que a
leitura prossegue. O teatro, como já foi dito, revela-se tanto pela
maneira como o narrador arruma as cenas da estória, quanto
em frases como: “o plano por onde as pessoas desaparecem,
imediatas”, “descortinado”, “o todo teatro”. Nesse espaço,
também ressoam alusões a Nelson Rodrigues: no próprio
enredo – um homem recorda uma mulher que pode ter sido
assassinada num ato apaixonado – e na frase “A vida como não
a temos”, em que ecoa uma referência aos contos rodrigueanos
publicados em sua coluna “A vida como ela é”, publicada
pelo jornal carioca “Última Hora”, entre 1951 e 1961. Nesses
contos, as histórias passionais predominavam. Vê-se, ainda, a
possibilidade de se apontar a intertextualidade com a tragédia
shakespeariana, Othelo, em que, num arroubo extremo de
ciúme, o personagem mata a sua mulher, Desdêmona.
Retomando um atalho já delineado anteriormente, volto ao
diálogo com Charles Baudelaire (1821–1867) que, segundo
Walter Benjamin (1975), foi um grande observador das
multidões nas ruas. Também o personagem de Rosa observa
os que passam em frente à sua janela. Destacam-se, como
exemplo, as frases: “Surgindo e sumindo-se rua andantes
vultos, reiterantes”, “menino, valete, rei; pernas, braços
balançantes, roupas; um que fulanamente por acaso se parece;
o que recorda não se sabe quando e onde; o homem com o
pacote de papel cor-de-rosa. Ora – ainda uma mulher. A figura
do tetrágono.”
A lista dos diálogos/interfaces/polifonias poderia se estender
ainda mais se fossem trazidas ao quadro as ideologias, as
instituições sociais, as tensões entre os gêneros feminino/
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
masculino, entre outros. A exigüidade de tempo e espaço,
entretanto, também recorta e limita o estudo. O que se conclui é
que, ao colocar todas essas questões no interior de suas molduras,
Guimarães Rosa se revela grande fotógrafo, ou desenhista, ou
diretor. Sua pena é sua tecnologia e sua escritura é sua voz. Sob seus
traços, letras ganham vida, palavras ganham movimento, textos
extrapolam os contornos das páginas, criando sentidos que, uma
vez grafados, aguardam a chance de libertação através da leitura.
Referências
BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3a ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. 421 p.
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975. p.
CORTÁZAR, Júlio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva,
1974. 255 p.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 8a ed. São Paulo: Ática,
1998. 95 p.
LOOMIS, Burdett. “Collecting and Collections: Interdisciplinary
Perspectives”. Trabalho apresentado no Humanities Colloquium,
Hall Center, em16 de outubro de 2003. 27 p.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. Uma introdução à
fotografia. 2a ed. São Paulo, 1988. 121 p.
ROSA, João Guimarães. “Quadrinho de Estória” in ROSA,
João Guimarães. Tutaméia. 11a impressão Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985, p. 138-141.
SHAKESPEARE, William. The Library Shakespeare. Londres:
Trident Press International, 1999. 476 p.
Recebido em 12/07/2008
Aprovado em 10/08/2008
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CONTEXTO
O SERTÃO INTERTEXTUAL DE
GUIMARÃES ROSA
Virgínia Cœli Passos de Albuquerque
Ufes
Resumo: João Guimarães Rosa, em carta escrita ao tradutor
italiano Edoardo Bizzarri, afirma que a novela regionalista
“Dão-lalalão” foi a única vez em que recorreu a processos
intertextuais. Neste artigo, propõe-se analisar as referências
indicadas pelo escritor, com a hipótese de que os personagens
Soropita e Doralda constituem-se precisamente por meio
do diálogo entre textos, na perspectiva bakhtiniana da
“carnavalização”.
Palavras-chave: Carnavalização. Sagrado. Profano.
Abstract: João Guimarães Rosa, in a letter written to the
Italian translator Edoardo Bizzarri, says that in the regional
novel “Dão-Lalalão” it was the only time he made use of
intertextuality. This article aims to analyze the references
mentioned by the writer, having in mind the hypothesis of
what the characters Soropita and Doralda turn themselves in
what they are exactly through the dialog between texts, in the
perspective bakhtinian of “camivalization”.
Keywords: Carnivalization. Sacred. Profane.
A novela “Dão-Lalalão”, de Guimarães Rosa, possui estrutura
narrativa básica e linear: no sertão de Minas Gerais, Soropita
e Doralda vivem uma história de amor. Os personagens,
vivificados pela linguagem peculiar desse lugar quase-sagrado
que é o sertão de Guimarães, resvalam para algo mais. Talvez
o leitor nem perceba o palimpsesto que é “Dão-Lalalão”.
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
O escritor, generoso, deixou pistas, a começar pelo título,
lembrando a parlenda brasileira Bão-balalão / Senhor capitão
/ Espada na cinta / Ginete na mão. O curioso é que na sexta
edição de Corpo de baile, publicada pela Editora José Olympio,
a novela também aparece sob a denominação de Lão-dalalão.
Variações sobre um mesmo tema? Erro gráfico? Ou deslize
(diria Lacan, deslocamento do significante)?
A resposta vem do próprio Guimarães, que assim instrui seu
tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, em correspondência por
eles trocada, sobre “Dão-Lalalão”: Diluídas, aliás, nas páginas
537/540, perpassa uma espécie de paráfrase do “Cântico dos
Cânticos” (BIZZARRI, 1973). Essa informação preciosa do
novelista permite desenvolver a perspectiva aqui proposta, sem
muito esforço para comprovação: ver o sertão como espaço
intertextual em que se configuram as relações amorosas entre
os personagens Doralda e Soropita. Doralda – ex-prostituta
– e Soropita – ex-matador – vivem um história de amor que
sublima o passado escabroso de ambos. Nessa sublimação, que
redime o que é profano em seus personagens, o escritor opera
com a tradição cultural do Ocidente por meio de grandes
obras: a Bíblia, a Divina Comédia e as novelas de cavalaria.
Aqui interessam a descrição de Doralda, com a apropriação
de imagens bíblicas, e a composição do cavaleiro apocalíptico
Soropita, com seu cavalo Caboclim, tornado Apouco, quando
a transfiguração provocada pelo ciúme diante do suposto rival
o aproxima também do cavaleiro medieval. Por causa dessa
convergência de textos apropriados, o sertão se carnavaliza.
O tema é eterno, entretanto em “Dão-Lalalão” o ambiente é o
sertão, mundo representado pelo narrador, dialogando também
com a tradição do código de honra do cavaleiro medieval,
presente nas novelas de cavalaria de origem portuguesa,
gênero com que a novela rosiana também dialoga. A desonra,
em “Dão-Lalalão”, pode surgir a qualquer momento da
memória, daquele tempo quando Doralda recebia homens, na
casa de onde Soropita a tirou para ser sua amada pelas bandas
do Andrequicé. O epílogo retoma o tema do ciúme, quando
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CONTEXTO
Soropita vence as trevas para submeter a besta e perdoar o
negro Eládio. Merece um artigo à parte a relação textual entre
A divina comédia e o inferno interior vivido pelo personagem.
A DESCRIÇÃO DE DORALDA E O CÂNTICO DOS
CÂNTICOS
Mas Doralda estava ali, substância formosa a beleza que tem cheiro, suor e calor. (D, 85)
Doralda é a mulher sempre presente na vida de Soropita,
mesmo na ausência. Sucena, Dadã ou Garanhã – seus outros
nomes são ora esquecidos, ora lembrados no reino interior
de Soropita. Ele e o narrador de sua história vêem, cheiram e
materializam a beleza de Doralda. A preferência de Soropita
pelo nome Doralda pode se justificar pelo anagrama dourada
aí contido. Quando ele a conheceu, davam-lhe o nome de
Sucena. Açucena – poesias desmanchadas no passado – é a outra,
a do passado.
Eu sou o narciso de Naron,
o lírio dos vales.
Sim, como lírio entre espinhos
é, entre as jovens, a minha amada. (CC 2, 1-2)44*
Sucena é uma clara alusão ao Cântico dos Cânticos, em que a
amada se compara a uma tenra flor, dando ocasião ao amado
de elogiá-la. O Cântico, apócrifo, de autoria desconhecida, às
vezes erroneamente atribuído a Salomão, é considerado pelos
teólogos como um poema lírico, compreendendo cantigas
de amor dialogadas e descrições líricas. As comparações
são pitorescas e sugestivas. Traçam-se caminhos sensoriais
por campos, jardins e pomares, sob ar primaveril, onde
44
Doravante as citações do Cântico dos Cânticos serão acompanhadas pelas iniciais maiúsculas e pelo número do capítulo separado por vírgula
do(s) número(s) do(s) versículo(s). As citações de “Dão-Lalalão” serão seguidas pela inicial maiúscula e pelo número da página.
*
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
proliferam árvores e plantas exóticas; aspira-se o perfume das
flores, ouve-se o arrulho das pombas junto aos rios; vêem-se
gazelas saltando pelos campos ou pastando entre lírios, cabras
esparramando-se pelo monte Galaad.
O ambiente erótico-amoroso do Cântico é transposto para
“Dão-Lalalão” com essa perspectiva: Soropita ama Doralda a
tal ponto que seus sentimentos cheiram a brilho e brilham a
cheiro. Transformam-se em sentidos:
Do cheiro mesmo, de Doralda, ele gostava por demais,
um cheiro que ao breve lembrava sassafrás, a rosa
mogorim e palha de milho viçoso; e que se pegava,
só assim, no lençol, no cabeção, no vestido, nos
travesseiros. (D, 17)
Soropita capta sons e cheiros pelo apurado olfato e refinada
audição. Os cinco sentidos entrelaçam-se para apreender o
fulgor da imagem amada.
Doralda lá, esperando querendo seu marido chegar,
apear e entrar. Ao que era, um pássaro que ele tivesse,
de viável desejo, sem estar engaiolado, pássaros de
muitos brilhos, muitas cores, cantando alegre, estalável,
de dobrar. (D, 25)
Os cheiros vegetais constituem-se mais que o próprio ambiente;
funcionam mesmo como uma espécie de osmose, as forças da
terra estendendo-se ao corpo amado.
A presença de Doralda – como o cheiro do pau-debreu, que chega de extenso do cerrado em fortes ondas,
vagando de muito longe, perfumando os campos, com
seu gosto de cravo. (D, 87)
Cheiro do pau-de-breu e perfume com gosto de cravo: essa imagem
sinestésica realiza poeticamente o telurismo presente nesses
personagens, ambientados na região rural. Nas pequenas
banalidades, Soropita absorve Doralda, ao transformar as
atitudes corteses em carícias eróticas à amada. Como cavaleiro
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CONTEXTO
cortês, o homem, talvez pelo intenso relacionamento com
mulheres da comédia, mantivesse o voto de castidade quanto
ao beijo.
— “Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você tinha
escrúpulo de tomar? Você gosta de mim de todo o
jeito?” Asco nenhum. O cuspe dela ao beijar, tinha
pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho
de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a
erva-cidreira. Antes nem depois. Soropita nunca tinha
beijado em boca outra mulher nenhuma. Nem comer
comida babujada. Voltar para a casa, as horas correndo
bem, era o melhor que havia. (D, 18)
Esse final do décimo primeiro parágrafo de “Dão-Lalalão” trata
da importância do olfato e do gosto para Soropita perceber
Doralda. Apreciador dos bons cheiros silvestres, ele é capaz de
distinguir os aromas, sendo o de Doralda o mais impregnável.
O cuspe da mulher ganha estatuto de seiva – animal e vegetal
– confirmando o telurismo dos personagens. Essa imagem
remete ao beijo dos noivos bíblicos: Teus lábios, minha noiva,
destilam / néctar; / em tua língua há mel e leite. / Tuas vestes têm
a fragrância do / Líbano. (CC 4, 11).
Soropita absorve o cuspe de Doralda como mel e leite – tinha
pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro.
Mel tem pepego e o focinho de bezerro cheira a leite.
À força lírica do Cântico opõe-se o terror da babilônica besta,
a grande prostituta. No desenrolar do enredo, há uma cena em
que Soropita e Doralda hospedam Dalberto. A mulher volta
arrumada para a sala após o jantar. Fumam e bebem. Soropita
podia se penetrar de ânsias, só de a olhar. Sobre de
pé, no meio da sala, era uma visão: Doralda vestida de
vermelho, em cima das Sete Serras, recoberta de muitas
jóias, que retiniam, muitas pérolas, ouro, copo na mão,
copo de vinhos e ela como se esmiasse e latisse, anéis
de ouro naquelas especiosas mãos, por tantos sugiladas
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
tanto, Doralda vinha montada numa mula vermelha, se
sentar nua na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela
estava bêbada; e em volta aqueles sujeitos valentões,
todos mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria
ver... (D, 18)
Essas imagens sobrepostas da mulher amada, ora ornamentada,
ora nua, ora zooformizada, comprovam a dimensão profana,
babilônica, da prostituta – montada numa mula vermelha,
se sentar nua na beira das águas. A prostituta do Apocalipse
também aqui produz efeitos carnavalizados, nessa paródia do
Cântico. A inserção do profano no poema bíblico deve-se a
esse contexto imagético, em que a mulher aparece divinizada
na expressão amorosa do Cântico e diabólica na sua relação
com Babilônia, a Grande Prostituta do Apocalipse, cercada de
corpos que Soropita não queria ver.
Embora Doralda saiba comportar-se e fazer-se respeitar, não
perde a faceirice de sua época de Sucena. Também no Cântico
vê-se a alusão à mulher perdida, adequada para o personagem.
Mas, Bem, aqueles logo vieram... Aí eu era muito
freguesada, Bem, era uma das que eles apreciavam
mais... Ah, uma pode errar de boiada, por ir-se atrás de
boiadeiro... (D, 75)
Ora, Doralda abandona sua vida desgarrada para ir atrás do
boiadeiro – seu Bem. No Cântico dos Cânticos, a noiva quer
saber onde está o noivo, para não parecer mulher perdida. A
relação entre os dois textos aponta uma pequena diferença:
no contexto bíblico, a mulher não quer parecer prostituta; no
contexto narrativo, a mulher deixa de ser prostituta. As duas,
no entanto, carecem do amado. A amada assim se dirige ao
amado: Indica-me, amor de minha alma, / onde pastoreias? /
Onde fazes repousar teu rebanho ao / meio-dia? / Para eu não
parecer uma mulher / perdida, / seguindo os rebanhos de teus /
companheiros. (CC 1, 7)
A tensão entre o texto bíblico e o narrativo se sustenta à
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CONTEXTO
medida que, como mulher perdida – a profana –, Doralda
é exaltada por Soropita da mesma forma que o homem
louva a amada no Cântico. Para melhor compreensão da
paródia do texto sagrado, necessário se faz indicar nos dois
textos as semelhanças (Quadro 1). Essas intertextualidades,
divisória contemporânea entre a univocidade (monologismo)
e a multiplicidade de vozes de um texto (dialogismo), tornase um fenômeno visto dentro do conceito de carnavalização.
Segundo Bakhtin, a carnavalização da literatura é a transposição
do carnaval para a linguagem da literatura. Para o mesmo autor,
o carnaval é uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual,
muito complexa, variada. (...) criou toda uma linguagem de
formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas
ações de massas e gestos carnavalescos. (BAKHTIN, 1981)
E mais:
Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor
grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal,
especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos;
no entanto é suscetível de certa transposição para
a linguagem cognata, por caráter concretamente
sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a
linguagem da literatura. [Grifo meu] (BAKHTIN, op.
cit.)
No texto rosiano, além das imagens sinestésicas que descrevem
Doralda – as formas concreto-sensoriais simbólicas –, a paródia do
texto sagrado corresponde a uma categoria da carnavalização
a que Bakhtin denomina profanação: sacrilégios, indecências
carnavalescas, relacionadas com as forças produtoras do corpo e da
terra, pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças
bíblicas. (BAKHTIN, op. cit.).
Doralda – égua, vaquinha, veada – inscreve-se assim como
personagem. Representa o par santa/prostituta, já estudado por
Affonso Romano de Sant’Anna na poesia de Manuel Bandeira.
Em “Dão-Lalalão”, a descrição da mulher se estrutura do
ponto de vista do amado, não obstante ser dividido porque
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
ela reúne as características do eterno feminino, a Grande Mãe
cindida entre o céu e a terra. A propósito, o leitor só conhece
Doralda pelo olhar de Soropita e pelos diálogos travados
entre os dois; em nenhum momento o narrador representa os
pensamentos femininos.
Mesmo assim, o amor de Doralda se revela tão intenso quanto
o de Soropita e essa reciprocidade retoma o mito do andrógino,
da eterna procura do ser humano pela continuidade no outro.
Ou então, aquilo que Doralda tinha falado, mais de
uma vez, muito falava: – “Bem, eu acho que só ficava
sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse estar
grudada em você, de carne, calor e sangue, costurados
nós dois juntos...” (D, 80)
Segundo Mircea Eliade, ao analisar os mitos andróginos em
várias religiões, desde as mais complexas e evoluídas até as
presentes nos povos de cultura arcaica, a androginia era, por
excelência, a forma da totalidade. Platão, Filon de Alexandria,
os teósofos neoplatônicos e neopitagóricos, os hermetistas ou
os inúmeros gnósticos cristãos concebiam a perfeição humana
como unidade sem fissuras. Esta, aliás, não passava de um reflexo
da perfeição divina, do Todo-Um (ELIADE, 1991).
Na perspectiva dessa concepção, interessa a idéia de totalidade,
uma vez que a imagem de Doralda comporta essa coincidentia
oppositorum, a reunião dos contrários, a totalização dos
fragmentos. Doralda reúne em si Deus e o Diabo, a santa
e a prostituta, o céu e a terra, o vale e o abismo. Por fim,
também quer formar um só corpo com Soropita, nesse ideal
andrógino de totalidade, semelhante às primitivas concepções
cosmogônicas. A androginia é aqui referida pelo ideal de
retorno à totalidade primordial, antes da separação entre Caos
e Cosmos, terra e céu, luz e trevas.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
O CAVALEIRO MEDIEVAL E SUA ARTICULAÇÃO
COM O APOCALIPSE EM “DÃO-LALALÃO”
“P’ra o certo e o duvidoso...” Soropita - o rei
nas armas. (D, 73)
Já foi observada, em outros estudos, a semelhança entre o
jagunço e o cavaleiro medieval europeu. Grosso modo, Leonardo
Arroyo aponta algumas características dessa semelhança:
ignorância da origem; exaltação da paixão amorosa; estilo
sentencioso; castidade (ARROYO, 1984).
A saga de heróis de cavalaria apresenta traços comuns, desde
Tristão, Lançarote e Galaaz até Amadis de Gaula, segundo
o princípio de que a cavalaria nasceu de dois ideais opostos: a
caridade do cristão e a força do guerreiro, resultando, portanto,
do acordo entre as duas categorias - a do guerreiro com o cristão
(ARROYO, op. cit.).
Alguns traços medievais podem ser identificados na história
de Soropita – rei nas armas. Do passado de Soropita, sabese da boa pontaria e constante belicosidade, das mortes,
das mulheres. De sua família nada se sabe. Além disso, ao
encontrar o amor, deixa-se levar pela paixão, travando no seu
interior uma batalha entre o bem e o mal, entre a confiança e
os ciúmes. Soropita, além disso, é capaz de matar aquele que
ousar desrespeitar sua amada.
Há outro acontecimento que auxilia na composição do
ambiente: a forma de transmissão oral funciona como miseen-abîme. A novela dentro da novela reproduz a temática do
amor. É hábito entre os moradores do Ão ouvir o relato da
novela recontado por Soropita.
A novela: ... o pai não consentia no casamento, a moça
e o moço padeciam. Todos os do Ão desaprovavam. O
Erém tinha lágrimas nos olhos. (D, 56)
As novelas de cavalaria também eram relatos populares,
conservados pela memória coletiva. Isso também se dá
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• 215
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
na narrativa em questão: Soropita, Doralda, Dalberto, os
demais personagens, o narrador, todos guardam as marcas
da oralidade, chegando mesmo a tanger no gênero épico,
como na literatura de cordel. Com o advento dos modernos
meios mecânicos, a tradição oral foi substituída por capítulos
para milhões de telespectadores. O gosto por telenovela
provavelmente decorre dessa prática primitiva de transmissão
cultural. Em “Dão-Lalalão”, a maior parte dos preceitos morais
também se transmitem pelas leis consuetudinárias, ampliando
a importância da tradição oral no sertão mineiro.
Mas a influência das novelas de cavalaria torna-se mais
evidente na composição do caráter de Soropita. Soropita é
o cavaleiro andante do sertão. É-lhe aprazível andar entre o
Ão e o Andrequicé toda a semana, para compensar sua vida
agora enraizada ao lado de Doralda. Além disso, pensa, de vez
em quando, manter abstinência sexual, caracterizando o voto
de castidade do guerreiro medieval. A fidelidade a Doralda,
outro traço do personagem, também é herdada do cavaleiro
andante. Por fim, acrescente-se a consagração da força,
como o patamar em que se imbricam o jagunço e o cavaleiro,
ressoando o código da cavalaria. Segundo Teófilo Braga,
foi característica fundamental da Cavalaria alta inspiração de
justiça misturada com os ímpetos individuais da arbitrariedade
(ARROYO, op. cit.). Soropita congrega essa concepção de
justiça e arbitrariedade. Mesmo os homens que mata não
são chorados pela comunidade da região, apesar da reação
impetuosa e violenta do executor.
Essa imagem de Soropita se intensifica quando ele sai em busca
do negro, a fim de matá-lo. E aí surge um “outro” sertão – o
místico, o medieval –, no que concerne à magia dos números. O
número dezenove pode ser considerado cabalístico, portador
de magia e superstição:
Seus olhos viam fogo de chama. E calcou mais na
cabeça seu chapéu-de-couro, chapéu com nove letras dezenove, nove - tapatrava. (D, 86)
216 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
O próprio escritor indica a Edoardo Bizzarri:
Em todo caso: no sertão, onde, como Você está
sentindo e vendo, a magia é inseparável de todos os
aspectos da vida, os valentões costumam às vezes trazer
letras, cabalísticas escritas, digo, gravadas, no chapéude-couro, ou em papeizinhos enfiados no respectivo
forro; para virtudes várias, proteção perante o destino.
No caso do Soropita: o “dezenove, nove” é alusão
“apocalíptica’, a trecho do próprio Apocalipse. (BIZZARRI,
op. cit.)
Então, lê-se no Apocalipse, no capítulo 19, que descreve a
queda da Babilônia pelo Cordeiro de Deus:
Seus olhos são como chamas de fogo, traz na cabeça
muitos diademas e tem um nome escrito que ninguém
conhece, só ele mesmo. (Ap 19, 12)
A palavra trapatava adquire, nessa perspectiva, uma dimensão
misteriosa, cabalística, a respeito da qual nem mesmo o nosso
Soropita quererá explicar nada (BIZZARRI, op. cit.). Essa
palavra mágica, portanto, é a chave para entrar-se no nível
em que o Apocalipse e as novelas de cavalaria se encontram.
O sincretismo religioso – carnavalizado – se apresenta nessa
junção, aliás o mesmo que caracteriza o cavaleiro andante.
O ideal de castidade do cavaleiro medieval conjuga-se ao ideal
de divinização do par humano, já visto na análise paralela
ao Cântico dos Cânticos. Novamente, com o apoio do texto
apocalíptico (Quadro 2), a figura do herói transfigura-se em
rei, em senhor, rei dos reis. As duas forças antagônicas se
confrontam: o bem e o mal, o rei e a besta, o deus e o diabo,
o branco e o preto, o amor e o ódio, o fidalgo e o plebeu.
Enfim, esse binarismo de origem cristã promove a tensão do
texto narrativo: as novelas de cavalaria, com sua herança de
heróis guerreiros, de um lado; de outro, o texto apocalíptico
para avivar ainda mais esse conflito.
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• 217
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Há outro índice da ética medieval presente no texto em
questão: o perdão. Soropita que, sai à procura de Iládio para
perpetrar seu ato de vingança, ouve a súplica do negro: - Tou
morto, tou morto, patrão Surrupita, mas peço não me mate, pelo
ventre de Deus, anjo de Deus, não me mata... Não fiz nada! Não
fiz nada!... Tomo bênção... Tomo bênção... (D, 87)
Ao suplicar por sua vida, o negro Iládio recorre ao código da
cavalaria: quem mercê pede, mercê alcança. Mais do que vencer
uma luta, Soropita vence as trevas. Coração da gente - o escuro,
escuros.
Portanto, a carnavalização presente no texto narrativo é
garantida por essa mistura de códigos e gêneros. O aspecto
profano dos dois personagens dialoga sempre com a dimensão
sagrada dos textos parodiados, elevando as categorias dos
personagens dentro do ambiente carnavalesco: a prostituta e o
matador são agora divinizados.
O SERTÃO DE DORALDA E SOROPITA
Guimarães Rosa, na correspondência com Bizzarri, utiliza os
seguintes termos: paráfrase, alusão, projeção, impregnação,
inoculação, ressonância; usou termos diferentes para explicar
a câmara de ecos de que resultou “Dão-Lalalão”. Neste artigo,
adotou-se o uso do termo paródia no sentido dado por Bakhtin,
em que textos sagrados são dessacralizados. Sem querer forçar
o enquadramento de uma análise textual a partir de um modelo
pré-concebido, preferiu-se verificar como o texto se compôs
dentro das categorias da carnavalização. A diluição dos limites
entre vulgar e sublime, presente na carnavalização, repete-se na
diluição dos limites entre os gêneros. Aristóteles, em sua Poética,
atribuiu a origem da paródia, como arte, a Hegemon de Thaso
(séc. 5 a. C.), porque ele usou o estilo épico para representar os
homens não como superiores, mas como inferiores (SANT’ANNA,
1985).
Portanto, é no sentido de dessacralização – profanação –
218 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
que “Dão-Lalalão” se estrutura como paródia. As epígrafes
remetem a Plotino, de onde se extraem duas anotações
filosóficas: a vida como teatro, a vida como dança. Por aí
começa a carnavalização. A novela passa a ser poema, todo
enfeitado com as marcas da tradição.
A carnavalização de gêneros possibilitou, além da profanação do
texto bíblico, a mésalliance (o casamento de uma prostituta com
um valentão, proibido pela doxa), na criação dos personagens.
A forma como Soropita vê a amada – a mulher amada do
Cântico e a Babilônia do Apocalipse – reflete essa duplicidade:
nua, sobre animal vermelho, sempre à deriva, cercada de jóias
e mortes. Portanto, excêntrica com relação a qualquer norma
social.
Também com relação a Soropita dá-se o mesmo. Conjugando
o guerreiro e o religioso, ele age com ímpeto de arbitrariedade
quando decide matar Iládio. Ao mesmo tempo, “impregnado”
pela descrição do anjo apocalíptico, Soropita eleva-se à
condição de um deus, de Rei dos reis, para representar a nobreza
do jagunço. Aí a paródia também se configura.
Como última citação, o comentário de Guimarães Rosa:
Voltando ao “Dão-Lalalão”, isto é, aos curtos trechos
em que assinalei as “alusões” dantescas, apocalípticas
e cântico-dos-canticáveis. (ALIÁS, é apenas nessa
novela (“Dão-Lalalão”) que o autor recorreu a isso.)
Como Você vê, foi intencional tentativa de evocação,
daqueles clássicos textos formidáveis, verdadeiros
acumuladores ou baterias, quanto aos temas eternos
(BIZZARRI, op. cit.)
Mais adiante, acrescenta: E para funcionar, apenas, em passagens
de ligação, como coloração do pano-de-fundo (BIZZARRI, op.
cit.). O escritor mostra intertextualmente que o amor entre
um bandido e uma prostituta é o mesmo amor entre um rei
e uma rainha, entre um nobre e uma dama, que se buscam
com o mesmo fim: encontrar a continuidade perdida, aquela
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• 219
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
de quando o universo não fazia diferença entre céu e terra, luz
e trevas, bem e mal.
Guimarães Rosa, nessa narrativa de “Dão-Lalalão”, ilumina o
leitor e, conscientemente, envia-o para os textos canônicos de
nossa cultura. Quase envergonhado, “confessa” as apropriações
a seu tradutor, mas consegue disfarçar o roubo nos entremeios
de sua criatividade lingüística, ou, porque não dizer, da alma
carnavalizada do brasileiro.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão:
veredas: filiações e sobrevivências tradicionais, algumas vezes
eruditas. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1984.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad.
Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BÍBLIA sagrada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982.
BIZZARRI, Edoardo. J. Guimarães Rosa: correspondência. São
Paulo: Ed. Pedagógica Universitária, 1973.
ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
ROSA, João Guimarães. “Dão-Lalalão”. In: Noites do sertão.
12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia.
2.ed. São Paulo: Ática, 1985.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. “Manuel Bandeira: do
amor místico e perverso pela santa e a prostituta à família
mítica permissiva e incestuosa.” In: O canibalismo amoroso: o
desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4. ed. Rio
de Janeiro: Rocco, 1993.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
Quadro 1
“Dão-Lalalão”
Cântico dos cânticos
- Até o nome de Doralda, parece
que dá um prazo de perfume!...
Roda das flores - da flor de
toda cor... Você podia cantar, você
dançava, no meio das meninas...
p. 75
E mais aromático que teus
perfumes
Os dentes,
brancura
carneirinhos. p. 76
de
Teus dentes são como um
rebanho
de
ovelhas
tosquiadas. 4, 1
‘Tu é bela!...” O vôo e o arrulho
dos olhos. p. 76
Como és formosa, minha
amada!
é teu nome, mais que perfume
derramado. 1, 3
Como és formosa, com teus
olhos de pomba. 4, 1
O cabelo, cabriol. A como as
boiadas fogem no chapadão,
nas chapadas. p. 76
Teus cabelos são como
rebanho
de
cabras,
esparramando-se
pelas
encostas do monte Galaad.
4, 1
A boca - traço que tem a cor
como as flores. p. 76
Teus lábios são fitas de
púrpura, de fala maviosa. 4, 3
Donde a romã das faces. p. 76
Tuas faces são metades de
romã, na transparência do
véu. 4, 3
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• 221
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
O pescoço, no colar, para se
querer, com sinos e altos, de se
variar de ver. p. 76
Teu pescoço é como a torre de
Davi,
Os doces, da voz, quando ela
falava, o cuspe. p. 76
Porque tua voz é doce, gracioso
o teu semblante. 2, 14
É! Tu é a melhor, a mais
merecida de todas... p. 77
Uma só, porém, é a minha
pomba, o meu primor. 6, 9
Bem, eu estou adoecida de
amor. p. 85
Conjuro-vos,
Jerusalém:
construída com parapeitos,
da qual pendem mil escudos
e armaduras de todos os
heróis. 4, 4
ó
filhas
de
se encontrardes o meu amado,
anunciai-lhe que desfaleço de
amor! 5, 8
222 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
Quadro 2
“Dão-Lalalão”
Apocalipse
Tremia nas cascas dos joelhos,
mas escutava que tinha de ir feito
bramassem do escancarado do
céu: a voz grande do mundo. De
um pulo estava em cima do
cavalo alvo, éguo de um grande
cavalo, para paz e guerra, o
cavalo Apouco, que sacudia a
cabeça, sabia do que vinha em riba
dele, tinha confiança – e escarnia:
cavalo capaz de morder caras...
– “Bronzes! Com minha justiça,
brigo, brigo...” p. 86
Vi o céu aberto e eis um
cavalo branco. Quem o
montava chamava-se Fiel e
Verdadeiro e é com justiça que
julga e faz guerra. 19, 11
Seus olhos viam fogo de chama.
p. 86
Seus olhos são como chamas de
fogo, (...). 19, 12
O preto o matava, seu paletó ia
estar molhado de sangue. p. 86
Está vestido com um manto
tinto de sangue e seu nome é
Verbo de Deus. 19, 13
Olhou para trás: dos baixos do
riacho do o, só uma neblina,
pura de branca, limpas por
cima as nuvens brancas,
também uma cavalhada. p. 86
Seguem-no
os
exércitos
celestes em cavalos brancos,
vestidos de linho branco
puro. 19, 14
Seus dentes estalavam em ferro,
podiam cortar como uma faca
de dois lados, naquela cachaça,
meter verga de ferro no negro. p.
86
De sua boca sai uma espada
afiada para ferir as nações.
Deverá governá-las com cetro
de ferro e pisar o lagar do
vinho com o furor da cólera de
Deus Todo-poderoso. 19, 15
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• 223
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
E dava um murro na polpa da
coxa, coxa de cavaleiro dono de
dono, seu senhor! p. 86
Sobre o manto e sobre a coxa
está escrito seu nome: Rei dos
reis, Senhor dos Senhores.
19, 16
No céu, o sol dava contra ele
– por cima do sol, podia ir
sua sombra, dele, Soropita, de
braços abertos e aprumo, e aos
gritos: - “Ajunta, povo, venham
ver carnes rasgadas!...” p. 86
Vi então um anjo de pé
sobre o sol, que gritou com
grande voz para todas as
aves que voam pelo alto
do céu: “Vinde, reuni-vos
para o grande festim, para
comerdes a carne dos reis.”
19, 17-18
O preto Iládio, belzebu, seu
enxofre, poderoso amontoado
na besta preta. Ah, negro, vai
tapar os caldeirões do inferno.
p. 86
Mas a besta foi presa e com
ela o falso profeta, que fazia
sinais à sua frente, com os
quais extraviava os que haviam
recebido a marca da besta e os
que adoravam a sua imagem.
Ambos foram lançados vivos
no lago de enxofre ardente.
19, 20
Igual a um pensamento mau, o
preto se sumia, por mil anos. p.
87
Ele pegou o dragão, a serpente
antiga, que é o diabo, Satanás,
e o acorrentou por mil anos.
20, 2
Recebido em 12/07/2008
Aprovado em 10/08/2008
224 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
O NEOBARROCO EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS
DE GUIMARÃES ROSA
Carolina Paganine
UFSC
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive,
os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
Quando nada acontece, há um milagre que
não estamos vendo. (João Guimarães Rosa)
Resumo: O poeta cubano Severo Sarduy fornece algumas
ferramentas para interpretar os elementos barrocos
encontrados na literatura contemporânea, tais como a
artificialização (grande uso de metáforas), a proliferação
(progressão metonímica que remete ao significado ausente) e a
condensação (troca ou fusão entre elementos fonéticos). Neste
artigo, analisa-se como esses mecanismos aparecem na prosa
de Guimarães Rosa, tomando como ponto de partida os contos
de Primeiras estórias (1962). Procura-se evitar a categorização
peremptória da obra de Guimarães Rosa como neobarroca,
já que o termo foge a definições estanques e permeia grande
parte da arte contemporânea. A crise da representação artística,
apontada por Michel Foucault em A palavra e as coisas (1966),
é potencializada na prosa poética do autor brasileiro. Assim, ao
reagir a um postulado de regionalismo realista, Guimarães Rosa
escapa da mera representação do objeto e procura construir
sua arte no tecido lingüístico em si. Sua narrativa é um convite
ao leitor para uma viagem nos meandros da linguagem, cuja
ambigüidade reflete uma ambigüidade da existência.
Palavras-chave: Neobarroco. Guimarães Rosa. Representação
literária. Primeiras estórias.
Abstract: The Cuban poet Severo Sarduy has developed
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• 225
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
some tools for interpreting baroque elements found in
contemporary literature such as artificiality (extensive use of
metaphors), proliferation (a progression of metonymies that
refers to an absent meaning) and condensation (an exchange
or a fusion of phonetic elements). In this article, I analyze how
these elements work in the prose of Guimarães Rosa, taking
the short stories of Primeiras estórias (1962) as the starting
point. A definite categorization of Guimarães Rosa’s work as
neo-baroque was avoided since the term neo-baroque does
not fit rigid definitions and it has a very pervasive influence in
the contemporary Arts. The crisis of artistic representation,
pointed out by Michel Foucault in The order of things (1966),
is intensified in the poetic prose of the Brazilian writer. Thus,
by reacting against the postulate of Realistic regionalism,
Guimarães Rosa escapes from a simplified representation
of the object in order to create his art in the very fabric of
language. His narrative is an invitation to the reader to a trip
in the meanders of language whose ambiguity reflects the
ambiguity of existence.
Keywords: Neo-baroque; Guimarães Rosa; literary
representation; Primeiras estórias.
Por muito tempo, o conceito de barroco esteve atrelado a uma
conotação negativa. A história mais plausível do termo aponta
para origens portuguesas ou espanholas de designação de
uma pérola de superfície irregular, comumente chamada pelos
comerciantes de berrueco ou barrueco. A partir daí, a palavra
“barroco” passou a ter conotação de imperfeição e mau gosto.
Na periodização da história da arte, então, o termo começou a
ser usado para designar o período que sucedeu o Renascimento
e que se acreditava ser caracteristicamente oposto a este
último. Se as formas e os padrões renascentistas eram o ideal
clássico, o barroco era tudo aquilo de negativo e bizarro na
arte. Acreditava-se, também, que o barroco representava uma
decadência do estilo renascentista. Enfim, era uma expressão
226 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
artística inferior.
É apenas na segunda metade do século XIX que o barroco
começa a ser visto como um período artístico tal como o
foi o Renascimento. Não mais decadência e esgotamento
estético e, sim, um processo natural de evolução da arte.
Muito importante para isso foi a definição de um período
intermediário entre o renascimento e o barroco – o
maneirismo, que representaria um estágio de incubação e
preparação das formas artísticas que viriam a compor as
futuras expressões barrocas. É o que afirma, por exemplo,
Lourival Gomes Machado:
Basta lembrar que o maneirismo, uma dessas
fases que se julgara de bom aviso lançar ao rol
das decadências insignificantes, reaparece hoje
como cumprindo uma função importante, pois
permite compreender o trânsito, formal e cultural,
entre duas expressões artísticas antes tidas por
simplesmente contraditórias e antagônicas. 45
A idéia de que se processou uma transformação gradual
do renascimento em outro estilo artístico, transformação
esta que acompanhou o contexto histórico sócio-cultural,
possibilitou novas análises sobre o barroco. Agora,
começava-se a valorizá-lo como um período de propriedades
únicas e respeitáveis, digno da mais alta fruição estética.
Foi por volta de 1888 que Heinrich Wölfflin46 desenvolveu
sua teoria a respeito da arte e também do barroco. Para
Wölfflin, o barroco é um conceito muito maior do que o
de apenas uma categoria histórica. Passa a ser um elemento
recorrente na história da arte.
Segundo esta teoria, a arte barroca e a arte clássica seriam
como duas pulsões artísticas que estivessem sempre a se
alternar na evolução da cultura. Não se restringem, agora,
45
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, p. 38.
46
In Renascença e Barroco e Conceitos Fundamentais da História da
Arte.
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• 227
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
à denominação de manifestações estéticas delimitadas
historicamente. Enfim, “O Barroco não será um estilo, mas
um dos dois estádios sucessivos de todos os estilos, (...)”.47
Apesar de ter sido formulada em relação às artes plásticas,
a teoria de Wölfflin também pode ser aplicada ao estudo
da literatura. Em relação à literatura, os conceitos do
autor remetem a uma linguagem que não é nem um pouco
referencial. Pelo contrário, é extremamente metafórica e,
por isso, um tanto misteriosa. Nas palavras de Hatzfeld,
é “(...) um estilo que, em lugar de revelar sua arte, a
esconde”.48
A contundência da aplicação das características formalistas
de Wölfflin à arte literária já fora apontada brevemente pelo
mesmo quando comparando o Orlando Furioso (1516), de
Ariosto, e Jerusalém Libertada (1580), de Tasso49. Ambas as
obras representariam a dicotomia entre o renascimento e o
barroco na literatura.
A partir daí, foram surgindo vários críticos, tais como Leo
Spitzer, Helmut Hatzfeld e René Wellek, que começaram a
aplicar o conceito de barroco aos estudos literários.
O Neobarroco
Se, hoje em dia, o conceito histórico de barroco é
amplamente reconhecido na literatura, uma questão que se
coloca é aquela a respeito de uma eventual presença de um
neobarroquismo em obras contemporâneas.
O neobarroco, contudo, ainda carece de uma definição
que viabilize sua aplicação plena nos estudos literários.
Muito mais do que um conceito acabado, a legitimidade
de se falar em neobarroco se prende à percepção da
49
47
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, p. 41.
48
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco, p. 16.
228 •
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco, p. 98.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
ocorrência de determinadas características em certas
obras contemporâneas, tais como as explicitadas por
Severo Sarduy50. Todavia, deve-se ter cuidado na aplicação
de tais categorias, pois devido ao seu caráter abrangente e
generalizador, muitas vezes podem ser aplicadas a toda e
qualquer obra contemporânea. Como, de resto, na utilização
indiscriminada de rótulos, corre-se o risco de enxergarmos o
que as obras têm em geral e não perceber o que elas têm de
singular.
Recursos como a artificialização ou a paródia, que foram
assegurados como próprios do neobarroco por Sarduy, nos
parecem também constituintes da arte moderna como um
todo. Não são suficientes e nem esgotam as possibilidades da
criação neobarroca e, portanto, não fornecem uma definição
exclusiva do que é o neobarroco.
O trabalho de Sarduy, entretanto, não é em vão. Logo no início
do seu texto, ele alerta para o “perigo” das generalizações a
respeito do neobarroco:
(...) interessa-nos, ao contrário, restringi-lo (o conceito
de barroco), reduzi-lo a um esquema operatório
preciso, que não deixe interstícios, que não permita
o abuso ou o desenfado terminológico de que esta
noção sofre recentemente(...)51
Apesar de suas proposições serem questionáveis quanto à
restrição ao neobarroco, não há dúvidas de que elas serviram
para, de alguma forma, esquematizar características importantes
da criação neobarroca, além de serem um pequeno alerta para
futuros estudos. Assim, é válido apresentar brevemente o
que foram os tais enunciados de Sarduy, de modo a facilitar a
análise posterior dos textos de Guimarães Rosa.
O primeiro recurso do barroco, segundo Sarduy, seria a
SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco. In América Latina em
suas literaturas.
50
51
Idem, p. 162.
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• 229
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
artificialização. Este processo seria definido por um grande
uso de metáforas e, também, de metáforas de metáforas. Isto
é, seria uma linguagem que está incessantemente envolvendose sobre si mesma. Uma linguagem da linguagem, na qual
sucessivas máscaras são sobrepostas – os chamados artifícios.
Dentro da artificialização, podemos identificar três
mecanismos. O primeiro seria a substituição. Nela, um
significante é substituído por outro significante cujo significado,
aparentemente, não apresenta nenhuma aproximação com o
primeiro. Entretanto, dentro do contexto específico da escrita,
e somente nele, este último significante assume o significado
primeiro, fazendo com que o processo de artificialização
funcione.
O segundo mecanismo seria a proliferação. Esta consiste no
uso de significantes dispostos em uma cadeia de progressão
metonímica que, em seu conjunto total, remete ao significante
ausente e, logo, ao significado almejado. Em outras palavras, a
proliferação seria “(...) uma forma de enumeração disparatada,
de acumulação de diversos nódulos de significação, de
justaposição de unidades heterogêneas, de lista díspar e
collage”.52
Por último, temos a condensação, que representaria o processo
de troca ou fusão entre elementos fonéticos e plásticos de
dois significantes. Este somatório resulta em um terceiro
significante que condensa, resume em si, o significado dos dois
primeiros.
Em seguida, Sarduy faz uma exposição sobre a paródia
como forma de expressão característica do barroco.
Insere-se aí o processo de carnavalização que traduz, na
linguagem, a ambivalência, a confusão e a polifonia. Também
partes integrantes da paródia seriam os mecanismos de
intertextualidade e intratextualidade. Ambos atuam em níveis
diferentes, sendo que o primeiro trabalha com a incorporação
direta (citação) ou indireta (reminiscência) de outros textos e
52
230 •
Ibidem, p. 165.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
o segundo com a escrita que supera a linearidade e incita a um
caminho alternativo de leitura, no qual há uma “escritura entre
a escritura”.53
Sarduy termina seu texto concluindo que o barroco constitui
um espaço erótico pois nele prevalece a superabundância
e o desperdício em função do prazer, em detrimento
da funcionalidade e economia da linguagem puramente
comunicativa.
Como a retórica barroca, o erotismo apresenta-se
como a ruptura total do nível denotativo, direto e
natural da linguagem – somático –como a perversão
que implica toda metáfora, toda figura.54
O neobarroco seria um jogo no qual se está sempre em busca
do objeto perdido que, por sua vez, não pode ser alcançado.
É, então, um reflexo do desequilíbrio, da ruptura com o
logocentrismo, da desarmonia e da rebeldia. Enfim, como
assevera Sarduy ao final de seu texto:
(...) barroco que recusa toda instauração, que
metaforiza a ordem discutida, o deus julgado, a lei
transgredida. Barroco da Revolução.55
A viagem neobarroca de Guimarães Rosa
Uma obra da literatura brasileira que apresenta nítidas
ressonâncias neobarrocas é o livro de contos Primeiras estórias
(1962). Apesar de ter sido publicado depois de Grande Sertão:
Veredas (1956), Primeiras estórias parece ser uma pequena
amostra daquilo que foi revelado primordialmente em Grande
Sertão. Isto é, uma abordagem que privilegia a construção
lingüística das palavras, na qual significante e significado,
juntamente com a musicalidade, formam um todo que supera
55
53
Ibidem, p. 173.
54
Ibidem, p. 177.
Ibid, p. 200.
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• 231
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
a narrativa convencional, partindo para uma expressão lírica
do psicológico.
Segundo Alfredo Bosi,
Para Guimarães Rosa, como para os mestres da prosa
moderna (um Joyce, um Borges, um Gadda), a palavra
é sempre um feixe de significações: mas ela o é em
um grau eminente de intensidade se comparada aos
códigos convencionais da prosa. Além de referente
semântico, o signo estético é portador de sons e de
formas que desvendam, fenomenicamente, as relações
íntimas entre o significante e o significado.56
A partir do conceito de “palavra como feixe de significações”,
podemos chegar até ao barroco pelo caminho de uma
intensa elaboração da linguagem. É um verdadeiro trabalho
artesanal no qual as palavras são entalhadas meticulosamente
conforme seus sons e até suas formas visuais. Como disse
Bosi, caminhamos nossa leitura para além de meras referências
semânticas e partimos para um mundo de interpretações
multissensoriais.
Aqui podemos fazer uma ponte entre a obra literária de Rosa
e a arte barroca. Em ambos notamos uma forma de expressão
que pretende extrapolar seus limites formais, que quer nos
proporcionar outras interpretações que não somente o simples
processo código-mensagem. Uma forma de expressão que
anseia em mostrar algo a mais no objeto artístico. É o que
avalia, por exemplo, Affonso Ávila:
Há, portanto, em toda a arte barroca declarada
propensão para uma forma que se abre em
indeterminação de limites e imprecisão de contornos,
uma forma que apela para os recursos da impressão
sensorial, que não quer apenas conter a informação
estética, mas sobretudo comunicá-la sob um grau de
56
483.
232 •
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira, p. 482 e
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
tensão que transporte o receptor, o espectador, da
simples esfera de plenitude intelectual e contemplativa
para uma estesia mais franca e envolvente – mais do que
isso, para um êxtase dos sentidos sugestionadamente
acesos e livres.57
Dessa forma, em uma primeira leitura, os contos de Rosa
podem parecer simples, retratando situações banais como a
de um menino que vive momentos de alegria e tristeza ao se
afeiçoar a um peru e depois a uma árvore, tendo os dois um
destino fatal para desgosto do menino.
Este é o enredo de “As margens da alegria”, primeiro conto do
livro Primeiras estórias. Dentro desta singela história, porém,
podemos encontrar temas que ultrapassam o mero enredo,
tal como o caráter de sonho e liberdade dos acontecimentos
experimentados pelo menino que, de repente, vê-se imerso
numa alegria aparentemente infinita. Logo no início do conto,
somos informados de que:
Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produziase em caso de sonho. (...) O menino fremia no
acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com
um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar
numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe
o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e
logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais.
Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato
de respirar – o de fugir para o espaço em branco. O
Menino.58
Neste conto, percebemos um tema bastante pertinente ao
barroco que é a efemeridade e a inconstância da vida que são
apresentadas em figuras que, de alguma forma, relacionam-se
com a idéia de movimento e fugacidade. É assim na expressão
“com um jeito de folha a cair”, acima citada, que descreve o
57
ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, p. 20.
58
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 7.
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• 233
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
comportamento do Menino, e também com o uso do termo
“nuvem”, figura passageira por essência, que junto com a
repetição da letra “L” e da palavra “longa” nos dão uma
notável sensação de transitoriedade e demora na seguinte frase
sobre a viagem de avião do garoto: “A luz e a longa-longalonga nuvem. Chegaram”.59
Também em outro trecho, observamos um forte apelo ao
movimento, a não-estabilidade das coisas. É assim quando o
Menino faz um passeio de jipe e o autor faz uma descrição do
caminho:
A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos.
O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde,
atravessando a estrada. A arnica: em candelabros
pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas
e o seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As
flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. (...)
A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-aíndio. Essa paisagem de muita largura, que o grande
sol alargava. O buriti, à beira do corguinho, onde,
por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas
do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria,
sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos
de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito
puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser
dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e
desconhecido. Ele estava nos ares.60 (grifos meus)
Apelando para uma cadeia semântica que sugere movimento
(“o velame branco”, “a cobra-verde”, “os papagaios”,
“corguinho”), o narrador sugere uma tomada cinematográfica,
convidando o leitor à reconstrução da cena. Imagem repleta de
percepções sensoriais, táteis e visuais, que se sobrepõe umas às
outras e, por fim, se ligam a uma espécie de memória afetiva
da criança.
59
Idem, p. 8.
60
Idem, p. 9.
234 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Esta descrição também pode ser considerada uma proliferação,
conforme explicado anteriormente. Vemos aqui uma cadeia
de termos que adquirem um sentido através do todo que é
o passeio de jipe. Além disso, as palavras progridem num
crescendo que vai da poeira e das pequenas plantas, passando
por cobras, papagaios e seriemas, até a paisagem alargada pelo
sol.
Acima de tudo, porém, vemos no Menino de “As margens da
alegria” aquela mesma dualidade do homem barroco entre vida
e morte, entre eternidade e finitude. O menino, que admirava a
exuberância do peru, sofre com a descoberta de que tudo tem
um fim: “Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num
átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. (...) Só no
grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama
de morte”.61
Ademais, esta dualidade também se faz presente na comparação
entre o passeio de jipe pelo sítio que transbordava vida e o
outro passeio pelo lugar árido e cinzento onde construíam uma
pista de avião. Aí, o Menino assiste, chocado, a uma derrubada
de árvore. Neste momento, o narrador nos revela a terrível
descoberta feita pelo Menino:
Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo
secreto: descobria o possível de outras adversidades,
no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o
contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima,
quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.62
Já neste conto, observa-se que a finitude adquire grande
relevância temática. Para Afrânio Coutinho, o “barroco é uma
arte da morte e dos túmulos”63 no qual a desintegração física
e o ato de morrer são temas recorrentes. De uma forma ou
de outra, a “morte” aparece em muitos contos, “A menina
63
61
Idem, p. 10.
62
Idem, p. 10.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira, p. 103.
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• 235
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
de lá” e “Famigerado”, no impulso inicial da ação em “Os
irmãos Dagobé”, ou na angústia dos jovens apaixonados
de “Nenhum, nenhuma”, que dependem tanto da morte de
Nenha, “uma velha, uma velhinha – de história, de estória –
velhíssima, a inacreditável” como da morte do pai da moça
para concretizarem seu amor.
Outro tema que permeia diversos contos da obra é a loucura.
De acordo com Helmut Hatzfeld, a loucura seria um dos
elementos decisivamente barrocos pois “(...) a loucura é uma
espécie de metáfora, porque também o louco toma uma
coisa por outra”.64 Sendo o uso excessivo de ornamentos,
mais especificamente, de metáforas, um recurso usado com
excelência pelo barroco, nos fica aqui claro que a presença
significativa do tema da loucura em Primeiras estórias pode ser
interpretado como uma evidência de barroquismo.
Assim, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, as duas mulheres estão
de partida para um manicômio e isto acaba virando um grande
acontecimento na cidade. No caminho para a estação de
trem, elas começam a cantar uma canção que ninguém podia
entender. Após a partida, surpreendentemente, Sorôco começa
a entoar a mesma canção e com ele, os outros cidadãos. A
cantiga das loucas, a música desatinada, desvairada, passa a ser,
então, um código pelo qual todos puderam compartilhar do
sofrimento de Sorôco.
A loucura também é abordada em “A terceira margem do rio”,
no qual um pai de família encomenda uma canoa e passa a
viver pelo rio, sem nunca mais pôr os pés em terra. “Nossa
mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso,
todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam
falar: doideira.”65 E seu filho, que narra a história, pode nos
dar a impressão de ter ficado louco também, pois chega a
propor ao pai que troquem de lugar, mas acaba recuando ante
sua aproximação. É no último parágrafo que a melancolia e
64
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco, p. 32.
65
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 33.
236 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
pessimismo ficam evidentes, e o texto acaba por assemelhar-se
a um canto fúnebre:
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém
soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento?
Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos
do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da
morte, peguem em mim, e me depositem também
numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de
longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro
– o rio.66
Passamos, então, a tratar de outros aspectos da literatura
barroca que são a clareza relativa e a polifonia. Pelo primeiro,
entende-se a fusão de todos os detalhes, que são muitos na
arte barroca, sob um todo único e coerente. É como Afrânio
Coutinho bem exemplifica:
As coisas, as pessoas, ações não são descritas, apenas
evocadas, seus contornos indistintos e apagados
fundem-se, refletidos como por um espelho através
da visão das personagens: o perspectivismo, o
expressionismo, o engavetamento são, por isso, as
formas expressionais mais comuns, ao lado do estilo
prismático.67
Já a polifonia, ou multivocidade, refere-se ao discurso
contrapontístico no qual diversas vozes se intercalam, mas que,
sobretudo, giram em torno de uma idéia central. A polifonia
está intimamente ligada à clareza relativa, pois seus limites são
“esfumados”, “sombreados”, de forma que o que se sobressai,
no final, é o tema principal.
Isto pode ser melhor exemplificado em contos como
“Pirlimpsiquice”, “Partida do audaz navegante” e “Nenhum,
nenhuma”.
66
Idem, p. 37.
67
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira, p. 106.
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• 237
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Em “Pirlimpsiquice”, ocorre uma mistura entre ficção e
realidade que nos dá uma certa impressão de clareza relativa
da qual nos fala Wölfflin. Neste conto, passado em um colégio
religioso somente para meninos, decide-se montar uma peça
de teatro. Alguns alunos são escolhidos para contracenar sob
a condição de manter em sigilo total o teor do drama. A partir
daí, os alunos-atores começam a inventar uma outra história
para despistar os curiosos que não participam da peça. Neste
meio tempo, também surge uma outra versão inventada por
um dos alunos de fora, o Gamboa, e ainda outra, a verdadeira,
que misteriosamente estava sendo divulgada.
Todavia, não é este o fato mais genial do conto. Quando é
chegada a hora de representar a peça, no teatro cheio, os
atores esquecem-se do texto e passam a representar aquela
outra história inventada por Gamboa. Apesar de um primeiro
momento de vaias, o público se rende e se seduz por aquele
drama improvisado.
É a extrapolação das fronteiras entre teatro e vida real, entre
meninos e personagens, entre verdade e mentira, que se
fundem todos na última fala do conto, proferida por Gamboa:
“– Eh, eh, heim? Viu como era que a minha estória também era
a de verdade?”.68
Em “Partida do audaz navegante”, também ocorre o mesmo
processo de uma narrativa dentro da narrativa. Primeiro, temse, simplificadamente, a história de quatro crianças, três irmãs
e um primo, e a mãe das garotas. Brejeirinha, a mais nova, é
muito esperta e gosta de brincar com as palavras, mesmo com
as quais não sabe o significado dicionarizado. Assim, começa
a imaginar uma história na qual Zito, o primo, é um “pirata
inglório marujo”, o “Audaz navegante”, que se envolve numa
história de amor apesar de ter que partir de navio para longe. A
narrativa começa, então, a ter certa ligação com o real, pois Zito
e Ciganinha, a outra irmã de Brejeirinha, estão enamorados.
Como não consegue arrumar um final feliz que agradasse ao
68
238 •
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 46, grifo do autor.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
primo e à irmã, Brejeirinha recomeça a história, fazendo
de um monte de esterco, à beira de um riacho, o “Audaz
navegante”. Após enfeitá-lo com flores, empurra-o rio
abaixo, terminando assim sua história.
Nesta breve exposição do enredo, podemos identificar que
um emaranhado de pequenas histórias vão se fundindo
umas nas outras até virarem uma só que acaba por ser a do
esterco/navegante.
Já em “Nenhum, nenhuma”, o que nos chama a atenção é
o intenso tom lírico dado à narrativa em terceira pessoa por
meio de inserções de observações em primeira pessoa, de
grande teor poético. É a polifonia em sua melhor expressão:
Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para
algo remembrar, da chuva que caía, da planta que
crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais,
os baús, arcas, canastras, na tenebrosidade, a gris
pantalha, o oratório, registros de santos, como
se um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao
se desdobrar, os cheiros nunca mais respirados,
suspensas florestas, o porta-retratos de cristal,
floresta e olhos, ilhas que se brancas, as vozes das
pessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazes
a foco as altas camas de torneado, um catre com
cabeceira dourada; talvez as coisa mais ajudando, as
coisas, que mais perduram: o comprido espeto de
ferro, na mão da preta, o batedor de chocolate, de
jacarandá, na prateleira com alguidares, (...). 69
Neste conto, Rosa fez uso da escrita em itálico para
evidenciar a segunda voz que, por vezes, parece participar
de um jogo com a primeira voz no qual memória,
lembranças e fatos se misturam e brincam entre si. É o que
se vê também em:
69
Idem, p. 49, grifos do autor.
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• 239
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Eles se olhavam para não-distância, estiadamente,
sem saberes, sem caso. Mas a Moça estava devagar.
Mas o Moço estava ansioso. O Menino, sempre lá
perto, tinha de procurar-lhes os olhos. Na própria
precisão com que outras passagens lembradas se
oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite
a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos,
que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo
menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade.
Mas o Menino queria que os dois nunca deixassem
de assim se olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida,
também, não.70
Mais adiante no texto, num momento crucial, percebe-se que
a memória acaba vencendo o esquecimento pela força que os
fatos têm de ser relembrados:
Vê-se – fechando um pouco os olhos, como a memória
pede: o reconhecimento, a lembrança do quadro, se
esclarece, se desembaça. Desesperado, o Moço, lívido,
ríspido, falava com a Moça, agarrava-se aos varões da
grade do jardim.71
Ao fim, a narrativa principal que era em terceira pessoa passa
a ser em primeira, sem os grifos em itálico, marcando aqui
também o encontro, a união, das vozes. Repare no segundo
parágrafo onde começa o uso de pronomes pessoais e verbos
na primeira pessoa, marcando a transição:
Pouco a pouco, o Menino, devagarinho, chorava,
também, o cavalo soprava. (...) Daí viu-se em casa.
Chegara.
Nunca mais soube nada do Moço, nem quem era,
vindo junto comigo. Reparei em meu pai, que tinha
bigodes. (...) Minha Mãe me beijou, queria saber
70
Idem, p. 48, grifos do autor.
71
Idem, p. 53, grifos do autor.
240 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
notícias de muita gente, (...).72
Outro conto de grande importância em Primeiras estórias é “O
espelho”. Parece um tanto proposital que Primeiras estórias,
possuindo 21 contos no total, tenha o 11° conto intitulado
de “O espelho” dividindo, assim, o livro em exatamente dez
histórias antes e dez histórias depois. Ligado a isso, também
está o fato de que o primeiro e o último conto possuem o
mesmo protagonista. Apesar de aparentar ser apenas uma
característica formal, Affonso Romano de Sant’Anna alerta
para o uso do espelho como metáfora barroca:
Reveladoramente, noutro livro de contos, Primeiras
estórias (1962), “O espelho” tem um valor estrutural e
também está no meio do livro. (...) Como em Tutaméia,
onde o livro se dobra sobre si mesmo, o conto “O
espelho” divide a obra em metades rigorosamente
espelhadas, uma vez que é precedido de dez contos e
seguido também de dez contos, e os temas da primeira
metade espelham-se nos contos da segunda metade.
Isso, em uma leitura periférica, transformaria essa obra
em obra esférica e circular. No entanto, ela é elíptica,
primeiro porque o autor, praticante da numerologia,
trabalha com números impares e faz com que haja dez
contos de cada lado; “O espelho” é o de número 11,
perfazendo-se o total de 21. Em segundo lugar, no
interior desse conto, exercitando a metalinguagem,
a descrição que o próprio autor faz de sua situação
espelha perfeitamente a perspectiva barroca que tinha
da realidade: “À medida que trabalhava com maior
maestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema
perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos
de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos e
francamente cavernoso, como uma esponja”.73
72
Idem, p. 54.
73
SANT’ANNA, Affonso Romano. Barroco: do quadrado à elipse, p.
78/79.
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• 241
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Além de ter este caráter central na obra, “O espelho” se
distingue também dos outros contos pelo seu tom de relato,
por ser narrado pelo protagonista e por tratar de um assunto
que se destaca dos outros contos de temas mais ou menos
equiparáveis.
O espelho, assim como a água, a nuvem, a folha, etc., é
reconhecido como um dos símbolos recorrentes no barroco74.
Grandes quadros da era barroca possuíam o espelho como
elemento chave na composição da obra, sendo este o caso, por
exemplo, de O casal Arnolfini de Johannes van Eyck ou de As
meninas de Velázquez75.
No conto de Guimarães Rosa, o narrador decide-se por
uma experiência na qual pretende visualizar-se no espelho
a partir de uma neutralidade no olhar, sem os costumeiros
vícios de complacência com a nossa própria imagem. Este
empreendimento se desenvolve quando o narrador vê seu
rosto refletido ao mesmo tempo em dois espelhos num
lavatório público. Assombrado com a imagem que vê, parte
para uma procura de si mesmo:
Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à
tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio.
(...) Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço,
a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo
dessa nebulosa – a minha vera forma. Tinha de haver um jeito.
Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.76
Por todo o conto, o narrador discute com o leitor sobre a
veracidade científica dos fatos e pretende nos convencer que,
apesar de nunca tentada ou comprovada, a experiência de fato
ocorreu.
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco, p. 81.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 67/68, grifo do au-
74
75
Obra analisada por Michel Foucault em As palavras e as coisas,(1999, p. 3-21).
76
tor.
242 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
O narrador parte, então, numa empreitada que chegará até a
completa anulação de sua própria imagem. Feito isso, passa a
questionar-se sobre sua existência. Mais uma vez, aí se mostra
a dualidade entre corpo e alma, carne e espírito, tão presente
no homem barroco:
E a terrível conclusão: não haveria em mim uma
existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um...
des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto
eu, não era mais que, sobre a persistência animal, um
pouco de herança, de soltos instintos, energia passional
estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o
mais que na impermanência se indefine? Diziam-me
isso os raios luminosos e a face vazia do espelho –
com rigorosa infidelidade.77
É o conhecido paradoxo entre essência e aparência da
vida humana que, por analogia, pode-se conduzir a um
questionamento sobre a própria linguagem na época moderna.
Isto é, uma linguagem que deixa de ter como única meta a
representação do objeto externo e passa a se voltar para si,
valorizando seus próprios mecanismos de construção e
constituindo, ao mesmo tempo, a realidade artística.
Ao final, percebe-se que Primeiras estórias, bem como toda
grande obra da literatura, se esquiva a qualquer enquadramento
fácil e taxativo, e este estudo procurou apenas apontar um
possível olhar neobarroco para estes contos de Guimarães
Rosa.
Antes de mais nada, o termo neobarroco já é, por si só,
de definição problemática, reflexo, em grande medida, da
diversidade de tendências da literatura contemporânea. Do
mesmo modo que não podemos efetuar uma conceituação
definitiva, também não acreditamos que a literatura chamada
de neobarroca extrai suas fontes criadoras somente de uma
relação intertextual com autores do barroco histórico.
77
Idem, ibidem, p. 71.
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Mais essencial, nos parece o fato de que ambas as manifestações,
o barroco histórico e o neobarroco, podem ser interpretadas
como um reflexo da instabilidade e da crise das representações
artísticas. Como Paul Valéry já dizia, não se mata a sede com os
rótulos da garrafa. Ou seja, devemos estar alerta para o perigo
do enquadramento forçado, do reducionismo do particular e
do original de cada autor, em nome da generalização.
REFERÊNCIAS
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico Anticlássico: O Renascimento de
Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco.
São Paulo: Perspectiva, 1971.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2. ed.
São Paulo: Cultrix, 1994.
COUTINHO, Afrânio. Do Barroco (Ensaios). Rio de Janeiro:
Editora UFRJ/Edições Tempo Brasileiro, 1994.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 7. ed.
Rio de Janeiro: Editora Distribuidora de Livros Escolares Ltda.
DOURADO, Autran. Uma Poética de Romance: matéria de
carpintaria. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia
das ciências humanas. 8. ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte. São Paulo: Martins
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HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Ed.
Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
LUCAS, Fábio. Do Barroco ao Moderno. São Paulo: Ática, 1989.
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 4. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1991.
244 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 14. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à
elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco, in: América Latina
em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3. ed.
Coimbra: Livraria Almedina, 1979.
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da
Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo: Ed.
Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
Recebido em7/10/2008
Aprovado em 25/10/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
PRESENÇA DA COLUNA PRESTES NAS
VEREDAS DO GRANDE SERTÃO
Marcelo Luiz Cesar Mozzer
Ufes
Resumo: Na criação literária, há vestígios de verdade e
verossimilhança. A escrita veicula a história e a estória, seja de
paixão, seja de amor, seja de um ato político, religioso, social,
sejam todos esses juntos. Este livro, Grande sertão: veredas, será
lido como uma fusão entre a ficção e o fato histórico.
Palavras-chave: História. Literatura. Verdade e ficção.
Resumé : Dans la création littéraire, il-y-a des vestiges de vérité
et de vraissemblence. L’écriture propage l’histoire et le conte,
soit de passion, soit d’amour, soit d’un acte politique, religieux,
social, soit de tous ceux joints. Ce livre, Grande sertão : veredas,
sera lu comme une fusion entre la fiction et l’événement
historique.
Mots-clés: Histoire. Littérature. Vérité et fiction.
Acredito não haver a possibilidade de uma criação literária sem
vestígios de verdade. Quando se escreve, sempre é a história
de um amor, de uma paixão, de um fato político, econômico,
histórico, religioso, social e, às vezes, esses estão todos juntos.
Este livro – Grande sertão: veredas – pode ser lido como a
mistura da ficção com o fato histórico.
Para isso, suspendo as fronteiras entre duas linguagens: a de
que se serve a História e a que utiliza a Literatura. Misturoas, a fim de mobilizar personalidades históricas pelas veredas
discursivas de Guimarães Rosa. Nessas veredas, História
e estória convocam-se a serviço da arte. Para início dessas
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
desterritorializações entre o domínio da poética e o das ciências
humanas, questiono o lugar da fronteira entre História e ficção.
No plano narrativo, essa distinção, a meu ver, não se estabelece
permanentemente na voz de Riobaldo. Para questionar a
distinção entre verdade e invenção, passo a palavra a José
Américo Motta Pessanha (1988, p. 282):
Onde a fronteira – se é que ela existe – entre história
e ficção? Perguntado de outro modo: entre as muitas
formas de narrativa, onde estabelecer a linha divisória
– se é que ela pode ser traçada – entre os diversos
tipos de história inventada e uma história que pretende
ostentar estatuto de cientificidade, apresentar-se
enquanto episteme, inscrever-se entre as formas
“sérias” de conhecimento, candidatar-se à conquista
de alguma verdade sobre o que narra, narrando e ao
mesmo tempo tentando explicar o objeto que aborda?
Comecemos com a história. A Coluna Prestes, 1924-1927,
foi um movimento liderado por militares insatisfeitos com as
fraudes eleitorais e as corrupções no governo. Nesse contexto,
o movimento não apoiava a candidatura de Artur Bernardes
à presidência do Brasil. A chamada Coluna Prestes, liderada
por Luís Carlos Prestes, percorreu 25 mil quilômetros pelo
Brasil, envolvendo 14 Estados. Esses militares que o Prestes
comandava embrenharam-se pelo Brasil, e foram combatidos
por tropas do governo e por jagunços contratados pelos chefes
políticos locais, sobretudo na região Nordeste. O objetivo dos
líderes da Coluna era derrubar o presidente Artur Bernardes.
No dia 3 de fevereiro de 1927, quando Bernardes já havia
saído da presidência e Washington Luís sido empossado desde
novembro de 1926, os rebeldes se exilaram na Bolívia, sem
sofrerem derrota alguma.
Aproximo agora os escritos da coisa histórica dos associados a
fatos ficcionais. Para a realidade histórica, convoco as pesquisas
de alguns historiadores. Para expor o mundo de referência
ficcional de Grande sertão: veredas, convido o narrador
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Riobaldo. Perfilam-se as tropas textualmente: as compostas de
jagunços e as da Coluna Prestes.
As tropas de jagunços se apresentam prontas, segundo o olhar
que Riobaldo lança (“bispa”) sobre sua gente de guerra. Com
a palavra Riobaldo: “Disse só que decerto Joca Ramiro estava
formando gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em
lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes,
em Titão Passos, João Goanhá. – Fortes no fato valor e na
lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei.” (ROSA,
1986, p. 153)
As tropas da Coluna Prestes, já acampada nos Cerrados, no-las
apresenta Anita Leocádia Prestes, pondo em relevo o nome de
seus comandantes:.
Comando da Coluna Prestes reunido em Porto
Nacional, Goiás em outubro de 1925: Miguel Costa,
Luis Carlos Prestes, Juarez Távora, João Alberto Lins
de Barros, Antonio de Siqueira Campos, Djalma
Dutra, Oswaldo Cordeiro de Farias, José Pinheiro
Machado, Atanagildo França, Emygdio da Costa
Miranda, João Pedro Gonçalves, Paulo Kruger da
Cunha Cruz, Ary Salgado Freire, Nélson Machado de
Souza, Manuel Alves Lira, Sady Valle Machado, André
Trifino Correia, Ítalo Landucci. (PRESTES, 1995, p.
74)
A Coluna era militarmente disciplinada; os jagunços também
o eram. Estes se reuniam em bandos; tinham seus chefes;
aqueles se reunião em unidades de combates, e tinhas seus
comandantes. A organização da Coluna Prestes não era igual
à dos jagunços, no entanto, entre ambas, tanto pelo olhar
artístico de Riobaldo, narrador de Guimarães Rosa, como pela
vista da História, se notam elementos parecidos: a maneira de
combater e os encontros dos chefes.
Nas veredas do grande sertão, os jagunços chegaram à
Fazenda Sempre-Verde, para se reunir. Riobaldo apontaos como se olhasse para uma velha fotografia. “A jagunçada
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CONTEXTO
veio avançando, feito um rodear de gado – fecharam tudo,
só deixando aquele centro, com Zé Bebelo sentado simples
e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé, Só Candelário em pé,
o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos, todos!” (ROSA,
1986, p. 225)
Intuo que Guimarães Rosa, após leitura sobre a Coluna Prestes,
teria se inspirado nesse fato histórico militar marcante a década
de 20, para escrever a Grande sertão: veredas. Havendo nesse
homem um gênio dado a leituras e pesquisas, não teria ele
lido alguma obra sobre a Coluna Prestes? Guimarães Rosa
dialogaria literariamente com os feitos da Coluna Prestes?
É possível. Sua criatividade e pesquisa poderiam convocar
o fato real e histórico a serviço da literatura, embora os
acontecimentos da História não sejam, naturalmente, idênticos
aos lugares geográficos da Literatura. E não seria o primeiro
artista a referir-se a Preste em tonalidades épicas. Candido
Portinari teria se referido a Prestes, pintando-lhe o rosto na
figura de Tiradentes, num se seus quadros da fase histórica,
que conta a execução do Mártir mineiro.
História e literatura se assemelham a partir das aproximações
entre alguns jagunços mencionados por Riobaldo e os chefes
ou subchefes dos quatro destacamentos da Coluna. Entre
os jagunços, um dos chefes a comandar confrontos travados
lá pelas veredas do grande sertão foi o próprio Riobaldo, o
Tatarana, o Urutu Branco. Com essa variação de nomes, o
narrador do sertão atravessa as hierarquias de uma disciplina
calcada na refrega; torna-se uma cobra no assunto e um
homem bem informado sobre os embates bélicos naquelas
sendas. Ouçamo-lo:
Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados
de Prestes, vinham de Goiás, reclamaram posse de
todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra
do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor
do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas
cravadas. (ROSA, 1986, p. 82)
Heloisa Maria Murgel Starling, registrando seu testemunho
histórico, escreve sobre os chefes políticos como Medeiros
Vaz, Selorico Mendes, Joca Ramiro, Seo Ornelas, Seão Habão,
Domingos Touro, Major Urbano, os Silva Sales, Dona Adelaide,
Simão Avelino, Joãozinho Bem Bem, Hermógenes, Mozar
Vieira. Disserta também a cerca sobre a política de chefes
jagunços como Zé Bebelo, Riobaldo, mencionando elementos
comuns ente a Coluna Prestes na obra de Guimarães:
Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes,
vinham de Goiás, reclamaram posse de todos os animais de
sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão,
aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da
Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau,
encontra balas cravadas. (STARLING, 1999, p. 29)
Não parece absurdo, à luz dessas duas citações, supor que
Guimarães Rosa poderia ter se utilizado em sua obra dos
personagens que combatiam a Coluna Prestes, que eram
os chefes políticos locais, isto é, os coronéis e os seus
jagunços. Teria também Rosa se inspirado nas virtudes e nos
valores dos tenentes como: hierarquia, disciplina, coragem,
lealdade, justiça, propósito político, a fim de caracterizar seus
personagens jagunços? Com o surgimento da Coluna em
1925 naqueles sertões, os chefes políticos continuaram as
suas lutas internas entre si, mas receberam dinheiro e armas
do governo, para combater os soldados de Prestes. Grande
sertão: veredas, não seria também um relato das lutas e disputas
políticas, e territoriais, entre chefes políticos locais, associada
ao inquestionável sabor histórico da Coluna Prestes?
Outras aproximações se flagram. Riobaldo, em determinado
momento, se declara um tenente, um chefe. “Tibes! Eu, não.
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CONTEXTO
Ia demandar de outros o que eu mesmo não soubesse, a ser:
nestes meus Gerais, onde eu era o sumo tenente? (ROSA,
1986, p. 494). Neste próximo exceto, Riobaldo recebe a visita
de um boiadeiro, e dos camaradas deste, e o ouve falar sobre
os soldados do governo, que andavam por aquelas bandas do
sertão. “Sim. Os soldados! – ´Os que soldados, esses, mano
velho?` Soldadesca pronta, do Governo, mais de uns cinqüenta.
Assim onde era que estavam?” (ROSA, 1986, p. 282)
O narrador fala também de um advogado seu “[...], e o que
também devido dou ao advogado meu que zelou a sucessão
– Dr. Meigo de Lima” (Rosa, 1986, p. 535). Esse nome se
assemelha ao de Lourenço Moreira Lima, que era advogado,
capitão, secretário da Coluna Prestes. Ele é muito citado por
Jorge Amado no livro O cavaleiro da Esperança, editado em
1942. “Lourenço Moreira Lima, advogado e capitão. Chamamno de Bacharel Feroz, porque era valente nos combates”
(AMADO, 1985, p. 191). A obra escrita por Jorge Amado em
1942, não teria passado pelas mãos de Guimarães Rosa?
Seguindo a prosa e a jornada pelas trilhas e veredas do
grande sertão, Riobaldo nos põe em contato com um dos
mais importantes coronéis do Nordeste, que combateu
incessantemente a Coluna Prestes, contratando jagunços
para fazer esse serviço: o coronel Horácio de Matos. Passo a
palavra, a Riobaldo.
O Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar.
Titão Passos? Ah, perseguido por uma soldadesca,
tivera de escapar para a Bahia, pela proteção do
Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá
era quem ainda estava. Comandava saldo de uns
homens, aos poucos. Mas coragem e munição não
faltavam. (ROSA, 1986, p. 53)
Anita Leocádia Prestes também o registra em A Coluna Prestes,
citando a força econômica, política e militar desses coronéis
do Nordeste e indicando a quantidade de homens, a influência
regional e o poder de fogo que cada coronel tinha sob seu
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
comando.
Segundo informações recolhidas pelo pesquisador
Eul-Soo Pang, foram organizados, na Bahia no início
de 1926, cerca de dez ‘batalhões patrióticos’, sendo
os mais importantes: o comandado por Horácio
de Mattos, de Lavras Diamantinas (cerca de 1500
homens), o de Franklin Lins de Albuquerque, do vale
médio do São Francisco (cerca de 800 homens), e o
grupo de Abílio Wolney, formado por jagunços de
Barreiras e Goiás (cerca de 1000 homens). (PRESTES,
1991, p. 262)
Sobre a questão das mulheres, história e literatura também se
conectam. Em outros caminhos da Coluna Prestes, constatase o envolvimento de mulheres na marcha. São as vivandeiras;
vendem mantimentos ou os levam, acompanhando as tropas
em marcha. Luiz Maria Veiga aponta a participação feminina
na Coluna, descrevendo a insistência vitoriosa delas em
acompanhar os seus homens.
Os rebeldes gaúchos conseguiram finalmente entrar
em Santa Catarina: eram cerca de mil homens, 500
cavalos e 50 mulheres. Essas mulheres, chamadas
vivandeiras, insistiram em acompanhar seus homens,
mesmo contra as ordens do Capitão Prestes, que
determinava que elas permanecessem do outro
lado do rio. Diante, porém, da consumada travessia
feminina, não se opõe a que continuassem. (VEIGA,
1992, p. 30)
Coincidência ou não, Riobaldo, em suas travessias, à parte sua
paixão espartana pelo bravo Diadorim (essa é outra estória),
às vezes gozava a companhia de mulheres; mas, às vezes, se
abstinha disso. Cruzou rios, viu, viveu e venceu lutas, passou
por muitos lugares que lhe deram algum prazer, mesmo que
tal prazer tivesse de ser adiado ou proibido. Sobre esses,
transcrevo aqui um trecho de sua prosa.
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CONTEXTO
Nas folgas vagas, eu ia com os companheiros, obra
de légua dali, no Leva, onde estavam arranchadas
as mulheres, mais de cinqüenta. Elas vinham vindo,
tantas, que quase todo dia, mais tinham que baratear.
Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava:
-- ´Onde é que já viu homem valer, se não tem à
mão estradas raparigas? Ond´é ? Mesmo cachaça ele
fornecia, com regra. (ROSA, 1986, p. 112)
Riobaldo também menciona uma proteção, provavelmente uma
mulher. “Se diz que eles têm uma proteção preta [...]” (ROSA,
1986, p. 53). Essa proteção, na coluna que Prestes comandava,
é uma velha negra, a mulher muito conhecida, citada por
vários autores em diversas obras. Trata-se da tia Maria. “Porém
a que era aureola de mistério, cujo nome circulava de boca
em boca entre os soldados do governo era a Tia Maria, preta
velha, seca e de olhos brilhantes, que morreu dramaticamente
entre torturas. Contavam dela que era a feiticeira da Coluna”
(AMADO, 1985, p. 123).
A descrição de Riobaldo com barba grande e preta também
aproxima fato histórico detectado em velhas fotos e literatura:
“E já fazia tempo que eu não passava navalha na cara, contrário
de Diadorim. Minha barba luzia grande e preta, conferindo
respeito” (ROSA, 1986, p. 462). Quanto aos homens da Coluna
Prestes, basta abrir qualquer livro que tenha uma fotografia e lá
vão estar os oficiais e os soldados, todos barbudos.
Acompanhava Riobaldo um menino chamado Guirigó, que
chegou a chefiar bandos. “Tu é existível, Guirigó... Vai pelos
proveitos e preceitos [...]. Até que, um momento, o pretinho
Guirigó se chegou sorrateiro, e emitiu em minha orelha. – Tô
chefe...” (ROSA, 1986, p. 400 e 414).
Na Coluna Prestes também havia dois meninos. Jaguncinho
e Aldo. “O primeiro era paulista e se incorporara a Coluna
numa das estações de Estrada de Ferro Sorocabana; o segundo
era um pretinho que fora encontrado numa fazenda de Goiás,
onde era um verdadeiro escravo” (LIMA, 1979, p. 185)
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Quando, pela primeira vez, comecei a ler Grande sertão:
veredas, notei que alguns episódios e personagens pareciam
realmente comuns aos escritos de pesquisadores sobre
a Coluna Prestes. Outras aproximações entre História e
Literatura são possíveis, a partir do contato com Guimarães
Rosa. Por exemplo, as doações de alimentos que os jagunços
obtinham das populações locais são semelhantes às que eram
obtidas pelas tropas de Prestes. E mais, pela censura imputada
a Hermógenes, Riobaldo se aproxima novamente da disciplina
militar imposta por Prestes a seus comandados. Ouçamos
Riobaldo.
Medeiros Vaz não maltratava ninguém sem necessidade
justa, não tomava nada à força, nem consentia em
desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as
pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas,
outros presentes. Mas os Hermógenes e os cardões
roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça
em qualquer povoal à-toa, renitiam feito peste. (ROSA,
1986, p. 45)
Na Coluna também havia requisições. Houve muitos casos em
que mulheres, contrariando as ordens de Prestes, invadiram
casas e apanharam mantimentos. Muitos homens que também
saquearam casas foram expulsos do movimento. Mesmo
oficiais que não respeitaram as ordens de Prestes e cometeram
outras falhas foram punidos78. Sobre as requisições de
alimentos feitas pela Coluna, Luiz Maria Veiga escreve.
A princípio houve abusos nessas requisições, pois
as mulheres que acompanhavam a Coluna achavam
que tinham direito de limpar as casas abandonadas
pelos moradores. O comando revolucionário, porém,
proibiu o saque indiscriminado, só permitindo que os
soldados levassem o que fosse realmente necessário.
Entre esses acontecidos, há um caso de um oficial que foi expulso
na época e, tempos depois, no ano de 1936, mandou prender o Prestes, já
comunista, junto com a sua companheira Olga Benário Prestes. Olga passou
por quatro prisões: Barnimstrasse, Lichtemburg, Ravensbruck e Bernburg.
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CONTEXTO
Seria punido severamente quem desrespeitasse essas
ordens, e, com efeito, chegaram acontecer expulsões
por desobediência. (VEIGA, 1992, p, 41).
Certo ideário dos fortes em defesa dos fracos, do livre que
liberta os cativos e faz justiça, também contamina Arte e
História. Com a palavra Riobaldo.
Cavalaria de jagunços galopando, saindo para distâncias
marcadas. Abriam festas de bomba-real e foguetório,
quando entravam numa cidade. Mandavam tocar
o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os
presos, arrancavam o dinheiro da coletoria, e ceavam
em Casa-da-Câmara. (ROSA, 1986, p. 95)
Anita Leocádia Prestes aponta atos semelhantes quando
escreve sobre as atitudes dos oficiais da Coluna em favor dos
fracos e dos menos favorecidos. “A Coluna, em sua marcha
pelo Brasil, tentava fazer justiça, queimando os livros e listas de
cobranças de impostos, soltando os prisioneiros e destruindo
instrumentos de tortura que encontrava.” (PRESTES, 1995,
p. 81)
A localização geográfica dos rios é outro item que aproxima
História e Literatura, por meio de quatro escritores: Alan
Viggiano, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Abguar Bastos.
Alan Viggiano, em sua obra O itinerário de Riobaldo: espaço
geográfico e toponímia em Grande sertão: veredas, fala de alguns
rios como “Rio Pardo, Grão-Mogol, São Francisco, Paracatu,
Carinhanha. [...] Ao Urucuia; onde tanto boi berra, ele está
preso pelo amor” (VIGGIANO, 1993, p. 16-17). Estes são
outros rios apontados pelo mesmo autor: Preto, Pardo,
Canabrava, do Sono, Soninho, e que estão presentes na obra
de Guimarães Rosa.
Jorge Amado, em seu livro, O cavaleiro da esperança, publicado
em 1942, escreve: “Em Minas a Coluna marcha sobre os
chapadões limitados pelos rios, Preto, Urucuia, Carinhanha.”
(AMADO, 1985, p. 131). Para as jornadas de Riobaldo, estes
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
mesmos rios eram familiares: “Rio Preto”; “Urucuia”; e
“Carinhanha”. (ROSA, 1986, p. 60, 22, 22, respectivamente).
Mera coincidência ou influência da história sobre a obra de
Rosa? Os nomes dos rios que encontrei na obra de Guimarães
Rosa não seriam os mesmos nomes de rios por onde passou a
Coluna Prestes?
Abguar Bastos, em sua obra Prestes e a revolução social, publicada
no ano de 1946, escreve os nomes de alguns rios tais como:
“São Francisco”; “rio do Sono”; “Canabrava”; “Paracatu”;
“Grão-Mogol”. (BASTOS, 1986, p. 131, 131, 136, 138, 134,
respectivamente). Em Grande sertão: veredas os mesmos rios
são citados por Riobaldo. “São Francisco – Rio do Chico”;
“do-Sono”; “Canabrava”; “Paracatu”; “Grão-Mogol”. (ROSA,
p. 60, 64, 60, 60, 59 respectivamente). A obra escrita por
Abguar Bastos, publicada em 1946, não teria também passado
pelas mãos de Guimarães Rosa?
Riobaldo, em suas falas, prevê que aquelas lutas irão entrar
para a história e serão contadas por uns cantos do Brasil. “... A
guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão.
Nela todo mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas
e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão
fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... ”(ROSA, 1986,p.
239)
A Coluna Prestes entrou para a História do Brasil. Muitos
livros e livretos (literatura de cordel) foram escritos sobre esse
evento; essa história é parte da cultura popular lida contada
e cantada nas feiras do Nordeste. A Coluna se tornou lenda;
Luiz Carlos Prestes, histórico: líder do movimento mais
importante na década de 20 no Brasil, que é a Coluna Prestes.
Jorge Amado (1985, p. 152) transcreve estes versos populares
sobre o fato histórico:
Uma vez, amiga, numa feira distante, um cego cantava
sua recordação de Luiz Carlos Prestes.
Deixando os soldados frios.
Passava a pé pelos rios,
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CONTEXTO
As águas se endurecia.
Junto do fogo seguia.
O fogo lhe protegia
A brasa já se esfriava
Quando seu pé lhe pisava.
Como que autorizando esses versos, na Bolívia, já no exílio
Lourenço Moreira Lima faz uma homenagem aos soldados do
Exército e da Coluna enterrados no cemitério de La Gaiba.
Soldados da Liberdade!
Dormi tranqüilos na terra estrangeira que vos acolheu
com tanta nobrez, porque os vossos nomes e os
vossos feitos serão eternos no coração generoso do
Brasil impetérrito, do Brasil que não teme os tiranos,
do Brasil que esmagará os déspotas, do Brasil heróico,
cuja espada cavalheiresca jamais deixará de ser
brandida para maior glória do Direito, da Justiça, da
Liberdade. (LIMA, 1979, 523)
Riobaldo, nas últimas conversas, fala em ser advogado, escrever
um livro, contar as estórias das guerras. “Não queria saber
do sertão, agora ia para capital, grande cidade. Mover com
comércio, estudar para advogado – Lá eu quero deduzir meus
feitos em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens
de nossas guerras, fama devida...” (ROSA, 1986, p. 537).
Esse advogado pode ser Lourenço Moreira Lima, advogado,
participante da Coluna, que, com o término do movimento,
escreve um livro maravilhoso: A Coluna Prestes (marchas e
combates). É uma das primeiras e mais importantes obras
sobre a Coluna Prestes.
A obra de Guimarães Rosa é sedutora. Lê-la, como fiz, pode
ser o caminhar na fronteira entre a História e a Literatura.
O escritor enredou estórias história e personagens, utilizou
vocabulário regional, chamou pelo nome rios, córregos, lugares,
lugarejos, criou nomes não existentes na língua portuguesa e
está aí seduzindo leitores de muitas áreas do conhecimento.
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA
Relembrar um dos maiores eventos militares do século XX,
no Brasil, que foi a Coluna Prestes, acrescenta muito à obra
de ficção de Guimarães Rosa. Mostra que o autor tinha
preocupações concretas com a história de sua época.
Não pretendi aqui discernir o que é História e o que é
Literatura. Os dois saberes misturam-se, embrenham-se por
um sertão afora e adentro, descortinando uma sociedade
pouco conhecida; valorizada, menos ainda. Reconheço e
desejo que reconheçam a grandeza dos valores do modo de ser
do sertanejo. Sertão é linguagem, linguagem falando um povo
que tem muito a ensinar ao Brasil.
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Prestes. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. 351 p.
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condições sociais e causas econômicas de uma fase
revolucionária do Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. 312 p.
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combates). 3. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. 631 p.
MOZZER, Marcelo Luiz Cesar. A Coluna Prestes: 1924 –
1927. Monografia. (Especialização em Teoria da História)
– Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 1997. 142 p.
PESSANHA, José Américo Motta. História e ficção: o sono e
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história. Rio de Janeiro: Imago. 1988.
PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1991. 498 p.
PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopéia brasileira – a Coluna
258 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Prestes. São Paulo: Moderna, 1995. 111 p. (Coleção Polêmica).
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 36. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 538 p.
STARLING, Heloísa Maria Gurgel. Lembranças do Brasil:
teoria política, histórica e ficção em Grande sertão: veredas.
Rio de Janeiro: Revan: Ucam, Iuperj, 1999. 192 p.
VEIGA, Luiz Maria. A Coluna Prestes. História em aberto. São
Paulo: Scipione, 1992. 80 p.
VIGGIANO, Alan. O itinerário de Riobaldo: espaço geográfico
e toponímia em Grande sertão: veredas. 3. ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto. 1993. 64 p.
Recebido em 02/08/2008
Aprovado em 10/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 259
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
CLIPE
A. Regionalismo: Brasil.
1. pequena peça de metal ou matéria
plástica, us. para juntar papéis
2. objeto de adorno feminino com
fecho de segurança; broche
B. Regionalismo: Brasil.
3. red. de videoclipe [curta-metragem
em filme ou vídeo que ilustra uma
música e/ou apresenta o trabalho
de um artista; clip; clipe]
C. Regionalismo: Minho. Uso:
informal.
4. eucalipto [etimologia: orig.obsc.;
não é impossível, contudo, supor-se
tal forma como uma radical redução
fonética de eucalipto > *euclip >
*oclipe > clipe]
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 261
CLIPE
262 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
BERNARDO CARVALHO: ENTRE TRAMAS E
TRAMPAS
Beny Ribeiro dos Santos
UFRJ
Resumo: Bernardo Carvalho, no romance Teatro, concebe uma
história em que a ficção e a verdade se movem em domínios
constantemente redimensionados no curso da narrativa. O esforço
do narrador para demarcar os limites desses domínios é contrário
às relações que mantêm entre si na ordem da narrativa. Diante de
acontecimentos de fatura reversível, seu esforço de esclarecimento é
confrontado por uma experiência de natureza ambígua.
Palavras-chave: Ficção. Verdade. Ambigüidade.
Résumé: Bernardo Carvalho, dans son roman Teatro, conçoit une
histoire dans laquelle la fiction et la vérité se meuvent dans des
domaines dont les dimensions changent fréquemment dans le cours
du récit. L’effort du narrateur pour signaler les limites de ces domaines
est contraire aux rapports que ceux-ci entretiennent l’un avec l’autre
dans l’ordre du récit. Face à des événements de facture réversible,
son effort d’éclaircissement est confronté à une expérience de nature
ambiguë.
Mots-clés: Fiction. Vérité. Ambiguïté.
A tentativa de determinar de que lado está a verdade não consegue
interromper o seu deslocamento para um domínio em que se esquiva
da definição mesmo sem o consentimento da vontade de saber.
Quando o homem se entrega à procura da verdade, nada, realmente
nada, pode evitar sua retirada para um domínio em que não é
possível conhecê-la em sua totalidade. A verdade tem seu domínio
redimensionado toda vez que a movimentação de fragmentos
múltiplos e descontínuos é agenciada na ordem da vida, de modo que
os acontecimentos contraditórios e inconstantes passem a ocupar
um lugar extraordinário na realidade das coisas. Em Teatro (1998),
Bernardo Carvalho coloca em suspensão a certeza da verdade, quando
lhe atribui formas diversas no interior da narrativa. Não se pode
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 263
CLIPE
acreditar nos acontecimentos narrados numa sintaxe sinuosa sem
nenhuma forma de resistência a seu estatuto, uma vez que o narrador,
o personagem mais suspeito de toda a história, pode estar mentindo
mais uma vez com o objetivo de criar um espaço de incerteza em
que é mais fácil se perder do que se encontrar. O romance explora
a aporia do esforço de esclarecimento ante a contraposição de um
princípio de incerteza atuante na constituição de acontecimentos
de fatura reversível. Sua narrativa colide uma multiplicidade de
disfarces que envolvem a verdade numa desagregação sem limites.
A reprodução da fotografia de um homem de cabeça para baixo na
capa do romance antecipa uma série de inversões inesperadas que
intervêm no fluxo da narrativa.
Teatro é constituído por narrativas ficcionais que encenam
testemunhos verdadeiros. Em “Os sãos”, um policial aposentado
decide abandonar a capital de um império econômico, para onde
os pais haviam emigrado em busca de um futuro melhor, refazendo
em sentido contrário o caminho da emigração de anos atrás, quando
ainda estava na barriga de sua mãe. O policial cruza a fronteira que
isola o país dos “sãos” ao norte da terra dos “loucos” ao sul. O
objetivo da fuga é retornar ao país de origem para narrar na língua
natal a verdade sobre atentados terroristas contra executivos bemsucedidos na economia da metrópole. A desconfiança em relação aos
atentados levou o policial a pedir aposentadoria antecipada. Com a
prisão do suposto terrorista, pôde compreender a trama dos atentados
que desconhecia em sua totalidade. Enquanto o químico V. assumiu
a autoria dos assassinatos, o historiador N. denunciou o irmão às
autoridades, depois de reconhecer nas cartas pessoais do suspeito o
estilo das cartas públicas que esclareciam a motivação dos ataques
com o pó amarelo. A revelação permite que os policiais executem os
últimos procedimentos do projeto de conservação da ordem social.
Inspirados na teoria do mal necessário, os agentes da ordem forjaram
os atentados como estratégia de conservação da coesão social. O
policial compreende a farsa de todo o processo somente duas
horas após reencontrar Ana C., que o leva ao artigo de jornal com
as informações sobre o terrorista. Somente então percebe que sua
entrada na polícia não ocorreu por acaso: a organização o contratara
conhecendo sua ligação com o autor da teoria do mal necessário,
como também seu projeto de se tornar um escritor. Durante anos sua
única função na polícia tinha sido ouvir e escrever: era o autor das
cartas publicadas nos jornais de todo o país que criaram uma teoria
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
de explicação do mundo na ótica de um terrorista paranóico. As
cartas enviadas às vítimas pelos policiais criam em todo o país uma
atmosfera de insegurança e desconfiança generalizada, uma vez que
qualquer um pode ser um terrorista em potencial. O policial esperava
que o terrorista aparecesse para corrigir a usurpação dos atentados,
no entanto, durante vinte anos, o terrorista permaneceu em silêncio.
Antes do sétimo atentado, pela primeira vez, o policial recebeu ordem
para escrever uma carta antecipada: queriam que deixasse prontas as
cartas dos futuros atentados. A ocorrência do sétimo atentado como
previsto na carta fez com que deixasse a polícia. A desconfiança
virou certeza quando leu a notícia da prisão do suposto terrorista.
Ainda que quisesse permanecer com Ana C., decidiu deixar a capital
do império. Na fuga, comprou uma certidão de óbito falsa, foi à
cabana no gelo à procura de uma fórmula secreta, partiu para a terra
natal de seus pais, pois somente fora do país dos sãos podia restituir
na língua antiga de seus pais alguma verdade ao que ouvira durante
anos: “Só nesta língua posso restituir a verdade infame dessa história.
E o sarcasmo que lá não existe. Só aqui as coisas podem fazer algum
sentido” (CARVALHO, 1998, p. 23). A escrita de “Os sãos” tem
por objetivo justamente desmascarar as imposturas dos agentes da
ordem. Quando o narrador chega ao término da investigação dos
acontecimentos, revela seu nome próprio e encerra em código
cifrado o primeiro bloco do romance com a frase: “Até que Daniel
para de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43).
Em “O meu nome”, um fotógrafo de paisagem, obcecado pela
verdade que somente pode existir nas coisas inanimadas, se dedica,
da mesma forma que o policial aposentado, a conhecer a natureza de
uma conspiração nebulosa. O centro da investigação é um ator de
vídeos pornográficos que se autodenomina Ana C., tão impalpável
como o espectro de um fantasma que se esquiva da matéria concreta.
Este nome aparece na primeira parte do romance associado à
namorada do policial aposentado que mais tarde será observada na
atuação em vídeos pornográficos. Ana C. deixou o país natal onde
se iniciou na prostituição e atravessou a fronteira ilegalmente para
trabalhar na capital da pornografia. Sua atuação desperta nos fãs de
todo o mundo uma espécie de loucura que parecia estar adormecida.
A maior parte desses admiradores vive em hospícios onde escreve
uma literatura tão incorpórea quanto Ana C. Da mesma forma que
uma atmosfera de irrealidade cercava o astro, a literatura escrita
nos hospícios estava repleta de acontecimentos inverossímeis.
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• 265
CLIPE
A indicação do fotógrafo de paisagem para compor a equipe de
produção dos filmes em que Ana C. interpreta a si mesmo é agenciada
por uma revista sensacionalista que deseja apurar sua participação
na morte de um político importante. O fotógrafo exerce o papel de
um agente infiltrado na indústria pornográfica para descobrir o real
envolvimento do astro no suposto homicídio relacionado com o
comércio do sexo. Tempos depois Ana C. descobrirá que o senador
com quem estivera numa transação jurídica não estava morto. Não
poderia conhecer os fatos antes de vê-lo na televisão, pois não sabia
como se chamava na realidade, nem chegou a ver sua fotografia nos
jornais. O fotógrafo vislumbra uma série de farsas em que Ana C.
pode estar envolvido. É impossível saber de que lado está a verdade,
já que tanto Ana C., quanto o fotógrafo podem estar mentindo.
Assim como o policial aposentado é enganado e introduzido num
mundo que se movimenta, se modifica, se mimetiza, Ana C. participa
de um baile de máscaras que complica a realidade, a existência, a
verdade. O que mais surpreende num enredo repleto de imposturas
é a revelação final de que tudo o que foi escrito em nome da verdade
não passa de um artifício cuja realidade se transforma toda vez que a
verdade e a ficção têm seu domínio redimensionado. Não por acaso
o fotógrafo de paisagem também se chama Daniel, o que traz à
lembrança a fórmula que aparece na primeira parte do romance: “Até
que Daniel pare de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43).
A série de acontecimentos narrada em ambas as partes do romance
desperta a dúvida insidiosa sobre a natureza das coisas. Falta definição
à fronteira entre a verdade e a mentira que se misturam de maneira
inextricável num mundo repleto de oscilações que surpreendem
a cada virada de página. Mesmo conhecendo pouco a pouco o
domínio em que a verdade e a ficção mudam de lugar com bastante
freqüência, ainda se é surpreendido pelo que deixa de ser o que é
não mais que de repente. Nesse quadro, o narrador se fragmenta
em várias situações em que circulam identidades diferenciadas: ora
é Daniel que inventa um personagem terrorista e configura uma
realidade onde a ficção se finge de verdade, ora é Daniel que inventa
um personagem ator e configura uma realidade onde as perspectivas
são tão várias quanto as necessidades criadas. A narrativa é, de fato,
o grande teatro do mundo, em que a verdade e a ficção se afastam, se
aproximam, se enredam num baile de máscaras vertiginoso. Daniel,
o policial, quer contar a verdade na língua antiga de seus pais. Daniel,
o fotógrafo, é um obcecado pela verdade inanimada da fotografia.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Ambos querem envolvê-la numa fortaleza, impedi-la de escapar
do círculo de observação, definir o conhecimento em que habita
silenciosa e enigmática. Mas o narrador verte e reverte, diz e desdiz,
quando ouve e escreve sua narrativa. Não se pode confiar em seu
testemunho, uma vez que não tem o estatuto de verdade, cuja história
permanece inacabada, como As mil e uma noites, em que Cheherazade
narra uma história sem fim. Como numa sala de espelhos onde nada
é o que parece ser, é difícil se decidir por um caminho. A busca da
verdade pode ser um sonho absurdo, no entanto ainda não perdeu
completamente o sentido, sobretudo quando se encontra no domínio
em que a ambigüidade impede que a consciência represente a
experiência na forma de um conhecimento unificado.
Teatro reúne uma série de suspeitas em relação à multiplicação de
disfarces na narrativa. Costa Lima se pergunta se o narrador é um
louco ou alguém que assim se finge para escapar dos sãos. O crítico
associa o romance “a um jogo de espelhos” em que cada um reflete e
distorce “a imagem do outro”. “Cria-se assim um fascinante quadro
de incertezas que aposta em um leitor dotado de um interesse
decifrativo semelhante” (2002, p. 273-4). O narrador demonstra que
a verdade conhecida tem origem nas criações humanas que podem
ou não conservar a coexistência de antagonismos e indeterminações
na ordem da vida. A denúncia da farsa programada dos policiais
manifesta certos mecanismos dos sistemas de regulação que
exercem um alto controle sobre a vida, principalmente quando
tentam prever os acidentes, ordenar as sedições, abolir os refugos
da realidade, estratégias usadas para compor uma organização capaz
de purificar o “normal” do “patológico”. O testemunho de Daniel
apresenta uma sociedade corrompida pelo dinheiro da imagem, pela
religião do mercado, pelo teatro da ficção. O risco da ficção sem
limite é introduzir na ordem da vida determinações que impeçam
a expansão do horizonte da experiência. Platão temia que a ficção
criasse monstros de toda espécie e destruísse a ordem da cidade. Para
Daniel, “O problema é menos a mentira em si do que seu poder de
contaminação, porque ela desestrutura todas as verdades, faz você
perder o rumo e não saber mais o que está fazendo” (CARVALHO,
1998, p. 48). Mas a ficção propõe outras formas para contrapor ao
mundo conhecido. Ficcionar é uma atividade inclusiva que interfere
no sentido da vida. Como o paranóico que não suporta a idéia de um
mundo sem sentido e procura atribuir um sentido mesmo onde não
há sentido algum, a ficção explora todo um repertório de situações
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CLIPE
inauditas colocadas à disposição do escritor ao fundar mundos no
mundo. A vontade de conhecer mundos inexplorados faz com que o
homem ultrapasse o limite do conhecimento estabelecido e percorra
domínios estranhos onde ainda estão para ser inventados o norte e o
sul, o leste e o oeste. Daniel atravessa a fronteira em direção ao país dos
loucos onde impera uma lógica diversa da distribuição dos seres no
país dos sãos. Ana C. atravessa a fronteira em direção ao país dos sãos
onde introduz a lógica do ser indeterminado numa forma imaterial.
Ficcionar não é, portanto, como confirma Platão ironicamente, uma
atividade que possa ser simplesmente deixada de lado. Enquanto a
ficção explora as perspectivas que atravessam a constituição de uma
experiência tumultuada, sinaliza que a verdade pode ser buscada na
direção contrária à que está sendo seguida no momento atual pela
necessidade de se fundamentar uma representação na ordem da vida.
Teatro põe em cena um (des)enredo formado por inversões contínuas
que desafiam a lógica previamente constituída. À medida que o
narrador força o limite da verossimilhança interna, outra lógica
domina a realidade da narrativa, o critério de verdade uniforme
não resiste à ação da ambigüidade sobre sua natureza. Paranóia,
alucinação, história extraordinária; ilusão, loucura, história insensata;
farsa, invenção, história inverossímil; estiramento da lógica, quimera
de imposturas, grande teatro do mundo; Teatro é uma narrativa de
ficções que se fingem de relato da verdade. Dizer que o romance
está para além do sistema mimético enquanto representação
analógica da realidade estabelecida não explica como é preciso
a forma da narrativa de Teatro. Tanto a verdade, quanto a ficção
não são passíveis de determinação no romance. A composição da
narrativa numa sintaxe enviesada rompe com o postulado da mimese
representativa, o que equivale a escapar da vontade de verdade do
romance realista e desarticular a expectativa em relação à descoberta
da verdade. A natureza da verdade pode mudar de sentido a qualquer
momento, determinando uma nova direção e inteligibilidade para o
sentido da narrativa. Se a distribuição dos componentes da narrativa
pode ser redimensionada na trama das ações sempre que convier à
apresentação de uma experiência desconhecida, torna-se impossível
definir definitivamente a natureza de acontecimentos envolvidos
numa ordem de sentido reversível. O sistema da ficção se apropria
da lógica do ilógico que organiza, a seu modo, novos esquemas de
sentido: “Só a lógica do ilógico pode trazer algum entendimento,
alguma visão onde tudo se tornou cegueira, fazer você enxergar, por
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
trás da cortina de sentido, um outro sentido que possa dar conta da
compreensão do mundo, já que este não funciona” (CARVALHO,
1998, p. 131). A narrativa de Bernardo Carvalho carrega consigo o
problema da definição de parâmetros para a compreensão de algo
que em si mesmo não pode ser compreendido ou que não pode ser
compreendido em sua totalidade.
A confabulação das palavras não é apenas uma fonte de ficções
multifacetadas, mas também um poderoso instrumento de formação
de realidades antropomórficas. As perspectivas permanecem,
portanto, confundidas no imaginário do narrador: a ficção é uma
realidade indeterminada, a realidade é uma ficção naturalizada. Para
reconhecer a ambigüidade que assinala cada acontecimento, basta
acompanhar o percurso do narrador. Daniel, o policial aposentado, se
apresenta, desde o início da narrativa, como o defensor dos atributos
da verdade. É preciso contar tudo o que sabe sobre a impostura
dos agentes da ordem para que algum resíduo da verdade possa
ser conservado na memória do leitor. Daniel é a única testemunha
de todo o processo. Sua única função durante anos a fio tinha sido
ouvir e escrever no trabalho como policial. Era a memória da polícia.
No entanto, é a própria testemunha que alimenta a desconfiança do
estatuto formal de sua memória, já que tudo depende de seu ponto
de vista, tudo está apenas em sua cabeça, não se pode confiar em
ninguém. Os momentos de instabilidade se multiplicam entre as
conexões da narrativa. Não parece haver limite para o encadeamento
de acontecimentos suspeitos em sua composição. Embora a
indefinição domine a realidade mais extrema – quanto mais se procura
a verdade, mais distante ela se encontra da experiência –, a escrita
ainda se aventura na exploração de certos pontos de indeterminação
na realidade. O processo não tem a forma de uma resposta definitiva
para o problema inicialmente vislumbrado. Define-se antes como um
descompasso que atravessa as situações existenciais e contamina tudo
o que se encontra à sua volta, como o pó amarelo dos atentados que
faz tudo perder o sentido: “O inferno é descobrir que você nunca foi
o que pensava que era. É morrer e descobrir que o que você achava
que era não é nada” (CARVALHO, 1998, p. 112).
A narrativa de Teatro, como a de Os bêbados e os sonâmbulos, é
tributária da concepção de arte como poiesis, o que faz dela uma
potência poética capaz de introduzir no mundo algo que antes não
fazia parte de sua configuração, em vez de simplesmente reproduzir
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CLIPE
o mundo conhecido:
Sob as ordens deles inventei sem saber o “terrorista”.
E foi só quando percebi que a minha palavra se tornava
realidade é que decidi me afastar, e nunca mais escrever
nada, amaldiçoado, a não ser nesta outra língua, que eu mal
entendo. Só nesta outra língua posso contar a história sem
riscos, sem que eles usem as minhas palavras em benefício
próprio, sem que elas se tornem realidade. Só nesta outra
língua pobre posso escapar deles e contar o meu plano
para reparar, ainda que parcialmente, os estragos, o plano
que concebi ao ler o jornal, duas horas depois de ter
reencontrado Ana C. na rua (CARVALHO, 1998, p. 77).
Do ponto de vista etimológico, “paranóia” significa um distúrbio
geral da razão que se extraviou do intelecto em algum momento.
A paranóia é a forma insurgente de todas as idéias que são
organizadas num fluxo de sentido determinado além do limite da
lógica conhecida. Se o mundo se nega a oferecer um sentido, o
paranóico encontra a situação ideal para se tornar o autor de seu
próprio mundo: “O paranóico não pode suportar a idéia de um
mundo sem sentido. É uma crença que ele precisa alimentar com
ações militantes, para mantê-la de pé, tal é a força com que o mundo
a contraria” (CARVALHO, 1998, p. 31). Daí entende-se que a ficção,
sendo por definição a criação de seres imaginários, seja uma espécie
de atividade paranóica que busque configurar sistemas de sentido
em descompasso com a lógica que regulamenta as representações
sociais. A ficção se torna responsável pela formulação de um
pensamento original e independente que se investe do repertório
necessário para se contrapor às representações naturalizadas. À
medida que as cartas são encaminhadas às vítimas dos atentados,
Daniel compõe livremente uma teoria do mundo na ótica de um
paranóico. Nelas imagina as feições psicológicas de um homem
perturbado, identifica a manipulação do processo civilizatório e
propõe uma organização que restitua valores humanos fundamentais
que estavam sendo destruídos em nome dos interesses do capital
industrial e tecnológico. A paranóia, como uma razão tortuosa que
foge às normas habituais, encerra uma visão parcial da realidade que
busca compreender a totalidade do mundo. Seu parentesco com a
loucura se encontra em sua capacidade de formulação de lógicas
que desafiam o pensamento racional, consensual, quando é preciso
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
atribuir uma interpretação a acontecimentos que não se ajustam uns
aos outros. Quando os agentes da ordem buscam desterrar as formas
de insanidade para o país do sul, querem impedir que desestruturem
a ordem de sentido dominante no país que governam. Teatro mostra
que o estado de doença, como a loucura, pode ser a saída de muitos
impasses que imobilizam a existência. Como palavras ambíguas que
apresentam um sentido cifrado, a enfermidade pode ser uma cura,
a contaminação pode ser uma purificação, o veneno pode ser um
medicamento, contanto que o estado de doença seja compreendido
como uma potência ficcionante, capaz de engendrar as ficções mais
fantasiosas, as realidades mais imateriais, as lógicas mais impensáveis,
sempre contornando situações extremas que não podem ser
controladas em sua totalidade.
O modelo teórico que opera na ficção de Bernardo Carvalho está
contido na fórmula obscura: “Até que Daniel pare de sonhar”
(CARVALHO, 1998, p. 43). Daniel se deparou com a fórmula
incompreensível numa das primeiras noites em que saiu pelas ruas
da cidade fantasma. Trata-se de um código cifrado usado numa
variedade de situações comunicativas que dificultam o entendimento
de seu verdadeiro significado: “É como um ponto impenetrável
da língua pobre do meu pai. Também não me atrevo a perguntar
o que significa, já que me parece uma expressão tão corriqueira”
(CARVALHO, 1998, p. 44). Somente os iniciados em sua linguagem
que não se sentem ameaçados em sua presença podem compreender
seu sentido. A referência ao profeta israelita é explícita e retorna
novamente na segunda parte do romance. É preciso lembrar que
tanto o policial aposentado, quanto o fotógrafo de paisagem têm
identificação homônima. Às últimas linhas do romance, descobrese que ambos são uma só e mesma pessoa, quando se trata de
definir a fonte primordial de onde derivam as histórias de Teatro.
Somente enquanto instância original que controla o ficcionamento
de realidades podem ser considerados a mesma pessoa, uma vez
que assumem identidades diferentes nas duas partes do romance.
Consta que Nabucodonosor teve um sonho tão perturbador, que
foi preciso exigir dos mágicos a narração de seu conteúdo antes de
apresentarem sua interpretação. Como os mágicos disseram que
somente os deuses poderiam adivinhar o conteúdo dos sonhos, o
rei babilônico decretou a morte de todos os sábios daquele país. Para
evitar o assassinato coletivo, Daniel, que estava entre os escribas do
rei, teve o conteúdo do sonho revelado pela intervenção de Deus:
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CLIPE
o sonho antecipava a sucessão de monarcas que ocupariam o trono
no reino de Nabucodonosor (Dn, 2, 1-49). Na visão de Ana C., o
rei ordenou que Daniel narrasse antecipadamente o sonho para não
ser enredado numa interpretação falaciosa. Curiosamente o profeta
narrou o sonho que era de natureza sigilosa, e o rei não discutiu
a autenticidade da narração, passando a ouvir a interpretação da
narrativa. Se Daniel realmente inventou o sonho, como também
a interpretação de sua simbologia, a realidade verdadeira não se
confundia com uma certa natureza essencial do mundo. Para Ana
C., o desafio de Nabucodonosor aos intérpretes deixa transparecer
que cada interpretação cria a sua realidade, portanto, a realidade se
fundamenta numa interpretação: “e foi isso que Daniel compreendeu
ao responder ao desafio com um sonho que provavelmente inventou
na hora” (CARVALHO, 1998, p. 84). A fórmula obscura “Até
que Daniel pare de sonhar” é uma mensagem codificada da teoria
ficcional que orienta a execução dos procedimentos de composição
na narrativa de Bernardo Carvalho. Somente quando Daniel parar
de sonhar, o jogo de disfarces replicantes será suspenso da realidade.
A necessidade de enveredar por um sentido que prescinda do mundo
previamente constituído aparece em outras fórmulas do romance. N.
busca insistentemente encontrar o “tesouro dos cátaros”, e V. vive
fazendo cálculos à procura da “fórmula da humanidade”. O tesouro
é um pergaminho enterrado numa urna de latão no qual está escrita
uma nova teoria do mundo em grande parte em língua d’oc. Consta
no manuscrito cátaro que o corpo é a sede da verdade – o corpo traz
consigo todas as respostas, de onde viemos, para onde vamos, o que
somos, por que estamos aqui –, no entanto, por ser uma invenção
do demônio, não revela o conhecimento que detém consigo, o que
impede que a alma possa conhecer a verdade. Para poder se encontrar
com a verdade, a alma precisa se pôr em desacordo com o corpo, o que
promove a desarticulação do processo de naturalização do sentido e,
conseqüentemente, a reflexão sobre a corrupção da verdade, que é
a maior arma contra a sua fuga do domínio do conhecimento. A
teoria do mundo expressa na ótica do manuscrito cátaro retoma
antigas crenças do platonismo, que concebe o corpo como a prisão
da alma e a verdade como o bem absoluto que pode ser conhecido
somente por iniciados no processo de depuração da forma essencial.
A fórmula da humanidade, por sua vez, compreende um sistema de
sentido que elide o mundo conhecido de sua representação. Trata-se
de um mundo expresso em fórmulas e números jamais concebidos,
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
um mundo imaginário que talvez seja perfeito em sua integridade
e que está codificado em fórmulas matemáticas incompreensíveis,
porque simplesmente apresentam um mundo desconhecido. As duas
teorias se cruzam na narrativa de Daniel. O pergaminho dos cátaros
contém passagens expressas em código desconhecido que se oculta
por trás da linguagem verbal. N. envia os manuscritos secretos a V.
para que possa traduzi-los em linguagem matemática. V. consegue
decifrar a incógnita do tesouro cátaro numa sucessão interminável
de números e sinais matemáticos que apresenta para solucionar
o problema da verdade. (In)felizmente somente V. teve acesso ao
sentido desse mundo regido por uma lógica desconhecida. O tesouro
dos cátaros e a fórmula da humanidade conduzem à descoberta de
uma teoria, um conhecimento, uma perspectiva que se mantém fora
do consenso gregário. O idealismo de projetos dessa natureza não
esconde o desejo de superar o limite que impede o homem de ter
acesso a realidades de conformação mais perfeita.
Daniel analisa os atentados terroristas, investiga o assassinato do
senador, procura a fórmula da humanidade, busca o tesouro dos
cátaros, interpreta o código dos sonhos... A aporia da verdade com
que se confronta nesse caminho parece ser insolúvel. Contudo, o
empenho por resolver o problema impulsiona a vontade de saber na
exploração de um mundo incongruente à espera de compreensão.
A procura da verdade, contrariando a vontade de determinação da
razão objetiva, desencadeia a proliferação de narrativas de fatura
reversível. O acontecimento possibilita a invenção de-fórmulas-decódigos-de-lógicas que reflete a formação emblemática da demanda
absurda cada vez envolvida por uma visão parcial do mundo tentando
compreender a totalidade da existência.
Ao criar uma ficção em que não pára de se movimentar o motocontínuo de multiplicantes pontos de indeterminação, Bernardo
Carvalho resiste à naturalização das experiências que restringem o
horizonte da consciência. Sempre que ultrapassa o limite do sentido
determinado na ordem do mundo conhecido, libera as condições
inumeráveis que podem se desprender do desconhecido. O mundo
ficcional adquire a forma de um acontecimento tão inesperado, a tal
ponto estranho e desconcertante, que a única regra da ficção parece
ser o conflito contínuo com a ordem do mundo conhecido. Estancar
o fluxo desse mundo de sentido indeterminado, onde o estiramento
da lógica está subordinado à escolha da imaginação, pode restituir
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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CLIPE
alguma função à vontade de verdade. No entanto, uma vez que a
ambigüidade se introduziu em todas as coisas, todo esforço por
conter a disseminação do sentido está fadado a se tornar a fábula mais
inverossímil. Se a verdade pode ser exatamente o contrário daquilo
em que se acredita de fato, se a verdade não passa de uma ficção
lógica que se naturalizou no imaginário social, se a verdade não se
justifica como fundamento senão criando disfarces para ocultar sua
natureza, como pensava Nietzsche, pode-se começar enfrentando o
problema da verdade pela impossibilidade de sua existência: “Toda
aquela história tinha apenas servido para me confirmar o que sempre
soube, que não há verdade possível entre os homens, ‘um dia estão
de um jeito, no outro, de outro’, e que só as coisas inanimadas podem
me dar alguma certeza” (CARVALHO, 1998, p. 127).
REFERÊNCIAS
AS MIL E UMA NOITES. Versão Antoine Galland. Trad. Alberto
Diniz. 16. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 2 v.
BÍBLIA SAGRAGA. 37. ed. Trad. Centro Bíblico Católico. Ave
Maria: São Paulo, 1982.
CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
CARVALHO, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
LIMA, Luiz Costa. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio
a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
PLATÃO. A república. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Recebido em 10/08/2008
Aprovado em 02/09/2008
274 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
NA FRONTEIRA DAS PALAVRAS: A TEORIA DE
BAKHTIN E A POÉTICA DE FERREIRA GULLAR
COMO RESPOSTAS AO PROBLEMA
DO FORMALISMO
Rafael Campos Quevedo
UnB
Resumo: Este trabalho apresenta alguns argumentos da crítica de
Bakhtin à “estética material” a fim de traçar paralelos com a trajetória
poética de Ferreira Gullar tendo em vista a sua fase “pré-concreta” (A
luta corporal), sua produção de vanguarda e seu posterior caminho de
afastamento do concretismo. Aponta-se, aqui, para uma similaridade
no modo de compreender a questão do fazer poético que passa, em
ambos os casos, por uma crítica às poéticas formalistas.
Palavras-chave: Formalismo. Ferreira Gullar. Mikhail Bakhtin.
Résumé: Ce travail propose quelques arguments de la critique de
Bakhtin à ‘l’esthétique matérielle’, mis en parallèle avec la trajectoire
poétique de Ferreira Gullar abordant sa phase ‘pré-concrète’ (A luta
corporal), sa production d’avant-guarde et son éloignement ultérieur
du concrétisme. On démontrera, ici, une similitude dans le mode de
compréhension du savoir-faire poétique, dans les deux cas, à travers
une critique de la poétique formaliste.
Mots-clés: Formalisme. Ferreira Gullar. Mikhail Bakhtin.
A preocupação do Formalismo em fundar uma ciência da literatura
exigiu da parte de seus teóricos o estabelecimento de alguns elementos
indispensáveis a tal escopo, entre os quais a delimitação de um objeto
de estudo próprio, ou seja, empiricamente discernível do objeto de
outras disciplinas e um aparato metodológico adequado a tal objeto,
condições sem as quais não se chega a nenhuma generalização
científica, pelo menos dentro dos moldes de um conhecimento de
inegável inspiração nos modelos das ciências naturais, como foi o
caso, afinal, não só do formalismo russo como, também, de boa
parte das ciências humanas em suas origens.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 275
CLIPE
Um equivalente poético da visão formalista pode ser encontrado
na prática dos poetas concretistas, especialmente na obstinação com
que o movimento brasileiro perseguiu a “poeticidade” através do
máximo de distanciamento possível com relação ao uso “comum”
da linguagem. A Poesia Concreta assimilou a noção formalista de
“estranhamento” que, grosso modo, seria a marca que conferiria a um
determinado registro lingüístico o seu caráter poético, assim como,
do ponto de vista teórico, asseguraria ao formalismo a delimitação de
seu objeto, que já não seria a linguagem em si mesma, mas a língua
em sua manifestação especificamente poética.
É preciso ter em mente que o Concretismo foi o ponto de encontro
de Ferreira Gullar com os poetas paulistas1, sistematizadores teóricos
do movimento concretista no Brasil. Tal convergência representou,
para o poeta maranhense, uma possibilidade de expressão fora da
escrita convencional que já havia sido “implodida” em seu segundo
livro: A luta corporal2. A seguir, um trecho de “Roçzeiral”, poema em
que a referida implosão se inicia:
Au sôflu i luz ta pompa inova’
orbita
FUROR
tô bicho
’scuro fogo
Rra (GULLAR, 200)
Na explicação fornecida pelo próprio autor acerca do sentido da
desagregação do significante levada a cabo em alguns dos poemas
do referido livro3, Gullar fala a respeito de sua necessidade, naquela
Por concretistas referimo-nos, neste trabalho, aos fundadores do
grupo Noigandres, os poetas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, sistematizadores do corpus teórico do movimento e autores de boa parte
dos poemas a ele vinculados.
1
Para efeito de uma visada mais geral da obra de Ferreira Gullar
estamos considerando Um pouco acima do chão (1949) seu primeiro livro,
embora ele não esteja incluído em Toda poesia (2008). Cf. “Referências”.
2
Conferir o texto “O inimigo das palavras” em Indagações de hoje
(cf. referências).
3
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
altura, de concretizar o que ele chamou de “poema essencial” que
seria a pretensão de se captar a experiência vivida sem a mediação da
linguagem que, na problemática em questão, era objeto de descrédito
quanto às suas possibilidades expressivas. Evidentemente, poemas
como “Roçzeiral” assinalam a radicalização de uma questão que, a
rigor, é inerente a todo fazer artístico: o embate do artista com o
material de que dispõe para enformar o conteúdo de sua expressão.
Assim, a intenção de imprimir na matéria verbal a experiência do
“canteiro ressequido da praia de Botafogo” de forma mais imediata
(ou seja, sem mediação) e que poderia, muito bem, ser expresso
como “ao sopro e luz tua pompa se renova numa órbita”, resultou
no tipo de ruptura da linguagem assinalada no fragmento acima.
Vale, para começar, enfatizarmos os elementos que compõem a
problemática em foco. O primeiro deles discute a questão do poeta
como artista, cuja tarefa instaura-se entre dois pólos: o mundo e a
língua como material (segundo e terceiro elementos, respectivamente),
esta última nada possuindo de “estético” em si mesma, uma vez que
é largamente utilizada para fins, digamos, “instrumentais”. Tal como
esse material “desgastado” pelo uso cotidiano, o mundo também
não carrega, consigo, a cintilação de um evento excepcional, já que
canteiros ressequidos podem ser encontrados sem esforço e, como
são dados à percepção cotidiana, habitam o reino da banalidade da
vida ordinária.
Dependendo de em qual dos elementos (poeta, mundo e material) se
puser a ênfase, pode-se verificar o princípio germinal de cosmovisões
distintas sobre o problema estético. Genericamente falando, se
se deposita sobre o poeta o fundamento do fenômeno artístico
podem-se haurir versões “subjetivistas” da questão que vão desde a
explicação romântica do gênio criativo às justificativas psicológicas
da obra. Se é sob o prisma do mundo externo, considerações de
índole “realista” (como todas as abordagens do literário que se
atêm aos aspectos conteudistas do texto, como o historicismo e o
sociologismo) podem ser obtidas e, por fim, se a ênfase recai sobre o
material temos, sobretudo, o formalismo como principal arrazoado
teórico da questão. Nada impede, contudo, que tais elementos sejam
postos em relação entre si e que uma visão teórica diagnostique a
legitimidade que cada um possui para o todo da obra artística. A
nosso ver, a reflexão de Bakhtin, especialmente em seu texto de
1924 intitulado “O problema do conteúdo, do material e da forma
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• 277
CLIPE
na criação literária4”, equaciona de forma bastante convincente tal
problema.
Bakhtin denominou de “estética material” a posição teórica segundo
a qual o fundamento da obra de arte coincide com sua realidade
empírica e se encontra no material do qual ela se serve. Logo de
início, o autor aponta para a insuficiência dessa abordagem alegando
a redução, por ela promovida, do fenômeno literário a problemas
estritamente lingüísticos. Sempre interessado numa visão de conjunto,
o pensador russo não descartará, em nenhum momento de sua
argumentação, a importância de se tratar a obra literária desde uma
perspectiva lingüística, mas considera ser esta um dos momentos da
análise literária e não a sua totalidade. Em tal argumento fica clara
uma das premissas fundamentais do pensamento bakhtiniano que
serviu de esteio a toda a sua discussão no ensaio em questão: a de que
nenhum modelo estritamente científico (especialmente por carregar
a reivindicação de um objeto empírico) seria adequado à abordagem
do fenômeno artístico e que, em seu lugar, seria preciso se readmitir
a estética filosófica, ainda que reelaborada a partir de bases nãometafísicas. Dessa forma, apenas um método de cunho filosófico
que, por natureza, não delimita fronteiras quanto aos objetos dos
quais se ocupa (mas, ao contrário, busca “problemas” nos mais
diversos campos do saber) estaria apto a tal empresa, uma vez que o
afã de “cientificizar” a arte poderia dar conta, apenas, de uma parte
do seu todo que seria, justamente, a de sua fatura material.
O que vale para uma consideração metodológica do formalismo
serve, a nosso ver, para o propósito de uma crítica às poéticas que
com ele se afinam. Os textos da Teoria da poesia concreta que, como
se sabe, assumiram filiação ao construtivismo e ao formalismo
artísticos, estão repletos de menções à centralidade que o aspecto
físico da palavra ocupa na poesia. Para os concretistas, vale a palavra
como “coisa”, objeto auto-suficiente que oblitera o referente e
oferece sua própria “estrutura” como conteúdo. Declaradamente, os
poetas em questão alistam-se em uma estirpe de autores caudatária
do adágio mallarmaico de que o poema é feito com palavras e não
com idéias.
Recolocando os vértices da triangulação do problema artístico
diríamos que, para a Poesia Concreta, interessa rasurar as marcas tanto
4
cias)
278 •
Primeiro capítulo de Questões de literatura e de estética (cf. Referên-
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
do referente (mundo) como do autor em favor de um encarecimento
do material. A intenção artística do poema concreto seria a exibição
da materialidade do significante e a tarefa do poeta descobrir-lhes
possibilidades insuspeitas. Se compararmos tal proposta com a
intenção de Gullar ao dilacerar o corpo do significante em “Roçzeiral”,
percebemos que, enquanto para o autor de A luta corporal a intenção
era romper com a linguagem a fim de que o real fosse iluminado de
forma mais direta, para os poetas-teóricos do grupo Noigandres esse
real era posto entre parênteses para uma melhor “presentificação” da
realidade material do signo lingüístico. A esse antagonismo quanto ao
papel da palavra dentro do poema, diremos que tudo se passa como
se, para a Poesia Concreta, o significante devesse possuir um caráter
“opaco”, similar ao do objeto, enquanto que, para Gullar, interessaria
que a palavra fosse “translúcida”, ou seja, que se deixasse, o quanto
possível, ser atravessada, para que o mundo pudesse ser entrevisto
através dela.
Uma rápida análise de um poema de maturidade de Ferreira Gullar
(extraído de seu último livro Muitas vozes5) suscitará questões
relevantes ao rumo de nossa exposição. Pela sua extensão, optamos
por reproduzi-lo integralmente em nota de pé de página cuja
leitura requisitamos para a entendimento das considerações que se
sucederão.
Todo poema (ou seja: a “não-coisa”) é a tradução, para a “lógica do
ouvido”, (10º verso) daquilo que “não tem sentido” (12º verso) na
“Não-coisa” (título do poema): “O que o poeta quer dizer/no
discurso não cabe/e se o diz é pra saber/o que ainda não sabe. // Uma fruta
uma flor/um odor que relume…/Como dizer o sabor,/seu clarão seu perfume?//Como enfim traduzir/na lógica do ouvido/o que na coisa é coisa/e
que não tem sentido?//A linguagem dispõe/de conceitos, de nomes/mas
o gosto da fruta/só o sabes se a comes//só o sabes no corpo/o sabor que
assimilas/e que na boca é festa/de saliva e papilas//invadindo-te inteiro/
tal do mar o marulho/e que a fala submerge/e reduz a um barulho,//um
tumulto de vozes/de gozos, de espasmos,/vertiginoso e pleno/como são os
orgasmos//No entanto, o poeta/desafia o impossível/e tenta no poema/
dizer o indizível://subverte a sintaxe/implode a fala, ousa/incutir na linguagem/densidade de coisa//sem permitir, porém,/que perca a transparência/
já que a coisa é fechada/à humana consciência.//O que o poeta faz/mais
do que mencioná-la/é torná-la aparência/pura — e iluminá-la.//Toda coisa
tem peso:/uma noite em seu centro./O poema é uma coisa/que não tem
nada dentro,//a não ser o ressoar/de uma imprecisa voz/que não quer se
apagar — essa voz somos nós.” (GULLAR, 2008, p. 450).
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CLIPE
coisa. A coisa é substância “densa” (“toda coisa tem peso” – verso
45º) e opaca (pois com “uma noite em seu centro” – 46º verso). O
sentido não está nela mesma já que pressupõe alguém que a sinta
(“sentido”, possui, aqui, a acepção de “razão de algo” como indica, ao
mesmo tempo, o particípio do verbo “sentir”). O poema em questão
assinala que é no corpo que o real repercute o seu sentido e a coisa
faz-se sentida, gerando o conteúdo da experiência a ser traduzido
pelo poeta. Aqui, “saber” retoma seu parentesco etimológico com
“sabor”: “mas o gosto da fruta/só o sabes se a comes//só o sabes
no corpo/o sabor que assimilas/e que na boca é festa/de saliva e
papilas”.
Por serem de naturezas distintas, a linguagem é, por definição, nãocoincidente com a coisa. Usando uma imagem extrema: ao falarmos
“flor” não vertemos uma flor pela boca, ou seja, não “presentificamos”
o objeto, mas nos contentamos com sua representação substitutiva,
pela palavra. Nesse instante da análise o poeta tem diante de si
não a coisa, mas a repercussão dela nos seus sentidos. Seu desafio:
converter o reino da experiência em canto. Para tanto: “[...] o poeta/
desafia o impossível/e tenta no poema/dizer o indizível://subverte
a sintaxe/implode a fala, ousa/incutir na linguagem/densidade de
coisa//sem permitir, porém,/que perca a transparência/já que a
coisa é fechada/à humana consciência.” (29º ao 40º verso). Os grifos
indicam a dicotomia opacidade/translucidez da qual lançamos mão
para estabelecer o antagonismo entre a palavra “concreta” e a palavra
do “poema essencial” almejado por Gullar.
Isso posto, convém agora promovermos o paralelo mais próximo
com os argumentos de Bakhtin na obra já referida. Antes disso, um
rápido preâmbulo sobre o formalismo concretista.
Pode causar surpresa aos leitores desavisados da Teoria da poesia
concreta que o movimento tenha professado a possibilidade de um
poema que não fosse discurso sobre elementos externos, mas que seu
conteúdo fosse auto-referencial, dando a entender que se tratasse de
uma tentativa de forçar a arte verbal a assumir o mesmo estatuto, por
exemplo, de um quadro ou uma escultura abstrata cuja possibilidade
de utilização dos materiais (a cor, o mármore etc.) sem referência a
objetos naturais é não só possível como largamente realizável. Fato
é que os poetas concretos, cônscios da especificidade do material
verbal (o fato de que ele parte de um sistema já significante ao
contrário da linha ou da cor), incorporaram a idéia joyceana de espaço
280 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
verbivocovisual que continha, no radical “verbi”, o estrato semântico
da palavra (sendo o “voco” e o “visual” as camadas sonora e plástica,
respectivamente) sendo, este, a garantia do inexorável elo do signo
verbal com o mundo.
Malgrado tal ressalva, a carga semântica da palavra, se não é
totalmente proscrita da natureza do signo (o que seria impossível),
é de tal forma equiparada com suas outras dimensões que, não
raro, o poema concreto resulta em um texto cuja fisionomia parece
passar uma idéia de esvaziamento de conteúdo. Nesse sentido, o
conteúdo aparentemente remoto de um poema concreto encontraria
justificação na tese segundo a qual a forma “é” o conteúdo e que
o poema é um instaurador de formas inabituais e não um discurso
“sobre” a realidade, função à qual outros usos da linguagem já
estariam destinados. Porém, cabe perguntar: não seria tal delimitação
um estreitamento do domínio da poesia ou, em outras palavras,
não teria a Poesia Concreta fundado um espaço restrito, porquanto
demasiado “composicional” (adiante explicaremos a acepção deste
termo no contexto deste trabalho), para a poesia? Tentemos lançar
luz sobre a questão tendo em vista o paralelo com o referencial
bakhtiniano.
No trecho a seguir, vemos Bakhtin servir-se da idéia de “fronteira das
palavras” como lugar da realização poética. Tal idéia é fundamental
para entendermos a crítica bakhtiniana ao formalismo, assim como
será, neste trabalho, para as luzes que aqui pretendemos lançar sobre
alguns aspectos da poética de Ferreira Gullar:
O enorme trabalho do artista com a palavra tem por
objetivo final a sua superação, pois o objeto estético
cresce nas fronteiras das palavras, nas fronteiras da língua
enquanto tal; mas essa superação do material assume um
caráter puramente imanente: o artista liberta-se da língua
na sua determinação lingüística não ao negá-la, mas graças
ao seu aperfeiçoamento imanente: o artista como que vence
a língua graças ao próprio instrumento lingüístico e,
aperfeiçoando-a lingüisticamente, obriga-a a superar a si
própria. (BAKHTIN, 1990, p. 50)
Antes de algumas explicações conceituais referentes à citação acima,
convém antecipar o paralelo com o seguinte depoimento de Gullar
colhido de seu livro Indagações de hoje em capítulo intitulado “O
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• 281
CLIPE
inimigo da palavra”:
[...] Há certa verdade nisto: o poeta de fato bagunça um
pouco o coreto da linguagem. Mas não para que as palavras
se tornem perceptíveis. Desarruma-o para romper a crista
verbal que impede o aflorar, na linguagem, da experiência
viva. Um poeta pode até criar palavras mas não com o
propósito de aumentar o volume dos dicionários, e sim para
exprimir o novo. O mau poema é feito de palavras. O bom
poema é feito contra as palavras. (GULLAR, 1989, p. 42)
Logo de início fica visível a recusa de ambos os autores a aceitar a
redutibilidade do poema ao aspecto proeminentemente lingüístico,
ainda que ambos não neguem ser a palavra o material indispensável
do constructo poético. Tal zona de convergência entre Bakhtin e
Gullar diz respeito à relativização da estética formalista na medida em
que a tarefa de “superar” a língua não se confunde com o destaque
de suas configurações materiais, pois, como diz Bakhtin, “o objeto
estético cresce nas fronteiras das palavras”.
O “objeto estético”6 é a totalidade unificada de um conteúdo
totalmente “encarnado” em uma forma. O conteúdo é composto de
fragmentos da realidade que são “isolados” da existência e, quando
ingressam na composição artística, ganham uma realidade única e
acabada.
Nesse sentido, não há como escapar do fato de que tudo o que o
artista tem diante de si é o material e somente sobre ele é que se
dirige sua atividade. No entanto, a depender da atitude do artista,
dois tipos de objeto podem ser obtidos. O primeiro deles, no que diz
respeito à poesia, consistiria em haurir da matéria verbal um “objeto”
pretensamente autônomo no sentido de que suas significações
decorreriam do imanentismo da sua realidade física. A esse estágio,
digamos assim, da obra, Bakhtin chama de “momento composicional”
cuja característica consiste na ênfase sobre os elementos técnicos da
arte em questão e dos aspectos físicos do material utilizado. Toda a
Com “objeto estético” Bakhtin não está se referindo à realização
estritamente material da obra de arte já que, para esta, ele reservou o conceito
de “obra exterior”. A grande limitação da “estética material” (leia-se: formalismo) residiria no fato de ela se ater ao estudo da obra exterior sem alçar a
compreensão do objeto estético, tomando o primeiro como a realidade total
da obra.
6
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CONTEXTO
fase mais radical da Poesia Concreta se insere nesse escopo. Como
Gullar também foi um adepto do concretismo, podemos extrair de
sua obra um exemplar do tipo de poesia a que estamos nos referindo7:
verde verde verde
verde verde verde
verde verde verde
verde verde verde erva
(GULLAR, 2008, p. 102)
Note-se que o poema acima autoriza, praticamente, apenas uma
possibilidade interpretativa que se depreende a partir da proximidade
semântica e fonética entre as palavras “verde” e “erva”. A disposição
visual concorreria para endossar tal parentesco destacando a “erva”
do “verde”, sugerindo o engendramento daquela a partir da repetição
deste pois, afinal, da eliminação do “de” de “verde” e adição do
“a” surge o vocábulo “erva”. Note-se que o elemento comum a
ambos os vocábulos constitui um anagrama do verbo “ver”, numa
espécie de auto-referência ao artifício fisionômico do poema que
pede para ser “visto” menos que lido. O que tal poema reivindica é
uma contemplação do seu próprio “corpo” assim como suas chaves
interpretativas esgotam-se no desvelamento de suas estratégias
composicionais.
Se se constitui um mérito do poeta a exploração das potencialidades
das palavras, a sua limitação, seguindo a ótica bakhtiniana, estaria
em pretender fundar uma poética exclusivamente no âmbito
composicional. No lado teórico da questão, é justamente o problema
da redução da poesia às explicações composicionais que constitui a
grande limitação do método formal: “E eis que no domínio da teoria
da arte surge uma tendência no sentido de compreender a forma
artística como forma de um dado material, e não mais como uma
combinação nos limites do material [...]” (BAKHTIN, 1990, p. 18).
Assim, a segunda das posturas que o poeta pode assumir diante da
palavra (sendo a primeira a tentativa de equiparação da palavra ao
estatuto de coisa) é forçá-la à sua “superação”, assim como a atitude
Embora o poema em questão já pertença ao momento neoconcretista isso não invalida seu caráter exemplar pois o aspecto técnico-composicional permanece em destaque.
7
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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CLIPE
correlata do estudioso de poesia seria compreender o poema não de
forma fincada nas suas determinações especifica e exclusivamente
lingüísticas, mas no seu entrecruzamento com o todo da cultura, do
qual ela faz parte.
Se nos ativermos à poesia de Ferreira Gullar veremos exemplos tanto
de extremos dos problemas relativos ao fazer poético em questão
como, também, momentos de síntese. Já destacamos duas situaçõeslimite: “Roçzeiral” como a utópica tentativa da pura transparência e
“verde erva” como a proposta do poema coisa (palavra opaca). Os
poemas de cordel escritos por Gullar após seu rompimento com as
vanguardas seriam a outra faceta radical da sua empreitada poética,
dessa vez tendo em vista a primazia do conteúdo sobre o trabalho
estético.
Seguindo a nossa lógica argumentativa, da mesma forma que se
engana “do ponto de vista metodológico” o estudioso que busca
reduzir o poema a seus “temas” e “conteúdos”, equivoca-se o poeta
que lida com a forma poética como um repositório de visões de
mundo, ideologias políticas etc. Todo o texto de Bakhtin usado como
base desta explanação (“O problema do conteúdo, do material e da
forma na criação literária”) empreende grande esforço em mostrar
que os componentes cognitivos que ingressam numa obra assumem
nela uma tal unidade que
não pode ser destacado da obra de arte um elemento
real qualquer como sendo um conteúdo puro, como
aliás, realiter não há a forma pura: o conteúdo e a forma
se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são
indissolúveis para a análise estética, ou seja, são grandezas
de ordem diferente: para que a forma tenha um significado
puramente estético, o conteúdo que a envolve deve ter um
sentido ético e cogninitivo possível, a forma precisa do
peso extra-estético do conteúdo, sem o qual ela não pode
realizar-se enquanto forma.” (BAKHTIN, 1990, p. 37)
Assim, o desequilíbrio entre os elementos cognitivos e os éticos
e destes, por sua vez, com a forma, concorrem para interditar
o êxito da obra de arte ou, como diz Bakhtin, do objeto estético.
Os poemas de cordel de Ferreira Gullar ensaiam tal desequilíbrio
forma/conteúdo e, não raro, assumem o caráter de panfleto político.
Consideradas as devidas diferenças, Bakhtin assinala semelhante
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
desacordo em momentos da obra de Dostoiévski e Tolstoi como
“no romance Guerra e Paz, por exemplo, onde no seu final os juízos
cognitivos e histórico-filosóficos rompem totalmente a sua ligação
com o acontecimento ético e organizam-se num tratado teórico”
(BAKHTIN, 1990, p. 41).
Sendo assim, somos levados a crer que os momentos de síntese do
percurso poético de Gullar, ou seja, suas mais exitosas realizações
estéticas coincidem com o momento em que sua produção conseguiu
promover os efeitos mais satisfatórios a partir da articulação do
composicional com os componentes de conteúdo histórico, social,
político e biográfico. O Poema sujo é, possivelmente, o mais completo
registro dessa síntese. Nele, o Gullar “biográfico” empresta-se
como espaço onde se amalgama dados existenciais e históricos que,
deslocados para o cerne da unidade artística, organizam um novo
“todo”, esteticamente rico em possibilidades de relações com o
universo cultural no qual está inscrito.
Vale lembrar que a inserção do “eu”, ou seja, da subjetividade
criadora no objeto estético, representa a negação de um dos tópicos
do “receituário” concretista que prescreveu a abolição das marcas
de subjetividade na poesia a fim de que esta se aproximasse mais do
objeto de aspecto industrial8. A inserção do autor no bojo do universo
axiológico que o texto instaura pode ser mais minuciosamente
compreendida em outro texto de Bakhtin intitulado “O autor e o
herói na atividade estética”9. No entanto, mesmo em “O problema
do conteúdo...” o teórico russo já indica algumas questões relevantes,
como a que transcrevemos abaixo:
A personalidade criativa positivamente subjetiva é um
momento constitutivo da forma artística, aqui a sua
subjetividade encontra uma objetivação específica, torna-
Na teoria concretista, o poeta liga-se à figura do produtor que
remete à idéia de um operador de máquinas. Ele aciona certos mecanismos
e permanece “neutro” no resultado final, ou seja, o produto não terá a sua
“presença” transfigurada, o seu “estilo”: “Um operário que trabalha uma
peça ao torno não escreve nela o seu nome ou a sua revolta” (CAMPOS et
alii, 1975, p. 125). Ou, então: “A figura romântica, persistente no sectarismo
surrealista do poeta ‘inspirado’, é substituída pela do poeta factivo, trabalhando rigorosamente sua obra, como um operário um muro” (CAMPOS
et alii, 1975, p. 52).
8
9
Presente em “Estética da criação verbal” (cf. referências)
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 285
CLIPE
se uma subjetividade criadora culturalmente significante; é
ainda aqui que se realiza a unidade específica do homem
orgânico, físico e interior, moral e espiritual, mas uma
unidade provada a partir do interior. O autor, como
momento constitutivo da forma, é a atividade, organizada e
oriunda do interior, do homem como totalidade, que realiza
plenamente a sua tarefa, que não presume nada além de si
mesmo para chegar à conclusão, é, ademais, o homem todo
dos pés à cabeça [...] (BAKHTIN, 1990, p. 68)
Dadas as considerações até aqui desenvolvidas podemos, finalmente,
sintetizar o paralelismo de nossa análise acusando a premissa que a
sustenta, a saber: a de que há um direcionamento comum entre o
método formal e a prática da Poesia Concreta.
Dissemos que, em ambos os casos (como objeto de estudo e como
prática artística), a poesia sofreu um estreitamento de seu campo
de abrangência. Da parte do Formalismo percebe-se, via crítica
bakhtiniana, a tendência a restringir o estudo da poesia ao rol dos
problemas lingüísticos cuja pressuposição epistemológica é a de
que, enquanto método científico, a pesquisa formal deve possuir
um objeto empírico delimitado, que é o caráter material da palavra
esteticamente trabalhada no poema. Nesse sentido, o estreitamento a
que nos referimos é o corte necessário para que o método em questão
se afaste da abordagem especulativa própria da estética filosófica e
ganhe, efetivamente, estatuto de saber científico.
No que diz respeito à Poesia Concreta, essa base empírica da arte
verbal converte-se em campo de realização estética. As fases do
movimento concretista, por exemplo, assinalam a obstinação de
seus mentores com o aspecto técnico do “artefato” verbal pois,
da “fenomenologia” à “matemática da composição” (v. TPC, p.
43) o poema concreto estriba-se em pressupostos declaradamente
formalistas, sobretudo quando, supostamente, rompem com a poesia
discursiva, acarretando a dissipação conteudística, consoante a
equiparação do semântico com as estratégias de visualidade.
Correlatamente ao pôr “entre parênteses” o mundo da cultura,
operado pelo método formalista, o concretismo ortodoxo também
fez tabula rasa dos componentes referenciais optando por uma
participação “fisionômica” no mundo da vida, o que significa dizer
que a forma poética é que se inscreve no universo das coisas (leia-se:
286 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
o mundo tecnicizado, industrial, cibernético e da linguagem dos mass
media) num claro convite para que a poesia deixe de ser um modo
de expressão simbólica do mundo para ser um objeto dentro deste
mesmo mundo.
Para Gullar o “mau poema é feito de palavra [e o] bom poema é feito
contra as palavras” (GULLAR, 1989, p. 42: grifo nosso). Sem levar
ao pé da letra tal declaração, mas reconhecendo o argumento que ela
encerra, não entendemos, como Gullar, que a Poesia Concreta seja
uma forma absolutamente inválida de poesia.
A nosso ver, a Poesia Concreta foi uma forma de escrita que
constituiu o seu próprio sistema de validação para nele figurar como
seu expoente mais acabado. Se, como é comum dizer, a poesia
pressupõe uma cosmologia ou uma mitologia das quais representa
sua síntese estética (assim como a Divina comédia para a cosmovisão
cristã, Homero para a axiologia grega e todo o grande cânone e suas
respectivas ligações com o universo cultural do qual fazia parte)
a vanguarda concretista, na constituição da sua Weltanschauung,
incorreu no deliberado propósito de tomar o aspecto pela totalidade
ou a singularidade pelo universal.
De fato, a contemporaneidade comporta o paradigma tecnológico
e este pode ser considerado a imagem que mais perto chega de
singularizar nossa época. Mas a utópica proposta concretista de
fornecer a linguagem própria dessa nova era acarretou, por sua vez,
a idéia de que seria preciso reduzir a expressão poética a uma techné
da palavra.
Nesse ponto, convém reconhecer a legitimidade da proposta
concretista a partir de uma dada circunscrição específica, impossível
de se absolutizar como a linguagem poética hodierna por excelência.
Fossem os dogmas do movimento concretista verdades indubitáveis
não teria Haroldo de Campos (e outros de sua geração) optado por
retroceder às formas negadas pela ortodoxia daquela vanguarda.
Nesse sentido, aquilo que aqui se observou, em ambos os autores
apresentados, sob a metáfora da “fronteira das palavras” não
corresponde à negação do material verbal (como poderia deixar
parecer o ir “contra a palavra” da citação acima10), mas aponta para
É nesse sentido que também a transparência almejada pelo “poema essencial” – o caso “Roçzeiral” – não ultrapassou o caráter de registro
de uma problemática, soçobrando em sua própria utopia de se afirmar como
10
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• 287
CLIPE
o fato de que os elementos materiais incorporados na obra de arte
perdem sua especificidade física para dar lugar a um novo campo
material transmudado esteticamente. É a partir desse raciocínio que
Bakhtin chama a atenção para o fato de que:
[...] a natureza extra-estética do material (à diferença do
conteúdo) não entra no objeto estético: não entram o
espaço físico-matemático, as linhas e figuras da geometria,
o movimento da dinâmica, o som da acústica, etc.; com
eles se relacionam o artista-artesão e a ciência estética, mas
não a contemplação estética em primeiro grau. É preciso
distinguir claramente estes dois momentos: no processo
de trabalho, o artista necessita relacionar-se com a física,
a matemática, a lingüística, mas todo esse enorme trabalho
técnico realizado pelo artista e estudado pelo esteta, sem o
qual não existiria a obra de arte, não entra no objeto estético
criado pela contemplação artística, ou melhor, na existência
estética enquanto tal, no objeto último da obra: tudo isso
desaparece no momento da percepção artística, como
desaparecem os andaimes quando o prédio é construído.
(BAKHTIN, 1990, p. 48-49)
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. “O problema do conteúdo, do material e da
forma na criação literária”. In.: Questões de literatura e de estética
(a teoria do romance). Trad.: Aurora F. Bernardini, José P. Júnior,
Augusto G. Júnior, Helena S. Nazário, Homero F. de Andrade. 2. ed.
Hucitec: São Paulo, 1990.
BAKHTIN, Mikhail. “O autor e o herói na atividade estética”. In.:
Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
CAMPOS, Augusto de.; CAMPOS. Haroldo de; PIGNATARI,
Décio. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e manifestos 19501960. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
um “antipoema”, produto de uma linguagem esgarçada.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. (1950-1999). 16. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2008.
GULLAR, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio,
1989.
GULLAR, Ferreira. Um pouco acima do chão. São Luís: Edição do
autor, 1949.
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e poesia: Bakhtin e o formalismo
russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
Recebido em 18/09/2008
Aprovado em 30/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 289
CLIPE
A MÚMIA
Adolfo Miranda Oleare
Ufes
(...) uma expressão de doçura e de paz taes que se julga
vêr o pharaó adormecido e não morto. (Encyclopedia e
Diccionario Internacional)
Resumo: Reflexão sobre a crítica de Nietzsche ao gesto
desistoricizante da tradição filosófica. Para o autor, ao se fundar em
conceitos e categorias ideais, a metafísica gera uma desvalorização da
efetividade histórica do acontecimento humano.
Palavras-chave: Conceito. Temporalidade. Historicidade.
Abstract: Reflection on the critique of Nietzsche to the gesture of
making reality un-historical, practiced by philosophical tradition.
For the author, by reason of being grounded in concepts and ideals
categories, the metaphysics creates a devaluation of human historical
effectiveness of the event.
Keywords: Concept. Temporality. Historicity.
Da cadavérica ascese egípcia
No antigo Egito, sabe-se bem, durante muito tempo cultivouse a mumificação. O cinema hollywoodiano não deixa a
contemporaneidade alheia à memória do fenômeno. A palavra
múmia tem origem persa.11 Na língua de Xerxes, mum significa “cera
ou substância balsâmica”12. Para a língua portuguesa, o substantivo
feminino múmia corresponde a “cadáver humano embalsamado por
Cf. Encyclopedia e Diccionario Internacional. Rio de Janeiro/Nova
York: W. M. Jackson Inc.Editores, sem data, p. 7657-8.
11
12
290 •
Idem, ibidem.
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
processos especiaes que o conservam muito tempo”13.
A meta da mumificação era exatamente impedir a decomposição
do corpo, tornando-o incorruptível. Seu processo envolvia – com
variações – o mergulho do morto em soluções anti-sépticas, o
salgamento, a extração do cérebro e das vísceras, a substituição dos
olhos naturais por olhos de esmalte, o preenchimento do estômago
com tecido de linho, serra de madeira, erva seca e natrão pisado e
obstrução das cavidades do ouvido, boca e nariz com uma massa
escura e perfumada, além de seu envolvimento em uma faixa, dos
pés à cabeça. 14
No pensar dos egypcios era necessario, com effeito, que
o cadaver se não consumisse, porque a duração da alma
estava subordinada á existencia do corpo que ella tinha
animado. A protecção da mumia no tumulo e a da alma nas
suas peregrinações exigia todo um arsenal de cerimonias,
de orações, de objectos de mobiliario e de amuletos, que se
depunham no tumulo ou no ataúde.15
Nesses termos, o ritual de mumificação, ao que parece, pode ser
apropriado como evidência do modo de relacionamento dos egípcios
com a vida. Na medida em que paralisavam o percurso natural do
corpo morto, idealizavam a existência, corrigindo-a naquilo que
ela, por si, era incapaz de realizar. Por resultar de uma interferência
artificial na dimensão biológica do corpo, a múmia retrata uma
animosidade em relação ao imperativo primeiro da existência, da
vida: sua constituição temporal. Em última instância, a finitude, o
limite, a consignação entre realização e desrealização. Ela parece
querer, especificamente, perpetuar aquilo que perece, estagnando o
perecimento. Paradoxalmente, então, quer estagnar a ação do tempo,
perpetuando-a. Quer despotenciar o tempo, por meio de uma
sabotagem de lastro espiritual, que consiste em fingir a capacidade
de, aparentemente, produzir o tempo. Trata-se de golpear a morte,
neutralizando-a por uma jogada estética.
A arte da mumificação attingiu o seu apogeu no segundo
imperio thebano, na XVIII.ª e XIX.ª dynastia: produziu
15
13
Idem, ibidem.
14
Idem, ibidem.
Idem, ibidem. As citações seguem fidedignamente a grafia, a
acentuação e a pontuação do texto original.
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• 291
CLIPE
então admiráveis múmias, as mais celebres das quaes, a de
Ramsés II e principalmente a de Seti I, teem uma expressão
de doçura e de paz taes que se julga vêr o pharaó adormecido
e não morto.16 (grifo nosso)
Valorizando a ênfase no aspecto central da múmia – o de legislar
sobre a vida, obrigando-a a permanecer naquilo do que já se
extraviou –, lê-se, ainda no verbete da Encyclopedia e Diccionario
Internacional que, transformadas – ou transtornadas – as condições
históricas, sociais, econômicas e culturais de outrora, enfim,
desgastada a tradição, eis que põe-se em movimento a decadência da
arte de mumificar, de modo que seu processo rotineiro passa a ser
simplificado e acelerado, substituído por outros menos dispendiosos
que, “embora assegurando a conservação do corpo, não permitiam
deixar-lhe essa quasi apparencia de vida que caracterizava as mumias
anteriores.”17 (grifo nosso)
Conclui-se, da informação enciclopédica, que a concepção da
múmia institui um jogo em que unem-se os termos duplicação,
aparência, artifício, adulteração, conservação. Não se quer efetuar
um estudo sobre este ou aquele tópico da simbologia religiosa
egípcia; não ecoa aqui um grão sequer de egiptologia. Contudo,
importa significativamente a fábula da múmia, à medida que nela se
localiza um paradoxo atraente: a conservação do transmundano pela
aparência de conservação do mundano.
Na fábula da múmia a matéria vale, porém de modo idealizado,
idealmente adulterado. A múmia encerra em si dupla idealização.
Existe para ancorar a alma, mas, em relação ao próprio corpo, é um
distanciamento. Mantém o corpo inalterável, intransformável, imóvel.
Exatamente o corpo, o próprio lugar da mudança, do movimento, do
devir.
Gera a múmia paralisia, ao petrificar o corpo com a idéia de alma.
Valorizado, contudo exclusivamente em função de uma avaliação
superior da alma, o corpo-múmia distingue-se duplamente de um
corpo efetivo, ativo na história. Vira estátua. Não perece como um
corpo vivo, não perece como um corpo morto. É cuidadosamente
protegido do contato com o ‘exterior’, e corrigido dos erros
cometidos pela ‘injusta natureza’. Em sua imobilidade, explicita
16
Cf. Encyclopedia e Diccionario Internacional. Op. cit., p. 7657-8.
17
Idem, ibidem.
292 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
a unidade concentrada, constitutiva, de vida e morte: porque não
morre, não vive. Não pode se mexer, não se putrefaz, não vira pó.
Artifícios o impedem. Está vetada, assim, a ‘vida’, o vigor, o fluxo do
continuar morrendo, se desfazendo: segundo golpe na efetividade.
No corpo-múmia está a marca da impossível separação de alma
e corpo. Separam-se, sendo inseparáveis; formam então um par
constante. Ele, o corpo, agora artificialmente eternizado, a sustém,
a anima. O corpo-múmia como alma da alma: “a duração da alma
estava subordinada á existencia do corpo que ella tinha animado”18.
Sem um, o outro também não há. A alma é garantida pelo corpo.
Não se trata mais de um corpo vivo, nem de um corpo morto. Do
corpo ideal, talvez.
Na múmia tudo é ideal. Duplamente ideal. Por meio dela, garante-se
o verdadeiro pelo falso, numa operação idêntica àquela imposta pela
metafísica ocidental, conforme Nietzsche a compreende: idealismo,
anti-natureza. A tais nomes, atribui o desenvolvimento do Ocidente,
a construção dos valores no mundo ocidental. Neles, a vontade de
eternidade. A múmia consiste em uma reação contra a morte, que se
realiza pelo fingimento de que a vida, no morto, continua. Negando
a efetividade, produzindo uma quasi apparencia de vida naquele que
não mais devém, a mumificação, por fim, atesta o efetivo: a vida é
infinita, não se extingue; o vivo cessa.
O empalhamento filosófico da realidade
“Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios
foram múmias conceituais” (grifo nosso), lê-se na primeira seção de
“A ‘razão’ na filosofia”, capítulo de Crepúsculo do ídolos, livro no qual
Nietzsche insistentemente irá mostrar como “o preconceito da razão
(...) nos leva necessariamente ao erro.”19 Na segunda seção de “O que
devo aos antigos” (o penúltimo capítulo), sugere-se quanto pode ter
de egipcismo em Platão: “Pagou-se caro pelo fato deste ateniense ter
18
Idem, ibidem.
19
Cf. NIETZSCHE. F.W. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa
com o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 28. Daqui em diante esta obra será identificada por
Crepúsculo dos ídolos.
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• 293
CLIPE
estudado com os egípcios.”20
Trata-se, pois, de tematizar a imagem das múmias conceituais
nietzscheanas, e as suas relações com a idéia de uma razão movida
pela prática da conceituação metafísica. O que – pergunta-se –
produzem os filósofos21 ao construírem múmias conceituais? O que
embalsamam e paralisam, com sua operação? Isto: a temporalidade,
o devir, o acontecimento da própria realidade em sua estrutura
Para não se cair numa redução inadequada da obra de Platão, é
imprescindível observar que, pela sua grandiosidade e originalidade, Nietzsche propositadamente o caricaturiza, fazendo-o aparecer como o personagem que representa perfeitamente o desenvolvimento do Ocidente no sentido da história platônico-cristã. António Marques afirma que a genealogia
de Nietzsche inclui a criação de tipos por meio do estabelecimento de uma
“ficção metodológica”. Cf. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Unijuí, 2003, p. 15.
20
O termo filósofo está empregado aqui no sentido caricatural de
Nietzsche, isto é, como indicação de um tipo fisiológico que, marcado pelo
socratismo e pelo cristianismo, produziu um modo de ser, de ver e de avaliar,
uma ética e uma estética decadentes, isto é, doentes e repletos de cansaço em
relação à vida. Este tipo – o filósofo – é, então, o protagonista da décadence,
tema crucial para Nietzsche, em toda a sua obra. Cf. p. ex., NIETZSCHE,
F. W. O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner:
dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza.
São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 43-4: (...) – Toda época tem, na
sua medida de força, também uma medida de quais virtudes lhe são permitidas, quais proibidas. Ou tem as virtudes da vida ascendente: então resiste
profundamente às virtudes da vida declinante. Ou é ela mesma uma vida
declinante – então necessita também das virtudes do declínio, então odeia
tudo o que se justifica apenas a partir da abundância, da sobre-riqueza de
forças. A estética se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos biológicos: há uma estética da décadence, há uma estética clássica – algo “belo
em si” é uma quimera, como todo o idealismo. – Na esfera mais estreita dos
chamados valores morais não se encontra oposição maior do que aquela entre uma moral dos senhores e a dos conceitos de valor cristãos: esta, aparecida
num solo inteiramente mórbido (– os Evangelhos nos mostram exatamente
os mesmos tipos fisiológicos descritos nos romances de Dostoievski); a moral dos senhores (“romana”, “pagã”, “clássica”, “Renascença”), ao contrário,
sendo a linguagem simbólica da vida que vingou, que ascende, da vontade de
poder como princípio da vida. A moral dos senhores afirma tão instintivamente como a cristã nega (“Deus”, “além”, “abnegação”, puras negações).
A primeira partilha a sua abundância com as coisas – transfigura, embeleza,
traz razão ao mundo –, a segunda empobrece, empalidece, enfeia o valor das
coisas, nega o mundo.”
21
294 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
inultrapassável de criação e destruição.
Tais filósofos, continua Nietzsche, “acreditam que desistoricizar
uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni, construir a partir dela
uma múmia, é uma forma de honrá-la.”22 A exemplo dos egípcios,
esses personagens nietzscheanos não suportam o movimento e a
temporalidade, fenômenos que refutam a estabilidade, a determinação
inalterável acerca do que a realidade seja. Querem uma realidade que
não se mexa: “Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses
senhores idólatras de conceitos.”23 Como fazem isso? Postulando
conceitos últimos acerca das coisas, isto é, procurando-lhes o Ser,
entendido como realidade eterna e absoluta, jamais afetada por
qualquer indício de tempo, espaço, movimento e relação.
A acusação de Nietzsche gira em torno dessa tara dos filósofos:
duplicar a realidade, separar do que aparece, o que então é.
Corrompem o aparecimento. Para isso desistoricizam, destacam
a realidade das relações que a produzem no tempo e no espaço,
despindo-a do onde, do quando, do como, do por quê. Criam a ficção
de um real real e um real falso. E nomeiam o efetivo como falsidade.
“O que é não vem-a-ser; o que vem a ser, não é.”24
Nietzsche refere-se aos edifícios conceituais erguidos pela filosofia,
ao longo de dois milênios. À sanha de enquadramento da realidade em
sistemas abstratos, em organogramas categoriais. Em sua concepção,
o filósofo é aquele que deseja chegar a um alvo que, apesar de
resistir a seus esforços, deverá ceder a eles, assim que a abordagem
se mostrar correta, compatível, metodologicamente perfeita. Assim,
toda a filosofia aparece como uma tentativa de acertar na abordagem.
Um jogo de dados? Um jogo de adivinhação? Quer-se chegar a um
lugar completamente hipotético, fictício, tomando-o como o mais
certo, o único seguro. Põe-se, antes, o fim. Constrói-se rigidamente o
caminho, mas o destino, puramente ideal, sempre distante, jamais se
mostrará. Os filósofos, ironiza Nietzsche, “acreditam todos, mesmo
com desespero, no Ser.”25 Acontece que ele, o Ser, perseguido pelos
filósofos, se oculta. Não parece afeito ao sistema da marcação cerrada
filosófica; sente-se, ao certo, sufocado. Mas a idolatria conceitual dos
24
25
22
Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 25.
23
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
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• 295
CLIPE
filósofos os obriga a encontrar um culpado para a situação. Persiste
neles o sentimento de estarem sendo ludibriados: “visto que não
conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamentos pelos
quais ele se lhes oculta.”26
Eis que Nietzsche põe em cena a fala dos filósofos: “É preciso
que uma aparência, que um ‘engano’ aí se imiscua, para que não
venhamos a perceber o ser: onde está aquele que nos engana?” E
quem será, afinal, aquele que engana os filósofos? Para esboçar as
respostas prováveis, que se detalhem: a) os filósofos são aqueles que
desistoricizam a realidade, quando resolvem dar sentido a ela. Desse
modo, criam “múmias conceituais”, ou seja, mumificam a realidade,
mergulhando-a em soluções conceituais, enfaixando-a logicamente,
dos pés à cabeça. Assim, “trazem um risco de vida para todos,
quando adoram. A morte, a mudança, a idade, do mesmo modo que
a geração e o crescimento são para eles objeções – e até refutações.”;
b) os filósofos agem, portanto, sob o domínio de alguma crença –
eles adoram. E, ao procederem assim, põem em risco a vida de todos.
Não são inofensivos, pois, esses personagens. Que risco oferecem? O
risco do embalsamamento do real. A efetividade lhes aparece como
refutação do ideal para o qual querem criar provas, motivo suficiente
para ameaçá-la, refutando-a, em represália, condenando-a como erro.
Já se pode assim ver o culpado?
Nós o temos, eles gritam venturosamente, o que nos engana
é a sensibilidade! Esses sentidos, que por outro lado são
mesmo totalmente imorais, nos enganam quanto ao mundo
verdadeiro. Moral: conseguir desembaraçar-se do engano
dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira. História
não é outra coisa senão crença nos sentidos, crença na
mentira. Moral: dizer não a tudo o que nos faz crer nos
sentidos, a todo o resto da humanidade. Tudo isso é o
‘povo’. Ser filósofo, ser múmia, apresentar o monótonoteísmo através de uma mímica de coveiros! – E antes de
tudo para fora com o corpo, esta idée fixe dos sentidos digna
de compadecimento! Este corpo acometido por todas as
falhas da lógica, refutado, até mesmo impossível, apesar de
ser suficientemente impertinente para se portar como se
fosse efetivo!27
26
Idem, ibidem.
27
Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 25-6.
296 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
Os criadores de múmias conceituais odeiam a realidade, consideram
o próprio corpo, o corpo que eles mesmos são – e os sentidos –
imorais. Mentirosos quanto à verdade, enganadores quanto ao
mundo verdadeiro, não o deixam mostrar-se. Nietzsche enfatiza:
“Em todos os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo
juízo sobre a vida: ela não vale nada...”28 Por que será? Por que tanta
má vontade? “Sempre e por toda parte se escutou o mesmo tom
saindo de suas bocas. Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia,
cheio de cansaço da vida, um tom plenamente contrafeito frente a
ela”.29 (grifo nosso)
Logo, não poderiam os filósofos, insiste Nietzsche, se satisfazer com
o mundo efetivo, pois inventaram de julgar elevada uma realidade
fictícia, irreal: “Fala o desiludido. Eu procurei por grandes homens,
mas sempre encontrei apenas os macacos de seu ideal.”30 Como
nasce essa depressão? Por meio da linguagem metafísica, imposta
pela razão como operação moral31, assim como por meio da lógica,
da crença em que a definição de causa e efeito deveria resolver por
completo, de modo transparente, o problema do conhecimento
da realidade. E, também, por meio da gramática32, que substantiva
30
31
28
Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 17.
29
Idem, ibidem.
Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 15.
Cf. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.
Tradução, notas e posfácio de Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, p. 25: “moral, entenda-se, como a teoria das relações de
dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’.” Daqui em diante esta
obra será identificada por Além do bem e do mal.
Cf. Além do bem e do mal, p. 26: “Onde há parentesco lingüístico
é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática – quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais –,
tudo esteja predisposto para uma evolução e uma seqüência similares dos
sistemas filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a
certas possibilidades outras de interpretação do mundo. Filósofos do âmbito
lingüístico uralo-altaico (onde a noção de sujeito teve o desenvolvimento
mais precário) com toda a probabilidade olharão ‘para dentro do mundo’ de
maneira diversa e se acharão em trilhas diferentes das dos indo-germanos ou
muçulmanos: o encanto exercido por determinadas funções gramaticais é,
em última instância, o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicos. – (...)”
32
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CLIPE
adjetivos, criando essência para as ações,33 e afirma para toda ação
um agente preexistente, um sujeito indivisível, monadológico, um
substrato lançado como base e razão do acontecimento, um átomo,
um Eu enquanto substância, lugar de ocorrência da vontade livre
como causa em geral, e como causa de si mesmo, arrancando-se
“pelos cabelos do pântano do nada em direção à existência”, à moda
do barão de Münchausen34 – sujeito versus objeto, sujeito como
condição do predicado.35
“Cucolândia das Nuvens”, terra da filosofia
Para Nietzsche, a idéia de finalidade, fixada pela filosofia – esse
pretenso lugar da verdade! –, é uma estratégia moral para se justificar
Cf. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. Tradução
de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 34.
(Coleção Os pensadores): “Denominamos um homem ‘honesto’; porque ele
agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser:
por causa da sua honestidade. (...) O certo é que não sabemos nada de uma
qualidade essencial, que se chamasse ‘a honestidade’, mas sabemos, isso sim,
de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo
abandono do desigual e designamos, agora, como ações honestas; por fim,
formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome: ‘a honestidade’.
A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito (...)”.Daqui em
diante esta obra será identificada por “Sobre verdade e mentira no sentido
extra-moral”.
33
34
Cf. Além do bem e do mal, p. 27.
35
Cf. Além do bem e do mal, p. 23: “Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando
‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’. Isso pensa:
mas que ‘isso’ seja precisamente o velho e decantado ‘eu’ é, dito de maneira
suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma ‘certeza
imediata’. E mesmo com ‘isso pensa’ já se foi longe demais; já o ‘isso’ contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se
conclui segundo o hábito gramatical: ‘pensar é uma atividade, toda atividade
requer um agente, logo –’. Mais ou menos segundo esse esquema o velho
atomismo buscou, além da ‘força’ que atua, o pedacinho de matéria onde ela
fica e a partir do qual atua, o átomo; cérebros mais rigorosos aprenderam
finalmente a passar sem esse ‘resíduo de terra’, e talvez um dia nos habituemos, e os lógicos também, a passar sem o pequeno ‘isso’ (a que se reduziu,
volatizando-se, o velho e respeitável Eu).”
298 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
um dever ser do homem; em última instância, para justificar sua
domesticação, a partir de valores que, por um embasamento
transmundano, não podem ser discutidos, transgredidos, aviltados. O
que se apresenta filosoficamente como finalidade não passa, segundo
Nietzsche, de um meio.
O conhecimento funciona, aí, como instrumento de um impulso
mais fundamental: o impulso de dominar, que ambiciona impor
uma interpretação hegemônica acerca da realidade e, para mantê-la
firme, um sistema moral inabalável, segundo o qual deve comportarse o homem. Assim, a filosofia “cria o mundo à sua imagem, não
consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais
espiritual vontade de poder, de ‘criação do mundo’, de causa prima
[causa primeira].”36
Toda lógica, dirá, quer no fundo conservar instintivamente uma
determinada perspectiva de pensamento, de lida com a vida, de
interpretação da realidade. Valendo-se da máscara da independência,
da autonomia, da exata limitação formal, da universalidade,37
36
Cf. Além do bem e do mal, p. 15.
37
No clássico Prefácio à Segunda edição da Crítica da razão
pura, Kant apresenta sua concepção acerca do sucesso da lógica:
“Confundir os limites das ciências entre si não constitui um aumento e sim uma desfiguração das mesmas. O limite da Lógica acha-se
determinado de maneira bem precisa, por ser ela uma ciência que
expõe circunstanciadamente e prova de modo rigoroso unicamente
as regras formais de todo o pensamento (seja ele a priori ou empírico, tenha ele a origem ou o objeto que quiser, encontre ele em
nosso ânimo obstáculos acidentais ou naturais). A Lógica deve a
vantagem do seu sucesso simplesmente à sua limitação, pela qual
ela se autoriza e mesmo se obriga a abstrair de todos os objetos
do conhecimento e das suas diferenças, de modo a não se ocupar o
entendimento nela com nada mais do que consigo mesmo e com sua
forma. Para a razão devia ser, naturalmente, muito mais difícil encetar o caminho seguro da ciência, quando ela trata não somente de si
mesma, mas também de objetos. Por isso constitui também a Lógica
como propedêutica apenas uma espécie de vestíbulo das ciências e,
quando o assunto é o conhecimento, pressupõe-se uma Lógica para
o seu julgamento, devendo-se, porém, procurar a sua aquisição nas
próprias e objetivamente chamadas ciências.” (KANT. I. Crítica da
razão pura. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Abril Cultural,
1974, p. 9-10. Coleção Os pensadores)
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CLIPE
consegue dissimular as valorações sobre as quais se sustém, “as
exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada
espécie de vida.”38
Concebe Nietzsche que o filósofo – ressentido da condição faltosa,
desnecessária e imperfeita da vida terrena, sempre ainda a se fazer,
isenta de finalidade e utilidade, perdida em relação ao conhecimento
de sua causa própria, sua razão de ser, isto é, inacessível a um
julgamento acerca de seu valor, acerca de seu “em si” – depõe
contra a vida terrena, criando, para sustentá-la, um fundamento
dogmaticamente transmundano. O filósofo, para Nietzsche, não
se obriga, contudo, a questões mais difíceis. O valor da lógica, por
exemplo, lhe é indubitável: “o material inteiro, no qual e com o qual
mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha
e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso
não da essência das coisas.”39 A gênese da linguagem lógica, portanto,
nada tem de lógica: “é preciso que já tenhamos estado ao menos uma
vez em um mundo mais elevado (ao invés de em um muito inferior: o
que teria sido a verdade!) e que aí tenhamos nos sentido em casa. É
preciso que tenhamos sido divinos, pois temos a razão!”40
Cf. Além de bem e mal, p. 11: “Depois de muito tempo ler nos
gestos e nas entrelinhas dos filósofos, disse a mim mesmo: a maior parte do
pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até
mesmo o pensamento filosófico; aqui se deve mudar o modo de ver, como já
se fez em relação à hereditariedade e às ‘características inatas’. Assim como
o ato de nascer não conta no processo e progresso geral da hereditariedade,
também ‘estar consciente’ não se opõe de algum modo decisivo ao que é
instintivo – em sua maior parte o pensamento consciente de um filósofo é
secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos.”
38
39
Cf. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, p. 34.
40
Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 29, quando Nietzsche refere-se aos
primórdios da inferência, donde resultará, “tardiamente, o pensamento lógico um tanto mais agudo, a rigorosa investigação de causa e efeito (...)”,
conforme tematiza também em Humano demasiado humano, p. 24.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
REFERÊNCIAS
Encyclopedia e Diccionario Internacional. Rio de Janeiro/Nova York:
W. M. Jackson Inc.Editores, sem data.
KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden. São
Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os pensadores)
MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo:
Discurso Editorial/Unijuí, 2003.
NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com
o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia
do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo Cézar de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, F. W. “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Nova Cultural, 1987. (Coleção Os pensadores)
NIETZSCHE, F. W. O caso Wagner: um problema para músicos /
Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e
posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras,
1999.
Recebido em 21/08/2008
Aprovado em 12/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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UM RECADO À PRIMA HERMENÊUTICA EM UM
ASSOVIO DE QORPO-SANTO
Alessandra Fabrícia Conde da Silva
Ufes
Resumo: As peças de Qorpo-Santo ultrapassam as noções de
absurdo e de surrealismo. São textos que apresentam imagens
confusas, disformes, caricatas e não racionais. Um assovio apresenta
uma trama burlesca, cuja melodia é dissonante, incômoda e risível, o
que não deixa de ser genial quando tentamos entender o recado que
a obra proporciona. Autores como Eudinyr Fraga, Mikhail Bakhtin e
Wolfgang Kayser ampararão de modo crítico-teórico o nosso estudo
sobre o autor gaúcho.
Palavras-chave: Qorpo-Santo. Um assovio. Surrealismo. Absurdo.
Abstract: The Qorpo-Santo’s play beyond the notions of absurd
and surrealism. They are texts that present confused, deformed,
ridiculous and not rational images. Um assovio presents a burlesque
plot, whose melody is grating, annoying and laughable, which does
not leave to be great when trying to understand the message that
work brings. Authors such as Eudinyr Fraga, Mikhail bakhtin and
Wolfgang Kayser will abet our critical-theoretical study of the
gaúcho author.
Keywords: Qorpo-Santo. Um assovio. Surrealism. Absurd.
O ABSURDO, O SURREALISMO E QORPO-SANTO
A palavra absurdo quer dizer, literalmente, fora de harmonia. Na
tentativa de se estruturar o conceito de absurdo compreende-se que
não há esperança, não há ideologia e sim a alienação de tudo. Assim,
notamos que há
a falta de uma mensagem ideológica, ou seja, um teatro
alienado, [e que está] preocupado em mostrar as angústias
particulares dos seus cultores, recusando a realidade que
nos cerca e ignorando todos os problemas sociais existentes
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
– e prementes (FRAGA, 1988, p. 31).
Em Qorpo-Santo não há essa alienação. Apesar de haver elementos
presentes no absurdo, as peças não podem ser caracterizadas como
tal, haja vista que são feitas críticas sociais, utilizando as técnicas
do teatro do absurdo. O teatro de Qorpo-Santo não é racional, é,
antes, não cerebral. Não é fruto de um labor intelectual, racional, mas
manipula a linguagem na tentativa de “analisar (...) um universo que
(...) parece enigmático e hostil” (FRAGA, 1988, p. 22). Eudinyr Fraga
(1988, p.23) ainda comenta:
O teatro de Qorpo-Santo parte de um esquema habitual
ao teatro de costumes da sua época, mas, por força do
automatismo psíquico, de uma escrita automática que
utiliza (ou que o utiliza...) sem cessar, ultrapassa-o e dele
se distancia completamente, fragmentando o fulcro inicial
e transformando-se em algo completamente diferente,
repleto de elementos que, mais tarde, se constituirão como
componentes de um teatro dito “surrealista”.
Para Fraga (apud TELES, 1988, p. 37), o surrealismo se define como:
Automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe
exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer
outra maneira, o funcionamento real do pensamento.
Ditado do pensamento, na ausência de todo o controle
exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estática
ou moral. Encicl. Filos. O Surrealismo assenta na crença
da realidade de certas formas de associação negligenciadas
até aqui, no sonho todo-poderoso, no jogo desinteressado
do pensamento. Tende a arruinar definitivamente todos os
outros mecanismos psicológicos e a substituir-se a eles na
solução dos principais problemas da vida.
Em desacordo com o Absurdo, o Surrealismo busca a solução dos
problemas da vida. E para isso busca a integração do homem do
ocidente com o universo.
Essa integração foi perdida momentaneamente e é passível
de ser recuperada, quando desaparecer a dualidade:
realidade visível e realidade perceptível. No Surrealismo, o
homem não está sendo mas pode ser, porque o universo não é
vazio de significações: no Teatro do Absurdo o homem não
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está sendo porque jamais poderá ser (FRAGA, 1988, p. 106).
Assim, na visão surrealista há uma esperança para o homem, para
o seu dualismo, suas angústias geradas mediante a duplicidade das
realidades. Uma realidade é a convencional, a que fere, mascara e
molda o homem, conduzindo-o a um estado de constante agonia. A
outra realidade é a perceptível, a onírica, a que se oculta do mundo
real, mas que está nele.
A percepção desse mundo oculto é melhor apreendida quando a
mente é lançada à perturbações psíquicas. Os surrealistas tentavam
reproduzir os efeitos dessas perturbações, cultivando o automatismo
psíquico cuja finalidade é o extravasar do inconsciente. No entanto
essa prática é inautêntica, pois é fruto de atitude intelectual.
É nesse universo que podemos introduzir as obras de QorpoSanto. Há uma diferença, no entanto. O automatismo psíquico do
dramaturgo gaúcho é autêntico. A sua grande dificuldade era manter
os pés na realidade convencional. Os surrealistas procuravam aguçar
os sentidos através de hipnose, tóxicos, delírios; fugindo da realidade;
buscando uma outra que estava oculta, estabelecida no entre-lugar da
realidade, no mundo dos sonhos.
A sociedade agride o homem que não pode compreender o mundo
a sua volta; tão pouco consegue entender a si mesmo. Nesse sentido,
o surrealismo vem propor a recuperação desse mundo, através da
fusão das antinomias, do equilíbrio entre o mundo exterior e mundo
interior. Nas peças de Qorpo-Santo, essa harmonia das duplicidades
está presente e são colocadas num ambiente fantástico, maravilhoso
em que tudo pode acontecer de forma perfeitamente, tranquilamente,
normal. Esse é o grande axioma das peças e que também espelha a
ideologia surrealista: a reconciliação do fantástico e do real, formando
uma supra-realidade. A ruptura com a ordem natural do mundo, com
o estabelecimento de um universo regido pelo fantástico, conduz
à transgressão da realidade e conseqüente harmonia. Mas essa
harmonia não exclui o pesar, a angústia. Ao contrário, nesse mundo
estão ora o pensamento do real, das convenções, ora o pensamento
livre, das relações naturais.
Em suas peças, Qorpo-Santo procurou demonstrar esses dois
pensamentos e utiliza o humor, o riso, como recurso que equilibra
as pressões sociais e as inquietações íntimas. Segundo Bakhtin (1999,
p.10), “o riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
tempo burlador [...]”. É burlador porque se opõe à cultura popular
e às exigências sociais. Um outro elemento presente nas peças é o
burlesco. “O Grotesco... está em todo lugar; de uma parte, ele criou o
disforme e o horrível; de outra, o cômico e o engraçado” (KAYSER,
1986, p. 59). Wolfgang Kayser ainda define que (1986, p.159):
no grotesco o mundo alheia-se, as forças distorcem-se, as
ordens do nosso mundo dissolvem-se (já na ornamentação
grotesca se misturam os reinos do inanimado, das plantas,
dos animais e dos homens; mais tarde os motivos, diletos
da configuração grotesca são as marionetes, os bonecos de
cera, ou então os loucos, os sonâmbulos, e sempre também
animais mais que animalescos), um mecanismo medonho
parece ter caído sobre as coisas e os homens.
O grotesco muitas vezes tinge-se com as tintas do fantástico; afinal,
para causar o efeito de estranhamento é necessário estar num mundo
fantasioso em que tudo é possível. Assim, “O obscuro foi encarado,
o sinistro descoberto e o inconcebível levado a falar” (Kayser, 1986,
p. 162). O dilaceramento do autor, traduzido na dualidade moral
vigente versus “relações naturais”, utiliza o grotesco como elemento
que possibilita a sua permanência num universo fantástico, sinistro,
risível, transgressor, e que acaba por revelar as angústias, as tensões, ao
mesmo tempo que mascara os anseios, as divagações e as aspirações
do dramaturgo. Essa máscara, na verdade, é como o mundo o vê, ou
como ele deve se apresentar ao mundo. Não é a sua essência, mas a
usa imagem dissimulada. O grotesco vem a ser o elemento estético
que propicia a reflexão do mundo, não a contestação ou a denúncia,
mas o universo em que os mundos podem se equilibrar.
Nesse contexto, a dualidade estabelece-se na tensão moral vigente
versus “relações naturais”. Qorpo-Santo (apud FRAGA, 1986, 76)
comenta:
Que tremenda a luta entre o meu espírito e a carne! Parece
incrível o que em mim passa-se! Pinta-me a imaginação
a necessidade indeclinável de ela voltar; aguça ao vê-la
a ansiedade para n’ela tocar: sinto a força necessária que
m’instiga; que m’excita... busco satisfazer; não encontro;
ou não posso! Logo depois ocupa-me a idéia horrível dos
tormentos do meu corpo; das torturas do meu espírito, não
só pela prática de tal ato como mesmo tentativa! Ao mover-
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me em busca, o coração se me despedaça! ah! Quantos
martírios forjam-se na minha imaginação que a minha pena
agora cala!... Uma voz diz-me que veja; outra - que fuja! Que
m’entretenha; outra – que m’abstenha! Uma – que passeie;
outra – que esteja em casa!... E quanto mais oh! meu Deus...!
A máscara posta sobre as personagens e a própria reflexão do autor
sobre elas demonstra que apesar de querer expressar o seu mundo
próprio, cheio de tensões e angústias, há uma preocupação em não
revelar-se por completo. Fraga (1986, p. 67) define:
(...) Ele não se mostra por inteiro em ninguém, ele se acerca
e se afasta, se dá e se recusa, se esconde e se revela. Ele
se dissolve, se multifaceta em miríades de aspectos que se
distribuem por todos esses estranhos seres que povoam
os textos... Qorpo-Santo tenta libertar-se do ambiente
sufocante em que devia viver, e é o teatro que mais vai
colaborar nessa fuga. Mas essa pretensa liberdade é
perigosa, ele poderá ser reconhecido. Então será não apenas
um indivíduo, mas diversos. Do Desejo e do Medo, nasce o
drama. O Desejo de ser, o Medo de ser identificado.
Como reflexo dessa tensão Desejo e Medo está o fato de QorpoSanto fazer prédicas moralizantes nas peças, que nada mais são
que “motivos cegos” – “falsos temas”, “falsas linhas de interesse”
(FRAGA, 1986, p. 65) – que introduzem na obra uma atmosfera de
instabilidade, de desconexão, de incômodo psicológico. Segundo
Fraga (1986, p. 104):
(...) Quando ele quer ser sério, preocupado em ensinar e
“fazer arte”, é repetitivo e mesmo maçante. Mas quando
esquece as preocupações, surge o outro eu, irônico e
brincalhão, e seu diálogo torna-se leve e ágil...
Em geral, nas obras de Qorpo-Santo não há unidade de ação, de
tempo e de espaço. A ação demanda que haja uma possibilidade de
se estabelecer um sistema em um conjunto de ações, isto é, os fatos
deveriam se encaixar harmoniosamente. O tempo e o espaço se
confundem, conduzindo o leitor/espectador a se ver numa espécie
de sonho, de atmosfera de sonho. Na temática apresentada há furos
nas teorias, o que dá a impressão de um texto instável. Segundo
Fraga (1986, p. 57), as peças de Qorpo-Santo são “(...) textos curtos,
explosões ou “iluminações” de um cérebro perturbado”. Ainda
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acrescenta que
(...) a obra do dramaturgo gaúcho é, na sua totalidade, uma
projeção mental, decorre de uma escrita automática, sem
preocupações estéticas (o desenvolvimento desses textos
não admite dúvidas a respeito) e cujo conflito único decorre
do próprio conflito do autor com o mundo, onde o dualismo
imaginação e realidade desaparece, surgindo, em seu lugar,
uma síntese: a própria obra (FRAGA, 1986, p. 66).
O insólito, o grotesco, o risível, a ironia são recursos estilísticos
presentes na obra de Qorpo-Santo. Em Um assovio, essa marca
estilística está presente com maestria. A unidade de ação é transgredida
nessa peça. Mas ainda assim, diferente de muitas outras, pode-se ver
uma fio de conexão. Uma mensagem à casa da prima Hermenêutica
é enviada nessa peça. A Hermenêutica vem se debruçar sobre o
estudo da interpretação dos textos escritos, debatendo ainda sobre a
compreensão humana. Para isso devem ser considerados os eventos
históricos, os valores, a cultura. A finalidade se baseia em como utilizar
o texto com um sentido prático, atribuindo um caráter didático. Mas o
próprio conceito de Hermenêutica já é complexo. A compreensão ou
apreensão de um sentido não se consegue facilmente, principalmente
em Qorpo-Santo, com seu automatismo psíquico e dualidade de
intenções e o seu constante revelar e mascarar as reflexões.
Um assovio pode ser um chamado a prestar atenção em algo que está
subliminar, no entre-lugar no mundo do real e do sonho. Um som
que se espera melodioso, mas que se apresenta, para frustração das
expectativas, como um ridículo e desenxabido apito desafinado, mas
que quer dizer algo; quer ser ouvido, interpretado e compreendido.
Daí o recado à casa da prima Hermenêutica.
O ENTREATO
Assoviar, usando o vocábulo na forma figurada é “avisar”, é
“dar sinal” de alguma coisa, de um fato, de uma história, de um
acontecimento, de uma mensagem, de um recado. Qual sinal poderia
haver em Um assovio de Qorpo-Santo? Que som sibilar poderíamos
encontrar nessa comédia em que tanto ressoa o ridículo? Qual a
intenção do ridículo? Porque a mudança de temática tão absurda?
E será que a temática mudou de fato? E porque a escolha de um
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assovio ao invés de uma música?
Nos três primeiros atos a comédia revela algumas situações
corriqueiras, ainda que beirem o absurdo; são situações banais, e
inusitadas algumas vezes, em que o ridículo é o elemento que torna as
cenas estapafúrdias, irracionais e, por assim dizer, ilógicas. Mas esse
mesmo ridículo deixa a história cômica. Entreato e quadro parecem
destoar do corpo inicial da comédia. Analisando esse entreato, que
parece tão absurdo quanto os três primeiros atos, a melodia da
comédia parece dissonante ainda mais.
A personagem Jerônimo de Aviz prepara-se para tocar uma música
em sua flauta, ao menos é isso o que o leitor/espectador espera que
aconteça, mas absurdamente, ridiculamente, o que acontece é um
“destemperado assovio”. O flautista tenta novamente retirar do
seu instrumento uma sonoridade agradável, a qual todos estavam
esperando, mas foi em vão. Comicamente, ele diz, tentando
desculpar-se: “Senhores, deu o tétano na minha flauta! Desculpem;
desculpem!”. Jerônimo não é um impostor; ele sabe manusear bem
o seu instrumento, mas por alguma razão somente o som de um
assovio pode ser retirado da flauta.
Ao invés de música, de melodia, um assovio; ao invés de uma
comédia de costumes normal, um absurdo, um ridículo, configurado
numa história “irracional”, mas nem tanto. No entreato surge a
sensação de absurdo, de perda da meada da história, de desalinho,
de desafino. Qual a ligação do flautista com a história abordada nos
três atos anteriores? Ao que parece nenhuma ligação há diretamente,
a não ser pelo fato de representar um eco da mensagem já assinalada
no início da comédia. É como se o flautista, ainda que capaz de tirar
da flauta um som especial, retira o decepcionante assovio, o que
gera comicidade, mas, ao mesmo tempo, pode sugerir uma reflexão.
Reflexão sobre um algo não explícito, pois não é uma música que
pode ser ouvida claramente e que cause comoção, mas um sinal
sonoro que chama atenção para o oculto, para o subliminar, e que
pode ser reconhecido, notado e apreendido.
Nisto podemos perceber que uma melodia já fora tocada, ainda que
nem o leitor ou espectador a tivesse escutado, pois somente os alunos de
Jerônimo a ouviram. Implicitamente a idéia da música anteriormente
tocada está presente. E o que se percebe é que, intencionalmente, o
entreato vem a especificar que ao leitor/espectador basta somente
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CONTEXTO
o chamado a prestar atenção ao aviso, ao assovio. Com o fim do
entreato desce o pano e parece que finda a comédia. Mas retornam
todos mascarados no quadro e dançam e cantam, com instrumentos
musicais, em mãos, e esperam pelo momento apoteótico em que
a música será entoada; fazem silêncio; aguardam a melodia; mas
eis que ouvem um nítido “fi...... u......” e termina a comédia. Os
personagens mascarados comemoram a vida, esquecem as tensões
da realidade. E mesmo essa comemoração musical é feita de forma
desbragada, caricata. A melodia tocada é na verdade uma antimúsica,
pois satiriza, ridiculariza a harmonia e a impossibilidade de se tirar
dos instrumentos um bom som. Os instrumentos estão desgastados,
desafinados, mas ainda assim é possível rir da incapacidade, do
impedimento, do não convencionalismo musical, da dissonância.
Com a entrada de “todos” no quadro, percebe-se a ligação entre
entreato e atos, num fio de legitimação da mensagem sibilar revelada
nos atos iniciais. O quadro vem reforçar o que no entreato já fora
sugerido. Mas esta visão só será pertinente, se entendermos que o
“todos”, explicitado no quadro, refere-se à presença dos personagens
dos atos e do entreato.
Não se quer na comédia passar verdades, moralismos, enfatizar
dogmas, preceitos, mas de forma caricata e cômica permitir que o
leitor/espectador capte a mensagem/recado ou mensagens que
estão sendo enviadas à casa da “prima Hermenêutica”. E mesmo
essa mensagem não é arbitrária. A interpretação é particular, pode
ficar somente no campo da comédia, do divertimento, do ridículo,
do absurdo, mas pode ser revestida de significações mais profundas,
como um chamado à análise das relações humanas, por exemplo; da
opressão social, religiosa, dos desejos naturais. Assim, transgredir as
fronteiras do mundo, do real, é alienar o dominador e sua linguagem
intransitiva e eterna. A linguagem do oprimido é uma digressão ao
padrão, ao não estranho. É uma linguagem de transformação, que
discorda do mundo, que burla os conceitos (BARTHES, 1985, p.169).
O recado presente em Um assovio requer uma interpretação
subliminar, intratextual, e possível de se considerar as tensões do
autor. Não é uma música que podemos ouvir, embora esperemos
por ela, pois esse é o comum; ouviremos somente um assovio, um
aviso, um chamado a prestarmos atenção à vida, ou podemos ignorar
o aviso, a convocação, uma significação previamente explicitada no
texto, e nos atermos à capa ficcional, cômica, absurda e ridícula que
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reveste as personagens nas mais inusitadas situações.
Não há uma gratuidade ideológica no texto, mas há imagens simbólicas
que podem expressar múltiplas significações. Possibilidades que
apresentam o desacordo social e o desalinho com os padrões naturais.
Os discursos das personagens dão-nos uma idéia de querer passar
uma verdade, uma mensagem, mas logo há o atropelo, a quebra do
pensamento original e logo se perde o sentido que se pensou existir;
as intenções ficam, de certa forma, dissimuladas, escondidas sobre
a máscara do grotesco e dos saltos dos acontecimentos. A suprarealidade, como dizem os surrealistas, embora Qorpo-Santo não
seja um, mas seu estilo se assemelhe ao deles, revela um universo
de angústias, de duplicidade, de tensão. O mundo de Qorpo-Santo
é um mundo fantástico em que tudo é possível. As personagens
encaram um nariz que se desprega, ou um pedaço dele, e que depois
é recolocado no lugar, com a maior naturalidade, como vemos
no ato primeiro. A bizarrice da cena nos faz recordar da obra do
século XIX, O nariz de Gogol, em que “um nariz se desprende do
rosto de seu proprietário e, transformado em pessoa, leva uma vida
independente; a seguir, volta ao seu lugar” (TODOROV, 1975, p. 79).
Mas enquanto em Gogol o nariz se personifica e tem uma função
amplamente significativa; na comédia de Qorpo-Santo, o nariz é
somente um sinalizador do absurdo, do ridículo, do cômico. Em
Mateus e Mateusa, outra comédia de Qorpo-Santo, partes do corpo
também desabam. Outras partes são nada mais que implantes, que
acessórios artificiosos, instrumentos de uma farsa que apenas quer
assinalar o riso. E essa mesma sinalização é vista no patético assovio
do flautista.
UM RECADO À “PRIMA HERMENÊUTICA”
Qual é a mensagem em Um assovio? Qual música pode-se escutar?
É possível escutar alguma? Há um maestro: Gabriel Galdino. Há
um coral: as demais personagens. Há uma partitura na qual as notas
musicais são dobradas, são repetidas, permitindo que personagens se
assemelhem, que uma seja o reflexo da outra e que suas vozes ecoem
conjuntamente no coro.
Na comédia, Gabriel é o maestro que rege todas as situações e
discursos. Sempre cantando o seu “troleró, troró” e dançando e
bancando o bobo estapafúrdio, segue demonstrando uma indolência
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CONTEXTO
ridícula, a glutonaria, a devassidão e uma única preocupação em
manter o ócio. Mas a imagem de bobo é falsa, e embora indolente e
pervertido, ele é antes um astucioso e hábil personagem, ainda que o
seja de forma ridícula. E poderia perfeitamente ter tramado um plano
para casar a filha Esméria, cujo nome sugere perfeição. O tempo em
que trabalhou para Fernando foi uma época de descobertas. Descobriu
os segredos e gostos do patrão. Soube do seu relacionamento com
uma mulher chamada Luduvina. Interesseiro e astucioso retirava de
Fernando o pagamento de seu silêncio: “GABRIEL (à parte) – Por
isso é que muitas vezes eu chupo-lhe o dinheiro, faço d’amo! Tem
segredos, que eu sei; e que ele não quer que sejam revelados!”.
A astúcia em esconder a filha e só revelá-la em momento oportuno
demonstra a sua esperteza (como um bom “mensageiro” que chega
na hora exata para revelar a verdade ou dar a significação do mistério
ou revelá-lo) e sugere a manutenção de um plano pré-concebido para
casar o patrão com a filha, ainda mais quando afirma antes mesmo
que Fernando visse Esméria: ”GABRIEL – (...) e por isso mesmo
far-lhe-ei em breve minhas despedidas”. Despedidas que poderiam
ser unicamente pelo fato de abandonar o patrão em busca de um
outro ou porque deixaria o patrão para tornar-se seu sogro. Além
disso, no início do segundo ato, Luduvina, a esposa de Gabriel,
afirma: “Graças a Deus que já se pode vir a esta casa”. E é a partir
desse momento que Fernando descobre a filha de Gabriel. Esméria
entra logo em seguida na sala do patrão de seu pai, o que sugere que
somente no momento certo, com a permissão de Gabriel, é que seria
autorizado que a moça se mostrasse a Fernando. O ardil está pronto e
captura o patrão. Este se rende aos encantos da resguardada Esméria
e aceita as ‘condições’ preconizadas por Gabriel.
GABRIEL – (...) O Ilmo° Sr. Dr. Fernando há de ser uma
espécie, ou um verdadeiro criado fiel de minha filha; e há
de declará-lo em uma folha de papel, escrita por tabelião
e assinada pelo juiz competente; o dos casamentos ou dos
negócios civis. Etc. etc. e etc. Com a satisfação de todas
essas condições, ou seu preenchimento, a minha muito
querida filha, se quiser, será sua mulher. Fora delas, ou sem
elas, não falaremos, tocaremos mais sobre tão melindroso
assunto.
Gabriel é agora sogro de Fernando de Noronha e passa a gozar das
benesses que a posição social lhe permite. Eis então uma questão
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CLIPE
interessante: ascender socialmente demanda um jogo de interesses,
de subterfúgios, de astúcia e sagacidade. As relações humanas são
pautadas por esse jogo de interesse. O “dominado” Gabriel insurgese contra a sua condição de criado e torna-se um patrão. Mas a sua
astúcia só serviu para conquistar a elevação social e seus privilégios;
continuou o mesmo indolente pervertido de sempre; regendo ainda
o andamento da trama com irreverência e importunando a criada
Luduvica.
No terceiro ato aparece esta criada que é assediada constantemente
por Gabriel. Num ato idealista ela se lança contra os seus algozes
com um punhal na mão. Oprimida pelos patrões, e tendo cessado já
todos os argumentos de defesa, ela conclui:
LUDUVICA – Que farão os três pandorgas. (Passando e
vigiando-os ora com o rabo de um, ora com o rabo de outro
olho.) Que esperarão eles! Pensarão eles que me hão de
continuar a massar!? Estão bem servidos! Eu componho; eu
agora mostro-lhes o que é a força de uma mulher, quando
esta está a tudo resolvida, ou mesmo quando apenas quer
mangar com algum homem! (Puxa, passeando, um punhal
que ocultava no seio e conserva-o escondido na manga do
vestido.) Estes (à parte) meus amos são uns poltrões; eu faço
daqui carreira, faço brilhar o punhal; eles. Ou me hão deixar
passar livremente, ou caem por terra mortos de terror;
e não só por serem uns comilões, uns poltrões, também
porque... não direi mas o farei! (Volta-se repentinamente;
faz brilhar o punhal; avança-se para eles; os dos lados caem
cada qual para seu lado, e o do centro para diante; ela salta
em cima deste, volta-se para o público e grita levantando o
punhal!) Eis-me pisando um homem, como um carancho
[a] um cavalo morto! Quando a força da razão, do direito
e da justiça, empregada por atos e por palavras, não for
bastante para triunfar, lançai mão do punhal... e lançai por
terra os vossos indignos inimigos, como fiz e vedes a estes
três algozes! (Desce o pano, passados alguns minutos. E assim
finda o terceiro ato.)
O discurso idealista proferido pela criada ecoa ainda mais o sinal
que se pode apreender na comédia. Num gesto extremo, após terem
sido feitas as argumentações cabíveis e não havendo solução, o
desespero acaba conduzindo o oprimido à violência, às armas. O
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CONTEXTO
convite feito na comédia não é à violência real, mas à não aceitação
das arbitrariedades e dos desmandos dos que detém o poder.
Outro elemento que pode ser identificado na peça é a voz feminina
livre, consciente de seus direitos e de sua força: “LUDUVICA –
(...) eu agora mostro-lhes o que é a força de uma mulher, quando
está a tudo resolvida, ou mesmo quando apenas quer mangar com
algum homem!”. Aliás, essa é uma particularidade da comédia. As
personagens femininas são distintas, têm voz ativa, imiscuindo-se
na trama com invulgar presença, como detentoras de uma verdade
própria, de um senso de justiça, de responsabilidade. Em oposição
às personagens masculinas, elas representam a razão. E apesar disso,
ainda são dominadas, incomodadas pelos caprichos arbitrários e
ridículos. O mundo em que elas vivem é ainda um mundo fálico.
Desde o início da comédia o controle é masculino; no final do
terceiro ato há a ligeira erupção feminina.
Na rubrica do segundo ato, Luduvina é apresentada como “velha
feia e com presunções e ares de feiticeira”. Essa presunção a faz
parecer autoritária, controladora: “LUDUVINA – (...) Deixem – [n]
os por minha conta; hei de pôr-lhes freios e lei, e em toda a sua
grei”. Gabriel não cansa de afirmar que sua mulher é uma “santa de
maldade”, o que leva a concluir que era obstinada e dura, e sendo
ele um “poltrão” e “comilão”, o jeito era “aturá-lo”, como afirma o
folgazão em seu cinismo habitual.
A criada assemelha-se bastante com a esposa de Gabriel. Além da
aproximação dos nomes de ambas as personagens, Luduvina tem
“ares de feiticeira”, mas é Luduvica quem acaba por revelar o suposto
destino de Gabriel: morto ou ferido por causa de suas prevaricações.
Aquilo que Luduvica disse que Luduvina poderia fazer com o
marido, acabou a criada mesmo fazendo, mas Fernando de Noronha
foi o alvo principal, embora Gabriel tenha sentido o terror da cena:
“LUDUVICA – E que remédio o Sr. terá, senão assim proceder,
ou humilhar-se!? Se o não fizer, ela o ferirá; o Sr. Há de morrer, ou
ela se matar!”. Suas asserções proféticas ainda que tenham destoado
um pouco do recado inicial, acabam por aproximá-la de Luduvina
quanto ao “ar de feiticeira”; como aquela que se imiscuiu com o
oculto, que faz poções, ou profere palavras que irão interferir na vida
das pessoas, tornando essas palavras índices do destino. Se ela errou
o alvo, a palavra, no entanto, tornou-se realidade.
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CLIPE
O nome completo da criada é Luduvica Antônia da Porciúncula, isto
é, uma porção pequena de Luduvina, uma amostra da outra. Eis a
repetição das notas musicais na comédia. Luduvica e Luduvina se
assemelham ainda que difiram em idade. Ambas são trabalhadoras
e têm que aturar Gabriel. Este rechaça a esposa por ser velha (ainda
que esta se insinue), mas procura a criada. Aproximam-se também
as personagens masculinas. Estes são, na verdade, uns poltrões,
indolentes e glutões; caricaturas grosseiras que somente causam o
riso. Já o nome Pulquéria, com o qual graceja Gabriel com respeito a
sua esposa, é uma ironia à sua beleza, ou à falta desta; uma agressão,
na verdade. “GABRIEL – Ora explique-me Sra. Pulquéria, a sua
asserção; eu não entendo bem”.
É difícil entender bem a comédia. Procurar um sentido lógico que
satisfaça os padrões comuns de interpretação não é uma tarefa
fácil em Qorpo-Santo, mesmo porque o enredo não é linear e,
consequentemente, não há concatenação das idéias e sim saltos
de acontecimentos. João Roberto Faria (1998, p.86) alerta para a
vizinhança com o coq-à-l’âne: “ passagem sem transição e sem motivo
de um assunto para outro”. O entreato de Um assovio, em relação aos
três primeiros atos, é um dos muitos exemplos de coq-à-l’âne que se
pode capturar nas peças de Qorpo-Santo.
As comédias do autor gaúcho aproximam-se das farsas – embora não
o sejam – que se debruçam sobre a violência. Segundo Eric Bentley
(apud FARIA, 1998, p. 80), “sem agressão a farsa não funciona”. Em
Um assovio, a violência também é verbal, ás vezes é irônica, outras
beira à agressão física. O objetivo da agressão, da violência é causar o
riso. A farsa propicia o riso que é alimentado pelo rebaixamento do
elevado, do que tinha alto valor, seguindo o conceito bakhtiniano. As
personagens são caricatas e representam o que tem de mais baixo na
sociedade. Para Faria, (1998, p. 85), “as personagens são medíocres,
moral e intelectualmente; todos os ridículos são abordados e
satirizados”.
O teatro da farsa, diz-nos Bentley (apud FARIA, 1998, p. 79),
é o teatro do corpo humano, mas de um corpo num estado
tão distante do natural quanto a voz de Chaliapin está longe
de minha voz ou dos leitores. È um teatro em que, embora
os fantoches sejam homens, os homens são superfantoches.
É o teatro do corpo surrealista.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
O corpo em Um assovio, em semelhança a outras composições
de Qorpo-Santo como Mateus e Mateusa é um corpo dilacerado,
caricato, sujeito ao mais profundo rebaixamento moral, o que acaba
conduzindo ao riso. Partes do corpo que caem e que são recolocados
em seguida, sem qualquer objetivo aparente; o apelo sexual,
principalmente vindo de mulheres de idade avançada. Em Mateus
e Mateusa, a octogenária Mateusa reivindica relação sexual com seu
marido também octogenário. Luduvina, em Um assovio, insinua-se
para seu marido Gabriel, que a rejeita; afinal, Luduvina é uma “velha
feia com ares de feiticeira”.
Esméria mandou um recado à “prima Hermenêutica”. E para se
conseguir a compreensão, o sentido, de Um assovio é necessário
adentrar num mundo do absurdo e do surrealismo, para que enfim
se consiga a interpretação, ou interpretações. Segundo Flávio Aguiar
(apud FARIA, 1998, p. 92-93):
se Qorpo-Santo é, em parte, um precursor do Teatro do
Absurdo, ele é, entes, o precursor de si próprio. Paralisado
pelas próprias condições, que nenhum público constante
ajudou a resolver, seu teatro tornou-se esse amplo painel
onde é possível projetar as vocações surrealistas, os impulsos
brechtianos, as sensações do Absurdo, e, certamente, muitas
outras coisas que até agora sequer se imaginaram.
O teatro de vanguarda, a qual as comédias de Qorpo-Santo costumam
ser associadas, enfocam diversas tendências. E talvez por isso ainda se
apresente de uma maneira vívida e instigante. A significação de suas
peças, como já foi bastante assinalado, apresenta uma simbologia
fluida que não objetiva um conceito concreto, fato ou história, mas
que possibilita leituras, pois enfoca a relação com o natural, com o
que é orgânico e inerente ao ser humano; ainda que esta visão seja
turva por conta do impedimento do autor em sua disfunção psíquica.
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CLIPE
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4. ed. Trad. de Yara
Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb,1999.
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e
Pedro de Souza. São Paulo: Difel, 1985.
FARIA, João Roberto. O teatro na estante. Cotia: Ateliê, 1998.
FRAGA, Eudinyr. Qorpo-Santo: surrealismo ou absurdo? São Paulo:
Perspectiva. 1988.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura.
Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986.
QORPO-SANTO. Teatro completo. Rio, MEC-SEAC-FUNARTESNT, 1980.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de
Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
Recebido em 12/08/2008
Aprovado em 21/09/2008
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
CARTOGRAFIAS INSTÁVEIS: PERCURSOS PELA
CIDADE DE NO PAÍS DAS ÚLTIMAS COISAS,
DE PAUL AUSTER
Rafaela Scardino
Ufes
Resumo: Anna Blume, protagonista de No país das últimas coisas,
de Paul Auster, viaja para uma cidade em que “a única coisa que
conta é permanecer de pé”, um lugar em que nada perdura: deve-se
buscar novos significados a todo momento, pois, neste lugar, alguém
“só sobrevive se nada lhe for necessário”. Partindo de considerações
sobre o romance do autor norte-americano e de teorias sobre o
espaço na contemporaneidade, discutiremos a encenação literária das
relações de produção de subjetividade nos instáveis cenários urbanos
contemporâneos.
Palavras-chave: Paul Auster. Espaços urbanos. Literatura
contemporânea.
Abstract: Anna Blume, protagonist of Paul Auster’s In the country
of last things, travels to an unnamed city in which “the only thing
that counts is staying on your feet”, a place where nothing lasts:
significances should be constantly pursuit, for, in this city, “you can
survive only if nothing is necessary to you”. Using contemporary
theories about space and the analysis of Auster’s novel, we will discuss
the literary depiction of the relations involved in how is subjectivity
produced within the unstable contemporary urban spaces.
Keywords: Paul Auster. Urban Spaces. Contemporary literature.
As cidades dos textos de Paul Auster oferecem como sua principal
característica a instabilidade, tanto de posições – conduzindo ao
imperativo do deslocamento – quanto de identidades. Logo no
princípio do romance No país das últimas coisas, a personagem Anna
Blume adverte:
O essencial é não se acostumar, pois os hábitos são mortais.
Ainda que seja pela centésima vez, você deve tomar as coisas
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CLIPE
como se nunca as tivesse visto. Pouco importa o número de
vezes anteriores, cada uma tem de ser sempre a primeira.
Isso é quase impossível, eu sei, mas é uma regra absoluta41.
As regras da cidade não podem ser generalizadas, nem transferidas
de um território para outro, pois a cidade não constitui um lugar
antropológico, ou seja, não faz parte daquilo que é próprio, comum
ao sujeito. Se lugares, na definição de Marc Augé42, se caracterizam
por históricos, identitários e relacionais, a cidade descrita por
Anna43 nos oferece muitas das características dos não-lugares, como
a necessidade de assumir identidades previamente definidas e a
hostilidade em relação à permanência, tanto de indivíduos quanto
de comportamentos, além de ser marcada pela incerteza, pois “quem
mora na cidade não tem garantia de nada” (NPUC, p. 9), e pelo signo
da instabilidade, conceito fundamental para nossa compreensão dos
espaços urbanos na obra do autor norte-americano. Essa última
característica é, possivelmente, a mais perturbadora para Anna em
seu contato com a cidade, por impedir a consolidação de quaisquer
referências constantes: “uma casa está aqui num dia e, no outro,
sumiu. Uma rua pela qual você passou ontem já não existe hoje. Até
mesmo o clima flui constantemente” (NPUC, p. 9).
Anna vai para a cidade em busca de seu irmão, William, um jornalista
enviado ao país com o propósito de produzir uma série de reportagens
para um periódico de sua terra natal, mas que deixou de se comunicar
com a redação há mais de nove meses. Decidida a encontrá-lo, ela
embarca num navio de que é a única passageira. O primeiro contato
com a cidade é amedrontador: o navio aporta à noite e, na praia
completamente escura, Anna tem a impressão de estar “entrando
num mundo invisível, num lugar onde só moravam cegos” (NPUC,
p. 22). O endereço do jornal é, para ela, uma fonte de segurança, um
ponto de partida para sua busca, mas, ao chegar ao local indicado,
AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São
Paulo: Best Seller, s/d1, p. 13.
Para as seguintes citações deste texto, utilizaremos as iniciais NPUC e o número de página referente a essa edição
41
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus,
1994.
42
Durante todo a narrativa, a cidade descrita por Anna Blume em
sua carta jamais é nomeada.
43
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CONTEXTO
descobre que a rua mesma desapareceu: “não era que o escritório
estivesse desocupado ou o prédio abandonado. Simplesmente, não
havia prédio algum, não havia nada: só pedras e centenas de metros
quadrados de entulho” (NPUC, p. 23).
Sem ter por onde começar a procurar o irmão, Ana passa seus
primeiros momentos – uma massa indefinida de tempo, que não
consegue identificar como dias, semanas ou meses – vagando pela
cidade, como uma sonâmbula, “sem saber onde estava, sem mesmo
[se] atrever a falar com quem quer que fosse” (NPUC, p. 43).
A cidade retira dos habitantes a possibilidade de assentar sistemas de
signos que conduzam à compreensão e conseqüente estabelecimento
de vínculos com seus territórios, impedindo a fixação de
conhecimentos, também eles sujeitos à flutuação e à instabilidade que
a caracterizam: “a vida, tal como a conhecemos, acabou, e, entretanto,
ninguém é capaz de compreender o que foi que a substituiu” (NPUC,
p. 24). Anna identifica facilmente a perda de um modo de vida, isto
é, de uma maneira de perceber os fenômenos à sua volta e de lidar
com eles, mas é incapaz de vislumbrar aquilo que poderia ter-lhe
substituído, daí a necessidade de incessante negociação, como numa
busca por tentativa e erro, até a compreensão daquilo que tomou seu
lugar.
“Confrontado com o fato mais corriqueiro, você já não sabe como
agir, e, não podendo agir, acaba se tornando incapaz de pensar”, pois
“à sua volta, as mudanças ocorrem uma após a outra, cada dia traz
uma nova conturbação, as antigas suposições se esfumam no ar, se
esvaziam” (NPUC, p. 24), prossegue, descrevendo a incapacidade de
adaptar pensamentos e modos de agir previamente conhecidos aos
eventos com quais é obrigada a lidar. Notemos que pensar, aqui, implica
criação de novos códigos e, em termos espaciais, argumentamos que
a criação de práticas e modos de estar, ou seja, formas de habitar
a cidade, apenas é possível através da negociação de lugares, cuja
principal característica é a estabilidade44. Tal constatação nos permite
compreender a incessante busca por espaços que possibilitem fixidez
como a busca de Anna pela constituição de lugares antropológicos,
isto é, territórios nos quais possa estabelecer práticas duráveis.
Discordamos de Brigitte Vilequin-Mongouchon, ao afirmar que,
Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de
fazer. 9. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
44
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CLIPE
na cidade de No país das últimas coisas, existe “uma única maneira
de tentar resistir: estar em movimento”45. Acreditamos que a
movimentação, prática de negociação espacial, presta-se – talvez
de forma mais acentuada – à permanência do estado de flutuação
e fragmentação, através dos obstáculos impostos à instauração de
relações com o espaço utilizado. Atentamos, no romance, para outra
forma de resistência: o estabelecimento de laços afetivos. Anna e Sam,
o jornalista encarregado de substituir William, passam a viver juntos
na biblioteca, unindo seus recursos numa tentativa de sobreviver e,
quem sabe, retornar a seu país, desafiando “uma das leis da cidade
[que] determina que a gente nunca bata numa porta, a menos que
saiba o que há do lado de dentro” (NPUC, p. 86). Existem também
pessoas tão magras que, para não serem levadas pelo vento, andam
“em grupos de duas ou três, famílias inteiras à vezes, presas umas às
outras com cordas e correntes, firmando-se mutuamente contra as
lufadas” (NPUC, p. 11). Um dos laços mais estreitos e duradouros de
Anna em sua estada na cidade se dá com Isabel, uma mulher de meiaidade que ela salvou da morte: “bem ou mal, minha verdadeira vida
na cidade começou naquele momento. Tudo mais fora um prólogo,
uma coleção de passos incertos, de dias e noites, de pensamentos
que já não recordo” (NPUC, p. 44). Isabel leva Anna para sua casa e
cuida dela, ensinando-lhe, na medida do possível, como sobreviver
na cidade.
A necessidade de olhar sempre para as coisas como se fosse a primeira
vez, uma das lições aprendidas por Anna, pode ser compreendida
como um interdito ao hábito, que configura, para Alexandre Moraes,
uma espécie de conceito que dinamita a possibilidade de
um fluxo maior do sujeito. Dito de outra maneira, no hábito
a obrigação de significar. [...] A metáfora deve desaparecer
sob o signo de um conceito e tal conceito ganha mobilidade
para impulsionar códigos e sistemas de codificações; cria
uma lógica da cultura através de elaborados sistemas de
No original: ”un seul moyen pour tenter résister: être en mouvement”.
VILEQUIN-MONGOUCHON, Brigitte. Voyage au coeur d’un trou noir: lecture transdiciplinaire du roman de Paul Auster, In the country of last things.
Disponível
em
<<htp://www2.univ-reunion.fr/~anglof/
text/74c21e88-306.html#_ftn7>>. Acesso em 16 nov. 2007.
45
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
transmissão e repetição indefinidas: esta a raiz do hábito46.
Em Auster, a impossibilidade do hábito é justamente a impossibilidade
da manutenção de significados e da transmissão de experiência. O
hábito, por suas repetições, pode conduzir a uma falsa sensação
de familiaridade e segurança, propiciando desatenção, o que pode
ser fatal na cidade das últimas coisas: “é assim. Um momento de
desatenção, um mero segundo em que você se esquece de estar
alerta, e tudo se perde [...]” (NPUC, p. 73).
A extrema instabilidade da cidade atinge, também, os conhecimentos
criados a partir do contato com suas ruas. Assim, “o fato de
conseguir entrar não significa que conseguirá sair. As entradas não
servem de saída e nada pode garantir que a porta pela qual passou a
um momento ainda estará ali quando você se voltar a sua procura”
(NPUC, p. 75-76). E nos defrontamos, ainda mais uma vez, com
a necessidade de constantes e incessantes negociações com este
espaço, como nos dá a ver Anna, ao afirmar que “toda vez que a
gente pensa saber a resposta de uma questão, descobre que a própria
questão não tem sentido” (NPUC, p. 76). b
A cidade do relato de Anna é aquela da interdição à fixidez, a mesma
que, na modernidade analisada por Moraes, relegava os sujeitos à
invisibilidade do banal, ou melhor, à impossibilidade de visão efetiva
do banal, exatamente o que é pedido a M. S. Fogg, narrador de Palácio
da lua, ao ser contratado como acompanhante de um homem cego:
Dei-me conta de que nunca tivera o hábito de olhar
atentamente para as coisas, e, agora que me pediam para
fazer isso, os resultados eram catastróficos. Até então
sempre tivera tendência para generalizar, para ver em tudo
semelhanças em vez de diferenças. Agora, porém, eu estava
sendo atirado o mundo das particularidades, e a luta para
traduzi-las em palavras, para recolher os dados imediatos
que me vinham pelos sentidos apresentava-me um desafio
para o qual eu não estava preparado47.
MORAES, Alexandre. O outro lado do hábito: modernidade e sujeito. Vitória: EDUFES, Centro de ciências Humanas e Naturais, 2002, p.
122.
46
AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São
Paulo: Best Seller, s/d2, p. 131.
47
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CLIPE
A Nova York descrita por Fogg, em que “todas as coisas inanimadas
estavam se desintegrando; todas as coisas vivas, morrendo”48,
assemelha-se à cidade de No país das últimas coisas, onde tudo se
desintegra; e, para ambos, a instabilidade é o aspecto mais marcante
da cidade:
Um hidrante, um táxi, um sopro de vapor a subir da
calçada – tudo isso me era profundamente familiar; eu
supunha conhecer tais coisas de cor. Não levava, porém,
em conta sua instabilidade [...]. Tudo estava em constante
fluxo. Ainda que dois tijolos de uma parede fossem muito
parecidos, não se poderia dizer que fossem idênticos. Ou
mais precisamente: um tijolo nunca era de fato o mesmo.
Estava se desgastando, consumindo-se imperceptivelmente
sob a ação da atmosfera, do frio, do calor [...], e, por fim,
depois de séculos, podia ter desaparecido49 (PL, p. 132).
Uma das principais características da cidade contemporânea é não se
dar facilmente à exploração50. A falta de um centro definido, ou de
marcos e monumentos que guiem o visitante, incomoda também seus
habitantes, que não atribuem significados às localidades que servem,
apenas, de abrigo ao comércio ou outras instituições vivenciadas
como distantes, ainda que públicas. É possível caminhar por suas
ruas e mesmo saber o endereço de determinado sítio, mas a cidade
opõe-se à criação de hábitos, tradições ou sentidos para o que se
vê e experimenta: experimentar, nesta cidade, não implica adquirir
experiência.
Tomemos como exemplo o primeiro trabalho de Anna na cidade, a
“caça” de objetos a serem vendidos para “agentes de ressurreição”,
“empresários privados que transformam essas bugigangas em novas
mercadorias e, por fim, as vendem” (NPUC, p. 35). Para encontrar
objetos, ou partes deles, ainda aproveitáveis, é necessário que os
“caçadores de objetos”, em geral jovens “rápidos e espertos”,
percorram toda a cidade “impetuosamente, [...] vasculhando
48
AUSTER, Paul. Op. Cit., s/d2, p. 133.
49
AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São
Paulo: Best Seller, s/d2, p. 132.
Cf., dentre outros, RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar: a historia e o futuro da cidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
50
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CONTEXTO
delicadamente uma rua após outra, sem jamais perder a esperança de
encontrar algo extraordinário ao dobrar a próxima esquina” (NPUC,
p. 36). É fácil perceber que o deslocamento e a movimentação física
se impõem à sobrevivência dos indivíduos, levados a caminhar em
busca de algo que possa ser vendido, mas a aversão à fixidez é parte
da própria dinâmica da cidade, em que ruas inteiras desaparecem da
noite para o dia. E onde existem escombros do que foram casas e
edifícios, erguem-se barreiras, construídas pelos habitantes da cidade
como trincheiras:
Constroem-nas onde encontram material disponível, e
ali ficam entrincheiradas com porretes, fuzis ou tijolos, à
espera dos transeuntes. Tomam o controle da rua. Se quiser
passar, você tem de dar o que exigirem. Às vezes é dinheiro;
às vezes, comida; às vezes, sexo. Os espancamentos são
um lugar-comum, e, a cada instante, você ouve falar em
assassinatos (NPUC, p. 13).
Mas as barreiras também são edificações temporárias, que vêm abaixo
quando deixam de ser úteis, ou quando um grupo perde o poder para
outro, que reorganiza o espaço de acordo com suas necessidades de
criação, ou melhor, negociação de lugares. Trata-se de uma forma
de tentar disciplinarizar51 o espaço que já não lhes proporciona
segurança, no qual não confiam por ser impossível seu mapeamento
cognitivo. As barreiras tornam-se então “sua única chance de obter
poder sobre algo [o espaço], ainda que apenas momentaneamente.
Não querem construir abrigos tradicionais; em seu lugar, constroem
muros”52.
Termo empregado segundo a acepção a ele atribuída por Michel
Foucault em Vigiar e punir.
Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
51
No original: “[barriers] are their only chance to get even momentary power over something. They do not want to build traditional shelters,
they build walls instead”.
NYSTRÖM, Helmi. Three sides of a wall. Obstacles and Border States in Paul
Auster’s Novels. Pro gradu, October 1999. University of Helsinki, Comparative Literature, Institute for Art Research, Faculty of Arts, p. 24, grifos
nossos.
Disponível em <http://ethesis.helsinki.fi/julkaisut/hum/taite/pg/nystrom/>. Acesso em 31 mai. 2006.
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Confrontados com a exacerbada mobilidade dessas barricadas, os
moradores da cidade devem estar sempre alertas e prontos a criar
novas formas de lidar com os sinais “enviados” por estas construções:
a visão nem sempre é suficiente para distinguir a tempo o perigo,
“porque as barreiras têm um cheiro particular que você aprende a
identificar mesmo a uma grande distância” (NPUC, p. 13). Assim, a
cidade impõe que se lance mão de outras formas de contato com o
mundo, exigindo que os moradores voltem a confiar, por exemplo,
em sentidos desprivilegiados, como o olfato, a fim de se preservarem.
Os habitantes, no entanto, não são os únicos a tentar controlar o
espaço, pois também o governo se ocupa da construção de muros.
Logo após a morte de Isabel, Anna tenta sair da cidade e descobre que o
governo havia iniciado recentemente o “Projeto Amurada”, com planos
de construir uma enorme muralha tendo como matéria-prima, assim
como as barreiras, destroços e restos de edifícios, cujo objetivo seria
proteger a cidade de invasões estrangeiras. A cidade fora fechada, já não
era permitido chegar ou sair e Anna é obrigada a se confrontar com o fato
de que está presa na cidade.
A instabilidade e extrema mobilidade das barreiras implicam uma relação
de imprevisibilidade espacial que anula todo conhecimento histórico, pois
as barreiras não permanecem sequer nas mesmas ruas: “novas barreiras se
erguem, as antigas desaparecem. A gente nunca sabe que ruas tomar, que
ruas evitar” (NPUC, p. 13). A experiência de Anna na cidade é, portanto,
a da falta de lugar e sua frágil organização se configura espacialmente, e
não temporalmente.
Tal concepção de espaço urbano como algo que prescinde da necessidade
de preservação e que deve renovar-se continuamente pode ser verificada
neste trecho em que Richard Sennett fala da relação de Nova York com
sua história:
Muitas construções em perfeito estado desapareciam com a
mesma regularidade com que surgiam novas. Num período
de sessenta anos, por exemplo, as grandes mansões da Quinta
Avenida [...] foram construídas, habitadas e destruídas, cedendo
lugar a edificações mais altas. Hoje [no começo da década de
1990], apesar de já se cuidar da preservação do patrimônio
histórico, os arranha-céus são planejados para durar cinqüenta
anos e financiados de acordo com essa duração estimada,
conquanto sejam obras de engenharia capazes de conservar-se
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
por muito mais tempo. De todas as cidades do mundo, Nova
York foi a que mais cresceu à custa de demolições; daqui a cem
anos, as pessoas terão evidências mais tangíveis da Roma de
Adriano do que da grande metrópole de fibra ótica53.
A cidade de Anna, como a Nova York descrita por Sennett, é uma
metrópole em que o movimento de demolição constituiria, aparentemente,
uma forma de progresso, um andar para frente às custas de ruínas. Mas,
em vez de consagrar uma possibilidade de progresso, o fenômeno há
pouco descrito configura-se como um movimento na verdade circular e
descentrado, pois o apagar da história acarreta também o desaparecimento
de noções como para a frente e para atrás54, conduzindo a uma vida em
episódios instáveis que buscam evitar conseqüências que extrapolem o
tempo mínimo e flutuante de sua duração.
REFERÊNCIAS
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supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. Campinas, SP:
Papirus, 1994.
AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São
Paulo: Best Seller, s/d1.
AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São
Paulo: Best Seller, s/d2.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro
Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 9.
ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad.
Raquel Ramalhete. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.
291-292.
53
Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad.
Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
54
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 325
CLIPE
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização
ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.
MORAES, Alexandre. O outro lado do hábito: modernidade e sujeito.
Vitória: EDUFES, Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2002.
NYSTRÖM, Helmi. Three sides of a wall. Obstacles and Border
States in Paul Auster’s Novels. Pro gradu, October 1999. University
of Helsinki, Comparative Literature, Institute for Art Research,
Faculty of Arts. Disponível em <http://ethesis.helsinki.fi/julkaisut/
hum/taite/pg/nystrom/>. Acesso em 31 mai. 2006.
RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar: a historia e o futuro da
cidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VILEQUIN-MONGOUCHON, Brigitte. Voyage au coeur d’un
trou noir: lecture transdiciplinaire du roman de Paul Auster, In the
country of last things. Disponível em <<htp://www2.univ-reunion.
fr/~anglof/text/74c21e88-306.html#_ftn7>>. Acesso em 16 nov.
2007.
Recebido em 15/08/2008
Aprovado em 15/09/2008
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
A AGONIA E O DESPERTAR DE UMA CIDADE EM A
PESTE, DE ALBERT CAMUS
Angela Regina Binda da Silva
Ufes
Resumo: Este artigo faz uma relação entre as obras A Peste e O
Estrangeiro, de Albert Camus, apresentando os principais pontos do
pensamento camusiano acerca do absurdo e da revolta inseridos no
enredo dessas obras.
Palavras-chave: A Peste. O Estrangeiro. Absurdo. Revolta.
Abstract: This article makes a relation between the books The Plague
and The Stranger, pointing the main aspects of Camus´ thoughts
according to the absurd and revolt in the plot of these books.
Keywords: The Plague. The Stranger. Absurd. Revolt.
Publicada em 1947, A Peste, de Albert Camus, trata do absurdo vivido
pelo ser humano e de sentimentos coletivos como a revolta, temas
que foram abordados pelo mesmo autor cinco anos antes de forma
individual em O Estrangeiro.
Tomada pela peste bubônica, a cidade de Oran no norte da África
é fechada sobre si mesma e seus moradores passam a conviver com
sentimentos como o medo e a solidão. A morte é fato quase certo
e a doença faz milhares de vítimas que passam a dar importância
à vida e ao próximo, despertando a compaixão e a ajuda mútua. A
iminência da morte traz à tona que a vida e o homem são finitos. Há
também um fundo filosófico-existencial. Albert Camus se utilizava
da literatura com uma escrita simples para expor e desenvolver suas
idéias sobre questões filosóficas como o absurdo e a revolta.
Isolados do resto do mundo e separados de seus amantes e familiares,
os cidadãos de Oran voltam-se para seus vizinhos e para cada um da
cidade para redescobrirem a essência das relações humanas, antes
adormecidas pela fria rotina de cada um. A monotonia do trabalho e
o pensamento voltado para o acúmulo de riquezas são interrompidos
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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CLIPE
quando milhares de ratos aparecem mortos. O que era no início
apenas uma preocupação torna-se um horror generalizado quando
as mortes atingem também aos cidadãos, dizimando famílias inteiras
e espalhando o horror por todos os lados. Todos os moradores da
cidade estão ameaçados pela doença mortal pelo simples contato
com entes queridos já infectados e passam a temer até o vento que
sopra trazendo o bacilo da peste. A morte se torna uma personagem
da obra que cumpre seu papel não por causa do ciclo natural da vida,
mas porque dizima sem ordem, vez, ou classe social. É temida por
ser injusta e numerosa.
A obra traz como personagem central o Dr. Rieux. O médico tem
papel fundamental na trama, pois se une a vários outros personagens
para combater o mal que eles não sabem a origem. Ele é o próprio
redator da narrativa e a considera como um testemunho para “[...]
não ser daqueles que se calam, para depor a favor destas vítimas da
peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência
que lhes tinham sido feitas”. (CAMUS, 2004, p. 268)
A obra A Peste está intimamente ligada à vida pessoal de seu autor. É
de extrema importância entender o contexto em que Albert Camus
vivia para fazer uma relação com alguns fatos da obra. Oran, a cidade
onde se passa a história, localiza-se no norte da África, país onde
Camus nasceu em 1913. O enredo do romance destaca o fato dos
amantes sofrerem pela separação imposta pela epidemia, o que
poderia ser um reflexo da separação de Camus, sua família e terra
natal por mais de dois anos. Nesse período, os aliados à África do
Norte chegaram à Paris onde Camus estava para se tratar no verão
de 1942. Há ainda a ausência de personagens femininos na obra.
Muitas mulheres estão longe de Oran e as que residem lá não têm
importância. A mãe do Dr. Rieux é a única mulher que aparece em
algumas cenas e recebe destaque. Camus provavelmente descreve a
Senhora Rieux com traços de sua mãe dando um aspecto calmo e
silencioso à personagem.
Ainda jovem Camus entregou-se aos esportes (especialmente ao
futebol) até descobrir a tuberculose e sua condição de homem mortal,
aspecto tratado na obra em questão. Em A Peste há um jogador de
futebol que por várias vezes fala de sua paixão pelo esporte. Camus
ainda foi funcionário da prefeitura em Argel da mesma forma que o
personagem Grand é no romance. Grand é um personagem simples,
mas importante dA Peste que busca a perfeição de uma maneira
328 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
obcecada ao escrever uma frase que faria parte de um romance. Ele
tenta por diversas vezes compor essa frase mudando a pontuação e
substituindo palavras. O personagem chega ao fim da história sem
êxito. Há assim uma reflexão sobre o papel do escritor e da própria
maneira de escrever.
Camus também desempenha a função de jornalista e viaja por vários
lugares relatando a pobreza e os horrores das guerras. NA Peste,
Rambert é um jornalista que acaba por ficar preso na cidade devido
ao isolamento imposto e desiste da fuga para enfim ajudar ao Dr.
Rieux e a todos os flagelados. Esse fato pode ser interpretado como
um símbolo de opressão à liberdade de imprensa.
O ESTILO ABSURDO E POÉTICO EM A PESTE E O
ESTRANGEIRO
Há fortes elos que ligam O Estrangeiro à obra A Peste. Camus usou
o nome Raymond em ambas as obras para nomear na primeira o
vizinho de andar do personagem principal e nA Peste um jornalista
preso na cidade fechada por causa da epidemia de peste. Esse
jornalista procura meios de ultrapassar os muros da cidade e fugir
ao cerco imposto pelas autoridades para reencontrar a liberdade e
a mulher amada. “Sua argumentação principal consistia sempre em
dizer que era estrangeiro em nossa cidade e que, por conseguinte, o
seu caso devia merecer um exame especial”. (CAMUS, 2004, p. 96)
Camus ainda faz um elo explícito com O Estrangeiro quando cita
sobre a prisão de Mersault em A Peste: “Grand chegara a assistir
a uma cena curiosa com a vendedora de tabaco. No meio de uma
conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoroçava
Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia”.
(CAMUS, 2004, p.53)
O mundo incoerente apresentado por Camus na obra O Estrangeiro
através do absurdo e da revolta, também faz parte dA Peste. A rotina,
o tédio e a repetição de situações são aspectos que fazem Mersault –
o protagonista de O Estrangeiro – e a população de Oran – cidade
assolada pela peste – mergulharem no absurdo da vida mostrado por
Camus através de sua literatura. Mesmo amedrontados pela epidemia
que faz centenas de mortos por semana, os concidadãos de Oran
passam a viver o absurdo acostumando-se com a peste.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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CLIPE
Os nossos concidadãos tinham-se adaptado, como se
costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder.
Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do
sofrimento, mas já não o sentiam. De resto, o doutor Rieux,
por exemplo, achava que essa era justamente a desgraça e
que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero.
Antes, os separados não eram realmente infelizes, pois havia
no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir.
Agora, eram vistos pelas esquinas, nos cafés ou em casa dos
amigos, plácidos e distraídos, e com um ar tão entediado
que, graças a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera.
Os que tinham uma profissão executavam-na ao ritmo da
própria peste, meticulosamente e sem brilho. (CAMUS,
2004, p. 160)
Essa fácil adaptação a uma difícil vida também acontece com Mersault,
em O Estrangeiro, que se acostuma com os dias na prisão e diz que
“[...] se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore,
sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima da minha
cabeça, eu teria me habituado aos poucos” (CAMUS, 2005, p. 81).
Suas lembranças na prisão são seu único passatempo e ele “aprende
a recordar” situações simples de sua vida como a localização dos
móveis e objetos de sua casa. Dessa mesma forma, os habitantes de
Oran aprendem a usar a imaginação para passar o tempo.
Impacientes com o presente, inimigos do passado e
privados do futuro, parecíamo-nos assim efetivamente com
aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás
das grades. Para terminar, o único meio de escapar a estas
férias insuportáveis era através da imaginação, recolocar em
movimento os trens e encher as horas com os repetidos
sons de uma campainha que, no entanto, se obstinava ao
silêncio. (CAMUS, 2004, p. 68)
Mesmo com a cidade de Oran assolada pela peste e sem sinais de
regressão da doença, alguns personagens ignoravam mentalmente
todas as duras regras impostas pelo governo e pensavam como
homens livres. Mersault, em O Estrangeiro, tem pensamentos de
homem livre mesmo preso e sente mais dificuldade em ter esses
tais pensamentos do que o fato de estar preso e ter que vivenciar
todos os problemas que a prisão lhe oferece como falta de higiene ou
estrutura física precária.
330 •
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Assim, durante semanas, os prisioneiros da peste debateram-se como
puderam. E alguns, como Rambert, chegavam até a imaginar, como se
vê, que ainda agiam como homens livres, que ainda podiam escolher.
Mas, na realidade, podia dizer-se neste momento, nos meados do mês
de agosto, que a peste tudo dominara. Já não havia então destinos
individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos
compartilhados por todos. (CAMUS, 2004, p. 149)
A agonia que os cidadãos de Oran viveram por meses e o cenário
aterrorizante que a peste criou e os obrigou a presenciar, fez com
que muitos se acostumassem com a morte e esperassem por sua
vez de contraírem a doença para morrerem. “Estavam a tal ponto
abandonados à peste que lhes acontecia às vezes só desejarem o
sono e surpreenderem-se a pensar: Que venham logo os tumores e
se acabe com isto!” (CAMUS, 2004, p. 161)
O toque de recolher imposto pelas autoridades, o fechamento da
cidade, as medidas de segurança e prevenção que os moradores
tiveram que se submeter fez parte da vida dos concidadãos de Oran
por longos meses. Essa nova vida imposta pela peste, trouxe junto
com ela o costume e a rotina que são características do absurdo que
os personagens de Camus vivenciam. Na página 162 de A Peste lêse: “De manhã, voltavam ao flagelo, quer dizer, à rotina”. (CAMUS,
2004)
A falta de esperança do homem camusiano e a vivência do presente
também são características que fazem parte de cada cidadão de Oran.
As autoridades tinham contado com os dias frios para
deterem este avanço e, contudo, ele passava através dos
primeiros rigores da estação sem desanimar. Era preciso
esperar ainda. Mas, de tanto esperar, ninguém mais espera
– e a nossa cidade inteira vivia sem futuro. (CAMUS, 2004,
p. 225)
OS HOMENS REVOLTADOS DE ORAN EM UM FINAL
FELIZ E DUVIDOSO
O homem descrito por Camus vive no absurdo, locomove-se nele e
revolta-se após despertar diante de algum fato. A revolta surge diante
do fato do homem se negar a viver o que vinha experimentando e
aceitando até então. O “não” do homem absurdo é o início da revolta
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 331
CLIPE
que permite que o próprio homem tenha consciência do seu valor.
Após uma primeira aceitação e de tentarem levar suas vidas de uma
forma normal, os cidadãos de Oran precisam seguir as duras regras
impostas pelo governo e revoltam-se em meio ao caos como descreve
o trecho da obra abaixo:
Os tumultos junto às portas da cidade, durante os quais
os guardas tinham sido obrigados a lançar mão de suas
armas, criaram uma surda agitação. Tinha havido feridos,
sem dúvida, mas falavam-se de mortos na cidade, onde
tudo se exagerava por efeito do calor e do medo. Em todo
o caso, é verdade que o descontentamento não cessava
de aumentar, que as nossas autoridades tinham receado o
pior e estudado muito a sério medidas a serem tomadas no
caso de esta população, mantida sob o flagelo, ser levada
à revolta. Os jornais publicaram decretos que renovavam
a proibição de sair e ameaçavam com pena de prisão os
infratores. Patrulhas percorriam a cidade. Muitas vezes, nas
ruas desertas e escaldantes, viam-se avançar, anunciados
em primeiro lugar pelo ruído dos cascos dos cavalos nos
paralelepípedos, guardas montados que passavam por entre
duas fileiras de janelas fechadas”. (CAMUS, 2004, p. 102)
Durante a noite as portas da cidade são atacadas por cidadãos
armados que tentam repetidamente fugir e lutar contra os guardas
que não conseguiram acalmar o sopro de revolução que contagiou
a todos.A cidade que antes de ser acometida pela peste era calma e
individualista, tornou-se uma prisão para os seus próprios cidadãos
que encontram na revolta coletiva valores não individuais, éticos e
políticos.
Por fim, a revolta traz o benefício da “purificação”. Assim como
em O Estrangeiro Mersault revolta-se em sua cela e depois se sente
renovado, em A Peste os concidadãos se revoltam e depois se sentem
prontos para agirem contra o mal que os dizima. “O rumor da cidade,
contudo, continuava a chegar aos terraços com um marulho de vaga.
Mas esta noite era a da libertação e não a da revolta”. (CAMUS, 2004,
p. 268)
Os primeiros foguetes dos festejos anunciavam a peste que ia embora,
juntamente com gritos de alegria. Uma cidade que enfim começava
a sorrir e iria enfim retomar sua rotina depois de sacudida por um
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
inimigo invisível. O flagelo ensinou aos cidadãos que há mais coisas
para se admirar nos homens diante do caos do que para se desprezar.
A alegria dos homens agora livres estava sempre ameaçada por algo
que estava escrito nos livros e que os felizes cidadãos desprezavam:
“[...] o bacilo da peste na morre nem desaparece nunca, pode
ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera
pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na
papelada”.
REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 26. ed. Rio
de Janeiro: Record, 2005.
CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Valerie Rumjanek 15. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2004.
BARRETO, Vicente. Camus Vida e Obra. 2. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1991.
PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus Um Elogio do Ensaio. São
Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
TODD, Oliver. Albert Camus: Uma Vida. Trad. Mônica Stahel. Rio
de Janeiro: Record, 1998.
Recebido em 17/08/2008
Aprovado em 15/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 333
CLIPE
WALDO MOTTA: POESIA, CRÍTICA E PROBLEMA
Rodrigo Leite Caldeira
Ufes
Resumo: O objetivo deste artigo é fazer um mapeamento das zonas
de tensões surgidas à luz da obra poética de Waldo Motta.
Palavras-chave: Waldo Motta. Poesia. Crítica e interpretação.
Abstract: This article aims at mapping the tensions risen in light of
the poetic work of Waldo Motta.
Keywords: Waldo Motta. Poetry. Criticism and interpretation.
Waldo55 Motta “é um problema literário. Imagino,” temeroso em
afirmar minha certeza, que esse plágio inicial, angústia de minha
ignorância, seja o sustentáculo deste artigo, pois nele procurarei, a
partir de uma leitura dialética entre os poemas waldianos e a fortuna
crítica sobre eles, pontuar as zonas de tensões surgidas à luz de sua
poética, que, como veremos, pela singularidade do tema atual se nos
apresenta como um problema. Podemos dividir este problema em
três fases interligadas aos seus livros da seguinte forma:
a) uma 1ª fase que vai do final dos anos 70 até o ano de 1984 com
a publicação dos livros Pano Rasgado (1979), Os Anjos Proscritos e
Outros Poemas (1980, em parceria com Wilbett R. Oliveira), O Signo
na Pele (1981), Obras de Arteiro (1982), As peripécias do Coração (1982)
e De Saco Cheio (1983), todos em edições autorais ainda vinculados à
cultura dos anos 70 da poesia mimeógrafo, onde o problema aqui é da
ordem da subtração; de uma literatura feita ao calor das emoções, sem
o crivo necessário para consolidá-la. Faz-se poesia numa tentativa
brusca de mudanças sociais, políticas e amorosas, utilizando-se da
palavra apenas como um artefato de guerra, valendo muito mais
o que se quis dizer do que como se disse, perdendo, deste modo,
Uso aqui a grafia que o autor utilizou na assinatura do seu último
livro Recanto – poema das 7 letras. Vitória: Ímã, 2002. Pois como o mesmo
atesta em seu site (http://www.waldomotta.cjb.net/) assim o fará em suas
próximas obras.
55
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
a força poética advinda sobretudo do labor meticuloso sobre as
palavras, ou, como quer o próprio poeta, este período se destaca por
“um ciclo muito frege e pensamento rarefeito, alguma pretensão e
certa ingenuidade (ilusões políticas, amorosas, essas coisas)”56, donde
o poema surge quase num ato epifânico, de modo espontâneo:
Quase que à revelia de mim
vão-se-me brotando palavras,
como seres incorpóreos animados.
A minha vontade é um pastor distraído
que por acaso e por estar está ali,
e com apenas estar por estar
vai tangendo sem tanger o rebanho heterogêneo de palavras
agregando-as de modo que constituam
um interpretação de fatos, uma idéia, uma dor
existentes em mim, gestante, que me engravidara
pelos gametas das circunstâncias.57
O poeta torna-se o “pastor distraído” que “por acaso” agrega as
palavras, este “rebanho heterogêneo”, de modo que lhe sirvam
como intérpretes de fatos, idéias e dores que lhe “engravidam”.
Esta analogia ao poema como sendo fruto de algo engendrado no
interior corpóreo do poeta é corrente nesta primeira fase. O poema
que a melhor realiza é “Poemas cambiantes” onde o poeta após sete
estrofes que podem ser lidas como um todo, mas também, como o
próprio título sugere, sendo cada uma um poema cambiante, de cor
indistinta, fecha o poema com estes seis versos:
Só porque escrevo
sinto esvair-se
o que me enchera.
A esferográfica
é como se
MOTTA, Valdo. “Saída para dentro (Introdução)”. In.: Transpaixão: coletânea. Vitória: Kabundo, 1999, p. 7.
56
Idem, Eis o homem: poemas selecionados 1980/1984. Coletânea.
Vitória-ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - Universidade Federal do
Espírito Santo, 1987, p. 21.
57
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
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CLIPE
me ordenhasse.58
Contudo, se pontuamos os aspectos acima descritos como o menos
na poesia waldiana, não podemos deixar de salientar que são poemas
que assumem feições comuns aos de seus contemporâneos. Flora
Süssekind, analisando a produção literária dos anos 70 e 80, observa
que a característica comum aos poetas deste período era o aspecto
confessional de suas obras. Onde “as vivências cotidianas do poeta,
os fatos mais corriqueiros [...] constituirão a matéria da (sua) poesia”59.
Com Waldo Motta não dá-se diferente. Nele, também, onde se
lê poesia, leia-se vida. O eu lírico está ali, a todo momento, num
colóquio com o leitor; dando ciência do seu dia-a-dia, trazendo-o
para a sua vivência. Daí Süssekind comparar estes livros aos diários.
São livros que colocam o leitor em dia com a vida do poeta. Exemplo
disso é “Devaneio no ônibus”, onde o leitor é levado, pelos olhos do
poeta que “borboleteiam”, ao interior de um ônibus na hora do rush:
Meus olhos borboleteiam
no interior do ônibus
a pousar de um a outro
par de coxas dos peões
que voltam do trampo, os corpos
58
Idem., p. 17.
59
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2ª ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 115.
Destacando a figura do leitor como cúmplice do autor, Süssekind destaca:
“A sensação do leitor é meio a de quem violasse correspondência alheia ou
abrisse de repente o diário de alguém e, começando a lê-lo, percebesse estranhas semelhanças com o seu próprio cotidiano não escrito, vivido apenas.
E, para obter esse efeito de reconhecimento imediato, essa resposta direta,
foi preciso que o texto poético começasse a dialogar cada vez mais com os
media e menos com o próprio sistema literário, cada vez mais com o alinhavo
emocional do diário, com o instantâneo, com o registro, em close, da própria
geração. [...] E é entre referências cada vez mais freqüentes ao universo da
televisão, da propaganda, dos quadrinhos, dos jornais populares, canções de
sucesso e o detalhado relato do que se passa na rua, no cotidiano desses poetas sempre em trânsito que se vai estabelecer um novo tipo de pacto, menos
literário e mais confessional, com o leitor” (p. 125-126). Se excedo na citação
é para observar que na poética waldiana, embora haja o tom confessional,
não localizo nela o diálogo com os media tão fortemente. Algo que ocorre
com maior freqüência em Sérgio Blank, poeta capixaba contemporâneo a
Waldo.
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
viscosos de poeira e suor
O rude pano dos uniformes
atiça-me a imaginação,
assanha-me a libido e sonho-me
a língua a recolher o sal de um corpo
moreno e musculoso sob a parca
luz de uma lâmpada de 40 volts
ou de uma candeia a querosene
numa caxanga suburbana;
e sonho mil peripécias,
estrepolias de amor,
a prospecção completa
um do outro, até que ambos
estejamos lambuzados
e que, assim, nossos corpos saibam
a sal e sangue e baba e porra60.
Reparem que o grau confessional do autor transcende o vivido para se
abrir, sem meias palavras, ao sonho, aspiração por demais íntima.
b) a 2ª fase seria vinculada ao livro O Salário da Loucura (1984). Quem
conhece minimamente a obra poética do autor certamente discordará
desta minha divisão, pois sabe que em termos literários o Salário da
Loucura apenas fecha o “ciclo muito frege” acima descrito, sendo ele
mesmo a melhor expressão do período. Então por que destacá-lo desse
conjunto de “pensamento rarefeito”? Pelo simples fato de que seu prefácio
inaugura o problema da adição em sua poesia. Escrito pela professora
Deny Gomes é a primeira inserção da obra waldiana – em certa medida
– no meio acadêmico. Portanto, a adição aqui proposta como problema
seria a da legitimação inerente que pressupõe qualquer texto escrito por
pertencentes ao “reino dos saberes”. Deny Gomes, persona grata aos jovens
literatos capixabas por seus trabalhos desenvolvidos na Universidade
Federal do Espírito Santo61 onde à época figurava como “Professora
60
MOTTA, Eis o homem... p. 20.
61
Sobre a importância de Deny Gomes neste período Reinaldo Santos Neves em seu Mapa da Literatura Brasileira feita no Espírito Santo assim
se expressa: “Fatores paralelos contribuíram para que a década de 80 visse
um despertar da atividade literária no Espírito Santo, mais especificamente
em Vitória. Um deles foi a realização de uma série de oficinas literárias pela
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 337
CLIPE
de Teoria da Literatura e Coordenadora de Literatura da Sub-Reitoria
Comunitária da UFES”62, diz em seu texto “algumas coisas”, “não no
preito de admiração ao jovem vate mateense”, muito menos usando
“recursos da dissertação teórica avançadinha que, muitas vezes, cheia
de modismos ‘liberais e progressistas’ escamoteia preconceitos e/ou
falta de honestidade intelectual e humano”, mas “com o (seu) sentir,
com (sua) cabeça, com (sua) perplexidade e respeito pelo jeito de ser
e pela atividade artística do autor”63. E o fez muito bem. Adicionou
à obra waldiana pré-Bundo um ethos que, embora o próprio autor
desdiga hoje, numa clara intenção de que voltemos os olhos para seu
Bundo, não pode ser desvinculado de modo algum do seu projeto
poético, muito menos omitido de qualquer análise. Daí a necessidade
dessa revisão histórico-literária que faço. Para aferir o valor daquele
prefácio destaco alguns pontos levantados pela autora que de certa
professora Deny Gomes, das quais participaram alunos de Letras e jovens
da comunidade interessados no ofício da literatura. Esse projeto, que teve
seu embrião no I Seminário de Produção do Texto Literário, promovido em
1981 pela Coordenação de Literatura (dirigida por Deny Gomes) da SubReitoria Comunitária da Ufes, e que se institucionalizou a partir de 1982
como projeto da Sub-Reitoria e do Departamento de Línguas e Letras da
Ufes, deixou pelo menos três registros impressos nessa década: Ofício da
palavra (1982), contendo trabalhos realizados durante o Seminário de 1981,
Traços do ofício (1983), contendo textos de oficina literária realizada em 1982,
e Toques (1984), contendo textos de uma oficina de poesia realizada em 1984.
Três dos “graduados” da oficina literária de 1982 — Francisco Grijó, Paulo
Roberto Sodré e Valdo Motta — vão ser encontrados, mais tarde, na Coleção
Letras Capixabas da FCAA”. Cf. “A época áurea: os anos 80”. In.: NEVES,
Reinaldo Santos. Mapa da Literatura Brasileira feita no Espírito Santo. Disponível em http://www.estacaocapixaba.com.br/texto/texto.php?id=223 ,
acessado em 21/10/2006.
Essa titulação inscrita abaixo do seu nome ao final do prefácio,
além da legitimação já dita, destaca-se se observarmos a estrutura física da
1ª edição do livro feita de modo artesanal e longe dos padrões estéticos dos
livros produzidos pela Universidade. Deste modo a legitimação da prefaciadora dá-se diretamente no habitat natural da poesia marginal, não ferindo a
lógica não-mercadológica das edições caseiras, como no caso da antologia
26 poetas hoje organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1975 com
poetas marginais do Rio de Janeiro.
62
GOMES, Deny. “Prefácio”. In.: MOTTA, Valdo. Eis o homem:
poemas selecionados (1980-84) Coleção Letras Capixabas. Vol. 30. Vitória:
Fundação Ceciliano Abel de Almeida - Universidade Federal do Espírito
Santo, 1987, p. 99.
63
338 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
maneira dialogam com a crítica atual, tais como: o “enfrentamento
de contradições” da obra que suscita espanto em leitores e críticos
mais sensíveis; as contradições de ordem pessoal do autor: tímido/
arrogante, sutil/escrachado, fechativo/desafiador; “linguagem
que é deliberadamente a expressão de suas contradições sociais:
ora formal, quase clássica, dentro dos parâmetros da norma culta;
ora brutalmente grosseira, cheia de neologismos pessoais ou de
expressões codificadas no meio dos homossexuais” e “a visão crítica,
o humor amargo de quem participa da minoria discriminada mas que
não a erige como detentora do monopólio do sofrimento humano
nem a sacraliza como agrupamento corporativista intocável”64.
Em conformidade com os apontamentos feitos por Deny Gomes,
Francisco Aurelio Ribeiro foi, digamos, o segundo nesta equação de
adição da crítica à obra waldiana. Primeiro em A modernidade das
letras capixabas (1993) e depois em A Literatura do Espírito Santo: uma
marginalidade periférica (1997), onde vai reafirmar as considerações
feitas por Deny Gomes acrescentando-lhes dois outros aspectos:
o 1º aspecto seria a partir dos poemas que versam sobre a
homossexualidade masculina. Para Ribeiro, por não serem poemas
que tratam do tema de modo alienado e por serem uma marca da pósmodernidade, é neles que “está o melhor de sua poesia e da poesia
contemporânea ao retratar um tipo de vida quase ignorado pela
poética tradicional. A ironia ao extremo, a auto-ironia, a irreverência,
o deboche, o experimentalismo, o culto do corpo, o hedonismo, o
consumo de drogas, a marginalidade [...]”65. O 2º aspecto seria que a
poesia waldiana estaria incluída em uma tripla periferia: a geográfica,
a cultural e a de minoria, no caso dele também tripla: negro, pobre e
homossexual.66
c) a 3ª fase67 inicia-se em 1996 com a publicação do livro Bundo e
outros poemas68. Entendo que o problema aqui é da ordem da divisão,
64
Idem., pp. 99-102.
65
RIBEIRO, Francisco Aurelio. A modernidade nas letras capixabas.
Vitória: UFES – SPDC/FCAA, 1993, p. 184-185.
66
Cf. RIBEIRO, Francisco Aurélio. Literatura do Espírito Santo:
uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996, p. 67.
Por acreditar que não figura em nenhuma das três fases por mim
sugeridas, excluo propositalmente o livro Poiesen de 1990.
67
MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Coletânea reunindo poemas dos livros Waw e Bundo. Organização: Iumna Maria Simon e Berta
68
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 339
CLIPE
pois se na fase anterior a crítica apenas adiciona à obra waldiana um
status legitimador em âmbito local, a partir de Bundo a legitimação da
crítica figurará lado a lado com o texto poético, por vezes sendo o
único elo entre o poeta e um público maior. Neste sentido, refiro-me
em especial ao ensaio de Iumna Maria Simon publicado em 1999 na
revista Praga69. Este ensaio foi o divisor de águas no entendimento da
obra waldiana, pois, além de destrinchar a poética inovadora dos poemas
reunidos em Bundo, fez um pequeno esboço sobre a obra precedente
do autor, situando e acalmando os ânimos daqueles que ainda deglutiam
a duras tragadas os versos do “sodomita místico do Espírito Santo”70.
Iumna foi e ainda é a única que soube dividir os outros poemas de Bundo.
Em seu ensaio distingue com sabedoria a poesia de WAW como
uma “busca de autoconhecimento”, um esboço da religião e sistema
Waldman. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
SIMON, Iumna Maria. “Revelação e desencanto – os dois livros
de Valdo Motta”. In.: Revista Praga (estudos marxistas). São Paulo: Hucitec, n.
7, p. 69-99, março 1999. Sobre o impacto que provocou este ensaio no meio
crítico-literário acho salutar as palavras proferidas por Roberto Schwarz
acerca da obra de Waldo Motta a partir da leitura do texto de Iumna: “Um
trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é o ensaio de
Iumna Simon, que saiu na revista Praga n° 7, sobre a poesia de Valdo Motta.
Ele é um poeta negro do Espírito Santo, homossexual militante, muito pobre
e dado a especulações teológicas. É uma poesia que toma o ânus do poeta
como centro do universo simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura
bíblica, disposição herética, leitura dos modernistas, capacidade de formulação, talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem
ao corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem
nada de exótico. [...] Para fazer justiça ao poeta, que é perfeitamente contemporâneo, ela teve que se enfronhar em áreas que desconhecia e, sobretudo,
compará-lo a seus pares, refletir sobre a sua inserção na cultura atual e tirar as
conseqüências estéticas que cabem. É de trabalhos assim - sem desmerecer
outras linhas possíveis - que a crítica depende para recobrar vitalidade e estar
à altura da realidade.” Cf. “Um crítico na periferia do capitalismo - Entrevista com o ensaísta e crítico literário Roberto Schwarz”. Por Luiz Henrique
Lopes dos Santos e Mariluce Moura. In.: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?materia=3668. Acessado em 03/10/2006.
69
MORICONI, Ítalo. “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira” In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos e
Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, p. 17. “Para fazer o contraponto com a poesia atual, destacando algum nome dos anos 90 para juntarmos
ao de Piva, creio que não há ninguém melhor que Valdo Motta, o sodomita
místico do Espírito Santo [...]”
70
340 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
de salvação que será armado como doutrina em Bundo, ao mesmo
tempo em que reconhece em WAW, “livro mais irregular e variado
[...], menos acabado enquanto arquitetura e sistema expressivo”, a
maior quantidade de bons poemas e “verdadeiras obras-primas”71.
A este ensaio quero acrescentar outros dois: um de Raul Antelo,
“Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição moderna”72 e
outro de Miguel Sanches Neteo, “Poesia e as subculturas do gosto”73.
O ensaio de Antelo, publicado em 1998, portanto antes de Iumna
publicar o seu, destaca-se, sobretudo, pela erudição do autor que
evidentemente destoa do “coloquialismo elevado”74 dos poemas de
Bundo. Nele, Antelo associa os poemas de Waldo – com especial
atenção ao “Ave, pedra dos escândalos,”75 – a grandes nomes da
literatura mundial, o que confere à sua obra um caráter universalista,
furtando-lhe, desse modo, a “marginalidade periférica” sugerida
anteriormente por Francisco Aurelio Ribeiro. Partindo da análise
do poema em italiano de Murilo Mendes “Rapporto di Édipo”,
passando pelo aforismo de O discípulo de Emaú: “Deus não é
somente fim – é também centro”, Antelo desemboca nas “escrituras
pós-poéticas” de Waldo Motta de “Ave, pedra dos escândalos,”, para
em seguida correlacioná-la à narrativa borgiana de “A aproximação a
Almotassim”. Como num texto barroco, em constante elipse, Antelo
vai correlacionando textos das verves mais diversas à primeira vista,
como por exemplo ao associar a “centralidade corporal” contida nos
poemas de Bundo a “certas figurações modernistas, ‘sociológicas’, da
origem brasileira, a teoria do puito macunaímico mas também a da
geração a partir da interferência de um espírito maligno, tutelar dos
peixes, uauiara, como narra a rapsódia de Mario de Andrade a partir
71
SIMON, op. cit., p. 94.
72
ANTELO, Raul. “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição moderna”. In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos
e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998.
NETEO, Miguel Sanches. “Poesia e as subculturas do gosto”.
Em http://www.revistaagulha.com.br/msanches13.html. Acessado em
03/10/2006.
73
74
SIMON, op. cit., p. 98.
75
Em um grande número de poemas de Bundo não há a inscrição
de título. Valho-me aqui, portanto, do primeiro verso do poema localizado à
página 43.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 341
CLIPE
de Couto de Magalhães”76; ou pensando em Casa-grande & Senzala,
no “enigma original da couvade, que não só aponta na direção de
uma bissexualidade difusa entre os indígenas [...], mas também
nos propõe uma explicação nominalista, já que, por exemplo, ovo
e pai, em Bakaiiri, têm igual derivação”77. Em claro contra-senso
de análise, Neteo, a partir do entendimento de que “a poesia pósmoderna está fundada num princípio de exclusão”, onde a exclusão
não ocorre “apenas por sua linguagem rarefeita ou galvanizada
(...) mas principalmente por representar uma especialização muito
intransigente do gosto”, vai polemizar sobre a poética waldiana. Sua
crítica reside principalmente no fato de que a poesia em Waldo Motta
está a serviço dos seus interesses pessoais e grupais, sendo moldada
de acordo com “as suas opções existenciais”, onde
em uma grande confusão de símbolos, operando
rudimentos de culturas tão díspares quanto a afro-brasileira
e a hebraica, entre outras, faz uma leitura homossexual da
bíblia. Atualizar algumas passagens dos textos sagrados,
numa tentativa desesperada de dar legitimidade sacra
à sua preferência erótica é pretexto para um exercício
escatológico gratuito. Indignado pelo fato de na cultura
ocidental o homossexualismo ter passado como o amor
que não ousa dizer o nome, ele transforma os seus poemas
numa girândola de palavrões. A sua agressividade lexical
está aliada a uma visão esotérico-apocalíptica que nos faz
corar, não pelos termos chulos, mas pela ingenuidade do
autor.78
78
76
ANTELO, op. cit., p. 33.
77
Idem, p. 34.
NETEO, op. cit., § 9. O autor continua parágrafos à frente: “Bundo é um livro monotonamente exibicionista em que o autor vê tudo pelo
prisma do amor masculino. É obra para circular entre pares, simpatizantes e
interessados, em que o autor confunde projeto político de vida com poesia.
[...] Embora o autor consiga ser o que escreve, o que escreve não consegue
ser poesia. [...] Na grande maioria dos poemas, para agravar, a transgressão
buscada por Valdo Motta não consegue passar de agressão, fruto da pior de
todas as pragas: a intransigência”. Se Neteo errou limitando sua análise a
uma leitura exclusivista do tema relegando ao segundo plano o valor literário
da obra, penso que a classificação por ele dada de “poesia da exclusão” para
as obras de cunho homoerótico possa ser utilizado para pensarmos que com
a ascensão e legitimação a olhos vistos na literatura brasileira hoje de autores
342 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Embora diga que sua postura enquanto crítico não é preconceituosa,
seu texto assume claramente um tom homofóbico, pois, para
embasar ainda mais seus argumentos, destila palavras contra o poeta
Antônio Cícero e ironicamente acha “significativo” de que Bundo e
Guardar (livro de Cícero) “sejam apresentados, respectivamente,
por José Celso Martinez Correia e Silviano Santiago”. Sem entrar
no mérito da segregação intelectual, penso que o erro maior
de Neteo foi pensar pejorativamente a poética waldiana como
uma doutrina “esotérico-apocalíptica” de cunho estritamente
engajado. Como bem definiu Deny Gomes, sua poesia de modo
algum se “erige como detentora do monopólio do sofrimento
humano nem sacraliza como agrupamento corporativista
intocável”79. Concordo com Iumna quando propõem que isto,
que a Neteo soa como um engajamento stricto sensu, “ao invés
de denunciar os ardis da metafísica e do idealismo integra um
espécie de metafísica homossexual produzida nas bárbaras
condições do antagonismo social brasileiro, hoje acentuadas pela
desintegração globalizada” 80, onde para o poeta resta apenas a
poesia como “meio de se vingar da experiência da desagregação,
inclusive das marcas mais opressivas do cotidiano, cuja crônica
ele a faz em plano estético distanciado e impessoal” 81.
Também nesta equação de divisão do mérito entre a própria
poesia do Bundo e sua crítica, acrescente-se a produção narrativa
do autor contida no prefácio ao Bundo e no polêmico ensaio
“Enrabando o capetinha ou o dia em que Eros se fodeu”
como Glauco Mattoso, Antônio Cícero e Waldo Motta, a mulher que antes
sofrera o abandono literário por conta de uma cultura falocêntrica tende a
permanecer à margem ainda por mais algum tempo. Neste sentido a obra de
Waldo é reveladora, pois o feminino é algo praticamente inexistente. Em sua
doutrina da gnose anal escatológica e apocalíptica a mulher, quando muito,
“é um homem ao avesso” que “Amorosamente se destroem/ e geram frutos
perecíveis”. Percebam que a própria natureza feminina da procriação vai de
encontro à visão apocalíptica almejada pelo poeta. A mulher não mais intermedeia, a relação é direta entre Pai e Filho, pois elas “Destroem a figueira
sagrada/ e depredam a vinha santa/ em sua feroz concupiscência/ devastam
o pomar celestial”.
81
79
GOMES, op. cit., p. 102.
80
SIMON, op. cit. p. 90.
Idem, p. 72.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 343
CLIPE
publicado em 2000 no livro Mais poesia hoje82. No primeiro,
Waldo se apresenta ao grande público, fazendo um breve histórico
de sua formação e deixando no ar algumas dicas dos interstícios de
sua poética. No segundo, Waldo vai teorizar o que foi pretendido em
Bundo. E é neste sentido que penso que propôs para si um grande
problema: o de como dar continuidade ao projeto poético iniciado
em Bundo sem limitar sua expressão poética a um tema, tornando-a
enfadonha e repetitiva. Desde a publicação de Bundo até hoje vão-se
mais de dez anos de um ostracismo poético83 apenas interrompido
pelo Recanto que está longe de representar uma continuidade à
doutrina poética pretendida e anunciada como verdade. Esperamos
que este tempo seja o da maturação das folhas em gavetas fechadas
– tão benéfico a qualquer escrita – e não o do falecimento poético
advindo da ascensão da persona literária, pois como sabemos: a vida
passa, a obra fica.
REFERÊNCIAS
ANTELO, Raul. “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição
moderna”. In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia
Matos e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 27-45.
GOMES, Deny. “Prefácio”. In.: MOTTA, Valdo. Eis o homem:
poemas selecionados (1980-84) Coleção Letras Capixabas. Vol. 30.
Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - Universidade Federal
do Espírito Santo, 1987, pp. 99-103.
MORICONI, Ítalo. “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia
brasileira” In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos
e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 11-26.
MOTTA, Valdo. “Enrabando o capetinha ou o dia em que Eros
se fodeu”. In. Mais poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76.
Cf. MOTTA, Valdo. “Enrabando o capetinha ou o dia em que
Eros se fodeu”. In. Mais poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76.
82
Recentemente foi apresentada ao Mestrado de Estudos Literários
da UFES dissertação sobre a obra poética de Waldo Motta, onde faz-se menção ao livro ainda não publicado chamado Terra sem mal. Cf. BERÇACO,
Ériton Bernardes. Exus, cus e ecos: a poética erótico-sagrada de Waldo Motta.
– 2008.
83
344 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Coletânea reunindo poemas
dos livros Waw e Bundo. Organização: Iumna Maria Simon e Berta
Waldman. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
MOTTA, Valdo. Eis o homem: poemas selecionados 1980/1984.
Coletânea. Vitória-ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida Universidade Federal do Espírito Santo, 1987.
MOTTA, Valdo. Transpaixão: coletânea. Vitória: Kabundo, 1999.
MOTTA, Valdo. Recanto - poema das 7 letras. Vitória: Ímã, 2002.
NETEO, Miguel Sanches. “Poesia e as subculturas do gosto”. Em
http://www.revistaagulha.com.br/msanches13.html. Acessado em
03/10/2006.
NEVES, Reinaldo Santos. Mapa da Literatura Brasileira feita no
Espírito Santo. Disponível em http://www.estacaocapixaba.com.br/
texto/texto.php?id=223 , acessado em 21/10/2006.
RIBEIRO, Francisco Aurelio. A modernidade nas letras capixabas.
Vitória: UFES – SPDC/FCAA, 1993.
RIBEIRO, Francisco Aurelio. Literatura do Espírito Santo: uma
marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996.
SIMON, Iumna Maria. “Revelação e desencanto – os dois livros
de Valdo Motta”. In.: Revista Praga (estudos marxistas). São Paulo:
Hucitec, n. 7, p. 69-99, março 1999.
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários &
retratos. 2ª ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
Entrevista
“Um crítico na periferia do capitalismo - Entrevista com o ensaísta
e crítico literário Roberto Schwarz”. Por Luiz Henrique Lopes
dos Santos e Mariluce Moura. In.: http://www.universia.com.br/
materia/materia.jsp?materia=3668. Acessado em 03/10/2006.
Site
http://www.waldomotta.cjb.net/
Recebido em 04/08/2008
Aprovado em 14/09/2008
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 345
346 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
TRADUÇÕES
OUVERTURE LA VIE EN CLOSE
em latim
“porta” se diz “janua”
e “janela” se diz “fenestra”
a palavra “fenestra”
não veio para o português
mas veio o diminutivo de “janua”,
“januela”, “portinha”,
que deu nossa “janela”
“fenestra” veio
mas não como esse ponto da casa
que olha o mundo lá fora,
de “fenestra”, veio “fresta”,
o que é coisa bem diversa
já em inglês
“janela” se diz “window”
porque por ela entra
o vento (“wind”) frio do norte
a menos que a fechemos
como quem abre
o grande dicionário etimológico
dos espaços interiores
(Paulo Leminski)
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• 347
TRADUÇÕES
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Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
ALFRED DE SAINT-QUENTIN
Tradução e notas de Álvaro Faleiros (USP)
Um dos primeiros registros da literatura da Guiana de
que se tem conhecimento é a coletânea de contos e fábulas
populares de Alfred de Saint-Quentin. Sabe-se muito pouco
sobre o poeta além do fato de que trabalhava em 1837 para o
governo da Guiana e que publicou sua Introdução à história de
Caiena em 1862. Este é um dos poucos poemas dele de que se
tem conhecimento e pode ser interpretado como um canto de
adeus de um escravo negro enviado à América. Na tradução, o
tom eloqüente do poema foi um pouco atenuado pela escolha
da terceira pessoa do singular ao invés da segunda do plural,
muito mais usual em francês.
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 349
TRADUÇÕES
AMIE, ADIEU
Je pars, le navire s’en va,
Amie, adieu !
Laissez-moi baiser vos mains et vos cheveux !
Amie, adieu !
Quand je serai là-bas vous songerez à ma peine !
Ne m’oubliez pas, n’oubliez pas votre ami !
Comment pourai-je vivre si loin de vous ?
Amie, adieu ! Hélas ! adieu !
Rappelez-vous, rappelez-vous notre rencontre,
Amie, adieu !
Vous m’avez promis de ne jamais oublier.
Amie, adieu !
Dès que je vous vis mon coeur s’enflamma,
Je demeurai immobile les yeux fixés sur vous ;
Oh ! que vous étiez belle ! Vos yeux étincelaient !
Amie, adieu ! Hélas ! adieu !
Je vous parlai, j’entendis votre choix,
Amie, adieu !
Et nous nous aimâmes.
Amie, adieu !
C’en est fait ! maintenant je pars !
Vous gémissez, vos larmes coulent,
Mais bientôt viendra l’oubli !
Amie, adieu ! Hélas ! adieu !
350 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
AMIGA, ADEUS !
Parto, o navio se vai,
Amiga, adeus!
Deixe-me beijar suas mãos e cabelos!
Amiga, adeus!
Quando eu já estiver lá pense em meu tormento!
Não esqueça de mim, não olvide seu amigo!
Como poderei viver tão longe assim!
Amiga, adeus! Que pena! adeus!
Lembra, lembra do nosso encontro,
Amiga, adeus!
Prometeu nunca me esquecer.
Amiga, adeus!
No instante em que lhe vi meu peito se inflamou,
Fiquei imóvel com os olhos fixos a lhe encarar;
Oh! como você é bela! Seus olhos resplandeciam!
Amiga, adeus! Que pena! adeus!
Eu lhe falava, escutava sua voz,
Amiga, adeus!
E nós nos amamos.
Amiga, adeus!
Está feito! Agora parto!
Você lamenta, as lágrimas escorrem,
Mais em breve virá o esquecimento!
Amiga, adeus! Que pena! adeus!
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 351
TRADUÇÕES
GEORGE POPESCU
Tradução e notas de Marco Lucchesi (UFRJ)
Núpcias de Cadmo e Harmonia
Parte essencial da história da literatura repousa na
poética do encontro. Tramada pelos anjos, que movem as
letras do livro do mundo, os anjos da cabala, tão abissais em
seus mistérios.
Não tenho como provar o que digo. Mas sei que existe
uma verdade imponderável.
Abismo de palavras em branca superfície. Espaço
apontado por Lucian Blaga como sendo a imagem de um
saber que cria camadas mais profundas de menos-saber
(minuscunoaštere).
Tive um desses encontros que me levaram ao impacto
da língua romena. George Popescu foi o meu Virgílio. Poeta de
águas claras. Metade anjo. Metade abismo.
A Romênia era e continua sendo para mim uma
transcendência no campo da latinidade. E ela saltava dos
olhos de George. Olhos difíceis de alcançar, os seus, como
que atravessados por uma espessa neblina, mensageiros de
verdades esquecidas, como os espelhos de Jean Cocteau.
George é um poeta habitado pelo futuro. Futuro mais
longo que o passado. Tal como o destino da literatura romena.
Cidade de Craiova. Estrada Brestei, 59.
Conversas infindáveis no calor da biblioteca. Uma
floresta de poetas e palavras. Densas madrugadas. Cigarros. E
charutos. Para espantar os vapores frios da noite. George me
deu uma língua e uma constelação no céu de minhas buscas.
352 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
Essa língua, tão cheia de claro-escuros. E cujo léxico
impressiona.
Ouço a polifonia de dácios, getas, gregos e romanos.
A fronteira da latinidade, tão viva e porosa, com seu acervo
de palavras turcas e francesas. O mundo eslavo, formando
um continuum admirável com o latino, apressa as núpcias de
Cadmo e Harmonia.
Anoto três formas de dizer pôr-do-sol e seus possíveis
devaneios:
Asfintit. Como que o Sol tocasse em pleno ocaso o Mar
Negro e liberasse um vapor imenso, através do f e do ţ, tornado
agudo pelos dois i.
Amurg. Sinto como que uma grande desolação: a
consoante final tão abrupta e esse u tão escuro. Um resto de
luz se perde à medida que avanço palavra adentro.
Apus. A sensação de um anoitecer precipitado, que
começa no u e se prolonga nas horas mortas do s, que
pronuncio como se fosse uma semibreve.
Seja como for, nosso diálogo noturno, eminentemente
noturno, irava em torno do labirinto da palavra e do fio de
ouro da etimologia: Lauras, Verônicas, Ariadnes. Mas era a
elena de Pierre Jean Jouve aquela que parecia melhor atender à
síntese do feminino e seus arcanos.
Por que nossas latinidades iam tão esquecidas, diante de
tantas convergências?
O romeno e o português são as flores últimas do Lácio.
Extremos que coincidem (como vertentes marginais) em
relação a um possível centro de latinidade. E todavia essas
flores parecem de todo solitárias.
Talvez a solução estivesse nas mãos dos poetas, em seu
imaginário inquieto e gentil.
Um passaporte para toda a latinidade.
Assim, passavam pela biblioteca – como os reisfantasmas diante de um Macbeth siderado – os maiores
poetas da Romênia. Macedonski e sua melodia, tão alta
como as torres-agulha de Istambul, além daquelas coloridas
Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo
• 353
TRADUÇÕES
e aceboladas de Moscou. O verbo iridescente de Ion Barbu,
criador inigualável, e a liberdade, brilhando a cada estrofe. As
remissões de Arhgezi, com seu modo firme, delicado, irregular.
Bacovia e sua tremenda melancolia, preso aos brancos e aos
cinzas. A impertinência de Geo Bogza com o seu belo circo
semântico. Gherassim Luca e o golpe de estado no seio da
linguagem. Além da luminosa poesia de Blaga, a partir do
cemitério romano, das aldeias e do espaço miorítico.
Este foi o começo de uma amizade profunda e a
descoberta de uma poesia atormentada e bela, que habita o
coração da baixa modernidade. Da obra extensa e variada de
George Popescu, apresentamos esta breve antologia, toda ela
constituída de poemas inéditos em português.
Itacoatiara, dezembro de 2008.
MARGINEA SE REVOLTĂ
nu eu sunt alesul
şi
nu tu eşti cel aşteptat
aici
în acolada în care
cad duminica
îngeri fragezi
cu aripi de maci
tremură limfa
se ascute
marginea
se revoltă molia
infinitei cânepe cereşti
jocul de-a căutatul de-ne-găsit
un relief accidentat
354 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
A MARGEM SE REBELA
eu não sou o escolhido
e
tu não és o esperado
aqui
neste parênteses onde
caem no domingo
anjos delicados
com asas de papoulas
treme a linfa
aguça-se
a margem
rebela-se a traça
do interminável cânhamo celeste
o jogo de buscar não encontrável
relevo acidentado
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• 355
TRADUÇÕES
NUMAI FOAMEA ÎNFLOREŞTE
Locuiesc singur
purgatoriul famelic
încă setos şi încă trădat:
cu braţele mele am ucis
trandafirul bolnav de speranţe
iluzia nu mă priveşte
speranţa are picioare scurte
numai foamea înfloreşte
în ochii copilului abandonat
cu giacomino cerşesc fragilitatea
acestei luni hazlii
gemând de caisele
unei copilării de prisos
356 •
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CONTEXTO
SOMENTE A FOME FLORESCE
habito solitário
o purgatório famélico
inda com sede e traído
matei com meus braços
a rosa doente de esperanças
a ilusão não me concerne
a esperança tem pequenos pés
somente a fome floresce
nos olhos do menino abandonado
com giacomino mendigo a fragilidade
dessa lua burlesca
gemendo por causa dos pêssegos
de uma infância inútil
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• 357
TRADUÇÕES
ADORMIREA SEMNULUI
iarba se ridică
din nisipul spaimei
şi fuge prin ghimpii
unei inocenţe fără hotar
apuc râul de pletoasele-i sălcii
şi-l mut mai aproape
de numele tău
către destinul unei pietre uitate
numele meu pleacă
fluierând prin trestirişul
acestei atopice favele a
lui marco:
semnul adoarme
sub secara ochilor tăi
de copil
abandonat de îngerul spaimei
358 •
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CONTEXTO
O ADORMECER DO SINAL
ergue-se a relva
do areal do medo
e foge por entre espinhos
de uma inocência que não tem fim
apanho o rio pela crina dos salgueiros
e o levo às cercanias
de teu nome
para um destino de pedra esquecida
meu nome segue
assoviando pelo canavial
desta atópica favela
de marco:
o sinal vai dormir
sob o centeio de teus olhos
de menino
abandonado pelo anjo assustador
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• 359
TRADUÇÕES
ARDEREA DE UNGHII
pe frunzele îngheţate ale serii
nu se mai găseau decât braţe învinse
melci sterpi şi coji de îngeri
în cenuşa ierbii duşmane
o stea pustia în ochii
de tablă ai străinului
secera verii bolnave
stingea remediul
unui prunc sfânt
în tăişul albastru
memoria îngâna rugina amintirii
eram mort şi nu ştiam
piatra de pe frunte scria
pe cerul vecin
o hieroglifă de adio
360 •
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CONTEXTO
UNHAS EM CHAMAS
nas folhas geladas da noite
já não se encontram mais que braços vencidos
estéreis caracóis e cascas de anjos
nas cinzas de inimiga relva
uma estrela solitária nos olhos
de lata do estrangeiro
a foice de um verão enfermo
pôs fim ao remédio
de um sagrado feto
no corte azul
a memória murmurava a ferrugem da lembrança
eu estava morto sem saber
a pedra junto à fronte ditava
no céu próximo
um hieróglifo de adeus
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• 361
TRADUÇÕES
SĂRBĂTOAREA DEZASTRULUI
ca şi cum gura ta
nu mi-ar cunoaşte pasul
moare ora promisă
în dinţii unui mut
vinul aşteaptă gura pelegrinului
însetat de boală
iarba renaşte în sicriul gol
staulul huruie
o carte amuţeşte în mâinile
dansatoarei uitate
pe un câmp între
anii ştirbi ai unei tinereţi netimbrate
hoţul de ieri
vinde zile furate
unui calendar însângerat
ceea ce vezi e
doar sărbătoarea dezastrului
362 •
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CONTEXTO
A FESTA DO DESASTRE
como se tua boca
não soubesse meus passos
a hora prometida morre
nos dentes de um mudo
o vinho aguarda a boca do peregrino
sequioso de doença
a relva renasce no féretro vazio
o presépio ressoa
um livro emudece nas mãos
da dançarina sem memória
num campo de
tempos sem dentes de uma juventude a que faltaram selos
o ladrão da véspera
vende os dias roubados
de um calendário em sangue
o que vês é
apenas a festa do desastre
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• 363
TRADUÇÕES
INSIDIOSUL PACT CU IARBA DUMINICALĂ
e mult fum în micul bar
prin vitrină îngeri noi
mimează eternitatea
prin cartoane în care zumzăie
efemerul în reclame arse de ger
la măsuţa din colţ
o rochie tânără îmbracă tăcerea
adolescentei moarte de ieri
dinspre suburbii veselia
săracilor salută pomana degeaba
cineva poartă spre gura
fragilei libertăţi
paharul greu al spaimei
surâsul tău înfloreşte
lângă petala ratată
a trădării smulse
unui pact dureros
cu iarba duminicală
asediind gelatina ce ne inundă
364 •
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CONTEXTO
O PACTO INSIDIOSO COM A RELVA DOMINICAL
muita fumaça no pequeno bar
na vitrine novos anjos
imitam a eternidade
nos cartazes por onde zune
o efêmero em propagandas queimadas de gelo
na mesinha do canto
um jovem paletó veste o silêncio
da adolescente que ontem morreu
dos subúrbios a alegria
dos pobres saúda o gesto que faltou
alguém leva à boca
da frágil liberdade
o pesado copo do medo
teu sorriso floresce
junto à pétala caída
da traição separada
por um sofrido pacto
com a relva de domingo
no cerco da gelatina que nos cobre
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• 365
TRADUÇÕES
FERICIREA DE DUPĂ MOARTE
o cafea fără lacrimi
aproape
imposibil de băut în săracul bar din Assis:
femeia de la masa vecină
(toată azurie: îmbrăcată în cerul
care
prin ochiul sordid al ferestrei
îmi face cu mâna)
îmi spune:
n-am trăit mult - tu tremuri
în ciobul unei amintiri nepoftite dar bucuria nu m-a ocolit
ascult din locul meu clandestin
cum Brazilia aruncă spre margini
prelungi fâşii de suspine
ce i-au strivit destinul
hei, n-am murit dacă asta-ai crezut
deşi
acum
trăiesc
fericirea de după moarte
zice
şi nu ştiu de ce
în rochia aceea a ei numai cer
am regăsit funinginea
unei Veneţii divorţate
de porumbeii cărora nici eternitatea
nu le-a fost de folos
366 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
A FELICIDADE DEPOIS DA MORTE
um café sem lágrimas quase
impossível de beber –
no pobre bar de Assis:
a mulher da mesa ao lado
(toda de azul: vestida de céu
que
pelo olho sórdido da janela
me acena)
me diz
não vivi muito – e tremes
no caco de uma lembrança não convocada –
mas a felicidade nunca me faltou
ouço de meu lugar clandestino
como o Brasil manda para as margens
tão prolongadas faixas de suspiros
que o destino esmagou
ah, não morri se tal supuseste
mas
agora
vivo
a felicidade depois da morte
diz
e não sei por que
naquele vestido de céu absoluto
encontrei a fuligem
de uma Veneza divorciada
dos pombos aos quais sequer a eternidade
prestou socorro
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• 367
TRADUÇÕES
Venezia sterilă şi aspră
din visul cu tine
şi cuţitul alb în carnea
insomniei fără de leac
368 •
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CONTEXTO
Veneza áspera e estéril
que sonhei contigo
e o branco punhal na carne
da insônia sem remédio
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• 369
TRADUÇÕES
SEDUC SÂNGELE HOMERIC
Les actions du poète ne sont que la consequence des énigmes de la
poésie. (René Char)
pe cassandra n-a luat-o nimeni de mână
(la ţărm răsunau cântări de cheflii
prea trişti ca să privească luna)
maci negri fumegau în covata verii
ce sta să vină: examen al frunzei
în zăpada azură
pe dosul paginii se mai văd
intraductibile plăgile poetului
pensionat de zeii potrivnici
orbit de asfaltul care-mi seduce
peticul de linişte prelins
în estuarul unui vers trecut
de ghilotina prezentului năprasnic
seduc sângele homeric
de prin tavernele arse de spaimă
şi cine-a mai stat pe pietrele arse
ale poveştii ce-a înghiţit
mari hălci din profeţia
acelei moarte eterne?
în paharul străinului
se otrăveşte vinul în aşteptare
370 •
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CONTEXTO
ESTOU SEDUZINDO O SANGUE HOMÉRICO
Les actions du poète ne sont que la conséquence des énigmes de la
poésie. (René Char)
ninguém tomou Cassandra pelo braço
(ecoavam junto à margem canções de bêbados
mais tristes para ver a lua)
negras papoulas deitam fumo nos ninhos do verão
que está para chegar: a prova das folhas
junto à neve azul
no verso da página ainda se vêem
as intraduzíveis chagas do poeta
aposentado pelos férreos deuses
cego pelo asfalto que me seduz
esboço de silêncio orvalhado
no estuário de um verso que passou
na guilhotina do presente em tempestade
estou seduzindo o sangue homérico
numa taberna crestada de medo
quem mais passou nas pedras ardentes
da fábula que engoliu
grandes partes da profecia
daquela eterna morta?
no copo do forasteiro
o vinho se envenena na espera
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• 371
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras •
CONTEXTO
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA
CONTEXTO
1. Ao enviar o artigo, o autor deve fornecer: a) nome completo;
b) endereço; c) telefones; d) formação acadêmica; e) instituição
em que trabalha; f) principais publicações.
2. São aceitos textos redigidos em português, inglês, francês,
espanhol ou italiano.
3. Apresentar o texto na seguinte seqüência: título do artigo,
nome(s) do(s) autor(es), filiação institucional, resumo na língua
do artigo e em italiano, francês, espanhol ou inglês, palavraschave em português e na outra língua do resumo apresentado,
texto, referências e anexos.
4. Digitar o texto em Word for Windows (edição 6.0 ou
superior), fonte Times New Roman, corpo 12, espaçamento
simples entre linhas e parágrafos, em modo justificado. Entre
partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas,
ilustrações etc., utilizar espaço duplo
5. Formato de papel A4, com 3 cm nas margens esquerda
e superior e 2 cm nas margens direita e inferior. Utilizar
paragrafação automática, com adentramento.
6. Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da
primeira página com fonte Times New Roman, tamanho 12,
em formato negrito, todas as letras maiúsculas.
7. O texto deve ter entre 12 a 24 laudas, não ultrapassando a 8
mil caracteres, incluindo os anexos.
8. Usar normas de citação da ABNT.
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• 373
9. Os resumos devem ser antecedidos pela expressão RESUMO
em maiúsculas, seguida de dois pontos. O texto dos resumos
segue na mesma linha e deve ficar entre 100 e 150 palavras.
Digitá-lo em fonte Times New Roman, corpo 11.
10. As palavras-chave devem ser antecedidas pela expressão
PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, seguida de dois pontos.
Utilizar entre três e cinco palavras-chave com fonte Times
New Roman, tamanho 11, com inicial em maiúscula, separadas
por ponto.
11. Digitar os títulos de seções com fonte Times New Roman,
tamanho 12, em negrito e duas linhas após o último parágrafo
da seção anterior. Apenas a primeira letra de cada subtítulo
deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes
próprios.
12. As referências no texto devem ser indexadas pelo sistema
autor-data da ABNT: (SILVA, 2005, p. 36). Quando o
sobrenome vier fora dos parênteses, deve-se utilizar apenas a
primeira letra em maiúscula.
13. Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e
nunca em itálico. Use itálico para termos estrangeiros.
14. Exemplos de corpora analisados devem vir no padrão de
citação.
15. Caso seja necessária transcrição fonética, o autor deve
enviar a fonte utilizada juntamente com seu artigo, a fim de
que a mesma possa ser instalada para editoração do artigo.
16. As notas de rodapé, só as essencialmente necessárias,
devem aparecer em seqüência numérica, com fonte corpo 10.
Se houver nota no título, marcar com asterisco (*). Não se deve
374 •
Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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CONTEXTO
usar nota para citar referência.
17. Tabelas, quadros, ilustrações (desenhos, gráficos etc.)
devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Eles
deverão ser devidamente escaneados e inseridos no texto. Os
títulos de figuras devem ser digitados com fonte Times New
Roman, tamanho 12, em formato normal, centralizado. Tabelas,
quadros, ilustrações devem ser identificados por legendas.
18. Os anexos devem ser entregues prontos para a editoração
eletrônica. Para anexos que se constituem de textos já
publicados, o autor deve incluir referência bibliográfica
completa.
19. As referências devem ser antecedidas da expressão
Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida
na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem
seguir as normas vigentes da ABNT. Os autores devem ser
citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço
entre as referências e sem adentramento. Ordene referências
de mesmo autor em ordem decrescente.
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• 375
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da
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do
Espírito Santo
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