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CONTEXTO Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal do Espírito Santo Editora da Universidade Federal do Espírito Santo Av.Fernando Ferrari, 514 - CEP 29075-910 - Goiabeiras - Vitória - ES Tel: (27) 3335 7852 [email protected] - [email protected] Universidade Federal do Espírito Santo Reitor: Rubens Sérgio Rasseli Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação Pró-reitor: Francisco Guilherme Emmerich Centro de Ciências Humanas e Naturais Diretor: Edebrande Cavalieri Departamento de Línguas e Letras Chefe: Luís Eustáquio Soares Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenador: Marcelo Paiva de Souza Conselho da Edufes: Cleonara Maria Schwartz, Fausto Edmundo Lima Pereira, João Luiz Calmon Nogueira da Gama, José Armínio Ferreira, Juçara Gorski Brittes, Maria Cristina C. Leandro Pereira, Marcio Paulo Czepack, Sandra Soares Della Fonte, Waldir Cintra de Jesus Junior e Wilberth Claython Ferreira Salgueiro Conselho editorial (PPGL / Ufes) Alexandre Moraes, Deneval Siqueira, Jorge Nascimento, Júlia Almeida, Lino Machado, Luís Eustáquio Soares, Marcelo Paiva de Souza, Maria Fernanda Oliveira, Paulo Roberto Sodré, Pedro Bisch, Raimundo Carvalho, Reinaldo Santos Neves, Sérgio da Fonseca Amaral, Wilberth Salgueiro Conselho consultivo Bella Josef (UFRJ), Eneida Maria de Souza (UFMG), Flávio Carneiro (Uerj), Evando Nascimento (UFJF), Gilda da Conceição Santos (UFRJ), Italo Moriconi (Uerj), Jaime Ginzburg (USP), José Américo de Miranda Barros (UFMG), José Luiz Fiorin (USP), Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP), Márgara Averbach (Univ. Buenos Aires), Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC), Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ), Paolo Marcello Spedicato (Universita degli Studi di Padova, UP, Itália), Ronaldo Lima Lins (UFRJ), Sérgio Luiz Prado Bellei (UFSC) Editores: Marcelo Paiva de Souza, Raimundo Carvalho e Wilberth Salgueiro Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal do Espírito Santo CONTEXTO Dossiê Machado de Assis & Guimarães Rosa Editora da Ufes Vitória - 2009 Projeto gráfico: Denise R. Pimenta Editoração eletrônica (miolo): Denise R. Pimenta Projeto gráfico e arte (capa): Denise R. Pimenta Catalogação: Ana Maria de Matos CRB 12/ES - 425 Revisão: os autores Revista Contexto Programa de Pós-Graduação em Letras Departamento de Línguas e Letras Centro de Ciências Humanas e Naturais Telefone: (27) 33352515 site: www.prppg.ufes.br/ppgl Contexto / Universidade Federal do Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em Letras: Mestrado em Letras – N. 15 e 16 (2008/2009) – Vitória: Ufes, PPGL-MEL, 1987376 p.; 21,5 cm. Anual ISSN 1519-0544 1. Literatura brasileira contemporânea – Crítica – Periódicos. 2. Crítica literária – Periódicos. 3. Literatura e Filosofia – Periódicos. I. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Departamento de Línguas e Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado em Letras. S U M Á R I O Editorial 9 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS 11 Paul Dixon Manobras do inverossímil: García Márquez e Machado de Assis 13 Marília Rothier Cardoso Machado, narrador-crítico 25 Lenivaldo Gomes de Almeida Esaú e Jacó e a transformação dos valores e costumes na época do encilhamento 37 Sérgio da Fonseca Amaral O corte e a corte do Machado 49 Ricardo Ramos Costa A galeria machadiana 63 Ruy Perini Loucura e paixão em Machado de Assis 79 Jorge Evandro Lemos Ribeiro “A cartomante” no plano do jogo indiciário 95 Carla de Paula Santos E mais uma vez ironia e dissimulação: transitando pelo teatro machadiano – um olhar sobre “As forcas caudinas” 108 Maria Helena Laureano A relação narrador e leitor em Dom Casmurro 120 Vitor Cei Santos Brás Cubas e a solidariedade do aborrecimento humano 136 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA 149 Alexandre Moraes Terceiras margens, travessias misturadas (Guimarães Rosa e Nelson Pereira dos Santos: família e abandono em dois olhares) 151 Wilberth Salgueiro Grande sertão: veredas: romance e ensaio – par em par 163 Andréia Delmaschio As razões do jogo em “Duelo” 171 Erlon Jose Paschoal Uma recriação fiel: diálogos entre o autor e o seu tradutor 184 Paulo Muniz da Silva A micrologia do cotidiano em Tutaméia: terceiras estórias 192 Sara Novaes Rodrigues Em cárceres de preenchido silêncio, vozes entrecruzadas: um estudo do conto “Quadrinho de estória” de Guimarães Rosa 200 Virgínia Cœli Passos de Albuquerque O sertão intertextual de Guimarães Rosa 207 Carolina Paganine O neobarroco em Primeiras estórias de Guimarães Rosa 225 Marcelo Luiz Cesar Mozzer Presença da Coluna Prestes nas veredas do Grande Sertão 246 CLIPE 261 Beny Ribeiro dos Santos Bernardo Carvalho: entre tramas e trampas 263 Rafael Campos Quevedo Na fronteira das palavras: a teoria de Bakhtin e a poética de Ferreira Gullar como respostas ao problema do formalismo 275 Adolfo Miranda Oleare A múmia 290 Alessandra Fabrícia Conde da Silva Um recado à prima hermenêutica em Um assovio de Qorpo-Santo 302 Rafaela Scardino Cartografias instáveis: percursos pela cidade de No país das últimas coisas, de Paul Auster 317 Angela Regina Binda da Silva A agonia e o despertar de uma cidade em A peste, de Albert Camus 327 Rodrigo Leite Caldeira Waldo Motta: poesia, crítica e problema 334 TRADUÇÕES 347 Alfred de Saint-Quentin / Álvaro Faleiros 349 George Popescu / Marco Lucchesi 352 Normas para publicação na revista Contexto 373 8• Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO EDITORIAL Com dez artigos sobre a obra de Machado de Assis e nove sobre a obra de Guimarães Rosa, esta Contexto vem contribuir para a vastíssima fortuna crítica de ambos os escritores, cânones de nossa cultura. Contos, peças, romances, crônicas e cartas de Machado são estudados, em abordagens teóricas, intersemióticas e comparatistas. No caso de Rosa, deu-se ênfase à análise de contos, novelas e de Grande sertão: veredas, contando ainda com reflexões envolvendo o ato tradutório e a relação entre cinema e literatura. Os textos sobre os romancistas Albert Camus, Bernardo Carvalho e Paul Auster, os poetas Ferreira Gullar e Waldo Motta, o filósofo Nietzsche e o dramaturgo Qorpo-Santo conferem ao volume um arco prismático instigante, provocando, sem dúvida, a curiosidade do leitor não domesticado. A tradução de poemas do guianense Alfred de SaintQuentin e do romeno George Popescu revitaliza, mais ainda, a vontade de saber, que, imaginamos, guia mentes e corações que aqui aportaram. Para quem tem esta revista, qualquer revista, sob os olhos, pode parecer que a sua feitura, silenciosa, acontece num mar de rosas, pura calmaria de bastidores. Que pareça. Importa, agora, o presente, que é poder – porque queremos – atravessar todas as tempestades suspensos num livro. Sem cera nos ouvidos, nem venda nos olhos. Sem tempo ruim, nem contexto adverso. Ótima leitura. Os editores. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 9 10 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida. (Esaú e Jacó) Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 11 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS 12 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO MANOBRAS DO INVEROSSÍMIL: GARCÍA MÁRQUEZ E MACHADO DE ASSIS Paul Dixon Purdue University, USA Resumo: Com o conto “Adão e Eva”, Machado antecipa o desfecho inquietante do grande romance Cien años de soledad de Gabriel García Márquez. Nos dois casos há um espaço parecido a um ventre, que abriga um embrião metafórico, uma substância cuja reprodução é projetada no futuro. No entanto, também nos dois casos há uma espécie de “aborto” que evita para sempre tal reprodução. Constata-se um equívoco enorme, devido ao fato de que, fora daquele espaço encerrado do relato, a reprodução parece ter-se efetuado. Enquanto García Márquez não entra na questão da recepção desse discurso contraditório, Machado, num nível extradiegético, explicita uma leitura do mesmo, representando um público primeiro bem confuso e, depois, consciente de ter sido “logrado” pelo narrador. De uma forma curiosa e anacrônica, o conto de Machado constitui uma leitura “póstuma” do enigmático romance colombiano. Palavras-chave: Machado de Assis. García Márquez. “Adão e Eva”. Cien años de soledad. Abstract: With the short story “Adam and Eve,” Machado de Assis anticipates the disorienting dénouement of the great novel Cien años de soledad by Gabriel García Márquez. In both texts, there is a womb-like space, nurturing a metaphoric embryo, a substance whose reproduction is projected in the future. However, in both cases there is a sort of “abortion” which destroys all possibility of such a reproduction. This situation creates an enormous confusion, when it is realized that outside that enclosed space of the immediate narrative, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 13 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS that reproduction appears to have taken place. While García Márquez does not enter into the question of the reception of this confusing discourse, Machado does. On an extradiegetic level, the short story gives a reading, representing first an audience that is confused and later, one that understands it has been duped by the narrator. In a curious and anachronistic way, Machado’s story offers a “posthumous” reading of the enigmatic Colombian novel. Keywords: Machado de Assis. García Márquez. “Adão e Eva”. Cien años de soledad. Em termos estéticos, o desfecho de uma narrativa desempenha uma função de grande importância, pois cria no receptor um sentido de finalidade, a impressão de que as expectativas criadas pelo enredo foram cumpridas – enfim, a satisfação de uma experiência válida. O que Barbara Herrnstein Smith afirma sobre a importância do encerramento na poesia, aplicase igualmente a um texto narrativo: “Os recursos da conclusão muitas vezes têm seu efeito característico ao conceder ao poema uma qualidade percebida pelo leitor como uma validez notável, uma característica que o deixa com a impressão de que o enunciado tem o ‘caráter conclusivo’, a finalidade assentada de uma verdade aparentemente auto-evidente” (152; tradução minha). No catálogo dos desfechos notáveis da literatura moderna, certamente o do romance Cien años de soledad (1967) do colombiano Gabriel García Márquez deve figurar entre os mais importantes. Haveria um final mais decidido do que aquele vento, destruidor de tudo e de todos? Vários recursos conclusivos, analisados por Smith (158-95), são exemplificados no romance colombiano. A predeterminação ocorre quando o desfecho apresenta um motivo cuja expectativa foi criada no início. No começo de Cien años, Úrsula resiste à relação sexual com seu esposo (e primo) porque teme que o primeiro filho nasça com um rabo de porco. A última criança a 14 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO nascer no romance, muitas gerações depois, possui de fato um rabo de porco. O efeito de finalidade também pode ser criado por meio de estruturas paralelas. O segmento posterior, assim, parece completar o segmento inicial e dá ao texto um sentido decisivo. A história de Macondo demonstra um paralelismo simétrico, em que primeiro há um processo de fundação e expansão, e depois há declínio e desintegração. O recurso da afirmação absoluta, segundo Smith, também cria um sentido de conclusão ao “fechar” o assunto, sem lugar para dúvida ou equívoco. O romance de García Márquez tem um final altíssono, enfático e bombástico, comparável ao de uma sinfonia de Beethoven. Tanto em seu conteúdo, que anuncia uma finalidade irreversível, como em seu aspecto discursivo, onde há um tom de grandiloqüência profética, o último parágrafo do romance nos dá um remate dos mais decisivos, anunciando que “la ciudad de los espejos (o los espejismos) sería arrasada por el viento y desterrada de la memória de los hombres [... ]. [T]odo [...] era irrepetible desde siempre y para siempre, porque las estirpes condenadas a cien años de soledad no tenían uma segunda oportunidad sobre la tierra” (351). No entanto, esta linguagem supostamente definitiva se torna equívoca quando consideramos outros fatores no desfecho. Vou mostrar brevemente nesta comunicação que Cien años de soledad possui uma estrutura única em que um dénouement aparentemente forte e vociferante, por causa de fatos contraditórios e irredutivos, fica suspenso num clima de “second guessing” e confusão. Na realidade, esta é uma idéia secundária em meu argumento, já que faz parte de um trabalho meu que foi publicado há mais de vinte anos (Reversible, 89124). Meu fim principal é mostrar que mais de oitenta anos antes da publicação de Cien años de soledad, o brasileiro Machado de Assis criou um relato cujo desfecho, em termos estruturais e funcionais, é igual ao de García Márquez. Já que tais jogos narrativos fazem parte da visão estética que muitos chamam Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 15 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS de “pós-modernismo”, com minha análise do conto “Adão e Eva” vou sugerir, como outros já sugeriram examinando outros textos (Gill, Douglass, Fitz), que Machado de Assis, pelo menos em alguns aspectos, é um “pós-moderno” avant la lettre.1 Os fatores irreconciliáveis que formam o desfecho de Cien años de soledad são os seguintes: 1. Um espaço “uterino”. 2. Um “embrião” dentro deste espaço. 3. Um evento que evita, para sempre, o “nascimento” do “embrião”. 4. A existência, num espaço exterior, de uma reprodução do “embrião”. No caso de Cien años de soledad, podemos ver que a cidade de Macondo tem o aspecto de um mini-mundo. Embora haja um certo intercâmbio de personagens de outros lugares, Macondo existe num estado de isolação. Longe de criar condições infrutíferas, tal isolação parece contribuir para uma dinâmica de vitalidade. Existe uma forte criatividade e energia sexual (às vezes incestuosa) entre os personagens. Há uma abundância de chuva, calor, vegetação e vida animal. A combinação do aspecto encerrado e do aspecto dinâmico sugere que Macondo é, em termos metafóricos, um ventre. Um objeto de grande importância dentro deste espaço é o manuscrito do cigano Melquíades. O manuscrito é um “embrião” no sentido de ser um proto-discurso, cuja realização ainda não se efetuou. Em geral, o resultado de um manuscrito consiste no livro publicado. No caso particular do de Melquíades, é preciso também que o manuscrito seja decifrado, já que foi elaborado num complicado código, só descoberto por Aureliano Babilonia no final do romance. Sendo uma história do povo de Macondo, o manuscrito serve como um Brian McHale discute Cien años de soledad como exemplo do jogo de mundos paralelos ou alternativos (31-32), segundo ele recurso central da estética pós-moderna. 1 16 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO tipo de semente cujo fruto será a vida (pelo menos em termos biográficos ou históricos) dos habitantes do microcosmo. Justamente na hora em que Aureliano Babilonia começa a compreender as chaves interpretativas do hermético manuscrito, surge um “huracán bíblico”, uma força devassadora que destrói tudo, absolutamente, convertendo Macondo num “pavoroso remolino de polvo e escombros” (351). Metaforicamente, esta tempestade é um aborto, porque garante que o “embrião” do manuscrito, junto com o único homem capaz de decifrálo, sejam arrasados pelo vento, e desterrados para sempre da memória dos homens. Os três fatores acima coexistem sem problema (sem violência para a lógica narrativa) no mundo de Macondo. Mas fora de Macondo (que aliás já foi destruído) há um problema que cria perplexidade. É que em nossas mãos existe um livro, que nos detalhes mais minuciosos parece ser a tradução e a publicação do manuscrito do velho cigano. Se o germe foi apagado pela tormenta, como pode existir uma reprodução do germe? A existência do livro, junto com a destruição do manuscrito, é um impasse lógico que criou grandes desafios para os leitores profissionais do romance. O registro crítico, no que diz respeito ao desfecho de Cien años de soledad, contém vários esforços para explicar um fenômeno que, ao meu ver, não pode ter uma explicação satisfatória2. O final do romance, com seu desvio Os comentários sobre o desfecho do romance não concordam quanto à identidade do texto. Para a maioria, o manuscrito de Melquíades é o protótipo do romance (Vargas Llosa 541; Rodríguez Monegal , “Novedad” 18; Rodríguez Monegal, “Three” 484-89; Rolfe 261; Espinosa 201-27; Monleón 19, Palencia-Roth 407). William L. Siemens, no entanto, declara que o manuscrito e o livro não podem ser equivalentes. Para Siemens, portanto, não há contradição lógica. Mas os outros têm dificuldade em explicar o final. Vargas Llosa se contradiz, dizendo que o romance muda de perspectiva (de uma terceira pessoa para o cigano), mas reconhece que o manuscrito em sua totalidade é do ponto de vista de Melquíades; assim, ele desdiz a afirmação da equivalência dos dois textos. Jerry Root, ao falar da “auto-destruição” (10, 13, 20) do romance, não enfrenta o fato óbvio de que o romance existe. Clive Griffin opina que o mundo novelístico não existe depois que o leitor termina 2 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 17 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS lógico, desafia as convenções da verossimilhança narrativa. O motivo do manuscrito encontrado, que normalmente é considerado um gesto em favor do realismo, aqui o desfaz. Falta agora mostrar como os mesmos quatro fatores também fazem parte do jogo narrativo de “Adão e Eva,” publicado originalmente na Gazeta de Notícias em 1885, e depois reproduzido na coletânea Várias histórias, dez anos depois. Para iniciar, faço um breve resumo do conto. “Adão e Eva,” como tantos outros contos, contém um relato exterior (extradiegético) e um relato intercalado (diegético). O primeiro consiste num sarau na casa de uma senhora de engenho na Bahia. Quando um dos convivas quer saber mais sobre um dos doces servidos, o assunto da conversa torna à questão da curiosidade. São os homens mais curiosos que as mulheres, ou vice-versa? E no caso da família humana, quem – Adão ou Eva – tem mais culpa pela expulsão do paraíso? Todos oferecem uma opinião, menos certo juiz de fora. Interrogado pelos outros, este afirma que a pergunta não tem sentido, porque as coisas não se passaram no Éden como o registro sagrado indica. O homem então conta sua versão da história aos convivas curiosos. No final de seu relato, todos ficam boquiabertos, perplexos, sem saber o que responder. Então o narrador desfaz tudo o que contou, afirmando que “nada disso aconteceu” (528), e volta a perguntar sobre o doce. A narrativa intercalada, então, é uma versão da velha história de Gênesis. Tem todos os elementos da versão bíblica—o o livro (93), sem reconhecer que neste ponto Cien años de soledad não difere de qualquer romance. Vários críticos evitam o impasse lógico ao “transcender” o problema físico, passando para uma leitura “metafísica”. Rodríguez Monegal resolve a contradição no espaço metaficcional, na “inmortalidad que confiere la palabra” (19). Doris Rolfe também percebe um desmascaramento da ilusão representada, “énfasis final e definitivo para expresar que la novela es ficción” (261). Michael Palencia-Roth transfere o texto para um espaço eterno e cósmico (410, 414), declarando que o romance nunca termina (415). Susana Cordero de Espinosa (201-27) e Vargas Llosa (544-45) efetuam uma transição semelhante para o modo da ficcionalidade. Uma “solução” menos popular é isentar o texto do furacão. Aleyda Roldán de Micolta afirma que a tempestade parece destruir tudo menos o manuscrito. 18 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO jardim paradisíaco, a árvore cujo fruto é proibido, a serpente (representante de Satanás) que promete um grande futuro como resultado da ingestão da fruta, etc. Para Eva, a serpente prediz: [...] serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. (527) Até agora, é a história conhecida. Mas no relato do juiz de fora, tanto Eva como Adão obedecem à proibição divina. Nem uma nem o outro cai na tentação de saborear o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. E, em conseqüência dessa decisão, Deus entrega toda a terra ao diabo, mandando o anjo Gabriel para recolhê-los: [...] então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até a estância eterna, onde miríades de anjos os esperavam, cantando: — Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade. (528) Um transporte divino para o reino celestial, é claro, não é um furacão devassador. As matérias temáticas de Cien años de soledad e “Adão e Eva” são bem distintas. Mas, estruturalmente, as duas narrativas apresentam um paralelo completo. Podemos voltar à lista de fatores irreconciliáveis já mencionada, e mostrar que os mesmos elementos existem no conto de Machado. Não será surpresa notar que o jardim de Éden, em sentido metafórico, é um ventre. Contém, em abundância, os elementos da fertilidade. É um espaço isolado e fechado. É o abrigo Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 19 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS criado por Deus para a gestação da raça humana. O “embrião” implantado neste espaço vital, é claro, é o primeiro casal. Adão e Eva, nesta altura, só representam o potencial para uma fecunda geração. Não tendo comido do fruto, ainda são inocentes, estéreis e inadequados para a reprodução. Quanto ao evento que incapacita o “nascimento” do germe, a transferência de Eva e Adão para o eterno paraíso, no gozo celeste, constitui esta etapa. Na versão bíblica a expulsão do primeiro casal é seu “nascimento” para o mundo mortal, o momento em que se tornam seres tanto vulneráveis como férteis. Mas no conto, na versão do juiz de fora, está claro que não há nem haverá nascimento, pois “nenhuma criatura” igual a eles andará sobre a terra. O quarto fator, a existência de uma reprodução do germe num espaço exterior, se trata de uma mudança de um plano para outro. Em Cien años de soledad, temos a sobrevivência do livro, no espaço do leitor, depois de destruído o manuscrito em Macondo. Em “Adão e Eva” o motivo equivalente consiste na existência de todos os personagens no sarau daquela noite. Em ambos os casos a continuidade da palavra se envolve com a idéia da reprodução. O romance de García Márquez, impresso e distribuído, contradiz o relato do manuscrito apagado. A enunciação oral da história bíblica da criação, num grupo de pessoas de carne e osso, contradiz a idéia da eterna isolação do casal primordial. A principal diferença entre as duas narrativas talvez resida no fato de que o efeito, ou seja, a recepção da estranha história é explícita em um caso, e implícita no outro. Cien años de soledad está cheio de leitores e de representações do ato interpretativo. Em muitas instâncias, sugere-se que a interpretação é equívoca ou até impossível. Mas a representação da recepção do desfecho do manuscrito de Melquíades não pode figurar no livro, pois está nas mãos do leitor real. A única caracterização escrita desta leitura está no registro crítico, já aqui resumido. Um aspecto fascinante de “Adão e Eva” se encontra no fato de que 20 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO a recepção do conto contraditório, essencialmente semelhante a Cien años de soledad, está narrada no próprio conto, na volta para o nível extradiegético depois do relato intercalado: ... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira que falou: — Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, Frei Bento? — Lá o saberá o Sr. Juiz, respondeu o carmelita sorrindo. E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce: — Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe? (528) A “leitura” do relato está bem descrito. Primeiro, há uma atitude de estupefação, indicada pelo fato de que os ouvintes olham uns para os outros, “embasbacados”. Há o reconhecimento de que a narração é “enigmática” e “sem sentido”. Há uma proposta de resolução da mensagem problemática, na sugestão de que o narrador “estava logrando a gente”. O transtorno desaparece se reconhecem que o modo discursivo é o de uma broma. E, afinal, temos a confirmação do narrador de que a interpretação proposta é válida. O valor lógico da “leitura” dos presentes é aprovado, explicitamente, quando o juiz de fora diz que “nada disso aconteceu” e que, “se tivesse acontecido, não estaríamos aqui”. É reconhecida a atitude brincalhona, implicitamente, quando o juiz deixa a narração e passa rápido para o assunto do doce. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 21 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Dada a congruência impressionante da estrutura narrativa de “Adão e Eva” e Cien años de soledad, e reconhecido o fato de que somente “Adão e Eva” entra explicitamente na questão da recepção da narração problemática, quero, para terminar, propor uma hipótese anacrônica. Por que não pensar em termos de uma leitura machadiana das últimas páginas de Cien años de soledad – uma “Análise póstuma de Machado de Assis”? O modelo desta leitura, é claro, está no desfecho de “Adão e Eva”. O primeiro elemento desta leitura seria o reconhecimento de que a confusão é apropriada, porque o relato é contraditório e carece de sentido. E o segundo seria a aceitação da idéia de que a solução mais acessível ao impasse lógico da narração é ver tudo em termos de uma enorme e cósmica brincadeira3. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Obra completa. Vol. 2. Ed. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. DIXON, Paul B. “Joke Patterns in Cien años de soledad”. Chasqui 15.2-3 (1986): 15-22. DIXON, Paul B. Reversible Readings: Ambiguity in Four Modern Latin American Novels. University: U of Alabama P, 1985. DOUGLASS, Ellen H. “Machado de Assis’s ‘A cartomante’: Modern Parody and the Making of a ‘Brazilian’ Text”. MLN 113.5 (1998): 1036-55. ESPINOSA, Susana Cordero de. “Cien años de soledad: un asesinato del olvido”. In Manuel Corrales Pascual, ed. Lectura de García Márquez: doce estudios. Quito: Pontificia Universidad Católica del Ecuador, 1975. 201-27. FITZ, Earl. “The Influence of Machado de Assis on John Barth’s The Floating Opera”. The Comparatist 10 (1986): 56-66. 3 Esta é a hipótese desenvolvida no meu ensaio “Joke Patterns in Cien años de soledad.”. 22 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Buenos Aires: Sudamericana, 1971. GILL, Anne-Marie. “Dom Casmurro and Lolita: Machado among the Metafictionists”. Luso-Brazilian Review 24.1 (1987): 17-26. GRIFFIN, Clive. “The Humor of One Hundred Years of Solitude”. In Gene H. Bell-Villada, ed. Gabriel García Márquez’s One Hundred Years of Solitude: A Casebook. New York: Oxford UP, 2002. 53-66. MCHALE, Brian. Constructing Postmodernism. London: Routledge, 1992. MICOLTA, Aleyda Roldán de. “Cien años de soledad: una novela construida sobre espejos”. Explicación de Textos Literarios 4, suplemento 1 (1975-76): 239-57. MONLEÓN, José. “Historia de una contradicción”. Maize 3.3-4 (1980): 17-22. PALENCIA-ROTH, Michael. “Los pergaminos de Aureliano Babilonia”. Revista Iberoamericana 49.123-34 (1983): 403-17. RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. “Novedad y anacronismo en Cien años de soledad”. Revista Nacional de Cultura 29.185 (1968): 3-21. RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. “One Hundred Years of Solitude: The Last Three Pages”. Books Abroad 47 (1973): 48489. ROLFE, Doris. “Tono y estructura en Cien años de soledad”, Explicación de Textos Literarios 4, suplemento 1 (1975-76): 25982. ROOT, Jerry. “Never Ending the Ending: Strategies of Narrative Time in One Hundred Years of Solitude”. Rackham Journal of the Arts and Humanities, 1988. 1-25. SIEMENS, William L. “Tiempo, entropía y la estructura Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 23 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS de Cien años de soledad”. Explicación de Textos Literarios 4, suplemento 1 (1975-76): 359-71. SMITH, Barbara Herrnstein. Poetic Closure: A Study of How Poems End. Chicago: U of Chicago P, 1968. VARGAS LLOSA, Mario. García Márquez: historia de un deicidio. Barcelona: Monte Ávila, 1971. Recebido em 15/08/2008 Aprovado em 20/09/2008 24 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO MACHADO, NARRADOR-CRÍTICO Marília Rothier Cardoso PUC-Rio Resumo: Quando um autor é homenageado no topo do cânone, é interessante revisar seus métodos de construção da obra investigando não sua obra prima mas crônicas e contos da juventude, textos publicados na imprensa e nunca incluídos em livros. Machado de Assis colaborou regularmente nos jornais e os editores de revistas femininas freqüentemente exigiam estórias sedutoras. Assim ele escreveu muitos enredos para o Jornal das Famílias que lhe serviram de laboratório literário. Tenta-se mostrar, aqui, que, mesmo nesses exercícios apressados, a escrita machadiana dobrava a fantasia em reflexão. A sua era uma prosa especulativa, ávida de questionar o poder comunicativo do discurso revelando sua margem impossível de decifração. Os comentários semanais leves e engraçados e as estórias para entretenimento, abandonadas nas coleções de jornais velhos, constituem um legado que não se descarta, pois permanece como dádiva e desafio para os leitores de hoje. Palavras-chave: Machado de Assis. Conto. Estética e crítica. Abstract: When an author is celebrated at the top of the literary canon, it is interesting to review his methods of building up his work investigating not his masterpieces but rather chronicles and early short stories, texts he published in the press and never included in his books. Machado de Assis was a regular contributor to newspapers and the editors of magazines for women often demanded exciting narratives. Thus he wrote many plots for Jornal das Famílias which certainly served him as a literary laboratory. We try to show, here, that even in those hurried exercises Machado’s writing doubled fantasy into reflection. His was a speculative prose eager to question Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 25 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS the communicative power of speech to reveal its margin impossible to decipher. The light and funny weekly comments and the entertainment stories left behind in the old collections of papers make up a legacy which should not be discarded. It remains a gift and a challenge for his contemporary readers. Keywords: Machado de Assis. Short story. Aesthetics and criticism. Considerado um clássico – o clássico brasileiro, por excelência –, Machado de Assis tornou-se uma espécie de acervo de comportamentos escriturais modelares de que se lança mão para fundamentar teorias do texto. O capítulo XLV, “Notas”, de Memórias póstumas de Brás Cubas exemplifica (pela via da paródia) a potência do fragmento, enquanto fórmula incompleta e condensada, capaz de tirar, desse paradoxo, efeito poético e indagação questionadora. O “inventário” de anotações, substituindo o encadeamento narrativo, a justaposição de pequenos quadros de temática autônoma, os comentários breves do narrador intrometido são táticas de romancista em crise, ambicionando – talvez como os românticos de Jena – abolir a distinção entre relato ficcional e “disciplinas crítico-filológicas” (Agamben, 2007, p. 9). Seus experimentos com a língua nunca ultrapassaram os limites do “bom uso”, pela necessidade, na circunstância em que se fez escritor, de conservar e transmitir, enriquecido, o patrimônio cultural que lhe coube (Cf. Santos, 1999, p. 82, 83). No entanto, obediente à tradição do código, não preservou seu artefato dos embates com a algaravia das ruas, nem, muito menos, com os meios modernos de divulgação. Se persistiu no empenho de penetrar os cânones da língua portuguesa, fê-lo, quase sempre, no espaço público, entre notícias da política e do câmbio, nos jornais populares; entre receitas e moldes, nas revistas femininas. Se rompeu a lógica dos enredos romanescos e dobrou-os em dúvida filosófica, dirigiu-se, sempre, ao leitor comum. Quis ensinar à dona de casa a desconfiar dos narradores, atrair o homem de negócios para a consideração 26 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO do desequilíbrio social e, até mesmo, acolher o trabalhador analfabeto – platéia dos folhetins, que se liam em voz alta – no espaço do debate de idéias e valores. Os textos machadianos que, como especialistas, queremos retomar, neste ano de comemorações, são os clássicos de uma cultura periférica, onde não se ultrapassam nem as incertezas, nem a violência dos conflitos. Os livros didáticos cristalizaram a informação de que Memórias póstumas é o marco da maturidade de Machado, sua entrada efetiva na galeria dos imortais. Esse modo de classificar uma trajetória intelectual e artística tem um lado de consistência produtiva e um lado de simplificação equivocada. Mas, mesmo relativizado em seu papel de marco, o relato de Brás Cubas, com sua agressividade medida de contra-romancista, assume a tarefa útil de explicitar o espaço escolhido para engendramento do discurso. Situando-se “cá no outro mundo” para confrontar o leitor, o memorialista diz que escreveu a obra “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. (Assis, 1962, p. 511, v. 1) O estatuto fantasmático e as referências contraditórias indicam a velha tradição ocidental daqueles que, com excesso de bile negra e regidos por Saturno, entregam-se à contemplação e ao desejo de um objeto inalcançável, tornando-se aptos à reflexão crítica, mesmo que sob o risco da apatia e da negatividade radical. No século XIX, quando o pensamento europeu mais requintado teria surgido do spleen, o brasileiro Machado de Assis inventa sua assinatura autoral através do “defunto” Brás, descendente da “genealogia” falsificada dos Cubas. É um modo de inserir-se numa tradição pelas bordas, desejando integrá-la e estranhá-la, ao mesmo tempo. A escrita, produzida desse lugar fronteiriço, não pode ser outra senão a do humor negro – inscrição paradoxal: grotesca e fantástica, excessiva e elíptica, refinada e um tanto grosseira, movida pela cautela dos eruditos e pela ousadia dos arrivistas. A linhagem ambígua dos melancólicos – ou dos que parodiam certo banzo dos trópicos – expressa-se por alegorias. Dos romances retrabalhados aos folhetins semanais e aos contos, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 27 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS redigidos às dúzias para responder à demanda das empresas jornalísticas, a obra de Machado explorou, quase à exaustão, o emblema do teatro. Servindo-se da popularidade dessa instituição, onde se concentrava a sociabilidade elegante, as intrigas – ou os resquícios de intriga – centram-se no teatro, mas a representação, que se desenrola no palco, está ausente do texto. Sua referência mantém-se, como um fantasma, assombrando o diálogo dos camarotes ou da ceia, após o espetáculo. É o espectro que desloca e subverte o significado das ações “reais”, desencadeadas nas casas e nas ruas. Na abertura de Dom Casmurro, um tenor, já velho e rouco, compara a vida a uma ópera e o narrador considera que “há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados” (Assis, 1962, p. 817, v. 1). As memórias de Bento lêem-se, assim, como se cada protagonista tivesse seu papel predeterminado, pelo libreto da ordem social. Mas, ao contracenarem, um jamais consegue depreender as razões do texto do outro. E, como a ópera, descrita por Marcolini, o tenor aposentado, tem co-autoria de Deus e do diabo, é bem possível que, na falta de sintonia entre música e versos, o sentido permaneça inalcançável. Para conhecer estágios desse percurso de decifração e ciframento de um saber sobre a sociedade dos homens, vale a pena examinar um par de contos, onde o emblema do teatro preside à trama e matiza o estilo. Nos anos de sua juventude e primeira maturidade, Machado de Assis pertenceu, simultânea ou sucessivamente, ao corpo de redatores de diversos jornais e revistas; nos primeiros, ocupava a coluna do folhetim-variedades; nestas, contribuía com contos e noveletas. Além dessas tarefas regulares, fazia poemas e era, às vezes, convidado para a empreitada mais longa de um romance em folhetins. Sua obra foi, assim, sendo construída aos pedaços, guardando, no entanto, a singularidade de certo humor sombrio mas contido. Guardando, também, insistente, o desejo de construir um pensamento inventivo e crítico. Como o espaço literário, que o fascinava e podia remunerá-lo, impedia-lhe a sistematicidade do discurso 28 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO filosófico, sua contribuição para o acervo do saber fazia-se fragmentária. Combinava uma erudição clássica de autodidata com a experiência do jornalismo. Em seu conjunto irregular, os textos machadianos constituem, para o Brasil dos Oitocentos, um empreendimento de cultura homólogo aos Ensaios de Montaigne – ensaios de onde o ficcionista retirava não só ilustrações e epígrafes mas cuja forma, casual, incompleta e autocrítica, perseguia, em meio às atribulações de suas tarefas variadas no serviço público e na imprensa. “Curiosidade” (Assis, 1956b, p. 127-162), como dezenas de outras, foi uma narrativa, escrita, por certo, ao correr da pena, para uma elegante revista de modas, A Estação, em onze capítulos, publicados entre 31 de janeiro e 30 de junho de 1879. Assinava-o apenas a inicial M. e não foi inserido em nenhum dos volumes de contos organizados pelo autor. (Cf. Assis, 1956b, p. 2), Para o estudioso, essas produções, consideradas circunstanciais e descartáveis, mostram-se preciosas, pois expõem, à maneira dos rascunhos, muitos aspectos da carpintaria escritural. O enredo na noveleta repete, sem nenhum esforço de mudança, o esquema romântico de tratar o casamento como confronto entre o interesse prático da família e a fantasia da moça bonita, entre o moralismo estreito da sociedade e o ideal libertário dos artistas, entre a falta de escrúpulos dos caça-dotes e o empenho ainda atabalhoado de afirmação da autonomia feminina. Só o ceticismo brando do final feliz destoa um pouco da fórmula convencional eufórica, apropriada por Macedo e até por Alencar. De seu lado, Machado de Assis descuida do enredo para dar destaque à moldura alegórica do mesmo. Se motivação, suspense, clímax, desfecho dramático e recomposição apressada do equilíbrio familiar deveram-se à “curiosidade” de Carlota, a moça bonita e estouvada, a significação – em termos de crítica dos sentimentos e da sociedade – só se tece no contraponto entre teatro e vida. Sua complexidade resulta do caráter ambíguo e intercambiável de ambos. A quebra da rotina, responsável pela trama, acontece porque Carlota, já noiva, deseja desvendar os Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 29 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS segredos do novo estado, indo ao teatro assistir à estréia da peça (atribuída a Alencar) “O que é o casamento?”. Apesar dos protestos, os pais e o noivo levam Carlota ao teatro. No entanto, o narrador nada diz sobre o assunto do drama, deixando claro para o leitor que a ação do palco não desvendou, para a virgem, o segredo do casamento. A própria interessada voltava os olhos, muito mais insistentemente, para a platéia, que se revela o espaço, por excelência, da representação. O triângulo dos desejos forma-se na platéia e é na rua e nas casas que se encena o drama das engodos e falsas aparências. Se a fantasmagoria burguesa do espetáculo social impediu que Carlota lesse a escrita cifrada oferecida pela performance dos atores, a transformação, ainda que apressada e canhestra, dessa ilegibilidade em alegoria das relações afetivas foi uma experiência capital para o escritor. Este tratou de aperfeiçoá-la, servindo-se de sua curiosidade algo mórbida de melancólico para engendrar tábuas de ideogramas tão intrincadas quanto Dom Casmurro. (Cf. Benjamin, 1984, p. 191) Tão envolvido quanto Carlota pelo sonho burguês do futuro feliz e brilhante, Bentinho se destaca, para o leitor, por sua dubiedade complexa. A educação ambiciosa, que lhe deram, em casa, no seminário e na faculdade de Direito (cf. Santiago, 1978, p. 29-48), ensinou-o a ler demais, tomando qualquer aparência por cifra enganadora a ser desmascarada. Assim, quando foi ao teatro, assistir ao Otelo, em vez de dar-se conta de que a traição do palco era representada, tomou-a por revelação da verdade e traduziu-a literalmente na língua cotidiana de sua vida. E, mesmo velho e casmurro, quando transpôs suas memórias para a narrativa continuou a justapor, voluntarioso e obsessivo, os atores da ópera e os fantasmas da vida. Legou para os pósteros não a denúncia, que pensava estar grafando, mas a inscrição cifrada de várias camadas de possíveis equívocos. É evidente que Dom Casmurro resultou de um processo árduo de aprendizagem; árduo e cheio de idas e vindas. Só um enorme dispêndio de experimentos conduz a uma escrita alegórica cujo humor negro engendra o segredo, propõe a chave de decifração 30 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO desse saber fechado e, ao mesmo tempo, dobra-se criticamente sobre a tarefa, indicando o estatuto lacunar e dúbio de qualquer chave. Bem antes de redigir “Curiosidade”, quando ainda era contratado pelo Jornal das Famílias, periódico popular da empresa Garnier, Machado imaginou um relato experimental de maior ousadia: “O Capitão Mendonça” (Assis, 1956a, p. 157-183) publicado em duas partes, durante o ano de 1870, e, embora assinado, também esquecido, de propósito, nas páginas da revista. O narrador deste conto é o próprio protagonista, o que já dota a narração de maior sutileza. Nesse caso, o descarte do lugar de objetividade é sintomático da perspectiva crítica, pois a estória aproxima o artifício do teatro à positividade da ciência, numa composição, produtivamente, indecisa que mistura os parâmetros do fantástico e da verossimilhança. A abertura também conduz a personagem principal ao teatro e, se Carlota lá foi para matar a curiosidade, Amaral deixou-se levar pelo tédio. Ambos, moça e rapaz, no entanto, compartilham desventuras sentimentais e, enquanto ela se alheia do palco para fixar o dono de um pincenez, na platéia, ele nem se informa do título da peça, acomoda-se na cadeira, conversa com o vizinho e, quando este se levanta, acaba fechando os olhos. No clímax da intriga, quando o nível de suspense chega ao grau máximo, intervém um desfecho em anti-clímax: Amaral é despertado. O pano já havia descido, ele perdera todo o drama. Ou não? Se esteve ausente da sala de espetáculo, foi porque sonhava ou por ter logrado transportar-se para outro espaço – o de um possível futuro ou o da fantasia? Para o leitor que busca compreender os mecanismos da produção de sentido, é obrigatório considerar todos os planos – reais, representados, oníricos, fantásticos e alucinados. Foi no teatro que Amaral encontrou o Capitão Mendonça, tipo estranho, que o chamou pelo nome, dizendo-se amigo de seu pai no passado. Apesar de intrigado pelo vizinho de platéia, o rapaz se distrai e, enigmaticamente, vê-se atendendo ao convite autoritário do outro para cear em sua casa. Se o convite é inesperado e inescapável, a visita apresenta uma série Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 31 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS de surpresas: do corredor sinistro, que se atravessa, atinge-se uma sala confortável, uma refeição requintada e a conversa agradável com uma beldade, a filha do anfitrião exótico. Aliás, prazer e susto misturam-se, o tempo todo, nessa casa descrita como “purgatório” pelo próprio dono. Confortado pela beleza da moça, Amaral se desnorteia como o choque de sabê-la uma construção artificial, um clone, quando recebe, nas mãos, os belos – e falsos – olhos de Augusta. Diante de sua “obra-prima”, o Capitão descreve as experiências químicas responsáveis pela produção daquele ente perfeito, revelandose menos pai do que “autor”. Nos dias seguintes, disposto a enfrentar os riscos da convivência com o cientista-criador e tirar daí proveito prático e estético-afetivo, Amaral vai sendo admitido no laboratório e na família do velho, pois este aceita sua união com Augusta. Há apenas uma condição, submeterse à mais recente experiência do “sábio”, que planeja fazê-lo digno da filha, “introduzindo-lhe o gênio” (Assis, 1956a, p. 179). O frasco de éter é preparado para ser introduzido, através de um pequeno corte em sua cabeça... É, nesse momento, quando tudo, em volta, já assume “proporções descomunais e fantásticas”, que a cena – sonho ou pesadelo – é interrompida. Se, para atender às exigências da revista, o percurso da fabulação retorna à verossimilhança do começo, o próprio narrador já havia salvado, num dos parágrafos do texto, a “alta potência” da falsidade dessa representação (Cf. Deleuze, 1973, p. 116-118). Lembrando o “conto de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas” (Assis, 1956a, p. 169), reafirma o valor inventivo e crítico de se resgatar a dimensão fantástica do real cotidiano. Com a referência ao conto sobre a experiência alquímica da criação, o sonhador melancólico, que se faz espectador distraído, joga com o lado produtivo do perigo – o desejo insaciável de conhecer. E é o confronto da vida entediante com a mágica do teatro que permite perscrutar o enigma preservando sua força pela lógica rasa de uma (suposta) decifração. Não é preciso 32 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO remontar aos mitos gregos, nem mesmo à ficção romântica, para consultar o oráculo sem desqualificá-lo. Machado, à medida que se profissionalizava, aprendia a buscar nos jornais – especialmente nos jornais já velhos – a voz da esfinge necessária a questionar o bom senso de seus contemporâneos. Na coluna das “Balas de estalo”, em 30 de julho de 1884, o cronista, fazendo o papel de cidadão comum, acalma o fantasma das ambições políticas que o assaltam e, à maneira do “defunto” Brás Cubas, quando “não f[o]i ministro de estado” (Assis, 1962, p. 625, v. 1), considera filosoficamente a ordem social. Esse momento de lucidez reflexiva é proporcionado pela leitura de uma notícia, já antiga de dez ou quinze dias, que reúne arte dramática e progresso tecnológico. Trata-se do espetáculo onde, num momento preciso do 1º ato de A dama das camélias, a “sublime atriz (Emília Adelaide)” deve iluminar o palco, através da estrela de seu diadema, que “espargirá esplêndida luz elétrica” (Assis, 1956c, p. 86). Desconhecendo o efeito produzido no público por aquela promissora união da ciência com a arte (pois não encontrou os jornais dos dias subseqüentes), o cidadão-cronista retoma o mesmo jornal e passa a esquadrinhá-lo, como se fosse uma tábua de hieróglifos, cuja tarefa decifratória exigisse a combinação de signos esparsos. Encontra, então, em outra página, um anúncio-chave que desvenda as bases práticas do espetáculo. A mágica da razão científico-estética apóia-se no interesse da indústria e do comércio. O proprietário da loja Campelo “é o colaborador do Dumas”, tendo descoberto o uso da eletricidade no destaque das performances. Seu “gênio inventivo”, além de abrilhantar a cena teatral, transformou o brilho em lucro, anunciando o espetáculo ao lado de seu estoque de “binóculos (...), plumas, penachos, leques, grampos atartarugados, etc.” (p. 87). O escritor, fascinado pelos emblemas da modernidade inscritos na ribalta e nos jornais, também se faz gênio inventivo, quando transforma sua arte tradutória em profissão. Mas, na contramão das quadrinhas publicitárias do Campelo, seus versos e seus contos não permitem uma contabilidade equilibrada entre Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 33 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS gastos e lucros. Como a estrela do palco, o brilho produzido por suas palavras é despesa excessiva (cf. Bataille, 1975, p. 3336), que, em lugar de acumular, dispersa os bens culturais, para que perturbem o mercado, onde circulam. Em vez de levar o selo da patente, os fragmentos de saber literário divulgamse para serem apropriados por outros e, assim, continuarem a circular e a transformar-se. Nessa crônica de 1884, como em várias outras das “Balas de Estalo”, o teatro é o espaço emblemático onde se fazem representar, para a interpretação, os signos da sociedade, da economia e da política da metrópole tropical. Tal a importância estratégica da figuração da arte dramática, que, nessa coluna coletiva, Machado usa o pseudônimo de Lélio, personagem de Molière – então, freqüentador assíduo dos palcos da França e do mundo. Se o folhetinista é, sempre, uma persona, que tipifica a opinião pública -- ou uma voz dissonante do senso majoritário –, o destaque do teatro como alegoria caracteriza a assunção explícita do efeito falsificador para que o discurso investigue os caminhos da verdade. Por isso mesmo, a alegoria teatral permanece e se refina, nas crônicas da maturidade. Foi no espaço denominado “A Semana”, mantido entre 1892 e 1897, na edição dominical da Gazeta de Notícias, que surgiram os folhetins machadianos mais bem urdidos, valendo, efetivamente, como ensaios críticos. Do conjunto desses textos, ressalta “A cena do cemitério”, de 3 de junho de 1894 (Assis, 1962, p. 649-651, v.2), excepcionalmente resgatado pelo próprio autor para integrar suas Páginas recolhidas. Aliás, a situação excepcional deve explicar o comportamento também raro de dar título a folhetins. Aqui, a referência identificadora não vem de uma comédia popular qualquer. Machado foi buscá-la no Hamlet, o modelo dos dramas alegóricos do século XVII. Aproveitando o clima tragicômico dos episódios shakespearianos, insiste-se no tom agressivo do humor negro, para tratar da morte e da crise financeira. Ao fragmento de cena clássica, sobrepõem-se as falas da angústia moderna diante da fugacidade dos capitais. O cronista, pressentindo o 34 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO mau augúrio, considera que “essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos.” (p. 649) No final dos Oitocentos, para atingir o imaginário burguês, centrado no indivíduo, a crônica volta a experimentar – agora, tirando todo efeito possível de sua força – a conjunção entre cena dramática e figuração onírica. A personagem cronista, na avidez de formar-se e informar-se, lê, na mesma noite, os jornais e a tragédia. Conseqüência anunciada: o sonho terrível em que se vê transformado em Hamlet e, atravessando a cidade, chega a um espaço, “metade cemitério, metade sala” (p. 649), onde os coveiros cantam a desvalorização dos títulos. São coveiros-corretores que cavam o solo, de onde surgem caveiras e “debêntures” – “uma fusão de aspectos, letras com buracos de olhos, dentes por assinaturas.” (p. 650) É a deixa para que Hamlet deplore a decadência do sistema financeiro, pressentindo que suas economias estão prestes a enterrar-se. Chega o cortejo fúnebre para o sepultamento de Ofélia e seu desespero cresce; salta dentro da cova e entra em luta com Laertes. Os contendores se agridem; tudo se mancha de sangue. Só a voz do criado, acordando-o, pôde evitar o assassinato. O desenlace, repentino e desnorteante, não explica nada. O expediente verossimilizador não restabelece a tranqüilidade. Com o fim da crônica, permanece a apreensão do pesadelo. Nenhuma garantia para as notícias dos jornais; muito menos, para o pregão da Bolsa. O exame ligeiro desse mosaico, quase aleatório, de fragmentos do percurso escritural de Machado de Assis, permite o rastreio de seu deslizamento pela fronteira entre o senso comum e o nonsense, a biblioteca clássica ou cosmopolita e as peculiaridades banais da cidade periférica, a vontade de saber e o aguilhão da dúvida. Depara-se com um exercício tenso de engendramento narrativo, que confronta a potência comunicável do discurso com sua necessária inacessibilidade, oferecido, num esforço de pedagogia inusitada, ao público brasileiro em formação. O registro de tal esforço constitui o legado, deixado pelo escritor, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 35 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS como dádiva e desafio, para os leitores de hoje que desejem tornar-se seus herdeiros. Referências AGAMBEN, Giorgio. Estâncias; a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. ASSIS, J. M. Machado de. Contos recolhidos. Org. R. Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[a]. ASSIS, J. M. Machado de. Contos sem data. Org. R. Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[b]. ASSIS, J. M. Machado de. Crônicas de Lélio. Org. R. Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[c]. ASSIS, J. M. Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962. 3 v. BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: A parte maldita. Trad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: P. U.F., 1973. SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. SANTOS, Roberto Corrêa dos. Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. Recebido em 20/08/2008 Aprovado em 20/09/2008 36 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ESAÚ E JACÓ E A TRANSFORMAÇÃO DOS VALORES E COSTUMES NA ÉPOCA DO ENCILHAMENTO Lenivaldo Gomes de Almeida PUC-Rio Resumo: Análise sócio-histórica do romance Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, a partir de personagens – Santos, Batista, Nóbrega – que enriqueceram durante o período do encilhamento. Palavras-chave: Machado de Assis. Esaú e Jacó. Encilhamento. Narrativa brasileira. Abstract: Social-historical analysis of the novel Esaú e Jacó (1904), by Machado de Assis, from the point of view of the characters – Santos, Batista, Nóbrega – who became rich during the period of Encilhamento (a period of financial depression in Brazil). Keywords: Machado de Assis. Encilhamento (a period of financial depression in Brazil). Brazilian narrative. PANO DE FUNDO Apesar de a República só ter sido proclamada em 1889, a especulação financeira, a busca desenfreada pelo lucro fácil e pelo enriquecimento a qualquer custo são anteriores a essa data e possivelmente foram inauguradas oficialmente com a “febre das ações” em 1855, ainda sob as barbas do Imperador. Como observa José Murilo de Carvalho em Os bestializados, a liberdade de ações especulativas e da jogatina oficializada na bolsa de valores, sem qualquer peia de valores éticos, foi estendida ao campo da moral e dos costumes: “[...] o que era antes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 37 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS República, se excetuarmos o governo Floriano, foros de legitimação pública.” (CARVALHO, 1987, P. 27). Em Esaú e Jacó, Machado de Assis faz um painel dos últimos vinte anos da monarquia e dos primeiros anos do novo regime. Mesmo sendo o cenário político pano de fundo da narrativa (centrada na família Santos, no conflito entre Pedro e Paulo e na angustiante indecisão de Flora entre os gêmeos), Machado compõe um excelente quadro da moral e dos costumes daquele período da incipiente República Brasileira. A família Santos, a família Batista e o irmão das almas (mais tarde Nóbrega) são exemplos típicos de uma nova classe social que, saindo da periferia do poder, concentram esforços em chegar ao centro decisório da sociedade. Cada um a seu modo, Santos pelo enobrecimento, Batista através da burocracia do Estado, Nóbrega pela ostentação – tem o mesmo objetivo, o poder. O que os diferencia é o grau de consciência e as estratégias que se utilizam para alcançar o objetivo. A visita de Natividade à cabocla do morro do Castelo; o furto do dinheiro das almas por quem o deveria guardar; a missa mandada rezar por Santos – que, esvaziada do seu sentido litúrgico, lhe serve de espetáculo de ostentação – são atitudes típicas e delimitadoras dos códigos morais e dos costumes que serão norteadores do comportamento dos personagens no decorrer da narrativa. A FÉ ESCALA MONTANHAS No primeiro capítulo, Natividade e Perpétua penitenciam-se no morro do Castelo: “o íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas.” (ASSIS, 1988, P. 19). Para terem acesso ao mundo transcendente dos espíritos, as duas se dobram ao sacrifício e se lançam por um ambiente pobre e sombrio. Antes de alcançarem o espaço privado da consulta, se expõem publicamente aos olhares dos moradores 38 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO e passantes do local. Já na escada que as levará ao lugar da consulta, esbarram com dois homens que, como no coro das tragédias gregas, exteriorizam duas falas comuns na opinião pública e na consciência dialógica dos que recorrem à cabocla: — Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir disparate... — É mentira dele, emendou o outro rindo; a cabocla sabe bem onde tem o nariz. (ASSIS, 1988, p. 20) A exemplo do que ocorre em um dos mais conhecidos contos do autor, “A cartomante”, Machado nos descreve um jogo de linguagem, no qual a cabocla lança expressões genéricas, significantes vazios para que a consulente os preencha, acossada pela angústia da espera – Natividade está grávida – segundo seus desejos. Longe de revelar, o discurso dissimula. E, numa inversão da hierarquia social, a cabocla é quem manipula a palavra, se utilizando, para isso, das mesmas estratégias retóricas usadas pelos padres com suas parábolas emprestadas à bíblia e pelos políticos com seus ideários copiados aos filósofos ou aos poetas, segundo seus interesses. A cena da consulta é narrada como se fora um espetáculo de teatro. Machado carrega na tinta, levando o leitor a ver aquele ritual através de um olhar analítico e não emotivo, o olhar distanciado do narrador de terceira pessoa. Essa estratégia fica mais evidente se for considerado que é com esse acontecimento que tem início a narrativa, quando ainda se desconhecem completamente as duas personagens, Natividade e Perpétua, e por elas o leitor não pode estabelecer nenhum tipo de relação de empatia. Do fato narrado, dois aspectos são bastante significativos, considerando-se a moral e os bons costumes da época. A quebra da hierarquia social: a cabocla é investida de um poder ao qual Natividade se submete; o nivelamento de duas crenças (ou religiões) que ocupam espaços diferenciados na formação Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 39 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS da sociedade brasileira: o catolicismo, dos colonizadores, e o espiritismo não-científico (sic), trazido pelos negros vindos da África. Esse nivelamento se apresenta discursivamente quando a cabocla sugere o conflito entre os gêmeos, filhos de Natividade, o que reporta às imagens arquetípicas de Esaú e Jacó, que, por darem título ao livro, é uma nota que se reapresenta de imediato na mente do leitor. Encerrada a consulta, se estabelece imediatamente a finalidade comercial do encontro. Natividade gratifica com bens materiais (dez mil-réis) os bens simbólicos que acaba de receber: o sonho de um futuro glorioso para os filhos. O BANQUETE DAS ALMAS Se para Natividade não há entraves entre o mundo dos bens simbólicos e o mundo dos bens materiais, posto que o segundo lhe assegura o primeiro, o mesmo não ocorre com o irmão das almas, ao qual Natividade confia dois mil-réis para que sejam empregados na missa das almas. Depositário de tão alta quantia e sem a tranqüilidade material de Natividade, o banqueiro das almas, responsável pela manutenção do mundo eterno, se vê momentaneamente afligido com as questões éticas já tão enfraquecidas pela nova ordem econômica e social – o capitalismo e o surgimento de uma classe burguesa inescrupulosa. Claro é que essa lucidez não ocupa os pensamentos do pobre pedinte. Sua questão é mais pragmática. Seu tempo é o presente. Seu mundo, o das necessidades imediatas. Portanto, seu conflito não dura mais do que o curto caminho que o leva à igreja, quando se dá conta, pela esmolas miseráveis que recolhe no trajeto, que aquela era uma oportunidade única. Na polifonia de vozes da sua consciência, a vontade de viver se expressa com mais vigor, se sobrepondo aos outros seres, nesse conflito da vontade de viver consigo mesma, e fazendo da representação apenas um instrumento para alcançar o seu 40 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO objetivo, como demonstrou Schopenhauer, no clássico O mundo como vontade e representação. [...] ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dous mil-réis... Os dous mil-réis, dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma... (ASSIS, 1988, p. 26). No capítulo LXXV, “Provérbio errado”, o narrador, aludindo a esse acontecimento, cita uma retificação feita por Aires a um conhecido adágio: “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”, dando um sopro de vida ao ditado: “A ocasião faz o ladrão”, palavras essas já tão desgastadas pelo uso. DE FIGURANTE A COADJUVANTE Esquecido ao longo da narrativa, o irmão das almas ressurge à cena vinte anos depois desse episódio. É outro homem na aparência e ostenta uma riqueza que teve início nos dois mil-réis tomados de empréstimo às almas. Deixou de ser um insignificante figurante, passando a ser um coadjuvante com aspiração ao papel principal. O acesso ao mundo material trouxe-lhe a reboque o registro civil: Nóbrega, como o narrador passa a nomeá-lo. ENFIM ATOR PRINCIPAL No teatro do círculo restrito dos eleitos, Nóbrega é a própria representação de uma pequena-burguesia. Deserdado de qualquer educação formal, imita caricatamente a burguesia local, a qual, por sua vez, busca o seu modelo nas praças da Europa. Cópia da cópia, protagoniza uma cena grotesca, que é descrita e comentada pelo personagem Aires no capítulo LXXIV: “Casos há – escrevia o nosso Aires – em que a impassibilidade do cocheiro na boléia contrasta com a agitação do dono no interior da carruagem, fazendo crer que é o patrão Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 41 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS que, por desfastio, trepou à boléia e leva o cocheiro a passear.” (ASSIS, 1988, p. 161)” O que se depreende da situação apresentada é a carnavalização (como a entendeu M. Bakhtin) das relações e dos valores estabelecidos no regime monárquico. A inversão de valores e comportamento é própria de um mundo em crise. Naquele momento de transição da sociedade brasileira “a vida é desviada das sua ordem ‘habitual’, em certo sentido uma ‘vida às avessas’, um ‘mundo invertido’ (“monde à l’envers”)”. (BAKHTIN, 1981, p. 105). O RITUAL E O ESPETÁCULO No esquema de Machado de Assis, em que duas ordens de valores se rivalizam em pé de igualdade, Santos é o duplo de Nóbrega, numa outra escala social. Diferente deste, Santos não é atormentado por qualquer tipo de conflito ético. É ao mesmo tempo ator e diretor das cenas de fausto que costuma promover em público. Como pontos em comum, têm a origem humilde, sem tradição, e a ascensão através da especulação com o capital alheio. Santos é um representante da classe burguesa de origem rural que enriqueceu com o jogo especulativo na bolsa de valores. Como não faz parte das oligarquias que giram em torno do poder monárquico, se vê obrigado a fazer nomeada, repetindo com pompa os espetáculos públicos habituais à aristocracia. É no quinto capítulo do romance, com a apresentação desse personagem, que Machado de Assis delimita a ordem de valores que rege aquela sociedade. A missa do coupé parece sem propósito para Natividade, que, apesar de dominar o jogo da sedução, não compreende a importância da máscara no jogo social. Contudo, para Santos, aquele espetáculo tem a função de marcar, como um ritual de passagem, a sua entrada numa outra posição social e se desligar do seu passado na província de Maricá. 42 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Para o espetáculo da missa, Santos toma todos os cuidados necessários, a começar pela escolha da igreja que, nas palavras do narrador, “não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo”. O anúncio da missa estava de acordo com os propósitos de Santos, sem nome de quem mandara rezar, sem hora e convite, e o defunto, que era um mero detalhe em toda essa formalidade, tivera o nome reduzido para João de Melo, e não João de Melo Barros. Na memória de Natividade as palavras misteriosas da cabocla vinham se juntar a esse ato quase indecifrável do marido. Longe dos seus pares, na periferia, Santos repete, em meio àquela gente pobre, o cortejo imperial. A exemplo do que ocorria nas aparições públicas do imperador, a simples presença de Santos e Natividade é suficiente para atrair atenção curiosa daquela platéia anônima. Esvaziado do sentido ritual do poder monárquico, o ato se transforma em espetáculo. A missa em si, objeto da visita do casal à igreja, bem como o motivo da missa (o falecimento de um parente) são secundários. “A missa foi ouvida sem pêsames nem lágrimas.” E a importância da alma celebrada é mensurada pelos distintivos de riqueza material: o carro de luxo, a nota de dez mil-réis entregue como paga ao sacristão, apresentados pelo parente ilustre, patrocinador da missa. Observe-se que a quantia ofertada ao sacristão é a mesma que Natividade pagou à cabocla, estabelecendo assim uma equivalência pelo valor de troca de atos simbolicamente distintos. O RITO DE INICIAÇÃO Machado faz, em Esaú e Jacó, um retrospecto de quase vinte anos antes da proclamação da República. E nos mostra que sob o regime monárquico a nova classe dirigente vai se formando e buscando se parecer nos hábitos e costumes com aristocracia. “A condição para introduzir-se junto à aristocracia Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 43 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS era aristocratizar-se, isto é, elevar o ‘modus vivendi’ da família pela adoção dos costumes e dos valores europeus, exigência indispensável para se obter um título nobiliárquico.” (MURICY, 1985, p. 53) Num trecho do capítulo sétimo, Machado mostra esse aspecto de submissão de um comportamento mais expansivo e espontâneo, denotativo de uma classe social, a um outro comportamento mais sisudo e formal, preocupado com a etiqueta das “almas bem nascidas” (ver a epígrafe do livro). No referido capítulo, a passagem que se segue é exemplar do fenômeno apontado acima: “Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abraço à cunhada, e ia dar-lhe um beijo também, se ela não recusasse [...]. Santos conservara alguns gestos e modos de dizer dos primeiros anos, tais que o leitor não chamará propriamente familiares [...]. Santos, meio arrependido da expansão, fez-se sério [...].” (ASSIS, 1988, p. 33) Santos tem consciência deste rito de passagem, portanto faz da sua vida e da vida da família um espetáculo público, pois precisa do reconhecimento daqueles dos quais ele pretende ser par, podendo assim participar do círculo dos eleitos e conseguir um título de nobre. O que só virá a acontecer dez anos passados após “a missa do coupé”. “Natividade não sabia que fizesse; dava a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o título de Barão de Santos.” (ASSIS, 1988, p. 59/60). Esse acontecimento demonstra de forma cabal como o mundo aristocrático, articulado por uma concepção essencialista, vai dando lugar a um mundo articulado pela aparência. Se para Santos a aquisição do título de barão é um indício de ascensão social, para a ordem aristocrática é um testamento da falência do regime de valores que sustentava a monarquia. 44 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O EL-DORADO, BRASIL As fortunas de Santos tanto quanto a de Nóbrega têm a mesma origem, a especulação e o roubo. Fato apontado nos capítulos: III, quando Nóbrega furta os dois mil-réis ofertados às almas por Natividade; IV, quando o narrador nos esclarece que Santos, provinciano de Maricá, também era pobre e que enriqueceu por ocasião da “febre das ações” em 1855, ganhando muito e fazendo a ruína de outros. Machado era um grande conhecedor dos artifícios inescrupulosos do tempo de encilhamento e, como funcionário do governo republicano de Marechal Floriano Peixoto, se manifestou em 30 de maio de 1892, através da via administrativa, com uma ação acauteladora do interesse público, pedindo a anulação da patente de uma “invenção” de um aventureiro americano chamado George Boynton. Sob o de “Relatório de Invenção” o postulante dissimulava uma vasta especulação por sorteio. Descoberta por Machado de Assis na sua leitura minuciosa do Diário Oficial, do dia 30 de maio de 1892, este se manifestou prontamente no mesmo dia, fundamentando seu pedido para que a concessão da patente fosse anulada o mais breve possível. A patente, que fora concedida em 18 de fevereiro de 1892, depois de várias interpelações de Machado de Assis, com despachos desfavoráveis, teve sua revogação oficializada em 08 de novembro de 1892. (MAGALHÃES JUNIOR, 1981, vol. O3, p. 200-211). Esse episódio, bem como muitos outros, inspirara o capítulo LXXII, “Um El-Dorado”, no qual Machado volta à carga contra a especulação que tomou conta do Império nas suas últimas décadas e da República no seu início. No trecho a seguir pode-se ter uma idéia aproximada do escândalo que foi esse episódio na vida da incipiente nação brasileira: “Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento [...]. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 45 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis.” (ASSIS, 1988, p. 159) Toda a situação narrado no capítulo, em que Santos explica a Batista o seu novo empreendimento, é semelhante à do aventureiro norte-americano que buscava a fortuna fácil, na terra que, no imaginário daquela época, se configurava como o lugar idílico, cheio de riquezas à disposição daqueles que aqui quisessem se aventurar. Sobre aquele período histórico de franca especulação, que teve início no ano de 1851 (quando Machado tinha apenas 12 anos), dirá Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil: “A ânsia de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades de crédito, contaminou logo todas as classes e foi uma das características notáveis desse período de ‘prosperidade’.” (HOLANDA, 1995, p. 77) Esaú e Jacó, romance dos mais complexos de Machado, é também uma síntese do contexto histórico e da ambivalência das instituições brasileiras nos cinqüenta anos que compreendem as décadas finais da Monarquia e a primeira década do governo republicano no Brasil. É nesse ambiente de debilidade institucional, entre o final de um regime e o início de outro, que o “capitalismo predatório”, como o qualificou José Murilo de Carvalho, no seu livro Os bestializados, vai encontrar campo fértil na burguesia brasileira ascendente, sem a tradição política da aristocracia: “[...] se deu a vitória do espírito do capitalismo desacompanhada da ética protestante.” (CARVALHO, 1987, p. 26). Pode-se dizer que o personagem Santos e o retrato modelar dessa nova classe social que, na falta do Imperador, elege como heróis os grandes especuladores da bolsa, como afirma ainda José Murilo de Carvalho, que em outro trecho revela uma perversão da política econômica daquela época, que nos acompanha até os dias de hoje, sendo já um traço da cultura brasileira: “A confiança na sorte, no enriquecimento 46 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO sem esforço em contrapartida ao ganho da vida pelo trabalho honesto parece ter sido incentivado pelo surgimento do novo regime.” (Idem, p. 28) Essas análises demonstram que Machado de Assis estava atento às questões da formação do imaginário da sociedade brasileira em sua época. Soube apontar com fina ironia as contradições da classe dirigente que chegou ao poder com a República. Pode-se afirmar que Esaú e Jacó traz em suas páginas, como pudemos ver, os tipos que se estabeleceram com o “encilhamento” e a extensão do liberalismo econômico aos costumes e valores da burguesia capitalista que se fartou com a política econômica da época. A ascensão da família Santos, retrato fiel de uma burguesia brasileira, caricata e ignorante, demonstra o grotesco do processo de aristocratização de um grupo social que vislumbrou na mudança político-social, que então ocorria, uma oportunidade de fazer parte do reduzido grupo que governava o país. Não se deve esquecer que Machado publicou Esaú e Jacó em junho de 1904, quase quinze anos após a proclamação da República, tendo, portanto, presenciado a gênese de todo o processo que culminou com a mudança de regime. Leitor atento de tudo que ocorria à sua volta, Machado legou-nos, não apenas uma análise da alma humana (como sempre se afirma), mas um tratado de história e sociologia, no qual até hoje se pode debruçar para melhor entender como se constitui o imaginário, que orienta a vida da classe dirigente no Brasil. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Liv. Garnier, 1988. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 47 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1981. MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões do seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1985. Recebido em 20/08/2008 Aprovado em 20/09/2008 48 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O CORTE E A CORTE DO MACHADO Sérgio da Fonseca Amaral Ufes Resumo: Apresentarei algumas das recepções de Machado de Assis realizadas ao longo de 100 anos, criadoras e constituintes de uma obra permanente ante públicos diversos, movidas por interpretações de uma escrita provocadora de diferentes tomadas de posição crítica e ideológica frente à sociedade brasileira. Palavras-chave: Machado de Assis. História. Recepção. Abstract: Je présenterai une partie des réceptions critiques de Machado de Assis, effectuées pendant 100 ans, créatrices et constitutives d’une ouvre permanente devant pubblics divers, mis en mouviment grâce à les interprétations d’une écriture qui provoque différents positionnements critiques et idéologiques face à la societé brésilienne. Mots-clés: Machado de Assis. Histoire. Réception. Comemorar 100 anos do desaparecimento de um escritor significa, antes de mais nada, que o autor não morreu. Contudo, neste ano de 2008, estamos voltados para o centenário da morte de Machado de Assis. Pensei, inicialmente, em fazer um trabalho comentando o teatro machadiano. Mas, lendo as peças, resolvi abandonar o projeto: primeiro, são trabalhos menores e a importância maior do autor reside em outras produções; segundo, diante da escolha de se fazer uma análise fechada dos textos ou de uma leitura comparativa com o teatro da época, renunciei às duas propostas, pois creio que o autor sairia perdendo. Dessa forma, não cumpriria o papel esperado para este evento. Por outro lado, falar apenas da Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 49 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS biografia de Machado de Assis, ou, por assim dizer, o que foi o homem, pouco acrescentaria aos costumeiros levantamentos retroativos para se tentar compreender a obra através da pessoa. Ora, homenagear um escritor requer falar do autor, por conseguinte, a marca Machado de Assis representa mais do que a vida de um indivíduo, mas a de uma escrita. Dessa forma, ao retomar a biografia de um escritor pretende-se recuperar, e discutir, leituras constituintes da esfinge Machado, provocadas, e evocadas, ao longo do tempo, consolidando, mas também, por vezes, colocando sob suspeita suas criações literárias, como veremos a seguir. Machado notabilizou-se como ficcionista, além de ter sido poeta, dramaturgo, cronista, crítico, epistológrafo e... letrista de música – portanto um polígrafo. Aqui, interessa o ficcionista, cujo largo espectro nos faz entender melhor o aspecto provocante de uma obra exposta às controvérsias críticas. Quando falamos em Machado, pensamos imediatamente na sua obra ficcional. Cada momento da recepção assinala um Machado e um leitor, uma maneira de ler e uma maneira de ser Machado. Talvez a dificuldade maior em entender qualquer autor esteja nesse ponto: ao procurar precisar uma leitura, pode-se ficar refém da exigência de lê-lo como ele pretensamente haveria escrito. Contudo, há maneiras difusas que se entrechocam em relação a qualquer escritor, pois as leituras são conflitantes exatamente porque não há leitores em abstrato, mas representativos de interesses particulares. Haverá tantos Machados quantas representações sociais de leitores existirem. Ou de interesses sociais motivados para haver uma determinada interpretação. Assim sendo, destaquei algumas leituras críticas sobre Machado de Assis realizadas no aludido período de 100 anos, que dirão bastante do porquê de estarmos aqui hoje, ouvindo e falando sobre um escritor cuja reflexão ficcional parece conter e revelar o enigma de um país, constituindo-se, assim, ele próprio um enigma. Tais leituras por vezes foram contundentes, tanto para elogiá-lo, quanto para atacá-lo. Em síntese, é um escritor emblemático produzido 50 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO pela cultura brasileira, além de representar uma contradição viva da sociedade que o gerou. Comemorar a sua morte revela o autor estar bem vivo e passar bem. As épocas lêem de acordo com seus juízos e seus esquemas de valores e circunscrevem uma dada maneira de viver teórica e praticamente. Logo, é lícito imaginar a recepção de um escritor como condicionada a tais variáveis temporais. Uma dada comunidade, num certo tempo e espaço, recebe, interpreta, avalia, julga, aceita ou repudia uma obra sob determinados paradigmas de crenças. Os tão decantados valores imortais de uma obra ou autor dependem menos do texto do que de seus intérpretes. Um crítico, por princípio, deve ser um leitor mais aparelhado. A seu modo, e aí reside a marca própria, traduz um juízo de um tempo sobre um escritor em questão. Legitimado para cumprir um papel no contexto social de pensamento, portanto, desencadeador de uma leitura que, necessariamente, exige do lido um direcionamento teórico e prático, tal abordagem, por isso mesmo, estará apta a representar um conjunto de idéias; não só as do crítico, mas também de uma parcela representativa da comunidade de leitores. Sintetiza as vozes e inquietações de um dado momento. Quanto a isso José Veríssimo já nos chamava a atenção, no início do século XX, na introdução de seu livro História da literatura brasileira, de 1912: Parece um critério, não infalível mas seguro, de escolha, a mesma escolha feita pela opinião mais esclarecida dos contemporâneos, confirmada pelo juízo da posteridade. Raríssimo é que esta seleção, mesmo no Brasil, onde é lícito ter por menos alumiada a opinião pública, não seja ao cabo justa, e só os que lhe resistem são dignos da história literária. Não pode esta, a pretexto de opiniões pessoais de quem a escreve, desatender à seleção natural que o senso comum opera nas literaturas. Como se vê, o crítico reconhecia haver no seu trabalho uma Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 51 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS pregnância de seus contemporâneos. As leituras e interpretações sucedem-se e, por vezes, chocam-se, contradizem-se, ou, por outra, uma ponta se laça a outra em grandes saltos de tempo que se reencontrariam. Contudo, cada momento histórico e cada comunidade fazem uma leitura singular dos textos a lhes ser propícios receber. Dessa forma, enfeixando algumas das leituras feitas sobre Machado, pretende-se traçar e entender um percurso e uma imagem de um autor como uma singularidade constantemente criada, repensada, revalidada e legitimada socialmente. Partirei de um perfil público de Machado, já famoso no final século XIX, do qual Silvio Romero (1851-1914), já destoante, nos dá notícias e sobre o qual procura analisar sob uma outra medida, num livro intitulado Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira, publicado em 1897. Com variantes, atenuantes e inversões, o pensamento crítico de Silvio Romero permanece até os dias de hoje. Primeiro, pretendia ele aparar as arestas do exagero dos elogios; segundo, tratava-se de avaliar a obra do ficcionista em relação ao universo social e político brasileiro; e, terceiro, dentro de uma lógica de combate, cobrar uma tomada de posição sobre as questões nacionais. Se, antes da morte de Joaquim Maria Machado de Assis, a exigência, no calor da hora, era no sentido de atacar o ficcionista naquilo que representava, ideologicamente, a manutenção do atraso brasileiro ante a premência da modernização e do pensamento científico, futuramente, como topo do cânone, em nome de uma arte pensada como puro pensamento critica-se o autor por atenuar as desigualdades sociais dentro da representação ficcional, num crítico como Flávio Koethe, por exemplo, que veremos mais adiante. Mas, retornando, é interessante observar a forma irritada, impaciente, impiedosa, mesmo, como Sílvio Romero aborda Machado de Assis. No entanto, para o crítico elucidar aquilo que ele considera o verdadeiro escritor tem de atravessar a fama do autor já firmada pelo consenso da opinião pública e da crítica. Para isso, paga o tributo necessário, destacando, inicialmente, as qualidades do autor e do seu 52 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO talento. Aos poucos, porém, no desenrolar do ensaio, chega ao ponto de interseção cujo vértice é o contraponto entre um estudo sério, o seu, e as considerações elogiosas fáceis, para inglês ver. Não entrando no mérito da questão, essa é a senha para Silvio Romero demarcar a escrita de Machado de Assis, compará-lo com escritores da Escola de Recife, de onde ele próprio era originário, e analisá-lo sob a ótica de uma crítica que se queria científica (evolucionista), procurando situar na justa medida o homem, a obra e a sociedade. Tal entendimento era um esforço concentrado de, ao mesmo tempo, escapar da tradição retórica brasileira e de compreender racional e modernamente o papel, a contribuição, o valor e o poder de persuasão da obra do escritor Machado de Assis na sociedade brasileira. Não estava em questão apenas uma apreciação estética, beletrista, de um autor. O exame de Machado feito por Sílvio Romero passa pelo tripé: biografia, obra e meio social. Segundo a análise proposta, esse modelo interpretativo explicaria e colocaria o autor no devido patamar do panteão dos escritores. Assim sendo, podemos destacar algumas categorias escolhidas pelo analista para compreender o ponto de vista de uma crítica fundada em “sóbrias observações solidamente racionais” e que hoje percebemos facilmente o quão frágil são os seus fundamentos. Na avaliação do crítico, pouca coisa fica de pé, pois a ficção do autor é medida, comparada, corrigida, reescrita segundo a necessidade de significar algo compromissado de antemão. Portanto, existem modelos e conceitos a priori sobre o que a ficção deve obedecer. A escolha do crítico, para julgar a ficção do autor, recai em quatro tópicos: estilo, humor, pessimismo, tipo. Com os quatro elementos destacados acima, o crítico procura desancar o autor fluminense. Estabelece uma simetria entre a escrita do autor com a fala acometida de gagueira, como se Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 53 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS uma fosse reversível na outra4. No famoso humor machadiano, o crítico não vê graça nenhuma. Quanto ao pessimismo, seria esse de fancaria, copiado de ingleses e alemães com veleidades de profundidade. Sílvio Romero, no entanto, destaca Machado no que ele teria de criador de tipos e lamenta o autor não ter se dedicado mais a tal característica por impregnar os personagens de uma cor tipicamente local. Logo, vê o escritor como um legítimo narrador em que o nacional (ou local) se afigura como um traço forte5, em detrimento do universalismo pontuado por José Veríssimo (mais tarde aceito). Não na recorrência ao típico ou ao exótico, mas na captura do característico, porém abstrato, da gente brasileira. No saldo, Sílvio Romero coloca Machado de Assis abaixo da opinião geral, pois, para ele, o escritor andava em desacordo com, pelo menos, duas ordens: o projeto artístico era de menor monta do que se dizia, e as idéias do autor poderiam ser mais influentes na sociedade brasileira desde que permanecesse como pintor da alma nacional e não se metesse a copiar características alheias, como as filosofadas humorísticas e pessimísticas. Observe-se ainda o crítico não separar as já famosas duas fases do escritor como se fosse uma gritante ruptura, mas como uma continuidade natural de uma na outra. Como se vê, a crítica romeriana tinha um tom normativo ao vincular o trabalho do escritor ao papel da literatura na sociedade. Mesmo assim, ou apesar disso, a análise de Sílvio Romero, como todos os críticos da época, ainda permanecia, “O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata de seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. [...] Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. ‘Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada’, disse-me uma vez não sei que desabusado num momento de expansão, sem reparar talvez que dava-me destarte uma verdadeira e admirável notação crítica.” Sílvio Romero. Machado de Assis, p. 122. 4 5 54 • Ver páginas 64, 65 e 66. Op. cit. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO a despeito de se proclamar científica, desconhecendo a relação texto/contexto, mesclando autor, obra e mundo social sob um mesmo padrão de interpretação. Ou, de outra maneira, associava-se, e ainda hoje se repete o mesmo preceito, imediatamente as disposições do escritor às linhas do texto. Em seguida, passo, de forma breve, ao crítico e historiador da literatura José Veríssimo (1857-1916). Embora falando de Machado numa clave diferente, e até inversa à de Sílvio Romero, há pontos de contato entre esses dois analistas do final do século XIX e início do XX. Enquanto Sílvio Romero desqualifica Machado, José Veríssimo o aponta como o ápice da criação literária no Brasil. Romero, submetendo o escritor à rigidez do ponto de vista de que arte, meio social e, sobretudo, raça andam pari passu e são os fatores determinantes para explicar uma produção estética, entra em confronto com Veríssimo que julga um escritor a partir do olhar estilístico e beletrista. Nesse sentido, os torneios das frases e todo o arcabouço lingüístico gramatical figuram como importantes recursos para fazer da obra de Machado uma grande obra de arte da literatura brasileira. Ou seja, o aspecto vernacular sobressai-se sobre o literário. Logo, Veríssimo encontra uma outra forma de explicar a arte literária para julgar positivamente Machado. Passa também pelos critérios destacados por Romero, como estilo, humor, pessimismo, tipo. Porém, ao contrário daquele, esses se lhes afiguram como sobejamente realizados pelo nosso autor, como podemos deduzir do seguinte louvor: “Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo.” (História da literatura brasileira, p. 393). Dois representantes da crítica naturalista, apesar de partirem de vizinhas fontes teóricas e conceituais, terminam por desfechar considerações analíticas diferentes sobre Machado. Crítica nascente, pretendendo assentar-se em bases científicas, traçou um perfil de Machado de Assis que será revisto e revisado posteriormente. Contudo, ao final alavanca e propaga o nome do escritor para ser solicitado mais a frente pelos novos críticos Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 55 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS a vir. Um nome importante da crítica da primeira metade do século XX é o de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959). (Lúcia, também biógrafa e romancista, morre em 1959 num acidente de avião). Após a fase que podemos dizer inicial da crítica brasileira, Lúcia retoma Machado sob outros parâmetros. De formação católica, ela entra em confronto com as críticas chamadas sociológicas e vai buscar no aspecto biográfico e psicológico as bases para se calçar e entender Machado de Assis, o homem e a obra. Isso é feito num livro monumental intitulado Machado de Assis, em 1936. Aí, pretende projetar um quadro psicológico por intermédio de dados biográficos para interpretar a obra. Ou, quiçá, o contrário: a partir da obra falar do homem. Tal empreitada merece da autora um emaranhar-se em todas as fases da vida do escritor desde a infância até à velhice. Quando há falta de documentos, o próprio texto ficcional de Machado serve de base para se traçar o perfil; quando há o testemunho documental este serve de apoio para se interpretar o texto ficcional. Como se pode ver, tal crítica, se não fundou, pois já vem de antes, ganha na autora um sistema acabado de relacionar imediatamente psicologia, traço biográfico e ficção6. Que faz fortuna até os dias de hoje. Semelhante crítica também plantava um pé no discurso científico, dessa vez não mais no determinismo, positivismo ou evolucionismo do período naturalista, mas na psicologia. Nesse sentido, Lúcia Miguel Pereira, juntamente com Augusto Meyer (1902-1970), proporcionará uma ruptura com a crítica anterior, libertando Machado da concepção oficial da leitura voltada apenas para as articulações entre homem e meio. No caso de Meyer, há, além disso, uma clareza em relação à importância do leitor para a sobrevivência de um autor, pois como ele próprio afirma impossível imaginá-lo senão em andamento no tempo, avultando “Pelo que conhecemos da sua vida, Dom Casmurro – a sua única história de amor – deve ser aquela em que Machado nada pôs de autobiográfico. Mas será mesmo? Essa única exceção numa obra tão grande, e quase sempre tirada de dentro do autor, será possível? Além dele, só Ressurreição não parece encerrar nenhuma confissão.” Machado de Assis, p. 238. 6 56 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ou decrescendo de importância, quase esquecido às vezes, para ressurgir mais tarde, transfigurado à imagem de outras gerações. Essa nota dá o tom para a guinada da crítica que estava se operando. Contudo, devemos não nos esquecer que as leituras de uma época se fazem em confrontos diretos, encontros e desencontros umas com as outras. Além disso, uma época posterior termina por se defrontar com as anteriores, corrigindo, revisando, acrescentando e suprimindo. Por isso, para melhor mapear algumas das principais leituras estabelecidas sobre Machado nesses 100 anos, recorremos ao artigo “Esquema de Machado de Assis”, de Antonio Candido, publicado em Vários escritos em 1970. Segundo o crítico, podese rastrear um certo esquema de leitura da obra de Machado. Além daquelas acima destacadas, ou seja, a ironia e o estilo como linguagem refinada; o pessimismo expresso por uma “filosofia” ácida, mas acessível a todos; o dado biográfico da discrição, da reserva e da urbanidade, Antonio Candido rastreia os seguintes assuntos levantados a partir da obra de Machado: 1 – o problema da identidade (quem sou eu? O que sou eu? Em que medida existo por meio dos outros? Haverá mais de um em mim?). Aí reside a questão do desdobramento da personalidade (“O espelho”) ou da loucura (“O alienista”); 2 – a relação entre fato real e fato imaginado, em que o ciúme é o impulso central. Como exemplo, a leitura de D. Casmurro; 3 – qual o sentido de um ato praticado? Tema tratado em Esaú e Jacó; 4 – a temática da perfeição, a aspiração ao ato completo. Um exemplo seria o conto “Um homem célebre”; 5 – há diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto? Ver Memórias póstumas de Brás Cubas; Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 57 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS 6 – a transformação do homem em objeto do homem, ou seja a exploração econômica, social e espiritual. Tema caro ao próprio Antonio Candido e tem na filosofia do Humanitismo o melhor exemplo. Como se percebe, há um andamento das leituras sobre Machado. Claro está que tal esquema não significa um processo evolutivo em linha reta das interpretações feitas, mas ajuda a esclarecer como um escritor vai sendo “criado” ao longo de um tempo, das épocas e das comunidades de leitores. Vindo um pouco mais para frente, podemos destacar três situações de leituras sobre Machado. Uma tem como suporte metodológico a teoria do efeito estético. O maior representante no Brasil é Luiz Costa Lima. Uma outra filiada à tradição marxista, e a Antonio Candido, pode ser chamada de crítica dialética, aqui representada por Roberto Schwarz. A terceira, também filiada à tradição marxista, pode ser apelidada, na falta de um termo melhor, de crítica radical ou de esquerdista, destaquei Flávio Koethe como o seu expoente. É interessante notar que as três críticas têm como mote a articulação entre mundo social e ficção, a diferença será acentuada pelo método utilizado. No primeiro caso, Costa Lima, embora não tenha dedicado nenhum livro específico ao autor, por outra escreveu alguns ensaios, analisando algumas de suas produções ficcionais, inclusive o conto “O alienista”, a ser lido aqui hoje. Não deixa de avaliar um caminho antes percorrido pela crítico brasileira para balizar a sua interpretação. Costa Lima procura afastar de si duas vertentes opostas: a análise imanente e a transcendente do texto literário. Seus ataques mais contundentes vão contra o sociologismo, de marxistas ou não marxistas. Desse modo, o conceito-chave de sua obra é o de mímesis, cuja reinterpretação vem perseguindo ao longo da vida, na qual procura dessubstancializá-la. Isso significa dizer que, ao se deparar com um objeto de arte, o sujeito tanto encontra, quanto põe experiência estética. Nesse caso, nem o mundo é apenas representado, negando as análises 58 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO sociológicas, ou a obra basta a si mesma como estilo, ou artefato lingüístico, rebatendo as considerações imanentistas. No livro Dispersa demanda, de 1981, há um capítulo dedicado a Machado intitulado “Sob a face do bruxo” que dá um pequeno exemplo de tal prática de leitura. Usando o conceito de alegoria, tomado de empréstimo a Benjamin, para estudar os romances do autor, demarca claramente a historicidade da obra de arte e, conseqüentemente, de Machado. Ou, como afirma o crítico, [...] à medida que a consciência da historicidade da interpretação dos objetos literários constitui uma das bases da maioria das teorias contemporâneas da literatura, os escritores ‘alegóricos’ se tornam favorecidos. O interesse que hoje Machado desperta não é pois uma prova da perenidade da arte, mas apenas que sua poética [...] tornou-se para nós privilegiada. (p. 77). Portanto, a posição de Costa Lima toma como princípio norteador de leitura da obra de Machado o seu lugar no tempo histórico, porém não como representação social, ou traços biográficos ou psicológicos, nem o estilo, nem apenas o aspecto intrínseco da obra, ou a forma, mas na articulação entre o fictício e a realidade histórica determinada. Com Roberto Schwarz, a crítica marxista dialética ganha um ponto alto na análise do texto literário e machadiano. Schwarz, em conformidade com o seu mestre Antonio Candido, procura estabelecer o nexo preciso entre ficção e realidade, forma e conteúdo, texto e contexto. Nessa dialética, num diálogo permanente, traça o perfil do autor e da sociedade de onde emana a obra. É o caso de citar os livros Ao vencedor as batatas (1977) e Um mestre na periferia do capitalismo (1990), cujas análises, respectivamente, dos primeiros romances machadianos e de Memórias póstumas demonstram tal articulação. Entretanto, para o interesse desta apresentação, é forçoso destacar que os dois críticos mencionados partem tanto das teorias reconhecidas contemporaneamente, quanto de Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 59 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS uma tradição crítica existente no país para alçar novos vôos nas leituras de Machado. Independente das diferenças e embates que uma tenha entrado com a outra, os dois críticos reconhecem um lugar maior de Machado, e nisso seguem a corrente da tradição, no cânone da literatura nacional. O último a ser listado aqui, Flávio Kothe, procura destoar daqueles que ele considera os críticos canonizantes. No seu livro, O cânone imperial (2000), precedido por O cânone colonial, passa em revista os escritores da historiografia literária para atacar toda a construção da literatura nacional. A alegação é de que o critério utilizado para isso foi a conveniência ideológica. Os escritores consagrados, já por si uma marca ideológica, transformaram-se em tabus de par com as suas presenças nas antologias escolares. Por isso ele aponta para a desconstrução do cânone e da crítica. Seu critério de reavaliação pretende defender a literatura como arte. Vejamos se assim se procede. No livro há três capítulos dedicados a Machado. No primeiro, “Machado e o negro”, as formulações sobre o autor baseiamse na clave biográfica, psicológica e sociológica da velha crítica. Numa torção histórica vislumbramos a sombra de Sílvio Romero. É interessante observar, lembrando-nos de Marx, de como a história retorna. Além, das mencionadas claves, há erros de informação, e uma deliberada anacronia nas “análises” dos textos machadianos. Como exemplo, tomemos o comentário do crítico sobre o capítulo XCII de Dom Casmurro durante uma conversa de Bento com Escobar sobre a fazenda da família de Bentinho: Aí se evidencia a riqueza de Bentinho, a sua posição de classe. E ele é também o narrador. Sob a aparência de mostrar a cordial simpatia de Escobar, o narrador quer demonstrar a intrínseca falsidade dele; sob a aparência de dar a palavra ao escravo, faz com que a sua fala mostre o seu espírito subalterno. Dá-se a fala para melhor calá-lo. É manifesto o conformismo do escravo com a sua humilde situação: quem assim “aceita” ser escravo, como que merece a escravidão. 60 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Ele “é” porque “merece”, porque “quer”, porque nem pensa em outra situação: ele não é assim porque isso lhe foi imposto. Seria ingênuo esperar do preto que ele pudesse ser melhor do que o senhor branco que o explorava. Machado procura provar que o senhor branco é melhor, sem ver em um o espelho do outro, o retrato avesso. [...] Dom Casmurro é, de modo típico, escrito da perspectiva de um senhor de escravos e herdeiro da oligarquia latifundiária: não há um estranhamento quanto a isso. [...] O narrador provém de uma família de latifundiários e donos de escravos: automaticamente é o dono da palavra. [...] Ele é o senhor do dinheiro, dos destinos, do discurso. [...] Aí se mostra de modo representativo o gesto semântico do cânone brasileiro, a sua coesa perspectiva senhorial. (Pp. 472-3. Grifos meus). Não me alongarei mais nas citações e considerações do crítico. Basta dizer que as seqüências de análise obedecem ao mesmo paradigma. Como se pode depreender, a crítica é radical. Mas, há um problema nela: estreitar demais as relações entre ficção e mundo social. Não basta dizer as palavras mágicas – narrador, gesto semântico etc. – para que a análise faça a mediação necessária entre uma instância e outra. Koethe só leva em consideração as informações historiográficas sobre a situação social brasileira do séc. XIX, não se preocupa em interrogar mais de perto a trama ficcional. Tudo para justificar a defesa de uma tese. Nesse sentido, encontra-se com Sílvio Romero: para ajustar a teoria precedente ao objeto a análise perde seu rigor e direção e torna-se um julgamento a posteriori de quem se quer condenar. Ou seja, a ideologia do crítico se hipertrofia em relação ao objeto ficcional. Contudo, para encurtar, poderíamos fustigar o crítico e perguntar de onde pôde ele alimentar os ataques frontais. Pois, mesmo contra si mesmo, o texto machadiano oferece elementos para que se deitassem palavras sobre o escravo, percebesse a situação de classe do narrador e a situação desproporcional em tal relação de poder. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 61 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Finalizando, estão aí, em linhas bem gerais, algumas das recepções de Machado e de sua imagem paulatinamente construída ao longo desses 100 anos, o que prova o autor não estar morto. Espero ter deixado claro como um autor situa-se além dele mesmo, em conjunto, primeiro com a rede social que estabelece a importância de um escritor, pois ao se privilegiar um em detrimento de outro entra em questão uma série de componentes, interesses históricos e valores sociais; segundo, de como a marca de um escritor Machado de Assis, por exemplo, solicita um certo panorama de recepção por ser socialmente construída, fundando expectativas de leituras dentro de um quadro ficcionalmente determinado. Recebido em 27/07/2008 Aprovado em 29/08/2008 62 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO A GALERIA MACHADIANA Ricardo Ramos Costa Uerj A obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante. Essa condição constitui característica de toda obra de arte. (Umberto Eco) Resumo: A proposta deste estudo é analisar a presença das Belas-artes na prosa machadiana. Para isso, buscamos investigar como as citações, as descrições, a fruição estética e outros contatos com obras artísticas são apresentados na obra do escritor e compõem um espaço das artes visuais na literatura. Palavras-chave: Machado de Assis. Estética. História da Arte. Abstract: The purpose of this study is to analyse the presence of the Fine Arts in Machadian prose. In order to do so, we try to investigate how quotations, descriptions, the aesthetic use and other contacts with artistic works are presented in the writer’s work and make room for the visual arts in literature. Key words: Machado de Assis. Aesthetic. History of Art. A vasta fortuna crítica que a obra de Machado de Assis criou e tem motivado durante as últimas décadas indicam, dentre várias faces desta imensa obra, a importância da biblioteca do escritor na formação de suas peças (romances, contos, poemas). O livro A Biblioteca de Machado de Assis, organizado por José Luiz Jobim em parceria com outros pesquisadores brasileiros e estrangeiros, explora através de vários ensaios a Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 63 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS biblioteca pessoal do escritor, buscando encontrar as relações da mesma com as obras literárias de Machado, através das citações diretas ou indiretas a autores que se encontram nesse rico mosaico de referências. De modo análogo, propomos neste trabalho uma pequena exposição das referências artísticas (principalmente de vertente pictórica) na obra do autor em causa, pois consideramos que o seu “museu imaginário” é tão importante quanto a sua biblioteca. Para isto selecionamos alguns trechos de romances e contos do autor onde podemos constatar referências, citações, descrições de obras de arte e momentos de fruição estética. A galeria machadiana é composta quase que exclusivamente por obras acadêmicas, ou seja, por obras que fazem parte de alguma corrente estilística, que foram produzidas por artistas formados dentro de uma tradição artística (proeminentemente de vertente européia) e que possuem um conjunto de preceitos técnico-formais e ideológicos, e que foram aceitas como produtos artísticos genuínos dentro do contexto histórico em que foram criadas. No livro Quincas Borba temos a seguinte menção à presença de obras pictóricas e escultóricas na residência de Rubião: O barbeiro relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia a principal figura a secretária, e sobre ela os dous bustos de Napoleão e Luís Napoleão. Relativamente a este último, havia ainda, pendentes da parede, uma gravura ou litografia representando a “Batalha de Solferino”, e um retrato da imperatriz Eugênia. (ASSIS, 1971, p. 766) E o próprio barbeiro francês, Lucien, comenta sobre as esculturas: “Ah! O imperador! Bonito busto, em verdade. Obra fina. O senhor comprou isso aqui ou mandou vir de Paris? São magníficos. [...]” (ASSIS, 1971, p. 766). Rubião tem especial interesse pela imagem de Napoleão, nesta passagem de Quincas Borba pede ao barbeiro que dê ao seu rosto as formas da “pêra” e dos bigodes do imperador francês. 64 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO (Batalha de Solferino, Autor desconhecido, 1859-1860)7 O quadro Batalha de Solferino representa o combate que opôs os exércitos aliados da Sardenha e da França ao exército da Áustria-Hungria, durante a segunda guerra da independência italiana; o exército francês saiu vitorioso deste combate, liderado por Napoleão. A outra gravura de que trata a citação, a imperatriz Eugênia, foi esposa de Napoleão III com quem se casou em 1853. Esta pintura insere-se nas características do Romantismo, principalmente pela forte dramaticidade em que representa esta cena histórica. Numa outra obra, o conto “Uma excursão milagrosa”, temos a seguinte descrição do personagem Tito: Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos. (ASSIS, 1971, p. 760: destaques nossos) Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Imagem:Battaglia_di_Solferino_(Henry_Dunant).jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008. 7 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 65 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Neste trecho a figura de Tito é comparada a de Alcibíades, rapaz de rara beleza e de família da elite ateniense que viveu entre os anos 450 e 404 a.C. Foi discípulo de Sócrates; dotado de brilhantes qualidades, cometeu inúmeros desvios por causa de sua personalidade extravagante. Representações de temática da história e da mitologia grega fazem parte do estilo Neoclássico na pintura, como podemos observar na seguinte obra de Jean-Léon Gérôme: (Sócrates ao encontro de Alcibiades na casa de Aspásia, JeanLéon Gérôme, 1861)8 Esta pintura faz parte de uma seleção de obras conhecidas nos meios intelectuais e pela aristocracia brasileira do século XIX. Machado de Assis explora este repertório visual na descrição de seus personagens. Acreditamos que os leitores de seu tempo, em sua maior parte, conheciam as várias referências apresentadas (inclusive as de obras de arte), como podemos notar ainda no livro Ressurreição, onde o personagem Luis Batista descreve um capricho de sua amante e a semelhança desta com outra gravura: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Imagem:AspasiaAlcibiades.jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008. 8 66 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Pela conversa adiante falou-me duas ou três vezes numa gravura que vira na Rua do Ouvidor, e que o dono vendera quando ela lá voltou, disposta a comprá-la. O assunto era o mais ortodoxo possível: a Israelita Betsabé no banho e o rei Davi a espreitá-la do seu eirado. [...] A gravura creio que era finíssima; mas tinha, além disso, um merecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que a figura de Betsabé era a cópia exata das suas feições. (ASSIS, 1971, p. 182: destaques nossos) (Betsabé com a carta do rei David, 1654, Rembrandt Harmenszoon van Rijn)9 A pintura que selecionamos para ilustrar essa passagem é a célebre “Betsabé com a carta do rei David” de Rembrandt. Notamos Disponível em: <http://moinho-vermelho.blogspot.com/2005/04/artede-transformar-xxx-rembrandt-ii.html>. Acesso em: 05 nov. 2008. 9 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 67 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS que Machado de Assis usa a expressão “gravura” reiteradas vezes para se referir na verdade à reproduções de trabalhos de pintura. Na sociedade aristocrática brasileira do século XIX, assim como a descrita pelo escritor em várias obras, era comum a compra de cópias de quadros de pintores famosos, em sua maioria provenientes da Europa, como sugere ainda o personagem Luis Batista em Ressurreição: “[...] eu deveria aproveitar o paquete que partiu ontem e mandar vir da Europa a gravura. [...]” (ASSIS, 1971, p. 183). Estas reproduções eram chamadas de “gravuras”, embora devemos lembrar que a gravura é uma técnica artística distinta (com as variantes litogravura, xilogravura e gravura em metal), com procedimentos e resultados diferentes da pintura. (Luís XVI da França, [s.d.], A. F. Callet)10 10 68 • Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Ludvig_ Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Em Esaú e Jacó temos mais uma referência à “gravura” no constante embate entre os irmãos Pedro e Paulo: “Logo depois, Pedro viu pendurado um retrato de Luís XVI, entrou e comprou-o por oitocentos réis; era uma simples gravura atada ao mostrador por um barbante. Paulo quis ter igual fortuna, adequada às suas opiniões, e descobriu um Robespierre” (ASSIS, 1971, p. 978). Machado de Assis explora estas referências pictóricas para sugerir o perfil de personalidade de seus personagens. Há certa relação de espelhamento entre o perfil sugerido dos personagens com as pinturas apresentadas, ou pelo menos os personagens buscam certa identificação com as figuras retratadas. Rubião com Napoleão, Pedro com Luís XVI e Paulo com Robespierre. Podemos notar que as figuras das pinturas são sempre personalidades importantes da história, admiradas por seus grandes feitos: Imperadores, Reis e Revolucionários. (Robespierre, Anônimo, 1790)11 XVI_av_Frankrike_portr%C3%A4tterad_av_AF_Callet.jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Robespierre. jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008. 11 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 69 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS É particularmente curiosa a alusão a Luís XVI e Maximilien Robespierre (referentes a Pedro e Paulo respectivamente), pois se tratam de dois rivais na história da França. Robespierre (17581794) foi um dos mais conhecidos líderes da Revolução Francesa, e Luís XVI (1754-1793) foi deposto e decapitado pela Revolução Francesa. Esta evidência acentua a relação conflituosa entre os personagens irmãos (rei versus revolucionário – Pedro versus Paulo). No início do conto “As bodas de Luís Duarte” a decoração da casa com novas “gravuras” cria uma situação controversa entre José Lemos e a esposa: O respeitável dono da casa, trepado num banco, tratava de pregar à parede duas gravuras compradas na véspera, em casa do Bernasconi; uma representava a “Morte de Sardanapalo”; outra, a “Execução de Maria Stuart”. Houve alguma luta entre ele e a mulher a respeito da colocação da primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um grupo de homens abraçado com tantas mulheres. Além disso, não lhe pareciam próprios dois quadros fúnebres em dia de festa. José Lemos, que tinha sido membro de uma sociedade literária, quando era rapaz, respondeu triunfantemente que os dois quadros eram históricos. E que a história está bem em todas as famílias. (ASSIS, 1971, p. 192) 70 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Na página anterior (A Morte de Sardanapalo, 1827-28, Eugène Delacroix)12 (A execução de Maria, rainha da Escócia, 1867, Robert Herdman)13 Nesta passagem do conto, entram em cena duas importantes pinturas de fatos históricos. A primeira representa a história de Sardanapalo – suposto rei da Assíria de 836 a 617 a.C. –, que prestes a ser aprisionado na Babilônia mandou fazer uma Disponível em: <http://www.pintoresfamosos.com.br/?pg=delacroix>. Acesso em: 05 nov. 2008. 12 Disponível em: <http://www.marie-stuart.co.uk/Mariaregina.htm>. Acesso em: 05 nov. 2008. 13 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 71 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS fogueira no pátio do palácio e nela se atirou, com todas as suas mulheres e tesouros. O quadro é de Eugène Delacroix, pintado em 1827 e hoje exposto no Museu do Louvre. Delacroix (1798-1863) é um importante pintor francês do romantismo; dentre suas obras mais conhecidas está “A liberdade guiando o povo”. A segunda pintura retrata a execução de Maria Stuart, rainha da Escócia (1548-1587). Maria Stuart pretendeu o trono inglês, mas foi presa por ordem de sua prima Elizabeth I (1533-1603), que, depois de mantê-la em cativeiro por 18 anos, mandou decapitá-la. Na época em que se passa o conto há várias representações deste fato, porém a que se tornou mais conhecida é a pintura de Robert Herdman “The Execution of Mary, Queen of Scots” pertencente à Glasgow Art Gallery. O conflito de opiniões entre José Lemos e D. Beatriz revela, também, os diferentes modos de fruição gerados pelas obras de artes. D. Beatriz preocupa-se com o aspecto descritivo das obras em questão, suas aparências imediatas, sem compreender o contexto em que as obras surgiram e de que tratam. Já José Lemos tem maior conhecimento das obras colocadas à sala, porém a exposição dos quadros indica mais uma tentativa de afirmar uma condição social elevada (ou almejada), onde a apreciação artística é algo valorizado como dote de cultura. Ainda no conto “As bodas de Luís Duarte” notamos que alguns personagens manifestam interesse pela arte de forma dissimulada, apenas para apresentarem-se como pessoas “finas” e de bom gosto, isto expressa estratégias que alguns personagens empregam para melhor aceitação ou ascensão a um grupo social aristocrático na obra. É o que podemos notar na passagem a seguir onde Calisto Valadares revela a sua falsa opinião sobre o quadro “A morte de Sardanapalo”: Soltou um grande suspiro e começou a contemplar as gravuras compradas na véspera. — Que magnífico é isso! exclamou ele diante do 72 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO “Sardanapalo”, quadro que achava detestável. — Foi papai quem escolheu, disse Rodrigo, e foi essa a primeira palavra que pronunciou desde que entrou na sala. — Pois, senhor, tem bom gosto, continuou Calisto; não sei se conhecem o assunto do quadro... — O assunto é “Sardanapalo”, disse afoitamente Rodrigo. — Bem sei, retrucou Calisto, estimando que a conversa pegasse; mas pergunto se... Não pode acabar; soaram os primeiros compassos. (ASSIS, 1971, p. 197: destaques nossos) Em outro conto, “Habilidoso”, Machado de Assis apresenta a personagem D. Inácia dos Anjos como uma pessoa de pouco conhecimento sobre a arte: E seja dito isto em honra dos seus sentimentos filiais, porque a mãe, D. Inácia dos Anjos, tinha tão pouca lição de arte, que não lhe consentiu nunca pôr na sala uma gravura, cópia de Hamon, que ele comprara na Rua da Carioca, por pouco mais de três mil-réis. A cena representada era a de uma família grega, antiga, um rapaz que volta com um pássaro apanhado, e uma criança que esconde com a camisa a irmã mais velha, para dizer que ela não está em casa. O rapaz, ainda imberbe, traz nuas as suas belas pernas gregas. — Não quero aqui estas francesas sem vergonha! bradou D. Inácia; e o filho não teve remédio senão encafuar a gravura no quartinho em que dormia, [...]. (ASSIS, 1971, p. 1051-1052) Por ter poucas lições de arte, D. Inácia não aprovava a exposição do quadro em sua casa. O autor explora esta falta de afinidade da personagem com as artes como uma marca Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 73 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS distintiva de sua condição social inferior. Cria-se mais uma vez uma situação conflituosa – como metáfora das complexas relações sociais no Brasil –, entre mãe e o filho João Maria – o “habilidoso”; pois este, embora estivesse na mesma condição social de D. Inácia, tinha na arte (criando pinturas, ainda que de forma rudimentar) esperança de fama e consequentemente de mudança de vida, pois ele acreditava ter um gênio de artista. Pela descrição da pintura na citação anterior, trata-se muito provavelmente de uma reprodução da tela “Ma souer n’y est pas”, de 1853, comprada pela Imperatriz Eugênia, mulher de Napoleão III, para a coleção imperial, que rendeu ao grego Jean-Louis Hamon (1821-1874) um enorme sucesso popular. Hamon cria em suas pinturas composições graciosas e delicadas, explorando principalmente representações de cenas infantis, características que podemos notar na pintura a seguir: (Aurora, 1864, Jean-Louis Hamon)14 14 74 • Disponível em: <http://www.askart.com/AskART/artists/seRevista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO A presença das Belas-artes na obra machadiana revela um “gosto” artístico comprometido com a aristocracia brasileira do século XIX e com os meios intelectuais ligados a ela. Embora o escritor mulato seja celebrado como um dos mais importantes da literatura brasileira, as obras da maturidade do autor, denominadas de “realismo machadiano”, não apresentam as manifestações artísticas ligadas às classes populares e aos negros. A arte é exaltada a partir de um cânon eurocêntrico – que na maioria das vezes reflete a estagnação das classes sociais brasileiras –, herança do colonialismo no Brasil. A apropriação da arte torna-se mormente atributo de distinção de classe. Mais uma vez em Quincas Borba, temos a referência a pintura na obra machadiana. Nesta citação podemos tomar as obras de arte como as últimas recordações de um passado próspero do Major Siqueira e sua filha, agora em situação precária: Certo, a casa dizia a pobreza da família, poucas cadeiras, uma mesa redonda velha, um canapé gasto; nas paredes duas litografias encaixilhadas e em pinho pintado de preto, uma era um retrato do major em 1857, a outra representava o “Veronês em Veneza”, comprado na Rua do Senhor dos Passos. (ASSIS, 1971, p. 757) O texto sugere que o “Veronês em Veneza” seja o título de um quadro, o que levaria a supor que se trata de um auto-retrato de Paolo Cagliari, conhecido como “Il Veronese” (1528-1588), importante pintor italiano do período maneirista, que, nascido em Verona, estabeleceu-se em Veneza por volta de 1552; mas pode tratar-se também de um retrato de Veronese, pintado por outro artista. Sua produção e vida artística desenvolveram-se em Veneza onde incorpora ao estilo aprendido o Maneirismo, com suas complexas perspectivas, as posturas forçadas dos modelos, o ponto de vista particular e a marca individual do artista, características que podemos notar em outra obra do artista: arch/Search_Repeat.aspx?searchtype=IMAGES&artist=9000982>. Acesso em: 05 nov. 2008. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 75 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS (Alegoria sabedoria e força, 1580, Paolo Veronese)15 As referências artísticas estendem-se a outras obras como os contos “Frei Simão”, “A mulher de preto”, “A chave”, “Um erradio”, “Miss Dollar”, “A linha reta e a linha curta”, e em livros como Memorial de Aires (com interessante referência à música de Schumanns), alusão à escultura ainda em Quincas Borba, e outros livros. Percorrer toda esta galeria machadiana requer uma pesquisa mais e detalhada da obra de Machado de Assis. Notamos pelo modo que o autor explora estas referências Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Veronese_Allegory_of_Wisdom_and_Strength.jpg>. Acesso em: 05 nov. 2008. 15 76 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO artísticas que elas eram conhecidas dos leitores de seu tempo (embora entendemos este grupo de leitores como uma parcela da sociedade). Machado de Assis articula uma seleção de imagens em sintonia com seus contemporâneos. Hoje o nosso distanciamento histórico dificulta o estabelecimento destas relações, principalmente quando desconhecemos os quadros referidos em sua prosa. A proposta deste trabalho é sinalizar para a presença deste campo de referência dentro da obra do autor, e em parte, diminuir esta distância entre literatura e arte no universo de Machado de Assis, assim como sugere o conto “Linha reta e linha curva”: Viu a sombra de Dante nas ruas de Florença; viu as almas dos doges pairando saudosas sobre as águas viúvas do mar Adriático; a terra de Rafael, de Virgílio e Miguel Ângelo foi para ele uma fonte de viva de recordações do passado e de impressões para o futuro. (ASSIS, 1971, p. 128) REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971, v. 1. ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971, v. 2. JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1999. UPJOHN, Everard M.; WINGERT, Paul S.; MAHLER, Jane Gaston. História mundial da arte III: O Renascimento. Trad. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 77 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Maria Teresa Tendeiro e Rui Mário Gonçalves. São Paulo: DIFEL, 1975. UPJOHN, Everard M.; WINGERT, Paul S.; MAHLER, Jane Gaston. História mundial da arte IV: do Barroco ao Romantismo. Trad. Maria Teresa Tendeiro e Rui Mário Gonçalves. São Paulo: DIFEL, 1975. SITE: http://pt.wikipedia.org Recebido em 17/07/2008 Aprovado em 19/08/2008 78 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO LOUCURA E PAIXÃO EM MACHADO DE ASSIS Ruy Perini Ufes A loucura, muitas vezes, não é outra coisa do que a razão apresentada de forma diferente. (Goethe) Resumo: O artigo traça um perfil da virada que Machado de Assis promove no estilo e no conteúdo da sua obra a partir da publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas e de “O alienista” no início da década de 1880. Aborda os temas da loucura e da paixão na obra ficcional, nas crônicas e no teatro do autor, mostrando como esta mudança na obra machadiana pode ser inserida numa linhagem de autores identificados com a chamada sátira menipéia. Palavras-chave: Machado de Assis. Loucura. Paixão. Abstract: The article draws a profile of the turnover that Machado de Assis promotes in the style and content of his work from the publication of “Memórias Póstumas de Brás Cubas” and “O Alienista” in the early 1880s. It brings up the theme of madness and passion in the author’s work, including fiction, chronics and the theatrical work. It shows how this change in the Machadian work can be inserted in a line of author identified with the known “Menipeia” satire (from the philosopher Menipo de Gadara). Keywords: Machado de Assis. Madness. Passion. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 79 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS LOUCURA E PAIXÃO Loucura e paixão, duas coisas perigosas; só que a loucura não mata, mas a paixão pode matar. (Clarinda Ferrari) O tema central da minha apresentação é o tema do meu livro “Não há remédio certo” – Loucura e paixão na obra de Machado de Assis, que, por sua vez, é um desenvolvimento da minha dissertação de mestrado onde abordei o tema da loucura em Machado. Como a paixão tem tudo a ver com a loucura – paixão e patologia têm a mesma etimologia – resolvi trazer esta característica tão presente nos personagens machadianos para o meu livro que pretende sair do âmbito acadêmico das dissertações, para atingir um público maior e mais diversificado. O ponto de partida, obviamente, foi o conto “O alienista”, mas como são assuntos sempre recorrentes na obra de Machado, estendi-me por outros contos, romances, crônicas e peças do “bruxo”. A frase em epígrafe, dita espontaneamente e em tom de reflexão ao observar a capa do meu livro, é de uma senhora divertida, bem humorada e muito sábia, embora com pouca instrução formal. Machado, provavelmente, babaria com a frase e ficaria encantado com a autora. O estudo da obra de Machado não deixa dúvida, embora haja algumas opiniões discordantes, sobre as duas fases bem distintas, quais sejam, antes e depois da publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, no início da década de 1880. Não por simples coincidência a publicação de “O alienista” é do mesmo período. Vários fatores costumam ser considerados para a mudança de rumo na obra de Machado, como o sério problema de saúde que quase o levou à cegueira, ou pelo menos o que era o seu temor na época. Não podemos deixar de aventar para esta ameaça a hipótese de uma cegueira simbólica, o que representaria uma tomada de consciência do autor quanto à necessidade de rever o seu estilo. O fato é que o que há a considerar mesmo é o desprendimento da forma acadêmica 80 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO com que, até então, buscava a aceitação pública, dentro de uma estética romântica, embora com uma proposta realista. Na verdade, todas estas classificações em escolas sempre foram rejeitadas pelo autor. Machado não comungava com a forma romântica de urdir os ambientes e personagens da sua ficção, mas também rejeitava com veemência o Real-naturalismo, que engessava a fantasia, criando romances “científicos”, comprometidos com a realidade, mas, por isso mesmo, pouco comprometidos com a realidade psíquica. Numa crítica ao Primo Basílio, de Eça de Queiroz, foi contundente: Não peço, decerto, os estafados retratos do Romantismo decadente; pelo contrário, alguma coisa há no Realismo que pode ser colhido em proveito da imaginação e da arte. Mas sair de um excesso para cair em outro, não é regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. [...] Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética. (Assis, 1994a:912) Esse desprendimento formal e estrutural é atribuído por Enylton de Sá Rego em O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica, principalmente à influência das leituras de Luciano de Samósata, de quem Machado tinha a obra completa numa edição francesa de 1874. Essa “tradição luciânica” teria origem em uma linhagem iniciada em Menipo de Gadara, passando por Varrão, Sêneca, Luciano, Erasmo de Roterdam, Robert Burton e Laurence Sterne. Logicamente vários autores poderiam ser incluídos nessa linhagem, considerando a vasta galeria citada por Machado. Para se ter uma idéia da modificação no estilo machadiano, basta lembrar que a forma tão elegantemente formal encontrada nos seus quatro primeiros romances dá lugar àquela chamada sátira menipéia em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Os três últimos romances – Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires – abandonam o tom explicitamente satírico, mas mantém a ironia sutil – e meio sardônica – que dá o tom da prosa machadiana a partir dessas Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 81 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS mudanças, longe do formalismo dos primeiros romances, antes de 1880. Dante Alighieri, autor muito citado por Machado, inspirou-se na Descida de Menipo ao Inferno de Luciano para escrever a sua Comédia. Dante registrou a comédia para distinguir da tragédia que tem um “princípio ‘admirável e calmo’ e um desenlace ‘fétido e cruel’, como corresponde à etimologia ‘canto do bode’ e segundo se vê nas tragédias de Sêneca. Por outro lado, a comédia principia ‘áspera’ e termina feliz -, veja-se Terêncio” (Curtius, 1996: 441). Menipo representa a maior influência na tradição satírica da literatura helênica, sendo apresentado por Capistrano de Abreu como o gato de Alice no país das maravilhas, que “desapareceu deixando apenas um sorriso” (apud Rego, 1989:31). Para ilustrar melhor a influência dessa linhagem em Machado, cito a seguinte passagem de Memórias póstumas: “[...] Suetônio deunos um Cláudio que era um simplório, – ou ‘uma abóbora’, como lhe chamou Sêneca, e um Tito que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o ‘abóbora’ de Sêneca” (Assis, 1994b: 516). A sátira de Sêneca a que se refere Machado é marginal na obra do escritor, composta em geral de textos mais “sérios”, e trata da deificação do Imperador Cláudio, decretada pelo Senado, após a sua morte. O título – Apokolokyntosis – formado de apotheosis (deificação) e kolokinte (abóbora) dá uma idéia da ironia do autor ao tratar de leis estapafúrdias. Sêneca transforma Cláudio em abóbora, mas a deformação é tamanha que a sua suposta chegada ao céu causa enorme reboliço na tentativa de se identificar o que seria o novo “morador”. Hércules, chamado a ajudar, espanta-se e pensa: “Não acabei: eis o meu décimo terceiro trabalho!” (Sêneca, 1988: 253). A técnica de observar o mundo do alto, com um olhar distanciado – kataskopos –, faz parte desta tradição grega luciânica, seguida por Machado, gerando duas formas de se 82 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO reagir conforme retomado por Montaigne nos Ensaios: Demócrito e Heráclito foram dois filósofos, dos quais o primeiro, com uma face zombeteira e sorridente: Heráclito, tendo piedade e compaixão desta mesma condição nossa, levava sempre uma face continuamente entristecida, e os olhos marejados de lágrimas. Gosto mais do primeiro humor [...]. (apud Rego, 1989: 127) UM ANTIPSIQUIATRA AVANT-LA LETTRE A primeira leitura de “O alienista” deixa clara a posição de crítica à medicina psiquiátrica da época. Como outros campos científicos, a medicina, embora ainda praticada de forma muito empírica, estava imbuída em achar os fundamentos científicos para a sua prática. No conto o Dr. Simão Bacamarte torna-se risível pelo rigor científico e não pela inépcia com que lida com a loucura. Os erros cometidos ao diagnosticar e trancafiar toda a população no seu hospício estão na falta de maleabilidade em enxergar a relatividade da condição humana, dessa loucura como uma infinidade de estados do ser, como queriam os surrealistas. Porém, uma leitura mais atenta do conto mostra que a crítica é muito mais abrangente implicando toda a estrutura social que serve de cenário para a ficção machadiana. O positivismo inspirador do golpe militar que instalou a república brasileira também primava pelo cientificismo. O lema “Ordem e Progresso” não admite o status que foge aos princípios dos meios de produção e boa conduta, deixando assim na marginalidade os loucos e os que “sofrem” de alguma forma de paixão, por serem desviantes dessa ordem. A importância da linguagem no processo cultural pode ser detectada na literatura de Machado. No conto “O anel de Polícrates”, que relata as peripécias do eufórico e verborrágico Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 83 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Xavier, podemos encontrar, sem nenhuma pretensão de teorização lingüística, um exemplo da função da linguagem, mostrando e encobrindo a realidade interna do sujeito. Numa sacada genial, digna da melhor literatura psicanalítica, mostra o valor terapêutico da palavra, “diagnosticando” e esclarecendo a “terapêutica” para o caso: “Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo” (Assis, 1994c:330). O homem civil vive um mundo de representações, muito diferente do mundo instintivo do homem natural, ou que espécie de hominídeo teria representado o elo entre o estado selvagem e o estado civil. A impressão é que a espécie humana atual surge já neste estado de civilidade, ou seja, o homem falante, o que tornou viável a sua sobrevivência, mas também o condenou à condição de presa de convenções e transgressões recíprocas. O artista tem a função de “antena da raça”, segundo a expressão de Ezra Pound, ou a função de não deixar o homem morrer da verdade, segundo Nietzsche. Machado em crônica de 19 de novembro de 1893 disse: “Quando a gente não pode imitar os grandes homens, imite ao menos as grandes ficções”. No capítulo LXXXVII de Memórias póstumas de Brás Cubas, denominado “Geologia”, o protagonista compara a dignidade e a probidade humanas a uma camada de rocha, sob “as camadas de cima, terra solta e areia”. Cita um encontro com o amigo, Jacó Tavares, que era “a probidade em pessoa”, mas que para tentar evitar uma visita desagradável mente quatro vezes. Quando Brás Cubas observa isso ao amigo, este “desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas [...]” (Assis, 1994b: 595-6). O que quero demonstrar é que estes e outros conceitos valorizados pela antipsiquiatria – movimento surgido na Europa em fins da década de 1960 e logo a seguir no Brasil – estão presentes em Machado de Assis quase um século antes. Machado subverte a certeza das ciências humanas que costumam ser cegas aos fatores não perceptíveis à visão objetiva cartesiana. Isso 84 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO mostra como a literatura antecipa formulações teóricas de várias disciplinas, entre elas a psiquiatria. A LOUCURA NO TEATRO DE MACHADO DE ASSIS A passagem de Machado de Assis pelo teatro deu-se de múltiplas formas. Como espectador, crítico e estudioso de textos teatrais, trouxe muita influência para os seus escritos. Como censor teve o seu envolvimento mais polêmico com o teatro. Chegou a criticar a atuação do Conservatório Dramático Brasileiro por este condenar textos ofensivos ao governo e apenas aconselhar o autor que pecasse “contra a castidade da língua e aquela parte relativa à ortoepia”. Depois chegou a exercer a função de censor no Conservatório, por defender uma seleção de textos fundamentada no “mérito puramente literário, no pensamento criador, na construção cênica, no desenho dos caracteres, na disposição das figuras, no jogo da língua” (Pontes, 1968:7). Como autor de peças teatrais não emplacou uma produção significativa, pois os seus textos eram muito eruditos para o gosto do público que freqüentava o teatro. A linguagem teatral, mesmo para um público mais culto, exige uma comunicação mais rápida, em linguagem mais coloquial para ter uma boa aceitação, o que não se dava com os textos de Machado. Pelo menos essa é a visão do crítico e amigo do autor, Quintino Bocaiúva. Com referência ao nosso tema, quero citar a peça “Não consulte médico”. O título é baseado num suposto provérbio grego: “Não consultes médico, consulte alguém que tenha estado doente”. O que chama a atenção na peça estudada é a abordagem pretensamente técnica, colocando em xeque preceitos terapêuticos da medicina, que muitas vezes é cega aos vários fatores predisponentes do adoecer, principalmente quando se trata do adoecer psíquico, ou “doenças morais” como são chamadas no texto, seguindo uma tendência da época. O termo remete ao “tratamento moral” de Philippe Pinel. Dona Leocádia intitula-se “médico” e tem a mania de Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 85 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS curar “doenças morais” entre os familiares e amigos. À filha Adelaide, por exemplo, proíbe tomar os remédios prescritos pelo verdadeiro médico: “o médico receitava-lhe pílulas, cápsulas, uma porção de tolices que ela não tomava, porque eu não deixava; o médico devia ser eu”. Ao que Adelaide anui: “Foi uma felicidade. Que é que se ganha em engolir pílulas? [...]. Apanham-se moléstias, responde D. Leocádia” (Assis, 1994d: 1158). Cavalcante, deprimido pelo fim do noivado, é o novo “paciente” de Dona Leocádia. Seduzido pela perspicácia do “médico”, solta a frase: “Seu marido era, talvez, um erudito. Minha senhora, não se aprende amor nos livros velhos, mas nos olhos bonitos; por isso, estou certo de que ele adorava a V. Excia” (Id.:1164). Mas o “médico” está atento. Parece conhecer por experiência a transferência de antigos sentimentos do paciente e que são atualizados e direcionados ao médico. A transferência é necessária para o vínculo terapêutico, mas serve também de resistência para a continuidade do mesmo. Dona Leocádia é rápida e eficaz: “Ah! Ah! Já o doente começa a adular o médico. Não, senhor, há de ir à China. Lá há mais livros velhos que olhos bonitos. Ou não tem confiança em mim?” (Ib.). Confiança, Suposto Saber, Abstinência – o manejo da transferência em Freud provavelmente não seria muito diferente. A PAIXÃO E O CIÚME DE BENTINHO Na garimpagem por novas revelações na obra de Machado, gostaria de trazer uma questão relativa ao ciúme de Bentinho, que, julgo, poderá enriquecer a fortuna crítica do autor. Freud propõe três causas para o sentimento de ciúme experimentado pelo homem: 1º - o ciúme normal: é o sentimento de pesar e ferida narcísica pela perda do objeto amado e a autocrítica que procura responsabilizar o próprio ego pela perda. Freud não situa este sentimento de perda “normal” como elaboração puramente consciente, mas enraizado no inconsciente, por ser uma 86 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança e originar-se do complexo de Édipo. 2º - o ciúme projetado: deriva-se da própria infidelidade, seja concreta da vida real ou de impulsos nesse sentido que são reprimidos pela convenção do matrimônio. 3º - o ciúme delirante: este também tem origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nesses casos, é do mesmo sexo do sujeito. No caso do homem a fórmula defensiva seria: Não sou eu que o amo; é ela que o ama. Não é novidade questionar-se uma possível homossexualidade entre Bentinho e Ezequiel Escobar. Não insinuo uma atração homoerótica em nível de homossexualismo, mesmo que latente, mas não parece haver dúvida de que o amigo é o principal objeto de interesse por parte do narrador. A hipótese que sugiro é da existência de uma demanda por insígnias mais potentes – e mais patentes – do que as que portava o protagonista. A sua posição frente ao amigo é sempre mais passiva. Já no seminário, o encanto de Bentinho pelo amigo três anos mais velho é explícito. Mais do que uma amizade, há uma grande admiração, e um abraço afetuoso, durante um recreio no pátio do seminário, gerou uma crítica dos colegas, uma reprimenda dos padres e o início de uma cumplicidade amorosa dos dois amigos. Compara a alma humana com uma casa que pode ser aberta com janelas para todos os lados, ou fechada e escura. Confessa que a sua é do primeiro tipo, “com as portas sem chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou” (Assis, 1994e:868). Grande parte do romance dedica-se à fase da adolescência dos dois protagonistas. É aí que irrompem a sexualidade e os conflitos resultantes da formação do caráter dos mesmos. Na velhice, Bentinho faz reconstruir a casa da sua adolescência, decisão cujo “fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. [...] não consegui recompor o que foi nem o que fui. [...] Se só me Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 87 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (Id:810). Ao querer driblar o tempo atando as duas pontas da vida parece querer desvendar as dúvidas que o angustiam. Com esta tarefa Bentinho parece repetir Sísifo – o esperto herói grego que por enganar Tânatos, adiando a própria morte, é condenado a arrastar uma grande pedra montanha acima, tarefa que nunca finda, pois ao chegar no topo a pedra sempre rola montanha abaixo. A eterna dúvida e o conflito entre o ciúme da mulher e a atração que sente pelo rival, com quem se identifica, seriam a sua penitência. Frente ao possível triângulo amoroso Bento supõe ser objeto de sedução por parte de Sancha, mulher de Escobar. Na ocasião o amigo comunica que vai nadar no mar em ressaca (como os olhos de Capitu), vangloriando-se de ter braços fortes, convidando-o a apalpá-los. Bentinho os apalpa “como se fossem os de Sancha, mesmo que lhe custe esta confissão” (Id:924). Teríamos assim, um outro triângulo entre ele, Escobar e a mulher, triângulo mais edipiano, pois chegou-se a cogitar o casamento da mãe de Bento, viúva, com Escobar, o que reforça a função paterna deste. Assim, a homossexualidade prendese ao desejo de um modelo masculino identificatório mais potente do que o que tinha em casa. Capitu – o nome já sugere a condição de “cabeça do casal” – é forte e decidida, enquanto Bento sujeita-se à vontade da mãe que o quer no seminário para ser padre. O pai morreu quando ele ainda era muito novo. As outras pessoas da casa são tia Justina – outra ironia, pois a sua única “justiça” é espicaçar todos com fofocas –, o tio Cosme, que, viúvo, vai morar com a irmã e “[...] formado para as serenas funções do capitalismo, [...] os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual” (Id:815-6), e o agregado José Dias, assexuado e sem qualquer expressão masculina que aceita qualquer papel em troca de casa e comida. Bento chega a reconhecer, após o primeiro beijo forçado por Capitu, que é homem e os homens não são padres, mas acaba cedendo e indo para o seminário, de 88 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO onde só consegue sair com a intervenção do amigo. Na primeira visita de Escobar à família de Bentinho, ao se despedirem há o seguinte relato de Bentinho: “Separamo-nos com muito afeto: ele de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou” (Id:883). Segue uma cena de ciúme de Capitu que assistira, escondida, à cena de despedida: “Que amigo é esse tamanho?” (Ib.), pergunta. Fica notória a dependência ao amigo criada por Bentinho a partir dessa visita. Quando ele anuncia a visita, diz: “Nunca me visitara até ali, nem as nossas relações estavam já tão estreitas” (Id:882). Na descrição do protagonista, Escobar era muito polido, mas encanta a todos com a sua maneira educada, mas expansiva. O ciúme projetivo e delirante de Bentinho teria, então, a seguinte fórmula: “Eu não o amo, é ela, minha mulher que o ama”. É principalmente a partir da morte de Escobar que Bento desencadeia a corrente de ciúme que o leva afinal a rejeitar a mulher e o filho Ezequiel e exilá-los na Suíça. É possível fazer um cotejamento entre a atitude vacilante de Bentinho com a de Hamlet. Ambos, talvez movidos por fortes sentimentos éticos, não podem levar a termo a vingança, sempre adiando o ato final. Porém, além da ética, o que está em jogo é muito mais a própria condição do desejo humano, que é sempre o desejo de outro desejo. Mesmo quando se deseja um objeto, deseja-se na medida em que esse constitui o objeto do desejo de outros homens. Tanto Hamlet como Bentinho, após muitas vacilações, conseguem afinal vingarem-se, mas de uma forma canhestra, causando estragos à sua volta e a si mesmos. Ambos querem e podem vingar-se, o que não conseguem é formular o próprio desejo; não podem querer o que seria o reconhecimento do próprio desejo inconfesso. Dentro de uma leitura psicanalítica, pela via do complexo de Édipo, Hamlet tem convicção da sua obrigação de vingar o pai, mas não pode matar o tio, usurpador do trono e assassino do pai, pois com ele se identifica ao compartilhar o próprio desejo, que só o Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 89 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS tio consegue realizar. Bentinho, também impotente, não pode explicitar a sua dúvida e resolver a pendência com a mulher. Para Lacan, Hamlet compara o seu pai a Hiperion, aquele que os deuses marcaram com todos os seus selos. Bentinho elege Escobar também para este lugar de potência (para interferir junto à mãe e livrá-lo da promessa de se tornar padre e para seduzir a sua mulher e lhe fazer um filho, mesmo que este fato seja apenas na imaginação do protagonista). O amigo é muito mais do que um possível amante da mulher e pai do seu filho; representa toda a sua vontade de potência. Morto o amigo, Bentinho fica impotente, decidindo-se então pelo suicídio. Chega a pôr veneno no café, mas, mais uma vez, protela a ação. Espera que Capitu e o filho saiam de casa, depois resolve tomar o café logo e está prestes a ingeri-lo quando o filho entra no seu escritório. A interrupção o faz desistir e ele resolve dar o café ao filho, mas desiste na hora de colocar a bebida na boca do menino. Fala então para o filho que não é seu pai. Capitu não ouve o diálogo, mas percebe a tensão e obriga Bentinho a revelar o que se passara, ficando estupefata e indignada com a revelação. Bentinho, com a atitude da mulher, chega a duvidar da infidelidade, mas não pode voltar atrás e decide pela separação, que é disfarçada na viagem de Capitu e Ezequiel para a Suíça. OS SONHOS EM MACHADO DE ASSIS – O CRONISTA GALHOFEIRO Um tema muito caro a Machado é o sonho versus a realidade. Fácil entender esta tendência num autor que privilegiava a realidade psíquica no lugar da realidade natural e científica. É digna de nota a percepção do sonho como formação inconsciente e realização de desejo, no melhor estilo freudiano. E essa complexidade do pensamento de Machado aparece muito frequentemente nas crônicas, onde nunca se sabe com certeza o que tem de real e de ficção. É nessa literatura que ele exerce com toda a força a sua ironia e sarcasmo, um estilo 90 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO semelhante com o de Millôr Fernandes, um século depois. Cito um exemplo de sonho como realização de desejo na crônica de 16 de julho de 1893: Deixem-me sonhar, se é sonho. A realidade é o luto do mundo, o sonho é a gala. Desde que a pena me trouxe até aqui, sinto-me rei e grande rei. Já uma vez fui santo e fiz milagres. Já fui dragão, íbis, tamanduá. Mas de todas as cousas que tenho sido, em sonhos, a que maior prazer me deu, foi panarício. Questão de amores. Eu suspirava por uma moça, que fugia aos meus suspiros. Uma noite, como lhe apertasse os dedos, interrogativamente, ela puxou a mão e deitou-me um olhar de desprezo, que me tonteou. Vaguei até tarde, jurei matá-la, recolhi-me, e fui dormir. Dormindo, sonhei que, sob a forma de panarício, nascia e crescia no dedo da moça. O gosto que tive, não se descreve, nem se imagina. É preciso ter sido ou ser panarício, para entender esse gozo único de doer em uma carne odiosa. Ela gemia, mordia os beiços, chorava, perdia o sono. E eu doía-lhe cada vez mais. Doendo, falava; dizia-lhe que o meu gesto de afeto não merecia o seu desprezo, e que era em vingança do que me fez, que eu lhe dava agora aquela imensa dor. Ela prometia a Nossa Senhora, sua madrinha, um dedo de cera, se a dor acabasse; mas eu ria-me e ia doendo. Nunca senti regalo semelhante ao meu despeito de tumor (Assis, 1937a:327-8, grifos meus). Na última crônica assinada por Machado, em 11 de novembro de 1900, ele começa: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto” (Assis, 1937b:435). O seguinte trecho deixa claro o estilo do autor: Deixei taxas e mortes e fui à casa de um leiloeiro, que ia vender objetos empenhados e não resgatados. Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no prego. Não é lá muito engraçado, mas é natural, exato Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 91 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS e evangélico. Está autorizado por Jesus Cristo: ‘Tu es Petrus etc’. Mal comparando, o meu ainda é melhor. O da Escritura está um pouco forçado, a passo que o meu – o martelo batendo no prego – é tão natural que nem se concebe dizer de outro modo. Portanto, edificarei a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo (Id:436). Na crônica de 15 de janeiro de 1877, no limiar da época em que Machado faria a grande virada no seu estilo, há o seguinte trecho: “Eu e todo este povo andávamos tristes, sem motivo nem consciência; andávamos sorumbáticos, caquéticos, raquíticos, misantrópicos e calundúticos”(Assis, 1937c:169). Na mesma crônica o autor, comparando várias especialidades farmacêuticas, sugere que Rocambole, o divertido herói de Ponson du Terrail, seria o melhor remédio para restaurar o bom humor. Traça uma linha que liga os heróis Aquiles, Enéas, Dom Quixote e Rocambole para mostrar o charlatanismo em de um tal Vindimilla que criou uma panacéia digestiva capaz de digerir qualquer alimento independentemente do estado em que se encontrasse o estômago do usuário. Sugere então que o avançar da ciência trará um “vinho reflexivo”, que nos dará um meio de pensar sem cérebro. Da mesma forma, em “O alienista” o humor, meio irônico meio escrachado, dá-se não pela inépcia, mas pelo rigor acadêmico do doutor Simão Bacamarte. Embora a data do enredo deste conto não esteja bem estabelecida e pode sugerir a época colonial, os dados são contemporâneos de Machado, época em que os ideais das ciências médicas destinadas ao tratamento das doenças mentais limitavam-se à internação com o fim de classificar as “doenças” à procura de uma terapêutica. Entretanto, tais práticas propiciavam a segregação dos loucos e inspirou o higienismo, fonte de tendências mais nocivas como o modelo da psiquiatria alemã que pregava a esterilização e mesmo a eliminação de todo sujeito desviante dos padrões dos modelos produtivos essenciais para a ordem e o progresso da sociedade. A medicina, em sua essência, 92 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO identifica-se com os ideais progressistas da ciência e da democracia, possibilitando ao grande público o acesso aos seus benefícios conquistados. Entretanto, nem sempre estes ideais são cumpridos e Machado denuncia sempre com precisão estes desvios, usando o sarcasmo cruel da sua pena. Não condena o curandeirismo, embora lhe condene os excessos, e propõe ironicamente os recursos médicos para solucionar vários problemas, como a falta de uma escola dramática na capital do império, brincando com a etimologia da palavra medicina: A etimologia de medicina é, como acontece com outras palavras, uma lenda. Conta-se que no tempo do rei Numa, o corpo médico era composto unicamente de coveiros, regidos por um coveiro-mor, chamado Cina. Adoecia um romano iam os coveiros à casa do doente medir-lhe o corpo para abrir a sepultura. — Mediste, Caio? Perguntava o chefe. — Medi, Cina. Respondia o coveiro oficial. (Assis, 1937c:44) REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Crítica. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994a. v. 3. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994b. v. 1. ASSIS, Machado de. O anel de Polícrates. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994c. v. 2. ASSIS, Machado de. Não consultes médico. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994d. v. 2. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994e. v. 1. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 93 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS ASSIS, Machado de. A semana. In: Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937a. v. 24. ASSIS, Machado de. A semana. In: Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937b. v. 26. ASSIS, Machado de. Crônicas. In: Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937c. v. 22. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e idade média latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1996. PONTES, Joel. Apresentação, comentários e bibliografia. In: ASSIS, Machado de. Teatro. Rio de janeiro: Agir, 1968. [Coleção Nossos clássicos]. REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. SÊNECA, Lúcio Aneu. Apocoloquintose do divino Cláudio. Tradução e notas de Giulio Davide Leoni. São Paulo: Nova Cultural, 1988. [Coleção “Os pensadores”]. Recebido em 19/06/2008 Aprovado em 17/07/2008 94 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO “A CARTOMANTE” NO PLANO DO JOGO INDICIÁRIO Jorge Evandro Lemos Ribeiro Ufes Resumo: Este trabalho se dedicará a analisar o conto “A cartomante” de Machado de Assis a partir da tradução de sinais segundo Carlo Ginzburg. Por isso, antes de chegarmos ao objeto principal, vamos discorrer ainda sobre dois textos literários que nos servirão como base ilustrativa ao falarmos do leitor indiciário. Um deles trata-se de uma narrativa judaica cujo personagem principal é um hassid, o outro é a respeito do personagem Zadig criado por Voltaire. Palavras-chave: Leitor. Indício. Jogo. Abstract: This work is an analysis of the short story “A cartomante” (The Fortuneteller) by Machado de Assis, from the translation of sign language according to Carlo Ginzburg. Thus, before we get to the main object, we analyze two literary texts which work as an illustration when we talk about the reader. One of them is a Jewish narrative whose main character is a hassid; the other is about Zaig, a character created by Voltaire. Keywords: Reader. Index. Game. A partir da tríade Morelli-Freud-Conan Doyle, Carlo Ginzburg discute, em seu texto “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, como uma vertente da ciência traça seu caminho baseado no paradigma indiciário. O autor vai dizer que o homem por milênios foi um caçador que desenvolveu a capacidade de “reconstituir as formas e movimentos das presas invisíveis Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 95 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados” (GINZBURG, 1999, p. 151). Assim, o homem aprendeu com o tempo a perceber em pistas infinitesimais os motivos para novas interpretações, bases para classificações, fundamentos para registros que contribuíram no decorrer dos anos para o enriquecimento do patrimônio cognoscitivo da humanidade. A psicanálise de Freud, por exemplo, se apóia nos sinais, ou mais apropriadamente, em sintomas demonstrados por alguém, para assim tirar conclusões a respeito até do inconsciente deste indivíduo. Não obstante, como Carlo Ginzburg trata até certo ponto não só da ciência da psicanálise, mas de outras também, como a medicina; em certo momento ele diz que irá desarticular o paradigma indiciário até então tratado em seu sentido lato. É quando o autor vai dizer que “uma coisa é analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas), catarros, córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro; outra é analisar escritas, pinturas ou discursos” (GINZBURG, 1999, p. 171). Distinguindo assim a natureza da cultura, que é mais mutável e superficial, é possível, então, por meio da análise dos “traços mínimos e involuntários”, se aperceber da noção de indivíduo. Mas, para perceber esses traços, faz-se necessário o que Ginzburg chamará de baixa intuição. Trata-se de intuição na medida em que, segundo ele, “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” (GINZBURG, 1999, p. 179). Esta baixa intuição não é aquela intuição supra-sensível, como disse Ginzburg, mas a que “está arraigada nos sentidos (mesmo superando-os)” (GINZBURG, op. cit.) e é por isso mesmo privilégio de poucos. Antes mesmo de chegar ao conto “A Cartomante”, objeto principal de nosso estudo, gostaria de passar brevemente por dois contos ainda. O primeiro trata-se de uma narrativa judaica cuja história se desenvolve em uma aldeia polonesa de nome 96 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Shebreschin. Lá vivia com a mulher um hassid que se sustentava a partir do leite de cabra que ele vendia na cidade. Um dia a sua mulher não encontrou as cabras. Ela se desesperou. Mas o marido, brando, dizia que tudo viria do Alto. No final da tarde as cabras regressaram e então se tornou rotina: os animais sumiam durante o dia e retornavam ao entardecer. O mais curioso, no entanto, não era isso, mas o fato de o leite delas agora ser abençoado porque curava as doenças de quem o bebia. O hassid, no sétimo dia, decidiu então ir atrás das cabras. No meio da floresta, elas entraram em uma caverna. Hassid seguiu-as. Ele podia ver ao longe um facho de luz. E o hassid correu atrás delas. Entre diabos, pedras caindo e mulheres nuas, hassid continua seu trajeto guiado pela fé. O hassid havia encontrado o paraíso. Depois de ele ter beijado muito o chão, o hassid decide enviar uma carta para os judeus de Schebresquin escrita em uma folha de figueira que uma cabra levaria de volta. Mas a mulher não vê a carta, acha que o marido havia sido assassinado por ladrões na floresta e resolve depois de um tempo abater as cabras e vender a carne. Só depois de abatê-las é que encontraram a carta. O rabino toma conhecimento do caso, lê a carta, e então “o rabino decidiu que os judeus de Shebreschin não deviam comer nem beber, durante três dias; deveriam rezar. Provavelmente, por causa de suas más ações, a carta não fora encontrada a tempo e eles não poderiam chegar à Terra Santa.” (NOY, Dov (org.), 1966, p. 15). Percebe-se claramente que a fé sustentou uma firme posição do personagem hassid. A sua leitura de mundo é a que se baseia na fé, portanto. Este teve a sua recompensa. Mas agora preciso contar um pequeno trecho da história de Zadig, um herói de Voltaire que será mais tarde comparado ao que foi agora mencionado. Dizia Zadig que “ninguém pode ser mais feliz do que um filósofo que lê nesse grande livro colocado por Deus diante dos nossos olhos” (VOLTAIRE, 1972, p. 14). Acrescenta ele que esse homem capaz desta leitura seria “dono da verdade Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 97 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS que descobre; alimenta e eleva a alma; vive sossegado”, e outras coisas a mais que, lógico, vindo de Voltaire, não poderia passar de ironia, o que adiante constataremos. Zadig, certa vez, passeando pelo bosque, chega para ele um eunuco e pergunta desorientado e inquieto se não viu um cachorro por ali que pertenceria à rainha. Primeiro o Zadig responde dizendo que não é um cão, mas uma cadela, depois afirma ainda que a cadela é caçadora, é pequena, e que deu cria não fazia muito tempo e, além disso, se não bastasse o já dito, afirmou que a cachorra mancava da pata dianteira esquerda e tinha orelhas cumpridas. A conclusão aparentemente óbvia foi a mesma que teve o eunuco: “Então você a viu?” – Perguntou ele. Zadig, no entanto, responde que nunca em sua vida a tinha visto. Por coincidência, havia também escapado do rei o melhor cavalo de sua coleção e o monteiro-mor estava atrás dele quando vê Zadig e o pergunta se não tinha visto o animal por ali. Zadig descreve o cavalo em detalhes. O monteiro-mor não teve dúvida de que o homem que passeava pelo bosque sabia onde estava o cavalo. Mas a resposta de Zadig foi negativa. Concluíram o eunuco e o monteiro-mor que Zadig não só sabia onde estava o cavalo e a cadela como teria roubado ambos. Levaram-no então para uma assembléia. Depois de ser condenado ao exílio na Sibéria, encontraram o cavalo e a cadela. Reformularam a sentença, com a condição de que Zadig deveria agora pagar 400 onças por ter negado ver aquilo que viu. Só depois de pagar a multa, teve o perspicaz herói a chance de se defender na assembléia. Afirma ele que realmente não viu os animais e esclarece como chegou a tais conclusões a respeito do animal analisando os indícios, como a impressão das pegadas das patas, tetas que arrastavam pela areia, e até das orelhas cumpridas. Quanto ao cavalo, Zadig descobriu, por exemplo, o seu tamanho a partir das folhas recém-caídas das árvores. Enfim, todos pasmaram com tão eloqüente explicação de como ele deduziu caracteres dos animais procurados. Mas essa reação não livrou Zadig totalmente da pena. O rei até que ordenou que lhe restituíssem as 400 onças, mas “retiveram 98 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO somente 398 para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação” (VOLTAIRE, 1972, p. 17). O herói de Voltaire conclui que é perigoso ser sábio. Prometeu a si mesmo que não testemunharia mais. Entretanto, em outro dia, um prisioneiro foge, ele não depõe, mas provam que Zadig olhou pela janela de sua casa, logo teria visto o preso. Foi multado por 500 onças de ouro. Ao contrário de hassid, o protagonista do conto anterior, o herói de Voltaire, ironicamente, é multado pela sua procura da verdade. Zadig lê o mundo de uma maneira diferente se comparado ao protagonista de Shebreschin. Ele, como um herói típico do Iluminismo, percebe suas pistas com a dedução do raciocínio. Distintamente do hassid que, como já vimos, lê os sinais com os olhos da fé. Esses dois personagens nos servirão como base para, agora sim, analisar o conto “A Cartomante” de Machado de Assis. É importante que tenhamos em mente este dois protótipos de leitores ao ler o conto, – o leitor hassid e o leitor Zadig. O conto de Machado de Assis em si já começa com um desses leitores acima mencionados se manifestando. Há uma antecipação de um episódio. É quando Rita fala para Camilo sobre a cartomante que fica na Rua da Guarda Velha. Camilo ria de Rita. Esta defendia, com outros termos, a mesma idéia de Hamlet que dizia: “há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Camilo, que pousava de cético, ria com deboches. É mais importante notar, no entanto, que a cartomante impressionou Rita ao se antecipar dizendo que esta gostava de uma pessoa. Observe que essa informação é generalizante. Tanto seria fácil deduzir o motivo pelo qual Rita estaria ali, que o próprio Camilo repreende-a dizendo que é imprudência aparecer nesses lugares na medida em que Vilela, o marido, poderia tomar conhecimento disso, o que seria motivo de levantar suspeitas da traição. O fato é que Rita foi consultarse e saiu de lá aliviada de suas dúvidas. Às vezes, o narrador Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 99 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS lança um discurso indireto livre, o que dá ao texto um certo tom eloqüente e enganador, isto é, o leitor que não percebe de que discurso se trata, se convence daquilo que na verdade é ironia: “Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita“ [grifo nosso] (ASSIS, 2003, p. 38). Observe também que a prova para veracidade do que disse a cartomante é a satisfação da cliente. É obvio que essa lógica não é exatamente a do narrador que quer com astúcia levar o leitor para outros meandros da leitura, mas é o raciocínio conivente da personagem, que carece de um anestésico para suas dúvidas amorosas. Já Camilo, informa o narrador, já fora supersticioso e perdeu as crendices do legado materno aos vinte anos. Com o tempo, passou a negar tudo. Não sabia dizer por quê, mas negava. Não obstante, sentia-se lisonjeado por ver Rita se arriscando por ele. Em suma, percebe-se neste episódio um jogo de conivências: todos saíram felizes com a cartomante, inclusive ela mesma. Porém, a “leitora de cartas” – antes leitora ‘indiciária’ – é a responsável pela própria satisfação de garantir seu sustento. Já os dois amantes, cuja satisfação está em um capricho amoroso, não passam de passivos na própria alegria. O narrador então retorna no tempo e diz como os três se conheceram. Vilela e Camilo eram amigos de infância: “Eram amigos deveras” – diz o narrador com ironia. Vilela tinha um ar de maturidade, “enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática” (ASSIS, 2003, p. 39). Acrescenta que Camilo não tinha nem experiência, nem intuição. Isso se mostrará por meio de fatos mais tarde no desenrolar do enredo. O tempo proporcionou a Camilo e Rita intimidade, daí ela passa a ser quase uma irmã, e o seria se não fosse mulher e bonita. Um dia Camilo ganha de presente de aniversário uma “rica bengala” de Vilela, “e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho” (ASSIS, 2003, p. 40). Como o próprio texto diz, o que seria comum, vulgar, se 100 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO tornou sublime. Observe que a expressão usada no texto, “ler no coração”, já denota a presença marcante da subjetividade de Camilo. O leitor, por sua vez, estrategicamente, não tem acesso ao que estava escrito no bilhete, mas ele fica sabendo ao menos que o bilhete fez Camilo se deleitar. Sem se ater muito aos acontecimentos em si, mas sim às narrativas psicológicas dos personagens, é típico do Bruxo do Cosme Velho fazer uso de metáforas que organizam e conciliam os fatos e as confusões dos sentimentos humanos. É o que acontece quando o narrador comenta a respeito da tentativa de Camilo resistir ao ataque de Rita que, “como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca” (ASSIS, 2003, p. 40). Uma carta anônima chega a Camilo dizendo que o caso é do conhecimento de todos. Não só a origem dessa carta é negada ao leitor como também o modo como souberam da aventura de Camilo e Rita. Fica para o leitor, portanto, a chance de especular as razões mais vulgares. Além disso, é estratégico que o leitor saiba até o ponto que sabe Camilo sobre as coisas, para, assim, garantir o suspense por que passará Camilo e, por conseguinte, também o leitor. O amante, por medo, evita ir à casa de Vilela. Este percebe a ausência e cobra do amigo uma explicação. Assim como o leitor em relação à procedência das cartas, Vilela tem um indício que lhe sugere apenas uma introdução, mas não fornece uma justificativa que lhe complemente o “texto”. “Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz”. Com essa resposta, o amante de Rita ironicamente dá uma falsa pista para uma equivocada leitura, ao mesmo tempo em que diz de certa maneira a verdadeira razão pela qual tem rareado suas visitas. “Candura gerou astúcia”, diz o narrador. Foi neste tempo que Rita recorre à cartomante para saber por que motivo Camilo estaria tão ausente. Não tendo o texto num todo, ela recorre a “leitora de cartas” para que lhe complete sua leitura de modo que a alivie o incômodo da ânsia de fazer sentido. Como não se vê capaz de ler com a mesma perspicácia Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 101 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS que Zadig, recorre à maneira de ler do hassid. Camilo não pára de receber cartas. São mais umas três delas. Rita vê interesse nas cartas. O ciúme lhe induz a arquitetar um pensamento: “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo” (ASSIS, 2003, p. 41). Se ela tem razão de fato ou não, o leitor nunca poderá ter certeza. Mas seja quem for que estivesse escrevendo as cartas, o fato é que Vilela agora parece também saber da traição. Ele começa a mostrarse sombrio e é de falar pouco. Neste momento, Rita e Camilo reage cada qual segundo o seu temperamento: um com astúcia e o outro com receio. Rita quer que Camilo volte a freqüentar a sua casa para ver se não tira alguma confidência de Vilela; já Camilo não acha prudente aparecer depois de tanto tempo ausente. Enquanto a primeira quer ler o comportamento do marido, o segundo não quer cometer algum deslize dando-lhe mais um sinal da aleivosia. A última carta agora é de Vilela. Um bilhete, na verdade. Dizia: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Camilo logo combinou as outras cartas com esta última. Fez delas um só texto. A letra lhe parecia trêmula. Estando ela trêmula ou não, este era um sinal resultante de sua aflição, aflição de Camilo. E é partir dela ainda que ele constrói um texto que será, em boa parte, o desfecho da história: “Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando a pena e escrevendo o bilhete, certo de que acudiria, e esperando-o para matá-lo” (ASSIS, 2003, p. 42). E é o mesmo Camilo que supõe uma possível leitura de Vilela: “A mesma suspensão de suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto” (ASSIS, 2003, p. 42). No caminho para casa de Vilela, Camilo “não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas”. Enquanto o personagem lê imaginariamente o bilhete, o leitor lê a aflição do personagem apoiado no ombro do narrador. A caminho da casa de Vilela, o tílburi teve que parar por conta 102 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO de uma carroça que estava ali atravancada. Com o tempo, Camilo repara que estava do lado da casa da cartomante. Neste instante, o cético rapaz sente-se tentado por antigas crendices que deixou para traz há muito tempo. Passava por sua cabeça a idéia de ir ter com a cartomante, mas logo fazia um gesto incrédulo. Mas como era, em verdade, de caráter mais voltado às vontades subjetivas, mesmo que pretensiosamente cético, quando menos se espera, já lá estava ele subindo as escadas da cartomante. Na dúvida, até o que os homens gritavam ao tentar levantar a carroça parecia ser palavras de incentivo para Camilo que carecia acalmar as ansiedades: “— Anda! agora! empurra! vá! vá!”. Os acontecimentos em volta contribuem para a composição do texto para os olhos e ouvidos de Camilo. Quando se trata do texto de hassid, as concatenações tornam-se mais fáceis de tecerem-se. “Ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele” (ASSIS, 2003, p. 43). Enquanto Camilo lia o que era quase óbvio – o fim trágico –, a casa da cartomante estava ali parecendo lhe chamar. Por isso, todas as histórias que a sua mãe lhe contava quando criança colaboravam para a composição deste novo texto. Quando se dá conta, já está subindo as escadas. O ambiente sombrio e pobre participa para aumentar o prestígio, diz o narrador. Logo, o ambiente também participa para uma leitura. “A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo” (ASSIS, 2003, p. 44). O rosto de Camilo se torna iluminado para a cartomante poder lê-lo. Ela o olhava por baixo dos óculos, como quem perscruta, analisa, deduz. O narrador confirma a sagacidade da cartomante quando diz que ela tinha “olhos sonsos e agudos”. Fica fácil então deduzir por alto o que está fazendo lá um homem distinto quando este está com medo de um desfecho trágico de sua aventura. Que outra aparência poderia ter este homem senão o de assustado? E foi o que a cartomante disse: “Vejamos primeiro o que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...” (ASSIS, 2003, p. 44). Isso impressiona Camilo. Além Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 103 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS de astuta leitora de sinais, a cartomante sabe ainda muito bem, ao mesmo tempo, dissimular bem um texto que lhe convém. De maneira ainda generalizante, ela diz que ele quer saber se lhe acontecerá alguma coisa ou não. Ele, ingênuo, envolvido pelo espanto do mistério (hassid), entrega o mote à cartomante dizendo: “A mim e a ela”. O narrador, curiosamente, diz que a cartomante não sorriu. Ora, e por que haveria de sorrir senão pelo fato de agora ter toda uma introdução de uma história para dar apenas o remate da suposta clarividência? Então ela declara uma leva de “conselhos” que servem para a maioria das circunstâncias parecida com a de Camilo. Ela diz para ele que não precisa temer a nada e que um amor bonito como o dos dois causaria despeito de outros. Como Rita anteriormente, Camilo é que agora está aliviado de uma angústia. Ele acaba por submeter-se à lógica de hassid. Tamanho entusiasmo observa-se no fato de ele ter dado à cartomante dez mil-réis quando o preço era apenas dois milréis. Ela não perde a chance de ler e propor leituras coniventes a Camilo: “Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo” (ASSIS, 2003, p. 45). Tão tranqüilo foi ele para a casa de Vilela que agora até a natureza e as pessoas pareciam participar do contexto de seu entusiasmo: “o céu estava límpido e as caras joviais”. Acha agora pueril o próprio receio. Antes a letra aparentemente estava trêmula demonstrando nervosismo por parte de quem a escreveu, mas agora o tom da carta é íntimo e familiar. A cartomante desfez o tecido indesejado para oferecer a Camilo uma substituição mais aprazível, confortável, tanto que não são mais as palavras de Vilela que lhe repercute na cabeça, mas as da cartomante. “(...) reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante”. E como Rita, também ele elabora um sofisma para garantir para si a veracidade das palavras da “sibila”: “Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto?” (ASSIS, 2003, p. 46). Isso é dito não pela voz direta do 104 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO personagem, mas pelo narrador. Com esse recurso do discurso indireto livre, como já se disse aqui, o narrador dá outra vez sinais “falsos” para o leitor. Neste instante de leitura, quem lê é despreparado para o final que está por vir, o que garante a surpresa antecipada do desfecho. Digo antecipada porque Camilo já havia pensado neste final trágico. Mas agora, como fez a cartomante com Camilo, faz o narrador com o leitor: tece um outro panorama de leitura mais otimista... ingênuo, porém otimista. Agora tem Camilo “uma fé nova e vivaz”. Ele olha para o horizonte e tem “assim uma sensação de futuro, longo, longo, interminável”. Como o hassid de Shebreschin indo ao encontro do paraíso, Camilo vai em direção à casa de Vilela. Contaminado pelo otimismo, Camilo não vê que, ao chegar e bater na porta de Vilela, este “tinha as feições descompostas”. “Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão” (ASSIS, 2003, p. 47). Como se vê, Camilo não teve, no entanto, a mesma sorte que hassid. É possível entrever no conto “A Cartomante”, portanto, dois planos de um jogo de leituras e sinais. Um aspecto desse jogo ‘indiciário’ se estabelece entre os quatro personagens, um outro aspecto se estabelece entre o narrador e o leitor. Entre os personagens há uma relação de olhares, gestos, insinuações que contribuem para a dádiva de uns sinais e dissimulação de outros, travando assim uma batalha em que vence aquele que lê melhor. É interessante notar que uma peça do jogo movimentada vale às vezes por duas ou mais jogadas, como foi o caso, por exemplo, da cartomante quando falou para Camilo que ele estava com algum susto: ao mesmo tempo em que leu um sinal, lançou um outro – a adivinhação – e ainda soltou uma deixa para ele “dá as cartas”, assim ela supôs o contexto de sua aflição. A cartomante é a que melhor lê e mais sabe dá as pistas. Pistas estas que motivam outros sinais que lhe servirão para outras leituras. Depois há a Rita que Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 105 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS mais dissimula indícios que propriamente os lê. Já Camilo e Vilela, pouco ou quase nada sabem jogar o jogo ‘indiciário’. Se o fazem, é ainda coxa a maneira que jogam. No caso de Camilo, sua inocência e subjetividade predominante não o deixam lê com clareza. Como diz o narrador, ele não tem nem experiência nem intuição. Camilo não passa então do “caricato” personagem machadiano que joga mais com a aparência, e muitas vezes o aparecer contrasta com aquilo que realmente é. Digo “caricato” porque esse tema se repete em outras de suas obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, nos contos como “Noite de Almirante”, “Teoria do Medalhão”, etc. Um outro aspecto do jogo indiciário, como já se disse, é entre o narrador e o leitor. Neste plano, no entanto, um está em parcial desvantagem: o leitor, que é passivo diante do que o narrador diz. Se ele não é passivo, pelo menos então paga uma multa por tentar ler como Zadig. Carece de uma leitura minuciosa, que desvenda sinais para que o texto se revele pleno, ou quase pleno diante de seus olhos. A multa é que o leitor sai em débito com essa plenitude e sabe disso – ao menos deveria saber. É claro que não estou falando do leitor indiciário que pretende ler como hassid. Este leitor hassid apenas se deleita com o paraíso e não questiona “o que vem do Alto”. Neste plano de jogo, o narrador dribla as informações para desviar a atenção do leitor. O narrador faz isso sem, entretanto, passar por falsário, “mentiroso”, uma vez que, como já observamos, faz uso de recursos textuais que mescla a voz do personagem com a sua voz, a do narrador. Estes dois planos do jogo indiciário – personagem/personagem e narrador/leitor –, não se excluem, mas, ao contrário, se complementam. Exemplo disso está no episódio em que Camilo lê na letra trêmula um indício de um drama trágico, enquanto o leitor, pelo ombro do narrador lê na leitura do personagem sua aflição, além de imaginar junto com Camilo a possibilidade do desfecho fatal. Assim, o leitor é cativado pelo jogo dos sinais estabelecido entre os personagens e o narrador. Mesmo que ele pague a sua multa, há algo de deleitoso neste jogo da ficção na qual se ganha na medida em 106 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO que se descobre perdedor. O fato é que, desse jogo indiciário, nenhum leitor poderá sair incólume. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. “A cartomante”. In: Contos consagrados. São Paulo: Ediouro, 2003. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das letras, 1999. NOY, Dov (org.). Contos da Tradução: Elena Moritz, J. Guinsburg São Paulo: Perspectiva, 1966. dispersão. et al. VOLTAIRE, François M. Arouet. Contos. Tradução: Mário Quintana. Porto Alegre: Abril Cultural. 1972. Recebido em 15/08/2008 Aprovado em 20/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 107 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS E MAIS UMA VEZ IRONIA E DISSIMULAÇÃO: TRANSITANDO PELO TEATRO MACHADIANO – UM OLHAR SOBRE “AS FORCAS CAUDINAS” Carla de Paula Santos Ufes Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número, coisas de míope. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam. (Machado de Assis) Resumo: A ironia e a dissimulação, elementos presentes nos romances e contos de Machado, também transbordam do caráter das personagens teatrais. É visando destacar esse comportamento, tão comum nas obras consagradas desse escritor, que procuraremos fazer uma breve análise da peça As forcas caudinas. Palavras-chave: Teatro machadiano. Ironia. Dissimulação. Abstract: Irony and concealing are present elements in the novels and stories by Machado. Those elements also overflow of the character of theatrical characters. It is aiming to highlight this behavior, so common in Machado’s works, that we make a brief analysis on the play As forcas caudinas”. Key words: Machadiano theater. Irony. Concealing. Contrário aos demais dramaturgos brasileiros, as comédias de 108 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Machado de Assis não apresentam estapafúrdios teatrais. O que se sobressai é um riso domiciliar pautado em situações cotidianas. Aliás, como afirma Sábato Magaldi (2004, p. 125), “é forçoso concluir: as peças de Machado de Assis não apresentam grandes qualidades em si. Tivesse o autor cultivado apenas o teatro, seu nome seria absolutamente secundário na Literatura Brasileira”. Rompendo o tradicional, Machado frustra seu público teatral. Por mais estranho que possa parecer, nosso grande escritor não alcançou sucesso como dramaturgo. Suas comédias possuem intrigas simplórias e uma trama linear, ausência de peripécias complicadas e escassez de assuntos. As virtudes prendem-se a negações: não apresentam mau gosto, não se entregam a exageros, não admitem melodramaticidade. São peças curtas (às vezes com um só ato), cuja preocupação figura, quase sempre, em episódios relativos ao matrimônio, aos amuos do casal ou as primícias do amor. O teatro machadiano é conhecido como o teatro da brevidade. E nesse quesito, Machado é tido como o dramaturgo da limpeza, da economia. O que sustenta o andamento da peça não é a ação, propriamente dita, mas os sofisticados diálogos proferidos pelos seus personagens; uma linguagem fina e requintada. Para saber se determinado personagem ama outro é necessário que esse o diga, pois o espectador não o percebe, não o sente. Quando é necessária a ausência de uma personagem no palco, as escusas menos elaboradas socorrem o andamento da trama: faz-se que um leque caia das mãos para o jardim; que alguém esteja a esperar o interlocutor em casa; que este saia para deixar um cartão de visita na propriedade vizinha: ou que simplesmente se recolha aos aposentos, para logo depois voltar. É verdade que é esse o estilo do cotidiano, formado mais dos pequenos hábitos do que dos gestos excepcionais. O leitor sente-se contrafeito, porém, com a pobreza do poder inventivo, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 109 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS acanhamento de meios que acaba por depauperar o resultado (LOYOLA, 1998, p194). Entretanto, a ironia e a dissimulação, elementos presentes nos romances e contos de Machado, também transbordam do caráter das personagens teatrais. É visando destacar esse comportamento, tão comum nas obras consagradas desse escritor, que procuraremos fazer uma breve análise da peça As forcas caudinas. Comédia realista, escrita entre 1863 e 1865, não apresenta a figura do resoneur. O público retratado é a elite carioca; o ambiente, familiar. É uma peça em dois atos com um núcleo reduzido: o casal Margarida e Seabra, recém-casados; o amigo ausente que retorna, Tito; a amiga íntima do casal, Emília, e o coronel Aleixo Cupido V, enamorado desta. Apesar de se tratar de uma peça breve, As forcas caudinas apresentam todos os elementos característicos da comédia. Os personagens aparecem como peças dispostas sobre um tabuleiro de xadrez, prontos para proferirem audaciosos diálogos. A comicidade pauta-se na linha do seguinte provérbio popular “o feitiço que cai contra o feiticeiro”; idéia espirituosa com feitio moral comum nas peças de Machado. Aquele que procura enganar e simular, acaba sendo o enganado. Aliás, as primeiras peças machadianas seguem o modelo dos provérbios franceses, observação feita por Quintino Bocaiúva: “As tuas comédias são para serem lidas e não representadas” (MAGALDI, 2004, p. 125). Uma e outra coisa lembram o teatro de Musset, o teatro para ser apreciado numa poltrona, não num palco. Entretanto, sobressaem das peças machadianas diálogos cobertos de uma polidez impecável. Uma sofisticação encantadora. O título da peça já nos põe frente à marca registrada desse escritor. Constitui-se de uma expressão idiomática rebuscada: passar pelas forcas caudinas é como render-se, dar-se por vencido. É uma metáfora referente à guerra; nesse caso, uma 110 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO guerra sentimental, uma luta entre dois seres apaixonados e egoístas, reféns da vingança: Tito e Emília. Quanto ao ambiente sob a qual a peça é montada, percebemos que se trata de um espaço doméstico: ora o recanto de amor de Margarida e Seabra, ora a casa de Emília. Diremos, ainda, que se trata de um “campo de batalha”: de um lado o feliz casal em clima de lua-de-mel, gozando das delícias do amor; uma espécie de “casamento perfeito”. Seabra (fechando o livro): É melhor. As coisas boas não se gozam de uma assentada Guardemos um bocado para a noite. Demais era já tempo que eu passasse do idílio escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti. Margarida: Jesus! Parece que começamos a lua-de-mel. Seabra: Parece e é. E se o casamento não fosse eternamente isto o que poderia ser? A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um eterno namoro. Não pensas como eu? Margarida: Sinto... Seabra: Sentes, é quanto basta (ASSIS, 2003, p. 01). Vale destacarmos que por mais romântica que possa parecer a cena, há certo exagero amoroso nas palavras de Seabra. Este profere todo um “discurso filosófico” sobre as faces do amor, os nuances do casamento e as alegrias que este proporciona; entretanto, ao finalizar, encaminha o espectador/leitor para o cômico, causando certo lisonjeio na platéia que, talvez, esperava que o discurso terminasse deixando uma aura romântica: “A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira de comer o maxixe e o repolho?”. Afinal, que ligação haveria entre o amor e a gastronomia? Artifícios machadianos. Se Seabra e Margarida desfrutam da felicidade conjugal, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 111 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS em posição de defesa, no lado adversário há o amigo Tito; totalmente alheio ao casamento, incisivo e irônico com relação ao amor. Margarida: Tem horror ao casamento? Tito: Não tenho vocação. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se meta nisso que é perder o tempo e o sossego. Desde muito estou convencido disto. (...) Tito: [...] Entre um amor que se oferece e... uma partida de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete (ASSIS, 2003, p. 05-06). É importante atentarmos para a figura de Tito que é o personagem norteador da ação, é ele quem motiva a “guerra” que se desencadeia na peça. Ao entrar em cena, interrompendo o diálogo íntimo entre Margarida e Seabra, dá início ao intrigante jogo de dissimulações que se desenrolará. A paz reinante e o clima romântico é interrompido pela chegada inesperada deste. Também contrastando com a perfeição do amor conjugal, temos a figura de Emília, que entra em campo com um único objetivo: derrotar Tito e fazê-lo passar pelas “forcas caudinas”; e, assim, lógico, enaltecer o seu ego feminino. Aliás, Emília nos parece, de certo modo, a figura incisivamente mais dissimulada desta peça, ficando a ironia machadiana, aqui, muito bem representada por Tito. Além de ser uma jovem viúva (vinte e cinco anos) e ter segundo Tito “exportado dois maridos para o outro mundo, estando à espera de exportar o terceiro”, tudo isso em menos de dois anos, é Emília quem demonstra entender mais de amores e relacionamentos em toda a peça. Personagem complexa, revela o prazer que sente em subjugar o sexo oposto aos seus caprichos e, posteriormente, desprezá-los. 112 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Emília: Lembra-me um do mesmo gênero que este... Foi já há tempos, andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Caiu em menos de um mês. Margarida, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do que desprezei-o. Margarida: Que fizeste? Emília: Ah! Não sei o que fiz. Fiz o que todas fazemos. Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati o orgulhoso (ASSIS, 2003, p. 13). É com esse pensamento, “Vinguei o sexo e abati o orgulhoso”, que Emília trava com Tito um intrigante combate. A partir daí desenrola-se todo um jogo de dissimulações com relação ao seu comportamento. O que ela não sabe é que seu fingimento é, na verdade, reflexo da sua alma. Os personagens presentes na peça em questão são modelos machadianos. Segundo Magaldi (2004, p. 129) “Os tipos são simples, definidos numa ação linear, distantes das paixões mais ardorosas que poderiam abrir-lhes perspectivas amplas, e ainda assim, desenham-se, no mais das vezes, com sutileza que faz supor lutas íntimas”. É importante atentarmos para o modo como é dissecado o caráter de Emília. Para Seabra, apesar de ser uma “boa senhora” falava demais. Seabra: A Emília faz um grande cavalo de batalha da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está ainda nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos (ASSIS, 2003, p. 02). Para Tito, uma mulher audaciosa, galanteadora, caprichosa e “sem raríssimas qualidades”. Tito: Não sei... ela é uma boa senhora, um pouco secantezinha...muito dada à poesia...ora eu sou todo prosa...(batendo no estômago). Há prosa? (ASSIS, 2003, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 113 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS p. 24) Observemos, ainda, o descaso de Tito, na verdade, certo despeito; como se a presença de Emília não lhe causasse nenhuma comoção: ela é dada a sentimentos, galanteios, preocupada com as palavras; ele, preocupado com a razão, com os sentimentos físicos, a fome, nesse caso. De acordo com Margarida, Emília era a amiga de todas as horas, mas “perigosa” e vingativa. O que, entretanto, não a impede de compactuar com o joguinho de conquista e vingança. Talvez, fosse justamente esse poder de dissimulação presente no comportamento da amiga o que a intrigava e a seduzia. Margarida: Dissimulada! Emília (rindo): Por que dizes isso? Margarida: Por que já te vejo tentada a uma vingança nova. Emília: Eu? Ora, qual! Margarida: Que tem? Não é crime... Emília: Não é, decerto; mas...Veremos! Margarida: Ah! Serás capaz? Emília (com um olhar de orgulho): Capaz? Margarida: Beijar-te-á ele a ponta dos sapatos? Emília (apontando com o leque para o pé): E hão de ser estes... (ASSIS, 2003, p. 14-15). Em As forcas caudinas as relações entre as personagens são enredadas e enigmáticas. A peça constitui-se de um grande jogo de vaidade e dissimulações, fortemente marcada pelo tom dos diálogos, tonalidade característica das conversas de salão. A linguagem de meios tons apresenta falas insinuantes e estudadas; as personagens parecem pesar o que dizem. E em alguns momentos, os diálogos apresentam uma escala que vai da ironia ao sarcasmo. 114 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Como em toda comédia há sempre uma personagem ridicularizada, o grotesco é, aqui, muito bem representado na figura estapafúrdia do Coronel Aleixo Cupido V. Nome, por sua vez, bem sugestivo para uma figura de alta patente no exército. Se sua posição social impõe certo respeito, seu comportamento é dos mais intrigantes e cômicos. Se para Aristóteles, a ação cômica deve ser absurda (BENDER, 1996, p. 22), o coronel faz jus ao papel. Alvo das ironias de Tito e das zombarias de Emília, o coronel é na verdade um parvo. Primeiro: “Namora a Emília, sem ser namorado” (ASSIS, 2003, p. 08). Segundo: é capaz de tudo para conquistar a amada. Aliás, o presente encomendado para Emília é bastante cômico, chegando a transformar o coronel numa figura inimaginável. Emília: Sabem que o Sr. Coronel vai fazer-me um presente? Seabra: Ah!... Margarida: O que é? Coronel: É uma insignificância, não vale a pena. Emília: Então, não acertam? É um urso branco. Seabra e Margarida: Um urso! Emília: Está para chegar, mas só ontem é que me deu notícia... Tito (baixo a Seabra): Com ele faz um par. Margarida: Ora, um urso! Coronel: Não vale a pena. Contudo mandei dizer que desejava dos mais belos. Ah! Não fazem idéia do que é um urso branco! Imaginem que é todo branco! Tito: Ah!... Coronel: É um animal admirável. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 115 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Tito: Eu acho que sim. (a Seabra) Ora vê tu, um urso branco que é todo branco! (ASSIS, 2003, p. 07-08) Além da insensatez do presente, não podemos deixar de destacar a estupidez de Aleixo Cupido; bem como a ironia nas palavras de Tito, ditas a meia voz para Seabra. Quando Emília diz que ganhará um urso do coronel, Tito responde: ”Com ele faz um par”; ou seja, ambos gordos, sonsos, inúteis e parvos. A redução da tonalidade de voz, representada na peça pelo uso dos parênteses, revela o sarcasmo íntimo e o veneno destilado pelas personagens. Esse jogo de afinações da linguagem representa recursos polifônicos empregados por Machado para proporcionar o riso do leitor; e são usados, ainda, para medir o grau de ironia dos diálogos. Vale destacarmos, também, o uso de “conversas e desconversas”, utilizado aqui como mecanismo cômico: ao mesmo tempo em que Tito conversa com o Coronel, fala deste para Seabra. Esses recursos representam o contraste entre os sentidos manifestos e os sentidos ocultos, o que se diz e o que realmente se queria dizer. Quanto à figura do coronel, apesar da estupidez de sua pessoa, este “serve” para suprir as vaidades de Emília; mesmo que o tempo todo, ela passe tentando se livrar de sua presença inoportuna. Emília: Eu sei lá! Mas afinal de contas, não é mau homem. Tem aquela mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão. Margarida: Enfim, se não passa da declaração semanal!... Emília: Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de casa[...] (ASSIS, 2003, p. 12) Com relação a Tito, não podemos deixar de realçar características de seu caráter, que o faz um “jogador” à altura de Emília. Se para Seabra ele é o amigo que sofreu uma desilusão amorosa, e 116 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO por isso, alheio ao casamento; para Margarida e Emília Tito é uma espécie de “coisa”, um “homem incapaz de amar”, um vaidoso e orgulhoso, um dissimulado que merece ser corrigido, domado. O comportamento de Tito com Emília revela-nos, também, um homem frio e calculista; disposto a irritá-la e desprezá-la como mulher. Há uma passagem de destaque na peça, em que fica bem latente o descaso do personagem e a falta de sentimentos levando o leitor/espectador a rir e, até mesmo, a sentir certa “pena” de Emília. A ironia nas palavras de Tito chega a ser gritante. Tito (folheando o livro): Oh! Essa... está salva! Emília (depois de uma pausa) Está admirando a beleza dos versos? Tito: Não senhora; estou admirando a beleza da impressão. Já se imprime bem no Rio de Janeiro. Aqui há anos era uma desgraça. V. Exa. há de conservar ainda alguns livros de impressão antiga... Emília: Não, senhor; eu nasci depois que se começou a imprimir bem. Tito (com a maior frieza): Ah! (deixa o livro) (...) Emília: [...] Em que medita? No amor? Sonha com os anjos? (ameigando a voz) A vida do amor é a vida dos anjos... é a vida do céu...(vendo-o com os olhos fechados) Dorme!... Dorme!... Tito (despertando, com espanto): Dorme?... Quem? Eu?... Ah! o cansaço...(levanta-se) desculpe...é o cansaço...cochilei... também Homero cochilava...Que há? (ASSIS, 2003, p. 2122) Na cena nove do segundo ato, ocorre a queda das máscaras das personagens Quando Emília e Tito encontram-se só, ela lhe confessa o amor, deixando-o perturbado. Nem mesmo o descaso recebido e as ironias investidas, fazem Emília se Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 117 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS calar. Como ela mesma afirma para Margarida: “Quis fazer fogo e queimei-me nas mesmas chamas! (ASSIS, 2003, 41).” Assim, esse jogo de relações de poder entre Tito e Emília, acaba tendo um final inesperado. Emília propõe o duelo e Tito vence sem precisar lutar. É ela quem, na verdade, acaba passando pelas “forcas caudinas”. Ao tentar seduzir para depois desprezar, acaba se apaixonado e sendo correspondida. Tito, lógico, se rende, mas com certa categoria, não perdendo a oportunidade de se mostrar incisivo e superior com relação ao amor, levando Emília a confessar a derrota. Tito: (a Emília) Aceita a minha mão? (estende-lhe a mão) Emília (alegremente): Oh! Sim! (dá-lhe a mão) Margarida: Bravo! Tito: Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo. Emília: Pois, sim; mas de um ou de outro modo sou feliz. Contudo, um remorso me surge na consciência. Dou-lhe uma felicidade tão completa como a recebo? Tito: Remorso, se é sujeita aos remorsos, deve ter um, mas por motivo diverso. Minha senhora, V. Exa. está passando neste momento pelas forcas caudinas (ASSIS, 2003, 42.) Após o “final do jogo”, como artifício machadiano, a peça não poderia apenas terminar com a promessa de casamento entre Emília e Tito. Era necessário, ainda, que o cômico desse suas caras pela última vez. Entra em cena, assim, Aleixo Cupido, para fechar “com chave de ouro” tal comédia. E, mais uma vez, Machado lança mão da ironia para conquistar seus leitores/espectadores. Coronel: Tenho estado à espera de dar uma boa notícia. Recebi uma carta que me dá parte de que o urso está na alfândega. 118 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Emília: Pois vá fazer-lhe companhia Coronel: O quê? Tito: D. Emília só precisa agora de um urso: sou eu (ASSIS, 2003, 44). Desse modo, fica para nós leitores críticos a seguinte questão: será mesmo o teatro machadiano um teatro de poltrona? E suas peças, não apresentam qualidade? Não são para o palco? Bom, que o nosso amigo Quintino de Bocaiúva continue esperando compreender Machado apenas de sua poltrona. Ah! E que lhe faça companhia um certo urso branco que, por sinal, é todo branco! REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 01. Textos literários em meio eletrônico. Disponível em http:// www.dominiopublico.gov. br. Acesso em 08 de outubro de 2008. BENDER, Ivo. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996. LOYOLA, Cecília. O teatro de Machado de Assis: legado póstumo. In: SECCHIN, Antônio Carlos; ALMEIDA, José Maurício Gomes de; SOUZA, Ronaldes de Melo e (Org.). Machado de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998, p. 191-204. MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 2004. Recebido em 14/08/2008 Aprovado em 21/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 119 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS A RELAÇÃO NARRADOR E LEITOR EM DOM CASMURRO Maria Helena Laureano Ufes Resumo: Nos romances do século XIX, narrados em primeira pessoa, como Dom Casmurro, há uma pré-seleção de fatos e idéias com a possibilidade ou não de confirmação desses fatos. Isso ocorre porque o narrador é o tradutor de sua história, o autor é o tradutor de seu tempo (de sua visão sobre o mundo), o leitor é o tradutor da história contada pelo narrador no tempo real da leitura: hoje. Por isso, a relação narrador e leitor desse romance deve ser analisada levando em conta as interferências do passado na fala do narrador e do presente na interpretação do leitor. Palavras-chave: Narrador. Leitor. Tradução. Abstract: In the novels of the nineteenth century, narrated in first person, as Sun Casmurro, there is a pre-selection of facts and ideas with the possibility of confirmation or otherwise of these facts. This is because the narrator is the translator of its history, the author is the translator of his time (of his vision on the world), the reader is the translator of the story told by the narrator in real time of reading today. Therefore, the reader and narrator of this novel should be considered taking into account the interference of the narrator speaks in the past and the present in the interpretation of the reader. Keywords: Narrator. Reader. Translation. DA NARRATIVA Dom Casmurro: uma narrativa que, logo no início, ainda no título, se apresenta como um romance autobiográfico, pois 120 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO utiliza como título o nome do personagem principal e, como deixa claro nos primeiros capítulos, vai narrar em primeira pessoa fatos de sua vida. Logo, trata-se de uma autobiografia escrita e narrada em vida por um narrador-personagem. Comecemos por aí: narrador personagem? Romance autobiográfico? Dom Casmurro? Ora, já temos vários indícios de que não se trata de um romance tradicional, pois o personagem principal, que também é o autor e narrador da história, vai contar sua vida estando ainda vivo (ao contrário de Brás Cubas do mesmo autor), mas ele próprio é uma ficção, sua vida é uma história inventada. Talvez até por isso, nos dois primeiros capítulos, uma narrativa introspectiva e altamente psicológica dá o “pontapé” inicial no romance, traçando seu perfil na tentativa de se auto-afirmar como real para a ficção, confirmando também a veracidade do que vai contar. (Dar seu próprio nome à história, explicar o porquê (DO TÍTULO, p. 15-16)) e expor os motivos que o levaram a essa empreitada é apenas o início de uma tentativa de se apresentar para o leitor, numa entrega total, falar de seu drama pessoal: “O meu fim era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” (DO LIVRO, p. 17). Em seguida, com um ar de melancolia, herança do Romantismo que ainda impregnava as obras daquela época, denuncia-se a si mesmo morto por dentro, feito só de aparências, um “vivo-morto”: [...] Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o inferno não agüenta tinta. Uma certidão que desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim [...]. Nesse trecho, distancia-se de si mesmo, do que fora, para Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 121 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS recompor sua história; surge, agora, o narrador onisciente e onipresente, mas que precisa afastar-se do que viveu como experiência própria para deixar o personagem “Dom Casmurro” revivê-la. O Dom Casmurro narrador faz parte da realidade da ficção e cria um Dom Casmurro personagem que irá reviver os acontecimentos na ficção da ficção – ficção criando ficção. Como já foi dito anteriormente e poderemos perceber no decorrer desta argumentação, não é uma narrativa tradicional, pois não tem nenhuma intenção de ensinamento, apenas cria tensões e não as resolve, gera conflitos, desorienta e não decide nada. Não pretende resolver tensões e sim instaurá-las. Para isso, o narrador recorre somente às suas memórias e à de mais ninguém; uma memória romancista, individual, mas que reflete o universal ao representar a vida do homem moderno com os ranços da aristocracia decadente no Brasil do século XIX. Uma narrativa que tem um fim em si mesma é, ou quase é, um solilóquio, fechada como um “casmurro”, que segundo o narrador, significa “calado, metido consigo mesmo”. (DO TÍTULO, P. 15). No entanto, embora seja típico dos romances do século XIX, narrados em primeira pessoa, essa pré-seleção de fatos e idéias com a possibilidade ou não de confirmação no decorrer do texto, em Dom Casmurro é o desencadeamento de diversas “traduções” que vão interferir e direcionar os rumos da história. Tradução, aqui, não no sentido interlingüístico, mas no sentido intralingüístico, onde quem lê faz a tradução para si mesmo, levando em conta sua competência para leituras previsíveis (paráfrases) e leituras possíveis (polissêmicas). Em Dom Casmurro o narrador é o tradutor de sua história; o autor é o tradutor de seu tempo, de sua visão sobre o mundo; e o leitor é o tradutor da história contada pelo narrador no tempo real da leitura: hoje. Portanto, para analisar a relação existente entre narrador e leitor em Dom Casmurro, é preciso “entrar no jogo do narrador”, 122 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO passar a fazer parte da história, por mais fechada que ela seja. Só assim o leitor e analista conseguirá entender a história: vivendo a narrativa, sentindo-a com a mesma profundidade que o narrador narra, tornando-se um tradutor do que o narrador conta, traduzindo para si mesmo. Até certo ponto, podemos dizer que o leitor projeta em seu cérebro os sentimentos e pensamentos do outro (o narrador) e faz o mesmo percurso do narrador para compreendê-lo, identifica-se com ele e insere-se nesse ciclo que envolve narrador, leitor e personagem, como numa teia, e passa a ser responsável pelo texto, porque cria significados. Aí está o limite dessa relação: por mais que o leitor se deixe levar passivamente pela narrativa, os significados de leitura que ele cria se darão a partir de suas próprias experiências. Nesse processo de tradução ele passa a ser responsável pelo texto que recria, porque interfere nele. Torna-se um leitor-autor, porque traz a ficção para a sua realidade, compondo seu próprio significado. Por mais fechada que seja a narrativa, o leitor sempre encontrará orifícios pelos quais fará sua intervenção no texto. A RELAÇÃO NARRADOR E LEITOR DE DOM CASMURRO: PASSIVIDADE OU INTERAÇÃO? O narrador de Dom Casmurro inaugura sua história com um ar de pessimismo, de descrença com o mundo, com seu meio, um niilismo próprio dos românticos: Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obrigam muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa. [...] Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal (DOLIVRO, p. 17). Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 123 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS Mas, apesar de deixar transparecer tanta desesperança e melancolia, todo esse niilismo denuncia uma relação artificial do personagem com o meio; um niilismo que o próprio ato da escrita contradiz: [...] Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...? (DO LIVRO, p. 18, grifo do autor). Queria reviver na escrita seu passado, suas memórias; ainda que fossem momentos sofridos e dignos de esquecimento, queria revivê-los. E escrever era a melhor forma de eternizar. Até que ponto é possível escrever suas próprias experiências com imparcialidade, sem reconstruí-las de outro modo, a seu modo, de um modo que justifique seus atos e a si mesmo?... Ninguém está imune às interferências do tempo e espaço em que vive. Nesse sentido, uma autobiografia nunca é trazer de volta o passado tal qual ele fora, pois, estando em um outro tempo, o presente, essa escrita vai sofrer as influências desse tempo, será uma escrita ideal. Quem escreve já é um outro ser porque, no momento da escrita, já foi afetado e transformado pelas experiências que vai contar. Quem escreve não é o mesmo que viveu. Por isso, precisamos suspeitar da intencionalidade de Dom Casmurro em relação ao leitor para quem ele escreve, e questionar, o tempo todo, seu tom filosofante e seu ar de vitimado. Através da pena convincente de Machado de Assis, Dom Casmurro recria-se, duplica-se, pois cria uma outra ficção para um texto que já é ficcional, levando o leitor a sentir-se penalizado com o sofrimento do personagem, tornando-se seu defensor, seu advogado e, de certo modo, seu cúmplice. Apesar de uma aparente linearidade, Dom Casmurro é toda 124 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO feita de digressões e, poderíamos dizer que, o personagem é duplo e bipolar, pois, quem escreve é Dom Casmurro, quem vive a escrita é Bentinho. Dom Casmurro é, então, um autor-narrador quando escreve suas memórias, e narradorpersonagem quando vive o que narra como Bentinho. Bentinho é o personagem principal da ficção criada por Dom Casmurro; mas Dom Casmurro é o personagem principal da ficção criada por Machado de Assis. Uma ficção dupla, uma dentro da outra, que gera um personagem também duplo. Se pudermos utilizar o termo “morte do autor” num sentido amplo e poético da palavra é nesse caso, pois o autor cria uma ficção para um texto que já é ficcional e, nem assume, nem nega sua autoria, porque Dom Casmurro assume o papel de autor. Se o leitor não ficar atento, esquece tais aspectos e se perde (ou se encontra) na leitura. NA SEQÜÊNCIA DA HISTÓRIA: DO TÍTULO. DO LIVRO. A DENÚNCIA... Apesar da aparente linearidade, talvez fosse mais correto afirmar que se trata de uma circularidade: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. [...]” ( DO LIVRO, p. 17). Feito. Embora não tenha conseguido ligar as duas pontas da vida, ligou as da narrativa. Narra do presente, dá certo corte, ou seja, interrompe o tempo para voltar ao passado. A história dele começa, realmente, ali, com “A Denúncia”. A partir daí desenvolve-se linearmente no tempo até chegar novamente ao ponto de partida, o presente. Atando as duas pontas da linha do tempo só pode resultar em um círculo que, no final, volta ao começo. Mas, esta não é a finalidade deste capítulo, antes, sua finalidade é observar, na seqüência da história, pontos relevantes para o entendimento da relação entre narrador e leitor. Comecemos, pois, do que julgamos ser o começo: “Denúncia”. O narrador apresenta-nos Bentinho já sob os olhares atentos da família e Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 125 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS despertando para o amor de Capitu. Analisa, em “Um dever Amaríssimo”, todos os traços do perfil físico e psicológico de José Dias, seu denunciante e “O agregado” da família. Não por acaso o primeiro personagem secundário a ser apresentado foi José Dias, autor da denúncia, antes mesmo de nos apresentar o núcleo genealógico da família no capítulo “D. Glória”. O agregado foi o primeiro a perceber que os olhares entre Bentinho e Capitu não eram mais olhares pueris. A denúncia foi a semente daquele amor que, jogada em terra fértil, germinou. E Bentinho disse para si mesmo: “É Tempo” No capítulo seguinte, “A Ópera”, o narrador faz uma regressão ao presente da ficção “[...] Vinha aqui jantar comigo algumas vezes [...]”, para explicar a comparação que fazia um amigo tenor entre a vida e a ópera. Comparações aceitas e reformuladas por Dom Casmurro tendo como a ópera sua própria vida, iniciam-se as justificativas em favor de Bentinho e os contatos diretos com o leitor. Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas, não adiantemos; vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ela me denunciou. Entre os detalhes de sua criação e educação e os projetos para o futuro de Bentinho, o narrador tece a história capturando o leitor para ser sua testemunha. Já que todos morreram, ele quer o leitor como seu grande jurado. Vai construindo sua Verdade, justificando-se o tempo todo: Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a 126 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! “Capitu amava-me” E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente por ser a primeira. Mesmo quando Capitu dá o primeiro passo para a concretização daquele romance, escrevendo seu nome junto ao dele, no muro, o narrador defende Bentinho. Uma defesa de coisa alguma, pois nada havia acontecido ainda. Talvez apenas para ir confirmando a inocência, a ausência de culpa por parte dele de qualquer coisa que viesse acontecer: “[...] Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado [...]”; “[...] Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias do latim e era virgem de mulheres. [...]”. (BENTO/CAPTOLINA, p. 38). Nos muitos capítulos que se seguem é notável o esforço do narrador para convencer o leitor da ingenuidade de Bentinho e da astúcia de Capitu, como se ela fosse desde sempre, quem direcionava e manipulava toda a situação com propósitos escusos e pré-concebidos. Claros ficam tais propósitos na narração de uma explosão nervosa de Capitu ao saber da intenção da mãe de Bentinho de mandá-lo para o seminário: Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha explosão. È verdade que também gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 127 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse; [...] (UM PLANO, p. 45, grifo do autor). Quando passou a explosão “Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos [...]”; “[...] Capitu deixou-se ir rindo; depois a conversa entrou a cochilar e a dormir [...]” (UM PLANO, p. 46). Depois da reflexão, a conclusão: “-Se eu fosse rica, você fugia, metiase no parque e ia para a Europa.”; “Como vês, Capitu, aos quatorze anos, já tinha idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois, mas eram só atrevidas em si, na prática, faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos, não sei se me explico bem [...]” (UM PLANO, p. 47). Neste momento, já está plantada no leitor uma semente de desconfiança por Capitu e uma árvore, já crescida, de cumplicidade com Bentinho – ou Dom Casmurro. Sim, porque é no momento em que o narrador começa a apresentar Bentinho como “o manipulável e passível de traição” da história, que Dom Casmurro ganha vida para a narrativa. Antes, Bentinho era o adolescente que vivia um grande amor correspondido. Vários outros pontos da narrativa nos mostram que Capitu era astuciosa, apesar da pouca idade. De forma que fica difícil não crer em sua traição no final. Mas o leitor, aqui representado por quem analisa esta relação, é capaz de levantar outras hipóteses. Tracemos, então, o perfil do narrador, Dom Casmurro. REFLEXÕES DE LEITOR O PERFIL DO NARRADOR Dom Casmurro era advogado, aristocrata, composto bem à 128 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO figura dos proprietários escravagistas do século XIX, rico por herança, um homem relativamente comum, mas de caráter ilustre socialmente, melancólico e bom representante do egocentrismo romântico. Entretanto, o tema que ele narra se dá no tocante a uma questão que atinge a qualquer ser humano que, sendo rico ou pobre, do século XIX ou XXI, está predisposto, de alguma forma: a traição. Sua filosofia de vida – a busca incansável pela Verdade – o faz transitar sempre entre as fronteiras da Certeza e da Suspeita, da Mentira e da Verdade, fronteiras vulneráveis e que, em determinados momentos, não são opostas, mas constituem apenas pontos de vista diferentes: “[...] Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos [...]” (UM MEIO-TERMO, p. 103). O PERFIL DO LEITOR Eis a questão: qual o leitor? O do século XIX, contemporâneo do narrador, com um perfil bem parecido com o dele por fazer parte da mesma sociedade, ou o leitor do século XXI? Certamente, naquela época, os leitores desta ficção, homens e mulheres reais, apedrejariam (ou apedrejaram) mentalmente Capitu. Nada poderia ser feito em sua defesa, pois as provas apresentadas por Dom Casmurro seriam suficientes para sua condenação. Mas, o leitor de hoje lhe daria, no mínimo, o benefício da dúvida. Embora o narrador tenha o firme propósito de convencer o leitor de sua Verdade, as fronteiras que separam a realidade da ficção são, hoje, bastante tênues, vulneráveis. Fica impossível não fazer uma aproximação entre a ficção e a realidade, para entender o texto com profundidade. Nessa aproximação e comparação é que acontece o julgamento do leitor e uma leitura competente se constitui. Como numa interação entre as linguagens do século XIX e XXI, o leitor refaz, reinventa a história num processo de tradução interna do que lê. Afinal, ninguém e nada está imune às influências e transformações deste eterno girar universal. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 129 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS O PERFIL DE BENTINHO Jovem, ingênuo, homem sem determinação.Vive das denúncias de José Dias: “Juro! Deixe ver os olhos, Capitu. Tinha me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim [...]” (OLHOS DE RESSACA, p. 71); Vivia dependente também da determinação de Capitu, algo que ela trazia estampado nos “olhos de ressaca” e nos gestos. Mais tarde, também passa a viver de outras denúncias, como a de Otelo, personagem de Shakespeare numa peça de teatro: “Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho [...]” (UMA REFORMA DRAMÁTICA, p. 141). Até as imitações do filho Ezequiel lhe servem como denúncias, como indícios de uma traição: “[...] já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...” (AS IMITAÇÕES DE EZEQUIEL, p. 201); “[...] Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar da cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair , quando ria [...]” (FILHO DO HOMEM, p. 208). Assim, vai construindo a traição da esposa e do amigo sobre os gestos de Ezequiel, embora ele mesmo admitisse, eram só imitações: “Escobar concordou comigo e insinuou que alguma vez as crianças que se freqüentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia se [...]” (AMIGOS PRÓXIMOS, p. 210). O LEITOR, ADVOGADO DO DIABO Após traçar o perfil do narrador e situá-lo no tempo e espaço em que a obra foi escrita, e situar o leitor como sendo o dos dias atuais, considerando todas as referências tecnológicas que 130 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO a contemporaneidade nos oferece, é possível confirmar que o leitor de hoje, ao ler Dom Casmurro, torna-se também autor da obra, pois recria, compõe uma nova realidade para a ficção. Dessa forma, é impossível não analisarmos a narração de Dom Casmurro sem dar voz e vez aos outros personagens. Como se trata de uma narração onde apenas o narrador fala, até mesmo quando as falas e pensamentos são dos outros personagens é o narrador quem os transmite, moldando-os e interpretando-os a seu modo, para convencer o leitor. No entanto, em várias passagens o próprio narrador se contradiz e demonstra suas dúvidas frente à Verdade, que parecia já incontestável: “A viúva era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu?” (CISMANDO, p. 220). O narrador também se trai ao escrever uma passagem onde expressa uma ingenuidade incomum em Capitu, até então: “-Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? Perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar [...]” (ANTERIOR AO ANTERIOR, p. 225). Também deixa transparecer o quanto Capitu se submeteu às suas vontades e tentou desviá-lo do verme do ciúme que o corroía: “[...] Dali em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à janela para não espertarme os ciúmes [...]” (DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS, p. 206); “[...] E, sem se lhe dar das visitas, nem repara se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. [...]” ( PUNHADO DE SUCESSOS, p. 222); “As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala [...]” (OLHOS DE RESSACA, p. 216). AO VERME QUE CORRÓI O HOMEM, O CIÚME Naquela busca incansável pela Verdade, ela se tornou idéia fixa; havia algo de insano nesta busca, incomum para o leitor Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 131 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS de hoje talvez, mas muito compreensível para um narrador do século XIX, melancólico, introspectivo, que queria a qualquer custo encontrar justificativa para sua “casmurrice”. Construiu sua “casmurrice” com bases bem sólidas, seu alicerce foi o ciúme. Bentinho foi se transformando em Dom Casmurro aos poucos, à medida que seu ciúme crescia. Tinha ciúme de tudo; do cavaleiro que passasse à rua, dos braços de Capitu e até do mar: [...] O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. [...] (O CONTRA-REGRA, p. 143); Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto dela, mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. [...] (O DESESPERO, p. 144); [...] Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles, as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui [...]. (OS BRAÇOS, p. 188-189); [...] Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes (DEZ LIBRAS ESTERLINAS, p. 189-190). Por fim, então, passou a ter ciúme de Escobar: “[...] saí, mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor”. (EMBARGOS DE TERCEIROS, p. 202); e até do cadáver de Escobar: “[...] Capitu olhou alguns instantes para 132 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (OLHOS DE RESSACA, p. 217). Com o ciúme, cresce também a desconfiança; e junto aos dois cresce Ezequiel: Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam se apurando com o tempo. [...] Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para sentar-se comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção de costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para não me descobrir a mim mesmo e ao mundo [...] (O DEBUXO E O COLORIDO, p. 227). O capítulo citado anteriormente mais parece um descrever de um narrador personagem no limiar da sanidade para a loucura. E Otelo determina sua própria desgraça e a de outros, que está a caminho. Bentinho encontra na peça de teatro a gota que faltava para seu devaneio total: “Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto e estimei a coincidência [...]”; “[...] O último ato mostroume que não eu, mas Capitu devia morrer. [...]” (OTELO, p. 231-232). Na época de Otelo, “um lenço bastou para acender os ciúmes”; na época de Bentinho, ou Dom Casmurro, “alguma vez há em que nem lençóis há, e valem só as camisas” (p. 231), e hoje, para o leitor? O que seria necessário para comprovar a traição de Capitu? A aparência de Ezequiel seria suficiente? Certo é que Dom Casmurro, o narrador, criou essa Capitu infiel pelo seu ciúme, ou melhor seria dizer, pelo ciúme de Bentinho: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente.[...]” Mas, nem mesmo ele acredita tanto assim nessa Verdade: “[...] Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 133 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: ‘Não tenhais ciúme de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti’[...]”. Por isso, precisa do leitor como seu cúmplice, como um jurado seu: “[...] Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. Para a ficção, a traição de Capitu e Escobar é fato comprovado. O narrador garante isso: E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganandome... A terra lhes seja leve![...] (E BEM, E O RESTO, p. 250). Para o leitor, a conclusão vai depender da relação estabelecida por ele com o narrador: se foi de passividade ou dialética. Machado que nos perdoe, a nós leitores mais abusados do século XXI, mas se o leitor se constitui no ato da leitura e é como leitura que um texto ganha sentido, novas interpretações surgem e vão surgir sempre, e precisam ser consideradas. É assim que a literatura renova-se a cada dia e um texto literário mantém-se vivo através dos séculos. Afinal, “a obra em si mesma é tudo”. 134 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Klick editora/O Globo, 1997. Recebido em 14/08/2008 Aprovado em 21/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 135 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS BRÁS CUBAS E A SOLIDARIEDADE DO ABORRECIMENTO HUMANO Vitor Cei Santos Ufes Resumo: Seguindo a máxima do personagem-narrador de que “a obra em si mesma é tudo”, o artigo visa ler o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas a partir dos recursos oferecidos pelo próprio texto. Nesse sentido, pensamos uma questão intrínseca à narrativa, a saber: o que é a solidariedade do aborrecimento humano e qual a sua relação com galhofa e melancolia, disposições que perpassam e impulsionam toda a obra. A questão é pensada a partir de uma análise do capítulo XLII, “Que escapou a Aristóteles”, em comparação com outros trechos da obra. Palavras-chave: Galhofa. Melancolia. Páthos. Abstract: Following the maxim of the character-narrator that “the work itself is everything”, the article aims to read the book Memórias Póstumas de Brás Cubas from the resources offered by the own text. Thus, an intrinsic question on the narrative is thought: what solidarity of human annoyance is, and what is its relation with mockery and melancholy, passions that permeates and drives the entire book. This question is analyzed from a reading of the chapter XLII, “Que escapou a Aristóteles”, in comparison with other passages of the book. Keywords: Mockery. Melancholy. Páthos. O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que foi lançado em folhetim na Revista Brasileira em 1880 e publicado em livro em 1881, é uma das obras mais estudadas do escritor com maior fortuna crítica da literatura 136 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO brasileira. Seguindo os acenos oferecidos pelos professores Bernardo Barros Coelho de Oliveira e Fernando Mendes Pessoa durante o curso “A obra em si mesma é tudo”: Leituras de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, ministrado no segundo semestre de 2007 no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFES, nossa proposta é ler a narrativa de Brás Cubas a partir dos recursos oferecidos pelo próprio texto ficcional, sem intermediação da fortuna crítica. Nesse empreendimento de duplo risco, por seguir uma orientação de narrador tão suspeito como Brás e por abrir mão do auxílio proporcionado pela secular tradição de leitores e pesquisadores machadianos, buscaremos pensar uma questão intrínseca à estrutura narrativa da obra, a saber: o que é a solidariedade do aborrecimento humano e qual a sua relação com galhofa e melancolia, disposições que perpassam e impulsionam toda a obra. Esta questão será pensada a partir de uma análise do capítulo XLII, “Que escapou a Aristóteles” em comparação com outros trechos da obra. Tratando-se de memórias, refresquemos a nossa. Segue a transcrição integral do sucinto capítulo XLII: Outra coisa que também me parece metafísica é isto: Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; - a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, - o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar - solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles? (ASSIS, 1999, p. 114). Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 137 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS O narrador, galhofeiramente, apresenta um “conceito” que teria escapado ao filósofo Aristóteles: a solidariedade do aborrecimento humano. De metafísica, só há casca, verniz intelectual e galhofa. A metafísica de Brás pode ser lida como uma pilhéria com os medalhões, aqueles pseudo-intelectuais apresentados por Machado no conto “Teoria do Medalhão” (ASSIS, 2002). Mas não apenas os medalhões são vítimas da pena da galhofa de Brás Cubas, os grandes pensadores também são. O capítulo XLII não é o único da obra em que o narrador zomba de grandes personagens da história. A obra, que o defunto autor caracteriza como “[...] supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona [...]” (ASSIS, 1999, p. 37), se encaminha em ritmo digressivo e desconcertante, conforme o capricho de Brás, desrespeitando qualquer norma ou convenção de estilo, atacando a tudo e a todos. No capítulo I, ele se compara a Moisés e afirma que sua obra é mais galante que o Pentateuco; no VII, ele se transforma na Summa theologica de Tomás de Aquino; no XXVII, a teoria das edições humanas de Brás discorda de Pascal: o homem não seria um caniço pensante, mas sim uma errata pensante. Em toda a obra encontramos galhofas em relação à Filosofia e à racionalidade, na forma de reflexões, teorias, categorias e alegorias. Em diversos capítulos a filosofia ocupa a função de verniz intelectual, sendo um recurso para conceder aparência de veracidade e erudição à narrativa do defunto autor. Os seguintes títulos são exemplares: “A idéia fixa” (IV), “Razão contra sandice” (VIII), “O filósofo” (CIX), “Filosofia das folhas velhas” (CXVI), “O Humanitismo” (CXVII) e “Filosofia dos Epitáfios” (CLI). Galhofas à parte, a noção de solidariedade do aborrecimento humano, que se encontra no cerne do capítulo XLII, aparece como fundamental para a compreensão da narrativa de Brás. Nesse sentido, o assunto que nos convida e reúne a pensar é a 138 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO solidariedade do aborrecimento humano em sua relação com a galhofa e a melancolia. A solidariedade, segundo o dicionário Houaiss (2006), é uma ligação mútua entre duas ou muitas pessoas que, dependentes umas das outras, dividem igualmente entre si as responsabilidades de uma ação, de uma empresa ou negócio, respondendo todas por uma e cada uma por todas. Aborrecimento, por sua vez, é um sentimento provocado por situação, coisa ou pessoa desagradável, que oscila entre a aversão e o horror, a lassidão e o tédio. A solidariedade do aborrecimento humano é, pois, a reunião dos personagens e da humanidade como um todo em torno do aborrecimento. Tal disposição perpassa e impulsiona toda a obra, sob diversas metáforas e metonímias: melancolia, volúpia do aborrecimento, rabugens de pessimismo, flor da hipocondria, flor amarela, borboleta preta, enxurro da vida, baba de Caim, pão da dor e vinho da miséria. No início da obra, em prólogo intitulado “Ao leitor”, o defunto autor resume a natureza da obra em questão: “[...] não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que sairá desse conúbio” (ASSIS, 1999, p. 29). Nossa hipótese é que a galhofa e a melancolia são os princípios de composição ficcional da narrativa das Memórias Póstumas de Brás Cubas. O páthos da melancolia é a tinta a partir do qual o memorialista Brás Cubas escreve, enquanto a galhofa é a estratégia narrativa, a pena que conduz a tinta ao papel. Do conúbio entre ambas, como veremos, surge a idéia de solidariedade do aborrecimento humano. Podemos pensar que não foi por mero capricho que o defunto autor mencionou Aristóteles. O filósofo grego analisa o páthos, a paixão, no segundo livro da Retórica (ARISTÓTELES, 2000), sendo o suposto autor do Problema XXX, 1 (ARISTÓTELES, 1998), texto dedicado à melancolia. A retórica, téchne que se dedica ao domínio do discurso em todos os seus níveis, tendo Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 139 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS em vista obter a maximização dos seus efeitos sobre o público, pode dispor o receptor em determinados páthos. Neste sentido, a retórica intenta compreender e explicar como o discurso se torna eficaz para persuadir o público. Na Retórica, o filósofo afirma: “As paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudanças nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas, assim como seus contrários” (ARISTÓTELES, 2000, p. 5). Páthos, palavra grega que pode ser traduzida por paixão ou disposição, remonta ao verbo páskhein, sofrer, suportar, agüentar, indicando um humor que nos afeta e arrebata, dispondo-nos em um modo de ser e estar a partir do qual interpretamos a realidade. As paixões, inseparáveis do prazer ou do sofrimento, embaçam ou aguçam nosso olhar, fazendo variar nossos julgamentos e nossas ações. De acordo com Aristóteles: [...] com efeito, para as pessoas que amam, as coisas não parecem ser a mesma que para aquelas que odeiam, nem, para os dominados pela cólera, as mesmas que para os tranqüilos, mas elas são ou totalmente diferentes ou de importância diferente; aquele que ama tem por certo que a pessoa sob julgamento ou não pratica ato injusto ou comete delitos de pouca importância, e aquele que odeia tem por certo o contrário [...] (ARISTÓTELES, 2000, p. 03). O páthos da melancolia dispõe a pessoa em um estado afetivo caracterizado por profunda tristeza e desencanto geral, vaga e doce tristeza, prostração e depressão. Aristóteles, ao mesmo tempo em que partia de uma concepção ética da virtude (areté) que coloca o melancólico como um homem de gênio, alguém excepcional, tinha como referência a concepção médica grega, na qual a melancolia é um tipo natural de temperamento. Etimologicamente, a palavra melancolia apresenta o sentido de 140 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO “condição de ter bile negra”, pois a medicina grega, ratificada por Aristóteles, acreditava que o excesso do fluido corporal conhecido como bile (kholé) negra (mélaina) provocava torpor, terror, desânimo profundo, derramamento de sangue no interior de um órgão, acesso de loucura e outros males (ARISTÓTELES, 1998). Por que Brás é melancólico? Ele afirma, no segundo capítulo, que a humanidade é melancólica. Não se trataria, portanto, de um sentimento subjetivo, mas sim de um páthos constituído historicamente enquanto estrutura de relações de sentido no qual habita(va) a humanidade (do século XIX). A tinta da melancolia que marca a narrativa do defunto autor, mesmo que seja própria do ser humano, ganhou sua cor ao longo da formação de Brás Cubas enquanto homem (personagem) situado em espaço e tempo definidos (pela narrativa). O personagem Brás Cubas (1805-1869), que nasceu no Rio de Janeiro três anos antes da chegada da família real portuguesa ao Brasil, viveu durante o Primeiro Reinado, a Regência e três décadas do Segundo Reinado, época de consolidação do sistema escravista-patriarcal e do parlamentarismo oligárquico. Enquanto tipo histórico ele é uma caricatura, pois possui em grau exagerado - e deformado, jocoso - os caracteres distintivos dos homens de sua época. De modo restrito, ele é caricatura da elite brasileira que vivia na Corte no século XIX. De modo mais amplo, ele é caricatura do homem ocidental moderno. O homem moderno, com sua prática desenvolvimentista, agindo como um torvelinho em perpétua desintegração e renovação, convertendo o tempo em dinheiro, provocou a constante sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social, profanando e dissolvendo os valores anteriormente estabelecidos. Instaurou-se, assim, no mundo globalizado, uma racionalidade discursiva, abstrata, instrumental, burocrática e opressora. Livre para buscar o apoderamento do planeta, o homem moderno loteou e estatizou ou privatizou as terras, oceanos e Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 141 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS céus, escravizando e subjugando os povos ditos “primitivos”. O homem ocidental passou a impor seu modo de vida a todo o planeta, tornando-se “senhor da terra”, para usarmos uma expressão de René Descartes empregada por Brás Cubas no capítulo XXVII (ASSIS, 1999, p. 94). Uma das poucas conquistas que a modernidade não conseguiu alcançar foi a imortalidade, que dinheiro nenhum pode comprar e exército algum pode conquistar. A morte, a finitude da vida, justamente aquilo que Brás Cubas, enquanto vivo, tanto temia. No Brasil, aconteceu um fenômeno de hipertrofia da modernidade, acrescida de uma dose de arcaísmo, visto que o escravismo, abominação nacional, era uma empreitada capitalista, abominação internacional. Se, como ensina Fredric Jameson (2005), é impossível traçar uma história universal do sistema capitalista, pois todos os caminhos para o capitalismo são únicos e excepcionais, contingentes e determinados por uma situação nacional singular, Machado de Assis já buscava compreender as especificidades no papel do capital na formação social brasileira. Ao contrário da moderna burguesia ocidental, a escravocrata aristocracia brasileira do período colonial, acostumada às práticas de mandonismo e paternalismo, em que triunfam as vontades e os caprichos individuais, não precisava trabalhar e desprezava os que tinham que ganhar o pão com o suor do próprio corpo. Nesse sentido, a elite brasileira reinventou o capitalismo em um modo mais eficiente do que o original no que se refere à acumulação de capital a partir de extração de riquezas materiais e exploração de mão de obra. Dessa terra e desse estrume nasceu Brás Cubas. Rentista que vive da fortuna paterna, Brás retrata seus pares como um conjunto de indivíduos vorazes, lascivos, egoístas e genocidas, que perseguem, num ritual de aparências e hipocrisia, os próprios interesses e prazeres. Os valores que lhe foram inculcados em sua formação familiar foram resumidos no capítulo “O menino é o pai do homem”: 142 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. [...] O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor (ASSIS, 1999, p. 55-57). Para uma classe em que, sob o domínio do capricho, triunfa a vontade individual, o único limite que não pode ser ultrapassado é a morte. Esta é mais forte que a vontade. Por isso, hipocondria, melancolia. Por sinal, a morte da mãe de Brás é uma das poucas passagens do livro sem galhofa. Após a morte da mãe, ele afirma: “Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil” (ASSIS, 1999, p. 89). Até ali, o voluntarioso Brás Cubas, desmedido, egoísta, defensor de um individualismo extremista, buscava desmedidamente a satisfação de seus caprichos, encontrando poucos limites que o aborrecessem. O maior de todos os limites que encontrou até então foi a finitude da vida. Se diante da sociedade ele podia tudo, por ter dinheiro e poder, diante da morte ele não podia nada. A morte da mãe é um momento crucial na formação do personagem-narrador, que o leva ao páthos da melancolia. Como contraponto à tinta da melancolia, Brás escreve suas memórias com a pena da galhofa. A galhofa, no capítulo XLII e em toda a obra, é um estratagema narrativo de auto-afirmação, sendo um modo de sobrepujar a melancólica decadência da vida. Assim, o narrador visa purificar suas memórias do cheiro da flor amarela. Neste sentido, também visa criar complacência, angariando cumplicidade e simpatia do leitor. Por isso, o chiste com Aristóteles, Marcela e Virgília. Dessa pena e dessa tinta, da interpenetração de melancolia e galhofa, nasce a idéia de solidariedade do aborrecimento Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 143 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS humano apresentada no capítulo XLII. Para alcançarmos nosso objetivo de compreender esta idéia, precisamos analisar o movimento das três bolas: Marcela, Brás e Virgília. Marcela, a primeira bola, cortesã espanhola que dá título ao capítulo XV, foi a primeira paixão do jovem Brás. Típica personagem feminina machadiana, ambiciosa e dissimulada, ela submete os homens apaixonados aos seus interesses materiais. O jovem Brás, seduzido, tornou-se cliente do comércio dos corações e endividouse, gastando a herança paterna, que ele devia crer ilimitada, para poder presentear a cortesã. A relação de Brás e Marcela, que durou quinze meses e onze contos de reis, faz parte da lógica interna da obra, por revelar, de modo dissimulado, os valores do narrador. O relacionamento entre Brás e Marcela é coerente com o meio doméstico em que ele foi criado. Entretanto, Bento Cubas, o pai, sobressaltado com a desmedida do filho, aproveitou a ocasião como pretexto para enviar Brás para estudar na Universidade de Coimbra, destino previsível, visto que esta instituição era uma das mais procuradas pela elite brasileira dos séculos XVIII e XIX. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho (2004, p. 23): “Os brasileiros que quisessem, e pudessem, seguir curso superior tinham que viajar a Portugal, sobretudo a Coimbra. Entre 1772 e 1872 passaram pela Universidade de Coimbra 1242 estudantes brasileiros”. Para um rentista da Corte que ganhou de berço fortuna, certo poder e o título de “doutor”, o diploma de bacharel era mera insígnia social. O estudo universitário era válido por seu caráter ornamental, pois, numa nação de analfabetos, propiciava insígnias de poder e nomeada: o título de doutor ou bacharel, o diploma e o anel de grau. Este caráter é confirmado por Brás: Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei 144 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação... (ASSIS, 1999, p. 87). Bacharel não se sabe em que área, pois o narrador não diz, o que não faz diferença, pois a Universidade lhe atestou em pergaminho uma ciência que “estava longe de trazer arraigada no cérebro” (ASSIS, 1999, p. 81), Brás Cubas formou-se mesmo em “Teoria do Medalhão”, na mesma escola de Janjão: Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. [...] Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado (ASSIS, 2002, p. 37). Após o retorno da Europa, o pai de Brás tentou arranjar o casamento do filho bacharel com a filha de uma influência política da Corte, a fim de impulsionar a carreira política do jovem bacharel. “Demais, a noiva e o parlamento são a mesma cousa...”, afirmou Bento Cubas (ASSIS, 1999, p. 95). A eleita foi Virgília, filha do Conselheiro Dutra. Já no primeiro encontro entre os Cubas e Dutra (cap. XXXVII), este afirmou que a candidatura de Brás era legítima – legitimidade da hipocrisia. Virgília, a terceira bola, no capítulo XXVII recebe um retrato moral do narrador: atrevida, por se julgar melhor que a maioria e não se submeter facilmente; voluntariosa, por seguir seus próprios caprichos, sem reflexão; faceira, pela extrema vaidade; ignorantona, por ser pretensiosa e ignorante; devota, por ser religiosa e temente ao pai e a Deus. No capítulo XXXVIII, “A quarta edição”, o narrador relata um encontro inesperado com Marcela, num dia em que fora Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 145 DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS convidado para jantar na casa do Dutra. Brás, com o vidro do relógio quebrado, entra numa ourivesaria pensando tratar-se de uma relojoaria. Lá encontrou Marcela, proprietária do local. De início não a reconheceu, pois seu rosto estava amarelo e cheio de lesões cutâneas provocadas por bexiga (varíola). Porém, em seus olhos ainda ardia a flama da cobiça. A paixão do lucro era o verme roedor de sua existência. Os sinais de decrepitude chocaram o olhar de Brás. Na ocasião, o sentimento do narrador por sua antiga paixão era de repulsa. Em seu coração bateu o dobre de finados, soar do sino que dá volta sobre o eixo a fim de anunciar a morte de alguém. A antiga cortesã, página virada na vida de Brás, teria que se contentar com o amor de uma menina de quatro anos. Maricota, a menina, vizinha de Marcela, amiga e admiradora da atual comerciante, sente tanto carinho pela mulher que a chamou de “Santa Marcela”. O protagonista, incapaz de emocionar-se ou compadecer-se com a dor alheia, não consegue compreender o carinho que a menina sente por Marcela. Brás, ao sair da ourivesaria, meteu-se apressado na carruagem que o levaria para a residência de Dutra. O atraso fez com que Virgília o recebesse com mau humor e desdém. Este acontecimento foi o início da ruína dos planos de Bento Cubas. O arranjo se desfez, de fato, com a chegada do impetuoso Lobo Neves que, em poucas semanas, arrebatou Virgília e a candidatura (capítulo XLI). No capítulo XLII, inconformado com os limites que a vida impõe, Brás estava mergulhado em aborrecimento e melancolia: em luto pela mãe, enojado com o estado decrépito de Marcela, ameaçado de perder a noiva e o cargo de deputado, perdas que se concretizam no capítulo seguinte. Por isso, a noção de uma solidariedade do aborrecimento humano que toca os extremos sociais: Marcela, Brás e Virgília. A solidariedade do aborrecimento humano é, portanto, a ligação mútua entre Marcela, Brás e Virgília, personagens que dividem entre si as conseqüências de certas ações e acontecimentos desagradáveis. Esse enlace provoca em Brás a oscilação entre a 146 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO aversão e o horror, a lassidão e o tédio, culminando no capítulo CLX, “Das Negativas”, em ele nos relata tudo o que não foi e não fez, gabando-se de não haver transmitido “a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS, 1999, p. 251). Para compreendermos o movimento das três bolas também é fundamental termos em mente uma passagem do capítulo “O recluso” (XLVII): “Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição interior” (ASSIS, 1999, p. 120). Brás, que como é sabido cultiva de modo exagerado a sua vontade individual, pensa apenas nos próprios valores e interesses, a despeito dos de outrem. Compreendendo o mundo a partir do ponto de vista exclusivo de seu próprio interesse, o narrador vê Marcela e Virgília apenas como formas de seu próprio modo de ser. Esse modo de ser dá a entrever uma vida marcada pela inação típica dos melancólicos. Os páthos do aborrecimento, da melancolia e da hipocondria, perpassam e impulsionam toda a narrativa do defunto autor, constituindo a tinta negra com a qual a pena da galhofa escreve a obra. Se o páthos da melancolia mostra-se determinante para a configuração do Brás Cubas narrador, a galhofa também serve de fio condutor a toda sua narrativa, com toda a ambigüidade que isso implica. A galhofa, princípio formal da narrativa, tem o intuito de romper com a gravidade das mortes relatadas, que aparecem aos montes durante o livro. São muitos os falecimentos de personagens e as mortes simbólicas, dentre as quais os fracassos de Brás em casar com Virgília, em conseguir uma cadeira no Parlamento, em alcançar a celebridade e em trazer a público o seu emplasto antihipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Enquanto recurso narrativo, a galhofa não apenas oferece leveza ao peso de gravidade do medo da morte, mas também faz gracejo com as ações imorais do brejeiro Cubas, justificando ou dissimulando seus inúmeros atos perversos e corruptos, proporcionando-lhe ainda ares de superioridade, negaceando seu inconformismo Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 147 diante da finitude. A noção de solidariedade do aborrecimento humano, apresentada no capítulo XLII, é uma digressão ácida que ratifica o conúbio entre galhofa e melancolia, pois na medida em que a galhofa corrói toda esperança – herança de Pandora, mãe e inimiga - acaba por intensificar os traços da tinta da melancolia. Para o melancólico Brás Cubas, se todos nós vamos morrer, não há esperança. Mas, por melancólica sede de nomeada, como não alcançou fama em vida, tornou-se defunto autor para fazer galhofa da vida e da morte. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, 1. Trad. Jackie Pigeaud/Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Trad. Isis B. B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. ASSIS, Joaquim Maria Machado de.Teoria do Medalhão. In: Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. HOUAISS, Antonio et al. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 01 CD-ROM. JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Trad. Roberto Franco Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Recebido em 31/08/2008 Aprovado em 18/09/2008 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. (Grande sertão: veredas) Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 149 150 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO TERCEIRAS MARGENS, TRAVESSIAS MISTURADAS (GUIMARÃES ROSA E NELSON PEREIRA DOS SANTOS: FAMÍLIA E ABANDONO EM DOIS OLHARES) Alexandre Moraes Ufes As pontes são inúteis, a menos que nos cubram totalmente a distância entre as margens – mas no “viver juntos” a outra margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém deseja dissolver nem tenta afastar. Não há como saber o que se vai ver quando (se) a névoa se dispersar – nem se de fato existe alguma coisa encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão criada pela neblina, uma fantasia da imaginação que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que passam? (Zygmunt Bauman, Amor líquido) Resumo: Analisando o texto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa e também o filme homônimo, de Nelson Pereira dos Santos, vamos discutir a noção de pai e de amigo bem como sua quebra a partir das transformações psicológicas e sociais com início em finais dos anos 1960. Verifica-se como a noção de pai, tornada líquida, cria o abandono e a deriva presentes na obra rosiana, como se exemplifica também em diversos autores literatura da América Latina. Palavras-chave: Pai. Amigo. Estrutura familiar. Modernidade líquida. Abandono. Abstract: Analyzing the text “A terceira margem do rio”, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 151 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA by João Guimarães Rosa and also the movie with the same name, by Nelson Pereira dos Santos, we discuss the notion of father as well as the notion of friend and the its break since psychological and social changes in the beginning of the sixties. We study and check how the notion of father when made liquid creates abandon in Rosa’s work, as we exemplify and also in many authors of Latin American literature. Keywords: Father. Friend. Family structure. Liquid modernity. Abandon. 1 Discutir, ainda que de forma muito breve, “A terceira margem do rio” constitui uma temeridade e um conforto em navegação discursiva carregada de névoa, de paragens deslocadas, de repetições e de possíveis miragens críticas. Todas, assim bem ao gosto borgeano, mais ou menos incompletas e, quando não, equivocadas. A ousadia de discutir texto tão fartamente estudado da literatura brasileira, aliás, texto considerado um “dos melhores contos” de nossa literatura, pode trazer os costumeiros resultados, quer dizer, ordenamos o já dito nas investigações críticas que cada autor canônico tem acrescentadas à sua obra. Ainda assim, as águas turvas da ousadia nos trazem um conforto: podemos nos amparar nas coisas ditas, imagens críticas de uma verdade que pede para ser esmiuçada, estudada, recolocada, como se essa possível verdade pudesse submeterse a ordem e estrutura de um dogma. Sobre a “A terceira margem do rio” e sobre Guimarães Rosa, já sabemos, temos de passar quase que obrigatoriamente pela “linguagem”, pela “loucura”, “pelo lugar “metafísico” do discurso e do texto. Como diria Derrida, “um texto só é um texto se ele esconde, ao primeiro olhar, ao primeiro que aparece, a lei de sua concepção e a regra de seu jogo”1. Ora, nesta linha, os textos roseanos são legitimamente textos para uma infinita Cf. SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 93. 1 152 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO discussão (aí sim, o infinito é um lugar palpável), e vivem de esconder, revivem na tarefa de negar e ofertar, refazem aos olhos segundos e terceiros um jogo que esconde marcas, regras, degraus de construção, diversidade de possibilidades, enfim, em “A terceira margem do Rio”, o texto se refaz e, se não necessariamente discordamos da crítica quando parece reafirmar a cada estudo, “a linguagem, a loucura, a metafísica” e questões sociais ambíguas, também não podemos deixar de assinalar que muitas e variadíssimas margens ainda não foram visitadas e, quando parecem ter sido, essas margens outras ficam deslocadas sob o manto avassalador dos estudos sobre a linguagem e seus sistemas e, desta forma, o texto se esconde mais uma vez. O que tentamos aqui é surpreender o texto na sua impossibilidade de desvelamento, nos sistemas que se fecham e se abrem a teorizações, quer dizer, etimologicamente, a visões que se sobrepõem, se repetem, se desdizem e se refazem também ao sabor de uma turva navegação em neblinas. Com Bauman, perguntamos: essa “terceira margem” do título do conto e do filme é mais uma armadilha? Em outras palavras, existe lá onde parece estar? Existe lá na quebra do jogo dual, das duas margens, essa terceira, essa outra margem a que desejamos compreender? Existe realmente uma margem terceira fora das margens que o texto coloca? Quando pensamos no cinema de Nelson Pereira dos Santos, a pergunta ainda se faz mais urgente. Se no filme há, como dizem os teóricos do cinema, “um modo de endereçamento do texto fílmico”, ou seja, uma forma aberta de perguntar e conceituar “quem este filme pensa que você é”2, podemos afirmar que os textos, de um modo geral, perguntam sobre seus possíveis consumidores, a quem são endereçados e se interpelam de formas diversas nas mais variadas épocas. O destinatário do texto, já se pode observar, como nos dizem ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação. In: SILVA, Thomaz Tadeu da (org). Nunca fomos humanos. Nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 25 e sg. 2 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 153 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA os estudos sobre cinema e literatura, na feitura do texto (não apenas o fílmico), sobretudo na estrutura mesma com que o texto vai se apresentando à leitura de cada época. O “modo de endereçamento de um texto” ou “destinatário”, o “lector in fábula” de um texto é um conceito que se apresenta como leitura social de um texto. Dessa forma, o que Guimarães Rosa e Nelson Pereira dos Santos se perguntaram quando construíram seus textos? A que “terceiras margens” e a que leitores endereçavam seus trabalhos? Nesse ponto vamos dividir nossa discussão em duas partes. Na primeira, vamos nos perguntar sobre a “terceira margem” e possíveis significados, nos afastando tanto de estudos sobre a linguagem quanto de estudos sobre a loucura e, ainda assim, nos perguntaremos sobre o mal-estar da modernidade e da família colocados e disseminados pelo filme e pelo conto. Na segunda parte, vamos tentar discutir uma questão que nos parece central, o abandono nos dois textos, o fílmico e o literário. 2 Se há, como pensava Freud3 e, depois de maneira diversa, Bauman, uma espécie de “mal-estar” da civilização moderna e da assim chamada “modernidade líquida”4 ou “pós-modernidade” que perpassa a estrutura e comportamento social5 e, também, o que vai sendo descrito e encenado nos textos aqui discutidos, um dado logo sobressai aos olhos no filme e no conto: um enorme mal-estar pela via do esfacelamento de conceitos, impulsos e formas de ação cobre os textos com seu manto de FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1986. 3 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 4 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 5 154 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO estranhamento e de problemas. Um pai inseguro de seu lugar com uma “resposta suspensa”6, antes assentado num rigoroso lugar de família, num momento em que a família produtiva, com terras, empregados, uma mulher “por trás” que se fazia importante no lugar doméstico de decisões, ou seja, um modelo de família em que ter filhos era muito lucrativo, resolve abandonar, toda a estrutura patriarcal, sem deixar de lançar um olhar de compreensão ao filho que, a) num momento primeiro gostaria de ficar com este pai e seguir o seu caminho e, b) depois, ficar no seu lugar e, ainda, c) ao final, recusa este lugar impossível da figura paterna. Esse lugar inseguro do pai, aliás, o lugar de pai, com toda a genealogia já conhecida do conceito social no ocidente, passando por diversas legislações, algumas que nos parecem francamente cômicas hoje — lembremos da legislação que estabelecia a figura do pai na Roma imperial — é um lugar antes de qualquer outra afirmação possível, inseguro. Insegurança de per si e estrutural. O lugar do pai e do conceito de pai no ocidente moderno tem sido de trepidação e deslizamento. A figura do Pai tem sido a daquele que goza e possui esse lugar violento do gozo e a da formulação de suas regras e do domínio ameaçado por outro, o filho, e paradoxalmente, a continuidade da figura de pai e a “alegria” desse tipo de pai estão justamente nesse domínio violento. O pai roseano que nos aparece, no dizer do texto, “sem alegria e sem cuidado”, é o pai cujo lugar fracassado não mais impulsiona um devir estrutural do movimento de formação e que não se sustenta mais como figura paterna. Guimarães Rosa tematizou em muitos de seus textos esse pai fracassado. Lembremos, a título de exemplo, de “Conversa de bois”, em Sagarana, em que encontramos um pai sem lugar, sem alegria, semimorto, ou natimorto. O pai, também ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 32. “Nosso pai suspendeu a resposta.” 6 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 155 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA lá, “cumpridor”, mas que se impossibilita de continuar cumprindo os desígnios do lugar que precisa com urgência ocupar. A “decisão do adeus”, em “A terceira margem do rio”, quer dizer, a saída desse pai rosiano da estrutura latifundiária e familiar da modernidade agrária brasileira, não apenas indica uma mudança maior e geral que se iniciava nos anos finais da modernidade, quando os textos roseanos foram escritos, bem como evidencia o lugar de fragilidade do conceito de pai nesse momento de mudança também captado por Nelson Pereira dos Santos de forma instigante no filme em que aparecem os objetos da modernidade chegando ao latifúndio isolando e tornando obsoletas figuras e conceitos tradicionais do mundo agrário e social brasileiro. O pai de “A terceira margem do rio” é pai desse menino ou passa, num primeiro momento, de pai a amigo e, depois, num segundo segmento, de amigo a pai novamente até perder qualquer configuração tanto de amigo quanto de pai? Por outras palavras: se a autoridade do amigo é vivida na sua distância e dispersão, ou seja, o amigo se faz autoridade quando introjeta algo do mesmo que há no outro e essa introjeção é consentida, o pai desse menino-narrador, tanto no texto rosiano quanto no filme de Nelson, é também amigo, não mais violentando, mas fazendo-se disperso e desejado e não mais concorrente na seqüência da continuidade sistêmica. A perda da autoridade faz iniciar a quebra da noção de pai como autoridade imposta, dominante, dominadora e patriarcalista. O pai que vai à busca de uma possível “terceira margem” é um antes-pai, um anti-pai e um proto-amigo. A autoridade se desfaz para se dispersar no desejo. Se o pai é o motivo do desejo do filho, o lugar inseguro do pai determina um lugar ainda mais frágil de filho. O pai rosiano de “A terceira margem do rio” não consegue continuar o pai nem latifundiário, nem “o dono das mulheres”, como diria Lévi-Strauss, nem tampouco consegue manter os vestígios de sua autoridade. Nem loucura nem um efeito de linguagem; uma margem terceira, alternativa: é a margem do amigo possível, num dado 156 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO momento do texto. O filho cujo frágil lugar é colocado em tensão, também perde seu lugar de filho. A tensão que se instala não é a da loucura, tampouco a da doença estigmatizada ou mortal, mas a da perda dos lugares de pai e de filho: ambos vêem seus lugares desfazendo-se no mal-estar dominante em que as estruturas familiares começam por não mais responderem a ações e impulsos de um sujeito que não cabe em seus limites rígidos e modernos. Guimarães Rosa aponta a mudança (ou a falência) da noção de pai inserida nos finais da modernidade brasileira e, também, no latifúndio e nas comunidades rurais. Nem campo nem cidade, loucura ou uma margem distante das margens estabelecidas pela família e seus lugares muito rígidos. Essa terceira margem que nos faz voltar a Guimarães Rosa e ao cinema de Nelson Pereira dos Santos é aquela que estava se colocando com a transformação das relações familiares nos finais da modernidade. A tensão dessa margem, não menos insegura, como poderia nos lembrar Bauman7 uma vez mais, isto é, aquela da dissolução da família lucrativa, da figura do pai totêmico, encontra-se dispersa em todo o texto de Guimarães Rosa e no filme de Nelson Pereira dos Santos. O movimento imposto — se é que podemos usar o verbo impor no caso — ao filho pelo pai é a única marca ou vestígio último de sua “autoridade” paterna e esse movimento, não se pode esquecer, dá-se como recusa de autoridade, como refutação de um estarsendo pai e pela sua saída do lugar de pai e do domínio dos negócios agrários da família e da formação e continuidade familiares. Muito menos que “infinito”, esse “eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio” circunscreve, sobretudo, fluxos descontínuos de uma autoridade que se perde e de um desejo que persiste, delimitações de um filho que não mais se coloca e que também perdeu uma quase possível figura de amigo8. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 7 VINCENT-BAUFFAULT, Anne. Da amizade. Uma história do exercício da amizade nos séculos XVIII e XIX. Trad. Maria Luiz Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. 8 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 157 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Esse “rio”, que parece infinito com suas margens tantas e todas inscritas num tecido social que se desfazia nos limites do latifúndio e da natureza, coloca um sujeito inerte, sem futuro desenhado ou com um desenho trágico nas mãos. O pai fraco e aquele forte que se opõem em Grande sertão: veredas, por exemplo, já anunciavam a discussão ficcional de Rosa dessa “figura metafórica” (no sentido aristotélico, quer dizer, “algo que indica uma coisa que é outra”) do pai9. A figura do pai — sempre inserida nos discursos freudianos e lacanianos — nos textos de Rosa, parece indicar tanto um impulso originário, como controvertidamente queria Freud, quanto uma situação social em que os atores e os conceitos a que são submetidos estes atores na dramaturgia social estão em movimento. Para ficarmos com apenas três exemplos na obra rosiana, vejamos a figura do pai de Diadorim, em Grande sertão: veredas. Este pai nos aparece, ainda quando morto, sobrevoando a ação e o impulso de ação da personagem que se mimetiza para dar vazão histérica ao desejo de pai e do pai. O Pai do menino Tiãozinho, em “Conversa de bois”, de Sagarana, ao contrário, é um pai fraco, vencido, mas eternamente presente, mesmo quando já morto. Diferentemente destes dois pais, a figura de pai e do pai de “A terceira margem do rio” é este pai que sobrevoa, também, os impulsos formadores do personagemnarrador-filho bem como as ações (histéricas, diriam muitos) desse filho enfraquecido sem a figura enorme do pai que se esvazia enquanto pai dando lugar a algo como um “amigo”, um igual que se vai e que só volta a ser pai no momento final do filme e do conto. Neste momento final dos textos (o filme e o conto), o filhonarrador, perde definitivamente esta figura de pai em um dos momentos em que o paradoxo mais e melhor se coloca no texto. Em “A terceira margem do rio”, a recusa do pai ausente, mas AZEVEDO, Ana Vicentini. A metáfora paterna na psicanálise e na literatura. Brasília: Edunb/São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. 9 158 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO evocado, de conhecer o neto, revendo assim a continuidade da família, não apenas desaponta o filho-narrador, mas também o faz perceber algo muito complexo e que na ficção rosiana parece um movimento a mais. O filho-narrador que anteriormente desejou ir com o pai para esta terceira e desconhecida margem e, simultaneamente, ainda anseia o lugar do pai na canoa e no rio neste momento final, percebe que não poderia ter ido com o pai, já que este pai se afigurava como amigo, um “igual do igual da gente”, no dizer rosiano de Riobaldo e, por outro lado, também não pode ocupar o possível lugar do e de pai, uma vez que não existe pai para ser substituído nem tampouco figura para ser colocada como totêmica em introjeção e perpetuação de autoridade. Desaparece, desse modo, a figura do pai como impulso (possivelmente originário, diria Freud) de uma forma social e de uma psiquê desenvolvidas em torno e à sombra de uma figura que, forte ou fraca, estaria ali naquela região de turbulências onde se formam as relações e as figurações da ação e do impulso. O impulso e ação em torno da figura de pai, portanto, desaparecem. A possível concordância do pai em aceitá-lo na canoa, fora afastada pelo temor e ansiedade do filho, quer dizer, esse filhonarrador que perde o amigo e também a figura do pai passa a duvidar de sua humanidade depois de seu enorme fracasso. Pergunta-se o fracassado filho depois de todas as perdas: “Sou homem, depois desse falimento?” A pergunta do filhonarrador aponta a própria falência e o desejo de morte que instala, no movimento social da formação da figura de pai, a descontinuidade feita única no seu sentido de pessoa passando, então, a conferir a este si-mesmo um ethos não mais de filho tampouco de amigo e muito menos de pai ou de figuração de pai, daí a perda do sentido de humanidade e de pessoa inscritos após sua constatação de perdas múltiplas. O instinto de destruição não mais se volta no sentido de dar continuidade a uma figura e de ocupação de lugares e posições, mas volta-se contra um si-mesmo, criando uma ética da perda e da destruição Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 159 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA da noção de pessoa: “sou homem (...)?”. 3 Quando no filme homônimo do texto de Guimarães Rosa, Nelson Pereira dos Santos ao introduzir os objetos da industrialização (tratores, marcas de multinacionais, movimentação de operários, transformação do ambiente ecológico etc.) toda a violência que subjaz inscrita no tecido narrativo rosiano, são também percebidas em “A terceira margem do rio”, de Rosa, os anúncios nada tímidos de um tipo claro de transformações nas formas sociais. Nelson enfatiza a mudança que se processa na noção de pai, mas vê isto como fruto da estrutura social formadora de noções, de um ethos e de uma pragmática inscritas no texto. Se no filme, vários contos e seus segmentos de eventos são misturados, um dado não passa despercebido: a mudança que já apontava Guimarães Rosa nas formas sociais e o surgimento de um tipo de personagem não pouco comum na América Latina: a personagem itinerante, sem rumo, sem destino, que vaga, sem pai, talvez em desespero em um espaço sem delimitação, alternativo, terceiro. Veja-se a título de lembrança a personagem Larsen, em “El astillero”, narrativa do uruguaio Juan Carlos Onetti ou Oliveira e Traveller, na Rayuela, de Julio Cortázar, mais contemporaneamente, as personagens de Chico Buarque de Holanda em seus romances e de João Gilberto Noll, para ficarmos com alguns poucos exemplos na América Latina em dois tempos. Todos esses personagens vagam e perambulam de um lado para outro indicando formas anteriores e ainda não solidificadas aqui de um mundo que se desfaz em algumas de suas importantes formações e vai se tornando “líquido”. Personagens abandonados ao destino de um descaminho que se dá como única saída de caminho. Vagar e seguir sem seguir, estar na mais completa ausência, desejar o que não se pode desejar, tornando o desejo mais impossível do que poderia imaginar Lacan, quer dizer, tornando o desejo sua própria ficção. 160 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O Pai de “A terceira margem do rio” só poderia vagar. Abandonando uma estrutura que não mais suportava, indigente de si mesmo numa ordem opressiva e substituída por outra não menos opressora, “insatisfeito com as margens”10, só lhe resta como caminho o descaminho que também trilha, na cidade, a personagem Estorvalino, de Chico Buarque, em Estorvo, para não esquecermos de nosso exemplo atrás colocado. O mundo passa a não ser mais uma intuição e prosseguimento da experiência que, também esta, não mais pode ser transmitida, ou seja, é este mundo de experiências impossivelmente transmitidas que faz deslizar a noção de pai inscrita nos textos de Rosa e Nelson. A errância desse pai é também a forma mais sólida do que se esvaneceu e, tornando-se “líquido”, passa a ser a configuração do e de pai, num país, bom lembrarmos, em que ser pai é uma problemática não pouco expressiva e em que o abandono e as perdas do pai e do filho estão inscritas, inclusive, nos folhetins populares como angústia remanescente de um tempo em que a família nuclear lucrativa ainda poderia dar-se como instituição mantenedora da transmissão da experiência. O que este pai rosiano de “A terceira margem do rio” experimenta é sensação de abandono inscrita como matriz de outras formas, ainda “líquidas”, muito dolorosas e colocadas nas mudanças estruturais do capitalismo que vem se desenhando desde os anos sessenta em que o texto foi escrito. O abandono liquefaz a experiência tornando-a ora impossível, ora outra forma ainda não inteiramente dada no momento narrado da quebra e transformação. A terceira margem rosiana se afigura muito mais uma “terceira perna” problemática, onde se vê a errância, a ausência de transmissão da experiência nunca passada como um dado constituinte e que se efetiva como recusa ou impossibilidade. “A terceira margem do rio” está ali, à frente, líquida, GOULART, Audemaro Taranto. A insatisfação com as margens. In: DUARTE, Lélia et alii. Outras margens. Estudos da obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 75. 10 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 161 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA dissolvida e dissolvendo uma forma social de pai e de mundo, deslocando figuras e afastando os desejos ainda para mais longe da “idealidade intensiva” de todo desejo. O filhonarrador, abandonado pelo pai que se abandona e também é abandonado, duvida de sua experiência humana, não possui o outro como experiência sensível, mas somente a perda da noção deste outro como experiência. O abandono é a perda da noção de outro como experiência dada e concretizada e a errância do pai (também presente no desejo do filho), dá-se no momento da quebra de um mundo social, de sua formação e das mudanças que seriam feitas e estavam se dando. Rosa insere um personagem itinerante como marca de um mundo novo e trágico em que a experiência pode ser o silêncio, ou seja, um mundo que se dá e está se ofertando assim, como nos diz o filho-narrador, “no que num engano”. Esse pai que não foi “a parte nenhuma”, mas que “não voltou”, constrói na errância a sua possibilidade de experiência e tem no abandono sua falência e sua novidade. O paradoxo, como medida de mundos novos e margens outras e terceiras inscritas ali num tecido social de figuras e figurações que se desintegravam, como vemos no filme de Nelson e no texto de Rosa; a família se inscrevendo num “mundo líquido”, no qual mergulhar e viver, antes de significar abandonar-se e abandonar simplesmente pode ser, sobretudo, não ter “ido a nenhuma parte” e, por outro lado, não indicar “loucura” ou “um lugar metafísico”; ao contrário, indica antes transformação e quebra, margem terceira que se faz diante das novas proposições ao humano e seu vir a ser. Recebido em 16/06/2008 Aprovado em 15/07/2008 162 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO GRANDE SERTÃO: VEREDAS: ROMANCE E ENSAIO – PAR EM PAR Wilberth Salgueiro Ufes O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. (Riobaldo) Resumo: Leitura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, considerando certos pares suplementares: deus e demo, fala e escrita, totalidade e ambigüidade, amor e amizade, ficção e vida etc. Palavras-chave: Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Amor. Amizade. Abstract: Analyze of Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa, considering certain suplemental pairs: god and demon, speak and written, totality and ambiguity; love and friendship, fiction and life etc. Keywords: Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Love. Fiendship. A certa altura de seu ensaio “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”, Antonio Candido afirma: “(...) todos nós somos Riobaldo, que transcende o cunho particular do documento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade, num sertão que é também o nosso espaço de vida. Se ‘o sertão é o mundo’, não é menos certo que o jagunço somos nós” (Candido, 1995, p. 168). Mas o que será ser – sendo Riobaldo? O que é, quem é Riobaldo, esse que, segundo o ensaísta, somos nós? Ser Riobaldo pertence a todos, ou a poucos? Pode-se escolher Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 163 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA não ser Riobaldo, ou tal acontecimento é inexorável? Se é Riobaldo sempre ou só às vezes? Como, sendo sangue, podese ser a experiência de ser um outro ser de papel, personagem que se materializa graficamente na página e dela escapa, virtualizando-se em nosso pensamento, imaginário, corpo? Se Bovary – em outro contexto, decerto – vinha das entranhas de Flaubert, o que estou dizendo ao dizer “Riobaldo c’est moi”? Ainda: Diadorim c’est moi? Mais: Hermógenes c’est moi? Afinal, quem é esse eu-Riobaldo? Em Roland Barthes por Roland Barthes, Roland Barthes fazse passar por Roland Barthes, inscrevendo esse outro no punctum da escrita, entre a reminiscência memorialística, a reflexão teórico-crítica e o gesto ficcional, declarando, por vezes, não saber, nem querer saber, quando um desses atos prevalece sobre outro, fundando uma hierarquia. “A intrusão, no discurso do ensaio, de uma terceira pessoa que não remete entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade de remodelar os gêneros: que o ensaio confesse ser quase um romance: um romance sem nomes próprios” (Barthes, 1977, 129). Torcendo a frase de Barthes, sugiro, para inaugurar nova lógica, que Grande sertão confesse ser quase um ensaio: um ensaio com nomes ficcionais. E o que Guimarães Rosa ensaia ali, por meio de seu alter ego (Barthes por Barthes, Rosa por Riobaldo), a ponto de considerá-lo, no surrado diálogo com Günter Lorenz, “meu irmão”? Posso, então, com imodesto orgulho, se sou Riobaldo, declarar-me também irmão de Guimarães Rosa? O que nos uniria aos três? Diria, por nós: interesses e afetos. (Por isso, não posso ser, eu, Diadorim, nem Hermógenes, nem Sô Candelário, nem Quelemém: interesses e afetos outros, que me escapam.) Interesses e afetos que se dão – digo sem temor: sempre – em movimentos (como a vida, o mundo, o tempo, o sertão, a narrativa, a subjetividade é movimento). Rosa, Riobaldo, eu, nós somos migração, superposição, transformação; 164 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO somos passagem, acréscimo, mudança de forma; somos passagem-migração de fluxos, somos acréscimo-superposição de máscaras, somos mudança de forma-transformação de desejos. Interesses e afetos que se dão, portanto, sempre em movimento: no fluir do fluxo, no contínuo mascarar-se, nos desejos renascidos (o quereres). O que se ensaia num romance são movimentos. Sabemos, desde os primeiros passos, que qualquer movimento altera a relação entre (entre peças, personagens, atitudes, perspectivas etc.). Nesse devir louco, é tão-somente impossível algum tipo de reflexão “parada”, que pare o jogo para o pensamento se pôr em ação. Eis um paradoxo insolúvel, posto que todo pensamento é movimento e, por princípio, irredutível ao congelamento de qualquer ordem sígnica. Estamos assim: posso ser Riobaldo porque, por uma torção no sistema de gênero, tomei o romance de Rosa como ensaio que pensa o movimento dos interesses e afetos dos fluxos, das máscaras e dos quereres do personagem – máquina com que me identifico no ato mesmo da incorporação que dele faço. Experimento-me Riobaldo, seres de papel e sangue em convulsão. E tudo que flui, acresce, muda supõe lugares. Não de um lugar a outro, como abandono, mas de um lugar e outro, como suplemento. O movimento é já suplemento. Por estratégia de exposição, e para enganar o paradoxo do “pensamento parado”, elejo alguns pares (lugares), para tornar visível o movimento que fazemos, Riobaldo e eu, nós. “Sendo a figura da oposição a forma exasperada do binarismo, a Antítese é o próprio espetáculo do sentido” (Barthes, 1977, p. 148). Em linguagem de em dia-de-semana, os pares que veremos a seguir – para verificar o movimento que Riobaldo faz comigo quando nele me finjo – devem funcionar numa relação suavizada, como uma ponte que vai e vem, não numa relação unívoca, como uma pista de mão única. Um alerta: a fortuna crítica sobre a obra de Rosa, em particular Grande sertão: veredas, a cada vez que devasta uma Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 165 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA área, outra renasce, qual fênix, enquanto aquela descansa para, oportunamente, revigorar-se. Mesmo a crítica, vê-se, compõese de movimentos (com alguns incêndios criminosos). Isso a torna – a obra literária – clássica, porque, com Calvino, “Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe” (Calvino, 1993, p. 12). Não há novidade nos pares que proponho, a não ser se pensados em conjunto e no trânsito entre aquilo que posso entender acontecer com Riobaldo e comigo, seu irmão. Trazendo para minha vida alguns dos impasses daquele que – por um intrincado processo de contigüidade entre ficção e realidade, e entre personagem e pessoa – elegi meu par, testo a eficácia de seu efeito em mim, testo a atualidade de seus dilemas, testo até onde pode ir minha imaginação, testo a hipótese de poder me fingir ser ele, testo um tipo de saber pouco usual nos trâmites acadêmicos: “O saber instável é o que participa da atividade das significações, é aquele que se move, percorrendo outros lugares e superfícies, aproximando paisagens díspares, acionando-as. Encontra-se menos próximo da ideologia – pois esta, reflexológica, acata a representação – que da escritura, indecidível ela mesma. O saber instável da escritura consiste numa prática que tem como valor a produção prazerosa” (Santos, 1989, p. 27). Dirá Roberto Corrêa à frente: “A instabilidade vem do rompimento do contrato, do rompimento do contrato da transmissão e da recepção tradicionais” (p. 37). O espetáculo dos pares apresenta-se ao meu bel-prazer. Serão 14 pares escolhidos quase que ao léu. Vamos a eles, Riobaldo e eu, sabendo-nos, pela força das circunstâncias e dos propósitos, inevitavelmente aforismáticos e, às vezes, mesmo epigramáticos: 1. Deus e demo: Riobaldo revive, de cabo a rabo, essa dúvida arcana: “(...) o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... (...) A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a 166 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador...” (ROSA, 1994, p. 308)11. Problema menos de fé que de cultura, faço minha a “intuição esclarecida” de Riobaldo, seres perpassados por mitos ancestrais num mundo desencantado. 2. Senhor e leitor: a existência de Riobaldo se dá na medida em que há um silencioso feed-back, marcado por insinuações de caráter fático. O ouvinte de Riobaldo age como age um leitor diante de um livro: vivo. Ora há reticente desconfiança – “O senhor ri certas risadas...” (p. 11), ora deferência – “O senhor pode rir: seu riso tem siso.” (p. 112), deferência que retorna – “Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade.” (p. 262). Este senhor sem nome que nos lê, despegado de toda baixa direção religiosa, “é homem de pensar o dos outros como sendo o seu” (p. 67), sem imposição, mas sem subserviência. É nessa troca de falas e silêncios que se pode aferir, entregar, pedir: “O senhor escute meu coração, pegue o meu pulso.” (p. 371) A felicidade necessariamente clandestina da confiança. 3. Prosa e poesia: Riobaldo é narrador e poeta. Isto, por si, justifica o seqüestro dos gêneros. “Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria – como em fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer, e bel-amar.” (p. 127) Riobaldo, como eu, gosta da rosa no Rosa; como Barthes, tem uma doença: “vê a linguagem” (Barthes, 1977, p. 171). 4. Folhetim e romance: peça única, não desfiada, o romance todo perfaz uma vida. Uma vida, como o romance, se compõe de pequenas histórias. Quantas Marias Mutemas passaram ao nosso lado sem que percebêssemos? E a quantas demos ouvidos? 5. Sertão e cidade: Willi Bolle (1994) já mostrou a cidade no sertão rosiano, pela figura mediadora e impressionante de Zé Bebelo. Desmantela-se assim esse abismo que certa crítica quis, um dia, entre o regional (leia-se o pitoresco, o roceiro, o Nas citações seguintes do romance, indicar-se-á no corpo do texto apenas o número da página entre parênteses. 11 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 167 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA interiorano) e o universal (leia-se o urbano, moderno, civilizado). A diferença nunca esteve na exterioridade do local, mas no preconceito mal disfarçado do paternalismo, coisa que o romance, com o bom senso costumeiro, refuta: “(...) cidade acaba com o sertão. Acaba?”. (p. 111) 6. Sistema e fragmento: “Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema é aberto quando os conceitos são relacionados a circunstâncias, e não mais a essências.” (Deleuze, 1992, p. 45). Escapando às fronteiras duras dos sistemas fechados do tipo hegeliano, uma obra, tal como uma vida, não se perde pelo fragmento: “escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (Barthes, 1977, 101) O fragmento, o estilhaço, é, a seu modo, um peculiar sistema. “Só aos poucos é que o escuro é claro”, declara Riobaldo. 7. Saber e não-saber: a arte de não-saber é pura sabedoria. O amor, por exemplo. Foge. Fulge. Ele: “Diadorim me veio, de meu nãosaber e querer. Diadorim – eu adivinhava.” (p. 200) Ela: “Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia...” (p. 339) Saber muito até atrapalha. 8. Mandar e obedecer: ser inquieto, com freqüência vem-lhe a sensação de que não deve obedecer, ignorar a hierarquia (do chefe, do amigo, do amado, do demo, de deus); noutras vezes, tomalhe o corpo a recusa em mandar. Porque, a mandar e a obedecer, sempre há um outro. E o ser só que é o homem, que é Riobaldo, que somos nós, não quer o prévio. Quer o lance, a aposta, o acontecimento: aí, sim, mandar e obedecer se naturalizam, como o vôo de uma borboleta – sem ordens. 9. Jagunço e letrado: “Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado.” (p. 15) Em “A fala agônica”, Hansen analisa esse fração de frase, mostrando como na enunciação a palavra, circular, “roda em todos os sentidos, deslocando o que diz enquanto fixa, fixando o que desloca enquanto diz” (Hansen, 2000, p. 52). Um leitor inapto, que não entenda isso, será ele o “ser jagunço”, inepto, que atribui ao personagem. 168 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO 10. Totalidade e ambigüidade: há quase que por unânime uma decisão entre os exegetas de Grande sertão: é obra calcada na ambigüidade, para o que não falta a deliciosa, redundante e intransitiva frase: “Tudo é e não é...” (p. 13) Nesse sentido, porém, menos que ambíguo, tudo tende para o total, porque inclui, soma, suplementa – é da ordem do mais (“e”), não da dúvida (“talvez”). Deus e Demo! “Vivendo o narrado e narrando o vivido”! (Galvão, 1986, p. 111) Reinaldo e Diadorim! 11. Infinito e finitude: entre o travessão inicial, “—”, nascimento de “nonada”, e o infinito que perpetua a “travessia”, "∞”, está o real. “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (p. 46) O real não está nem aí pra gente. Por isso se diz, com fundo coercivo, “cair na real”, abreviando-se a intangível palavra realidade. Riobaldo sabe: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim.” (p. 59) 12. Presente e passado: atar as pontas da vida, bentinhos que somos querendo entender nosso passado-capitu. “São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.” (p. 121) Passam os personagens a morar na retentiva, aumentando a população fantasmática de nossas retinas tão fatigadas. 13. Amor e amizade: “quem há de negar que esta lhe é superior?” Riobaldo, eu. Não há mais nem menos, porque “amor é a gente querendo achar o que é da gente”. (p. 234) E amigo “é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é”. (p. 119). Quando se encontram, “Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete serras?” (298) Amizade é ética, amor é descoberta. 14. Ficção e vida: Como todos os pares, vida e ficção se querem e se mascaram – por se quererem. Decididamente indecidível quando uma e quando outra. O romance, a memória, o ensaio de Rosa, de Riobaldo, do senhor e desse leitor: quem poderá decantar? Riobaldo faz com o demônio o chamado pacto nu, sem contrato escrito – bastaram as impressões. Por mim, chego ao fim não Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 169 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA sabendo o que sabia: Riobaldo c’est moi? Não. Riobaldo c’est nous, como queria Candido? Também não. Riobaldo é, sim: como cada um de nós é, irrepetível em sua existência ficcional, tanto quanto somos, ele também, ímpares nesse acontecimento que se chama – que se chama a vida. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977. BOLLE, Willi. Grande sertão: cidades. In: IV Congresso ABRALIC. Literatura e diferença. São Paulo; ABRALIC, 1994, p. 1065-80. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução: Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão: veredas. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Debates, 51) HANSEN, João Adolfo. O O: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Ficção completa, 2 v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira) SANTOS, Roberto Corrêa dos. Para uma teoria da interpretação: semiologia, literatura e interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. Recebido em 15/09/2008 Aprovado em 10/10/2008 170 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO AS RAZÕES DO JOGO EM “DUELO” Andréia Delmaschio UFRJ / IFES Resumo: No conto “Duelo”, a partir de uma vendeta mortal cometida por engano, inicia-se uma nova contenda, esta entre dois duelistas que nunca se encontram, distraídos da sua trilha bélica e lúdica, ora pelos achaques de saúde, ora pelas pistas falsas que espalham e que acabam funcionando como auto-engano. Acompanhamos a ironia dessas pistas e rastros, constituintes de um jogo de duplo engodo que perverte a lógica cartesiana simples, e cujo paroxismo consiste no fato de os rivais se cruzarem pelo caminho sem que o percebam, criando-se assim uma atmosfera complexa, eivada de uma lógica suplementar e paradoxal – um jogo de morte que acaba se revelando como a razão de vida dos adversários. Palavras-chave: Guimarães Rosa. Sagarana. Duelo. Abstract: In the short story “Duel”, from a mortal vengeance committed by mistake, it starts a new dispute, this one between two duelers who had never met each other, distracted from their war and playful affair, either by the health ailments or by the false clues that are spread and end up working as a selfmistake. We follow the irony of these clues and traces, that constitute a game of double lure which perverts the simple cartesian logic, and whose paroxysm consists of the fact that the rivals meet through the path without realizing that, creating a complex atmosphere, contaminated by a supplemental and paradox logic – a death game which ends up revealing itself as the opponents’ reason of life. Keywords: Guimarães Rosa. Sagarana. Duelo. De acordo com o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 171 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA palavra “duelo” designaria qualquer tipo de luta ou oposição entre duas partes. Considerando-se essa definição, o conto de Guimarães Rosa intitulado “Duelo”, do livro Sagarana, de 1946, desdobra, a partir do título, uma ponta de ironia, já que a narrativa se desenvolverá, até o final, em torno dos primórdios e na preparação sempre frustrada do encontro, sem que as personagens envolvidas se enfrentem para a verdadeira luta, indo chegar a termo por meio de outros elementos, estranhos ao combate, as vidas de ambos os contendores. O enredo daquelas duas vivências (os “duelistas” são Turíbio Todo e Cassiano Gomes) se dá a partir de um ponto de contato que é D. Silivana, a mulher de “grandes olhos bonitos, de cabra tonta” (ROSA, 1884, p. 160)12. Turíbio, seu companheiro, é um fabricante de selas furtado ao trabalho pela crescente abertura de estradas de ferro e de rodagem na região onde nascera, às margens do Rio Borrachudo, no qual ainda pesca, na ocasião em que tem início seu desentendimento com Cassiano. Vejamos como ele é descrito na abertura do texto: Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, era seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas, e chorava sem fazer caretas; palavra por palavra: papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas, no começo desta estória, ele estava com a razão. Aliás, os capiaus afirmam isto assim peremptório, mas bem que no caso havia lugar para atenuantes. Impossível negar a existência do papo; mas papo pequeno, discreto, bilobado e pouco móvel – para cima, para baixo, para os lados – e não o escandaloso ‘papo de mola, quando anda pede esmola’... Além do mais, ninguém nasce papudo nem arranja papo por gosto: ele resulta das tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há, também cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais A partir desta, as citações que vierem sem referência bibliográfica no corpo do texto foram retiradas do conto “Duelo”. Conferir: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 12 172 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ou menos, de tatus. E, tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava o seu proprietário: Turíbio Todo era até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante. Não tinha, porém, confiança nesses dotes, e daí ser bastante misantropo, e dali ter querido ser seleiro, para poder trabalhar em casa e ser menos visto. (...) Agora, quanto às vibrissas e ao choro sem visagens podia ser que indicassem gosto punitivo e maldade, mas com regra, o quanto necessário, não em excesso.13 Cassiano Gomes, o seu rival, é ex-soldado, afastado do serviço militar por ser portador de problemas cardíacos. E é no leito de D. Silivana que seus destinos se cruzam. Vamos à ocasião do encontro: Mas, por essa altura, Turíbio Todo teria direito de queixarse tão-só da sua falta de saber-viver; porque avisara à mulher que não viria dormir em casa, tencionando chegar até ao pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pernoitar em casa do primo Lucrécio, no Dêcàmão. Mudara de idéia, sem contra-aviso à esposa; bem feito!: veio encontrála em pleno (com perdão da palavra, mas é verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado e descuidoso, dos idílios fraudulentos.14 Assim, retornando mais cedo da pescaria, Turíbio, um homem de hábitos silenciosos e previsíveis, vê, sem ser visto, sua mulher na cama com o soldado. Vê, silencia e espera o momento certo para a vingança. Alguns dias depois, moralmente apoiado nos códigos de honra da localidade, que pregam a morte do traidor por parte do traído, dirige-se, devidamente armado, à casa de Cassiano Gomes, onde, graças a enorme semelhança, acerta pelas costas o irmão do soldado, com um tiro na nuca. Tem início, então, o duelo irrealizável entre os dois. 13 ROSA, 1984, p. 157. 14 ROSA, 1984, p. 158. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 173 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Esse “duelo”, cujo desfecho jamais se dará, vemo-lo aqui como um complexo jogo em que, perseguindo-se mutuamente a cavalo pelo sertão, cada um lança pistas que o outro irá interpretar. As pistas, rastros e sinais anunciados oralmente a pessoas que passam pelas estradas formam uma longa estratégia mutável e são por vezes falsos, com o intuito de desviar o inimigo; por outras são verdadeiros, e lançados no afã de que o rival, ao tomar conhecimento deles, interprete-os como sendo falsos, num jogo de duplo engodo que terá resultados imprevisíveis, conduzindo o conflito ao paroxismo mesmo de os rivais se cruzarem pelo caminho sem que o percebam: Mas, nesse depois, deu que um dia Cassiano, surgindo nas Traíras, escutou conversa de que o outro estava na Vista Alegre, aonde viera ter, aquerenciado, com saudades da mulher. Cassiano Gomes tirou suas deduções e tocou riba-rio, sempre beirando o Guaicuí (...) isso enquanto Turíbio Todo, um pouco além norte, fazia uma entrada triunfal em Santo Antônio da Canoa, onde ainda ousou assistir, muito ancho, às festas do Rosário, com teatrinho e leilão. Dançando de raiva, Cassiano fez meia-volta e destorceu caminho, varejando cerradões, batendo trilhos de gado, abrindo o aramado das cercas dos pastos, para cair, sem aviso, no meio dos povoados tranqüilos dos grotões. Mas eram péssimos os voluntários do serviço de informes, e, perto do Saco-dos-Cochos, eles cruzaram, passando a menos de quilômetro um do outro, armados em guerra e esganados por vingança. (...) e, se parassem e pensassem no começo da história, talvez cada um desse muito do seu dinheiro, a fim de escapar dessa engronga, mas coisa isso que não era crível nem possível mais.15 No jogo intrincado de perseguição, chega mesmo o momento 15 174 • ROSA, 1984, pp. 163-164. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO em que, no afã de enganar Turíbio Todo, Cassiano Gomes engana a si próprio, espalhando aos que encontra pelo caminho uma pista falsa que acaba por se mostrar, no fundo, verdadeira. Depois de muito campear atrás do inimigo, o soldado anuncia que irá se recolher, esperando que assim Turíbio baixe guarda e possa ser pego de surpresa. Ele segue, dizendo àqueles que encontra: “- É... Deste jeito eu não arranjo nada, e fico me acabando à toa... É melhor eu voltar p’ra casa e deixar passar uns tempos, até que ele sossegue e pegue a relaxar...”16. O narrador esclarece: “E Cassiano Gomes estava enganando a si próprio, pois na realidade se sentia de repente cansado, porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício cardíaco começara a dar sinal de si.”17 O conjunto dessas estratégias põe em xeque, entre outras, questões como a do valor de verdade. Inexistindo aprioristicamente, ela apenas se perfaz como tal a cada nuance dos movimentos dos duelistas, dependente da intenção que os move, de sua interpretação das pistas deixadas e do ponto de vista que então os guia. No desenrolar desse jogo a imprevisibilidade dos atos funciona como uma metáfora da vida, enquanto a morte, como única certeza, coroa o seu desfecho vindo de onde menos é esperada. Num jogo de morte de tal modo imbricado exclui-se já de início uma lógica cartesiana simples, multiplicando-se, por detrás de certa aparência de simplicidade, diversos elementos complicadores. O narrador anunciara essa atmosfera complexa ao substituir a lógica excludente de relações de causa e conseqüência, praticada pelos capiaus, por uma outra inclusiva, relativa, suplementar e paradoxal. Vejamos: E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam muito de relações de efeito e causa, leviana e dogmaticamente inferidas: Manuel Timborna, por exemplo, há três ou quatro anos vive discutindo com 16 ROSA, 1984, p. 171. 17 ROSA, 1984, p. 171. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 175 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA um canoeiro do Rio das Velhas, que afirma que o jacaré-do-papo-amarelo tem o pescoço cor de enxofre por ser mais bravo de que os jacarés outros, ao que contrapõe Timborna que ele só é mais feroz porque tem a base do queixo pintada de limão maduro e açafrão. E é até um trabalho enorme, para a gente sensata, poder dar razão aos dois, quando estão juntos.18 Do mesmo modo que é impossível chegar a uma conclusão, no caso dos jacarés, escolhendo uma das assertivas e apontando-a como causa (é bravo porque tem o papo amarelo ou tem o papo amarelo porque é bravo?), também no caso desse outro papudo (Turíbio Todo) a busca de uma razão simples para suas atitudes impossibilita a opção. Ele é “vingativo e mau” (palavras do narrador) porque fora traído? Ou será o oposto? Ou ainda – pois não é de se desprezar a relação entre “papudos” que o texto oferece: É da existência do papo que lhe vem o mal estar com o entorno ou será o defeito físico antes um sintoma da sua inadaptação? Note-se a descrição do dia da pescaria: Tinha sido para ele um dia de nhaca: saíra cedo para pescar, e faltara-lhe à beira do córrego o fumo-de-rolo, tendo, em coice e queda, de sofrer com os mosquitos; dera uma topada num toco, danificando os artelhos do pé direito; perdera o anzol grande, engastalhado na coivara; e, voltando para casa, vinha desconsolado, trazendo apenas dois timburés no cambão. Claro que tudo isso, sobrevindo assim em série, estava a exigir desgraça maior, que não faltou.19 Nesse começo, antes mesmo de descoberto o envolvimento da companheira com Cassiano, já está instalada a idéia da ação violenta dirigida, no caso, contra uma totalidade negativa do entorno. Impossível portanto querer achar causa simples para o seu trajeto vingativo apenas no fato de encontrar Cassiano 18 ROSA, 1984, p. 158. 19 ROSA, 1984, p. 158. 176 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO na cama com D. Silivana. Se se for em busca de uma causa ou origem para os acontecimentos, caminhar-se-á a cada vez um passo atrás, encontrando-se lá, na suposta origem, sempre uma outra origem, que é antes conseqüência de uma outra. A humilhação longa e silenciosamente curtida por ele pelas desvantagens físicas de que é portador, a clareza com que o contato com Cassiano Gomes traz à tona esses e outros traços seus, o ócio a que se entrega contra vontade, por ausência de trabalho (a abertura das estradas de rodagem reduzem a demanda de selas, produto do seu trabalho), a má-consciência pela sua suspeitada falta de “saber-viver”, no dizer do narrador, e os próprios acontecimentos desagradáveis que o contemplam naquele dia são todos determinantes para o que sucederá e se substituem numa linha de suplementaridade. O fato de ser Cassiano e não um outro o traidor de Turíbio serve ainda para enfatizar a condição miserável do seleiro, já que o outro é um militar (o que denota respeito, naquele contexto) um homem bonito e que, afinal, lhe conquista a companheira. Na cena em que Turíbio os avista na cama, a descrição que faz do arsenal de que se cerca para ele a imagem de Cassiano, em comparação com seu parco armamento, que se resume a uma “faquinha de picar fumo e tirar bicho-de-pé”20 bem mostra a humilhação a que é submetido. O contraste entre a situação social dos dois terá grande participação no fomento do ódio já crescente do seleiro pelo ex-militar: “(...) o outro era o Cassiano Gomes, ex-anspeçada do 1º pelotão da 2ª companhia do 5º Batalhão de Infantaria da Força Pública, onde as gentes aprendiam a manejar, por música, o ZB tchecoslovaco e até as metralhadoras pesadas Hotchkiss; e era, portanto, muito homem para lhe acertar um balaço na testa, mesmo estando em sumaríssima indumentária (...)”21. Lógica e razão são termos que, por vezes sinônimos, têm ali aplicações que fogem diligentemente ao uso comum. A palavra 20 ROSA, 1984, p. 159. 21 ROSA, 1984, p. 159. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 177 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA “razão”, por exemplo, desliza, no texto, entre diferentes acepções: há a “razão” inicial de Turíbio Todo para sentir-se humilhado e aquela que lhe é agregada socialmente para vingarse perante a ofensa moral sofrida, “razão” que o leva a desviarse e, num erro, eliminar o irmão do verdadeiro “devedor”. Há, em contrapartida, as “razões” que permitem a Cassiano Gomes revidar a morte indevida do irmão. Há também as “razões” de adaptação e luta que justificam, a princípio, tanto a conduta de Turíbio quanto a de Cassiano, e que depõem contra a idéia de uma razão una e mesmo de uma apriorística da razão, que teria de se basear na idéia de uma lei também una e a priori posta. Há ainda a tal “razão” das mulheres, que o narrador defende, ironicamente, como devendo primar sobre as demais (notese ainda que é do contato com D. Silivana que provêm as “razões” da contenda, justificativas para a morte, e que acabarão se mostrando, positivamente, como a “razão” de vida dos adversários). As diferentes acepções do termo se misturam no texto. A ausência de uma razão apriorística ou transcendental amplia indefinidamente o jogo e seu campo de atuação. Por isso não há uma verdade ou lógica simples a defender ou interpretar. Nada para além das regras do jogo. Cassiano Gomes, aquele que “primeiramente” é marcado para morrer (e que traz a lembrança da caça, foneticamente, no nome), carrega em si o gérmen da morte, latente na doença que o persegue, e representa, por meio desse traço, toda a categoria humana, incluído aí também o seu algoz ou caçador. Eles seguem no seu jogo letal, como numa roleta russa, adiando e adiantando a morte, fugindo dela e para ela, que cedo ou tarde se mostrará, se não como resultado específico do combate, provindo de algo exógeno a ele ou de dentro de cada um deles. Apesar da série de contrastes que a priori delegariam a Turíbio uma condição irremediavelmente inferior com relação a Cassiano, o texto, pela visada altamente reversível que propõe, irá recuperar e transformar uma certa predestinação que muitas vezes as preconceituações fazem supor e mantêm. É através de 178 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO um traçado que reconhece o poder como algo que se exerce antes que se possui que o conto de Rosa o faz. Esse conceito de poder, formulado pelo pensador francês Michel Foucault, é trazido aqui para o acompanhamento do trajeto dos personagens por considerarmos que as diferentes estratégias por eles desenvolvidas durante o seu “duelo” não cristalizam o poder num centro emanador, nem distribuem em escalas hierárquicas os “poderosos” e os “sem-poder”, estabelecendo sim jogos de poder e não lugares de poder, algo que os jogadores bem intuem. Daí que a desconfiança de cada um sobre as pistas deixadas pelo inimigo se amplie até quase passarem paradoxalmente a considerar, de forma consciente, nos atos de defesa, a importância do acaso. Uma verdadeira aporia: as regras do jogo são inescapáveis, ou seja, tudo se dá sempre e somente dentro de uma certa ordem de jogo; no entanto é tamanha a imprevisibilidade das normas que o governam, criadas sempre no devir do próprio jogo pelos duelistas, que o conjunto de regras tangencia o acaso e mesmo ameaça com a completa dispensabilidade das normas, anulando assim o sistema. Somente desse modo se explicam situações como aquela em que os jogadores se buscam até que se encontrem, e então, de forma surpreendente, não se vêem. Assim sendo, se uma grande diferença de situação social separa Turíbio de Cassiano, a partir do momento em que seus destinos se cruzam, arma-se um outro contexto, em que de alguma forma eles se igualam, porque são outras as regras que norteiam agora essa vida dentro da vida, que os une no seu quase-duelo e, para nós, no texto. Pode-se pensar mesmo que o verdadeiro “acerto de contas” já se dera, de forma paradoxal, no erro cometido por Turíbio ao matar o irmão de Cassiano, erro que afinal deixa o soldado livre para a vida, o que nesse caso significa a possibilidade de lutar até a morte, e “de igual para igual”. Somente a partir desse engano inaugural é que se inicia de fato a perseguição entre eles, contraditoriamente. Desde então, Turíbio e Cassiano passam a ser, de certo modo, Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 179 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA um personagem do outro, nesse teatro mortal, e a se guiarem por pistas que, de muito voláteis e armadas sobre tantos artifícios, resultam quase tão pouco úteis ao perseguido e ao perseguidor quanto crer no puro acaso. A um tempo em que o narrador apresenta ao leitor os personagens, no contexto interno à narrativa, cada um dos protagonistas faz do outro uma espécie de criação sua, pelo modo como tece comentários injuriosos acerca do rival junto aos transeuntes nas estradas em que segue à sua procura. Assim o percurso de cada um é traçado, de certo modo, pelo inimigo, nas pistas – verdadeiras ou falsas – que lhe deixa, pistas às quais a criatura tenta, apoiada em suas interpretações, escapar. Por fim, o fato de cada um perseguir, no/do outro, a própria vida, faz com que assuma mais plenamente a função de criador/destruidor. No desfecho, cada um se revela, enfim, o personagem prófugo do outro, escapando-lhe quase que completamente ao traçado, para viver sua própria vida - e sua morte: Cassiano morre de “causa natural”, burlando o desfecho lúdico, e o outro, no meio do jogo - e da narrativa -, parte para São Paulo, indo morrer, ao retornar, pelas mãos de um terceiro. Vejamos o momento em que Turíbio Todo resolve abandonar a luta: Depois, uma turma de sujeitos alegres o interpelou. Iam para o sul, para as lavouras de café. Baianos sãopauleiros. E um deles: -Eh, mano veélho! Baâmo pro São Paulo, tchente!... Ganhá munto denheêro... Tchente! Lá tchove denhêro no tchão!... Sentiu saudades da mulher. Mas, era só por uns tempos. Mandava buscá-la, depois. Foi também.22 Para o leitor que acompanhara até então cada lance da perseguição mútua, é surpreendente a atitude de Turíbio, de partir com uma tropa que encontra no caminho, tendo trocado com seus componentes apenas algumas palavras e deixando pelo meio a contenda com Cassiano. No entanto o fato não é incompreensível, já que, de forma não de todo 22 180 • ROSA, 1984, p. 175. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO consciente, o que ele procurava mesmo era uma razão para a vida. Considere-se também que nesse ponto o jogo já vinha se tornando ora monótono, ora arriscado demais, segundo sua própria avaliação, o que poria em perigo seu motivo maior até então: a busca paradoxal de uma mudança para a vida, ainda que por meio da morte, sua e/ou de outrem. Nesse ínterim, e quando o embate entre os dois ainda prosseguia, é que o sistema estabelecido com a perseguição perde verdadeiramente qualquer possível centro: Turíbio segue para São Paulo e Cassiano chega a esquecer por completo o motivo que conduzia seu ódio contra Turíbio, ou seja, a morte do irmão. Apenas quando já bastante debilitado pela doença é que, certo dia, Cassiano Gomes se lembra do falecido: “E ficava calado, recontando os caibros, negros de picumã, e espiando a mexida das aranhas, que jogavam fios-a-prumo para subir e descer. E, pela primeira vez nesses meses, se lembrou do irmão assassinado, realizando ser por causa da morte do mesmo que ele andara em busca de Turíbio Todo”.23 Turíbio, ao retornar de São Paulo, chega transformado. Nas palavras do narrador: “Saltou do trem com uma piteira, um relógio de pulseira, boas roupas e uma nova concepção do universo”24. Retorna com saudades da mulher, disposto a tudo esquecer e portando mesmo um discurso pacifista. E é aí, no hiato do ódio, razão desarrazoada que insuflava o seu viver, que ele é pego de surpresa e, desarmado, recebe a morte pelas mãos de um capiau franzino em cuja companhia perfizera parte do caminho e a quem já então se afeiçoara bastante. Esse capiau, chamado Vinte-e-Um, que se apresentara como compadre do falecido Cassiano Gomes, fora ajudado pelo soldado já moribundo, ocasião em que lhe prometera, como último desejo, vingar a morte do irmão, dando fim ao tal Turíbio Todo. 23 ROSA, 1984, p. 180. 24 ROSA, 1984, p. 182. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 181 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Na narrativa, Vinte-e-Um é a prova maior do alcance dos lances daquele jogo e da sua perda de centro: jogada a primeira pedra, impossível conceber que seu raio de ação permaneça no entorno dos principais jogadores sem contaminar outros elementos, que serão envoltos também nessa rede ao mesmo tempo lúdica e bélica. O próprio nome do personagem Vintee-Um, que designa também um jogo de cartas, reforça a relação com o jogo e faz retornar a imagem do baralho, que aparece mais de uma vez no conto para ilustrar a contenda entre Turíbio e Cassiano: “- Tem tempo... - disse. E continuou a batida, confiado tão só na inspiração do momento, porquanto o baralho fora rebaralhado e agora tinham ambos outros naipes a jogar.”25 Mais uma vez, apenas o devir-estória e a observação aproximada das partes é que pode criar, para os acontecimentos, alguma realidade, dando mostras de que ali é improvável poder se fiar, para agir, em uma razão plena, única ou previamente considerada. Assim como na estória dos jacarés, que abre a narrativa, observados de perto os duelistas é preciso dar-lhes, a ambos, as suas “razões”, agora plurais. Ao invés de reconhecer-se levianamente uma razão que governe a totalidade dos acontecimentos, o que se nota é uma determinada lógica de poder presente na fala de Cassiano Gomes. Diz ele, referindo-se a Turíbio Todo: “- Ele vai como veado acochado, mas volta como cangussu... No meio do caminho a gente topa, e quem puder mais é que vai ter razão...”26. A “razão” que se reconhece então é a da força, a do poder do mais forte no momento do encontro, em pleno caminhar, e aparece como uma nova “razão”, suplementar às apresentadas anteriormente. Daí a importância de se acompanhar os lances lúdicos e bélicos em que os personagens se revezam e a alternância de papéis que vem expor a não-fixidez das relações e das razões que as regem, revolvendo valores e verdades 25 ROSA, 1984, p. 162. 26 ROSA, 1984, p. 161. 182 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO comumente aceitos. Esse entranhamento radical de diferentes posições e pontos de vista lança a necessidade de uma revisão de construções que se baseiam na lógica cartesiana de causa e conseqüência e de concepções como a de razão, mantenedora, no pensamento ocidental, de toda suposta verdade e, juntamente, de muito engano. O paradoxo e a ambivalência são respostas sempre provisórias aos enigmas incorporados pelos protagonistas nessa história de vingança e morte, e de luta pelo poder, perante a efemeridade de todos os seres. REFERÊNCIAS DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução: Maria Beatriz M. Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1982. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1995. ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Recebido em 15/07/2008 Aprovado em 16/08/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 183 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA UMA RECRIAÇÃO FIEL: DIÁLOGOS ENTRE O AUTOR E O SEU TRADUTOR Erlon José Paschoal USP Resumo: A correspondência entre Curt Meyer-Clason, um dos tradutores de literatura brasileira em língua alemã mais premiados em nosso país, e João Guimarães Rosa lança luz sobre os aspectos do ofício e da missão do tradutor, no qual “cada palavra está por fio”. Nessa convivência intensa debatem-se as possibilidades e impossibilidades da tradução, sempre com muito paixão pela arte literária e zelo pelo leitor. Palavras-chave: Tradução. Tradutor. Convivência. Abstract: The correspondence between Curt Meyer-Clason, one of the translators of Brazilian literature in German language more rewarded in our country, and João Guimarães Rosa, throw light on the aspects of the craft and the mission of the translator, in which each word hung by a thin thread. In this intense relationship the possibilities and impossibilities of the translation are struggled, always with much passion for the literary art and zeal for the reader. Keywords: Translation. Translator. Relationship. Em um seminário realizado em Berlim em Setembro de 2007 para comemorar os dez anos de existência do Deutscher Übersetzerfonds (Fundo Alemão para a Tradução) alguns pontos relevantes sobre a tarefa do tradutor foram discutidos e valeria a pena mencioná-los27: que concepção lingüística orienta as nossas traduções? Até que ponto é realmente possível traduzir? Como variou ao longo do tempo o conceito de tradução? Existem critérios para uma boa tradução? Quais 27 184 • Revista Humboldt, nº 96, 2008, pág. 84. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO seriam eles? As palavras rotulam coisas. Assim as palavras seriam como etiquetas de coisas que se reconhece sem a língua. Esse raciocínio está fundamentado no Crátilo de Platão. Para ele a língua atrapalha a compreensão do mundo e só existe como meio de comunicação entre os homens. Nesse caso traduzir seria fácil. Bastaria substituir uma palavra associada a uma coisa, a um conceito, na língua de partida à palavra equivalente na língua de chegada. Quase dois mil anos depois, Wilhelm von Humboldt assumiu a posição oposta. Segundo ele, as palavras não são apenas sons e sim a combinação da dimensão material com a dimensão espiritual. Só a partir das palavras é possível compreender o mundo e são elas que determinam a nossa visão de mundo. Como cada palavra é única em sua qualidade sonora e significativa, o acesso ao mundo depende da língua utilizada. Aceitando-se esse fato, traduzir seria impossível ou, no mínimo, extremamente difícil. Schleiermacher chegou a afirmar que cada tradução deveria deixar transparecer que é uma tentativa impossível. Em resumo, o conceito de tradução se modificou através dos séculos, mas sempre oscilando entre dois pólos: o da fidelidade ao texto e o da interpretação do tradutor. São conceitos curiosos, bem semelhantes aos de uma relação afetiva: ou você é fiel ou comete traição, traindo o autor ao se envolver com outras palavras. Daí que a falsidade, a traição e a infidelidade sejam até hoje os piores crimes do tradutor. Para muitos o tradutor não passa de um simples decodificador passivo, que deve se submeter ao autor em função de um conceito de obra original, como uma aura quase sagrada. Vale lembrar que o conceito de autoria e o de originalidade literária são por si só temas complexos e relativamente recentes, remontando fundamentalmente ao século XIX. Nesse contexto é importante ressaltar que o tradutor literário também é um autor, o autor de sua própria tradução, uma autoria garantida Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 185 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA pela lei de propriedade intelectual. A verdade provavelmente está no meio termo porque todo tradutor oscila sempre entre dois pólos: a modéstia própria de sua posição de servidor, de submisso, e o orgulho produzido pela consciência instintiva de sua condição de criador. Mantém assim um equilíbrio sempre instável entre esses dois extremos; é esse o maior desafio do tradutor. Como afirmou certa vez Ezra Pound, existem tradutores que fracassam mais por falta de caráter do que por falta de inteligência. O tradutor espanhol Miguel Saenz, ironizando essa situação, sugeriu que no caso dos primeiros tradutores da Bíblia havia entre autor e tradutor uma relação monacal28. O tradutor, como um monge beneditino, estaria ligado ao texto por votos não expressamente formulados de castidade, pobreza e obediência. Castidade, porque está proibido de manter com o texto original relações que não sejam puramente platônicas e formais. Além disso, o tradutor deveria praticar uma espécie de celibato intelectual e enfrentaria dificuldades sempre que pretendesse afirmar-se como escritor original. A pobreza não se devia tanto à baixa remuneração, mas a sua voluntária anulação frente ao autor: só muito recentemente, por exemplo, conseguiu-se que o seu nome aparecesse na obra traduzida. Deixando de lado os exageros de tais comparações, é curioso assinalar como essa relação entre autor e tradutor foi alvo de interesse de grandes escritores. Ao longo dos últimos séculos a postura do autor frente ao tradutor vai do desprezo altivo à amizade mais estreita. O escritor austríaco Thomas Bernhard, por exemplo, do qual tive o prazer de traduzir a obra teatral Ludwig e suas irmãs, afirmou em sua obra Der Weltverbesserer 29 que todo livro traduzido “é como um cadáver destroçado por um automóvel Eizie, www.eizie.org/es/Argitalpenak/Senez/19930701/Saenz , julho de 1983, Autor y Traductor. 28 Der Weltverbesserer (O consertador do mundo), de Thomas Bernhard, em Die Stücke, Editora Suhrkamp, 1983, págs. 103 e 104. 29 186 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO até se tornar irreconhecível”. Para ele, um livro traduzido não tem nada a ver com o original e precisamente por isso reconhece que a sua autoria pertence ao tradutor. E leva adiante o seu raciocínio: “os tradutores desfiguram os originais”; “o material traduzido chega ao mercado como deformação”; “são o diletantismo e o desleixo do tradutor que tornam a tradução tão repulsiva”; “o texto traduzido é sempre asqueroso”. Por outro lado, para muitos autores a relação com o tradutor era uma verdadeira história de amor. Milan Kundera, por exemplo, cuida e se ocupa intensamente das traduções de suas obras, e declarou que elas representam o que o mundo conhece dele. Günter Grass, por sua vez, não somente lê, analisa e acompanha as traduções de cada um de seus livros, como também recebe os tradutores em casa, convive com eles e certa feita fez uma afirmação favorável aos tradutores: quando pensou na possibilidade de não conseguir escrever, deu-se conta de que não poderia mais se reunir com seus tradutores e por isso decidiu continuar escrevendo. Jorge Luiz Borges e Ezra Pound chegaram a recomendar aos seus tradutores que traduzissem não o que escreveram, mas o que tiveram a intenção de escrever. Miguel Saenz cita também o exemplo do escritor espanhol Javier Tomeo que chegou a propor a sua tradutora alemã, Elke Wehr, um plano para quando acabasse a sua inspiração para escrever. Ele traduziria de volta para o espanhol a sua última obra traduzida para ao alemão, que seria novamente traduzida para ao alemão pela tradutora, que seria novamente traduzida para o espanhol, e assim por diante. Guimarães Rosa definiu a tradução como convivência: “traduzir é conviver” 30. Ele é um dos exemplos mais notáveis de uma grande amizade surgida entre autor e tradutor, chegando algumas vezes a uma verdadeira simbiose. Em relação ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Rosa afirmou: “com você não tenho medo de nada!”31 Numa das últimas edições 30 Revista Humboldt, nº 16, 1968. 31 João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, Ed. Nova Fronteira/UFMG, 3º edição, 2003, pág. 51. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 187 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA de Grande Sertão: Veredas, ele exigiu que se publicasse em fac simile a primeira página da tradução italiana. Segundo Guimarães Rosa, a tradução de Curt Meyer-Clason para o alemão era “magistral e definitiva”32. Quando da publicação de suas obras em alemão, afirmou em uma de suas cartas que a língua alemã seria mais apta que o português para captar o universo sertanejo: “a tradução e a publicação em alemão me entusiasma, por sua lata significação cultural, e porque julgo esse idioma o mais apto a captar e a refletir todas as nuanças da língua e do pensamento em que tentei vazar os meus livros”33. Essa relação entre autor e tradutor expressa-se de maneira eloqüente nas cartas trocadas entre ambos no período de janeiro de 1958 a agosto de 1967. Elas tratam da tradução para o alemão das principais obras de Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas, Corpo de Baile, Primeiras estórias e Sagarana (Grande Sertão, Corps de Ballet, Das dritte Ufes des Flusses, Mein Onkel der Jaguar e Sagarana) - e revelam muito da intimidade entre duas pessoas sensíveis de mundos e línguas distintas e dos meandros do trabalho de um tradutor empenhado em obter o melhor resultado das criações lingüísticas de Guimarães Rosa em sua própria língua. Uma missão de vida na qual cada palavra está por fio, pois está recheada com os respectivos tesouros de seu país e só deixa entrever a sua verdadeira importância quando “pesada pelo intermediário na balança de seu coração e transformada em moeda corrente em seu país”.34 As cartas tratam pormenorizadamente das possíveis traduções para palavras e expressões utilizadas e criadas pelo autor e endereçadas a um leitor que não possuía nenhuma referência do universo por onde circulavam os personagens. O autor João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, Ed. Nova Fronteira/UFMG/ABL, 1º edição, 2003, pg.43. 32 33 Idem, pág. 25. 34 Idem, pág. 110. 188 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO participa então ativamente da tradução, dando sugestões, fazendo esclarecimentos e comentários e, muitas vezes, propondo soluções, em função do seu vasto conhecimento lingüístico, que incluía o alemão. Essa relação de amizade, na qual ambos compartilhavam objetivos comuns – Guimarães Rosa considera a tradução para o alemão a mais importante –, visa não somente à tradução das palavras, mas também do ambiente, da musicalidade e da linguagem poética que compõem a obra. Em tese, ninguém melhor que o autor para explicar as suas próprias intenções, decifrar o texto e ressaltar o que merece destaque. Essa forte amizade fazia Guimarães Rosa se referir a Curt Meyer-Clason como o melhor dos seus tradutores e o melhor tradutor do mundo, “um diabo de homem, um gênio da tradução”35. Nesse sentido, a tradução perfeita poderia ser talvez aquela feita pelo próprio autor. Não temos na história muitos exemplos. O melhor seria, sem dúvida, o de Samuel Beckett, que na realidade escreveu a sua obra em duas línguas – o francês e o inglês. Para muitos são obras que não foram de fato traduzidas, mas escritas em duas versões, a ponto de não se saber qual é a original. O autor e o tradutor chegam ao resultado por caminhos diferentes. O tradutor parte de um texto previamente dado e a todo momento precisa assumir posições, fazer escolhas e tomar decisões. O autor tem em princípio uma liberdade absoluta. Poderíamos até deduzir daí que traduzir uma obra é mais difícil do que escrevê-la, o que naturalmente seria bastante discutível. O tradutor tem, por outro lado, o distanciamento necessário, e o contato com o autor pode aumentar as possibilidades de se atingir o melhor resultado. Numa entrevista dada ao escritor e jornalista alemão Günter Lorenz, em 1965, Guimarães Rosa afirmou: “Confesso com muito prazer que Curt Meyer-Clason me convenceu de que uma passagem de meu romance era mais convincente em alemão que em meu original. É claro que aceito 35 Idem, pág. 14. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 189 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA isso, e em uma nova edição brasileira pretendo adaptar esta passagem à versão que Meyer-Clason encontrou em alemão. A isto eu chamo cooperação, co-pensamento.”36. Para Meyer-Clason, a linguagem do sertanejo presente na obra de Guimarães Rosa é muito difícil de ser traduzida. Afirmou ele: “Se tentasse criar uma língua de, digamos, ‘caboclos alemães’, das várias províncias alemãs, teria sido um erro grave, já que o leitor alemão teria sido tirado do ambiente brasileiro. Inventei então uma língua nova. Uma linguagem que não fosse da cidade, uma linguagem diferente que pudesse acompanhar o tom e a música da língua brasileira. O alemão do Grande Sertão é facilmente compreendido pelo leitor. Ele apenas percebe que não é uma linguagem usual. Criei uma ilusão para expressar as intenções do gênio sertanejo. Como vivi no Brasil quando jovem, tinha alguma intuição do sentir do brasileiro. E por isso creio que minha tradução conseguiu reativar, imitar, recriar um pouco o âmbito, o sentir do homem brasileiro do interior. Essa era minha ambição mais alta e o Guimarães Rosa, se bem me lembro, com sua intuição de grande artista, sentiu que o tom e o som da minha fala tinham uma qualidade igual”37. Guimarães Rosa assim se manifestou no tocante à recriação do universo singular de sua obra: “Naturalmente, eu mesmo reconheço que muitas das ‘ousadias’ expressionais têm de ser perdidas, em qualquer tradução. O mais importante, no livro, o verdadeiramente essencial, é o conteúdo. A tentativa de reproduzir tudo, tudo, tom a tom, faísca a faísca, golpe a golpe, o monólogo sertanejo exacerbado, seria empreendimento gigantesco e chinesamente minuciosíssimo, obra de árdua recriação, custosa, temerária e aleatória. Sei que nem o editor, nem o tradutor, nem o autor, podemos correr tamanho risco. E pensando assim, reconheço também que temos de fazer Idem, pág. 12/13, entrevista a Günter Lorenz em 1965 reproduzida no Correio da Manhã de 3 de junho de 1971. 36 37 190 • O Estado de São Paulo, Caderno 2, 27 de Maio de 2006. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO sacrifícios”38. Pode-se concluir dizendo que as traduções de Meyer-Clason contribuíram enormemente para o enriquecimento do idioma alemão e para o alargamento dos horizontes de sua literatura. As obras traduzidas acabam fazendo parte da literatura do país para o qual elas foram traduzidas. Afinal, ao incorporar Guimarães Rosa, a língua alemã teve de fazer malabarismos profundos, o que a obrigou a se flexibilizar, o que significa se desenvolver e fortalecer-se. Colocando em prática o princípio estabelecido por Walter Benjamin, o alemão se aportuguesou através da literatura de Guimarães Rosa por intermédio da tradução de Curt Meyer-Clason. Ou, nas palavras do escritor mineiro “a gente morre é para provar que viveu”39. Recebido em 15/09/2008 Aprovado em 25/09/2008 João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, Ed. Nova Fronteira/UFMG/ABL, 1º edição, 2003, pág. 113. 38 Discurso de posse da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 15 de novembro de 1967. 39 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 191 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA A MICROLOGIA DO COTIDIANO EM TUTAMÉIA: TERCEIRAS ESTÓRIAS Paulo Muniz da Silva Ufes Resumo: Breves apontamentos sobre o cômico e o riso na linguagem de Tutaméia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa. Palavras-chave: Literatura. Humor. Riso. Resumé: Brèves notes sur le comique et le rire dans la langage de Tutaméia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa. Mots-clés: Littérature. Humeur. Rire. Apresentação [...] balizando a posição-limite da irrealidade existencial ou de estática angústia [...] será aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e, como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu: – “Trocar... Com quem?” (ROSA, 1985, p. 8). Como anuncia essa epígrafe, propomos breves apontamentos sobre a comicidade e o humor na linguagem de Tutaméia (terceiras estórias), em três contos: “Antiperipléia”, “Como ataca a sucuri” e “– Uai, eu?”. Nossa base teórica para enfrentar os textos será o primeiro prefácio “Aletria e hermenêutica”, associado a Vladímir Propp e Henri Bergson. 192 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Se partirmos de uma poética construída com a linguagem que se assemelha àquelas que circulam na micrologia do cotidiano40, poderemos ouvir, nas terceiras estórias, vozes que se movem, como num fugato musical, produzindo intervalos em que se pode saltar do cômico ao sublime. O discurso micrológico, de conteúdo aparentemente inexpressivo, afina-se com o diapasão semântico da palavra “tuta-e-meia”, ou seja, ninharia, quase nada, para concertar, scherzando,41 com o prefácio “Aletria e hermenêutica”, as narrativas polifônicas, às vezes, em tom menor, mas divertidíssimas. Há passagens, nos contos, em que os intervalos estreitos de um acorde diminuto, evocariam a melancolia em face da morte, por exemplo, no conto “Antiperipléia”. Mas até aí o clima é de comédia. A possibilidade do riso diante da precariedade da linguagem do narrador dissipa a tristeza. Ditados populares e anedotas de extração oral insuflam a poesia contra a lógica, tornando-se instrumentos de questionamento das fronteiras que separariam o ridículo do sublime. Micrologia e tuta-e-meia A partir do sintagma micrologia do cotidiano, intentamos, inspirado por Paulo Rónai, fazer um contato com o título Tutaméia, passando pela palavra “tuta-e-meia”, que, no dicionário do Aurélio (FERREIRA, 1986), de língua Aproprio-me de termo dicionarizado. MICROLOGIA. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da língua portuguesa. 2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1729. 40 Refiro-me aqui ao scherzo: tipo de canção profana, viva e alegre, executada a várias vozes, que Beethoven inseriu definitivamente nas grandes formas da sonata, da sinfonia e do quarteto, substituindo o minueto. 41 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 193 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA portuguesa, se circunscreve às expressões “ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro”. A palavra “micrologia” registra-se como discurso frouxo, de conteúdo inexpressivo. Assim, com “micrologia” e Tutaméia sugerimos que as terceiras estórias podem referir-se à obra de arte literária como um lugar fugidio; um corpo discursivo que se movimenta na reta de colisão com o paradoxo, ou seja, com aquilo que pode ser ou apenas parecer um contra-senso, um absurdo (SILVA, 1994, p. 11). Podemos chegar às estórias por meio das vias sinuosas do humor, indicadas pelas anedotas que se lêem no prefácio “Aletria e Hermenêutica”. Nas palavras de Benedito Nunes, “o clima geral de Tutaméia, mesmo quando se mata ou se morre, é o clima da comédia” (NUNES, 1976, p. 204). A comédia, explica Nunes, imprime um “ritmo dramático”, em prol da vida e da restauração de suas forças. Esse ritmo determina, nos contos, a solução das contradições da ação, a interrupção do sofrimento e o restabelecimento espontâneo do equilíbrio, para que se dê prosseguimento à existência. Aqui já se põe uma armadilha. Se o discurso for chistoso, micrológico, a literatura que dele se constitui valerá mesmo uma tuta-e-meia? Não. E o próprio Guimarães Rosa o justifica. “Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.” (ROSA, 1985, p. 7) Diante do discurso anedótico, a “hermenêutica” não trará para as “aletrias” apenas a interpretação do sagrado. Poderá ater-se à reciclagem e à constante atualização semântica das construções de linguagem que perdem o ineditismo em que consistiria um final inesperado ou contrário ao esperado de uma estória. Aí, na reiteração desse final, estaria o drolático (que provoca o riso, que diverte), respondendo a uma operação mental necessária para a fruição das “anedotas de abstração” e das estórias propostas por Tutaméia. As “anedotas de abstração” seriam 194 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO aquelas que, tangendo o não-senso, refletiriam “por um triz a coerência geral, que nos envolve e nos cria.” (Ibid., p. 8).42 Assim, reformulando locuções e provérbios que tendem a representar a sabedoria consagrada e popular, Guimarães Rosa propõe, a partir da reciclagem desses pequenos discursos orais, a mobilização dos sentidos alojados nas dobras do não-senso. No primeiro prefácio, “Aletria e hermenêutica”, a abstração de tais anedotas, na linguagem de Tutaméia, ora nos eleva ao universal abstrato, ora nos baixa ao concreto, à terra do cotidiano, ao chão, para que aspiremos o húmus, o suor da realidade circunstante por meio de temas como, a mendicância e a dignidade, no conto “Antiperipléia”; o desprezo e a admiração, no conto “Como ataca a sucuri”; a violência, a homoafetividade viril e a fidelidade, no conto “– Uai, eu?”. Mas muito outros temas lhe captam também, esses foram os que elegemos para pontuar brevemente aqui. Nesses contos, não se escamoteiam os efeitos desagregadores da pobreza, grassando, sem piedade, sobre as gentes que vegetam por esses brasis de infindáveis transumâncias e, porque não, catrumâncias: cangaços, romarias, sertões, cidades, lupanares e linguagens. Entretanto, não se fazem da apreciação dessas paisagens sociais reivindicações populistas, porque os personagens aí atuando emitem, sobre si e outrem, opiniões compactas e sem espírito de conciliação com o mundo que os cerca. Por isso, o riso torna-se possível até aí onde, aparentemente, a piedade dominaria. Talvez, como queria Freud, até o riso como uma atitude defensiva contra a possibilidade do sofrimento. A partir daqui, apontaremos breves possibilidades do riso na linguagem micrológica dos contos “Antiperipléia”, “Como ataca a sucuri” e “– Uai, eu?”, aproximando-os de Vladímir Propp, pelas vias do humor. Tomaremos o humor como uma predisposição mental com capacidade para perceber Quando me referir mais de uma vez a este livro de Guimarães Rosa, de forma consecutiva, indicarei apenas o número das páginas citadas. 42 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 195 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA o cômico e o risível, no momento em que ocorrem, e para desvelar, inesperadamente, um lado escondido da realidade aparente, que a visão habitual não apreende. Nos três contos, a comicidade pode repousar também “nas fraquezas e nas misérias humanas” (HARTMANN apud PROPP, 1992, p. 44). Em “Antiperipléia”, pode-se rir da e com a comicidade do picaresco Prudencinhano, personagem-narrador da estória. Ali, ele está posto sob suspeita de ter causado a morte de “sêo Tomé”, o cego galã que ele guiava. Em suas palavras dirigidas ao narratário, “Sêo Desconhecido”, elogia o cego, que lhe superava no quesito objeto de desejo das mulheres, e depreciase, expressando-se por meio da reutilização de vários ditados populares, entre os quais um que autoriza explicitamente o riso: “o roto só pode mesmo rir é do esfarrapado.” (ROSA, 1985, p. 19). Circunscreve-se ao caricatural o efeito humorístico obtido pela configuração física e psicológica do ébrio Prudencinhano. Em suas palavras, ele era “[...] assim calungado, corcundado cabeçudão” (p. 19). A possibilidade de se compadecer de seu aspecto físico deformado atenua-se, no entanto, com a comicidade suscitada pela aparente embriaguez de raciocínio que seu discurso indica. Ele organiza sua fala num discurso fugidio, frouxo, micrológico, e possibilita o cômico na formulação de paradoxos involuntários e nos alogismos implícitos. Segundo Propp, os alogismos se produzem na vida e na arte literária. Na vida, pela realização de ações insensatas; na literatura, pela expressão de coisas absurdas (PROPP, 1992). Vejamos um trecho de “Antiperipléia” em que a concentração não-convencional das formas que expressam o absurdo pode provocar o riso na fala desse personagem, que nega ter matado o patrão cego: “Me prendam! Me larguem! A mulher esteja quase grávida. Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais... A culpa cai sempre é no guiador?” (p. 21). Isso nos remete a Vladímir Propp que, estudando a comicidade e o riso, aponta como possibilidades do cômico, os defeitos 196 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO físicos, “mas somente aqueles cuja existência e aspecto não nos ofendam e nos revoltem, e ao mesmo tempo não suscitem piedade e compaixão. Desse modo, um corcunda só provoca o riso numa pessoa moralmente imatura” (PROPP, 1992, p. 60). Os contos “Como ataca a sucuri” e “– Uai, eu?” tendem a desviar nossa atenção do conteúdo do discurso, para as formas exteriores de sua expressão. Aí, nessas formas, pode-se cercar drolático. O narrador de “Como ataca a sucuri” medeia a possibilidade de atritos quase letais entre dois personagens: Drepes, um tipo de pescador-caçador moderno, e Pajão, um personagem de compleições físicas disformes e humanidade tosca; um “catrumano” habituado aos “cenários ermos e rústicos, intocados pelo progresso” (RÓNAI, 1985, p. 220). Nessa mediação de choques culturais, o narrador gravita entre a ironia de um e a rispidez do outro. No trecho que ora cito, destacam-se, nas palavras de Pajão, a solidariedade ríspida e a alteridade áspera mediando as relações entre os dois homens no terreno do conhecimento que cada um teria acerca do que se fala e do que se pode constatar sobre a periculosidade da cobra sucuri: “Pega homem?!” Desaforo. E o cujo, eh, botava para rodar os carretéis daquele relógio cego. Saía, aventado, no outro dia, para o dormido poço do marimbu, hum, com receio nenhum, seguro de tudo. Sozinho, xê. Delatava a ele o caminho uma caixeta redonda que tinha, boceta de herege. Zanzava, mexia, vai ver não voltava! “Sucruiú come homem?” Deus querendo come. (ROSA, 1985, p. 39: itálicos e aspas do autor). No conto “– Uai, eu?”, Jimirulino, detento, condenado por três assassinatos, destaca, em primeira pessoa, as qualidades do Doutor Mimoso, seu ex-patrão, com uma admiração que beira as inclinações homoeróticas. Quando o descreve, o personagem investe nas multiplicidades de um mundo de sensações associadas ao amor, que não o conectam afetivamente ao expatrão, mas o rodeiam, evocando possibilidades de experiências Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 197 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA prazerosas circunscritas ao espaço doméstico: a cama e a mesa. Ah, que saudades que eu não tenha... Ah, meus bons maus-tempos! Eu trabalhava para um senhor Doutor Mimoso. Sururjão, não; é solorgião. Inteiro na fama – olh’alegre, justo inteligentudo – calibre de quilate de caráter. Bom até-onde-que, bom como cobertor, lençol e colcha, bom mesmo quando com dor de cabeça: bom, feito mingau adoçado. (p. 197). Movendo-se nas dobras da linguagem com uma liberdade limitada por uma aparente pobreza vocabular, Jimirulino toca os limites de seu lugar de origem como se fosse também desse lugar prisioneiro. A sugerida espontaneidade de seu discurso provoca o riso, porque também nos conduz ao deslocamento do conteúdo para as formas exteriores de sua expressão. Ele fala de sua afeição pelo Doutor Mimoso por meio de figuras semelhantes à catacrese, criando configurações especiais de uma arbitrariedade necessária, a fim de ligar o signo lingüístico às construções de suas lembranças. Jimirulino passeia sem preconceitos e, às vezes, sem princípios, entre o kitsch e o sublime, entre sacrifícios sublimes e baixarias, talvez, a fim de justificar sua homoafetividade viril e pacificar as tensões que intermedeiam suas “saudades”. Se, com o sublime, tentará explicar sua afetividade, com a lembrança das baixarias (dos três assassinatos) não justificará sua virilidade nem pacificará as inquietudes que o ligam a “um certo Doutor”. Com esses excertos de Tutaméia, destacamos na linguagem que marcaria o intervalo entre o concreto e abstrato, entre o cômico e o excelso, o questionamento da eficácia das palavras, no mundo de signos que nos cerca. Pode-se saltar do discurso micrológico ao poético-filosófico, sem passar pelos adornos da retórica. Pode-se zombar do convencional que baliza os deslocamentos das palavras para as coisas e vice-versa, nas interações mediadas pela linguagem no dia-a-dia: poética e anedótica. Essa possibilidade mobiliza, no signo verbal, a multiplicidade dos significados que o precedem e o sucedem 198 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ad infinitum. Retornamos às palavras de Benedito Nunes: “Tutaméias não existem por si. São episódios de divina e altíssima comédia, mito em que nos compreendemos sem nada compreender” (NUNES, 1976, p. 210). REFERÊNCIAS BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. 105 p. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da língua portuguesa. 2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. NUNES, Benedito. Tutaméia. In: NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 203-210. PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero F. de Andrade. São Paulo: Ática, 1992. 215 p. ROSA, João Guimarães. Tutaméia (terceiras estórias). 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 227 p. SILVA, Paulo Muniz da. A micrologia do cotidiano em Tutaméia. 1994. 27 f. Monografia (Graduação em Letras-Português) – Departamento de Línguas e Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1994. Recebido em 02/08/2008 Aprovado em 10/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 199 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA EM CÁRCERES DE PREENCHIDO SILÊNCIO, VOZES ENTRECRUZADAS: UM ESTUDO DO CONTO “QUADRINHO DE ESTÓRIA” DE GUIMARÃES ROSA Sara Novaes Rodrigues Ufes Resumo: A leitura do conto “Quadrinho de estória”, de Guimarães Rosa, traz um personagem múltiplas vezes encarcerado e totalmente imerso em recordações do passado. Que ecos ressoam dentro dos limites do conto? Este trabalho propõe uma análise do texto em questão, em busca de respostas que dêem conta dessas e outras indagações suscitadas pelo próprio texto e seu personagem central. Palavras-chave: Personagem. Vozes. Diálogo. Cárcere. Leitura. Abstract: The short story “Quadrinho de estória”, by Guimarães Rosa, has a character who is incarcerated and lives totally immersed in memories of the past. What echoes sound within the limits of his cell and the story? This paper analyses the text in search for answers to this and other question that might arise from the reading. Keywords: Character. Voices. Dialogue. Reading. Discutir Guimarães Rosa é sempre um prazer, só suplantado por outro: o da leitura de suas obras. Escolher um de seus textos para estudo, porém, é mais do que difícil: é um desafio. Na verdade, ler Rosa é vivenciar um jogo especial da linguagem, criado por um mestre na arte de narrar. Esta leitura se justifica, no entanto, na esperança de que o atalho selecionado para as reflexões propostas não se afaste de teorias e/ou interpretações de outros estudiosos, ou que, mais ambiciosamente, traga 200 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO novas possibilidades à cena. Feita a seleção do conto, “Quadrinho de estória”431 (ROSA,1985, p. 138-141), busco, inicialmente, algumas considerações sobre o gênero narrativo em questão e destaco, de início, um trecho do pensamento de Júlio Cortázar (CORTÁZAR, 1974, p. 1512), que diz ver o conto, em sua forma fechada, como uma esfera em que “a situação narrativa em si deve nascer e dar-se (...) como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão.” Em “Quadrinho de estória”, a tensão nasce do não dito, daquilo que o autor apenas sugere, deixando ao leitor a oportunidade de criar sua própria narrativa. É oportuno, também, destacar a noção de demarcação de limites, que se revela crucial para a análise proposta. A sensação de cárceres múltiplos, de espaços cercados, é sugerida pelo próprio título do conto, que já insinua a idéia de moldura e seqüência de imagens. A leitura atenta capta termos que remetem a desenho, quadros e fotografias. Junto com alusões ao teatro, esses termos se combinam na formação do enredo, que vai aqui resumido: um encarcerado se debate entre recordações do passado ao ver, “de seu caixilho de pedra e ferro”, a imagem de uma “qualquer mulher que agora vem e está passando é uma de vestido azul, por exemplo, nova, no meio do meio-dia, no foco da praça.” Por trás das grades, ele a observa sob os efeitos da lembrança de outra mulher, uma que se vestia de vermelho. Num poste em frente, uma aranha verde tece uma teia na lâmpada. Segundo Arlindo Machado (MACHADO, op. cit., p. 45), “(...) seja qual for o referente que a motiva, [a fotografia] é sempre um retângulo que corta o visível.” Em “Quadrinho de estória”, somos guiados pelo autor como se alguém nos mostrasse fotografias ou como se obedecêssemos às rubricas de um diretor que, sem deixar que o espectador perceba a 43 As citações não acompanhadas de referências são frases do conto em estudo (conf. bibliografia). 1 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 201 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA sua presença, organiza um palco para obtenção do melhor efeito. Desses recortes entrevistos, desses detalhes que vão sendo acrescentados ao desenho, então, é que surgem as possibilidades de sentido, ou seja, as interpretações. Que imagens formam narrativas (LOOMIS, 2003, p. 8), prova-o bem o texto de Guimarães Rosa. De quadro em quadro, a estória flui através da sintaxe e dos vocábulos característicos do mestre mineiro. O foco principal não abandona o personagem central, mesmo quando luzes secundárias destacam este ou aquele detalhe, confirmando o que se lê em Arlindo Machado (op. cit., p. 29): [t]oda visão pictórica, mesmo a mais ‘realista’ ou a mais ingênua, é sempre um processo classificatório, que joga nas trevas da invisibilidade extra-quadro tudo aquilo que não convém aos interesses da enunciação e que, inversamente, traz à luz da cena o detalhe que se quer privilegiar. O “início de uma narrativa é sempre arbitrário” (LOOMIS, p. 10) e Rosa escolhe iniciar seu relato ao meio-dia. Tarde, noite e amanhecer, completam o círculo temporal da estória, fadado a se repetir a cada leitura. Os quadros, feitos de fragmentos de “realidade” e lembranças, unem-se, então, na elaboração do enredo. Contrapondo o confinamento do homem à vida fora dos muros da prisão, o autor constrói um ambiente repleto de reflexões psicológicas e filosóficas tais como: “A vida, sem escapatória, de parte contra parte”; “(...) nem pode sozinho lembrar-se, sufoca-o refusa imensidão, o assombro abominável”; “Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente”, “Sejam quais o sol e céu, a palavra horizonte é escura” ou, ainda, a frase que conclui o conto: “A liberdade só pode ser um estado diferente, e acima. A noite, o mundo, rodam com precisão legítima de aparelho.” Silencioso, o personagem ocupa um centro de limites bem demarcados: autor, forma e enredo se sobrepõem e o cercam. O primeiro, demiurgo, cria-o já julgado e culpado, condenado 202 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ao silêncio a ao turbilhão da memória. A segunda, a forma narrativa, localiza-o no centro de um conto. Cárcere de tamanho variável, o conto é recorte, é um contorno a mais ao redor de um flagrante especial da vida (GOTLIB, 1998, p. 82). O enredo, por sua vez, fornece-lhe apenas um pedaço dessa existência. Do antes e depois, sabe-o mais o leitor, que infere, preenchendo os vazios, de acordo com seu próprio momento. Mikhail Bakhtin (2000, p. 32-3) nos lembra que o autor é o “depositário do todo do herói e o todo da obra.” Ele é a consciência de uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo (...). Ele vê e sabe tudo quanto vê e sabe o herói em particular e todos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe mais do que eles, vendo e sabendo até o que é por princípio inacessível aos heróis; é precisamente esse excedente, sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o saber do autor, em comparação com cada um dos heróis, que fornece o princípio de acabamento de um todo – o dos heróis e o do acontecimento da existência deles, isto é, o todo da obra. Ao optar pelo conto, o autor sabe da exigüidade de tempo e espaço à sua disposição. E mais, sabe que é preciso condensar ali a linguagem exata, justa, mágica, que transcenda seus próprios limites a fim de libertar-se nas dobras reflexivas das entrelinhas. Fixado num tempo privado de esperança, o encarcerado se vê agrilhoado a um momento de sua história. Vê-se em Bakhtin (p. 33) que “[o] interesse (ético-cognitivo) que o acontecimento apresenta para a vida do [personagem] é englobado pelo interesse que ele apresenta para a atividade artística do autor.” Assim, ao selecionar os acontecimentos que servem de cenário ao conto, Guimarães Rosa desenha mais um círculo ao redor do prisioneiro, dando-lhe apenas memórias despertadas pela visão de uma mulher vestida de azul. Diferente da passante Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 203 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA baudelairiana, que faz o poeta viver uma grande história de amor, a mulher na rua traz , além de tudo, a recordação do ato que o colocou ali, entre quatro paredes. É também Bakhtin (op. cit., p. 33) quem lembra que o texto é muito mais do que se vê; que há, entre suas linhas, um cruzamento de vozes que transcende forma e enredo, e o enriquece infinitamente. No ambiente do conto rosiano, o silêncio predomina. Sons, só os que vêm do mundo lá fora e da voz maquinal de um carcereiro que não completa suas frases. Diálogos, porém, realizam-se no interior do texto. Em primeiro lugar, pode-se reafirmar o do próprio autor com a fotografia e com o desenho. Rosa já o aponta no início do conto quando usa termos que remetem ao sentido da visão em frases do tipo “foco”, “apreende”, “demarcada”, “pessoa sozinha numa página”, “encentrada, em moldura”, “A figura no tetrágono” e tais expressões continuam aparecendo ao longo do texto: “descontornada”, “perímetro de sua visão”, “retrato em branco”, “A pequena fenda na parede seqüestra uma extensão, afunda-a, como um óculo: alvéolo.”, “o vão por onde vê, recorta pedaço de céu”, “Seu cluso é uma caixa, com ângulos e faces” ou, ainda, “O sol (...) invade a quadrada abertura por onde ele é avistado, e vê, fenestreca.” Diante de fotografias, diz Arlindo Machado (p. 52), esquecemonos que “apenas simbolicamente penetramos o espaço da imagem.” O nosso olhar é o de quem vê do exterior, quem só pode julgar a partir de suas próprias experiências. A grande diferença, porém, é que ao leitor só é dado a ver aquilo que o autor julga essencial para aquela narrativa. O diálogo leitor/ texto, assim, é sempre mediado pela criação e realizado pela interpretação. Vale apontar, também, a interação entre o próprio personagem com suas lembranças. Nesse espaço, tecem-se considerações em que se filtram idéias sobre a vida – às vezes em forma de aforismos – como nas frases: “uma cadeia é o contrário de um pombal; recorde, aos despreocupados, em rigor, a verdade”; “A 204 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO liberdade só pode ser um estado diferente, e acima”, ou ainda: “(...) chorar seria como presenciar-se morrer.” É preciso não se esquecer da interface com a sabedoria popular representada por provérbios que o autor modifica: “mãos vazias e pássaro voando”, “Seja tudo pelo amor de viver”, “O sol morre para todos”. Ainda outros diálogos podem ser encontrados à medida que a leitura prossegue. O teatro, como já foi dito, revela-se tanto pela maneira como o narrador arruma as cenas da estória, quanto em frases como: “o plano por onde as pessoas desaparecem, imediatas”, “descortinado”, “o todo teatro”. Nesse espaço, também ressoam alusões a Nelson Rodrigues: no próprio enredo – um homem recorda uma mulher que pode ter sido assassinada num ato apaixonado – e na frase “A vida como não a temos”, em que ecoa uma referência aos contos rodrigueanos publicados em sua coluna “A vida como ela é”, publicada pelo jornal carioca “Última Hora”, entre 1951 e 1961. Nesses contos, as histórias passionais predominavam. Vê-se, ainda, a possibilidade de se apontar a intertextualidade com a tragédia shakespeariana, Othelo, em que, num arroubo extremo de ciúme, o personagem mata a sua mulher, Desdêmona. Retomando um atalho já delineado anteriormente, volto ao diálogo com Charles Baudelaire (1821–1867) que, segundo Walter Benjamin (1975), foi um grande observador das multidões nas ruas. Também o personagem de Rosa observa os que passam em frente à sua janela. Destacam-se, como exemplo, as frases: “Surgindo e sumindo-se rua andantes vultos, reiterantes”, “menino, valete, rei; pernas, braços balançantes, roupas; um que fulanamente por acaso se parece; o que recorda não se sabe quando e onde; o homem com o pacote de papel cor-de-rosa. Ora – ainda uma mulher. A figura do tetrágono.” A lista dos diálogos/interfaces/polifonias poderia se estender ainda mais se fossem trazidas ao quadro as ideologias, as instituições sociais, as tensões entre os gêneros feminino/ Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 205 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA masculino, entre outros. A exigüidade de tempo e espaço, entretanto, também recorta e limita o estudo. O que se conclui é que, ao colocar todas essas questões no interior de suas molduras, Guimarães Rosa se revela grande fotógrafo, ou desenhista, ou diretor. Sua pena é sua tecnologia e sua escritura é sua voz. Sob seus traços, letras ganham vida, palavras ganham movimento, textos extrapolam os contornos das páginas, criando sentidos que, uma vez grafados, aguardam a chance de libertação através da leitura. Referências BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 421 p. BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p. CORTÁZAR, Júlio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. 255 p. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 8a ed. São Paulo: Ática, 1998. 95 p. LOOMIS, Burdett. “Collecting and Collections: Interdisciplinary Perspectives”. Trabalho apresentado no Humanities Colloquium, Hall Center, em16 de outubro de 2003. 27 p. MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. Uma introdução à fotografia. 2a ed. São Paulo, 1988. 121 p. ROSA, João Guimarães. “Quadrinho de Estória” in ROSA, João Guimarães. Tutaméia. 11a impressão Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 138-141. SHAKESPEARE, William. The Library Shakespeare. Londres: Trident Press International, 1999. 476 p. Recebido em 12/07/2008 Aprovado em 10/08/2008 206 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O SERTÃO INTERTEXTUAL DE GUIMARÃES ROSA Virgínia Cœli Passos de Albuquerque Ufes Resumo: João Guimarães Rosa, em carta escrita ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, afirma que a novela regionalista “Dão-lalalão” foi a única vez em que recorreu a processos intertextuais. Neste artigo, propõe-se analisar as referências indicadas pelo escritor, com a hipótese de que os personagens Soropita e Doralda constituem-se precisamente por meio do diálogo entre textos, na perspectiva bakhtiniana da “carnavalização”. Palavras-chave: Carnavalização. Sagrado. Profano. Abstract: João Guimarães Rosa, in a letter written to the Italian translator Edoardo Bizzarri, says that in the regional novel “Dão-Lalalão” it was the only time he made use of intertextuality. This article aims to analyze the references mentioned by the writer, having in mind the hypothesis of what the characters Soropita and Doralda turn themselves in what they are exactly through the dialog between texts, in the perspective bakhtinian of “camivalization”. Keywords: Carnivalization. Sacred. Profane. A novela “Dão-Lalalão”, de Guimarães Rosa, possui estrutura narrativa básica e linear: no sertão de Minas Gerais, Soropita e Doralda vivem uma história de amor. Os personagens, vivificados pela linguagem peculiar desse lugar quase-sagrado que é o sertão de Guimarães, resvalam para algo mais. Talvez o leitor nem perceba o palimpsesto que é “Dão-Lalalão”. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 207 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA O escritor, generoso, deixou pistas, a começar pelo título, lembrando a parlenda brasileira Bão-balalão / Senhor capitão / Espada na cinta / Ginete na mão. O curioso é que na sexta edição de Corpo de baile, publicada pela Editora José Olympio, a novela também aparece sob a denominação de Lão-dalalão. Variações sobre um mesmo tema? Erro gráfico? Ou deslize (diria Lacan, deslocamento do significante)? A resposta vem do próprio Guimarães, que assim instrui seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, em correspondência por eles trocada, sobre “Dão-Lalalão”: Diluídas, aliás, nas páginas 537/540, perpassa uma espécie de paráfrase do “Cântico dos Cânticos” (BIZZARRI, 1973). Essa informação preciosa do novelista permite desenvolver a perspectiva aqui proposta, sem muito esforço para comprovação: ver o sertão como espaço intertextual em que se configuram as relações amorosas entre os personagens Doralda e Soropita. Doralda – ex-prostituta – e Soropita – ex-matador – vivem um história de amor que sublima o passado escabroso de ambos. Nessa sublimação, que redime o que é profano em seus personagens, o escritor opera com a tradição cultural do Ocidente por meio de grandes obras: a Bíblia, a Divina Comédia e as novelas de cavalaria. Aqui interessam a descrição de Doralda, com a apropriação de imagens bíblicas, e a composição do cavaleiro apocalíptico Soropita, com seu cavalo Caboclim, tornado Apouco, quando a transfiguração provocada pelo ciúme diante do suposto rival o aproxima também do cavaleiro medieval. Por causa dessa convergência de textos apropriados, o sertão se carnavaliza. O tema é eterno, entretanto em “Dão-Lalalão” o ambiente é o sertão, mundo representado pelo narrador, dialogando também com a tradição do código de honra do cavaleiro medieval, presente nas novelas de cavalaria de origem portuguesa, gênero com que a novela rosiana também dialoga. A desonra, em “Dão-Lalalão”, pode surgir a qualquer momento da memória, daquele tempo quando Doralda recebia homens, na casa de onde Soropita a tirou para ser sua amada pelas bandas do Andrequicé. O epílogo retoma o tema do ciúme, quando 208 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Soropita vence as trevas para submeter a besta e perdoar o negro Eládio. Merece um artigo à parte a relação textual entre A divina comédia e o inferno interior vivido pelo personagem. A DESCRIÇÃO DE DORALDA E O CÂNTICO DOS CÂNTICOS Mas Doralda estava ali, substância formosa a beleza que tem cheiro, suor e calor. (D, 85) Doralda é a mulher sempre presente na vida de Soropita, mesmo na ausência. Sucena, Dadã ou Garanhã – seus outros nomes são ora esquecidos, ora lembrados no reino interior de Soropita. Ele e o narrador de sua história vêem, cheiram e materializam a beleza de Doralda. A preferência de Soropita pelo nome Doralda pode se justificar pelo anagrama dourada aí contido. Quando ele a conheceu, davam-lhe o nome de Sucena. Açucena – poesias desmanchadas no passado – é a outra, a do passado. Eu sou o narciso de Naron, o lírio dos vales. Sim, como lírio entre espinhos é, entre as jovens, a minha amada. (CC 2, 1-2)44* Sucena é uma clara alusão ao Cântico dos Cânticos, em que a amada se compara a uma tenra flor, dando ocasião ao amado de elogiá-la. O Cântico, apócrifo, de autoria desconhecida, às vezes erroneamente atribuído a Salomão, é considerado pelos teólogos como um poema lírico, compreendendo cantigas de amor dialogadas e descrições líricas. As comparações são pitorescas e sugestivas. Traçam-se caminhos sensoriais por campos, jardins e pomares, sob ar primaveril, onde 44 Doravante as citações do Cântico dos Cânticos serão acompanhadas pelas iniciais maiúsculas e pelo número do capítulo separado por vírgula do(s) número(s) do(s) versículo(s). As citações de “Dão-Lalalão” serão seguidas pela inicial maiúscula e pelo número da página. * Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 209 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA proliferam árvores e plantas exóticas; aspira-se o perfume das flores, ouve-se o arrulho das pombas junto aos rios; vêem-se gazelas saltando pelos campos ou pastando entre lírios, cabras esparramando-se pelo monte Galaad. O ambiente erótico-amoroso do Cântico é transposto para “Dão-Lalalão” com essa perspectiva: Soropita ama Doralda a tal ponto que seus sentimentos cheiram a brilho e brilham a cheiro. Transformam-se em sentidos: Do cheiro mesmo, de Doralda, ele gostava por demais, um cheiro que ao breve lembrava sassafrás, a rosa mogorim e palha de milho viçoso; e que se pegava, só assim, no lençol, no cabeção, no vestido, nos travesseiros. (D, 17) Soropita capta sons e cheiros pelo apurado olfato e refinada audição. Os cinco sentidos entrelaçam-se para apreender o fulgor da imagem amada. Doralda lá, esperando querendo seu marido chegar, apear e entrar. Ao que era, um pássaro que ele tivesse, de viável desejo, sem estar engaiolado, pássaros de muitos brilhos, muitas cores, cantando alegre, estalável, de dobrar. (D, 25) Os cheiros vegetais constituem-se mais que o próprio ambiente; funcionam mesmo como uma espécie de osmose, as forças da terra estendendo-se ao corpo amado. A presença de Doralda – como o cheiro do pau-debreu, que chega de extenso do cerrado em fortes ondas, vagando de muito longe, perfumando os campos, com seu gosto de cravo. (D, 87) Cheiro do pau-de-breu e perfume com gosto de cravo: essa imagem sinestésica realiza poeticamente o telurismo presente nesses personagens, ambientados na região rural. Nas pequenas banalidades, Soropita absorve Doralda, ao transformar as atitudes corteses em carícias eróticas à amada. Como cavaleiro 210 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO cortês, o homem, talvez pelo intenso relacionamento com mulheres da comédia, mantivesse o voto de castidade quanto ao beijo. — “Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você tinha escrúpulo de tomar? Você gosta de mim de todo o jeito?” Asco nenhum. O cuspe dela ao beijar, tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira. Antes nem depois. Soropita nunca tinha beijado em boca outra mulher nenhuma. Nem comer comida babujada. Voltar para a casa, as horas correndo bem, era o melhor que havia. (D, 18) Esse final do décimo primeiro parágrafo de “Dão-Lalalão” trata da importância do olfato e do gosto para Soropita perceber Doralda. Apreciador dos bons cheiros silvestres, ele é capaz de distinguir os aromas, sendo o de Doralda o mais impregnável. O cuspe da mulher ganha estatuto de seiva – animal e vegetal – confirmando o telurismo dos personagens. Essa imagem remete ao beijo dos noivos bíblicos: Teus lábios, minha noiva, destilam / néctar; / em tua língua há mel e leite. / Tuas vestes têm a fragrância do / Líbano. (CC 4, 11). Soropita absorve o cuspe de Doralda como mel e leite – tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro. Mel tem pepego e o focinho de bezerro cheira a leite. À força lírica do Cântico opõe-se o terror da babilônica besta, a grande prostituta. No desenrolar do enredo, há uma cena em que Soropita e Doralda hospedam Dalberto. A mulher volta arrumada para a sala após o jantar. Fumam e bebem. Soropita podia se penetrar de ânsias, só de a olhar. Sobre de pé, no meio da sala, era uma visão: Doralda vestida de vermelho, em cima das Sete Serras, recoberta de muitas jóias, que retiniam, muitas pérolas, ouro, copo na mão, copo de vinhos e ela como se esmiasse e latisse, anéis de ouro naquelas especiosas mãos, por tantos sugiladas Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 211 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA tanto, Doralda vinha montada numa mula vermelha, se sentar nua na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela estava bêbada; e em volta aqueles sujeitos valentões, todos mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria ver... (D, 18) Essas imagens sobrepostas da mulher amada, ora ornamentada, ora nua, ora zooformizada, comprovam a dimensão profana, babilônica, da prostituta – montada numa mula vermelha, se sentar nua na beira das águas. A prostituta do Apocalipse também aqui produz efeitos carnavalizados, nessa paródia do Cântico. A inserção do profano no poema bíblico deve-se a esse contexto imagético, em que a mulher aparece divinizada na expressão amorosa do Cântico e diabólica na sua relação com Babilônia, a Grande Prostituta do Apocalipse, cercada de corpos que Soropita não queria ver. Embora Doralda saiba comportar-se e fazer-se respeitar, não perde a faceirice de sua época de Sucena. Também no Cântico vê-se a alusão à mulher perdida, adequada para o personagem. Mas, Bem, aqueles logo vieram... Aí eu era muito freguesada, Bem, era uma das que eles apreciavam mais... Ah, uma pode errar de boiada, por ir-se atrás de boiadeiro... (D, 75) Ora, Doralda abandona sua vida desgarrada para ir atrás do boiadeiro – seu Bem. No Cântico dos Cânticos, a noiva quer saber onde está o noivo, para não parecer mulher perdida. A relação entre os dois textos aponta uma pequena diferença: no contexto bíblico, a mulher não quer parecer prostituta; no contexto narrativo, a mulher deixa de ser prostituta. As duas, no entanto, carecem do amado. A amada assim se dirige ao amado: Indica-me, amor de minha alma, / onde pastoreias? / Onde fazes repousar teu rebanho ao / meio-dia? / Para eu não parecer uma mulher / perdida, / seguindo os rebanhos de teus / companheiros. (CC 1, 7) A tensão entre o texto bíblico e o narrativo se sustenta à 212 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO medida que, como mulher perdida – a profana –, Doralda é exaltada por Soropita da mesma forma que o homem louva a amada no Cântico. Para melhor compreensão da paródia do texto sagrado, necessário se faz indicar nos dois textos as semelhanças (Quadro 1). Essas intertextualidades, divisória contemporânea entre a univocidade (monologismo) e a multiplicidade de vozes de um texto (dialogismo), tornase um fenômeno visto dentro do conceito de carnavalização. Segundo Bakhtin, a carnavalização da literatura é a transposição do carnaval para a linguagem da literatura. Para o mesmo autor, o carnaval é uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada. (...) criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. (BAKHTIN, 1981) E mais: Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos; no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. [Grifo meu] (BAKHTIN, op. cit.) No texto rosiano, além das imagens sinestésicas que descrevem Doralda – as formas concreto-sensoriais simbólicas –, a paródia do texto sagrado corresponde a uma categoria da carnavalização a que Bakhtin denomina profanação: sacrilégios, indecências carnavalescas, relacionadas com as forças produtoras do corpo e da terra, pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas. (BAKHTIN, op. cit.). Doralda – égua, vaquinha, veada – inscreve-se assim como personagem. Representa o par santa/prostituta, já estudado por Affonso Romano de Sant’Anna na poesia de Manuel Bandeira. Em “Dão-Lalalão”, a descrição da mulher se estrutura do ponto de vista do amado, não obstante ser dividido porque Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 213 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA ela reúne as características do eterno feminino, a Grande Mãe cindida entre o céu e a terra. A propósito, o leitor só conhece Doralda pelo olhar de Soropita e pelos diálogos travados entre os dois; em nenhum momento o narrador representa os pensamentos femininos. Mesmo assim, o amor de Doralda se revela tão intenso quanto o de Soropita e essa reciprocidade retoma o mito do andrógino, da eterna procura do ser humano pela continuidade no outro. Ou então, aquilo que Doralda tinha falado, mais de uma vez, muito falava: – “Bem, eu acho que só ficava sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse estar grudada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos...” (D, 80) Segundo Mircea Eliade, ao analisar os mitos andróginos em várias religiões, desde as mais complexas e evoluídas até as presentes nos povos de cultura arcaica, a androginia era, por excelência, a forma da totalidade. Platão, Filon de Alexandria, os teósofos neoplatônicos e neopitagóricos, os hermetistas ou os inúmeros gnósticos cristãos concebiam a perfeição humana como unidade sem fissuras. Esta, aliás, não passava de um reflexo da perfeição divina, do Todo-Um (ELIADE, 1991). Na perspectiva dessa concepção, interessa a idéia de totalidade, uma vez que a imagem de Doralda comporta essa coincidentia oppositorum, a reunião dos contrários, a totalização dos fragmentos. Doralda reúne em si Deus e o Diabo, a santa e a prostituta, o céu e a terra, o vale e o abismo. Por fim, também quer formar um só corpo com Soropita, nesse ideal andrógino de totalidade, semelhante às primitivas concepções cosmogônicas. A androginia é aqui referida pelo ideal de retorno à totalidade primordial, antes da separação entre Caos e Cosmos, terra e céu, luz e trevas. 214 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O CAVALEIRO MEDIEVAL E SUA ARTICULAÇÃO COM O APOCALIPSE EM “DÃO-LALALÃO” “P’ra o certo e o duvidoso...” Soropita - o rei nas armas. (D, 73) Já foi observada, em outros estudos, a semelhança entre o jagunço e o cavaleiro medieval europeu. Grosso modo, Leonardo Arroyo aponta algumas características dessa semelhança: ignorância da origem; exaltação da paixão amorosa; estilo sentencioso; castidade (ARROYO, 1984). A saga de heróis de cavalaria apresenta traços comuns, desde Tristão, Lançarote e Galaaz até Amadis de Gaula, segundo o princípio de que a cavalaria nasceu de dois ideais opostos: a caridade do cristão e a força do guerreiro, resultando, portanto, do acordo entre as duas categorias - a do guerreiro com o cristão (ARROYO, op. cit.). Alguns traços medievais podem ser identificados na história de Soropita – rei nas armas. Do passado de Soropita, sabese da boa pontaria e constante belicosidade, das mortes, das mulheres. De sua família nada se sabe. Além disso, ao encontrar o amor, deixa-se levar pela paixão, travando no seu interior uma batalha entre o bem e o mal, entre a confiança e os ciúmes. Soropita, além disso, é capaz de matar aquele que ousar desrespeitar sua amada. Há outro acontecimento que auxilia na composição do ambiente: a forma de transmissão oral funciona como miseen-abîme. A novela dentro da novela reproduz a temática do amor. É hábito entre os moradores do Ão ouvir o relato da novela recontado por Soropita. A novela: ... o pai não consentia no casamento, a moça e o moço padeciam. Todos os do Ão desaprovavam. O Erém tinha lágrimas nos olhos. (D, 56) As novelas de cavalaria também eram relatos populares, conservados pela memória coletiva. Isso também se dá Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 215 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA na narrativa em questão: Soropita, Doralda, Dalberto, os demais personagens, o narrador, todos guardam as marcas da oralidade, chegando mesmo a tanger no gênero épico, como na literatura de cordel. Com o advento dos modernos meios mecânicos, a tradição oral foi substituída por capítulos para milhões de telespectadores. O gosto por telenovela provavelmente decorre dessa prática primitiva de transmissão cultural. Em “Dão-Lalalão”, a maior parte dos preceitos morais também se transmitem pelas leis consuetudinárias, ampliando a importância da tradição oral no sertão mineiro. Mas a influência das novelas de cavalaria torna-se mais evidente na composição do caráter de Soropita. Soropita é o cavaleiro andante do sertão. É-lhe aprazível andar entre o Ão e o Andrequicé toda a semana, para compensar sua vida agora enraizada ao lado de Doralda. Além disso, pensa, de vez em quando, manter abstinência sexual, caracterizando o voto de castidade do guerreiro medieval. A fidelidade a Doralda, outro traço do personagem, também é herdada do cavaleiro andante. Por fim, acrescente-se a consagração da força, como o patamar em que se imbricam o jagunço e o cavaleiro, ressoando o código da cavalaria. Segundo Teófilo Braga, foi característica fundamental da Cavalaria alta inspiração de justiça misturada com os ímpetos individuais da arbitrariedade (ARROYO, op. cit.). Soropita congrega essa concepção de justiça e arbitrariedade. Mesmo os homens que mata não são chorados pela comunidade da região, apesar da reação impetuosa e violenta do executor. Essa imagem de Soropita se intensifica quando ele sai em busca do negro, a fim de matá-lo. E aí surge um “outro” sertão – o místico, o medieval –, no que concerne à magia dos números. O número dezenove pode ser considerado cabalístico, portador de magia e superstição: Seus olhos viam fogo de chama. E calcou mais na cabeça seu chapéu-de-couro, chapéu com nove letras dezenove, nove - tapatrava. (D, 86) 216 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O próprio escritor indica a Edoardo Bizzarri: Em todo caso: no sertão, onde, como Você está sentindo e vendo, a magia é inseparável de todos os aspectos da vida, os valentões costumam às vezes trazer letras, cabalísticas escritas, digo, gravadas, no chapéude-couro, ou em papeizinhos enfiados no respectivo forro; para virtudes várias, proteção perante o destino. No caso do Soropita: o “dezenove, nove” é alusão “apocalíptica’, a trecho do próprio Apocalipse. (BIZZARRI, op. cit.) Então, lê-se no Apocalipse, no capítulo 19, que descreve a queda da Babilônia pelo Cordeiro de Deus: Seus olhos são como chamas de fogo, traz na cabeça muitos diademas e tem um nome escrito que ninguém conhece, só ele mesmo. (Ap 19, 12) A palavra trapatava adquire, nessa perspectiva, uma dimensão misteriosa, cabalística, a respeito da qual nem mesmo o nosso Soropita quererá explicar nada (BIZZARRI, op. cit.). Essa palavra mágica, portanto, é a chave para entrar-se no nível em que o Apocalipse e as novelas de cavalaria se encontram. O sincretismo religioso – carnavalizado – se apresenta nessa junção, aliás o mesmo que caracteriza o cavaleiro andante. O ideal de castidade do cavaleiro medieval conjuga-se ao ideal de divinização do par humano, já visto na análise paralela ao Cântico dos Cânticos. Novamente, com o apoio do texto apocalíptico (Quadro 2), a figura do herói transfigura-se em rei, em senhor, rei dos reis. As duas forças antagônicas se confrontam: o bem e o mal, o rei e a besta, o deus e o diabo, o branco e o preto, o amor e o ódio, o fidalgo e o plebeu. Enfim, esse binarismo de origem cristã promove a tensão do texto narrativo: as novelas de cavalaria, com sua herança de heróis guerreiros, de um lado; de outro, o texto apocalíptico para avivar ainda mais esse conflito. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 217 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Há outro índice da ética medieval presente no texto em questão: o perdão. Soropita que, sai à procura de Iládio para perpetrar seu ato de vingança, ouve a súplica do negro: - Tou morto, tou morto, patrão Surrupita, mas peço não me mate, pelo ventre de Deus, anjo de Deus, não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada!... Tomo bênção... Tomo bênção... (D, 87) Ao suplicar por sua vida, o negro Iládio recorre ao código da cavalaria: quem mercê pede, mercê alcança. Mais do que vencer uma luta, Soropita vence as trevas. Coração da gente - o escuro, escuros. Portanto, a carnavalização presente no texto narrativo é garantida por essa mistura de códigos e gêneros. O aspecto profano dos dois personagens dialoga sempre com a dimensão sagrada dos textos parodiados, elevando as categorias dos personagens dentro do ambiente carnavalesco: a prostituta e o matador são agora divinizados. O SERTÃO DE DORALDA E SOROPITA Guimarães Rosa, na correspondência com Bizzarri, utiliza os seguintes termos: paráfrase, alusão, projeção, impregnação, inoculação, ressonância; usou termos diferentes para explicar a câmara de ecos de que resultou “Dão-Lalalão”. Neste artigo, adotou-se o uso do termo paródia no sentido dado por Bakhtin, em que textos sagrados são dessacralizados. Sem querer forçar o enquadramento de uma análise textual a partir de um modelo pré-concebido, preferiu-se verificar como o texto se compôs dentro das categorias da carnavalização. A diluição dos limites entre vulgar e sublime, presente na carnavalização, repete-se na diluição dos limites entre os gêneros. Aristóteles, em sua Poética, atribuiu a origem da paródia, como arte, a Hegemon de Thaso (séc. 5 a. C.), porque ele usou o estilo épico para representar os homens não como superiores, mas como inferiores (SANT’ANNA, 1985). Portanto, é no sentido de dessacralização – profanação – 218 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO que “Dão-Lalalão” se estrutura como paródia. As epígrafes remetem a Plotino, de onde se extraem duas anotações filosóficas: a vida como teatro, a vida como dança. Por aí começa a carnavalização. A novela passa a ser poema, todo enfeitado com as marcas da tradição. A carnavalização de gêneros possibilitou, além da profanação do texto bíblico, a mésalliance (o casamento de uma prostituta com um valentão, proibido pela doxa), na criação dos personagens. A forma como Soropita vê a amada – a mulher amada do Cântico e a Babilônia do Apocalipse – reflete essa duplicidade: nua, sobre animal vermelho, sempre à deriva, cercada de jóias e mortes. Portanto, excêntrica com relação a qualquer norma social. Também com relação a Soropita dá-se o mesmo. Conjugando o guerreiro e o religioso, ele age com ímpeto de arbitrariedade quando decide matar Iládio. Ao mesmo tempo, “impregnado” pela descrição do anjo apocalíptico, Soropita eleva-se à condição de um deus, de Rei dos reis, para representar a nobreza do jagunço. Aí a paródia também se configura. Como última citação, o comentário de Guimarães Rosa: Voltando ao “Dão-Lalalão”, isto é, aos curtos trechos em que assinalei as “alusões” dantescas, apocalípticas e cântico-dos-canticáveis. (ALIÁS, é apenas nessa novela (“Dão-Lalalão”) que o autor recorreu a isso.) Como Você vê, foi intencional tentativa de evocação, daqueles clássicos textos formidáveis, verdadeiros acumuladores ou baterias, quanto aos temas eternos (BIZZARRI, op. cit.) Mais adiante, acrescenta: E para funcionar, apenas, em passagens de ligação, como coloração do pano-de-fundo (BIZZARRI, op. cit.). O escritor mostra intertextualmente que o amor entre um bandido e uma prostituta é o mesmo amor entre um rei e uma rainha, entre um nobre e uma dama, que se buscam com o mesmo fim: encontrar a continuidade perdida, aquela Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 219 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA de quando o universo não fazia diferença entre céu e terra, luz e trevas, bem e mal. Guimarães Rosa, nessa narrativa de “Dão-Lalalão”, ilumina o leitor e, conscientemente, envia-o para os textos canônicos de nossa cultura. Quase envergonhado, “confessa” as apropriações a seu tradutor, mas consegue disfarçar o roubo nos entremeios de sua criatividade lingüística, ou, porque não dizer, da alma carnavalizada do brasileiro. REFERÊNCIAS ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas: filiações e sobrevivências tradicionais, algumas vezes eruditas. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1984. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. BÍBLIA sagrada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982. BIZZARRI, Edoardo. J. Guimarães Rosa: correspondência. São Paulo: Ed. Pedagógica Universitária, 1973. ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. São Paulo: Martins Fontes, 1991. ROSA, João Guimarães. “Dão-Lalalão”. In: Noites do sertão. 12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. 2.ed. São Paulo: Ática, 1985. SANT’ANNA, Affonso Romano de. “Manuel Bandeira: do amor místico e perverso pela santa e a prostituta à família mítica permissiva e incestuosa.” In: O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. 220 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Quadro 1 “Dão-Lalalão” Cântico dos cânticos - Até o nome de Doralda, parece que dá um prazo de perfume!... Roda das flores - da flor de toda cor... Você podia cantar, você dançava, no meio das meninas... p. 75 E mais aromático que teus perfumes Os dentes, brancura carneirinhos. p. 76 de Teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas. 4, 1 ‘Tu é bela!...” O vôo e o arrulho dos olhos. p. 76 Como és formosa, minha amada! é teu nome, mais que perfume derramado. 1, 3 Como és formosa, com teus olhos de pomba. 4, 1 O cabelo, cabriol. A como as boiadas fogem no chapadão, nas chapadas. p. 76 Teus cabelos são como rebanho de cabras, esparramando-se pelas encostas do monte Galaad. 4, 1 A boca - traço que tem a cor como as flores. p. 76 Teus lábios são fitas de púrpura, de fala maviosa. 4, 3 Donde a romã das faces. p. 76 Tuas faces são metades de romã, na transparência do véu. 4, 3 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 221 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA O pescoço, no colar, para se querer, com sinos e altos, de se variar de ver. p. 76 Teu pescoço é como a torre de Davi, Os doces, da voz, quando ela falava, o cuspe. p. 76 Porque tua voz é doce, gracioso o teu semblante. 2, 14 É! Tu é a melhor, a mais merecida de todas... p. 77 Uma só, porém, é a minha pomba, o meu primor. 6, 9 Bem, eu estou adoecida de amor. p. 85 Conjuro-vos, Jerusalém: construída com parapeitos, da qual pendem mil escudos e armaduras de todos os heróis. 4, 4 ó filhas de se encontrardes o meu amado, anunciai-lhe que desfaleço de amor! 5, 8 222 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Quadro 2 “Dão-Lalalão” Apocalipse Tremia nas cascas dos joelhos, mas escutava que tinha de ir feito bramassem do escancarado do céu: a voz grande do mundo. De um pulo estava em cima do cavalo alvo, éguo de um grande cavalo, para paz e guerra, o cavalo Apouco, que sacudia a cabeça, sabia do que vinha em riba dele, tinha confiança – e escarnia: cavalo capaz de morder caras... – “Bronzes! Com minha justiça, brigo, brigo...” p. 86 Vi o céu aberto e eis um cavalo branco. Quem o montava chamava-se Fiel e Verdadeiro e é com justiça que julga e faz guerra. 19, 11 Seus olhos viam fogo de chama. p. 86 Seus olhos são como chamas de fogo, (...). 19, 12 O preto o matava, seu paletó ia estar molhado de sangue. p. 86 Está vestido com um manto tinto de sangue e seu nome é Verbo de Deus. 19, 13 Olhou para trás: dos baixos do riacho do o, só uma neblina, pura de branca, limpas por cima as nuvens brancas, também uma cavalhada. p. 86 Seguem-no os exércitos celestes em cavalos brancos, vestidos de linho branco puro. 19, 14 Seus dentes estalavam em ferro, podiam cortar como uma faca de dois lados, naquela cachaça, meter verga de ferro no negro. p. 86 De sua boca sai uma espada afiada para ferir as nações. Deverá governá-las com cetro de ferro e pisar o lagar do vinho com o furor da cólera de Deus Todo-poderoso. 19, 15 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 223 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA E dava um murro na polpa da coxa, coxa de cavaleiro dono de dono, seu senhor! p. 86 Sobre o manto e sobre a coxa está escrito seu nome: Rei dos reis, Senhor dos Senhores. 19, 16 No céu, o sol dava contra ele – por cima do sol, podia ir sua sombra, dele, Soropita, de braços abertos e aprumo, e aos gritos: - “Ajunta, povo, venham ver carnes rasgadas!...” p. 86 Vi então um anjo de pé sobre o sol, que gritou com grande voz para todas as aves que voam pelo alto do céu: “Vinde, reuni-vos para o grande festim, para comerdes a carne dos reis.” 19, 17-18 O preto Iládio, belzebu, seu enxofre, poderoso amontoado na besta preta. Ah, negro, vai tapar os caldeirões do inferno. p. 86 Mas a besta foi presa e com ela o falso profeta, que fazia sinais à sua frente, com os quais extraviava os que haviam recebido a marca da besta e os que adoravam a sua imagem. Ambos foram lançados vivos no lago de enxofre ardente. 19, 20 Igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos. p. 87 Ele pegou o dragão, a serpente antiga, que é o diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos. 20, 2 Recebido em 12/07/2008 Aprovado em 10/08/2008 224 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O NEOBARROCO EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS DE GUIMARÃES ROSA Carolina Paganine UFSC Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. (João Guimarães Rosa) Resumo: O poeta cubano Severo Sarduy fornece algumas ferramentas para interpretar os elementos barrocos encontrados na literatura contemporânea, tais como a artificialização (grande uso de metáforas), a proliferação (progressão metonímica que remete ao significado ausente) e a condensação (troca ou fusão entre elementos fonéticos). Neste artigo, analisa-se como esses mecanismos aparecem na prosa de Guimarães Rosa, tomando como ponto de partida os contos de Primeiras estórias (1962). Procura-se evitar a categorização peremptória da obra de Guimarães Rosa como neobarroca, já que o termo foge a definições estanques e permeia grande parte da arte contemporânea. A crise da representação artística, apontada por Michel Foucault em A palavra e as coisas (1966), é potencializada na prosa poética do autor brasileiro. Assim, ao reagir a um postulado de regionalismo realista, Guimarães Rosa escapa da mera representação do objeto e procura construir sua arte no tecido lingüístico em si. Sua narrativa é um convite ao leitor para uma viagem nos meandros da linguagem, cuja ambigüidade reflete uma ambigüidade da existência. Palavras-chave: Neobarroco. Guimarães Rosa. Representação literária. Primeiras estórias. Abstract: The Cuban poet Severo Sarduy has developed Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 225 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA some tools for interpreting baroque elements found in contemporary literature such as artificiality (extensive use of metaphors), proliferation (a progression of metonymies that refers to an absent meaning) and condensation (an exchange or a fusion of phonetic elements). In this article, I analyze how these elements work in the prose of Guimarães Rosa, taking the short stories of Primeiras estórias (1962) as the starting point. A definite categorization of Guimarães Rosa’s work as neo-baroque was avoided since the term neo-baroque does not fit rigid definitions and it has a very pervasive influence in the contemporary Arts. The crisis of artistic representation, pointed out by Michel Foucault in The order of things (1966), is intensified in the poetic prose of the Brazilian writer. Thus, by reacting against the postulate of Realistic regionalism, Guimarães Rosa escapes from a simplified representation of the object in order to create his art in the very fabric of language. His narrative is an invitation to the reader to a trip in the meanders of language whose ambiguity reflects the ambiguity of existence. Keywords: Neo-baroque; Guimarães Rosa; literary representation; Primeiras estórias. Por muito tempo, o conceito de barroco esteve atrelado a uma conotação negativa. A história mais plausível do termo aponta para origens portuguesas ou espanholas de designação de uma pérola de superfície irregular, comumente chamada pelos comerciantes de berrueco ou barrueco. A partir daí, a palavra “barroco” passou a ter conotação de imperfeição e mau gosto. Na periodização da história da arte, então, o termo começou a ser usado para designar o período que sucedeu o Renascimento e que se acreditava ser caracteristicamente oposto a este último. Se as formas e os padrões renascentistas eram o ideal clássico, o barroco era tudo aquilo de negativo e bizarro na arte. Acreditava-se, também, que o barroco representava uma decadência do estilo renascentista. Enfim, era uma expressão 226 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO artística inferior. É apenas na segunda metade do século XIX que o barroco começa a ser visto como um período artístico tal como o foi o Renascimento. Não mais decadência e esgotamento estético e, sim, um processo natural de evolução da arte. Muito importante para isso foi a definição de um período intermediário entre o renascimento e o barroco – o maneirismo, que representaria um estágio de incubação e preparação das formas artísticas que viriam a compor as futuras expressões barrocas. É o que afirma, por exemplo, Lourival Gomes Machado: Basta lembrar que o maneirismo, uma dessas fases que se julgara de bom aviso lançar ao rol das decadências insignificantes, reaparece hoje como cumprindo uma função importante, pois permite compreender o trânsito, formal e cultural, entre duas expressões artísticas antes tidas por simplesmente contraditórias e antagônicas. 45 A idéia de que se processou uma transformação gradual do renascimento em outro estilo artístico, transformação esta que acompanhou o contexto histórico sócio-cultural, possibilitou novas análises sobre o barroco. Agora, começava-se a valorizá-lo como um período de propriedades únicas e respeitáveis, digno da mais alta fruição estética. Foi por volta de 1888 que Heinrich Wölfflin46 desenvolveu sua teoria a respeito da arte e também do barroco. Para Wölfflin, o barroco é um conceito muito maior do que o de apenas uma categoria histórica. Passa a ser um elemento recorrente na história da arte. Segundo esta teoria, a arte barroca e a arte clássica seriam como duas pulsões artísticas que estivessem sempre a se alternar na evolução da cultura. Não se restringem, agora, 45 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, p. 38. 46 In Renascença e Barroco e Conceitos Fundamentais da História da Arte. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 227 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA à denominação de manifestações estéticas delimitadas historicamente. Enfim, “O Barroco não será um estilo, mas um dos dois estádios sucessivos de todos os estilos, (...)”.47 Apesar de ter sido formulada em relação às artes plásticas, a teoria de Wölfflin também pode ser aplicada ao estudo da literatura. Em relação à literatura, os conceitos do autor remetem a uma linguagem que não é nem um pouco referencial. Pelo contrário, é extremamente metafórica e, por isso, um tanto misteriosa. Nas palavras de Hatzfeld, é “(...) um estilo que, em lugar de revelar sua arte, a esconde”.48 A contundência da aplicação das características formalistas de Wölfflin à arte literária já fora apontada brevemente pelo mesmo quando comparando o Orlando Furioso (1516), de Ariosto, e Jerusalém Libertada (1580), de Tasso49. Ambas as obras representariam a dicotomia entre o renascimento e o barroco na literatura. A partir daí, foram surgindo vários críticos, tais como Leo Spitzer, Helmut Hatzfeld e René Wellek, que começaram a aplicar o conceito de barroco aos estudos literários. O Neobarroco Se, hoje em dia, o conceito histórico de barroco é amplamente reconhecido na literatura, uma questão que se coloca é aquela a respeito de uma eventual presença de um neobarroquismo em obras contemporâneas. O neobarroco, contudo, ainda carece de uma definição que viabilize sua aplicação plena nos estudos literários. Muito mais do que um conceito acabado, a legitimidade de se falar em neobarroco se prende à percepção da 49 47 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, p. 41. 48 HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco, p. 16. 228 • WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco, p. 98. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ocorrência de determinadas características em certas obras contemporâneas, tais como as explicitadas por Severo Sarduy50. Todavia, deve-se ter cuidado na aplicação de tais categorias, pois devido ao seu caráter abrangente e generalizador, muitas vezes podem ser aplicadas a toda e qualquer obra contemporânea. Como, de resto, na utilização indiscriminada de rótulos, corre-se o risco de enxergarmos o que as obras têm em geral e não perceber o que elas têm de singular. Recursos como a artificialização ou a paródia, que foram assegurados como próprios do neobarroco por Sarduy, nos parecem também constituintes da arte moderna como um todo. Não são suficientes e nem esgotam as possibilidades da criação neobarroca e, portanto, não fornecem uma definição exclusiva do que é o neobarroco. O trabalho de Sarduy, entretanto, não é em vão. Logo no início do seu texto, ele alerta para o “perigo” das generalizações a respeito do neobarroco: (...) interessa-nos, ao contrário, restringi-lo (o conceito de barroco), reduzi-lo a um esquema operatório preciso, que não deixe interstícios, que não permita o abuso ou o desenfado terminológico de que esta noção sofre recentemente(...)51 Apesar de suas proposições serem questionáveis quanto à restrição ao neobarroco, não há dúvidas de que elas serviram para, de alguma forma, esquematizar características importantes da criação neobarroca, além de serem um pequeno alerta para futuros estudos. Assim, é válido apresentar brevemente o que foram os tais enunciados de Sarduy, de modo a facilitar a análise posterior dos textos de Guimarães Rosa. O primeiro recurso do barroco, segundo Sarduy, seria a SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco. In América Latina em suas literaturas. 50 51 Idem, p. 162. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 229 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA artificialização. Este processo seria definido por um grande uso de metáforas e, também, de metáforas de metáforas. Isto é, seria uma linguagem que está incessantemente envolvendose sobre si mesma. Uma linguagem da linguagem, na qual sucessivas máscaras são sobrepostas – os chamados artifícios. Dentro da artificialização, podemos identificar três mecanismos. O primeiro seria a substituição. Nela, um significante é substituído por outro significante cujo significado, aparentemente, não apresenta nenhuma aproximação com o primeiro. Entretanto, dentro do contexto específico da escrita, e somente nele, este último significante assume o significado primeiro, fazendo com que o processo de artificialização funcione. O segundo mecanismo seria a proliferação. Esta consiste no uso de significantes dispostos em uma cadeia de progressão metonímica que, em seu conjunto total, remete ao significante ausente e, logo, ao significado almejado. Em outras palavras, a proliferação seria “(...) uma forma de enumeração disparatada, de acumulação de diversos nódulos de significação, de justaposição de unidades heterogêneas, de lista díspar e collage”.52 Por último, temos a condensação, que representaria o processo de troca ou fusão entre elementos fonéticos e plásticos de dois significantes. Este somatório resulta em um terceiro significante que condensa, resume em si, o significado dos dois primeiros. Em seguida, Sarduy faz uma exposição sobre a paródia como forma de expressão característica do barroco. Insere-se aí o processo de carnavalização que traduz, na linguagem, a ambivalência, a confusão e a polifonia. Também partes integrantes da paródia seriam os mecanismos de intertextualidade e intratextualidade. Ambos atuam em níveis diferentes, sendo que o primeiro trabalha com a incorporação direta (citação) ou indireta (reminiscência) de outros textos e 52 230 • Ibidem, p. 165. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO o segundo com a escrita que supera a linearidade e incita a um caminho alternativo de leitura, no qual há uma “escritura entre a escritura”.53 Sarduy termina seu texto concluindo que o barroco constitui um espaço erótico pois nele prevalece a superabundância e o desperdício em função do prazer, em detrimento da funcionalidade e economia da linguagem puramente comunicativa. Como a retórica barroca, o erotismo apresenta-se como a ruptura total do nível denotativo, direto e natural da linguagem – somático –como a perversão que implica toda metáfora, toda figura.54 O neobarroco seria um jogo no qual se está sempre em busca do objeto perdido que, por sua vez, não pode ser alcançado. É, então, um reflexo do desequilíbrio, da ruptura com o logocentrismo, da desarmonia e da rebeldia. Enfim, como assevera Sarduy ao final de seu texto: (...) barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida. Barroco da Revolução.55 A viagem neobarroca de Guimarães Rosa Uma obra da literatura brasileira que apresenta nítidas ressonâncias neobarrocas é o livro de contos Primeiras estórias (1962). Apesar de ter sido publicado depois de Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras estórias parece ser uma pequena amostra daquilo que foi revelado primordialmente em Grande Sertão. Isto é, uma abordagem que privilegia a construção lingüística das palavras, na qual significante e significado, juntamente com a musicalidade, formam um todo que supera 55 53 Ibidem, p. 173. 54 Ibidem, p. 177. Ibid, p. 200. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 231 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA a narrativa convencional, partindo para uma expressão lírica do psicológico. Segundo Alfredo Bosi, Para Guimarães Rosa, como para os mestres da prosa moderna (um Joyce, um Borges, um Gadda), a palavra é sempre um feixe de significações: mas ela o é em um grau eminente de intensidade se comparada aos códigos convencionais da prosa. Além de referente semântico, o signo estético é portador de sons e de formas que desvendam, fenomenicamente, as relações íntimas entre o significante e o significado.56 A partir do conceito de “palavra como feixe de significações”, podemos chegar até ao barroco pelo caminho de uma intensa elaboração da linguagem. É um verdadeiro trabalho artesanal no qual as palavras são entalhadas meticulosamente conforme seus sons e até suas formas visuais. Como disse Bosi, caminhamos nossa leitura para além de meras referências semânticas e partimos para um mundo de interpretações multissensoriais. Aqui podemos fazer uma ponte entre a obra literária de Rosa e a arte barroca. Em ambos notamos uma forma de expressão que pretende extrapolar seus limites formais, que quer nos proporcionar outras interpretações que não somente o simples processo código-mensagem. Uma forma de expressão que anseia em mostrar algo a mais no objeto artístico. É o que avalia, por exemplo, Affonso Ávila: Há, portanto, em toda a arte barroca declarada propensão para uma forma que se abre em indeterminação de limites e imprecisão de contornos, uma forma que apela para os recursos da impressão sensorial, que não quer apenas conter a informação estética, mas sobretudo comunicá-la sob um grau de 56 483. 232 • BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira, p. 482 e Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO tensão que transporte o receptor, o espectador, da simples esfera de plenitude intelectual e contemplativa para uma estesia mais franca e envolvente – mais do que isso, para um êxtase dos sentidos sugestionadamente acesos e livres.57 Dessa forma, em uma primeira leitura, os contos de Rosa podem parecer simples, retratando situações banais como a de um menino que vive momentos de alegria e tristeza ao se afeiçoar a um peru e depois a uma árvore, tendo os dois um destino fatal para desgosto do menino. Este é o enredo de “As margens da alegria”, primeiro conto do livro Primeiras estórias. Dentro desta singela história, porém, podemos encontrar temas que ultrapassam o mero enredo, tal como o caráter de sonho e liberdade dos acontecimentos experimentados pelo menino que, de repente, vê-se imerso numa alegria aparentemente infinita. Logo no início do conto, somos informados de que: Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produziase em caso de sonho. (...) O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato de respirar – o de fugir para o espaço em branco. O Menino.58 Neste conto, percebemos um tema bastante pertinente ao barroco que é a efemeridade e a inconstância da vida que são apresentadas em figuras que, de alguma forma, relacionam-se com a idéia de movimento e fugacidade. É assim na expressão “com um jeito de folha a cair”, acima citada, que descreve o 57 ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, p. 20. 58 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 7. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 233 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA comportamento do Menino, e também com o uso do termo “nuvem”, figura passageira por essência, que junto com a repetição da letra “L” e da palavra “longa” nos dão uma notável sensação de transitoriedade e demora na seguinte frase sobre a viagem de avião do garoto: “A luz e a longa-longalonga nuvem. Chegaram”.59 Também em outro trecho, observamos um forte apelo ao movimento, a não-estabilidade das coisas. É assim quando o Menino faz um passeio de jipe e o autor faz uma descrição do caminho: A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e o seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. (...) A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-aíndio. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alargava. O buriti, à beira do corguinho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares.60 (grifos meus) Apelando para uma cadeia semântica que sugere movimento (“o velame branco”, “a cobra-verde”, “os papagaios”, “corguinho”), o narrador sugere uma tomada cinematográfica, convidando o leitor à reconstrução da cena. Imagem repleta de percepções sensoriais, táteis e visuais, que se sobrepõe umas às outras e, por fim, se ligam a uma espécie de memória afetiva da criança. 59 Idem, p. 8. 60 Idem, p. 9. 234 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Esta descrição também pode ser considerada uma proliferação, conforme explicado anteriormente. Vemos aqui uma cadeia de termos que adquirem um sentido através do todo que é o passeio de jipe. Além disso, as palavras progridem num crescendo que vai da poeira e das pequenas plantas, passando por cobras, papagaios e seriemas, até a paisagem alargada pelo sol. Acima de tudo, porém, vemos no Menino de “As margens da alegria” aquela mesma dualidade do homem barroco entre vida e morte, entre eternidade e finitude. O menino, que admirava a exuberância do peru, sofre com a descoberta de que tudo tem um fim: “Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. (...) Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte”.61 Ademais, esta dualidade também se faz presente na comparação entre o passeio de jipe pelo sítio que transbordava vida e o outro passeio pelo lugar árido e cinzento onde construíam uma pista de avião. Aí, o Menino assiste, chocado, a uma derrubada de árvore. Neste momento, o narrador nos revela a terrível descoberta feita pelo Menino: Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.62 Já neste conto, observa-se que a finitude adquire grande relevância temática. Para Afrânio Coutinho, o “barroco é uma arte da morte e dos túmulos”63 no qual a desintegração física e o ato de morrer são temas recorrentes. De uma forma ou de outra, a “morte” aparece em muitos contos, “A menina 63 61 Idem, p. 10. 62 Idem, p. 10. COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira, p. 103. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 235 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA de lá” e “Famigerado”, no impulso inicial da ação em “Os irmãos Dagobé”, ou na angústia dos jovens apaixonados de “Nenhum, nenhuma”, que dependem tanto da morte de Nenha, “uma velha, uma velhinha – de história, de estória – velhíssima, a inacreditável” como da morte do pai da moça para concretizarem seu amor. Outro tema que permeia diversos contos da obra é a loucura. De acordo com Helmut Hatzfeld, a loucura seria um dos elementos decisivamente barrocos pois “(...) a loucura é uma espécie de metáfora, porque também o louco toma uma coisa por outra”.64 Sendo o uso excessivo de ornamentos, mais especificamente, de metáforas, um recurso usado com excelência pelo barroco, nos fica aqui claro que a presença significativa do tema da loucura em Primeiras estórias pode ser interpretado como uma evidência de barroquismo. Assim, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, as duas mulheres estão de partida para um manicômio e isto acaba virando um grande acontecimento na cidade. No caminho para a estação de trem, elas começam a cantar uma canção que ninguém podia entender. Após a partida, surpreendentemente, Sorôco começa a entoar a mesma canção e com ele, os outros cidadãos. A cantiga das loucas, a música desatinada, desvairada, passa a ser, então, um código pelo qual todos puderam compartilhar do sofrimento de Sorôco. A loucura também é abordada em “A terceira margem do rio”, no qual um pai de família encomenda uma canoa e passa a viver pelo rio, sem nunca mais pôr os pés em terra. “Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira.”65 E seu filho, que narra a história, pode nos dar a impressão de ter ficado louco também, pois chega a propor ao pai que troquem de lugar, mas acaba recuando ante sua aproximação. É no último parágrafo que a melancolia e 64 HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco, p. 32. 65 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 33. 236 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO pessimismo ficam evidentes, e o texto acaba por assemelhar-se a um canto fúnebre: Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.66 Passamos, então, a tratar de outros aspectos da literatura barroca que são a clareza relativa e a polifonia. Pelo primeiro, entende-se a fusão de todos os detalhes, que são muitos na arte barroca, sob um todo único e coerente. É como Afrânio Coutinho bem exemplifica: As coisas, as pessoas, ações não são descritas, apenas evocadas, seus contornos indistintos e apagados fundem-se, refletidos como por um espelho através da visão das personagens: o perspectivismo, o expressionismo, o engavetamento são, por isso, as formas expressionais mais comuns, ao lado do estilo prismático.67 Já a polifonia, ou multivocidade, refere-se ao discurso contrapontístico no qual diversas vozes se intercalam, mas que, sobretudo, giram em torno de uma idéia central. A polifonia está intimamente ligada à clareza relativa, pois seus limites são “esfumados”, “sombreados”, de forma que o que se sobressai, no final, é o tema principal. Isto pode ser melhor exemplificado em contos como “Pirlimpsiquice”, “Partida do audaz navegante” e “Nenhum, nenhuma”. 66 Idem, p. 37. 67 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira, p. 106. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 237 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Em “Pirlimpsiquice”, ocorre uma mistura entre ficção e realidade que nos dá uma certa impressão de clareza relativa da qual nos fala Wölfflin. Neste conto, passado em um colégio religioso somente para meninos, decide-se montar uma peça de teatro. Alguns alunos são escolhidos para contracenar sob a condição de manter em sigilo total o teor do drama. A partir daí, os alunos-atores começam a inventar uma outra história para despistar os curiosos que não participam da peça. Neste meio tempo, também surge uma outra versão inventada por um dos alunos de fora, o Gamboa, e ainda outra, a verdadeira, que misteriosamente estava sendo divulgada. Todavia, não é este o fato mais genial do conto. Quando é chegada a hora de representar a peça, no teatro cheio, os atores esquecem-se do texto e passam a representar aquela outra história inventada por Gamboa. Apesar de um primeiro momento de vaias, o público se rende e se seduz por aquele drama improvisado. É a extrapolação das fronteiras entre teatro e vida real, entre meninos e personagens, entre verdade e mentira, que se fundem todos na última fala do conto, proferida por Gamboa: “– Eh, eh, heim? Viu como era que a minha estória também era a de verdade?”.68 Em “Partida do audaz navegante”, também ocorre o mesmo processo de uma narrativa dentro da narrativa. Primeiro, temse, simplificadamente, a história de quatro crianças, três irmãs e um primo, e a mãe das garotas. Brejeirinha, a mais nova, é muito esperta e gosta de brincar com as palavras, mesmo com as quais não sabe o significado dicionarizado. Assim, começa a imaginar uma história na qual Zito, o primo, é um “pirata inglório marujo”, o “Audaz navegante”, que se envolve numa história de amor apesar de ter que partir de navio para longe. A narrativa começa, então, a ter certa ligação com o real, pois Zito e Ciganinha, a outra irmã de Brejeirinha, estão enamorados. Como não consegue arrumar um final feliz que agradasse ao 68 238 • ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 46, grifo do autor. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO primo e à irmã, Brejeirinha recomeça a história, fazendo de um monte de esterco, à beira de um riacho, o “Audaz navegante”. Após enfeitá-lo com flores, empurra-o rio abaixo, terminando assim sua história. Nesta breve exposição do enredo, podemos identificar que um emaranhado de pequenas histórias vão se fundindo umas nas outras até virarem uma só que acaba por ser a do esterco/navegante. Já em “Nenhum, nenhuma”, o que nos chama a atenção é o intenso tom lírico dado à narrativa em terceira pessoa por meio de inserções de observações em primeira pessoa, de grande teor poético. É a polifonia em sua melhor expressão: Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para algo remembrar, da chuva que caía, da planta que crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais, os baús, arcas, canastras, na tenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos, como se um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao se desdobrar, os cheiros nunca mais respirados, suspensas florestas, o porta-retratos de cristal, floresta e olhos, ilhas que se brancas, as vozes das pessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazes a foco as altas camas de torneado, um catre com cabeceira dourada; talvez as coisa mais ajudando, as coisas, que mais perduram: o comprido espeto de ferro, na mão da preta, o batedor de chocolate, de jacarandá, na prateleira com alguidares, (...). 69 Neste conto, Rosa fez uso da escrita em itálico para evidenciar a segunda voz que, por vezes, parece participar de um jogo com a primeira voz no qual memória, lembranças e fatos se misturam e brincam entre si. É o que se vê também em: 69 Idem, p. 49, grifos do autor. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 239 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Eles se olhavam para não-distância, estiadamente, sem saberes, sem caso. Mas a Moça estava devagar. Mas o Moço estava ansioso. O Menino, sempre lá perto, tinha de procurar-lhes os olhos. Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. Mas o Menino queria que os dois nunca deixassem de assim se olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não.70 Mais adiante no texto, num momento crucial, percebe-se que a memória acaba vencendo o esquecimento pela força que os fatos têm de ser relembrados: Vê-se – fechando um pouco os olhos, como a memória pede: o reconhecimento, a lembrança do quadro, se esclarece, se desembaça. Desesperado, o Moço, lívido, ríspido, falava com a Moça, agarrava-se aos varões da grade do jardim.71 Ao fim, a narrativa principal que era em terceira pessoa passa a ser em primeira, sem os grifos em itálico, marcando aqui também o encontro, a união, das vozes. Repare no segundo parágrafo onde começa o uso de pronomes pessoais e verbos na primeira pessoa, marcando a transição: Pouco a pouco, o Menino, devagarinho, chorava, também, o cavalo soprava. (...) Daí viu-se em casa. Chegara. Nunca mais soube nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo. Reparei em meu pai, que tinha bigodes. (...) Minha Mãe me beijou, queria saber 70 Idem, p. 48, grifos do autor. 71 Idem, p. 53, grifos do autor. 240 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO notícias de muita gente, (...).72 Outro conto de grande importância em Primeiras estórias é “O espelho”. Parece um tanto proposital que Primeiras estórias, possuindo 21 contos no total, tenha o 11° conto intitulado de “O espelho” dividindo, assim, o livro em exatamente dez histórias antes e dez histórias depois. Ligado a isso, também está o fato de que o primeiro e o último conto possuem o mesmo protagonista. Apesar de aparentar ser apenas uma característica formal, Affonso Romano de Sant’Anna alerta para o uso do espelho como metáfora barroca: Reveladoramente, noutro livro de contos, Primeiras estórias (1962), “O espelho” tem um valor estrutural e também está no meio do livro. (...) Como em Tutaméia, onde o livro se dobra sobre si mesmo, o conto “O espelho” divide a obra em metades rigorosamente espelhadas, uma vez que é precedido de dez contos e seguido também de dez contos, e os temas da primeira metade espelham-se nos contos da segunda metade. Isso, em uma leitura periférica, transformaria essa obra em obra esférica e circular. No entanto, ela é elíptica, primeiro porque o autor, praticante da numerologia, trabalha com números impares e faz com que haja dez contos de cada lado; “O espelho” é o de número 11, perfazendo-se o total de 21. Em segundo lugar, no interior desse conto, exercitando a metalinguagem, a descrição que o próprio autor faz de sua situação espelha perfeitamente a perspectiva barroca que tinha da realidade: “À medida que trabalhava com maior maestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos e francamente cavernoso, como uma esponja”.73 72 Idem, p. 54. 73 SANT’ANNA, Affonso Romano. Barroco: do quadrado à elipse, p. 78/79. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 241 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Além de ter este caráter central na obra, “O espelho” se distingue também dos outros contos pelo seu tom de relato, por ser narrado pelo protagonista e por tratar de um assunto que se destaca dos outros contos de temas mais ou menos equiparáveis. O espelho, assim como a água, a nuvem, a folha, etc., é reconhecido como um dos símbolos recorrentes no barroco74. Grandes quadros da era barroca possuíam o espelho como elemento chave na composição da obra, sendo este o caso, por exemplo, de O casal Arnolfini de Johannes van Eyck ou de As meninas de Velázquez75. No conto de Guimarães Rosa, o narrador decide-se por uma experiência na qual pretende visualizar-se no espelho a partir de uma neutralidade no olhar, sem os costumeiros vícios de complacência com a nossa própria imagem. Este empreendimento se desenvolve quando o narrador vê seu rosto refletido ao mesmo tempo em dois espelhos num lavatório público. Assombrado com a imagem que vê, parte para uma procura de si mesmo: Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. (...) Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa – a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.76 Por todo o conto, o narrador discute com o leitor sobre a veracidade científica dos fatos e pretende nos convencer que, apesar de nunca tentada ou comprovada, a experiência de fato ocorreu. HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco, p. 81. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 67/68, grifo do au- 74 75 Obra analisada por Michel Foucault em As palavras e as coisas,(1999, p. 3-21). 76 tor. 242 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O narrador parte, então, numa empreitada que chegará até a completa anulação de sua própria imagem. Feito isso, passa a questionar-se sobre sua existência. Mais uma vez, aí se mostra a dualidade entre corpo e alma, carne e espírito, tão presente no homem barroco: E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho – com rigorosa infidelidade.77 É o conhecido paradoxo entre essência e aparência da vida humana que, por analogia, pode-se conduzir a um questionamento sobre a própria linguagem na época moderna. Isto é, uma linguagem que deixa de ter como única meta a representação do objeto externo e passa a se voltar para si, valorizando seus próprios mecanismos de construção e constituindo, ao mesmo tempo, a realidade artística. Ao final, percebe-se que Primeiras estórias, bem como toda grande obra da literatura, se esquiva a qualquer enquadramento fácil e taxativo, e este estudo procurou apenas apontar um possível olhar neobarroco para estes contos de Guimarães Rosa. Antes de mais nada, o termo neobarroco já é, por si só, de definição problemática, reflexo, em grande medida, da diversidade de tendências da literatura contemporânea. Do mesmo modo que não podemos efetuar uma conceituação definitiva, também não acreditamos que a literatura chamada de neobarroca extrai suas fontes criadoras somente de uma relação intertextual com autores do barroco histórico. 77 Idem, ibidem, p. 71. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 243 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Mais essencial, nos parece o fato de que ambas as manifestações, o barroco histórico e o neobarroco, podem ser interpretadas como um reflexo da instabilidade e da crise das representações artísticas. Como Paul Valéry já dizia, não se mata a sede com os rótulos da garrafa. Ou seja, devemos estar alerta para o perigo do enquadramento forçado, do reducionismo do particular e do original de cada autor, em nome da generalização. REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. Clássico Anticlássico: O Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. COUTINHO, Afrânio. Do Barroco (Ensaios). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Edições Tempo Brasileiro, 1994. COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Distribuidora de Livros Escolares Ltda. DOURADO, Autran. Uma Poética de Romance: matéria de carpintaria. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999. HAUSER, Arnold. História Social da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998. HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Ed. Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. LUCAS, Fábio. Do Barroco ao Moderno. São Paulo: Ática, 1989. MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. 244 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco, in: América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo: Ed. Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. Recebido em7/10/2008 Aprovado em 25/10/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 245 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA PRESENÇA DA COLUNA PRESTES NAS VEREDAS DO GRANDE SERTÃO Marcelo Luiz Cesar Mozzer Ufes Resumo: Na criação literária, há vestígios de verdade e verossimilhança. A escrita veicula a história e a estória, seja de paixão, seja de amor, seja de um ato político, religioso, social, sejam todos esses juntos. Este livro, Grande sertão: veredas, será lido como uma fusão entre a ficção e o fato histórico. Palavras-chave: História. Literatura. Verdade e ficção. Resumé : Dans la création littéraire, il-y-a des vestiges de vérité et de vraissemblence. L’écriture propage l’histoire et le conte, soit de passion, soit d’amour, soit d’un acte politique, religieux, social, soit de tous ceux joints. Ce livre, Grande sertão : veredas, sera lu comme une fusion entre la fiction et l’événement historique. Mots-clés: Histoire. Littérature. Vérité et fiction. Acredito não haver a possibilidade de uma criação literária sem vestígios de verdade. Quando se escreve, sempre é a história de um amor, de uma paixão, de um fato político, econômico, histórico, religioso, social e, às vezes, esses estão todos juntos. Este livro – Grande sertão: veredas – pode ser lido como a mistura da ficção com o fato histórico. Para isso, suspendo as fronteiras entre duas linguagens: a de que se serve a História e a que utiliza a Literatura. Misturoas, a fim de mobilizar personalidades históricas pelas veredas discursivas de Guimarães Rosa. Nessas veredas, História e estória convocam-se a serviço da arte. Para início dessas 246 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO desterritorializações entre o domínio da poética e o das ciências humanas, questiono o lugar da fronteira entre História e ficção. No plano narrativo, essa distinção, a meu ver, não se estabelece permanentemente na voz de Riobaldo. Para questionar a distinção entre verdade e invenção, passo a palavra a José Américo Motta Pessanha (1988, p. 282): Onde a fronteira – se é que ela existe – entre história e ficção? Perguntado de outro modo: entre as muitas formas de narrativa, onde estabelecer a linha divisória – se é que ela pode ser traçada – entre os diversos tipos de história inventada e uma história que pretende ostentar estatuto de cientificidade, apresentar-se enquanto episteme, inscrever-se entre as formas “sérias” de conhecimento, candidatar-se à conquista de alguma verdade sobre o que narra, narrando e ao mesmo tempo tentando explicar o objeto que aborda? Comecemos com a história. A Coluna Prestes, 1924-1927, foi um movimento liderado por militares insatisfeitos com as fraudes eleitorais e as corrupções no governo. Nesse contexto, o movimento não apoiava a candidatura de Artur Bernardes à presidência do Brasil. A chamada Coluna Prestes, liderada por Luís Carlos Prestes, percorreu 25 mil quilômetros pelo Brasil, envolvendo 14 Estados. Esses militares que o Prestes comandava embrenharam-se pelo Brasil, e foram combatidos por tropas do governo e por jagunços contratados pelos chefes políticos locais, sobretudo na região Nordeste. O objetivo dos líderes da Coluna era derrubar o presidente Artur Bernardes. No dia 3 de fevereiro de 1927, quando Bernardes já havia saído da presidência e Washington Luís sido empossado desde novembro de 1926, os rebeldes se exilaram na Bolívia, sem sofrerem derrota alguma. Aproximo agora os escritos da coisa histórica dos associados a fatos ficcionais. Para a realidade histórica, convoco as pesquisas de alguns historiadores. Para expor o mundo de referência ficcional de Grande sertão: veredas, convido o narrador Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 247 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Riobaldo. Perfilam-se as tropas textualmente: as compostas de jagunços e as da Coluna Prestes. As tropas de jagunços se apresentam prontas, segundo o olhar que Riobaldo lança (“bispa”) sobre sua gente de guerra. Com a palavra Riobaldo: “Disse só que decerto Joca Ramiro estava formando gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes, em Titão Passos, João Goanhá. – Fortes no fato valor e na lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei.” (ROSA, 1986, p. 153) As tropas da Coluna Prestes, já acampada nos Cerrados, no-las apresenta Anita Leocádia Prestes, pondo em relevo o nome de seus comandantes:. Comando da Coluna Prestes reunido em Porto Nacional, Goiás em outubro de 1925: Miguel Costa, Luis Carlos Prestes, Juarez Távora, João Alberto Lins de Barros, Antonio de Siqueira Campos, Djalma Dutra, Oswaldo Cordeiro de Farias, José Pinheiro Machado, Atanagildo França, Emygdio da Costa Miranda, João Pedro Gonçalves, Paulo Kruger da Cunha Cruz, Ary Salgado Freire, Nélson Machado de Souza, Manuel Alves Lira, Sady Valle Machado, André Trifino Correia, Ítalo Landucci. (PRESTES, 1995, p. 74) A Coluna era militarmente disciplinada; os jagunços também o eram. Estes se reuniam em bandos; tinham seus chefes; aqueles se reunião em unidades de combates, e tinhas seus comandantes. A organização da Coluna Prestes não era igual à dos jagunços, no entanto, entre ambas, tanto pelo olhar artístico de Riobaldo, narrador de Guimarães Rosa, como pela vista da História, se notam elementos parecidos: a maneira de combater e os encontros dos chefes. Nas veredas do grande sertão, os jagunços chegaram à Fazenda Sempre-Verde, para se reunir. Riobaldo apontaos como se olhasse para uma velha fotografia. “A jagunçada 248 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO veio avançando, feito um rodear de gado – fecharam tudo, só deixando aquele centro, com Zé Bebelo sentado simples e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé, Só Candelário em pé, o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos, todos!” (ROSA, 1986, p. 225) Intuo que Guimarães Rosa, após leitura sobre a Coluna Prestes, teria se inspirado nesse fato histórico militar marcante a década de 20, para escrever a Grande sertão: veredas. Havendo nesse homem um gênio dado a leituras e pesquisas, não teria ele lido alguma obra sobre a Coluna Prestes? Guimarães Rosa dialogaria literariamente com os feitos da Coluna Prestes? É possível. Sua criatividade e pesquisa poderiam convocar o fato real e histórico a serviço da literatura, embora os acontecimentos da História não sejam, naturalmente, idênticos aos lugares geográficos da Literatura. E não seria o primeiro artista a referir-se a Preste em tonalidades épicas. Candido Portinari teria se referido a Prestes, pintando-lhe o rosto na figura de Tiradentes, num se seus quadros da fase histórica, que conta a execução do Mártir mineiro. História e literatura se assemelham a partir das aproximações entre alguns jagunços mencionados por Riobaldo e os chefes ou subchefes dos quatro destacamentos da Coluna. Entre os jagunços, um dos chefes a comandar confrontos travados lá pelas veredas do grande sertão foi o próprio Riobaldo, o Tatarana, o Urutu Branco. Com essa variação de nomes, o narrador do sertão atravessa as hierarquias de uma disciplina calcada na refrega; torna-se uma cobra no assunto e um homem bem informado sobre os embates bélicos naquelas sendas. Ouçamo-lo: Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamaram posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 249 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. (ROSA, 1986, p. 82) Heloisa Maria Murgel Starling, registrando seu testemunho histórico, escreve sobre os chefes políticos como Medeiros Vaz, Selorico Mendes, Joca Ramiro, Seo Ornelas, Seão Habão, Domingos Touro, Major Urbano, os Silva Sales, Dona Adelaide, Simão Avelino, Joãozinho Bem Bem, Hermógenes, Mozar Vieira. Disserta também a cerca sobre a política de chefes jagunços como Zé Bebelo, Riobaldo, mencionando elementos comuns ente a Coluna Prestes na obra de Guimarães: Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamaram posse de todos os animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. (STARLING, 1999, p. 29) Não parece absurdo, à luz dessas duas citações, supor que Guimarães Rosa poderia ter se utilizado em sua obra dos personagens que combatiam a Coluna Prestes, que eram os chefes políticos locais, isto é, os coronéis e os seus jagunços. Teria também Rosa se inspirado nas virtudes e nos valores dos tenentes como: hierarquia, disciplina, coragem, lealdade, justiça, propósito político, a fim de caracterizar seus personagens jagunços? Com o surgimento da Coluna em 1925 naqueles sertões, os chefes políticos continuaram as suas lutas internas entre si, mas receberam dinheiro e armas do governo, para combater os soldados de Prestes. Grande sertão: veredas, não seria também um relato das lutas e disputas políticas, e territoriais, entre chefes políticos locais, associada ao inquestionável sabor histórico da Coluna Prestes? Outras aproximações se flagram. Riobaldo, em determinado momento, se declara um tenente, um chefe. “Tibes! Eu, não. 250 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Ia demandar de outros o que eu mesmo não soubesse, a ser: nestes meus Gerais, onde eu era o sumo tenente? (ROSA, 1986, p. 494). Neste próximo exceto, Riobaldo recebe a visita de um boiadeiro, e dos camaradas deste, e o ouve falar sobre os soldados do governo, que andavam por aquelas bandas do sertão. “Sim. Os soldados! – ´Os que soldados, esses, mano velho?` Soldadesca pronta, do Governo, mais de uns cinqüenta. Assim onde era que estavam?” (ROSA, 1986, p. 282) O narrador fala também de um advogado seu “[...], e o que também devido dou ao advogado meu que zelou a sucessão – Dr. Meigo de Lima” (Rosa, 1986, p. 535). Esse nome se assemelha ao de Lourenço Moreira Lima, que era advogado, capitão, secretário da Coluna Prestes. Ele é muito citado por Jorge Amado no livro O cavaleiro da Esperança, editado em 1942. “Lourenço Moreira Lima, advogado e capitão. Chamamno de Bacharel Feroz, porque era valente nos combates” (AMADO, 1985, p. 191). A obra escrita por Jorge Amado em 1942, não teria passado pelas mãos de Guimarães Rosa? Seguindo a prosa e a jornada pelas trilhas e veredas do grande sertão, Riobaldo nos põe em contato com um dos mais importantes coronéis do Nordeste, que combateu incessantemente a Coluna Prestes, contratando jagunços para fazer esse serviço: o coronel Horácio de Matos. Passo a palavra, a Riobaldo. O Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. Titão Passos? Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de escapar para a Bahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldo de uns homens, aos poucos. Mas coragem e munição não faltavam. (ROSA, 1986, p. 53) Anita Leocádia Prestes também o registra em A Coluna Prestes, citando a força econômica, política e militar desses coronéis do Nordeste e indicando a quantidade de homens, a influência regional e o poder de fogo que cada coronel tinha sob seu Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 251 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA comando. Segundo informações recolhidas pelo pesquisador Eul-Soo Pang, foram organizados, na Bahia no início de 1926, cerca de dez ‘batalhões patrióticos’, sendo os mais importantes: o comandado por Horácio de Mattos, de Lavras Diamantinas (cerca de 1500 homens), o de Franklin Lins de Albuquerque, do vale médio do São Francisco (cerca de 800 homens), e o grupo de Abílio Wolney, formado por jagunços de Barreiras e Goiás (cerca de 1000 homens). (PRESTES, 1991, p. 262) Sobre a questão das mulheres, história e literatura também se conectam. Em outros caminhos da Coluna Prestes, constatase o envolvimento de mulheres na marcha. São as vivandeiras; vendem mantimentos ou os levam, acompanhando as tropas em marcha. Luiz Maria Veiga aponta a participação feminina na Coluna, descrevendo a insistência vitoriosa delas em acompanhar os seus homens. Os rebeldes gaúchos conseguiram finalmente entrar em Santa Catarina: eram cerca de mil homens, 500 cavalos e 50 mulheres. Essas mulheres, chamadas vivandeiras, insistiram em acompanhar seus homens, mesmo contra as ordens do Capitão Prestes, que determinava que elas permanecessem do outro lado do rio. Diante, porém, da consumada travessia feminina, não se opõe a que continuassem. (VEIGA, 1992, p. 30) Coincidência ou não, Riobaldo, em suas travessias, à parte sua paixão espartana pelo bravo Diadorim (essa é outra estória), às vezes gozava a companhia de mulheres; mas, às vezes, se abstinha disso. Cruzou rios, viu, viveu e venceu lutas, passou por muitos lugares que lhe deram algum prazer, mesmo que tal prazer tivesse de ser adiado ou proibido. Sobre esses, transcrevo aqui um trecho de sua prosa. 252 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Nas folgas vagas, eu ia com os companheiros, obra de légua dali, no Leva, onde estavam arranchadas as mulheres, mais de cinqüenta. Elas vinham vindo, tantas, que quase todo dia, mais tinham que baratear. Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava: -- ´Onde é que já viu homem valer, se não tem à mão estradas raparigas? Ond´é ? Mesmo cachaça ele fornecia, com regra. (ROSA, 1986, p. 112) Riobaldo também menciona uma proteção, provavelmente uma mulher. “Se diz que eles têm uma proteção preta [...]” (ROSA, 1986, p. 53). Essa proteção, na coluna que Prestes comandava, é uma velha negra, a mulher muito conhecida, citada por vários autores em diversas obras. Trata-se da tia Maria. “Porém a que era aureola de mistério, cujo nome circulava de boca em boca entre os soldados do governo era a Tia Maria, preta velha, seca e de olhos brilhantes, que morreu dramaticamente entre torturas. Contavam dela que era a feiticeira da Coluna” (AMADO, 1985, p. 123). A descrição de Riobaldo com barba grande e preta também aproxima fato histórico detectado em velhas fotos e literatura: “E já fazia tempo que eu não passava navalha na cara, contrário de Diadorim. Minha barba luzia grande e preta, conferindo respeito” (ROSA, 1986, p. 462). Quanto aos homens da Coluna Prestes, basta abrir qualquer livro que tenha uma fotografia e lá vão estar os oficiais e os soldados, todos barbudos. Acompanhava Riobaldo um menino chamado Guirigó, que chegou a chefiar bandos. “Tu é existível, Guirigó... Vai pelos proveitos e preceitos [...]. Até que, um momento, o pretinho Guirigó se chegou sorrateiro, e emitiu em minha orelha. – Tô chefe...” (ROSA, 1986, p. 400 e 414). Na Coluna Prestes também havia dois meninos. Jaguncinho e Aldo. “O primeiro era paulista e se incorporara a Coluna numa das estações de Estrada de Ferro Sorocabana; o segundo era um pretinho que fora encontrado numa fazenda de Goiás, onde era um verdadeiro escravo” (LIMA, 1979, p. 185) Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 253 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Quando, pela primeira vez, comecei a ler Grande sertão: veredas, notei que alguns episódios e personagens pareciam realmente comuns aos escritos de pesquisadores sobre a Coluna Prestes. Outras aproximações entre História e Literatura são possíveis, a partir do contato com Guimarães Rosa. Por exemplo, as doações de alimentos que os jagunços obtinham das populações locais são semelhantes às que eram obtidas pelas tropas de Prestes. E mais, pela censura imputada a Hermógenes, Riobaldo se aproxima novamente da disciplina militar imposta por Prestes a seus comandados. Ouçamos Riobaldo. Medeiros Vaz não maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força, nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes. Mas os Hermógenes e os cardões roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça em qualquer povoal à-toa, renitiam feito peste. (ROSA, 1986, p. 45) Na Coluna também havia requisições. Houve muitos casos em que mulheres, contrariando as ordens de Prestes, invadiram casas e apanharam mantimentos. Muitos homens que também saquearam casas foram expulsos do movimento. Mesmo oficiais que não respeitaram as ordens de Prestes e cometeram outras falhas foram punidos78. Sobre as requisições de alimentos feitas pela Coluna, Luiz Maria Veiga escreve. A princípio houve abusos nessas requisições, pois as mulheres que acompanhavam a Coluna achavam que tinham direito de limpar as casas abandonadas pelos moradores. O comando revolucionário, porém, proibiu o saque indiscriminado, só permitindo que os soldados levassem o que fosse realmente necessário. Entre esses acontecidos, há um caso de um oficial que foi expulso na época e, tempos depois, no ano de 1936, mandou prender o Prestes, já comunista, junto com a sua companheira Olga Benário Prestes. Olga passou por quatro prisões: Barnimstrasse, Lichtemburg, Ravensbruck e Bernburg. 78 254 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Seria punido severamente quem desrespeitasse essas ordens, e, com efeito, chegaram acontecer expulsões por desobediência. (VEIGA, 1992, p, 41). Certo ideário dos fortes em defesa dos fracos, do livre que liberta os cativos e faz justiça, também contamina Arte e História. Com a palavra Riobaldo. Cavalaria de jagunços galopando, saindo para distâncias marcadas. Abriam festas de bomba-real e foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavam tocar o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos, arrancavam o dinheiro da coletoria, e ceavam em Casa-da-Câmara. (ROSA, 1986, p. 95) Anita Leocádia Prestes aponta atos semelhantes quando escreve sobre as atitudes dos oficiais da Coluna em favor dos fracos e dos menos favorecidos. “A Coluna, em sua marcha pelo Brasil, tentava fazer justiça, queimando os livros e listas de cobranças de impostos, soltando os prisioneiros e destruindo instrumentos de tortura que encontrava.” (PRESTES, 1995, p. 81) A localização geográfica dos rios é outro item que aproxima História e Literatura, por meio de quatro escritores: Alan Viggiano, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Abguar Bastos. Alan Viggiano, em sua obra O itinerário de Riobaldo: espaço geográfico e toponímia em Grande sertão: veredas, fala de alguns rios como “Rio Pardo, Grão-Mogol, São Francisco, Paracatu, Carinhanha. [...] Ao Urucuia; onde tanto boi berra, ele está preso pelo amor” (VIGGIANO, 1993, p. 16-17). Estes são outros rios apontados pelo mesmo autor: Preto, Pardo, Canabrava, do Sono, Soninho, e que estão presentes na obra de Guimarães Rosa. Jorge Amado, em seu livro, O cavaleiro da esperança, publicado em 1942, escreve: “Em Minas a Coluna marcha sobre os chapadões limitados pelos rios, Preto, Urucuia, Carinhanha.” (AMADO, 1985, p. 131). Para as jornadas de Riobaldo, estes Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 255 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA mesmos rios eram familiares: “Rio Preto”; “Urucuia”; e “Carinhanha”. (ROSA, 1986, p. 60, 22, 22, respectivamente). Mera coincidência ou influência da história sobre a obra de Rosa? Os nomes dos rios que encontrei na obra de Guimarães Rosa não seriam os mesmos nomes de rios por onde passou a Coluna Prestes? Abguar Bastos, em sua obra Prestes e a revolução social, publicada no ano de 1946, escreve os nomes de alguns rios tais como: “São Francisco”; “rio do Sono”; “Canabrava”; “Paracatu”; “Grão-Mogol”. (BASTOS, 1986, p. 131, 131, 136, 138, 134, respectivamente). Em Grande sertão: veredas os mesmos rios são citados por Riobaldo. “São Francisco – Rio do Chico”; “do-Sono”; “Canabrava”; “Paracatu”; “Grão-Mogol”. (ROSA, p. 60, 64, 60, 60, 59 respectivamente). A obra escrita por Abguar Bastos, publicada em 1946, não teria também passado pelas mãos de Guimarães Rosa? Riobaldo, em suas falas, prevê que aquelas lutas irão entrar para a história e serão contadas por uns cantos do Brasil. “... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... ”(ROSA, 1986,p. 239) A Coluna Prestes entrou para a História do Brasil. Muitos livros e livretos (literatura de cordel) foram escritos sobre esse evento; essa história é parte da cultura popular lida contada e cantada nas feiras do Nordeste. A Coluna se tornou lenda; Luiz Carlos Prestes, histórico: líder do movimento mais importante na década de 20 no Brasil, que é a Coluna Prestes. Jorge Amado (1985, p. 152) transcreve estes versos populares sobre o fato histórico: Uma vez, amiga, numa feira distante, um cego cantava sua recordação de Luiz Carlos Prestes. Deixando os soldados frios. Passava a pé pelos rios, 256 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO As águas se endurecia. Junto do fogo seguia. O fogo lhe protegia A brasa já se esfriava Quando seu pé lhe pisava. Como que autorizando esses versos, na Bolívia, já no exílio Lourenço Moreira Lima faz uma homenagem aos soldados do Exército e da Coluna enterrados no cemitério de La Gaiba. Soldados da Liberdade! Dormi tranqüilos na terra estrangeira que vos acolheu com tanta nobrez, porque os vossos nomes e os vossos feitos serão eternos no coração generoso do Brasil impetérrito, do Brasil que não teme os tiranos, do Brasil que esmagará os déspotas, do Brasil heróico, cuja espada cavalheiresca jamais deixará de ser brandida para maior glória do Direito, da Justiça, da Liberdade. (LIMA, 1979, 523) Riobaldo, nas últimas conversas, fala em ser advogado, escrever um livro, contar as estórias das guerras. “Não queria saber do sertão, agora ia para capital, grande cidade. Mover com comércio, estudar para advogado – Lá eu quero deduzir meus feitos em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras, fama devida...” (ROSA, 1986, p. 537). Esse advogado pode ser Lourenço Moreira Lima, advogado, participante da Coluna, que, com o término do movimento, escreve um livro maravilhoso: A Coluna Prestes (marchas e combates). É uma das primeiras e mais importantes obras sobre a Coluna Prestes. A obra de Guimarães Rosa é sedutora. Lê-la, como fiz, pode ser o caminhar na fronteira entre a História e a Literatura. O escritor enredou estórias história e personagens, utilizou vocabulário regional, chamou pelo nome rios, córregos, lugares, lugarejos, criou nomes não existentes na língua portuguesa e está aí seduzindo leitores de muitas áreas do conhecimento. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 257 DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA Relembrar um dos maiores eventos militares do século XX, no Brasil, que foi a Coluna Prestes, acrescenta muito à obra de ficção de Guimarães Rosa. Mostra que o autor tinha preocupações concretas com a história de sua época. Não pretendi aqui discernir o que é História e o que é Literatura. Os dois saberes misturam-se, embrenham-se por um sertão afora e adentro, descortinando uma sociedade pouco conhecida; valorizada, menos ainda. Reconheço e desejo que reconheçam a grandeza dos valores do modo de ser do sertanejo. Sertão é linguagem, linguagem falando um povo que tem muito a ensinar ao Brasil. REFERÊNCIAS AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança: vida de Luiz Carlos Prestes. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. 351 p. BASTOS, Abguar. Prestes e a revolução social: fatos políticos, condições sociais e causas econômicas de uma fase revolucionária do Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. 312 p. LIMA, Lourenço Moreira. A Coluna Prestes (marchas e combates). 3. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. 631 p. MOZZER, Marcelo Luiz Cesar. A Coluna Prestes: 1924 – 1927. Monografia. (Especialização em Teoria da História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1997. 142 p. PESSANHA, José Américo Motta. História e ficção: o sono e a vigília. In. RIEDEL, Dirce Côrtes. (Org.). Narrativa, ficção e história. Rio de Janeiro: Imago. 1988. PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. 498 p. PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopéia brasileira – a Coluna 258 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Prestes. São Paulo: Moderna, 1995. 111 p. (Coleção Polêmica). ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 36. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 538 p. STARLING, Heloísa Maria Gurgel. Lembranças do Brasil: teoria política, histórica e ficção em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Revan: Ucam, Iuperj, 1999. 192 p. VEIGA, Luiz Maria. A Coluna Prestes. História em aberto. São Paulo: Scipione, 1992. 80 p. VIGGIANO, Alan. O itinerário de Riobaldo: espaço geográfico e toponímia em Grande sertão: veredas. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto. 1993. 64 p. Recebido em 02/08/2008 Aprovado em 10/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 259 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO CLIPE A. Regionalismo: Brasil. 1. pequena peça de metal ou matéria plástica, us. para juntar papéis 2. objeto de adorno feminino com fecho de segurança; broche B. Regionalismo: Brasil. 3. red. de videoclipe [curta-metragem em filme ou vídeo que ilustra uma música e/ou apresenta o trabalho de um artista; clip; clipe] C. Regionalismo: Minho. Uso: informal. 4. eucalipto [etimologia: orig.obsc.; não é impossível, contudo, supor-se tal forma como uma radical redução fonética de eucalipto > *euclip > *oclipe > clipe] Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 261 CLIPE 262 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO BERNARDO CARVALHO: ENTRE TRAMAS E TRAMPAS Beny Ribeiro dos Santos UFRJ Resumo: Bernardo Carvalho, no romance Teatro, concebe uma história em que a ficção e a verdade se movem em domínios constantemente redimensionados no curso da narrativa. O esforço do narrador para demarcar os limites desses domínios é contrário às relações que mantêm entre si na ordem da narrativa. Diante de acontecimentos de fatura reversível, seu esforço de esclarecimento é confrontado por uma experiência de natureza ambígua. Palavras-chave: Ficção. Verdade. Ambigüidade. Résumé: Bernardo Carvalho, dans son roman Teatro, conçoit une histoire dans laquelle la fiction et la vérité se meuvent dans des domaines dont les dimensions changent fréquemment dans le cours du récit. L’effort du narrateur pour signaler les limites de ces domaines est contraire aux rapports que ceux-ci entretiennent l’un avec l’autre dans l’ordre du récit. Face à des événements de facture réversible, son effort d’éclaircissement est confronté à une expérience de nature ambiguë. Mots-clés: Fiction. Vérité. Ambiguïté. A tentativa de determinar de que lado está a verdade não consegue interromper o seu deslocamento para um domínio em que se esquiva da definição mesmo sem o consentimento da vontade de saber. Quando o homem se entrega à procura da verdade, nada, realmente nada, pode evitar sua retirada para um domínio em que não é possível conhecê-la em sua totalidade. A verdade tem seu domínio redimensionado toda vez que a movimentação de fragmentos múltiplos e descontínuos é agenciada na ordem da vida, de modo que os acontecimentos contraditórios e inconstantes passem a ocupar um lugar extraordinário na realidade das coisas. Em Teatro (1998), Bernardo Carvalho coloca em suspensão a certeza da verdade, quando lhe atribui formas diversas no interior da narrativa. Não se pode Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 263 CLIPE acreditar nos acontecimentos narrados numa sintaxe sinuosa sem nenhuma forma de resistência a seu estatuto, uma vez que o narrador, o personagem mais suspeito de toda a história, pode estar mentindo mais uma vez com o objetivo de criar um espaço de incerteza em que é mais fácil se perder do que se encontrar. O romance explora a aporia do esforço de esclarecimento ante a contraposição de um princípio de incerteza atuante na constituição de acontecimentos de fatura reversível. Sua narrativa colide uma multiplicidade de disfarces que envolvem a verdade numa desagregação sem limites. A reprodução da fotografia de um homem de cabeça para baixo na capa do romance antecipa uma série de inversões inesperadas que intervêm no fluxo da narrativa. Teatro é constituído por narrativas ficcionais que encenam testemunhos verdadeiros. Em “Os sãos”, um policial aposentado decide abandonar a capital de um império econômico, para onde os pais haviam emigrado em busca de um futuro melhor, refazendo em sentido contrário o caminho da emigração de anos atrás, quando ainda estava na barriga de sua mãe. O policial cruza a fronteira que isola o país dos “sãos” ao norte da terra dos “loucos” ao sul. O objetivo da fuga é retornar ao país de origem para narrar na língua natal a verdade sobre atentados terroristas contra executivos bemsucedidos na economia da metrópole. A desconfiança em relação aos atentados levou o policial a pedir aposentadoria antecipada. Com a prisão do suposto terrorista, pôde compreender a trama dos atentados que desconhecia em sua totalidade. Enquanto o químico V. assumiu a autoria dos assassinatos, o historiador N. denunciou o irmão às autoridades, depois de reconhecer nas cartas pessoais do suspeito o estilo das cartas públicas que esclareciam a motivação dos ataques com o pó amarelo. A revelação permite que os policiais executem os últimos procedimentos do projeto de conservação da ordem social. Inspirados na teoria do mal necessário, os agentes da ordem forjaram os atentados como estratégia de conservação da coesão social. O policial compreende a farsa de todo o processo somente duas horas após reencontrar Ana C., que o leva ao artigo de jornal com as informações sobre o terrorista. Somente então percebe que sua entrada na polícia não ocorreu por acaso: a organização o contratara conhecendo sua ligação com o autor da teoria do mal necessário, como também seu projeto de se tornar um escritor. Durante anos sua única função na polícia tinha sido ouvir e escrever: era o autor das cartas publicadas nos jornais de todo o país que criaram uma teoria 264 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO de explicação do mundo na ótica de um terrorista paranóico. As cartas enviadas às vítimas pelos policiais criam em todo o país uma atmosfera de insegurança e desconfiança generalizada, uma vez que qualquer um pode ser um terrorista em potencial. O policial esperava que o terrorista aparecesse para corrigir a usurpação dos atentados, no entanto, durante vinte anos, o terrorista permaneceu em silêncio. Antes do sétimo atentado, pela primeira vez, o policial recebeu ordem para escrever uma carta antecipada: queriam que deixasse prontas as cartas dos futuros atentados. A ocorrência do sétimo atentado como previsto na carta fez com que deixasse a polícia. A desconfiança virou certeza quando leu a notícia da prisão do suposto terrorista. Ainda que quisesse permanecer com Ana C., decidiu deixar a capital do império. Na fuga, comprou uma certidão de óbito falsa, foi à cabana no gelo à procura de uma fórmula secreta, partiu para a terra natal de seus pais, pois somente fora do país dos sãos podia restituir na língua antiga de seus pais alguma verdade ao que ouvira durante anos: “Só nesta língua posso restituir a verdade infame dessa história. E o sarcasmo que lá não existe. Só aqui as coisas podem fazer algum sentido” (CARVALHO, 1998, p. 23). A escrita de “Os sãos” tem por objetivo justamente desmascarar as imposturas dos agentes da ordem. Quando o narrador chega ao término da investigação dos acontecimentos, revela seu nome próprio e encerra em código cifrado o primeiro bloco do romance com a frase: “Até que Daniel para de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43). Em “O meu nome”, um fotógrafo de paisagem, obcecado pela verdade que somente pode existir nas coisas inanimadas, se dedica, da mesma forma que o policial aposentado, a conhecer a natureza de uma conspiração nebulosa. O centro da investigação é um ator de vídeos pornográficos que se autodenomina Ana C., tão impalpável como o espectro de um fantasma que se esquiva da matéria concreta. Este nome aparece na primeira parte do romance associado à namorada do policial aposentado que mais tarde será observada na atuação em vídeos pornográficos. Ana C. deixou o país natal onde se iniciou na prostituição e atravessou a fronteira ilegalmente para trabalhar na capital da pornografia. Sua atuação desperta nos fãs de todo o mundo uma espécie de loucura que parecia estar adormecida. A maior parte desses admiradores vive em hospícios onde escreve uma literatura tão incorpórea quanto Ana C. Da mesma forma que uma atmosfera de irrealidade cercava o astro, a literatura escrita nos hospícios estava repleta de acontecimentos inverossímeis. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 265 CLIPE A indicação do fotógrafo de paisagem para compor a equipe de produção dos filmes em que Ana C. interpreta a si mesmo é agenciada por uma revista sensacionalista que deseja apurar sua participação na morte de um político importante. O fotógrafo exerce o papel de um agente infiltrado na indústria pornográfica para descobrir o real envolvimento do astro no suposto homicídio relacionado com o comércio do sexo. Tempos depois Ana C. descobrirá que o senador com quem estivera numa transação jurídica não estava morto. Não poderia conhecer os fatos antes de vê-lo na televisão, pois não sabia como se chamava na realidade, nem chegou a ver sua fotografia nos jornais. O fotógrafo vislumbra uma série de farsas em que Ana C. pode estar envolvido. É impossível saber de que lado está a verdade, já que tanto Ana C., quanto o fotógrafo podem estar mentindo. Assim como o policial aposentado é enganado e introduzido num mundo que se movimenta, se modifica, se mimetiza, Ana C. participa de um baile de máscaras que complica a realidade, a existência, a verdade. O que mais surpreende num enredo repleto de imposturas é a revelação final de que tudo o que foi escrito em nome da verdade não passa de um artifício cuja realidade se transforma toda vez que a verdade e a ficção têm seu domínio redimensionado. Não por acaso o fotógrafo de paisagem também se chama Daniel, o que traz à lembrança a fórmula que aparece na primeira parte do romance: “Até que Daniel pare de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43). A série de acontecimentos narrada em ambas as partes do romance desperta a dúvida insidiosa sobre a natureza das coisas. Falta definição à fronteira entre a verdade e a mentira que se misturam de maneira inextricável num mundo repleto de oscilações que surpreendem a cada virada de página. Mesmo conhecendo pouco a pouco o domínio em que a verdade e a ficção mudam de lugar com bastante freqüência, ainda se é surpreendido pelo que deixa de ser o que é não mais que de repente. Nesse quadro, o narrador se fragmenta em várias situações em que circulam identidades diferenciadas: ora é Daniel que inventa um personagem terrorista e configura uma realidade onde a ficção se finge de verdade, ora é Daniel que inventa um personagem ator e configura uma realidade onde as perspectivas são tão várias quanto as necessidades criadas. A narrativa é, de fato, o grande teatro do mundo, em que a verdade e a ficção se afastam, se aproximam, se enredam num baile de máscaras vertiginoso. Daniel, o policial, quer contar a verdade na língua antiga de seus pais. Daniel, o fotógrafo, é um obcecado pela verdade inanimada da fotografia. 266 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Ambos querem envolvê-la numa fortaleza, impedi-la de escapar do círculo de observação, definir o conhecimento em que habita silenciosa e enigmática. Mas o narrador verte e reverte, diz e desdiz, quando ouve e escreve sua narrativa. Não se pode confiar em seu testemunho, uma vez que não tem o estatuto de verdade, cuja história permanece inacabada, como As mil e uma noites, em que Cheherazade narra uma história sem fim. Como numa sala de espelhos onde nada é o que parece ser, é difícil se decidir por um caminho. A busca da verdade pode ser um sonho absurdo, no entanto ainda não perdeu completamente o sentido, sobretudo quando se encontra no domínio em que a ambigüidade impede que a consciência represente a experiência na forma de um conhecimento unificado. Teatro reúne uma série de suspeitas em relação à multiplicação de disfarces na narrativa. Costa Lima se pergunta se o narrador é um louco ou alguém que assim se finge para escapar dos sãos. O crítico associa o romance “a um jogo de espelhos” em que cada um reflete e distorce “a imagem do outro”. “Cria-se assim um fascinante quadro de incertezas que aposta em um leitor dotado de um interesse decifrativo semelhante” (2002, p. 273-4). O narrador demonstra que a verdade conhecida tem origem nas criações humanas que podem ou não conservar a coexistência de antagonismos e indeterminações na ordem da vida. A denúncia da farsa programada dos policiais manifesta certos mecanismos dos sistemas de regulação que exercem um alto controle sobre a vida, principalmente quando tentam prever os acidentes, ordenar as sedições, abolir os refugos da realidade, estratégias usadas para compor uma organização capaz de purificar o “normal” do “patológico”. O testemunho de Daniel apresenta uma sociedade corrompida pelo dinheiro da imagem, pela religião do mercado, pelo teatro da ficção. O risco da ficção sem limite é introduzir na ordem da vida determinações que impeçam a expansão do horizonte da experiência. Platão temia que a ficção criasse monstros de toda espécie e destruísse a ordem da cidade. Para Daniel, “O problema é menos a mentira em si do que seu poder de contaminação, porque ela desestrutura todas as verdades, faz você perder o rumo e não saber mais o que está fazendo” (CARVALHO, 1998, p. 48). Mas a ficção propõe outras formas para contrapor ao mundo conhecido. Ficcionar é uma atividade inclusiva que interfere no sentido da vida. Como o paranóico que não suporta a idéia de um mundo sem sentido e procura atribuir um sentido mesmo onde não há sentido algum, a ficção explora todo um repertório de situações Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 267 CLIPE inauditas colocadas à disposição do escritor ao fundar mundos no mundo. A vontade de conhecer mundos inexplorados faz com que o homem ultrapasse o limite do conhecimento estabelecido e percorra domínios estranhos onde ainda estão para ser inventados o norte e o sul, o leste e o oeste. Daniel atravessa a fronteira em direção ao país dos loucos onde impera uma lógica diversa da distribuição dos seres no país dos sãos. Ana C. atravessa a fronteira em direção ao país dos sãos onde introduz a lógica do ser indeterminado numa forma imaterial. Ficcionar não é, portanto, como confirma Platão ironicamente, uma atividade que possa ser simplesmente deixada de lado. Enquanto a ficção explora as perspectivas que atravessam a constituição de uma experiência tumultuada, sinaliza que a verdade pode ser buscada na direção contrária à que está sendo seguida no momento atual pela necessidade de se fundamentar uma representação na ordem da vida. Teatro põe em cena um (des)enredo formado por inversões contínuas que desafiam a lógica previamente constituída. À medida que o narrador força o limite da verossimilhança interna, outra lógica domina a realidade da narrativa, o critério de verdade uniforme não resiste à ação da ambigüidade sobre sua natureza. Paranóia, alucinação, história extraordinária; ilusão, loucura, história insensata; farsa, invenção, história inverossímil; estiramento da lógica, quimera de imposturas, grande teatro do mundo; Teatro é uma narrativa de ficções que se fingem de relato da verdade. Dizer que o romance está para além do sistema mimético enquanto representação analógica da realidade estabelecida não explica como é preciso a forma da narrativa de Teatro. Tanto a verdade, quanto a ficção não são passíveis de determinação no romance. A composição da narrativa numa sintaxe enviesada rompe com o postulado da mimese representativa, o que equivale a escapar da vontade de verdade do romance realista e desarticular a expectativa em relação à descoberta da verdade. A natureza da verdade pode mudar de sentido a qualquer momento, determinando uma nova direção e inteligibilidade para o sentido da narrativa. Se a distribuição dos componentes da narrativa pode ser redimensionada na trama das ações sempre que convier à apresentação de uma experiência desconhecida, torna-se impossível definir definitivamente a natureza de acontecimentos envolvidos numa ordem de sentido reversível. O sistema da ficção se apropria da lógica do ilógico que organiza, a seu modo, novos esquemas de sentido: “Só a lógica do ilógico pode trazer algum entendimento, alguma visão onde tudo se tornou cegueira, fazer você enxergar, por 268 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO trás da cortina de sentido, um outro sentido que possa dar conta da compreensão do mundo, já que este não funciona” (CARVALHO, 1998, p. 131). A narrativa de Bernardo Carvalho carrega consigo o problema da definição de parâmetros para a compreensão de algo que em si mesmo não pode ser compreendido ou que não pode ser compreendido em sua totalidade. A confabulação das palavras não é apenas uma fonte de ficções multifacetadas, mas também um poderoso instrumento de formação de realidades antropomórficas. As perspectivas permanecem, portanto, confundidas no imaginário do narrador: a ficção é uma realidade indeterminada, a realidade é uma ficção naturalizada. Para reconhecer a ambigüidade que assinala cada acontecimento, basta acompanhar o percurso do narrador. Daniel, o policial aposentado, se apresenta, desde o início da narrativa, como o defensor dos atributos da verdade. É preciso contar tudo o que sabe sobre a impostura dos agentes da ordem para que algum resíduo da verdade possa ser conservado na memória do leitor. Daniel é a única testemunha de todo o processo. Sua única função durante anos a fio tinha sido ouvir e escrever no trabalho como policial. Era a memória da polícia. No entanto, é a própria testemunha que alimenta a desconfiança do estatuto formal de sua memória, já que tudo depende de seu ponto de vista, tudo está apenas em sua cabeça, não se pode confiar em ninguém. Os momentos de instabilidade se multiplicam entre as conexões da narrativa. Não parece haver limite para o encadeamento de acontecimentos suspeitos em sua composição. Embora a indefinição domine a realidade mais extrema – quanto mais se procura a verdade, mais distante ela se encontra da experiência –, a escrita ainda se aventura na exploração de certos pontos de indeterminação na realidade. O processo não tem a forma de uma resposta definitiva para o problema inicialmente vislumbrado. Define-se antes como um descompasso que atravessa as situações existenciais e contamina tudo o que se encontra à sua volta, como o pó amarelo dos atentados que faz tudo perder o sentido: “O inferno é descobrir que você nunca foi o que pensava que era. É morrer e descobrir que o que você achava que era não é nada” (CARVALHO, 1998, p. 112). A narrativa de Teatro, como a de Os bêbados e os sonâmbulos, é tributária da concepção de arte como poiesis, o que faz dela uma potência poética capaz de introduzir no mundo algo que antes não fazia parte de sua configuração, em vez de simplesmente reproduzir Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 269 CLIPE o mundo conhecido: Sob as ordens deles inventei sem saber o “terrorista”. E foi só quando percebi que a minha palavra se tornava realidade é que decidi me afastar, e nunca mais escrever nada, amaldiçoado, a não ser nesta outra língua, que eu mal entendo. Só nesta outra língua posso contar a história sem riscos, sem que eles usem as minhas palavras em benefício próprio, sem que elas se tornem realidade. Só nesta outra língua pobre posso escapar deles e contar o meu plano para reparar, ainda que parcialmente, os estragos, o plano que concebi ao ler o jornal, duas horas depois de ter reencontrado Ana C. na rua (CARVALHO, 1998, p. 77). Do ponto de vista etimológico, “paranóia” significa um distúrbio geral da razão que se extraviou do intelecto em algum momento. A paranóia é a forma insurgente de todas as idéias que são organizadas num fluxo de sentido determinado além do limite da lógica conhecida. Se o mundo se nega a oferecer um sentido, o paranóico encontra a situação ideal para se tornar o autor de seu próprio mundo: “O paranóico não pode suportar a idéia de um mundo sem sentido. É uma crença que ele precisa alimentar com ações militantes, para mantê-la de pé, tal é a força com que o mundo a contraria” (CARVALHO, 1998, p. 31). Daí entende-se que a ficção, sendo por definição a criação de seres imaginários, seja uma espécie de atividade paranóica que busque configurar sistemas de sentido em descompasso com a lógica que regulamenta as representações sociais. A ficção se torna responsável pela formulação de um pensamento original e independente que se investe do repertório necessário para se contrapor às representações naturalizadas. À medida que as cartas são encaminhadas às vítimas dos atentados, Daniel compõe livremente uma teoria do mundo na ótica de um paranóico. Nelas imagina as feições psicológicas de um homem perturbado, identifica a manipulação do processo civilizatório e propõe uma organização que restitua valores humanos fundamentais que estavam sendo destruídos em nome dos interesses do capital industrial e tecnológico. A paranóia, como uma razão tortuosa que foge às normas habituais, encerra uma visão parcial da realidade que busca compreender a totalidade do mundo. Seu parentesco com a loucura se encontra em sua capacidade de formulação de lógicas que desafiam o pensamento racional, consensual, quando é preciso 270 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO atribuir uma interpretação a acontecimentos que não se ajustam uns aos outros. Quando os agentes da ordem buscam desterrar as formas de insanidade para o país do sul, querem impedir que desestruturem a ordem de sentido dominante no país que governam. Teatro mostra que o estado de doença, como a loucura, pode ser a saída de muitos impasses que imobilizam a existência. Como palavras ambíguas que apresentam um sentido cifrado, a enfermidade pode ser uma cura, a contaminação pode ser uma purificação, o veneno pode ser um medicamento, contanto que o estado de doença seja compreendido como uma potência ficcionante, capaz de engendrar as ficções mais fantasiosas, as realidades mais imateriais, as lógicas mais impensáveis, sempre contornando situações extremas que não podem ser controladas em sua totalidade. O modelo teórico que opera na ficção de Bernardo Carvalho está contido na fórmula obscura: “Até que Daniel pare de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43). Daniel se deparou com a fórmula incompreensível numa das primeiras noites em que saiu pelas ruas da cidade fantasma. Trata-se de um código cifrado usado numa variedade de situações comunicativas que dificultam o entendimento de seu verdadeiro significado: “É como um ponto impenetrável da língua pobre do meu pai. Também não me atrevo a perguntar o que significa, já que me parece uma expressão tão corriqueira” (CARVALHO, 1998, p. 44). Somente os iniciados em sua linguagem que não se sentem ameaçados em sua presença podem compreender seu sentido. A referência ao profeta israelita é explícita e retorna novamente na segunda parte do romance. É preciso lembrar que tanto o policial aposentado, quanto o fotógrafo de paisagem têm identificação homônima. Às últimas linhas do romance, descobrese que ambos são uma só e mesma pessoa, quando se trata de definir a fonte primordial de onde derivam as histórias de Teatro. Somente enquanto instância original que controla o ficcionamento de realidades podem ser considerados a mesma pessoa, uma vez que assumem identidades diferentes nas duas partes do romance. Consta que Nabucodonosor teve um sonho tão perturbador, que foi preciso exigir dos mágicos a narração de seu conteúdo antes de apresentarem sua interpretação. Como os mágicos disseram que somente os deuses poderiam adivinhar o conteúdo dos sonhos, o rei babilônico decretou a morte de todos os sábios daquele país. Para evitar o assassinato coletivo, Daniel, que estava entre os escribas do rei, teve o conteúdo do sonho revelado pela intervenção de Deus: Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 271 CLIPE o sonho antecipava a sucessão de monarcas que ocupariam o trono no reino de Nabucodonosor (Dn, 2, 1-49). Na visão de Ana C., o rei ordenou que Daniel narrasse antecipadamente o sonho para não ser enredado numa interpretação falaciosa. Curiosamente o profeta narrou o sonho que era de natureza sigilosa, e o rei não discutiu a autenticidade da narração, passando a ouvir a interpretação da narrativa. Se Daniel realmente inventou o sonho, como também a interpretação de sua simbologia, a realidade verdadeira não se confundia com uma certa natureza essencial do mundo. Para Ana C., o desafio de Nabucodonosor aos intérpretes deixa transparecer que cada interpretação cria a sua realidade, portanto, a realidade se fundamenta numa interpretação: “e foi isso que Daniel compreendeu ao responder ao desafio com um sonho que provavelmente inventou na hora” (CARVALHO, 1998, p. 84). A fórmula obscura “Até que Daniel pare de sonhar” é uma mensagem codificada da teoria ficcional que orienta a execução dos procedimentos de composição na narrativa de Bernardo Carvalho. Somente quando Daniel parar de sonhar, o jogo de disfarces replicantes será suspenso da realidade. A necessidade de enveredar por um sentido que prescinda do mundo previamente constituído aparece em outras fórmulas do romance. N. busca insistentemente encontrar o “tesouro dos cátaros”, e V. vive fazendo cálculos à procura da “fórmula da humanidade”. O tesouro é um pergaminho enterrado numa urna de latão no qual está escrita uma nova teoria do mundo em grande parte em língua d’oc. Consta no manuscrito cátaro que o corpo é a sede da verdade – o corpo traz consigo todas as respostas, de onde viemos, para onde vamos, o que somos, por que estamos aqui –, no entanto, por ser uma invenção do demônio, não revela o conhecimento que detém consigo, o que impede que a alma possa conhecer a verdade. Para poder se encontrar com a verdade, a alma precisa se pôr em desacordo com o corpo, o que promove a desarticulação do processo de naturalização do sentido e, conseqüentemente, a reflexão sobre a corrupção da verdade, que é a maior arma contra a sua fuga do domínio do conhecimento. A teoria do mundo expressa na ótica do manuscrito cátaro retoma antigas crenças do platonismo, que concebe o corpo como a prisão da alma e a verdade como o bem absoluto que pode ser conhecido somente por iniciados no processo de depuração da forma essencial. A fórmula da humanidade, por sua vez, compreende um sistema de sentido que elide o mundo conhecido de sua representação. Trata-se de um mundo expresso em fórmulas e números jamais concebidos, 272 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO um mundo imaginário que talvez seja perfeito em sua integridade e que está codificado em fórmulas matemáticas incompreensíveis, porque simplesmente apresentam um mundo desconhecido. As duas teorias se cruzam na narrativa de Daniel. O pergaminho dos cátaros contém passagens expressas em código desconhecido que se oculta por trás da linguagem verbal. N. envia os manuscritos secretos a V. para que possa traduzi-los em linguagem matemática. V. consegue decifrar a incógnita do tesouro cátaro numa sucessão interminável de números e sinais matemáticos que apresenta para solucionar o problema da verdade. (In)felizmente somente V. teve acesso ao sentido desse mundo regido por uma lógica desconhecida. O tesouro dos cátaros e a fórmula da humanidade conduzem à descoberta de uma teoria, um conhecimento, uma perspectiva que se mantém fora do consenso gregário. O idealismo de projetos dessa natureza não esconde o desejo de superar o limite que impede o homem de ter acesso a realidades de conformação mais perfeita. Daniel analisa os atentados terroristas, investiga o assassinato do senador, procura a fórmula da humanidade, busca o tesouro dos cátaros, interpreta o código dos sonhos... A aporia da verdade com que se confronta nesse caminho parece ser insolúvel. Contudo, o empenho por resolver o problema impulsiona a vontade de saber na exploração de um mundo incongruente à espera de compreensão. A procura da verdade, contrariando a vontade de determinação da razão objetiva, desencadeia a proliferação de narrativas de fatura reversível. O acontecimento possibilita a invenção de-fórmulas-decódigos-de-lógicas que reflete a formação emblemática da demanda absurda cada vez envolvida por uma visão parcial do mundo tentando compreender a totalidade da existência. Ao criar uma ficção em que não pára de se movimentar o motocontínuo de multiplicantes pontos de indeterminação, Bernardo Carvalho resiste à naturalização das experiências que restringem o horizonte da consciência. Sempre que ultrapassa o limite do sentido determinado na ordem do mundo conhecido, libera as condições inumeráveis que podem se desprender do desconhecido. O mundo ficcional adquire a forma de um acontecimento tão inesperado, a tal ponto estranho e desconcertante, que a única regra da ficção parece ser o conflito contínuo com a ordem do mundo conhecido. Estancar o fluxo desse mundo de sentido indeterminado, onde o estiramento da lógica está subordinado à escolha da imaginação, pode restituir Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 273 CLIPE alguma função à vontade de verdade. No entanto, uma vez que a ambigüidade se introduziu em todas as coisas, todo esforço por conter a disseminação do sentido está fadado a se tornar a fábula mais inverossímil. Se a verdade pode ser exatamente o contrário daquilo em que se acredita de fato, se a verdade não passa de uma ficção lógica que se naturalizou no imaginário social, se a verdade não se justifica como fundamento senão criando disfarces para ocultar sua natureza, como pensava Nietzsche, pode-se começar enfrentando o problema da verdade pela impossibilidade de sua existência: “Toda aquela história tinha apenas servido para me confirmar o que sempre soube, que não há verdade possível entre os homens, ‘um dia estão de um jeito, no outro, de outro’, e que só as coisas inanimadas podem me dar alguma certeza” (CARVALHO, 1998, p. 127). REFERÊNCIAS AS MIL E UMA NOITES. Versão Antoine Galland. Trad. Alberto Diniz. 16. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 2 v. BÍBLIA SAGRAGA. 37. ed. Trad. Centro Bíblico Católico. Ave Maria: São Paulo, 1982. CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. CARVALHO, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. LIMA, Luiz Costa. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. PLATÃO. A república. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Recebido em 10/08/2008 Aprovado em 02/09/2008 274 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO NA FRONTEIRA DAS PALAVRAS: A TEORIA DE BAKHTIN E A POÉTICA DE FERREIRA GULLAR COMO RESPOSTAS AO PROBLEMA DO FORMALISMO Rafael Campos Quevedo UnB Resumo: Este trabalho apresenta alguns argumentos da crítica de Bakhtin à “estética material” a fim de traçar paralelos com a trajetória poética de Ferreira Gullar tendo em vista a sua fase “pré-concreta” (A luta corporal), sua produção de vanguarda e seu posterior caminho de afastamento do concretismo. Aponta-se, aqui, para uma similaridade no modo de compreender a questão do fazer poético que passa, em ambos os casos, por uma crítica às poéticas formalistas. Palavras-chave: Formalismo. Ferreira Gullar. Mikhail Bakhtin. Résumé: Ce travail propose quelques arguments de la critique de Bakhtin à ‘l’esthétique matérielle’, mis en parallèle avec la trajectoire poétique de Ferreira Gullar abordant sa phase ‘pré-concrète’ (A luta corporal), sa production d’avant-guarde et son éloignement ultérieur du concrétisme. On démontrera, ici, une similitude dans le mode de compréhension du savoir-faire poétique, dans les deux cas, à travers une critique de la poétique formaliste. Mots-clés: Formalisme. Ferreira Gullar. Mikhail Bakhtin. A preocupação do Formalismo em fundar uma ciência da literatura exigiu da parte de seus teóricos o estabelecimento de alguns elementos indispensáveis a tal escopo, entre os quais a delimitação de um objeto de estudo próprio, ou seja, empiricamente discernível do objeto de outras disciplinas e um aparato metodológico adequado a tal objeto, condições sem as quais não se chega a nenhuma generalização científica, pelo menos dentro dos moldes de um conhecimento de inegável inspiração nos modelos das ciências naturais, como foi o caso, afinal, não só do formalismo russo como, também, de boa parte das ciências humanas em suas origens. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 275 CLIPE Um equivalente poético da visão formalista pode ser encontrado na prática dos poetas concretistas, especialmente na obstinação com que o movimento brasileiro perseguiu a “poeticidade” através do máximo de distanciamento possível com relação ao uso “comum” da linguagem. A Poesia Concreta assimilou a noção formalista de “estranhamento” que, grosso modo, seria a marca que conferiria a um determinado registro lingüístico o seu caráter poético, assim como, do ponto de vista teórico, asseguraria ao formalismo a delimitação de seu objeto, que já não seria a linguagem em si mesma, mas a língua em sua manifestação especificamente poética. É preciso ter em mente que o Concretismo foi o ponto de encontro de Ferreira Gullar com os poetas paulistas1, sistematizadores teóricos do movimento concretista no Brasil. Tal convergência representou, para o poeta maranhense, uma possibilidade de expressão fora da escrita convencional que já havia sido “implodida” em seu segundo livro: A luta corporal2. A seguir, um trecho de “Roçzeiral”, poema em que a referida implosão se inicia: Au sôflu i luz ta pompa inova’ orbita FUROR tô bicho ’scuro fogo Rra (GULLAR, 200) Na explicação fornecida pelo próprio autor acerca do sentido da desagregação do significante levada a cabo em alguns dos poemas do referido livro3, Gullar fala a respeito de sua necessidade, naquela Por concretistas referimo-nos, neste trabalho, aos fundadores do grupo Noigandres, os poetas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, sistematizadores do corpus teórico do movimento e autores de boa parte dos poemas a ele vinculados. 1 Para efeito de uma visada mais geral da obra de Ferreira Gullar estamos considerando Um pouco acima do chão (1949) seu primeiro livro, embora ele não esteja incluído em Toda poesia (2008). Cf. “Referências”. 2 Conferir o texto “O inimigo das palavras” em Indagações de hoje (cf. referências). 3 276 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO altura, de concretizar o que ele chamou de “poema essencial” que seria a pretensão de se captar a experiência vivida sem a mediação da linguagem que, na problemática em questão, era objeto de descrédito quanto às suas possibilidades expressivas. Evidentemente, poemas como “Roçzeiral” assinalam a radicalização de uma questão que, a rigor, é inerente a todo fazer artístico: o embate do artista com o material de que dispõe para enformar o conteúdo de sua expressão. Assim, a intenção de imprimir na matéria verbal a experiência do “canteiro ressequido da praia de Botafogo” de forma mais imediata (ou seja, sem mediação) e que poderia, muito bem, ser expresso como “ao sopro e luz tua pompa se renova numa órbita”, resultou no tipo de ruptura da linguagem assinalada no fragmento acima. Vale, para começar, enfatizarmos os elementos que compõem a problemática em foco. O primeiro deles discute a questão do poeta como artista, cuja tarefa instaura-se entre dois pólos: o mundo e a língua como material (segundo e terceiro elementos, respectivamente), esta última nada possuindo de “estético” em si mesma, uma vez que é largamente utilizada para fins, digamos, “instrumentais”. Tal como esse material “desgastado” pelo uso cotidiano, o mundo também não carrega, consigo, a cintilação de um evento excepcional, já que canteiros ressequidos podem ser encontrados sem esforço e, como são dados à percepção cotidiana, habitam o reino da banalidade da vida ordinária. Dependendo de em qual dos elementos (poeta, mundo e material) se puser a ênfase, pode-se verificar o princípio germinal de cosmovisões distintas sobre o problema estético. Genericamente falando, se se deposita sobre o poeta o fundamento do fenômeno artístico podem-se haurir versões “subjetivistas” da questão que vão desde a explicação romântica do gênio criativo às justificativas psicológicas da obra. Se é sob o prisma do mundo externo, considerações de índole “realista” (como todas as abordagens do literário que se atêm aos aspectos conteudistas do texto, como o historicismo e o sociologismo) podem ser obtidas e, por fim, se a ênfase recai sobre o material temos, sobretudo, o formalismo como principal arrazoado teórico da questão. Nada impede, contudo, que tais elementos sejam postos em relação entre si e que uma visão teórica diagnostique a legitimidade que cada um possui para o todo da obra artística. A nosso ver, a reflexão de Bakhtin, especialmente em seu texto de 1924 intitulado “O problema do conteúdo, do material e da forma Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 277 CLIPE na criação literária4”, equaciona de forma bastante convincente tal problema. Bakhtin denominou de “estética material” a posição teórica segundo a qual o fundamento da obra de arte coincide com sua realidade empírica e se encontra no material do qual ela se serve. Logo de início, o autor aponta para a insuficiência dessa abordagem alegando a redução, por ela promovida, do fenômeno literário a problemas estritamente lingüísticos. Sempre interessado numa visão de conjunto, o pensador russo não descartará, em nenhum momento de sua argumentação, a importância de se tratar a obra literária desde uma perspectiva lingüística, mas considera ser esta um dos momentos da análise literária e não a sua totalidade. Em tal argumento fica clara uma das premissas fundamentais do pensamento bakhtiniano que serviu de esteio a toda a sua discussão no ensaio em questão: a de que nenhum modelo estritamente científico (especialmente por carregar a reivindicação de um objeto empírico) seria adequado à abordagem do fenômeno artístico e que, em seu lugar, seria preciso se readmitir a estética filosófica, ainda que reelaborada a partir de bases nãometafísicas. Dessa forma, apenas um método de cunho filosófico que, por natureza, não delimita fronteiras quanto aos objetos dos quais se ocupa (mas, ao contrário, busca “problemas” nos mais diversos campos do saber) estaria apto a tal empresa, uma vez que o afã de “cientificizar” a arte poderia dar conta, apenas, de uma parte do seu todo que seria, justamente, a de sua fatura material. O que vale para uma consideração metodológica do formalismo serve, a nosso ver, para o propósito de uma crítica às poéticas que com ele se afinam. Os textos da Teoria da poesia concreta que, como se sabe, assumiram filiação ao construtivismo e ao formalismo artísticos, estão repletos de menções à centralidade que o aspecto físico da palavra ocupa na poesia. Para os concretistas, vale a palavra como “coisa”, objeto auto-suficiente que oblitera o referente e oferece sua própria “estrutura” como conteúdo. Declaradamente, os poetas em questão alistam-se em uma estirpe de autores caudatária do adágio mallarmaico de que o poema é feito com palavras e não com idéias. Recolocando os vértices da triangulação do problema artístico diríamos que, para a Poesia Concreta, interessa rasurar as marcas tanto 4 cias) 278 • Primeiro capítulo de Questões de literatura e de estética (cf. Referên- Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO do referente (mundo) como do autor em favor de um encarecimento do material. A intenção artística do poema concreto seria a exibição da materialidade do significante e a tarefa do poeta descobrir-lhes possibilidades insuspeitas. Se compararmos tal proposta com a intenção de Gullar ao dilacerar o corpo do significante em “Roçzeiral”, percebemos que, enquanto para o autor de A luta corporal a intenção era romper com a linguagem a fim de que o real fosse iluminado de forma mais direta, para os poetas-teóricos do grupo Noigandres esse real era posto entre parênteses para uma melhor “presentificação” da realidade material do signo lingüístico. A esse antagonismo quanto ao papel da palavra dentro do poema, diremos que tudo se passa como se, para a Poesia Concreta, o significante devesse possuir um caráter “opaco”, similar ao do objeto, enquanto que, para Gullar, interessaria que a palavra fosse “translúcida”, ou seja, que se deixasse, o quanto possível, ser atravessada, para que o mundo pudesse ser entrevisto através dela. Uma rápida análise de um poema de maturidade de Ferreira Gullar (extraído de seu último livro Muitas vozes5) suscitará questões relevantes ao rumo de nossa exposição. Pela sua extensão, optamos por reproduzi-lo integralmente em nota de pé de página cuja leitura requisitamos para a entendimento das considerações que se sucederão. Todo poema (ou seja: a “não-coisa”) é a tradução, para a “lógica do ouvido”, (10º verso) daquilo que “não tem sentido” (12º verso) na “Não-coisa” (título do poema): “O que o poeta quer dizer/no discurso não cabe/e se o diz é pra saber/o que ainda não sabe. // Uma fruta uma flor/um odor que relume…/Como dizer o sabor,/seu clarão seu perfume?//Como enfim traduzir/na lógica do ouvido/o que na coisa é coisa/e que não tem sentido?//A linguagem dispõe/de conceitos, de nomes/mas o gosto da fruta/só o sabes se a comes//só o sabes no corpo/o sabor que assimilas/e que na boca é festa/de saliva e papilas//invadindo-te inteiro/ tal do mar o marulho/e que a fala submerge/e reduz a um barulho,//um tumulto de vozes/de gozos, de espasmos,/vertiginoso e pleno/como são os orgasmos//No entanto, o poeta/desafia o impossível/e tenta no poema/ dizer o indizível://subverte a sintaxe/implode a fala, ousa/incutir na linguagem/densidade de coisa//sem permitir, porém,/que perca a transparência/ já que a coisa é fechada/à humana consciência.//O que o poeta faz/mais do que mencioná-la/é torná-la aparência/pura — e iluminá-la.//Toda coisa tem peso:/uma noite em seu centro./O poema é uma coisa/que não tem nada dentro,//a não ser o ressoar/de uma imprecisa voz/que não quer se apagar — essa voz somos nós.” (GULLAR, 2008, p. 450). 5 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 279 CLIPE coisa. A coisa é substância “densa” (“toda coisa tem peso” – verso 45º) e opaca (pois com “uma noite em seu centro” – 46º verso). O sentido não está nela mesma já que pressupõe alguém que a sinta (“sentido”, possui, aqui, a acepção de “razão de algo” como indica, ao mesmo tempo, o particípio do verbo “sentir”). O poema em questão assinala que é no corpo que o real repercute o seu sentido e a coisa faz-se sentida, gerando o conteúdo da experiência a ser traduzido pelo poeta. Aqui, “saber” retoma seu parentesco etimológico com “sabor”: “mas o gosto da fruta/só o sabes se a comes//só o sabes no corpo/o sabor que assimilas/e que na boca é festa/de saliva e papilas”. Por serem de naturezas distintas, a linguagem é, por definição, nãocoincidente com a coisa. Usando uma imagem extrema: ao falarmos “flor” não vertemos uma flor pela boca, ou seja, não “presentificamos” o objeto, mas nos contentamos com sua representação substitutiva, pela palavra. Nesse instante da análise o poeta tem diante de si não a coisa, mas a repercussão dela nos seus sentidos. Seu desafio: converter o reino da experiência em canto. Para tanto: “[...] o poeta/ desafia o impossível/e tenta no poema/dizer o indizível://subverte a sintaxe/implode a fala, ousa/incutir na linguagem/densidade de coisa//sem permitir, porém,/que perca a transparência/já que a coisa é fechada/à humana consciência.” (29º ao 40º verso). Os grifos indicam a dicotomia opacidade/translucidez da qual lançamos mão para estabelecer o antagonismo entre a palavra “concreta” e a palavra do “poema essencial” almejado por Gullar. Isso posto, convém agora promovermos o paralelo mais próximo com os argumentos de Bakhtin na obra já referida. Antes disso, um rápido preâmbulo sobre o formalismo concretista. Pode causar surpresa aos leitores desavisados da Teoria da poesia concreta que o movimento tenha professado a possibilidade de um poema que não fosse discurso sobre elementos externos, mas que seu conteúdo fosse auto-referencial, dando a entender que se tratasse de uma tentativa de forçar a arte verbal a assumir o mesmo estatuto, por exemplo, de um quadro ou uma escultura abstrata cuja possibilidade de utilização dos materiais (a cor, o mármore etc.) sem referência a objetos naturais é não só possível como largamente realizável. Fato é que os poetas concretos, cônscios da especificidade do material verbal (o fato de que ele parte de um sistema já significante ao contrário da linha ou da cor), incorporaram a idéia joyceana de espaço 280 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO verbivocovisual que continha, no radical “verbi”, o estrato semântico da palavra (sendo o “voco” e o “visual” as camadas sonora e plástica, respectivamente) sendo, este, a garantia do inexorável elo do signo verbal com o mundo. Malgrado tal ressalva, a carga semântica da palavra, se não é totalmente proscrita da natureza do signo (o que seria impossível), é de tal forma equiparada com suas outras dimensões que, não raro, o poema concreto resulta em um texto cuja fisionomia parece passar uma idéia de esvaziamento de conteúdo. Nesse sentido, o conteúdo aparentemente remoto de um poema concreto encontraria justificação na tese segundo a qual a forma “é” o conteúdo e que o poema é um instaurador de formas inabituais e não um discurso “sobre” a realidade, função à qual outros usos da linguagem já estariam destinados. Porém, cabe perguntar: não seria tal delimitação um estreitamento do domínio da poesia ou, em outras palavras, não teria a Poesia Concreta fundado um espaço restrito, porquanto demasiado “composicional” (adiante explicaremos a acepção deste termo no contexto deste trabalho), para a poesia? Tentemos lançar luz sobre a questão tendo em vista o paralelo com o referencial bakhtiniano. No trecho a seguir, vemos Bakhtin servir-se da idéia de “fronteira das palavras” como lugar da realização poética. Tal idéia é fundamental para entendermos a crítica bakhtiniana ao formalismo, assim como será, neste trabalho, para as luzes que aqui pretendemos lançar sobre alguns aspectos da poética de Ferreira Gullar: O enorme trabalho do artista com a palavra tem por objetivo final a sua superação, pois o objeto estético cresce nas fronteiras das palavras, nas fronteiras da língua enquanto tal; mas essa superação do material assume um caráter puramente imanente: o artista liberta-se da língua na sua determinação lingüística não ao negá-la, mas graças ao seu aperfeiçoamento imanente: o artista como que vence a língua graças ao próprio instrumento lingüístico e, aperfeiçoando-a lingüisticamente, obriga-a a superar a si própria. (BAKHTIN, 1990, p. 50) Antes de algumas explicações conceituais referentes à citação acima, convém antecipar o paralelo com o seguinte depoimento de Gullar colhido de seu livro Indagações de hoje em capítulo intitulado “O Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 281 CLIPE inimigo da palavra”: [...] Há certa verdade nisto: o poeta de fato bagunça um pouco o coreto da linguagem. Mas não para que as palavras se tornem perceptíveis. Desarruma-o para romper a crista verbal que impede o aflorar, na linguagem, da experiência viva. Um poeta pode até criar palavras mas não com o propósito de aumentar o volume dos dicionários, e sim para exprimir o novo. O mau poema é feito de palavras. O bom poema é feito contra as palavras. (GULLAR, 1989, p. 42) Logo de início fica visível a recusa de ambos os autores a aceitar a redutibilidade do poema ao aspecto proeminentemente lingüístico, ainda que ambos não neguem ser a palavra o material indispensável do constructo poético. Tal zona de convergência entre Bakhtin e Gullar diz respeito à relativização da estética formalista na medida em que a tarefa de “superar” a língua não se confunde com o destaque de suas configurações materiais, pois, como diz Bakhtin, “o objeto estético cresce nas fronteiras das palavras”. O “objeto estético”6 é a totalidade unificada de um conteúdo totalmente “encarnado” em uma forma. O conteúdo é composto de fragmentos da realidade que são “isolados” da existência e, quando ingressam na composição artística, ganham uma realidade única e acabada. Nesse sentido, não há como escapar do fato de que tudo o que o artista tem diante de si é o material e somente sobre ele é que se dirige sua atividade. No entanto, a depender da atitude do artista, dois tipos de objeto podem ser obtidos. O primeiro deles, no que diz respeito à poesia, consistiria em haurir da matéria verbal um “objeto” pretensamente autônomo no sentido de que suas significações decorreriam do imanentismo da sua realidade física. A esse estágio, digamos assim, da obra, Bakhtin chama de “momento composicional” cuja característica consiste na ênfase sobre os elementos técnicos da arte em questão e dos aspectos físicos do material utilizado. Toda a Com “objeto estético” Bakhtin não está se referindo à realização estritamente material da obra de arte já que, para esta, ele reservou o conceito de “obra exterior”. A grande limitação da “estética material” (leia-se: formalismo) residiria no fato de ela se ater ao estudo da obra exterior sem alçar a compreensão do objeto estético, tomando o primeiro como a realidade total da obra. 6 282 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO fase mais radical da Poesia Concreta se insere nesse escopo. Como Gullar também foi um adepto do concretismo, podemos extrair de sua obra um exemplar do tipo de poesia a que estamos nos referindo7: verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde erva (GULLAR, 2008, p. 102) Note-se que o poema acima autoriza, praticamente, apenas uma possibilidade interpretativa que se depreende a partir da proximidade semântica e fonética entre as palavras “verde” e “erva”. A disposição visual concorreria para endossar tal parentesco destacando a “erva” do “verde”, sugerindo o engendramento daquela a partir da repetição deste pois, afinal, da eliminação do “de” de “verde” e adição do “a” surge o vocábulo “erva”. Note-se que o elemento comum a ambos os vocábulos constitui um anagrama do verbo “ver”, numa espécie de auto-referência ao artifício fisionômico do poema que pede para ser “visto” menos que lido. O que tal poema reivindica é uma contemplação do seu próprio “corpo” assim como suas chaves interpretativas esgotam-se no desvelamento de suas estratégias composicionais. Se se constitui um mérito do poeta a exploração das potencialidades das palavras, a sua limitação, seguindo a ótica bakhtiniana, estaria em pretender fundar uma poética exclusivamente no âmbito composicional. No lado teórico da questão, é justamente o problema da redução da poesia às explicações composicionais que constitui a grande limitação do método formal: “E eis que no domínio da teoria da arte surge uma tendência no sentido de compreender a forma artística como forma de um dado material, e não mais como uma combinação nos limites do material [...]” (BAKHTIN, 1990, p. 18). Assim, a segunda das posturas que o poeta pode assumir diante da palavra (sendo a primeira a tentativa de equiparação da palavra ao estatuto de coisa) é forçá-la à sua “superação”, assim como a atitude Embora o poema em questão já pertença ao momento neoconcretista isso não invalida seu caráter exemplar pois o aspecto técnico-composicional permanece em destaque. 7 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 283 CLIPE correlata do estudioso de poesia seria compreender o poema não de forma fincada nas suas determinações especifica e exclusivamente lingüísticas, mas no seu entrecruzamento com o todo da cultura, do qual ela faz parte. Se nos ativermos à poesia de Ferreira Gullar veremos exemplos tanto de extremos dos problemas relativos ao fazer poético em questão como, também, momentos de síntese. Já destacamos duas situaçõeslimite: “Roçzeiral” como a utópica tentativa da pura transparência e “verde erva” como a proposta do poema coisa (palavra opaca). Os poemas de cordel escritos por Gullar após seu rompimento com as vanguardas seriam a outra faceta radical da sua empreitada poética, dessa vez tendo em vista a primazia do conteúdo sobre o trabalho estético. Seguindo a nossa lógica argumentativa, da mesma forma que se engana “do ponto de vista metodológico” o estudioso que busca reduzir o poema a seus “temas” e “conteúdos”, equivoca-se o poeta que lida com a forma poética como um repositório de visões de mundo, ideologias políticas etc. Todo o texto de Bakhtin usado como base desta explanação (“O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”) empreende grande esforço em mostrar que os componentes cognitivos que ingressam numa obra assumem nela uma tal unidade que não pode ser destacado da obra de arte um elemento real qualquer como sendo um conteúdo puro, como aliás, realiter não há a forma pura: o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são indissolúveis para a análise estética, ou seja, são grandezas de ordem diferente: para que a forma tenha um significado puramente estético, o conteúdo que a envolve deve ter um sentido ético e cogninitivo possível, a forma precisa do peso extra-estético do conteúdo, sem o qual ela não pode realizar-se enquanto forma.” (BAKHTIN, 1990, p. 37) Assim, o desequilíbrio entre os elementos cognitivos e os éticos e destes, por sua vez, com a forma, concorrem para interditar o êxito da obra de arte ou, como diz Bakhtin, do objeto estético. Os poemas de cordel de Ferreira Gullar ensaiam tal desequilíbrio forma/conteúdo e, não raro, assumem o caráter de panfleto político. Consideradas as devidas diferenças, Bakhtin assinala semelhante 284 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO desacordo em momentos da obra de Dostoiévski e Tolstoi como “no romance Guerra e Paz, por exemplo, onde no seu final os juízos cognitivos e histórico-filosóficos rompem totalmente a sua ligação com o acontecimento ético e organizam-se num tratado teórico” (BAKHTIN, 1990, p. 41). Sendo assim, somos levados a crer que os momentos de síntese do percurso poético de Gullar, ou seja, suas mais exitosas realizações estéticas coincidem com o momento em que sua produção conseguiu promover os efeitos mais satisfatórios a partir da articulação do composicional com os componentes de conteúdo histórico, social, político e biográfico. O Poema sujo é, possivelmente, o mais completo registro dessa síntese. Nele, o Gullar “biográfico” empresta-se como espaço onde se amalgama dados existenciais e históricos que, deslocados para o cerne da unidade artística, organizam um novo “todo”, esteticamente rico em possibilidades de relações com o universo cultural no qual está inscrito. Vale lembrar que a inserção do “eu”, ou seja, da subjetividade criadora no objeto estético, representa a negação de um dos tópicos do “receituário” concretista que prescreveu a abolição das marcas de subjetividade na poesia a fim de que esta se aproximasse mais do objeto de aspecto industrial8. A inserção do autor no bojo do universo axiológico que o texto instaura pode ser mais minuciosamente compreendida em outro texto de Bakhtin intitulado “O autor e o herói na atividade estética”9. No entanto, mesmo em “O problema do conteúdo...” o teórico russo já indica algumas questões relevantes, como a que transcrevemos abaixo: A personalidade criativa positivamente subjetiva é um momento constitutivo da forma artística, aqui a sua subjetividade encontra uma objetivação específica, torna- Na teoria concretista, o poeta liga-se à figura do produtor que remete à idéia de um operador de máquinas. Ele aciona certos mecanismos e permanece “neutro” no resultado final, ou seja, o produto não terá a sua “presença” transfigurada, o seu “estilo”: “Um operário que trabalha uma peça ao torno não escreve nela o seu nome ou a sua revolta” (CAMPOS et alii, 1975, p. 125). Ou, então: “A figura romântica, persistente no sectarismo surrealista do poeta ‘inspirado’, é substituída pela do poeta factivo, trabalhando rigorosamente sua obra, como um operário um muro” (CAMPOS et alii, 1975, p. 52). 8 9 Presente em “Estética da criação verbal” (cf. referências) Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 285 CLIPE se uma subjetividade criadora culturalmente significante; é ainda aqui que se realiza a unidade específica do homem orgânico, físico e interior, moral e espiritual, mas uma unidade provada a partir do interior. O autor, como momento constitutivo da forma, é a atividade, organizada e oriunda do interior, do homem como totalidade, que realiza plenamente a sua tarefa, que não presume nada além de si mesmo para chegar à conclusão, é, ademais, o homem todo dos pés à cabeça [...] (BAKHTIN, 1990, p. 68) Dadas as considerações até aqui desenvolvidas podemos, finalmente, sintetizar o paralelismo de nossa análise acusando a premissa que a sustenta, a saber: a de que há um direcionamento comum entre o método formal e a prática da Poesia Concreta. Dissemos que, em ambos os casos (como objeto de estudo e como prática artística), a poesia sofreu um estreitamento de seu campo de abrangência. Da parte do Formalismo percebe-se, via crítica bakhtiniana, a tendência a restringir o estudo da poesia ao rol dos problemas lingüísticos cuja pressuposição epistemológica é a de que, enquanto método científico, a pesquisa formal deve possuir um objeto empírico delimitado, que é o caráter material da palavra esteticamente trabalhada no poema. Nesse sentido, o estreitamento a que nos referimos é o corte necessário para que o método em questão se afaste da abordagem especulativa própria da estética filosófica e ganhe, efetivamente, estatuto de saber científico. No que diz respeito à Poesia Concreta, essa base empírica da arte verbal converte-se em campo de realização estética. As fases do movimento concretista, por exemplo, assinalam a obstinação de seus mentores com o aspecto técnico do “artefato” verbal pois, da “fenomenologia” à “matemática da composição” (v. TPC, p. 43) o poema concreto estriba-se em pressupostos declaradamente formalistas, sobretudo quando, supostamente, rompem com a poesia discursiva, acarretando a dissipação conteudística, consoante a equiparação do semântico com as estratégias de visualidade. Correlatamente ao pôr “entre parênteses” o mundo da cultura, operado pelo método formalista, o concretismo ortodoxo também fez tabula rasa dos componentes referenciais optando por uma participação “fisionômica” no mundo da vida, o que significa dizer que a forma poética é que se inscreve no universo das coisas (leia-se: 286 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO o mundo tecnicizado, industrial, cibernético e da linguagem dos mass media) num claro convite para que a poesia deixe de ser um modo de expressão simbólica do mundo para ser um objeto dentro deste mesmo mundo. Para Gullar o “mau poema é feito de palavra [e o] bom poema é feito contra as palavras” (GULLAR, 1989, p. 42: grifo nosso). Sem levar ao pé da letra tal declaração, mas reconhecendo o argumento que ela encerra, não entendemos, como Gullar, que a Poesia Concreta seja uma forma absolutamente inválida de poesia. A nosso ver, a Poesia Concreta foi uma forma de escrita que constituiu o seu próprio sistema de validação para nele figurar como seu expoente mais acabado. Se, como é comum dizer, a poesia pressupõe uma cosmologia ou uma mitologia das quais representa sua síntese estética (assim como a Divina comédia para a cosmovisão cristã, Homero para a axiologia grega e todo o grande cânone e suas respectivas ligações com o universo cultural do qual fazia parte) a vanguarda concretista, na constituição da sua Weltanschauung, incorreu no deliberado propósito de tomar o aspecto pela totalidade ou a singularidade pelo universal. De fato, a contemporaneidade comporta o paradigma tecnológico e este pode ser considerado a imagem que mais perto chega de singularizar nossa época. Mas a utópica proposta concretista de fornecer a linguagem própria dessa nova era acarretou, por sua vez, a idéia de que seria preciso reduzir a expressão poética a uma techné da palavra. Nesse ponto, convém reconhecer a legitimidade da proposta concretista a partir de uma dada circunscrição específica, impossível de se absolutizar como a linguagem poética hodierna por excelência. Fossem os dogmas do movimento concretista verdades indubitáveis não teria Haroldo de Campos (e outros de sua geração) optado por retroceder às formas negadas pela ortodoxia daquela vanguarda. Nesse sentido, aquilo que aqui se observou, em ambos os autores apresentados, sob a metáfora da “fronteira das palavras” não corresponde à negação do material verbal (como poderia deixar parecer o ir “contra a palavra” da citação acima10), mas aponta para É nesse sentido que também a transparência almejada pelo “poema essencial” – o caso “Roçzeiral” – não ultrapassou o caráter de registro de uma problemática, soçobrando em sua própria utopia de se afirmar como 10 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 287 CLIPE o fato de que os elementos materiais incorporados na obra de arte perdem sua especificidade física para dar lugar a um novo campo material transmudado esteticamente. É a partir desse raciocínio que Bakhtin chama a atenção para o fato de que: [...] a natureza extra-estética do material (à diferença do conteúdo) não entra no objeto estético: não entram o espaço físico-matemático, as linhas e figuras da geometria, o movimento da dinâmica, o som da acústica, etc.; com eles se relacionam o artista-artesão e a ciência estética, mas não a contemplação estética em primeiro grau. É preciso distinguir claramente estes dois momentos: no processo de trabalho, o artista necessita relacionar-se com a física, a matemática, a lingüística, mas todo esse enorme trabalho técnico realizado pelo artista e estudado pelo esteta, sem o qual não existiria a obra de arte, não entra no objeto estético criado pela contemplação artística, ou melhor, na existência estética enquanto tal, no objeto último da obra: tudo isso desaparece no momento da percepção artística, como desaparecem os andaimes quando o prédio é construído. (BAKHTIN, 1990, p. 48-49) REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”. In.: Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). Trad.: Aurora F. Bernardini, José P. Júnior, Augusto G. Júnior, Helena S. Nazário, Homero F. de Andrade. 2. ed. Hucitec: São Paulo, 1990. BAKHTIN, Mikhail. “O autor e o herói na atividade estética”. In.: Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CAMPOS, Augusto de.; CAMPOS. Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e manifestos 19501960. São Paulo: Duas Cidades, 1975. um “antipoema”, produto de uma linguagem esgarçada. 288 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO GULLAR, Ferreira. Toda poesia. (1950-1999). 16. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. GULLAR, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. GULLAR, Ferreira. Um pouco acima do chão. São Luís: Edição do autor, 1949. TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. Recebido em 18/09/2008 Aprovado em 30/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 289 CLIPE A MÚMIA Adolfo Miranda Oleare Ufes (...) uma expressão de doçura e de paz taes que se julga vêr o pharaó adormecido e não morto. (Encyclopedia e Diccionario Internacional) Resumo: Reflexão sobre a crítica de Nietzsche ao gesto desistoricizante da tradição filosófica. Para o autor, ao se fundar em conceitos e categorias ideais, a metafísica gera uma desvalorização da efetividade histórica do acontecimento humano. Palavras-chave: Conceito. Temporalidade. Historicidade. Abstract: Reflection on the critique of Nietzsche to the gesture of making reality un-historical, practiced by philosophical tradition. For the author, by reason of being grounded in concepts and ideals categories, the metaphysics creates a devaluation of human historical effectiveness of the event. Keywords: Concept. Temporality. Historicity. Da cadavérica ascese egípcia No antigo Egito, sabe-se bem, durante muito tempo cultivouse a mumificação. O cinema hollywoodiano não deixa a contemporaneidade alheia à memória do fenômeno. A palavra múmia tem origem persa.11 Na língua de Xerxes, mum significa “cera ou substância balsâmica”12. Para a língua portuguesa, o substantivo feminino múmia corresponde a “cadáver humano embalsamado por Cf. Encyclopedia e Diccionario Internacional. Rio de Janeiro/Nova York: W. M. Jackson Inc.Editores, sem data, p. 7657-8. 11 12 290 • Idem, ibidem. Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO processos especiaes que o conservam muito tempo”13. A meta da mumificação era exatamente impedir a decomposição do corpo, tornando-o incorruptível. Seu processo envolvia – com variações – o mergulho do morto em soluções anti-sépticas, o salgamento, a extração do cérebro e das vísceras, a substituição dos olhos naturais por olhos de esmalte, o preenchimento do estômago com tecido de linho, serra de madeira, erva seca e natrão pisado e obstrução das cavidades do ouvido, boca e nariz com uma massa escura e perfumada, além de seu envolvimento em uma faixa, dos pés à cabeça. 14 No pensar dos egypcios era necessario, com effeito, que o cadaver se não consumisse, porque a duração da alma estava subordinada á existencia do corpo que ella tinha animado. A protecção da mumia no tumulo e a da alma nas suas peregrinações exigia todo um arsenal de cerimonias, de orações, de objectos de mobiliario e de amuletos, que se depunham no tumulo ou no ataúde.15 Nesses termos, o ritual de mumificação, ao que parece, pode ser apropriado como evidência do modo de relacionamento dos egípcios com a vida. Na medida em que paralisavam o percurso natural do corpo morto, idealizavam a existência, corrigindo-a naquilo que ela, por si, era incapaz de realizar. Por resultar de uma interferência artificial na dimensão biológica do corpo, a múmia retrata uma animosidade em relação ao imperativo primeiro da existência, da vida: sua constituição temporal. Em última instância, a finitude, o limite, a consignação entre realização e desrealização. Ela parece querer, especificamente, perpetuar aquilo que perece, estagnando o perecimento. Paradoxalmente, então, quer estagnar a ação do tempo, perpetuando-a. Quer despotenciar o tempo, por meio de uma sabotagem de lastro espiritual, que consiste em fingir a capacidade de, aparentemente, produzir o tempo. Trata-se de golpear a morte, neutralizando-a por uma jogada estética. A arte da mumificação attingiu o seu apogeu no segundo imperio thebano, na XVIII.ª e XIX.ª dynastia: produziu 15 13 Idem, ibidem. 14 Idem, ibidem. Idem, ibidem. As citações seguem fidedignamente a grafia, a acentuação e a pontuação do texto original. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 291 CLIPE então admiráveis múmias, as mais celebres das quaes, a de Ramsés II e principalmente a de Seti I, teem uma expressão de doçura e de paz taes que se julga vêr o pharaó adormecido e não morto.16 (grifo nosso) Valorizando a ênfase no aspecto central da múmia – o de legislar sobre a vida, obrigando-a a permanecer naquilo do que já se extraviou –, lê-se, ainda no verbete da Encyclopedia e Diccionario Internacional que, transformadas – ou transtornadas – as condições históricas, sociais, econômicas e culturais de outrora, enfim, desgastada a tradição, eis que põe-se em movimento a decadência da arte de mumificar, de modo que seu processo rotineiro passa a ser simplificado e acelerado, substituído por outros menos dispendiosos que, “embora assegurando a conservação do corpo, não permitiam deixar-lhe essa quasi apparencia de vida que caracterizava as mumias anteriores.”17 (grifo nosso) Conclui-se, da informação enciclopédica, que a concepção da múmia institui um jogo em que unem-se os termos duplicação, aparência, artifício, adulteração, conservação. Não se quer efetuar um estudo sobre este ou aquele tópico da simbologia religiosa egípcia; não ecoa aqui um grão sequer de egiptologia. Contudo, importa significativamente a fábula da múmia, à medida que nela se localiza um paradoxo atraente: a conservação do transmundano pela aparência de conservação do mundano. Na fábula da múmia a matéria vale, porém de modo idealizado, idealmente adulterado. A múmia encerra em si dupla idealização. Existe para ancorar a alma, mas, em relação ao próprio corpo, é um distanciamento. Mantém o corpo inalterável, intransformável, imóvel. Exatamente o corpo, o próprio lugar da mudança, do movimento, do devir. Gera a múmia paralisia, ao petrificar o corpo com a idéia de alma. Valorizado, contudo exclusivamente em função de uma avaliação superior da alma, o corpo-múmia distingue-se duplamente de um corpo efetivo, ativo na história. Vira estátua. Não perece como um corpo vivo, não perece como um corpo morto. É cuidadosamente protegido do contato com o ‘exterior’, e corrigido dos erros cometidos pela ‘injusta natureza’. Em sua imobilidade, explicita 16 Cf. Encyclopedia e Diccionario Internacional. Op. cit., p. 7657-8. 17 Idem, ibidem. 292 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO a unidade concentrada, constitutiva, de vida e morte: porque não morre, não vive. Não pode se mexer, não se putrefaz, não vira pó. Artifícios o impedem. Está vetada, assim, a ‘vida’, o vigor, o fluxo do continuar morrendo, se desfazendo: segundo golpe na efetividade. No corpo-múmia está a marca da impossível separação de alma e corpo. Separam-se, sendo inseparáveis; formam então um par constante. Ele, o corpo, agora artificialmente eternizado, a sustém, a anima. O corpo-múmia como alma da alma: “a duração da alma estava subordinada á existencia do corpo que ella tinha animado”18. Sem um, o outro também não há. A alma é garantida pelo corpo. Não se trata mais de um corpo vivo, nem de um corpo morto. Do corpo ideal, talvez. Na múmia tudo é ideal. Duplamente ideal. Por meio dela, garante-se o verdadeiro pelo falso, numa operação idêntica àquela imposta pela metafísica ocidental, conforme Nietzsche a compreende: idealismo, anti-natureza. A tais nomes, atribui o desenvolvimento do Ocidente, a construção dos valores no mundo ocidental. Neles, a vontade de eternidade. A múmia consiste em uma reação contra a morte, que se realiza pelo fingimento de que a vida, no morto, continua. Negando a efetividade, produzindo uma quasi apparencia de vida naquele que não mais devém, a mumificação, por fim, atesta o efetivo: a vida é infinita, não se extingue; o vivo cessa. O empalhamento filosófico da realidade “Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais” (grifo nosso), lê-se na primeira seção de “A ‘razão’ na filosofia”, capítulo de Crepúsculo do ídolos, livro no qual Nietzsche insistentemente irá mostrar como “o preconceito da razão (...) nos leva necessariamente ao erro.”19 Na segunda seção de “O que devo aos antigos” (o penúltimo capítulo), sugere-se quanto pode ter de egipcismo em Platão: “Pagou-se caro pelo fato deste ateniense ter 18 Idem, ibidem. 19 Cf. NIETZSCHE. F.W. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 28. Daqui em diante esta obra será identificada por Crepúsculo dos ídolos. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 293 CLIPE estudado com os egípcios.”20 Trata-se, pois, de tematizar a imagem das múmias conceituais nietzscheanas, e as suas relações com a idéia de uma razão movida pela prática da conceituação metafísica. O que – pergunta-se – produzem os filósofos21 ao construírem múmias conceituais? O que embalsamam e paralisam, com sua operação? Isto: a temporalidade, o devir, o acontecimento da própria realidade em sua estrutura Para não se cair numa redução inadequada da obra de Platão, é imprescindível observar que, pela sua grandiosidade e originalidade, Nietzsche propositadamente o caricaturiza, fazendo-o aparecer como o personagem que representa perfeitamente o desenvolvimento do Ocidente no sentido da história platônico-cristã. António Marques afirma que a genealogia de Nietzsche inclui a criação de tipos por meio do estabelecimento de uma “ficção metodológica”. Cf. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Unijuí, 2003, p. 15. 20 O termo filósofo está empregado aqui no sentido caricatural de Nietzsche, isto é, como indicação de um tipo fisiológico que, marcado pelo socratismo e pelo cristianismo, produziu um modo de ser, de ver e de avaliar, uma ética e uma estética decadentes, isto é, doentes e repletos de cansaço em relação à vida. Este tipo – o filósofo – é, então, o protagonista da décadence, tema crucial para Nietzsche, em toda a sua obra. Cf. p. ex., NIETZSCHE, F. W. O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 43-4: (...) – Toda época tem, na sua medida de força, também uma medida de quais virtudes lhe são permitidas, quais proibidas. Ou tem as virtudes da vida ascendente: então resiste profundamente às virtudes da vida declinante. Ou é ela mesma uma vida declinante – então necessita também das virtudes do declínio, então odeia tudo o que se justifica apenas a partir da abundância, da sobre-riqueza de forças. A estética se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos biológicos: há uma estética da décadence, há uma estética clássica – algo “belo em si” é uma quimera, como todo o idealismo. – Na esfera mais estreita dos chamados valores morais não se encontra oposição maior do que aquela entre uma moral dos senhores e a dos conceitos de valor cristãos: esta, aparecida num solo inteiramente mórbido (– os Evangelhos nos mostram exatamente os mesmos tipos fisiológicos descritos nos romances de Dostoievski); a moral dos senhores (“romana”, “pagã”, “clássica”, “Renascença”), ao contrário, sendo a linguagem simbólica da vida que vingou, que ascende, da vontade de poder como princípio da vida. A moral dos senhores afirma tão instintivamente como a cristã nega (“Deus”, “além”, “abnegação”, puras negações). A primeira partilha a sua abundância com as coisas – transfigura, embeleza, traz razão ao mundo –, a segunda empobrece, empalidece, enfeia o valor das coisas, nega o mundo.” 21 294 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO inultrapassável de criação e destruição. Tais filósofos, continua Nietzsche, “acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni, construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la.”22 A exemplo dos egípcios, esses personagens nietzscheanos não suportam o movimento e a temporalidade, fenômenos que refutam a estabilidade, a determinação inalterável acerca do que a realidade seja. Querem uma realidade que não se mexa: “Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos.”23 Como fazem isso? Postulando conceitos últimos acerca das coisas, isto é, procurando-lhes o Ser, entendido como realidade eterna e absoluta, jamais afetada por qualquer indício de tempo, espaço, movimento e relação. A acusação de Nietzsche gira em torno dessa tara dos filósofos: duplicar a realidade, separar do que aparece, o que então é. Corrompem o aparecimento. Para isso desistoricizam, destacam a realidade das relações que a produzem no tempo e no espaço, despindo-a do onde, do quando, do como, do por quê. Criam a ficção de um real real e um real falso. E nomeiam o efetivo como falsidade. “O que é não vem-a-ser; o que vem a ser, não é.”24 Nietzsche refere-se aos edifícios conceituais erguidos pela filosofia, ao longo de dois milênios. À sanha de enquadramento da realidade em sistemas abstratos, em organogramas categoriais. Em sua concepção, o filósofo é aquele que deseja chegar a um alvo que, apesar de resistir a seus esforços, deverá ceder a eles, assim que a abordagem se mostrar correta, compatível, metodologicamente perfeita. Assim, toda a filosofia aparece como uma tentativa de acertar na abordagem. Um jogo de dados? Um jogo de adivinhação? Quer-se chegar a um lugar completamente hipotético, fictício, tomando-o como o mais certo, o único seguro. Põe-se, antes, o fim. Constrói-se rigidamente o caminho, mas o destino, puramente ideal, sempre distante, jamais se mostrará. Os filósofos, ironiza Nietzsche, “acreditam todos, mesmo com desespero, no Ser.”25 Acontece que ele, o Ser, perseguido pelos filósofos, se oculta. Não parece afeito ao sistema da marcação cerrada filosófica; sente-se, ao certo, sufocado. Mas a idolatria conceitual dos 24 25 22 Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 25. 23 Idem, ibidem. Idem, ibidem. Idem, ibidem. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 295 CLIPE filósofos os obriga a encontrar um culpado para a situação. Persiste neles o sentimento de estarem sendo ludibriados: “visto que não conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamentos pelos quais ele se lhes oculta.”26 Eis que Nietzsche põe em cena a fala dos filósofos: “É preciso que uma aparência, que um ‘engano’ aí se imiscua, para que não venhamos a perceber o ser: onde está aquele que nos engana?” E quem será, afinal, aquele que engana os filósofos? Para esboçar as respostas prováveis, que se detalhem: a) os filósofos são aqueles que desistoricizam a realidade, quando resolvem dar sentido a ela. Desse modo, criam “múmias conceituais”, ou seja, mumificam a realidade, mergulhando-a em soluções conceituais, enfaixando-a logicamente, dos pés à cabeça. Assim, “trazem um risco de vida para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, do mesmo modo que a geração e o crescimento são para eles objeções – e até refutações.”; b) os filósofos agem, portanto, sob o domínio de alguma crença – eles adoram. E, ao procederem assim, põem em risco a vida de todos. Não são inofensivos, pois, esses personagens. Que risco oferecem? O risco do embalsamamento do real. A efetividade lhes aparece como refutação do ideal para o qual querem criar provas, motivo suficiente para ameaçá-la, refutando-a, em represália, condenando-a como erro. Já se pode assim ver o culpado? Nós o temos, eles gritam venturosamente, o que nos engana é a sensibilidade! Esses sentidos, que por outro lado são mesmo totalmente imorais, nos enganam quanto ao mundo verdadeiro. Moral: conseguir desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira. História não é outra coisa senão crença nos sentidos, crença na mentira. Moral: dizer não a tudo o que nos faz crer nos sentidos, a todo o resto da humanidade. Tudo isso é o ‘povo’. Ser filósofo, ser múmia, apresentar o monótonoteísmo através de uma mímica de coveiros! – E antes de tudo para fora com o corpo, esta idée fixe dos sentidos digna de compadecimento! Este corpo acometido por todas as falhas da lógica, refutado, até mesmo impossível, apesar de ser suficientemente impertinente para se portar como se fosse efetivo!27 26 Idem, ibidem. 27 Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 25-6. 296 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Os criadores de múmias conceituais odeiam a realidade, consideram o próprio corpo, o corpo que eles mesmos são – e os sentidos – imorais. Mentirosos quanto à verdade, enganadores quanto ao mundo verdadeiro, não o deixam mostrar-se. Nietzsche enfatiza: “Em todos os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo juízo sobre a vida: ela não vale nada...”28 Por que será? Por que tanta má vontade? “Sempre e por toda parte se escutou o mesmo tom saindo de suas bocas. Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia, cheio de cansaço da vida, um tom plenamente contrafeito frente a ela”.29 (grifo nosso) Logo, não poderiam os filósofos, insiste Nietzsche, se satisfazer com o mundo efetivo, pois inventaram de julgar elevada uma realidade fictícia, irreal: “Fala o desiludido. Eu procurei por grandes homens, mas sempre encontrei apenas os macacos de seu ideal.”30 Como nasce essa depressão? Por meio da linguagem metafísica, imposta pela razão como operação moral31, assim como por meio da lógica, da crença em que a definição de causa e efeito deveria resolver por completo, de modo transparente, o problema do conhecimento da realidade. E, também, por meio da gramática32, que substantiva 30 31 28 Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 17. 29 Idem, ibidem. Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 15. Cf. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 25: “moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’.” Daqui em diante esta obra será identificada por Além do bem e do mal. Cf. Além do bem e do mal, p. 26: “Onde há parentesco lingüístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática – quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais –, tudo esteja predisposto para uma evolução e uma seqüência similares dos sistemas filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo. Filósofos do âmbito lingüístico uralo-altaico (onde a noção de sujeito teve o desenvolvimento mais precário) com toda a probabilidade olharão ‘para dentro do mundo’ de maneira diversa e se acharão em trilhas diferentes das dos indo-germanos ou muçulmanos: o encanto exercido por determinadas funções gramaticais é, em última instância, o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicos. – (...)” 32 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 297 CLIPE adjetivos, criando essência para as ações,33 e afirma para toda ação um agente preexistente, um sujeito indivisível, monadológico, um substrato lançado como base e razão do acontecimento, um átomo, um Eu enquanto substância, lugar de ocorrência da vontade livre como causa em geral, e como causa de si mesmo, arrancando-se “pelos cabelos do pântano do nada em direção à existência”, à moda do barão de Münchausen34 – sujeito versus objeto, sujeito como condição do predicado.35 “Cucolândia das Nuvens”, terra da filosofia Para Nietzsche, a idéia de finalidade, fixada pela filosofia – esse pretenso lugar da verdade! –, é uma estratégia moral para se justificar Cf. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 34. (Coleção Os pensadores): “Denominamos um homem ‘honesto’; porque ele agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa da sua honestidade. (...) O certo é que não sabemos nada de uma qualidade essencial, que se chamasse ‘a honestidade’, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e designamos, agora, como ações honestas; por fim, formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome: ‘a honestidade’. A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito (...)”.Daqui em diante esta obra será identificada por “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. 33 34 Cf. Além do bem e do mal, p. 27. 35 Cf. Além do bem e do mal, p. 23: “Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’. Isso pensa: mas que ‘isso’ seja precisamente o velho e decantado ‘eu’ é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma ‘certeza imediata’. E mesmo com ‘isso pensa’ já se foi longe demais; já o ‘isso’ contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: ‘pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo –’. Mais ou menos segundo esse esquema o velho atomismo buscou, além da ‘força’ que atua, o pedacinho de matéria onde ela fica e a partir do qual atua, o átomo; cérebros mais rigorosos aprenderam finalmente a passar sem esse ‘resíduo de terra’, e talvez um dia nos habituemos, e os lógicos também, a passar sem o pequeno ‘isso’ (a que se reduziu, volatizando-se, o velho e respeitável Eu).” 298 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO um dever ser do homem; em última instância, para justificar sua domesticação, a partir de valores que, por um embasamento transmundano, não podem ser discutidos, transgredidos, aviltados. O que se apresenta filosoficamente como finalidade não passa, segundo Nietzsche, de um meio. O conhecimento funciona, aí, como instrumento de um impulso mais fundamental: o impulso de dominar, que ambiciona impor uma interpretação hegemônica acerca da realidade e, para mantê-la firme, um sistema moral inabalável, segundo o qual deve comportarse o homem. Assim, a filosofia “cria o mundo à sua imagem, não consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de poder, de ‘criação do mundo’, de causa prima [causa primeira].”36 Toda lógica, dirá, quer no fundo conservar instintivamente uma determinada perspectiva de pensamento, de lida com a vida, de interpretação da realidade. Valendo-se da máscara da independência, da autonomia, da exata limitação formal, da universalidade,37 36 Cf. Além do bem e do mal, p. 15. 37 No clássico Prefácio à Segunda edição da Crítica da razão pura, Kant apresenta sua concepção acerca do sucesso da lógica: “Confundir os limites das ciências entre si não constitui um aumento e sim uma desfiguração das mesmas. O limite da Lógica acha-se determinado de maneira bem precisa, por ser ela uma ciência que expõe circunstanciadamente e prova de modo rigoroso unicamente as regras formais de todo o pensamento (seja ele a priori ou empírico, tenha ele a origem ou o objeto que quiser, encontre ele em nosso ânimo obstáculos acidentais ou naturais). A Lógica deve a vantagem do seu sucesso simplesmente à sua limitação, pela qual ela se autoriza e mesmo se obriga a abstrair de todos os objetos do conhecimento e das suas diferenças, de modo a não se ocupar o entendimento nela com nada mais do que consigo mesmo e com sua forma. Para a razão devia ser, naturalmente, muito mais difícil encetar o caminho seguro da ciência, quando ela trata não somente de si mesma, mas também de objetos. Por isso constitui também a Lógica como propedêutica apenas uma espécie de vestíbulo das ciências e, quando o assunto é o conhecimento, pressupõe-se uma Lógica para o seu julgamento, devendo-se, porém, procurar a sua aquisição nas próprias e objetivamente chamadas ciências.” (KANT. I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 9-10. Coleção Os pensadores) Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 299 CLIPE consegue dissimular as valorações sobre as quais se sustém, “as exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida.”38 Concebe Nietzsche que o filósofo – ressentido da condição faltosa, desnecessária e imperfeita da vida terrena, sempre ainda a se fazer, isenta de finalidade e utilidade, perdida em relação ao conhecimento de sua causa própria, sua razão de ser, isto é, inacessível a um julgamento acerca de seu valor, acerca de seu “em si” – depõe contra a vida terrena, criando, para sustentá-la, um fundamento dogmaticamente transmundano. O filósofo, para Nietzsche, não se obriga, contudo, a questões mais difíceis. O valor da lógica, por exemplo, lhe é indubitável: “o material inteiro, no qual e com o qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso não da essência das coisas.”39 A gênese da linguagem lógica, portanto, nada tem de lógica: “é preciso que já tenhamos estado ao menos uma vez em um mundo mais elevado (ao invés de em um muito inferior: o que teria sido a verdade!) e que aí tenhamos nos sentido em casa. É preciso que tenhamos sido divinos, pois temos a razão!”40 Cf. Além de bem e mal, p. 11: “Depois de muito tempo ler nos gestos e nas entrelinhas dos filósofos, disse a mim mesmo: a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até mesmo o pensamento filosófico; aqui se deve mudar o modo de ver, como já se fez em relação à hereditariedade e às ‘características inatas’. Assim como o ato de nascer não conta no processo e progresso geral da hereditariedade, também ‘estar consciente’ não se opõe de algum modo decisivo ao que é instintivo – em sua maior parte o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos.” 38 39 Cf. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, p. 34. 40 Cf. Crepúsculo dos ídolos, p. 29, quando Nietzsche refere-se aos primórdios da inferência, donde resultará, “tardiamente, o pensamento lógico um tanto mais agudo, a rigorosa investigação de causa e efeito (...)”, conforme tematiza também em Humano demasiado humano, p. 24. 300 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO REFERÊNCIAS Encyclopedia e Diccionario Internacional. Rio de Janeiro/Nova York: W. M. Jackson Inc.Editores, sem data. KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os pensadores) MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Unijuí, 2003. NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. NIETZSCHE, F. W. “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os pensadores) NIETZSCHE, F. W. O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. Recebido em 21/08/2008 Aprovado em 12/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 301 CLIPE UM RECADO À PRIMA HERMENÊUTICA EM UM ASSOVIO DE QORPO-SANTO Alessandra Fabrícia Conde da Silva Ufes Resumo: As peças de Qorpo-Santo ultrapassam as noções de absurdo e de surrealismo. São textos que apresentam imagens confusas, disformes, caricatas e não racionais. Um assovio apresenta uma trama burlesca, cuja melodia é dissonante, incômoda e risível, o que não deixa de ser genial quando tentamos entender o recado que a obra proporciona. Autores como Eudinyr Fraga, Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kayser ampararão de modo crítico-teórico o nosso estudo sobre o autor gaúcho. Palavras-chave: Qorpo-Santo. Um assovio. Surrealismo. Absurdo. Abstract: The Qorpo-Santo’s play beyond the notions of absurd and surrealism. They are texts that present confused, deformed, ridiculous and not rational images. Um assovio presents a burlesque plot, whose melody is grating, annoying and laughable, which does not leave to be great when trying to understand the message that work brings. Authors such as Eudinyr Fraga, Mikhail bakhtin and Wolfgang Kayser will abet our critical-theoretical study of the gaúcho author. Keywords: Qorpo-Santo. Um assovio. Surrealism. Absurd. O ABSURDO, O SURREALISMO E QORPO-SANTO A palavra absurdo quer dizer, literalmente, fora de harmonia. Na tentativa de se estruturar o conceito de absurdo compreende-se que não há esperança, não há ideologia e sim a alienação de tudo. Assim, notamos que há a falta de uma mensagem ideológica, ou seja, um teatro alienado, [e que está] preocupado em mostrar as angústias particulares dos seus cultores, recusando a realidade que nos cerca e ignorando todos os problemas sociais existentes 302 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO – e prementes (FRAGA, 1988, p. 31). Em Qorpo-Santo não há essa alienação. Apesar de haver elementos presentes no absurdo, as peças não podem ser caracterizadas como tal, haja vista que são feitas críticas sociais, utilizando as técnicas do teatro do absurdo. O teatro de Qorpo-Santo não é racional, é, antes, não cerebral. Não é fruto de um labor intelectual, racional, mas manipula a linguagem na tentativa de “analisar (...) um universo que (...) parece enigmático e hostil” (FRAGA, 1988, p. 22). Eudinyr Fraga (1988, p.23) ainda comenta: O teatro de Qorpo-Santo parte de um esquema habitual ao teatro de costumes da sua época, mas, por força do automatismo psíquico, de uma escrita automática que utiliza (ou que o utiliza...) sem cessar, ultrapassa-o e dele se distancia completamente, fragmentando o fulcro inicial e transformando-se em algo completamente diferente, repleto de elementos que, mais tarde, se constituirão como componentes de um teatro dito “surrealista”. Para Fraga (apud TELES, 1988, p. 37), o surrealismo se define como: Automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo o controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estática ou moral. Encicl. Filos. O Surrealismo assenta na crença da realidade de certas formas de associação negligenciadas até aqui, no sonho todo-poderoso, no jogo desinteressado do pensamento. Tende a arruinar definitivamente todos os outros mecanismos psicológicos e a substituir-se a eles na solução dos principais problemas da vida. Em desacordo com o Absurdo, o Surrealismo busca a solução dos problemas da vida. E para isso busca a integração do homem do ocidente com o universo. Essa integração foi perdida momentaneamente e é passível de ser recuperada, quando desaparecer a dualidade: realidade visível e realidade perceptível. No Surrealismo, o homem não está sendo mas pode ser, porque o universo não é vazio de significações: no Teatro do Absurdo o homem não Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 303 CLIPE está sendo porque jamais poderá ser (FRAGA, 1988, p. 106). Assim, na visão surrealista há uma esperança para o homem, para o seu dualismo, suas angústias geradas mediante a duplicidade das realidades. Uma realidade é a convencional, a que fere, mascara e molda o homem, conduzindo-o a um estado de constante agonia. A outra realidade é a perceptível, a onírica, a que se oculta do mundo real, mas que está nele. A percepção desse mundo oculto é melhor apreendida quando a mente é lançada à perturbações psíquicas. Os surrealistas tentavam reproduzir os efeitos dessas perturbações, cultivando o automatismo psíquico cuja finalidade é o extravasar do inconsciente. No entanto essa prática é inautêntica, pois é fruto de atitude intelectual. É nesse universo que podemos introduzir as obras de QorpoSanto. Há uma diferença, no entanto. O automatismo psíquico do dramaturgo gaúcho é autêntico. A sua grande dificuldade era manter os pés na realidade convencional. Os surrealistas procuravam aguçar os sentidos através de hipnose, tóxicos, delírios; fugindo da realidade; buscando uma outra que estava oculta, estabelecida no entre-lugar da realidade, no mundo dos sonhos. A sociedade agride o homem que não pode compreender o mundo a sua volta; tão pouco consegue entender a si mesmo. Nesse sentido, o surrealismo vem propor a recuperação desse mundo, através da fusão das antinomias, do equilíbrio entre o mundo exterior e mundo interior. Nas peças de Qorpo-Santo, essa harmonia das duplicidades está presente e são colocadas num ambiente fantástico, maravilhoso em que tudo pode acontecer de forma perfeitamente, tranquilamente, normal. Esse é o grande axioma das peças e que também espelha a ideologia surrealista: a reconciliação do fantástico e do real, formando uma supra-realidade. A ruptura com a ordem natural do mundo, com o estabelecimento de um universo regido pelo fantástico, conduz à transgressão da realidade e conseqüente harmonia. Mas essa harmonia não exclui o pesar, a angústia. Ao contrário, nesse mundo estão ora o pensamento do real, das convenções, ora o pensamento livre, das relações naturais. Em suas peças, Qorpo-Santo procurou demonstrar esses dois pensamentos e utiliza o humor, o riso, como recurso que equilibra as pressões sociais e as inquietações íntimas. Segundo Bakhtin (1999, p.10), “o riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo 304 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO tempo burlador [...]”. É burlador porque se opõe à cultura popular e às exigências sociais. Um outro elemento presente nas peças é o burlesco. “O Grotesco... está em todo lugar; de uma parte, ele criou o disforme e o horrível; de outra, o cômico e o engraçado” (KAYSER, 1986, p. 59). Wolfgang Kayser ainda define que (1986, p.159): no grotesco o mundo alheia-se, as forças distorcem-se, as ordens do nosso mundo dissolvem-se (já na ornamentação grotesca se misturam os reinos do inanimado, das plantas, dos animais e dos homens; mais tarde os motivos, diletos da configuração grotesca são as marionetes, os bonecos de cera, ou então os loucos, os sonâmbulos, e sempre também animais mais que animalescos), um mecanismo medonho parece ter caído sobre as coisas e os homens. O grotesco muitas vezes tinge-se com as tintas do fantástico; afinal, para causar o efeito de estranhamento é necessário estar num mundo fantasioso em que tudo é possível. Assim, “O obscuro foi encarado, o sinistro descoberto e o inconcebível levado a falar” (Kayser, 1986, p. 162). O dilaceramento do autor, traduzido na dualidade moral vigente versus “relações naturais”, utiliza o grotesco como elemento que possibilita a sua permanência num universo fantástico, sinistro, risível, transgressor, e que acaba por revelar as angústias, as tensões, ao mesmo tempo que mascara os anseios, as divagações e as aspirações do dramaturgo. Essa máscara, na verdade, é como o mundo o vê, ou como ele deve se apresentar ao mundo. Não é a sua essência, mas a usa imagem dissimulada. O grotesco vem a ser o elemento estético que propicia a reflexão do mundo, não a contestação ou a denúncia, mas o universo em que os mundos podem se equilibrar. Nesse contexto, a dualidade estabelece-se na tensão moral vigente versus “relações naturais”. Qorpo-Santo (apud FRAGA, 1986, 76) comenta: Que tremenda a luta entre o meu espírito e a carne! Parece incrível o que em mim passa-se! Pinta-me a imaginação a necessidade indeclinável de ela voltar; aguça ao vê-la a ansiedade para n’ela tocar: sinto a força necessária que m’instiga; que m’excita... busco satisfazer; não encontro; ou não posso! Logo depois ocupa-me a idéia horrível dos tormentos do meu corpo; das torturas do meu espírito, não só pela prática de tal ato como mesmo tentativa! Ao mover- Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 305 CLIPE me em busca, o coração se me despedaça! ah! Quantos martírios forjam-se na minha imaginação que a minha pena agora cala!... Uma voz diz-me que veja; outra - que fuja! Que m’entretenha; outra – que m’abstenha! Uma – que passeie; outra – que esteja em casa!... E quanto mais oh! meu Deus...! A máscara posta sobre as personagens e a própria reflexão do autor sobre elas demonstra que apesar de querer expressar o seu mundo próprio, cheio de tensões e angústias, há uma preocupação em não revelar-se por completo. Fraga (1986, p. 67) define: (...) Ele não se mostra por inteiro em ninguém, ele se acerca e se afasta, se dá e se recusa, se esconde e se revela. Ele se dissolve, se multifaceta em miríades de aspectos que se distribuem por todos esses estranhos seres que povoam os textos... Qorpo-Santo tenta libertar-se do ambiente sufocante em que devia viver, e é o teatro que mais vai colaborar nessa fuga. Mas essa pretensa liberdade é perigosa, ele poderá ser reconhecido. Então será não apenas um indivíduo, mas diversos. Do Desejo e do Medo, nasce o drama. O Desejo de ser, o Medo de ser identificado. Como reflexo dessa tensão Desejo e Medo está o fato de QorpoSanto fazer prédicas moralizantes nas peças, que nada mais são que “motivos cegos” – “falsos temas”, “falsas linhas de interesse” (FRAGA, 1986, p. 65) – que introduzem na obra uma atmosfera de instabilidade, de desconexão, de incômodo psicológico. Segundo Fraga (1986, p. 104): (...) Quando ele quer ser sério, preocupado em ensinar e “fazer arte”, é repetitivo e mesmo maçante. Mas quando esquece as preocupações, surge o outro eu, irônico e brincalhão, e seu diálogo torna-se leve e ágil... Em geral, nas obras de Qorpo-Santo não há unidade de ação, de tempo e de espaço. A ação demanda que haja uma possibilidade de se estabelecer um sistema em um conjunto de ações, isto é, os fatos deveriam se encaixar harmoniosamente. O tempo e o espaço se confundem, conduzindo o leitor/espectador a se ver numa espécie de sonho, de atmosfera de sonho. Na temática apresentada há furos nas teorias, o que dá a impressão de um texto instável. Segundo Fraga (1986, p. 57), as peças de Qorpo-Santo são “(...) textos curtos, explosões ou “iluminações” de um cérebro perturbado”. Ainda 306 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO acrescenta que (...) a obra do dramaturgo gaúcho é, na sua totalidade, uma projeção mental, decorre de uma escrita automática, sem preocupações estéticas (o desenvolvimento desses textos não admite dúvidas a respeito) e cujo conflito único decorre do próprio conflito do autor com o mundo, onde o dualismo imaginação e realidade desaparece, surgindo, em seu lugar, uma síntese: a própria obra (FRAGA, 1986, p. 66). O insólito, o grotesco, o risível, a ironia são recursos estilísticos presentes na obra de Qorpo-Santo. Em Um assovio, essa marca estilística está presente com maestria. A unidade de ação é transgredida nessa peça. Mas ainda assim, diferente de muitas outras, pode-se ver uma fio de conexão. Uma mensagem à casa da prima Hermenêutica é enviada nessa peça. A Hermenêutica vem se debruçar sobre o estudo da interpretação dos textos escritos, debatendo ainda sobre a compreensão humana. Para isso devem ser considerados os eventos históricos, os valores, a cultura. A finalidade se baseia em como utilizar o texto com um sentido prático, atribuindo um caráter didático. Mas o próprio conceito de Hermenêutica já é complexo. A compreensão ou apreensão de um sentido não se consegue facilmente, principalmente em Qorpo-Santo, com seu automatismo psíquico e dualidade de intenções e o seu constante revelar e mascarar as reflexões. Um assovio pode ser um chamado a prestar atenção em algo que está subliminar, no entre-lugar no mundo do real e do sonho. Um som que se espera melodioso, mas que se apresenta, para frustração das expectativas, como um ridículo e desenxabido apito desafinado, mas que quer dizer algo; quer ser ouvido, interpretado e compreendido. Daí o recado à casa da prima Hermenêutica. O ENTREATO Assoviar, usando o vocábulo na forma figurada é “avisar”, é “dar sinal” de alguma coisa, de um fato, de uma história, de um acontecimento, de uma mensagem, de um recado. Qual sinal poderia haver em Um assovio de Qorpo-Santo? Que som sibilar poderíamos encontrar nessa comédia em que tanto ressoa o ridículo? Qual a intenção do ridículo? Porque a mudança de temática tão absurda? E será que a temática mudou de fato? E porque a escolha de um Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 307 CLIPE assovio ao invés de uma música? Nos três primeiros atos a comédia revela algumas situações corriqueiras, ainda que beirem o absurdo; são situações banais, e inusitadas algumas vezes, em que o ridículo é o elemento que torna as cenas estapafúrdias, irracionais e, por assim dizer, ilógicas. Mas esse mesmo ridículo deixa a história cômica. Entreato e quadro parecem destoar do corpo inicial da comédia. Analisando esse entreato, que parece tão absurdo quanto os três primeiros atos, a melodia da comédia parece dissonante ainda mais. A personagem Jerônimo de Aviz prepara-se para tocar uma música em sua flauta, ao menos é isso o que o leitor/espectador espera que aconteça, mas absurdamente, ridiculamente, o que acontece é um “destemperado assovio”. O flautista tenta novamente retirar do seu instrumento uma sonoridade agradável, a qual todos estavam esperando, mas foi em vão. Comicamente, ele diz, tentando desculpar-se: “Senhores, deu o tétano na minha flauta! Desculpem; desculpem!”. Jerônimo não é um impostor; ele sabe manusear bem o seu instrumento, mas por alguma razão somente o som de um assovio pode ser retirado da flauta. Ao invés de música, de melodia, um assovio; ao invés de uma comédia de costumes normal, um absurdo, um ridículo, configurado numa história “irracional”, mas nem tanto. No entreato surge a sensação de absurdo, de perda da meada da história, de desalinho, de desafino. Qual a ligação do flautista com a história abordada nos três atos anteriores? Ao que parece nenhuma ligação há diretamente, a não ser pelo fato de representar um eco da mensagem já assinalada no início da comédia. É como se o flautista, ainda que capaz de tirar da flauta um som especial, retira o decepcionante assovio, o que gera comicidade, mas, ao mesmo tempo, pode sugerir uma reflexão. Reflexão sobre um algo não explícito, pois não é uma música que pode ser ouvida claramente e que cause comoção, mas um sinal sonoro que chama atenção para o oculto, para o subliminar, e que pode ser reconhecido, notado e apreendido. Nisto podemos perceber que uma melodia já fora tocada, ainda que nem o leitor ou espectador a tivesse escutado, pois somente os alunos de Jerônimo a ouviram. Implicitamente a idéia da música anteriormente tocada está presente. E o que se percebe é que, intencionalmente, o entreato vem a especificar que ao leitor/espectador basta somente 308 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO o chamado a prestar atenção ao aviso, ao assovio. Com o fim do entreato desce o pano e parece que finda a comédia. Mas retornam todos mascarados no quadro e dançam e cantam, com instrumentos musicais, em mãos, e esperam pelo momento apoteótico em que a música será entoada; fazem silêncio; aguardam a melodia; mas eis que ouvem um nítido “fi...... u......” e termina a comédia. Os personagens mascarados comemoram a vida, esquecem as tensões da realidade. E mesmo essa comemoração musical é feita de forma desbragada, caricata. A melodia tocada é na verdade uma antimúsica, pois satiriza, ridiculariza a harmonia e a impossibilidade de se tirar dos instrumentos um bom som. Os instrumentos estão desgastados, desafinados, mas ainda assim é possível rir da incapacidade, do impedimento, do não convencionalismo musical, da dissonância. Com a entrada de “todos” no quadro, percebe-se a ligação entre entreato e atos, num fio de legitimação da mensagem sibilar revelada nos atos iniciais. O quadro vem reforçar o que no entreato já fora sugerido. Mas esta visão só será pertinente, se entendermos que o “todos”, explicitado no quadro, refere-se à presença dos personagens dos atos e do entreato. Não se quer na comédia passar verdades, moralismos, enfatizar dogmas, preceitos, mas de forma caricata e cômica permitir que o leitor/espectador capte a mensagem/recado ou mensagens que estão sendo enviadas à casa da “prima Hermenêutica”. E mesmo essa mensagem não é arbitrária. A interpretação é particular, pode ficar somente no campo da comédia, do divertimento, do ridículo, do absurdo, mas pode ser revestida de significações mais profundas, como um chamado à análise das relações humanas, por exemplo; da opressão social, religiosa, dos desejos naturais. Assim, transgredir as fronteiras do mundo, do real, é alienar o dominador e sua linguagem intransitiva e eterna. A linguagem do oprimido é uma digressão ao padrão, ao não estranho. É uma linguagem de transformação, que discorda do mundo, que burla os conceitos (BARTHES, 1985, p.169). O recado presente em Um assovio requer uma interpretação subliminar, intratextual, e possível de se considerar as tensões do autor. Não é uma música que podemos ouvir, embora esperemos por ela, pois esse é o comum; ouviremos somente um assovio, um aviso, um chamado a prestarmos atenção à vida, ou podemos ignorar o aviso, a convocação, uma significação previamente explicitada no texto, e nos atermos à capa ficcional, cômica, absurda e ridícula que Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 309 CLIPE reveste as personagens nas mais inusitadas situações. Não há uma gratuidade ideológica no texto, mas há imagens simbólicas que podem expressar múltiplas significações. Possibilidades que apresentam o desacordo social e o desalinho com os padrões naturais. Os discursos das personagens dão-nos uma idéia de querer passar uma verdade, uma mensagem, mas logo há o atropelo, a quebra do pensamento original e logo se perde o sentido que se pensou existir; as intenções ficam, de certa forma, dissimuladas, escondidas sobre a máscara do grotesco e dos saltos dos acontecimentos. A suprarealidade, como dizem os surrealistas, embora Qorpo-Santo não seja um, mas seu estilo se assemelhe ao deles, revela um universo de angústias, de duplicidade, de tensão. O mundo de Qorpo-Santo é um mundo fantástico em que tudo é possível. As personagens encaram um nariz que se desprega, ou um pedaço dele, e que depois é recolocado no lugar, com a maior naturalidade, como vemos no ato primeiro. A bizarrice da cena nos faz recordar da obra do século XIX, O nariz de Gogol, em que “um nariz se desprende do rosto de seu proprietário e, transformado em pessoa, leva uma vida independente; a seguir, volta ao seu lugar” (TODOROV, 1975, p. 79). Mas enquanto em Gogol o nariz se personifica e tem uma função amplamente significativa; na comédia de Qorpo-Santo, o nariz é somente um sinalizador do absurdo, do ridículo, do cômico. Em Mateus e Mateusa, outra comédia de Qorpo-Santo, partes do corpo também desabam. Outras partes são nada mais que implantes, que acessórios artificiosos, instrumentos de uma farsa que apenas quer assinalar o riso. E essa mesma sinalização é vista no patético assovio do flautista. UM RECADO À “PRIMA HERMENÊUTICA” Qual é a mensagem em Um assovio? Qual música pode-se escutar? É possível escutar alguma? Há um maestro: Gabriel Galdino. Há um coral: as demais personagens. Há uma partitura na qual as notas musicais são dobradas, são repetidas, permitindo que personagens se assemelhem, que uma seja o reflexo da outra e que suas vozes ecoem conjuntamente no coro. Na comédia, Gabriel é o maestro que rege todas as situações e discursos. Sempre cantando o seu “troleró, troró” e dançando e bancando o bobo estapafúrdio, segue demonstrando uma indolência 310 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ridícula, a glutonaria, a devassidão e uma única preocupação em manter o ócio. Mas a imagem de bobo é falsa, e embora indolente e pervertido, ele é antes um astucioso e hábil personagem, ainda que o seja de forma ridícula. E poderia perfeitamente ter tramado um plano para casar a filha Esméria, cujo nome sugere perfeição. O tempo em que trabalhou para Fernando foi uma época de descobertas. Descobriu os segredos e gostos do patrão. Soube do seu relacionamento com uma mulher chamada Luduvina. Interesseiro e astucioso retirava de Fernando o pagamento de seu silêncio: “GABRIEL (à parte) – Por isso é que muitas vezes eu chupo-lhe o dinheiro, faço d’amo! Tem segredos, que eu sei; e que ele não quer que sejam revelados!”. A astúcia em esconder a filha e só revelá-la em momento oportuno demonstra a sua esperteza (como um bom “mensageiro” que chega na hora exata para revelar a verdade ou dar a significação do mistério ou revelá-lo) e sugere a manutenção de um plano pré-concebido para casar o patrão com a filha, ainda mais quando afirma antes mesmo que Fernando visse Esméria: ”GABRIEL – (...) e por isso mesmo far-lhe-ei em breve minhas despedidas”. Despedidas que poderiam ser unicamente pelo fato de abandonar o patrão em busca de um outro ou porque deixaria o patrão para tornar-se seu sogro. Além disso, no início do segundo ato, Luduvina, a esposa de Gabriel, afirma: “Graças a Deus que já se pode vir a esta casa”. E é a partir desse momento que Fernando descobre a filha de Gabriel. Esméria entra logo em seguida na sala do patrão de seu pai, o que sugere que somente no momento certo, com a permissão de Gabriel, é que seria autorizado que a moça se mostrasse a Fernando. O ardil está pronto e captura o patrão. Este se rende aos encantos da resguardada Esméria e aceita as ‘condições’ preconizadas por Gabriel. GABRIEL – (...) O Ilmo° Sr. Dr. Fernando há de ser uma espécie, ou um verdadeiro criado fiel de minha filha; e há de declará-lo em uma folha de papel, escrita por tabelião e assinada pelo juiz competente; o dos casamentos ou dos negócios civis. Etc. etc. e etc. Com a satisfação de todas essas condições, ou seu preenchimento, a minha muito querida filha, se quiser, será sua mulher. Fora delas, ou sem elas, não falaremos, tocaremos mais sobre tão melindroso assunto. Gabriel é agora sogro de Fernando de Noronha e passa a gozar das benesses que a posição social lhe permite. Eis então uma questão Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 311 CLIPE interessante: ascender socialmente demanda um jogo de interesses, de subterfúgios, de astúcia e sagacidade. As relações humanas são pautadas por esse jogo de interesse. O “dominado” Gabriel insurgese contra a sua condição de criado e torna-se um patrão. Mas a sua astúcia só serviu para conquistar a elevação social e seus privilégios; continuou o mesmo indolente pervertido de sempre; regendo ainda o andamento da trama com irreverência e importunando a criada Luduvica. No terceiro ato aparece esta criada que é assediada constantemente por Gabriel. Num ato idealista ela se lança contra os seus algozes com um punhal na mão. Oprimida pelos patrões, e tendo cessado já todos os argumentos de defesa, ela conclui: LUDUVICA – Que farão os três pandorgas. (Passando e vigiando-os ora com o rabo de um, ora com o rabo de outro olho.) Que esperarão eles! Pensarão eles que me hão de continuar a massar!? Estão bem servidos! Eu componho; eu agora mostro-lhes o que é a força de uma mulher, quando esta está a tudo resolvida, ou mesmo quando apenas quer mangar com algum homem! (Puxa, passeando, um punhal que ocultava no seio e conserva-o escondido na manga do vestido.) Estes (à parte) meus amos são uns poltrões; eu faço daqui carreira, faço brilhar o punhal; eles. Ou me hão deixar passar livremente, ou caem por terra mortos de terror; e não só por serem uns comilões, uns poltrões, também porque... não direi mas o farei! (Volta-se repentinamente; faz brilhar o punhal; avança-se para eles; os dos lados caem cada qual para seu lado, e o do centro para diante; ela salta em cima deste, volta-se para o público e grita levantando o punhal!) Eis-me pisando um homem, como um carancho [a] um cavalo morto! Quando a força da razão, do direito e da justiça, empregada por atos e por palavras, não for bastante para triunfar, lançai mão do punhal... e lançai por terra os vossos indignos inimigos, como fiz e vedes a estes três algozes! (Desce o pano, passados alguns minutos. E assim finda o terceiro ato.) O discurso idealista proferido pela criada ecoa ainda mais o sinal que se pode apreender na comédia. Num gesto extremo, após terem sido feitas as argumentações cabíveis e não havendo solução, o desespero acaba conduzindo o oprimido à violência, às armas. O 312 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO convite feito na comédia não é à violência real, mas à não aceitação das arbitrariedades e dos desmandos dos que detém o poder. Outro elemento que pode ser identificado na peça é a voz feminina livre, consciente de seus direitos e de sua força: “LUDUVICA – (...) eu agora mostro-lhes o que é a força de uma mulher, quando está a tudo resolvida, ou mesmo quando apenas quer mangar com algum homem!”. Aliás, essa é uma particularidade da comédia. As personagens femininas são distintas, têm voz ativa, imiscuindo-se na trama com invulgar presença, como detentoras de uma verdade própria, de um senso de justiça, de responsabilidade. Em oposição às personagens masculinas, elas representam a razão. E apesar disso, ainda são dominadas, incomodadas pelos caprichos arbitrários e ridículos. O mundo em que elas vivem é ainda um mundo fálico. Desde o início da comédia o controle é masculino; no final do terceiro ato há a ligeira erupção feminina. Na rubrica do segundo ato, Luduvina é apresentada como “velha feia e com presunções e ares de feiticeira”. Essa presunção a faz parecer autoritária, controladora: “LUDUVINA – (...) Deixem – [n] os por minha conta; hei de pôr-lhes freios e lei, e em toda a sua grei”. Gabriel não cansa de afirmar que sua mulher é uma “santa de maldade”, o que leva a concluir que era obstinada e dura, e sendo ele um “poltrão” e “comilão”, o jeito era “aturá-lo”, como afirma o folgazão em seu cinismo habitual. A criada assemelha-se bastante com a esposa de Gabriel. Além da aproximação dos nomes de ambas as personagens, Luduvina tem “ares de feiticeira”, mas é Luduvica quem acaba por revelar o suposto destino de Gabriel: morto ou ferido por causa de suas prevaricações. Aquilo que Luduvica disse que Luduvina poderia fazer com o marido, acabou a criada mesmo fazendo, mas Fernando de Noronha foi o alvo principal, embora Gabriel tenha sentido o terror da cena: “LUDUVICA – E que remédio o Sr. terá, senão assim proceder, ou humilhar-se!? Se o não fizer, ela o ferirá; o Sr. Há de morrer, ou ela se matar!”. Suas asserções proféticas ainda que tenham destoado um pouco do recado inicial, acabam por aproximá-la de Luduvina quanto ao “ar de feiticeira”; como aquela que se imiscuiu com o oculto, que faz poções, ou profere palavras que irão interferir na vida das pessoas, tornando essas palavras índices do destino. Se ela errou o alvo, a palavra, no entanto, tornou-se realidade. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 313 CLIPE O nome completo da criada é Luduvica Antônia da Porciúncula, isto é, uma porção pequena de Luduvina, uma amostra da outra. Eis a repetição das notas musicais na comédia. Luduvica e Luduvina se assemelham ainda que difiram em idade. Ambas são trabalhadoras e têm que aturar Gabriel. Este rechaça a esposa por ser velha (ainda que esta se insinue), mas procura a criada. Aproximam-se também as personagens masculinas. Estes são, na verdade, uns poltrões, indolentes e glutões; caricaturas grosseiras que somente causam o riso. Já o nome Pulquéria, com o qual graceja Gabriel com respeito a sua esposa, é uma ironia à sua beleza, ou à falta desta; uma agressão, na verdade. “GABRIEL – Ora explique-me Sra. Pulquéria, a sua asserção; eu não entendo bem”. É difícil entender bem a comédia. Procurar um sentido lógico que satisfaça os padrões comuns de interpretação não é uma tarefa fácil em Qorpo-Santo, mesmo porque o enredo não é linear e, consequentemente, não há concatenação das idéias e sim saltos de acontecimentos. João Roberto Faria (1998, p.86) alerta para a vizinhança com o coq-à-l’âne: “ passagem sem transição e sem motivo de um assunto para outro”. O entreato de Um assovio, em relação aos três primeiros atos, é um dos muitos exemplos de coq-à-l’âne que se pode capturar nas peças de Qorpo-Santo. As comédias do autor gaúcho aproximam-se das farsas – embora não o sejam – que se debruçam sobre a violência. Segundo Eric Bentley (apud FARIA, 1998, p. 80), “sem agressão a farsa não funciona”. Em Um assovio, a violência também é verbal, ás vezes é irônica, outras beira à agressão física. O objetivo da agressão, da violência é causar o riso. A farsa propicia o riso que é alimentado pelo rebaixamento do elevado, do que tinha alto valor, seguindo o conceito bakhtiniano. As personagens são caricatas e representam o que tem de mais baixo na sociedade. Para Faria, (1998, p. 85), “as personagens são medíocres, moral e intelectualmente; todos os ridículos são abordados e satirizados”. O teatro da farsa, diz-nos Bentley (apud FARIA, 1998, p. 79), é o teatro do corpo humano, mas de um corpo num estado tão distante do natural quanto a voz de Chaliapin está longe de minha voz ou dos leitores. È um teatro em que, embora os fantoches sejam homens, os homens são superfantoches. É o teatro do corpo surrealista. 314 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O corpo em Um assovio, em semelhança a outras composições de Qorpo-Santo como Mateus e Mateusa é um corpo dilacerado, caricato, sujeito ao mais profundo rebaixamento moral, o que acaba conduzindo ao riso. Partes do corpo que caem e que são recolocados em seguida, sem qualquer objetivo aparente; o apelo sexual, principalmente vindo de mulheres de idade avançada. Em Mateus e Mateusa, a octogenária Mateusa reivindica relação sexual com seu marido também octogenário. Luduvina, em Um assovio, insinua-se para seu marido Gabriel, que a rejeita; afinal, Luduvina é uma “velha feia com ares de feiticeira”. Esméria mandou um recado à “prima Hermenêutica”. E para se conseguir a compreensão, o sentido, de Um assovio é necessário adentrar num mundo do absurdo e do surrealismo, para que enfim se consiga a interpretação, ou interpretações. Segundo Flávio Aguiar (apud FARIA, 1998, p. 92-93): se Qorpo-Santo é, em parte, um precursor do Teatro do Absurdo, ele é, entes, o precursor de si próprio. Paralisado pelas próprias condições, que nenhum público constante ajudou a resolver, seu teatro tornou-se esse amplo painel onde é possível projetar as vocações surrealistas, os impulsos brechtianos, as sensações do Absurdo, e, certamente, muitas outras coisas que até agora sequer se imaginaram. O teatro de vanguarda, a qual as comédias de Qorpo-Santo costumam ser associadas, enfocam diversas tendências. E talvez por isso ainda se apresente de uma maneira vívida e instigante. A significação de suas peças, como já foi bastante assinalado, apresenta uma simbologia fluida que não objetiva um conceito concreto, fato ou história, mas que possibilita leituras, pois enfoca a relação com o natural, com o que é orgânico e inerente ao ser humano; ainda que esta visão seja turva por conta do impedimento do autor em sua disfunção psíquica. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 315 CLIPE REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4. ed. Trad. de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb,1999. BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: Difel, 1985. FARIA, João Roberto. O teatro na estante. Cotia: Ateliê, 1998. FRAGA, Eudinyr. Qorpo-Santo: surrealismo ou absurdo? São Paulo: Perspectiva. 1988. KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986. QORPO-SANTO. Teatro completo. Rio, MEC-SEAC-FUNARTESNT, 1980. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. Recebido em 12/08/2008 Aprovado em 21/09/2008 316 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO CARTOGRAFIAS INSTÁVEIS: PERCURSOS PELA CIDADE DE NO PAÍS DAS ÚLTIMAS COISAS, DE PAUL AUSTER Rafaela Scardino Ufes Resumo: Anna Blume, protagonista de No país das últimas coisas, de Paul Auster, viaja para uma cidade em que “a única coisa que conta é permanecer de pé”, um lugar em que nada perdura: deve-se buscar novos significados a todo momento, pois, neste lugar, alguém “só sobrevive se nada lhe for necessário”. Partindo de considerações sobre o romance do autor norte-americano e de teorias sobre o espaço na contemporaneidade, discutiremos a encenação literária das relações de produção de subjetividade nos instáveis cenários urbanos contemporâneos. Palavras-chave: Paul Auster. Espaços urbanos. Literatura contemporânea. Abstract: Anna Blume, protagonist of Paul Auster’s In the country of last things, travels to an unnamed city in which “the only thing that counts is staying on your feet”, a place where nothing lasts: significances should be constantly pursuit, for, in this city, “you can survive only if nothing is necessary to you”. Using contemporary theories about space and the analysis of Auster’s novel, we will discuss the literary depiction of the relations involved in how is subjectivity produced within the unstable contemporary urban spaces. Keywords: Paul Auster. Urban Spaces. Contemporary literature. As cidades dos textos de Paul Auster oferecem como sua principal característica a instabilidade, tanto de posições – conduzindo ao imperativo do deslocamento – quanto de identidades. Logo no princípio do romance No país das últimas coisas, a personagem Anna Blume adverte: O essencial é não se acostumar, pois os hábitos são mortais. Ainda que seja pela centésima vez, você deve tomar as coisas Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 317 CLIPE como se nunca as tivesse visto. Pouco importa o número de vezes anteriores, cada uma tem de ser sempre a primeira. Isso é quase impossível, eu sei, mas é uma regra absoluta41. As regras da cidade não podem ser generalizadas, nem transferidas de um território para outro, pois a cidade não constitui um lugar antropológico, ou seja, não faz parte daquilo que é próprio, comum ao sujeito. Se lugares, na definição de Marc Augé42, se caracterizam por históricos, identitários e relacionais, a cidade descrita por Anna43 nos oferece muitas das características dos não-lugares, como a necessidade de assumir identidades previamente definidas e a hostilidade em relação à permanência, tanto de indivíduos quanto de comportamentos, além de ser marcada pela incerteza, pois “quem mora na cidade não tem garantia de nada” (NPUC, p. 9), e pelo signo da instabilidade, conceito fundamental para nossa compreensão dos espaços urbanos na obra do autor norte-americano. Essa última característica é, possivelmente, a mais perturbadora para Anna em seu contato com a cidade, por impedir a consolidação de quaisquer referências constantes: “uma casa está aqui num dia e, no outro, sumiu. Uma rua pela qual você passou ontem já não existe hoje. Até mesmo o clima flui constantemente” (NPUC, p. 9). Anna vai para a cidade em busca de seu irmão, William, um jornalista enviado ao país com o propósito de produzir uma série de reportagens para um periódico de sua terra natal, mas que deixou de se comunicar com a redação há mais de nove meses. Decidida a encontrá-lo, ela embarca num navio de que é a única passageira. O primeiro contato com a cidade é amedrontador: o navio aporta à noite e, na praia completamente escura, Anna tem a impressão de estar “entrando num mundo invisível, num lugar onde só moravam cegos” (NPUC, p. 22). O endereço do jornal é, para ela, uma fonte de segurança, um ponto de partida para sua busca, mas, ao chegar ao local indicado, AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São Paulo: Best Seller, s/d1, p. 13. Para as seguintes citações deste texto, utilizaremos as iniciais NPUC e o número de página referente a essa edição 41 AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1994. 42 Durante todo a narrativa, a cidade descrita por Anna Blume em sua carta jamais é nomeada. 43 318 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO descobre que a rua mesma desapareceu: “não era que o escritório estivesse desocupado ou o prédio abandonado. Simplesmente, não havia prédio algum, não havia nada: só pedras e centenas de metros quadrados de entulho” (NPUC, p. 23). Sem ter por onde começar a procurar o irmão, Ana passa seus primeiros momentos – uma massa indefinida de tempo, que não consegue identificar como dias, semanas ou meses – vagando pela cidade, como uma sonâmbula, “sem saber onde estava, sem mesmo [se] atrever a falar com quem quer que fosse” (NPUC, p. 43). A cidade retira dos habitantes a possibilidade de assentar sistemas de signos que conduzam à compreensão e conseqüente estabelecimento de vínculos com seus territórios, impedindo a fixação de conhecimentos, também eles sujeitos à flutuação e à instabilidade que a caracterizam: “a vida, tal como a conhecemos, acabou, e, entretanto, ninguém é capaz de compreender o que foi que a substituiu” (NPUC, p. 24). Anna identifica facilmente a perda de um modo de vida, isto é, de uma maneira de perceber os fenômenos à sua volta e de lidar com eles, mas é incapaz de vislumbrar aquilo que poderia ter-lhe substituído, daí a necessidade de incessante negociação, como numa busca por tentativa e erro, até a compreensão daquilo que tomou seu lugar. “Confrontado com o fato mais corriqueiro, você já não sabe como agir, e, não podendo agir, acaba se tornando incapaz de pensar”, pois “à sua volta, as mudanças ocorrem uma após a outra, cada dia traz uma nova conturbação, as antigas suposições se esfumam no ar, se esvaziam” (NPUC, p. 24), prossegue, descrevendo a incapacidade de adaptar pensamentos e modos de agir previamente conhecidos aos eventos com quais é obrigada a lidar. Notemos que pensar, aqui, implica criação de novos códigos e, em termos espaciais, argumentamos que a criação de práticas e modos de estar, ou seja, formas de habitar a cidade, apenas é possível através da negociação de lugares, cuja principal característica é a estabilidade44. Tal constatação nos permite compreender a incessante busca por espaços que possibilitem fixidez como a busca de Anna pela constituição de lugares antropológicos, isto é, territórios nos quais possa estabelecer práticas duráveis. Discordamos de Brigitte Vilequin-Mongouchon, ao afirmar que, Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 9. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. 44 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 319 CLIPE na cidade de No país das últimas coisas, existe “uma única maneira de tentar resistir: estar em movimento”45. Acreditamos que a movimentação, prática de negociação espacial, presta-se – talvez de forma mais acentuada – à permanência do estado de flutuação e fragmentação, através dos obstáculos impostos à instauração de relações com o espaço utilizado. Atentamos, no romance, para outra forma de resistência: o estabelecimento de laços afetivos. Anna e Sam, o jornalista encarregado de substituir William, passam a viver juntos na biblioteca, unindo seus recursos numa tentativa de sobreviver e, quem sabe, retornar a seu país, desafiando “uma das leis da cidade [que] determina que a gente nunca bata numa porta, a menos que saiba o que há do lado de dentro” (NPUC, p. 86). Existem também pessoas tão magras que, para não serem levadas pelo vento, andam “em grupos de duas ou três, famílias inteiras à vezes, presas umas às outras com cordas e correntes, firmando-se mutuamente contra as lufadas” (NPUC, p. 11). Um dos laços mais estreitos e duradouros de Anna em sua estada na cidade se dá com Isabel, uma mulher de meiaidade que ela salvou da morte: “bem ou mal, minha verdadeira vida na cidade começou naquele momento. Tudo mais fora um prólogo, uma coleção de passos incertos, de dias e noites, de pensamentos que já não recordo” (NPUC, p. 44). Isabel leva Anna para sua casa e cuida dela, ensinando-lhe, na medida do possível, como sobreviver na cidade. A necessidade de olhar sempre para as coisas como se fosse a primeira vez, uma das lições aprendidas por Anna, pode ser compreendida como um interdito ao hábito, que configura, para Alexandre Moraes, uma espécie de conceito que dinamita a possibilidade de um fluxo maior do sujeito. Dito de outra maneira, no hábito a obrigação de significar. [...] A metáfora deve desaparecer sob o signo de um conceito e tal conceito ganha mobilidade para impulsionar códigos e sistemas de codificações; cria uma lógica da cultura através de elaborados sistemas de No original: ”un seul moyen pour tenter résister: être en mouvement”. VILEQUIN-MONGOUCHON, Brigitte. Voyage au coeur d’un trou noir: lecture transdiciplinaire du roman de Paul Auster, In the country of last things. Disponível em <<htp://www2.univ-reunion.fr/~anglof/ text/74c21e88-306.html#_ftn7>>. Acesso em 16 nov. 2007. 45 320 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO transmissão e repetição indefinidas: esta a raiz do hábito46. Em Auster, a impossibilidade do hábito é justamente a impossibilidade da manutenção de significados e da transmissão de experiência. O hábito, por suas repetições, pode conduzir a uma falsa sensação de familiaridade e segurança, propiciando desatenção, o que pode ser fatal na cidade das últimas coisas: “é assim. Um momento de desatenção, um mero segundo em que você se esquece de estar alerta, e tudo se perde [...]” (NPUC, p. 73). A extrema instabilidade da cidade atinge, também, os conhecimentos criados a partir do contato com suas ruas. Assim, “o fato de conseguir entrar não significa que conseguirá sair. As entradas não servem de saída e nada pode garantir que a porta pela qual passou a um momento ainda estará ali quando você se voltar a sua procura” (NPUC, p. 75-76). E nos defrontamos, ainda mais uma vez, com a necessidade de constantes e incessantes negociações com este espaço, como nos dá a ver Anna, ao afirmar que “toda vez que a gente pensa saber a resposta de uma questão, descobre que a própria questão não tem sentido” (NPUC, p. 76). b A cidade do relato de Anna é aquela da interdição à fixidez, a mesma que, na modernidade analisada por Moraes, relegava os sujeitos à invisibilidade do banal, ou melhor, à impossibilidade de visão efetiva do banal, exatamente o que é pedido a M. S. Fogg, narrador de Palácio da lua, ao ser contratado como acompanhante de um homem cego: Dei-me conta de que nunca tivera o hábito de olhar atentamente para as coisas, e, agora que me pediam para fazer isso, os resultados eram catastróficos. Até então sempre tivera tendência para generalizar, para ver em tudo semelhanças em vez de diferenças. Agora, porém, eu estava sendo atirado o mundo das particularidades, e a luta para traduzi-las em palavras, para recolher os dados imediatos que me vinham pelos sentidos apresentava-me um desafio para o qual eu não estava preparado47. MORAES, Alexandre. O outro lado do hábito: modernidade e sujeito. Vitória: EDUFES, Centro de ciências Humanas e Naturais, 2002, p. 122. 46 AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São Paulo: Best Seller, s/d2, p. 131. 47 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 321 CLIPE A Nova York descrita por Fogg, em que “todas as coisas inanimadas estavam se desintegrando; todas as coisas vivas, morrendo”48, assemelha-se à cidade de No país das últimas coisas, onde tudo se desintegra; e, para ambos, a instabilidade é o aspecto mais marcante da cidade: Um hidrante, um táxi, um sopro de vapor a subir da calçada – tudo isso me era profundamente familiar; eu supunha conhecer tais coisas de cor. Não levava, porém, em conta sua instabilidade [...]. Tudo estava em constante fluxo. Ainda que dois tijolos de uma parede fossem muito parecidos, não se poderia dizer que fossem idênticos. Ou mais precisamente: um tijolo nunca era de fato o mesmo. Estava se desgastando, consumindo-se imperceptivelmente sob a ação da atmosfera, do frio, do calor [...], e, por fim, depois de séculos, podia ter desaparecido49 (PL, p. 132). Uma das principais características da cidade contemporânea é não se dar facilmente à exploração50. A falta de um centro definido, ou de marcos e monumentos que guiem o visitante, incomoda também seus habitantes, que não atribuem significados às localidades que servem, apenas, de abrigo ao comércio ou outras instituições vivenciadas como distantes, ainda que públicas. É possível caminhar por suas ruas e mesmo saber o endereço de determinado sítio, mas a cidade opõe-se à criação de hábitos, tradições ou sentidos para o que se vê e experimenta: experimentar, nesta cidade, não implica adquirir experiência. Tomemos como exemplo o primeiro trabalho de Anna na cidade, a “caça” de objetos a serem vendidos para “agentes de ressurreição”, “empresários privados que transformam essas bugigangas em novas mercadorias e, por fim, as vendem” (NPUC, p. 35). Para encontrar objetos, ou partes deles, ainda aproveitáveis, é necessário que os “caçadores de objetos”, em geral jovens “rápidos e espertos”, percorram toda a cidade “impetuosamente, [...] vasculhando 48 AUSTER, Paul. Op. Cit., s/d2, p. 133. 49 AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São Paulo: Best Seller, s/d2, p. 132. Cf., dentre outros, RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar: a historia e o futuro da cidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 50 322 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO delicadamente uma rua após outra, sem jamais perder a esperança de encontrar algo extraordinário ao dobrar a próxima esquina” (NPUC, p. 36). É fácil perceber que o deslocamento e a movimentação física se impõem à sobrevivência dos indivíduos, levados a caminhar em busca de algo que possa ser vendido, mas a aversão à fixidez é parte da própria dinâmica da cidade, em que ruas inteiras desaparecem da noite para o dia. E onde existem escombros do que foram casas e edifícios, erguem-se barreiras, construídas pelos habitantes da cidade como trincheiras: Constroem-nas onde encontram material disponível, e ali ficam entrincheiradas com porretes, fuzis ou tijolos, à espera dos transeuntes. Tomam o controle da rua. Se quiser passar, você tem de dar o que exigirem. Às vezes é dinheiro; às vezes, comida; às vezes, sexo. Os espancamentos são um lugar-comum, e, a cada instante, você ouve falar em assassinatos (NPUC, p. 13). Mas as barreiras também são edificações temporárias, que vêm abaixo quando deixam de ser úteis, ou quando um grupo perde o poder para outro, que reorganiza o espaço de acordo com suas necessidades de criação, ou melhor, negociação de lugares. Trata-se de uma forma de tentar disciplinarizar51 o espaço que já não lhes proporciona segurança, no qual não confiam por ser impossível seu mapeamento cognitivo. As barreiras tornam-se então “sua única chance de obter poder sobre algo [o espaço], ainda que apenas momentaneamente. Não querem construir abrigos tradicionais; em seu lugar, constroem muros”52. Termo empregado segundo a acepção a ele atribuída por Michel Foucault em Vigiar e punir. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. 51 No original: “[barriers] are their only chance to get even momentary power over something. They do not want to build traditional shelters, they build walls instead”. NYSTRÖM, Helmi. Three sides of a wall. Obstacles and Border States in Paul Auster’s Novels. Pro gradu, October 1999. University of Helsinki, Comparative Literature, Institute for Art Research, Faculty of Arts, p. 24, grifos nossos. Disponível em <http://ethesis.helsinki.fi/julkaisut/hum/taite/pg/nystrom/>. Acesso em 31 mai. 2006. 52 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 323 CLIPE Confrontados com a exacerbada mobilidade dessas barricadas, os moradores da cidade devem estar sempre alertas e prontos a criar novas formas de lidar com os sinais “enviados” por estas construções: a visão nem sempre é suficiente para distinguir a tempo o perigo, “porque as barreiras têm um cheiro particular que você aprende a identificar mesmo a uma grande distância” (NPUC, p. 13). Assim, a cidade impõe que se lance mão de outras formas de contato com o mundo, exigindo que os moradores voltem a confiar, por exemplo, em sentidos desprivilegiados, como o olfato, a fim de se preservarem. Os habitantes, no entanto, não são os únicos a tentar controlar o espaço, pois também o governo se ocupa da construção de muros. Logo após a morte de Isabel, Anna tenta sair da cidade e descobre que o governo havia iniciado recentemente o “Projeto Amurada”, com planos de construir uma enorme muralha tendo como matéria-prima, assim como as barreiras, destroços e restos de edifícios, cujo objetivo seria proteger a cidade de invasões estrangeiras. A cidade fora fechada, já não era permitido chegar ou sair e Anna é obrigada a se confrontar com o fato de que está presa na cidade. A instabilidade e extrema mobilidade das barreiras implicam uma relação de imprevisibilidade espacial que anula todo conhecimento histórico, pois as barreiras não permanecem sequer nas mesmas ruas: “novas barreiras se erguem, as antigas desaparecem. A gente nunca sabe que ruas tomar, que ruas evitar” (NPUC, p. 13). A experiência de Anna na cidade é, portanto, a da falta de lugar e sua frágil organização se configura espacialmente, e não temporalmente. Tal concepção de espaço urbano como algo que prescinde da necessidade de preservação e que deve renovar-se continuamente pode ser verificada neste trecho em que Richard Sennett fala da relação de Nova York com sua história: Muitas construções em perfeito estado desapareciam com a mesma regularidade com que surgiam novas. Num período de sessenta anos, por exemplo, as grandes mansões da Quinta Avenida [...] foram construídas, habitadas e destruídas, cedendo lugar a edificações mais altas. Hoje [no começo da década de 1990], apesar de já se cuidar da preservação do patrimônio histórico, os arranha-céus são planejados para durar cinqüenta anos e financiados de acordo com essa duração estimada, conquanto sejam obras de engenharia capazes de conservar-se 324 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO por muito mais tempo. De todas as cidades do mundo, Nova York foi a que mais cresceu à custa de demolições; daqui a cem anos, as pessoas terão evidências mais tangíveis da Roma de Adriano do que da grande metrópole de fibra ótica53. A cidade de Anna, como a Nova York descrita por Sennett, é uma metrópole em que o movimento de demolição constituiria, aparentemente, uma forma de progresso, um andar para frente às custas de ruínas. Mas, em vez de consagrar uma possibilidade de progresso, o fenômeno há pouco descrito configura-se como um movimento na verdade circular e descentrado, pois o apagar da história acarreta também o desaparecimento de noções como para a frente e para atrás54, conduzindo a uma vida em episódios instáveis que buscam evitar conseqüências que extrapolem o tempo mínimo e flutuante de sua duração. REFERÊNCIAS AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1994. AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São Paulo: Best Seller, s/d1. AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São Paulo: Best Seller, s/d2. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 9. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 291-292. 53 Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 54 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 325 CLIPE SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997. MORAES, Alexandre. O outro lado do hábito: modernidade e sujeito. Vitória: EDUFES, Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2002. NYSTRÖM, Helmi. Three sides of a wall. Obstacles and Border States in Paul Auster’s Novels. Pro gradu, October 1999. University of Helsinki, Comparative Literature, Institute for Art Research, Faculty of Arts. Disponível em <http://ethesis.helsinki.fi/julkaisut/ hum/taite/pg/nystrom/>. Acesso em 31 mai. 2006. RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar: a historia e o futuro da cidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. VILEQUIN-MONGOUCHON, Brigitte. Voyage au coeur d’un trou noir: lecture transdiciplinaire du roman de Paul Auster, In the country of last things. Disponível em <<htp://www2.univ-reunion. fr/~anglof/text/74c21e88-306.html#_ftn7>>. Acesso em 16 nov. 2007. Recebido em 15/08/2008 Aprovado em 15/09/2008 326 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO A AGONIA E O DESPERTAR DE UMA CIDADE EM A PESTE, DE ALBERT CAMUS Angela Regina Binda da Silva Ufes Resumo: Este artigo faz uma relação entre as obras A Peste e O Estrangeiro, de Albert Camus, apresentando os principais pontos do pensamento camusiano acerca do absurdo e da revolta inseridos no enredo dessas obras. Palavras-chave: A Peste. O Estrangeiro. Absurdo. Revolta. Abstract: This article makes a relation between the books The Plague and The Stranger, pointing the main aspects of Camus´ thoughts according to the absurd and revolt in the plot of these books. Keywords: The Plague. The Stranger. Absurd. Revolt. Publicada em 1947, A Peste, de Albert Camus, trata do absurdo vivido pelo ser humano e de sentimentos coletivos como a revolta, temas que foram abordados pelo mesmo autor cinco anos antes de forma individual em O Estrangeiro. Tomada pela peste bubônica, a cidade de Oran no norte da África é fechada sobre si mesma e seus moradores passam a conviver com sentimentos como o medo e a solidão. A morte é fato quase certo e a doença faz milhares de vítimas que passam a dar importância à vida e ao próximo, despertando a compaixão e a ajuda mútua. A iminência da morte traz à tona que a vida e o homem são finitos. Há também um fundo filosófico-existencial. Albert Camus se utilizava da literatura com uma escrita simples para expor e desenvolver suas idéias sobre questões filosóficas como o absurdo e a revolta. Isolados do resto do mundo e separados de seus amantes e familiares, os cidadãos de Oran voltam-se para seus vizinhos e para cada um da cidade para redescobrirem a essência das relações humanas, antes adormecidas pela fria rotina de cada um. A monotonia do trabalho e o pensamento voltado para o acúmulo de riquezas são interrompidos Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 327 CLIPE quando milhares de ratos aparecem mortos. O que era no início apenas uma preocupação torna-se um horror generalizado quando as mortes atingem também aos cidadãos, dizimando famílias inteiras e espalhando o horror por todos os lados. Todos os moradores da cidade estão ameaçados pela doença mortal pelo simples contato com entes queridos já infectados e passam a temer até o vento que sopra trazendo o bacilo da peste. A morte se torna uma personagem da obra que cumpre seu papel não por causa do ciclo natural da vida, mas porque dizima sem ordem, vez, ou classe social. É temida por ser injusta e numerosa. A obra traz como personagem central o Dr. Rieux. O médico tem papel fundamental na trama, pois se une a vários outros personagens para combater o mal que eles não sabem a origem. Ele é o próprio redator da narrativa e a considera como um testemunho para “[...] não ser daqueles que se calam, para depor a favor destas vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas”. (CAMUS, 2004, p. 268) A obra A Peste está intimamente ligada à vida pessoal de seu autor. É de extrema importância entender o contexto em que Albert Camus vivia para fazer uma relação com alguns fatos da obra. Oran, a cidade onde se passa a história, localiza-se no norte da África, país onde Camus nasceu em 1913. O enredo do romance destaca o fato dos amantes sofrerem pela separação imposta pela epidemia, o que poderia ser um reflexo da separação de Camus, sua família e terra natal por mais de dois anos. Nesse período, os aliados à África do Norte chegaram à Paris onde Camus estava para se tratar no verão de 1942. Há ainda a ausência de personagens femininos na obra. Muitas mulheres estão longe de Oran e as que residem lá não têm importância. A mãe do Dr. Rieux é a única mulher que aparece em algumas cenas e recebe destaque. Camus provavelmente descreve a Senhora Rieux com traços de sua mãe dando um aspecto calmo e silencioso à personagem. Ainda jovem Camus entregou-se aos esportes (especialmente ao futebol) até descobrir a tuberculose e sua condição de homem mortal, aspecto tratado na obra em questão. Em A Peste há um jogador de futebol que por várias vezes fala de sua paixão pelo esporte. Camus ainda foi funcionário da prefeitura em Argel da mesma forma que o personagem Grand é no romance. Grand é um personagem simples, mas importante dA Peste que busca a perfeição de uma maneira 328 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO obcecada ao escrever uma frase que faria parte de um romance. Ele tenta por diversas vezes compor essa frase mudando a pontuação e substituindo palavras. O personagem chega ao fim da história sem êxito. Há assim uma reflexão sobre o papel do escritor e da própria maneira de escrever. Camus também desempenha a função de jornalista e viaja por vários lugares relatando a pobreza e os horrores das guerras. NA Peste, Rambert é um jornalista que acaba por ficar preso na cidade devido ao isolamento imposto e desiste da fuga para enfim ajudar ao Dr. Rieux e a todos os flagelados. Esse fato pode ser interpretado como um símbolo de opressão à liberdade de imprensa. O ESTILO ABSURDO E POÉTICO EM A PESTE E O ESTRANGEIRO Há fortes elos que ligam O Estrangeiro à obra A Peste. Camus usou o nome Raymond em ambas as obras para nomear na primeira o vizinho de andar do personagem principal e nA Peste um jornalista preso na cidade fechada por causa da epidemia de peste. Esse jornalista procura meios de ultrapassar os muros da cidade e fugir ao cerco imposto pelas autoridades para reencontrar a liberdade e a mulher amada. “Sua argumentação principal consistia sempre em dizer que era estrangeiro em nossa cidade e que, por conseguinte, o seu caso devia merecer um exame especial”. (CAMUS, 2004, p. 96) Camus ainda faz um elo explícito com O Estrangeiro quando cita sobre a prisão de Mersault em A Peste: “Grand chegara a assistir a uma cena curiosa com a vendedora de tabaco. No meio de uma conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoroçava Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia”. (CAMUS, 2004, p.53) O mundo incoerente apresentado por Camus na obra O Estrangeiro através do absurdo e da revolta, também faz parte dA Peste. A rotina, o tédio e a repetição de situações são aspectos que fazem Mersault – o protagonista de O Estrangeiro – e a população de Oran – cidade assolada pela peste – mergulharem no absurdo da vida mostrado por Camus através de sua literatura. Mesmo amedrontados pela epidemia que faz centenas de mortos por semana, os concidadãos de Oran passam a viver o absurdo acostumando-se com a peste. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 329 CLIPE Os nossos concidadãos tinham-se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder. Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não o sentiam. De resto, o doutor Rieux, por exemplo, achava que essa era justamente a desgraça e que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero. Antes, os separados não eram realmente infelizes, pois havia no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir. Agora, eram vistos pelas esquinas, nos cafés ou em casa dos amigos, plácidos e distraídos, e com um ar tão entediado que, graças a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera. Os que tinham uma profissão executavam-na ao ritmo da própria peste, meticulosamente e sem brilho. (CAMUS, 2004, p. 160) Essa fácil adaptação a uma difícil vida também acontece com Mersault, em O Estrangeiro, que se acostuma com os dias na prisão e diz que “[...] se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima da minha cabeça, eu teria me habituado aos poucos” (CAMUS, 2005, p. 81). Suas lembranças na prisão são seu único passatempo e ele “aprende a recordar” situações simples de sua vida como a localização dos móveis e objetos de sua casa. Dessa mesma forma, os habitantes de Oran aprendem a usar a imaginação para passar o tempo. Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro, parecíamo-nos assim efetivamente com aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás das grades. Para terminar, o único meio de escapar a estas férias insuportáveis era através da imaginação, recolocar em movimento os trens e encher as horas com os repetidos sons de uma campainha que, no entanto, se obstinava ao silêncio. (CAMUS, 2004, p. 68) Mesmo com a cidade de Oran assolada pela peste e sem sinais de regressão da doença, alguns personagens ignoravam mentalmente todas as duras regras impostas pelo governo e pensavam como homens livres. Mersault, em O Estrangeiro, tem pensamentos de homem livre mesmo preso e sente mais dificuldade em ter esses tais pensamentos do que o fato de estar preso e ter que vivenciar todos os problemas que a prisão lhe oferece como falta de higiene ou estrutura física precária. 330 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Assim, durante semanas, os prisioneiros da peste debateram-se como puderam. E alguns, como Rambert, chegavam até a imaginar, como se vê, que ainda agiam como homens livres, que ainda podiam escolher. Mas, na realidade, podia dizer-se neste momento, nos meados do mês de agosto, que a peste tudo dominara. Já não havia então destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados por todos. (CAMUS, 2004, p. 149) A agonia que os cidadãos de Oran viveram por meses e o cenário aterrorizante que a peste criou e os obrigou a presenciar, fez com que muitos se acostumassem com a morte e esperassem por sua vez de contraírem a doença para morrerem. “Estavam a tal ponto abandonados à peste que lhes acontecia às vezes só desejarem o sono e surpreenderem-se a pensar: Que venham logo os tumores e se acabe com isto!” (CAMUS, 2004, p. 161) O toque de recolher imposto pelas autoridades, o fechamento da cidade, as medidas de segurança e prevenção que os moradores tiveram que se submeter fez parte da vida dos concidadãos de Oran por longos meses. Essa nova vida imposta pela peste, trouxe junto com ela o costume e a rotina que são características do absurdo que os personagens de Camus vivenciam. Na página 162 de A Peste lêse: “De manhã, voltavam ao flagelo, quer dizer, à rotina”. (CAMUS, 2004) A falta de esperança do homem camusiano e a vivência do presente também são características que fazem parte de cada cidadão de Oran. As autoridades tinham contado com os dias frios para deterem este avanço e, contudo, ele passava através dos primeiros rigores da estação sem desanimar. Era preciso esperar ainda. Mas, de tanto esperar, ninguém mais espera – e a nossa cidade inteira vivia sem futuro. (CAMUS, 2004, p. 225) OS HOMENS REVOLTADOS DE ORAN EM UM FINAL FELIZ E DUVIDOSO O homem descrito por Camus vive no absurdo, locomove-se nele e revolta-se após despertar diante de algum fato. A revolta surge diante do fato do homem se negar a viver o que vinha experimentando e aceitando até então. O “não” do homem absurdo é o início da revolta Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 331 CLIPE que permite que o próprio homem tenha consciência do seu valor. Após uma primeira aceitação e de tentarem levar suas vidas de uma forma normal, os cidadãos de Oran precisam seguir as duras regras impostas pelo governo e revoltam-se em meio ao caos como descreve o trecho da obra abaixo: Os tumultos junto às portas da cidade, durante os quais os guardas tinham sido obrigados a lançar mão de suas armas, criaram uma surda agitação. Tinha havido feridos, sem dúvida, mas falavam-se de mortos na cidade, onde tudo se exagerava por efeito do calor e do medo. Em todo o caso, é verdade que o descontentamento não cessava de aumentar, que as nossas autoridades tinham receado o pior e estudado muito a sério medidas a serem tomadas no caso de esta população, mantida sob o flagelo, ser levada à revolta. Os jornais publicaram decretos que renovavam a proibição de sair e ameaçavam com pena de prisão os infratores. Patrulhas percorriam a cidade. Muitas vezes, nas ruas desertas e escaldantes, viam-se avançar, anunciados em primeiro lugar pelo ruído dos cascos dos cavalos nos paralelepípedos, guardas montados que passavam por entre duas fileiras de janelas fechadas”. (CAMUS, 2004, p. 102) Durante a noite as portas da cidade são atacadas por cidadãos armados que tentam repetidamente fugir e lutar contra os guardas que não conseguiram acalmar o sopro de revolução que contagiou a todos.A cidade que antes de ser acometida pela peste era calma e individualista, tornou-se uma prisão para os seus próprios cidadãos que encontram na revolta coletiva valores não individuais, éticos e políticos. Por fim, a revolta traz o benefício da “purificação”. Assim como em O Estrangeiro Mersault revolta-se em sua cela e depois se sente renovado, em A Peste os concidadãos se revoltam e depois se sentem prontos para agirem contra o mal que os dizima. “O rumor da cidade, contudo, continuava a chegar aos terraços com um marulho de vaga. Mas esta noite era a da libertação e não a da revolta”. (CAMUS, 2004, p. 268) Os primeiros foguetes dos festejos anunciavam a peste que ia embora, juntamente com gritos de alegria. Uma cidade que enfim começava a sorrir e iria enfim retomar sua rotina depois de sacudida por um 332 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO inimigo invisível. O flagelo ensinou aos cidadãos que há mais coisas para se admirar nos homens diante do caos do que para se desprezar. A alegria dos homens agora livres estava sempre ameaçada por algo que estava escrito nos livros e que os felizes cidadãos desprezavam: “[...] o bacilo da peste na morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada”. REFERÊNCIAS CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Valerie Rumjanek 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. BARRETO, Vicente. Camus Vida e Obra. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus Um Elogio do Ensaio. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. TODD, Oliver. Albert Camus: Uma Vida. Trad. Mônica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998. Recebido em 17/08/2008 Aprovado em 15/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 333 CLIPE WALDO MOTTA: POESIA, CRÍTICA E PROBLEMA Rodrigo Leite Caldeira Ufes Resumo: O objetivo deste artigo é fazer um mapeamento das zonas de tensões surgidas à luz da obra poética de Waldo Motta. Palavras-chave: Waldo Motta. Poesia. Crítica e interpretação. Abstract: This article aims at mapping the tensions risen in light of the poetic work of Waldo Motta. Keywords: Waldo Motta. Poetry. Criticism and interpretation. Waldo55 Motta “é um problema literário. Imagino,” temeroso em afirmar minha certeza, que esse plágio inicial, angústia de minha ignorância, seja o sustentáculo deste artigo, pois nele procurarei, a partir de uma leitura dialética entre os poemas waldianos e a fortuna crítica sobre eles, pontuar as zonas de tensões surgidas à luz de sua poética, que, como veremos, pela singularidade do tema atual se nos apresenta como um problema. Podemos dividir este problema em três fases interligadas aos seus livros da seguinte forma: a) uma 1ª fase que vai do final dos anos 70 até o ano de 1984 com a publicação dos livros Pano Rasgado (1979), Os Anjos Proscritos e Outros Poemas (1980, em parceria com Wilbett R. Oliveira), O Signo na Pele (1981), Obras de Arteiro (1982), As peripécias do Coração (1982) e De Saco Cheio (1983), todos em edições autorais ainda vinculados à cultura dos anos 70 da poesia mimeógrafo, onde o problema aqui é da ordem da subtração; de uma literatura feita ao calor das emoções, sem o crivo necessário para consolidá-la. Faz-se poesia numa tentativa brusca de mudanças sociais, políticas e amorosas, utilizando-se da palavra apenas como um artefato de guerra, valendo muito mais o que se quis dizer do que como se disse, perdendo, deste modo, Uso aqui a grafia que o autor utilizou na assinatura do seu último livro Recanto – poema das 7 letras. Vitória: Ímã, 2002. Pois como o mesmo atesta em seu site (http://www.waldomotta.cjb.net/) assim o fará em suas próximas obras. 55 334 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO a força poética advinda sobretudo do labor meticuloso sobre as palavras, ou, como quer o próprio poeta, este período se destaca por “um ciclo muito frege e pensamento rarefeito, alguma pretensão e certa ingenuidade (ilusões políticas, amorosas, essas coisas)”56, donde o poema surge quase num ato epifânico, de modo espontâneo: Quase que à revelia de mim vão-se-me brotando palavras, como seres incorpóreos animados. A minha vontade é um pastor distraído que por acaso e por estar está ali, e com apenas estar por estar vai tangendo sem tanger o rebanho heterogêneo de palavras agregando-as de modo que constituam um interpretação de fatos, uma idéia, uma dor existentes em mim, gestante, que me engravidara pelos gametas das circunstâncias.57 O poeta torna-se o “pastor distraído” que “por acaso” agrega as palavras, este “rebanho heterogêneo”, de modo que lhe sirvam como intérpretes de fatos, idéias e dores que lhe “engravidam”. Esta analogia ao poema como sendo fruto de algo engendrado no interior corpóreo do poeta é corrente nesta primeira fase. O poema que a melhor realiza é “Poemas cambiantes” onde o poeta após sete estrofes que podem ser lidas como um todo, mas também, como o próprio título sugere, sendo cada uma um poema cambiante, de cor indistinta, fecha o poema com estes seis versos: Só porque escrevo sinto esvair-se o que me enchera. A esferográfica é como se MOTTA, Valdo. “Saída para dentro (Introdução)”. In.: Transpaixão: coletânea. Vitória: Kabundo, 1999, p. 7. 56 Idem, Eis o homem: poemas selecionados 1980/1984. Coletânea. Vitória-ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - Universidade Federal do Espírito Santo, 1987, p. 21. 57 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 335 CLIPE me ordenhasse.58 Contudo, se pontuamos os aspectos acima descritos como o menos na poesia waldiana, não podemos deixar de salientar que são poemas que assumem feições comuns aos de seus contemporâneos. Flora Süssekind, analisando a produção literária dos anos 70 e 80, observa que a característica comum aos poetas deste período era o aspecto confessional de suas obras. Onde “as vivências cotidianas do poeta, os fatos mais corriqueiros [...] constituirão a matéria da (sua) poesia”59. Com Waldo Motta não dá-se diferente. Nele, também, onde se lê poesia, leia-se vida. O eu lírico está ali, a todo momento, num colóquio com o leitor; dando ciência do seu dia-a-dia, trazendo-o para a sua vivência. Daí Süssekind comparar estes livros aos diários. São livros que colocam o leitor em dia com a vida do poeta. Exemplo disso é “Devaneio no ônibus”, onde o leitor é levado, pelos olhos do poeta que “borboleteiam”, ao interior de um ônibus na hora do rush: Meus olhos borboleteiam no interior do ônibus a pousar de um a outro par de coxas dos peões que voltam do trampo, os corpos 58 Idem., p. 17. 59 SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2ª ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 115. Destacando a figura do leitor como cúmplice do autor, Süssekind destaca: “A sensação do leitor é meio a de quem violasse correspondência alheia ou abrisse de repente o diário de alguém e, começando a lê-lo, percebesse estranhas semelhanças com o seu próprio cotidiano não escrito, vivido apenas. E, para obter esse efeito de reconhecimento imediato, essa resposta direta, foi preciso que o texto poético começasse a dialogar cada vez mais com os media e menos com o próprio sistema literário, cada vez mais com o alinhavo emocional do diário, com o instantâneo, com o registro, em close, da própria geração. [...] E é entre referências cada vez mais freqüentes ao universo da televisão, da propaganda, dos quadrinhos, dos jornais populares, canções de sucesso e o detalhado relato do que se passa na rua, no cotidiano desses poetas sempre em trânsito que se vai estabelecer um novo tipo de pacto, menos literário e mais confessional, com o leitor” (p. 125-126). Se excedo na citação é para observar que na poética waldiana, embora haja o tom confessional, não localizo nela o diálogo com os media tão fortemente. Algo que ocorre com maior freqüência em Sérgio Blank, poeta capixaba contemporâneo a Waldo. 336 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO viscosos de poeira e suor O rude pano dos uniformes atiça-me a imaginação, assanha-me a libido e sonho-me a língua a recolher o sal de um corpo moreno e musculoso sob a parca luz de uma lâmpada de 40 volts ou de uma candeia a querosene numa caxanga suburbana; e sonho mil peripécias, estrepolias de amor, a prospecção completa um do outro, até que ambos estejamos lambuzados e que, assim, nossos corpos saibam a sal e sangue e baba e porra60. Reparem que o grau confessional do autor transcende o vivido para se abrir, sem meias palavras, ao sonho, aspiração por demais íntima. b) a 2ª fase seria vinculada ao livro O Salário da Loucura (1984). Quem conhece minimamente a obra poética do autor certamente discordará desta minha divisão, pois sabe que em termos literários o Salário da Loucura apenas fecha o “ciclo muito frege” acima descrito, sendo ele mesmo a melhor expressão do período. Então por que destacá-lo desse conjunto de “pensamento rarefeito”? Pelo simples fato de que seu prefácio inaugura o problema da adição em sua poesia. Escrito pela professora Deny Gomes é a primeira inserção da obra waldiana – em certa medida – no meio acadêmico. Portanto, a adição aqui proposta como problema seria a da legitimação inerente que pressupõe qualquer texto escrito por pertencentes ao “reino dos saberes”. Deny Gomes, persona grata aos jovens literatos capixabas por seus trabalhos desenvolvidos na Universidade Federal do Espírito Santo61 onde à época figurava como “Professora 60 MOTTA, Eis o homem... p. 20. 61 Sobre a importância de Deny Gomes neste período Reinaldo Santos Neves em seu Mapa da Literatura Brasileira feita no Espírito Santo assim se expressa: “Fatores paralelos contribuíram para que a década de 80 visse um despertar da atividade literária no Espírito Santo, mais especificamente em Vitória. Um deles foi a realização de uma série de oficinas literárias pela Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 337 CLIPE de Teoria da Literatura e Coordenadora de Literatura da Sub-Reitoria Comunitária da UFES”62, diz em seu texto “algumas coisas”, “não no preito de admiração ao jovem vate mateense”, muito menos usando “recursos da dissertação teórica avançadinha que, muitas vezes, cheia de modismos ‘liberais e progressistas’ escamoteia preconceitos e/ou falta de honestidade intelectual e humano”, mas “com o (seu) sentir, com (sua) cabeça, com (sua) perplexidade e respeito pelo jeito de ser e pela atividade artística do autor”63. E o fez muito bem. Adicionou à obra waldiana pré-Bundo um ethos que, embora o próprio autor desdiga hoje, numa clara intenção de que voltemos os olhos para seu Bundo, não pode ser desvinculado de modo algum do seu projeto poético, muito menos omitido de qualquer análise. Daí a necessidade dessa revisão histórico-literária que faço. Para aferir o valor daquele prefácio destaco alguns pontos levantados pela autora que de certa professora Deny Gomes, das quais participaram alunos de Letras e jovens da comunidade interessados no ofício da literatura. Esse projeto, que teve seu embrião no I Seminário de Produção do Texto Literário, promovido em 1981 pela Coordenação de Literatura (dirigida por Deny Gomes) da SubReitoria Comunitária da Ufes, e que se institucionalizou a partir de 1982 como projeto da Sub-Reitoria e do Departamento de Línguas e Letras da Ufes, deixou pelo menos três registros impressos nessa década: Ofício da palavra (1982), contendo trabalhos realizados durante o Seminário de 1981, Traços do ofício (1983), contendo textos de oficina literária realizada em 1982, e Toques (1984), contendo textos de uma oficina de poesia realizada em 1984. Três dos “graduados” da oficina literária de 1982 — Francisco Grijó, Paulo Roberto Sodré e Valdo Motta — vão ser encontrados, mais tarde, na Coleção Letras Capixabas da FCAA”. Cf. “A época áurea: os anos 80”. In.: NEVES, Reinaldo Santos. Mapa da Literatura Brasileira feita no Espírito Santo. Disponível em http://www.estacaocapixaba.com.br/texto/texto.php?id=223 , acessado em 21/10/2006. Essa titulação inscrita abaixo do seu nome ao final do prefácio, além da legitimação já dita, destaca-se se observarmos a estrutura física da 1ª edição do livro feita de modo artesanal e longe dos padrões estéticos dos livros produzidos pela Universidade. Deste modo a legitimação da prefaciadora dá-se diretamente no habitat natural da poesia marginal, não ferindo a lógica não-mercadológica das edições caseiras, como no caso da antologia 26 poetas hoje organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1975 com poetas marginais do Rio de Janeiro. 62 GOMES, Deny. “Prefácio”. In.: MOTTA, Valdo. Eis o homem: poemas selecionados (1980-84) Coleção Letras Capixabas. Vol. 30. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - Universidade Federal do Espírito Santo, 1987, p. 99. 63 338 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO maneira dialogam com a crítica atual, tais como: o “enfrentamento de contradições” da obra que suscita espanto em leitores e críticos mais sensíveis; as contradições de ordem pessoal do autor: tímido/ arrogante, sutil/escrachado, fechativo/desafiador; “linguagem que é deliberadamente a expressão de suas contradições sociais: ora formal, quase clássica, dentro dos parâmetros da norma culta; ora brutalmente grosseira, cheia de neologismos pessoais ou de expressões codificadas no meio dos homossexuais” e “a visão crítica, o humor amargo de quem participa da minoria discriminada mas que não a erige como detentora do monopólio do sofrimento humano nem a sacraliza como agrupamento corporativista intocável”64. Em conformidade com os apontamentos feitos por Deny Gomes, Francisco Aurelio Ribeiro foi, digamos, o segundo nesta equação de adição da crítica à obra waldiana. Primeiro em A modernidade das letras capixabas (1993) e depois em A Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica (1997), onde vai reafirmar as considerações feitas por Deny Gomes acrescentando-lhes dois outros aspectos: o 1º aspecto seria a partir dos poemas que versam sobre a homossexualidade masculina. Para Ribeiro, por não serem poemas que tratam do tema de modo alienado e por serem uma marca da pósmodernidade, é neles que “está o melhor de sua poesia e da poesia contemporânea ao retratar um tipo de vida quase ignorado pela poética tradicional. A ironia ao extremo, a auto-ironia, a irreverência, o deboche, o experimentalismo, o culto do corpo, o hedonismo, o consumo de drogas, a marginalidade [...]”65. O 2º aspecto seria que a poesia waldiana estaria incluída em uma tripla periferia: a geográfica, a cultural e a de minoria, no caso dele também tripla: negro, pobre e homossexual.66 c) a 3ª fase67 inicia-se em 1996 com a publicação do livro Bundo e outros poemas68. Entendo que o problema aqui é da ordem da divisão, 64 Idem., pp. 99-102. 65 RIBEIRO, Francisco Aurelio. A modernidade nas letras capixabas. Vitória: UFES – SPDC/FCAA, 1993, p. 184-185. 66 Cf. RIBEIRO, Francisco Aurélio. Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996, p. 67. Por acreditar que não figura em nenhuma das três fases por mim sugeridas, excluo propositalmente o livro Poiesen de 1990. 67 MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Coletânea reunindo poemas dos livros Waw e Bundo. Organização: Iumna Maria Simon e Berta 68 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 339 CLIPE pois se na fase anterior a crítica apenas adiciona à obra waldiana um status legitimador em âmbito local, a partir de Bundo a legitimação da crítica figurará lado a lado com o texto poético, por vezes sendo o único elo entre o poeta e um público maior. Neste sentido, refiro-me em especial ao ensaio de Iumna Maria Simon publicado em 1999 na revista Praga69. Este ensaio foi o divisor de águas no entendimento da obra waldiana, pois, além de destrinchar a poética inovadora dos poemas reunidos em Bundo, fez um pequeno esboço sobre a obra precedente do autor, situando e acalmando os ânimos daqueles que ainda deglutiam a duras tragadas os versos do “sodomita místico do Espírito Santo”70. Iumna foi e ainda é a única que soube dividir os outros poemas de Bundo. Em seu ensaio distingue com sabedoria a poesia de WAW como uma “busca de autoconhecimento”, um esboço da religião e sistema Waldman. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. SIMON, Iumna Maria. “Revelação e desencanto – os dois livros de Valdo Motta”. In.: Revista Praga (estudos marxistas). São Paulo: Hucitec, n. 7, p. 69-99, março 1999. Sobre o impacto que provocou este ensaio no meio crítico-literário acho salutar as palavras proferidas por Roberto Schwarz acerca da obra de Waldo Motta a partir da leitura do texto de Iumna: “Um trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é o ensaio de Iumna Simon, que saiu na revista Praga n° 7, sobre a poesia de Valdo Motta. Ele é um poeta negro do Espírito Santo, homossexual militante, muito pobre e dado a especulações teológicas. É uma poesia que toma o ânus do poeta como centro do universo simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura bíblica, disposição herética, leitura dos modernistas, capacidade de formulação, talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem ao corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem nada de exótico. [...] Para fazer justiça ao poeta, que é perfeitamente contemporâneo, ela teve que se enfronhar em áreas que desconhecia e, sobretudo, compará-lo a seus pares, refletir sobre a sua inserção na cultura atual e tirar as conseqüências estéticas que cabem. É de trabalhos assim - sem desmerecer outras linhas possíveis - que a crítica depende para recobrar vitalidade e estar à altura da realidade.” Cf. “Um crítico na periferia do capitalismo - Entrevista com o ensaísta e crítico literário Roberto Schwarz”. Por Luiz Henrique Lopes dos Santos e Mariluce Moura. In.: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?materia=3668. Acessado em 03/10/2006. 69 MORICONI, Ítalo. “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira” In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, p. 17. “Para fazer o contraponto com a poesia atual, destacando algum nome dos anos 90 para juntarmos ao de Piva, creio que não há ninguém melhor que Valdo Motta, o sodomita místico do Espírito Santo [...]” 70 340 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO de salvação que será armado como doutrina em Bundo, ao mesmo tempo em que reconhece em WAW, “livro mais irregular e variado [...], menos acabado enquanto arquitetura e sistema expressivo”, a maior quantidade de bons poemas e “verdadeiras obras-primas”71. A este ensaio quero acrescentar outros dois: um de Raul Antelo, “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição moderna”72 e outro de Miguel Sanches Neteo, “Poesia e as subculturas do gosto”73. O ensaio de Antelo, publicado em 1998, portanto antes de Iumna publicar o seu, destaca-se, sobretudo, pela erudição do autor que evidentemente destoa do “coloquialismo elevado”74 dos poemas de Bundo. Nele, Antelo associa os poemas de Waldo – com especial atenção ao “Ave, pedra dos escândalos,”75 – a grandes nomes da literatura mundial, o que confere à sua obra um caráter universalista, furtando-lhe, desse modo, a “marginalidade periférica” sugerida anteriormente por Francisco Aurelio Ribeiro. Partindo da análise do poema em italiano de Murilo Mendes “Rapporto di Édipo”, passando pelo aforismo de O discípulo de Emaú: “Deus não é somente fim – é também centro”, Antelo desemboca nas “escrituras pós-poéticas” de Waldo Motta de “Ave, pedra dos escândalos,”, para em seguida correlacioná-la à narrativa borgiana de “A aproximação a Almotassim”. Como num texto barroco, em constante elipse, Antelo vai correlacionando textos das verves mais diversas à primeira vista, como por exemplo ao associar a “centralidade corporal” contida nos poemas de Bundo a “certas figurações modernistas, ‘sociológicas’, da origem brasileira, a teoria do puito macunaímico mas também a da geração a partir da interferência de um espírito maligno, tutelar dos peixes, uauiara, como narra a rapsódia de Mario de Andrade a partir 71 SIMON, op. cit., p. 94. 72 ANTELO, Raul. “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição moderna”. In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998. NETEO, Miguel Sanches. “Poesia e as subculturas do gosto”. Em http://www.revistaagulha.com.br/msanches13.html. Acessado em 03/10/2006. 73 74 SIMON, op. cit., p. 98. 75 Em um grande número de poemas de Bundo não há a inscrição de título. Valho-me aqui, portanto, do primeiro verso do poema localizado à página 43. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 341 CLIPE de Couto de Magalhães”76; ou pensando em Casa-grande & Senzala, no “enigma original da couvade, que não só aponta na direção de uma bissexualidade difusa entre os indígenas [...], mas também nos propõe uma explicação nominalista, já que, por exemplo, ovo e pai, em Bakaiiri, têm igual derivação”77. Em claro contra-senso de análise, Neteo, a partir do entendimento de que “a poesia pósmoderna está fundada num princípio de exclusão”, onde a exclusão não ocorre “apenas por sua linguagem rarefeita ou galvanizada (...) mas principalmente por representar uma especialização muito intransigente do gosto”, vai polemizar sobre a poética waldiana. Sua crítica reside principalmente no fato de que a poesia em Waldo Motta está a serviço dos seus interesses pessoais e grupais, sendo moldada de acordo com “as suas opções existenciais”, onde em uma grande confusão de símbolos, operando rudimentos de culturas tão díspares quanto a afro-brasileira e a hebraica, entre outras, faz uma leitura homossexual da bíblia. Atualizar algumas passagens dos textos sagrados, numa tentativa desesperada de dar legitimidade sacra à sua preferência erótica é pretexto para um exercício escatológico gratuito. Indignado pelo fato de na cultura ocidental o homossexualismo ter passado como o amor que não ousa dizer o nome, ele transforma os seus poemas numa girândola de palavrões. A sua agressividade lexical está aliada a uma visão esotérico-apocalíptica que nos faz corar, não pelos termos chulos, mas pela ingenuidade do autor.78 78 76 ANTELO, op. cit., p. 33. 77 Idem, p. 34. NETEO, op. cit., § 9. O autor continua parágrafos à frente: “Bundo é um livro monotonamente exibicionista em que o autor vê tudo pelo prisma do amor masculino. É obra para circular entre pares, simpatizantes e interessados, em que o autor confunde projeto político de vida com poesia. [...] Embora o autor consiga ser o que escreve, o que escreve não consegue ser poesia. [...] Na grande maioria dos poemas, para agravar, a transgressão buscada por Valdo Motta não consegue passar de agressão, fruto da pior de todas as pragas: a intransigência”. Se Neteo errou limitando sua análise a uma leitura exclusivista do tema relegando ao segundo plano o valor literário da obra, penso que a classificação por ele dada de “poesia da exclusão” para as obras de cunho homoerótico possa ser utilizado para pensarmos que com a ascensão e legitimação a olhos vistos na literatura brasileira hoje de autores 342 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Embora diga que sua postura enquanto crítico não é preconceituosa, seu texto assume claramente um tom homofóbico, pois, para embasar ainda mais seus argumentos, destila palavras contra o poeta Antônio Cícero e ironicamente acha “significativo” de que Bundo e Guardar (livro de Cícero) “sejam apresentados, respectivamente, por José Celso Martinez Correia e Silviano Santiago”. Sem entrar no mérito da segregação intelectual, penso que o erro maior de Neteo foi pensar pejorativamente a poética waldiana como uma doutrina “esotérico-apocalíptica” de cunho estritamente engajado. Como bem definiu Deny Gomes, sua poesia de modo algum se “erige como detentora do monopólio do sofrimento humano nem sacraliza como agrupamento corporativista intocável”79. Concordo com Iumna quando propõem que isto, que a Neteo soa como um engajamento stricto sensu, “ao invés de denunciar os ardis da metafísica e do idealismo integra um espécie de metafísica homossexual produzida nas bárbaras condições do antagonismo social brasileiro, hoje acentuadas pela desintegração globalizada” 80, onde para o poeta resta apenas a poesia como “meio de se vingar da experiência da desagregação, inclusive das marcas mais opressivas do cotidiano, cuja crônica ele a faz em plano estético distanciado e impessoal” 81. Também nesta equação de divisão do mérito entre a própria poesia do Bundo e sua crítica, acrescente-se a produção narrativa do autor contida no prefácio ao Bundo e no polêmico ensaio “Enrabando o capetinha ou o dia em que Eros se fodeu” como Glauco Mattoso, Antônio Cícero e Waldo Motta, a mulher que antes sofrera o abandono literário por conta de uma cultura falocêntrica tende a permanecer à margem ainda por mais algum tempo. Neste sentido a obra de Waldo é reveladora, pois o feminino é algo praticamente inexistente. Em sua doutrina da gnose anal escatológica e apocalíptica a mulher, quando muito, “é um homem ao avesso” que “Amorosamente se destroem/ e geram frutos perecíveis”. Percebam que a própria natureza feminina da procriação vai de encontro à visão apocalíptica almejada pelo poeta. A mulher não mais intermedeia, a relação é direta entre Pai e Filho, pois elas “Destroem a figueira sagrada/ e depredam a vinha santa/ em sua feroz concupiscência/ devastam o pomar celestial”. 81 79 GOMES, op. cit., p. 102. 80 SIMON, op. cit. p. 90. Idem, p. 72. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 343 CLIPE publicado em 2000 no livro Mais poesia hoje82. No primeiro, Waldo se apresenta ao grande público, fazendo um breve histórico de sua formação e deixando no ar algumas dicas dos interstícios de sua poética. No segundo, Waldo vai teorizar o que foi pretendido em Bundo. E é neste sentido que penso que propôs para si um grande problema: o de como dar continuidade ao projeto poético iniciado em Bundo sem limitar sua expressão poética a um tema, tornando-a enfadonha e repetitiva. Desde a publicação de Bundo até hoje vão-se mais de dez anos de um ostracismo poético83 apenas interrompido pelo Recanto que está longe de representar uma continuidade à doutrina poética pretendida e anunciada como verdade. Esperamos que este tempo seja o da maturação das folhas em gavetas fechadas – tão benéfico a qualquer escrita – e não o do falecimento poético advindo da ascensão da persona literária, pois como sabemos: a vida passa, a obra fica. REFERÊNCIAS ANTELO, Raul. “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição moderna”. In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 27-45. GOMES, Deny. “Prefácio”. In.: MOTTA, Valdo. Eis o homem: poemas selecionados (1980-84) Coleção Letras Capixabas. Vol. 30. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - Universidade Federal do Espírito Santo, 1987, pp. 99-103. MORICONI, Ítalo. “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira” In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos e Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 11-26. MOTTA, Valdo. “Enrabando o capetinha ou o dia em que Eros se fodeu”. In. Mais poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76. Cf. MOTTA, Valdo. “Enrabando o capetinha ou o dia em que Eros se fodeu”. In. Mais poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76. 82 Recentemente foi apresentada ao Mestrado de Estudos Literários da UFES dissertação sobre a obra poética de Waldo Motta, onde faz-se menção ao livro ainda não publicado chamado Terra sem mal. Cf. BERÇACO, Ériton Bernardes. Exus, cus e ecos: a poética erótico-sagrada de Waldo Motta. – 2008. 83 344 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Coletânea reunindo poemas dos livros Waw e Bundo. Organização: Iumna Maria Simon e Berta Waldman. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. MOTTA, Valdo. Eis o homem: poemas selecionados 1980/1984. Coletânea. Vitória-ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida Universidade Federal do Espírito Santo, 1987. MOTTA, Valdo. Transpaixão: coletânea. Vitória: Kabundo, 1999. MOTTA, Valdo. Recanto - poema das 7 letras. Vitória: Ímã, 2002. NETEO, Miguel Sanches. “Poesia e as subculturas do gosto”. Em http://www.revistaagulha.com.br/msanches13.html. Acessado em 03/10/2006. NEVES, Reinaldo Santos. Mapa da Literatura Brasileira feita no Espírito Santo. Disponível em http://www.estacaocapixaba.com.br/ texto/texto.php?id=223 , acessado em 21/10/2006. RIBEIRO, Francisco Aurelio. A modernidade nas letras capixabas. Vitória: UFES – SPDC/FCAA, 1993. RIBEIRO, Francisco Aurelio. Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996. SIMON, Iumna Maria. “Revelação e desencanto – os dois livros de Valdo Motta”. In.: Revista Praga (estudos marxistas). São Paulo: Hucitec, n. 7, p. 69-99, março 1999. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2ª ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. Entrevista “Um crítico na periferia do capitalismo - Entrevista com o ensaísta e crítico literário Roberto Schwarz”. Por Luiz Henrique Lopes dos Santos e Mariluce Moura. In.: http://www.universia.com.br/ materia/materia.jsp?materia=3668. Acessado em 03/10/2006. Site http://www.waldomotta.cjb.net/ Recebido em 04/08/2008 Aprovado em 14/09/2008 Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 345 346 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO TRADUÇÕES OUVERTURE LA VIE EN CLOSE em latim “porta” se diz “janua” e “janela” se diz “fenestra” a palavra “fenestra” não veio para o português mas veio o diminutivo de “janua”, “januela”, “portinha”, que deu nossa “janela” “fenestra” veio mas não como esse ponto da casa que olha o mundo lá fora, de “fenestra”, veio “fresta”, o que é coisa bem diversa já em inglês “janela” se diz “window” porque por ela entra o vento (“wind”) frio do norte a menos que a fechemos como quem abre o grande dicionário etimológico dos espaços interiores (Paulo Leminski) Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 347 TRADUÇÕES 348 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ALFRED DE SAINT-QUENTIN Tradução e notas de Álvaro Faleiros (USP) Um dos primeiros registros da literatura da Guiana de que se tem conhecimento é a coletânea de contos e fábulas populares de Alfred de Saint-Quentin. Sabe-se muito pouco sobre o poeta além do fato de que trabalhava em 1837 para o governo da Guiana e que publicou sua Introdução à história de Caiena em 1862. Este é um dos poucos poemas dele de que se tem conhecimento e pode ser interpretado como um canto de adeus de um escravo negro enviado à América. Na tradução, o tom eloqüente do poema foi um pouco atenuado pela escolha da terceira pessoa do singular ao invés da segunda do plural, muito mais usual em francês. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 349 TRADUÇÕES AMIE, ADIEU Je pars, le navire s’en va, Amie, adieu ! Laissez-moi baiser vos mains et vos cheveux ! Amie, adieu ! Quand je serai là-bas vous songerez à ma peine ! Ne m’oubliez pas, n’oubliez pas votre ami ! Comment pourai-je vivre si loin de vous ? Amie, adieu ! Hélas ! adieu ! Rappelez-vous, rappelez-vous notre rencontre, Amie, adieu ! Vous m’avez promis de ne jamais oublier. Amie, adieu ! Dès que je vous vis mon coeur s’enflamma, Je demeurai immobile les yeux fixés sur vous ; Oh ! que vous étiez belle ! Vos yeux étincelaient ! Amie, adieu ! Hélas ! adieu ! Je vous parlai, j’entendis votre choix, Amie, adieu ! Et nous nous aimâmes. Amie, adieu ! C’en est fait ! maintenant je pars ! Vous gémissez, vos larmes coulent, Mais bientôt viendra l’oubli ! Amie, adieu ! Hélas ! adieu ! 350 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO AMIGA, ADEUS ! Parto, o navio se vai, Amiga, adeus! Deixe-me beijar suas mãos e cabelos! Amiga, adeus! Quando eu já estiver lá pense em meu tormento! Não esqueça de mim, não olvide seu amigo! Como poderei viver tão longe assim! Amiga, adeus! Que pena! adeus! Lembra, lembra do nosso encontro, Amiga, adeus! Prometeu nunca me esquecer. Amiga, adeus! No instante em que lhe vi meu peito se inflamou, Fiquei imóvel com os olhos fixos a lhe encarar; Oh! como você é bela! Seus olhos resplandeciam! Amiga, adeus! Que pena! adeus! Eu lhe falava, escutava sua voz, Amiga, adeus! E nós nos amamos. Amiga, adeus! Está feito! Agora parto! Você lamenta, as lágrimas escorrem, Mais em breve virá o esquecimento! Amiga, adeus! Que pena! adeus! Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 351 TRADUÇÕES GEORGE POPESCU Tradução e notas de Marco Lucchesi (UFRJ) Núpcias de Cadmo e Harmonia Parte essencial da história da literatura repousa na poética do encontro. Tramada pelos anjos, que movem as letras do livro do mundo, os anjos da cabala, tão abissais em seus mistérios. Não tenho como provar o que digo. Mas sei que existe uma verdade imponderável. Abismo de palavras em branca superfície. Espaço apontado por Lucian Blaga como sendo a imagem de um saber que cria camadas mais profundas de menos-saber (minuscunoaštere). Tive um desses encontros que me levaram ao impacto da língua romena. George Popescu foi o meu Virgílio. Poeta de águas claras. Metade anjo. Metade abismo. A Romênia era e continua sendo para mim uma transcendência no campo da latinidade. E ela saltava dos olhos de George. Olhos difíceis de alcançar, os seus, como que atravessados por uma espessa neblina, mensageiros de verdades esquecidas, como os espelhos de Jean Cocteau. George é um poeta habitado pelo futuro. Futuro mais longo que o passado. Tal como o destino da literatura romena. Cidade de Craiova. Estrada Brestei, 59. Conversas infindáveis no calor da biblioteca. Uma floresta de poetas e palavras. Densas madrugadas. Cigarros. E charutos. Para espantar os vapores frios da noite. George me deu uma língua e uma constelação no céu de minhas buscas. 352 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Essa língua, tão cheia de claro-escuros. E cujo léxico impressiona. Ouço a polifonia de dácios, getas, gregos e romanos. A fronteira da latinidade, tão viva e porosa, com seu acervo de palavras turcas e francesas. O mundo eslavo, formando um continuum admirável com o latino, apressa as núpcias de Cadmo e Harmonia. Anoto três formas de dizer pôr-do-sol e seus possíveis devaneios: Asfintit. Como que o Sol tocasse em pleno ocaso o Mar Negro e liberasse um vapor imenso, através do f e do ţ, tornado agudo pelos dois i. Amurg. Sinto como que uma grande desolação: a consoante final tão abrupta e esse u tão escuro. Um resto de luz se perde à medida que avanço palavra adentro. Apus. A sensação de um anoitecer precipitado, que começa no u e se prolonga nas horas mortas do s, que pronuncio como se fosse uma semibreve. Seja como for, nosso diálogo noturno, eminentemente noturno, irava em torno do labirinto da palavra e do fio de ouro da etimologia: Lauras, Verônicas, Ariadnes. Mas era a elena de Pierre Jean Jouve aquela que parecia melhor atender à síntese do feminino e seus arcanos. Por que nossas latinidades iam tão esquecidas, diante de tantas convergências? O romeno e o português são as flores últimas do Lácio. Extremos que coincidem (como vertentes marginais) em relação a um possível centro de latinidade. E todavia essas flores parecem de todo solitárias. Talvez a solução estivesse nas mãos dos poetas, em seu imaginário inquieto e gentil. Um passaporte para toda a latinidade. Assim, passavam pela biblioteca – como os reisfantasmas diante de um Macbeth siderado – os maiores poetas da Romênia. Macedonski e sua melodia, tão alta como as torres-agulha de Istambul, além daquelas coloridas Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 353 TRADUÇÕES e aceboladas de Moscou. O verbo iridescente de Ion Barbu, criador inigualável, e a liberdade, brilhando a cada estrofe. As remissões de Arhgezi, com seu modo firme, delicado, irregular. Bacovia e sua tremenda melancolia, preso aos brancos e aos cinzas. A impertinência de Geo Bogza com o seu belo circo semântico. Gherassim Luca e o golpe de estado no seio da linguagem. Além da luminosa poesia de Blaga, a partir do cemitério romano, das aldeias e do espaço miorítico. Este foi o começo de uma amizade profunda e a descoberta de uma poesia atormentada e bela, que habita o coração da baixa modernidade. Da obra extensa e variada de George Popescu, apresentamos esta breve antologia, toda ela constituída de poemas inéditos em português. Itacoatiara, dezembro de 2008. MARGINEA SE REVOLTĂ nu eu sunt alesul şi nu tu eşti cel aşteptat aici în acolada în care cad duminica îngeri fragezi cu aripi de maci tremură limfa se ascute marginea se revoltă molia infinitei cânepe cereşti jocul de-a căutatul de-ne-găsit un relief accidentat 354 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO A MARGEM SE REBELA eu não sou o escolhido e tu não és o esperado aqui neste parênteses onde caem no domingo anjos delicados com asas de papoulas treme a linfa aguça-se a margem rebela-se a traça do interminável cânhamo celeste o jogo de buscar não encontrável relevo acidentado Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 355 TRADUÇÕES NUMAI FOAMEA ÎNFLOREŞTE Locuiesc singur purgatoriul famelic încă setos şi încă trădat: cu braţele mele am ucis trandafirul bolnav de speranţe iluzia nu mă priveşte speranţa are picioare scurte numai foamea înfloreşte în ochii copilului abandonat cu giacomino cerşesc fragilitatea acestei luni hazlii gemând de caisele unei copilării de prisos 356 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO SOMENTE A FOME FLORESCE habito solitário o purgatório famélico inda com sede e traído matei com meus braços a rosa doente de esperanças a ilusão não me concerne a esperança tem pequenos pés somente a fome floresce nos olhos do menino abandonado com giacomino mendigo a fragilidade dessa lua burlesca gemendo por causa dos pêssegos de uma infância inútil Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 357 TRADUÇÕES ADORMIREA SEMNULUI iarba se ridică din nisipul spaimei şi fuge prin ghimpii unei inocenţe fără hotar apuc râul de pletoasele-i sălcii şi-l mut mai aproape de numele tău către destinul unei pietre uitate numele meu pleacă fluierând prin trestirişul acestei atopice favele a lui marco: semnul adoarme sub secara ochilor tăi de copil abandonat de îngerul spaimei 358 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O ADORMECER DO SINAL ergue-se a relva do areal do medo e foge por entre espinhos de uma inocência que não tem fim apanho o rio pela crina dos salgueiros e o levo às cercanias de teu nome para um destino de pedra esquecida meu nome segue assoviando pelo canavial desta atópica favela de marco: o sinal vai dormir sob o centeio de teus olhos de menino abandonado pelo anjo assustador Publicação da Edufes - 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2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO A FESTA DO DESASTRE como se tua boca não soubesse meus passos a hora prometida morre nos dentes de um mudo o vinho aguarda a boca do peregrino sequioso de doença a relva renasce no féretro vazio o presépio ressoa um livro emudece nas mãos da dançarina sem memória num campo de tempos sem dentes de uma juventude a que faltaram selos o ladrão da véspera vende os dias roubados de um calendário em sangue o que vês é apenas a festa do desastre Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 363 TRADUÇÕES INSIDIOSUL PACT CU IARBA DUMINICALĂ e mult fum în micul bar prin vitrină îngeri noi mimează eternitatea prin cartoane în care zumzăie efemerul în reclame arse de ger la măsuţa din colţ o rochie tânără îmbracă tăcerea adolescentei moarte de ieri dinspre suburbii veselia săracilor salută pomana degeaba cineva poartă spre gura fragilei libertăţi paharul greu al spaimei surâsul tău înfloreşte lângă petala ratată a trădării smulse unui pact dureros cu iarba duminicală asediind gelatina ce ne inundă 364 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO O PACTO INSIDIOSO COM A RELVA DOMINICAL muita fumaça no pequeno bar na vitrine novos anjos imitam a eternidade nos cartazes por onde zune o efêmero em propagandas queimadas de gelo na mesinha do canto um jovem paletó veste o silêncio da adolescente que ontem morreu dos subúrbios a alegria dos pobres saúda o gesto que faltou alguém leva à boca da frágil liberdade o pesado copo do medo teu sorriso floresce junto à pétala caída da traição separada por um sofrido pacto com a relva de domingo no cerco da gelatina que nos cobre Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 365 TRADUÇÕES FERICIREA DE DUPĂ MOARTE o cafea fără lacrimi aproape imposibil de băut în săracul bar din Assis: femeia de la masa vecină (toată azurie: îmbrăcată în cerul care prin ochiul sordid al ferestrei îmi face cu mâna) îmi spune: n-am trăit mult - tu tremuri în ciobul unei amintiri nepoftite dar bucuria nu m-a ocolit ascult din locul meu clandestin cum Brazilia aruncă spre margini prelungi fâşii de suspine ce i-au strivit destinul hei, n-am murit dacă asta-ai crezut deşi acum trăiesc fericirea de după moarte zice şi nu ştiu de ce în rochia aceea a ei numai cer am regăsit funinginea unei Veneţii divorţate de porumbeii cărora nici eternitatea nu le-a fost de folos 366 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO A FELICIDADE DEPOIS DA MORTE um café sem lágrimas quase impossível de beber – no pobre bar de Assis: a mulher da mesa ao lado (toda de azul: vestida de céu que pelo olho sórdido da janela me acena) me diz não vivi muito – e tremes no caco de uma lembrança não convocada – mas a felicidade nunca me faltou ouço de meu lugar clandestino como o Brasil manda para as margens tão prolongadas faixas de suspiros que o destino esmagou ah, não morri se tal supuseste mas agora vivo a felicidade depois da morte diz e não sei por que naquele vestido de céu absoluto encontrei a fuligem de uma Veneza divorciada dos pombos aos quais sequer a eternidade prestou socorro Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 367 TRADUÇÕES Venezia sterilă şi aspră din visul cu tine şi cuţitul alb în carnea insomniei fără de leac 368 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO Veneza áspera e estéril que sonhei contigo e o branco punhal na carne da insônia sem remédio Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 369 TRADUÇÕES SEDUC SÂNGELE HOMERIC Les actions du poète ne sont que la consequence des énigmes de la poésie. (René Char) pe cassandra n-a luat-o nimeni de mână (la ţărm răsunau cântări de cheflii prea trişti ca să privească luna) maci negri fumegau în covata verii ce sta să vină: examen al frunzei în zăpada azură pe dosul paginii se mai văd intraductibile plăgile poetului pensionat de zeii potrivnici orbit de asfaltul care-mi seduce peticul de linişte prelins în estuarul unui vers trecut de ghilotina prezentului năprasnic seduc sângele homeric de prin tavernele arse de spaimă şi cine-a mai stat pe pietrele arse ale poveştii ce-a înghiţit mari hălci din profeţia acelei moarte eterne? în paharul străinului se otrăveşte vinul în aşteptare 370 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO ESTOU SEDUZINDO O SANGUE HOMÉRICO Les actions du poète ne sont que la conséquence des énigmes de la poésie. (René Char) ninguém tomou Cassandra pelo braço (ecoavam junto à margem canções de bêbados mais tristes para ver a lua) negras papoulas deitam fumo nos ninhos do verão que está para chegar: a prova das folhas junto à neve azul no verso da página ainda se vêem as intraduzíveis chagas do poeta aposentado pelos férreos deuses cego pelo asfalto que me seduz esboço de silêncio orvalhado no estuário de um verso que passou na guilhotina do presente em tempestade estou seduzindo o sangue homérico numa taberna crestada de medo quem mais passou nas pedras ardentes da fábula que engoliu grandes partes da profecia daquela eterna morta? no copo do forasteiro o vinho se envenena na espera Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 371 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CONTEXTO 1. Ao enviar o artigo, o autor deve fornecer: a) nome completo; b) endereço; c) telefones; d) formação acadêmica; e) instituição em que trabalha; f) principais publicações. 2. São aceitos textos redigidos em português, inglês, francês, espanhol ou italiano. 3. Apresentar o texto na seguinte seqüência: título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), filiação institucional, resumo na língua do artigo e em italiano, francês, espanhol ou inglês, palavraschave em português e na outra língua do resumo apresentado, texto, referências e anexos. 4. Digitar o texto em Word for Windows (edição 6.0 ou superior), fonte Times New Roman, corpo 12, espaçamento simples entre linhas e parágrafos, em modo justificado. Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc., utilizar espaço duplo 5. Formato de papel A4, com 3 cm nas margens esquerda e superior e 2 cm nas margens direita e inferior. Utilizar paragrafação automática, com adentramento. 6. Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte Times New Roman, tamanho 12, em formato negrito, todas as letras maiúsculas. 7. O texto deve ter entre 12 a 24 laudas, não ultrapassando a 8 mil caracteres, incluindo os anexos. 8. Usar normas de citação da ABNT. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 373 9. Os resumos devem ser antecedidos pela expressão RESUMO em maiúsculas, seguida de dois pontos. O texto dos resumos segue na mesma linha e deve ficar entre 100 e 150 palavras. Digitá-lo em fonte Times New Roman, corpo 11. 10. As palavras-chave devem ser antecedidas pela expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, seguida de dois pontos. Utilizar entre três e cinco palavras-chave com fonte Times New Roman, tamanho 11, com inicial em maiúscula, separadas por ponto. 11. Digitar os títulos de seções com fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito e duas linhas após o último parágrafo da seção anterior. Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios. 12. As referências no texto devem ser indexadas pelo sistema autor-data da ABNT: (SILVA, 2005, p. 36). Quando o sobrenome vier fora dos parênteses, deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula. 13. Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use itálico para termos estrangeiros. 14. Exemplos de corpora analisados devem vir no padrão de citação. 15. Caso seja necessária transcrição fonética, o autor deve enviar a fonte utilizada juntamente com seu artigo, a fim de que a mesma possa ser instalada para editoração do artigo. 16. As notas de rodapé, só as essencialmente necessárias, devem aparecer em seqüência numérica, com fonte corpo 10. Se houver nota no título, marcar com asterisco (*). Não se deve 374 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras • CONTEXTO usar nota para citar referência. 17. Tabelas, quadros, ilustrações (desenhos, gráficos etc.) devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Eles deverão ser devidamente escaneados e inseridos no texto. Os títulos de figuras devem ser digitados com fonte Times New Roman, tamanho 12, em formato normal, centralizado. Tabelas, quadros, ilustrações devem ser identificados por legendas. 18. Os anexos devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Para anexos que se constituem de textos já publicados, o autor deve incluir referência bibliográfica completa. 19. As referências devem ser antecedidas da expressão Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem seguir as normas vigentes da ABNT. Os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento. Ordene referências de mesmo autor em ordem decrescente. Publicação da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo • 375 Editora da Universidade Federal do Espírito Santo Av.Fernando Ferrari, 514 - CEP 29075-910 - Goiabeiras - Vitória - ES Tel: (27) 3335 7852 [email protected] - [email protected]