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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 2ª EDIÇÃO Culturas e Div. Religiosa.P65 1 21/10/2010, 14:18 UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU REITOR Eduardo Deschamps VICE-REITOR Romero Fenili EDITORA DA FURB CONSELHO EDITORIAL Claudia Siebert Maria José Domingues José Carlos Grando Maristela Pereira Fritzen Nelson Nones Paulo César Rodacki Gomes Sueli M. Vanzuita Petry (Presidenta) EDITOR EXECUTIVO Maicon Tenfen DISTRIBUIÇÃO Edifurb Culturas e Div. Religiosa.P65 2 21/10/2010, 14:18 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA ELCIO CECCHETTI ROSA ASSUNTA DE CEZARO SIMONE RISKE-KOCH (orgs.) CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 2ª EDIÇÃO Blumenau, 2010 Culturas e Div. Religiosa.P65 3 21/10/2010, 14:18 © LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.), 2010 I Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento (SICDES 2009) V Seminário Catarinense de Ensino Religioso (SECAER) Coordenação Geral - Adecir Pozzer (ASPERSC/GPEAD FURB) - Elcio Cecchetti (SED/SC e GPEAD FURB) - Lílian Blanck de Oliveira (PPGDR/GPEAD FURB) - Rosa Assunta De Cezaro (ANEC/SC) - Simone Riske-Koch (CR-ER/GPEAD FURB) Comissão Organizadora - Associação dos Professores de Ensino Religioso do Estado de Santa Catarina - ASPERSC (Gestão 2007-2009) - Associação Nacional de Educação Católica de Santa Catarina – ANEC/SC - Curso de Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso – CR-ER da Universidade Regional de Blumenau/FURB - Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD/FURB - Programa de Pós-Graduação em Mestrado Regional – PPGDR/FURB Colaborador: Martin Kreuz Créditos Elaboração: EDIFURB Revisão: Cristina Klein Nivia Ivette Núñez de la Paz Projeto Gráfico e Editoração: EDIFURB Capa: Thiago André Seifert Impressão e Acabamento: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda. Direitos da edição reservados à EDITORA DA FURB Rua Antônio da Veiga, 140. 89012-900 Blumenau SC BRASIL Fone/Fax: (--47) 3321-0329 Correio eletrônico: [email protected] EDITORA NOVA HARMONIA Caixa Postal, 475 São Leopoldo/RS – 93001-970 www.editoranovaharmonia.com.br Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme decreto nº 1825, de 20 de dezembro de 1907. “Impresso no Brasil / Printed in Brazil” Elaborada pela Biblioteca Universitária da FURB C967c Culturas e diversidade religiosa na América Latina : pesquisas e perspectivas / Lilian Blanck de Oliveira (orgs.). 2. ed. - Blumenau : Edifurb ; São Leopoldo : Nova Harmonia, 2010. 308 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7114-298-5 1. Multiculturalismo – América Latina. 2. Religião e sociologia América Latina. 3. Religiosidade – América Latina. I. Oliveira, Lílian Blanck de. CDD 306.6098 Culturas e Div. Religiosa.P65 4 21/10/2010, 14:18 SUMÁRIO PREFÁCIO ............................................................................................................................... 07 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................. 09 (PRÓ)VOCAÇÃO INICIAL ........................................................................................ 14 PARTE I 1 Cultura, Território e Desenvolvimento Desigual - Ivo M. Theis ................. 17 2 Pesquisas Interculturais: Descolonializar o Saber, o Poder, o Ser e o Viver - Reinaldo Matias Fleuri; Nadir Esperança Azibeiro; Maria Conceição Coppete ...................................................................................................................................... 30 3 Transformación Intercultural e Interreligiosa del Quehacer Teológico en América Latina - Raúl Fornet-Betancourt ......................................................... 47 4 Identidade Cultural e Desenvolvimento - Antônio Sidekum ........................ 58 5 Da Religiosidade de Libertação ao Texto e à Opressão - Luiz José Dietrich; Celso Kraemer ........................................................................................................................... 64 6 Diversidade Cultural Religiosa e Concepções de Sagrado - Tarcísio Alfonso Wickert; Rodrigo Wartha ............................................................................... 77 PARTE II 1 Diversidad Religiosa en Chile: Cultura e Identidad Mapuche Ramón Francisco Curivil Paillavil .................................................................................. 85 2 Diversidad Religiosa en Argentina: Culturas en Diáspora y Mestizaje -Dina V. Picotti ...................................................................................................................... 103 3 Tercera Religión: Lenguaje Religioso del Pueblo del Paraguay - Bartomeu Melià, S.J ................................................................................................................................. 118 4 Diversidad Religiosa en Bolivia: el Campo Religioso y Las Culturas y Sabidurías Andinas - Josef Estermann ..................................................................... 126 5 Culturas y Diversidad Religiosa en Ecuador: Cultura Andina y Educación Intercultural - Milton Vicente Cáceres Vázquez ........................... 153 6 Diversidad Religiosa en Colombia: Situación y Desafíos Olga Consuelo Vélez Caro ................................................................................................................................ 168 7 Diversidad Religiosa en Costa Rica: Cristianismo y Dialogo Intercultural Juan Carlos Valverde Campos ....................................................................................... 183 8 Diversidade Religiosa no Brasil: Dinâmicas, Conflitos e Acomodações Afonso Maria Ligorio Soares .......................................................................................... 200 Culturas e Div. Religiosa.P65 5 21/10/2010, 14:18 9 O Papel é Paciente, a História Não é: Cotidiano Sagrado, Educação e Diversidade Religiosa no Brasil - Nancy Cardoso Pereira .............................. 219 PARTE III 1 Educação e a Cidadania para um Novo Mundo Pedro Alonso Puentes Reyes ........................................................................................... 235 2 Princípios do Entendimento do Valor da Igualdade e da Diversidade Social - Dilnei Lorenzi ......................................................................................................... 243 3 Diversidade Cultural e Religiosa no Brasil: Entre Desafios e Perspectivas para uma Formação Docente - Cledes Markus; Lilian Blanck de Oliveira .................................................................................................... 249 4 Ensino Religioso em Santa Catarina: Exercícios na Perspectiva de uma Educação Intercultural - Adecir Pozzer; Elcio Cecchetti; Simone Riske-Koch ............................................................................................................... 271 5 Diversidade Cultural e Religiosa no Contexto Escolar: um Convite a Práticas Pedagógicas Interculturais - Dolores Henn Fontanive; Francisca Helena Cunha Daneliczen; Mariane do Rocio Peters Kravice .......................... 286 6 Mitos e Culturas Afro-brasileiras como Prática Pedagógica da Diferença Carla Fernanda da Silva; Marcos Rodrigues da Silva ......................................... 300 Culturas e Div. Religiosa.P65 6 21/10/2010, 14:18 PREFÁCIO A diversidade é uma das características marcantes de nosso planeta. Ela se manifesta em todos os ecossistemas naturais e na própria humanidade, a qual tem se constituído de formas diversas através dos tempos e dos espaços, por meio de múltiplas culturas e identidades. A diversidade cultural se expressa de maneira muito intensa em Santa Catarina, assim como no Brasil e em toda a América Latina. Nosso Estado é constituído por um mosaico de culturas, formado, desde sua gênese, pela multiplicidade dos povos indígenas, primeiros habitantes desta terra. Posteriormente, em decorrência do processo de colonização, portugueses, espanhóis, africanos, açorianos, alemães, italianos, gregos, sírio-libaneses, entre outros, por meio de processos de intercâmbio e hibridações, acentuaram a diversidade étnica e cultural de nossa gente. Atualmente, o intenso processo de deslocamento de outras regiões brasileiras e o fluxo migratório de países, deste e de outros continentes, continuam intensificando ainda mais o processo de diversificação cultural. Entre as inúmeras expressões culturais do povo catarinense, uma das mais significativas encontra-se no campo religioso, onde convivem, lado a lado, inúmeras crenças e tradições religiosas de matriz indígena, africana, oriental e semita. Essa rica diversidade cultural religiosa está presente em todos os espaços socioculturais, inclusive nas escolas e nas salas de aula. É no cotidiano escolar que a diversidade do fenômeno religioso manifesta-se na multiplicidade de atitudes, valores, símbolos, significados, linguagens e nos referenciais utilizados pelos sujeitos para realizar suas escolhas e dar sentido à vida. No entanto, essa diversidade religiosa, historicamente constituída por interações, imposições e sincretismos, exige atenção e esforços conjuntos no sentido de minimizar preconceitos, discriminações, indiferenças, intolerâncias e violências praticadas contra alguns grupos religiosos. De uma forma ou de outra, a existência do preconceito religioso no cotidiano escolar interfere, e muito, no desempenho escolar dos educandos e nas relações de trabalho entre professores e gestores. Imagens, autoimagens e estereótipos negativos influenciam na produção das identidades de cada um, de forma positiva ou negativa. Por isso, o currículo escolar necessita integrar, discutir e estudar o fenômeno religioso, de modo científico e respeitoso, para que, por meio do conhecimento, seja possível desconstruir e desnaturalizar estereótipos, Culturas e Div. Religiosa.P65 7 21/10/2010, 14:18 8 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) preconceitos e silenciamentos presentes na escola e na sociedade, no que tange à diversidade religiosa. Assumir e valorizar a diversidade cultural religiosa no cotidiano escolar, representa o desenvolvimento de práticas pedagógicas diferenciadas, subsidiadas pelo conhecimento e sensibilidade diante de qualquer discriminação religiosa, a fim de garantir o direito de livre pensamento, consciência e religião, incluindo a liberdade de mudar ou de não seguir qualquer crença religiosa. Neste aspecto, o legado histórico do povo catarinense, em relação ao componente curricular Ensino Religioso, é digno de reconhecimento. Em todas as escolas de ensino fundamental, esta disciplina é ofertada como parte integrante da formação básica do cidadão, de forma a assegurar o conhecimento e respeito à diversidade cultural religiosa de Santa Catarina, vedadas quaisquer formas de proselitismo. Nosso Estado é referência nacional na implementação de uma concepção inter-religiosa do Ensino Religioso, propiciando o conhecimento das diferentes culturas e tradições religiosas, com a finalidade de educar para a paz e para o diálogo inter-religioso e intercultural. Somos os precursores em habilitar professores para desempenhar adequadamente tal função, por meio do curso de graduação de Ciências da Religião Licenciatura Plena em Ensino Religioso, atualmente oferecido por várias universidades. Somos os pioneiros em ofertar concursos públicos e admitir professores específicos para lecionar esta disciplina. Elaboramos proposta curricular e diversos documentos contendo orientações legais e metodológicas para orientar a implementação deste componente curricular. Não é por acaso que o Estado de Santa Catarina promoveu e sediou o I Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento, realizado em Blumenau, em outubro de 2009, quando, por três dias, docentes e pesquisadores nacionais e internacionais debateram o tema Culturas e Diversidade Religiosa na América Latina. Esta obra, que temos o prazer de disponibilizar para os professores e gestores de todas as nossas escolas de ensino fundamental, reunindo as principais ideias, estudos e discussões realizadas neste importante evento, representa mais um investimento por parte da Secretaria de Estado da Educação para o desenvolvimento de práticas pedagógicas inovadoras, que promovam o reconhecimento da diversidade cultural religiosa presente em nosso Estado, contribuindo na efetivação dos direitos humanos. Silvestre Heerdt Secretário de Estado da Educação/SC Culturas e Div. Religiosa.P65 8 21/10/2010, 14:18 APRESENTAÇÃO A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance.1 A diversidade cultural é uma das marcas que identificam, caracterizam, mobilizam e desafiam o universo da América Latina de maneira intensa e peculiar. Essa diversidade tem sua gênese na multiplicidade dos povos indígenas aqui existentes, nos inúmeros e diferenciados processos de colonização com espanhóis, portugueses, alemães, italianos, açorianos, gregos, dentre outros, sendo ampliada, paulatinamente, com a vinda dos povos africanos trazidos como escravos e pelo fluxo imigratório de povos do Oriente Médio e do Continente Asiático. Os povos, culturas e etnias que configuram os “rostos” latinoamericanos trazem em seu bojo diferenciadas formas de pensamento, produções e expressões em diversas áreas e abrangências, o que também aglutina e conflitua, historicamente, diferentes compreensões de cultura e desenvolvimento. Não se pode pensar em cultura como algo isolado, devese entender o contexto e os processos históricos. A ideia de cultura está ligada à constatação de diversidades, com isso, passa-se a entender cultura como algo da realidade social e não material. As concepções de cultura, para Santos,2 remetem aos aspectos de uma realidade social, assim como ao conhecimento, às ideias e crenças de um povo. Nesse sentido, percebese que a cultura indica um conceito plural, múltiplo e abrangente. Envolve, pelo menos, três componentes, ou seja: o que as pessoas pensam, o que fazem e o material que produzem3. As tradições, as memórias e as histórias contribuem para a tessitura das culturas, para o modo como as pessoas e os lugares estão ligados e como as pessoas usam e valorizam seus tempos, espaços e lugares, constroem-se e reconstroem-se, desenvolvem-se e desenvolvem o seu entorno. Nessa perspectiva, desenvolvimento não pode ser entendido apenas como sinônimo de crescimento econômico. É mister a consideração das diversas dimensões constituintes das relações sociais, ou seja, a cultura, a economia, a política e, igualmente, o espaço natural e social4. Culturas e Div. Religiosa.P65 9 21/10/2010, 14:18 10 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) As mais variadas formas de intercâmbios e hibridações acentuaram a diversidade étnica, cultural, política, econômica e religiosa das sociedades latino-americanas, gerando possibilidades de construções e (re)criações múltiplas, assim como conflitos, segregações, privações, preceitos e preconceitos dos mais hediondos, ferindo o âmago dos direitos inalienáveis a cada ser humano. Uma das marcas expressivas da diversidade cultural latinoamericana encontra-se no campo religioso, onde (con)vivem inúmeras crenças e tradições religiosas de matriz indígena, africana, oriental e semita. Essa diversidade, historicamente constituída por interações, imposições e hibridismos, constitui uma riqueza ímpar nas diversas culturas presentes neste continente. Ao mesmo tempo, exige atenção e esforços conjuntos, no sentido de erradicar conflitos e relações de poder gerados por grupos com ideias e práticas hegemônicas, que buscam produzir identidades e diferenças na intenção de manter privilégios, por meio de processos de anulação das diferenças e normalização do outro. A complexidade das relações e o desafio da (con)vivência na e com as alteridades exigem um posicionamento crítico e um olhar mais atento e ampliado, a fim de identificar e coibir processos de forjamento de identidades e diferenças a partir de um único referencial, legitimando relações de exclusão, violências e desigualdades5. Propiciar espaços e lugares para a construção de relações alteritárias entre diferentes culturas, possibilitando a cada sujeito/grupo - no seio de sua cultura, no esforço de compreensão das e com as outras -, a liberdade de se desenvolver sem sofrer preconceitos, silenciamentos e discriminações, constitui um dos grandes desafios contemporâneos às sociedades latino-americanas. Um dos meios para a superação reside na constituição de formas de convivência, que reconheçam as alteridades e assegurem o respeito à história, à identidade, à memória e ao desenvolvimento de cada grupo cultural dentro de suas bases lógicas e epistemológicas, por meio do diálogo, da troca de experiências e da promoção dos direitos humanos. Como a sociedade poderá responder a esse desafio? Que ciências, culturas, lógicas, saberes e tecnologias serão priorizados? Que concepções de culturas e desenvolvimento orientarão as políticas públicas? Que práticas sociais e pedagógicas poderão ser desenvolvidas nessa direção? Contribuir para a (re)flexão da maneira como se tem tratado, historicamente, as alteridades demanda pesquisas e perspectivas pedagógicas que, de forma interdisciplinar e intercultural, tomem por princípio a alteridade absoluta do Outro 6 , extirpando lógicas, epistemologias e valores que legitimam processos de exclusões e desigualdades, trazendo a novidade que se (re)vela nos valores culturais da diversidade em exercícios de alteridade. O desafio se constitui em buscar outras lógicas de desenvolvimento, pesquisas e educação, que integrem a diversidade de culturas em suas múltiplas possibilidades e conhecimentos, Culturas e Div. Religiosa.P65 10 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 11 articulando diálogos que rompam conceitos cristalizados e práticas homogeneizadoras, contribuindo para a construção de outros mundos melhores e possíveis. A percepção de que cultura e desenvolvimento estão associados à dinâmica dos processos sociais, fenomenológicos, religiosos, entre outros é o fio condutor dessa coletânea, resultado de vivências, experiências, pesquisas, estudos, discussões e reflexões tecidas a partir de diferentes realidades. A presente obra reúne textos que subsidiam o I Seminário Internacional de Culturas e Desenvolvimento – SICDES e o V Seminário Catarinense de Ensino Religioso – SECAER, a ser realizado na cidade de Blumenau, Santa Catarina, Brasil, entre os dias 22 e 24 de outubro de 2009, com a temática Culturas e Diversidade Religiosa na América Latina: Pesquisas e Perspectivas Pedagógicas. O evento teve como objetivo oportunizar espaços de interlocução entre pesquisadores, professores, acadêmicos e demais profissionais interessados nas áreas das culturas, desenvolvimento, diversidade religiosa e educação, visando a construção de pesquisas e perspectivas pedagógicas inovadoras que promovam o (re)conhecimento das alteridades, na constante busca pela promoção dos direitos humanos. Os textos inscritos nesta obra buscam, a partir de diferentes leituras, olhares e perspectivas, contribuir para concepções de desenvolvimento e educação que integrem e valorizem a diversidade cultural que constitui a América Latina. O texto Cultura, Território e Desenvolvimento Desigual, de Ivo M. Theis, abre as discussões e reflexões da primeira parte da obra e analisa as interações mútuas e recíprocas entre cultura e desenvolvimento desigual em uma sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias. Na sequência, os professores-pesquisadores Reinaldo Matias Fleuri; Nadir Esperança Azibeiro e Maria Conceição Coppete discutem o reconhecimento da diversidade cultural que vem sendo promovido pela interculturalidade. Pesquisador nas questões que circunscrevem a interculturalidade e a filosofia, Raúl Fornet-Betancourt apresenta pressupostos para a Transformação Intercultural e Interreligiosa do Fazer Teológico na América Latina. Antônio Sidekum, no texto que segue: Identidade Cultural e Desenvolvimento, apresenta reflexões acerca da cultura, natureza humana, identidade cultural e desenvolvimento no texto que segue. Luiz José Dietrich e Celso Kraemer partem do dado histórico, que faz um ciclo comum às três grandes religiões monoteístas, e percorrem a história e a construção dos fenômenos religiosos nas práticas comuns dos adeptos e suas obras, enfatizando suas práticas de libertação e dominação. Tarcísio Alfonso Wickert e Rodrigo Wartha abordam o tema: Diversidade Cultural Religiosa e Concepções de Sagrado. Ao definirem cultura religiosa, pressupõem um diálogo entre as próprias culturas, enquanto estrutura histórica e social, no qual a linguagem permite ao ser humano compreender as experiências com o Outro e com o sagrado. Culturas e Div. Religiosa.P65 11 21/10/2010, 14:18 12 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Abrindo a segunda parte desta obra, Ramón Francisco Curivil Paillavil apresenta a diversidade cultural religiosa no Chile, especialmente a cultura e identidade Mapuche. Após, Dina V. Picotti discorre sobre a diversidade religiosa na Argentina, especificamente sobre as culturas em diáspora e mestiças. Em Terceira Religião: linguagem religiosa do povo do Paraguai, Bartolomeu Melià analisa a figura da terceira língua para falar da religião colonial dos indígenas cristãos e dos povos paraguaios. Josef Estermann, na sequência, pontua as características do campo religioso Boliviano - com especial ênfase às culturas e sabedorias andinas -, como também as possíveis consequências da nova Constituição Política de seu país. Milton Vicente Cáceres Vázquez descreve a cultura andina e as práticas de educação intercultural no Equador. Por sua vez, Olga Consuelo Vélez Caro reflete sobre o crescente processo de diversidade religiosa na Colômbia, sinalizando algumas diretrizes para uma análise mais aprofundada, fundamental para compreender e acompanhar este novo impulso que se faz sentir na realidade colombiana, bem como em toda a América Latina. Analisando a diversidade cultural religiosa na Costa Rica, Juan Carlos Valverde Campos destaca as relações entre as diferentes culturas e religiões em seu país, refletindo propostas pedagógicas na perspectiva da Interculturalidade e do Cristianismo. No texto Diversidade Religiosa na América Latina: Dinâmicas, Conflitos e Acomodações, Afonso Maria Ligório Soares trata da diversidade religiosa na perspectiva das interações entre Cristianismo (Catolicismo) e religiões afro-indígenas. Em O Papel é Paciente, a História não é: Cotidiano Sagrado, Educação e Diversidade Religiosa no Brasil, Nancy Cardoso Pereira trata do cotidiano sagrado, educação e diversidade religiosa no Brasil, buscando trazer à roda etnias, culturas, saberes e fazeres que a integram e compõem. A terceira parte da obra traz presente algumas pesquisas e estudos relacionados à temática da diversidade cultural religiosa e aos processos que integram a área da educação na América Latina. Em seu texto, Pedro Alonso Puentes Reyes discute a construção da cidadania num mundo pósmoderno, estabelecendo características da globalização para configurar as cidadanias na sociedade atual. Em seguida, Dilnei Lorenzi apresenta princípios sobre o entendimento do valor da igualdade e da diversidade social. Em Culturas e Diversidade Religiosa: Entre Desafios e Perspectivas para uma Formação Focente, Cledes Markus e Lilian Blanck de Oliveira buscam contribuir com alguns referenciais para uma formação inicial e continuada, que integre e (re)conheça a diversidade cultural religiosa presente no contexto escolar e social. Em seguida, Adecir Pozzer, Elcio Cecchetti e Simone Riske-Koch apresentam concepções de Interculturalidade e Educação Intercultural, para, em seguida, fazer memória do componente Culturas e Div. Religiosa.P65 12 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 13 curricular de Ensino Religioso, focando especialmente sua trajetória em Santa Catarina. Dolores Henn Fontanive, Francisca Helena Cunha Daneliczen e Mariane do Rocio Peters Kravice, no texto Diversidade Cultural e Religiosa no Contexto Escolar: um Convite à Práticas Pedagógicas Interculturais, identificam e sinalizam pró-vocações para estudos e práticas pedagógicas interculturais no espaço escolar, na percepção da construção da dignidade e autonomia humanas. Carla Fernanda da Silva e Marcos Rodrigues da Silva apresentam uma reflexão sobre a mitologia africana e afro-brasileira, como fundamento das práticas religiosas e expressão da religiosidade, em texto que discute os mitos e culturas afro-brasileiras como práticas pedagógicas na diferença. Ressalta-se que esta obra reúne apenas algumas reflexões e aspectos do conjunto de saberes e práticas socializadas pelos autores e autoras aqui participantes. Abrem-se possibilidades de novos registros e produções, na limitação, inclusão e provisoriedade de um trabalho que se percebe inconcluso e inacabado, entretanto, grávido de reflexões e sequioso de novos estudos e pesquisas, que dar-se-ão em outros espaços, tempos e territórios desta rica e diversa América Latina, assim como além dela. Os Organizadores Primavera de 2009 Notas 1 UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. 2002. SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. 3 FLEURI, Reinaldo (Org.). Intercultura: estudos emergentes. Ijuí: UNIJUÍ, 2001. 4 BLOSS, Wladimir. O turismo rural na transição para um outro modelo de desenvolvimento rural. In: ALMEIDA, Joaquim Anécio; RIEDL. Mário. Turismo rural: ecologia, lazer e desenvolvimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 199 – 222. 5 SOUZA SANTOS, Boaventura de. A construção Multicultural da Igualdade e da Diferença. Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Oficina do CES n. 135, jan. 1999 6 LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: Ensaios sobre a alteridade. Coordenador da tradução Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997 2 Culturas e Div. Religiosa.P65 13 21/10/2010, 14:18 (PRÓ)VOCAÇÃO INICIAL Bartomeu Melià, s.j.1 Hubo en el Paraguay a principios del siglo XVII, un limeño, que llegó a ser insigne guaraní, sobre todo por la lengua, que dominó de tal manera que “le hizo parecerse uno de ellos”: el jesuita Antonio Ruiz de Montoya. Montoya es un caso de religiosidad que me intriga.. Su misión estuvo marcada por una empresa de conversión que traía en su seno una pretendida sustitución del lenguaje y de las creencias. Pero tal vez su intención manifiesta –y censurable – no consigue encubrir la convicción de un hombre religioso que va más allá de su propia religión. Montoya se inscribe en la línea de quienes supieron ver que el pueblo guaraní es “muy dado a religión verdadera o falsa”. Si él persiguió a los “hechiceros”, porque le parecían falsos y embaucadores, no podía olvidar que él mismo era considerado por los indios guaraníes como la reencarnación de un gran mago ya fallecido de nombre Kuarasytï) – Sol blanco, resplandeciente. El lo sabía. Del mismo Montoya es la frase desconcertante, de sentido muy moderno, de que “los guaraníes se distinguen por ser finos ateistas”, otorgándoles así un reconocimiento de espiritualidad que no era nada común entre los cristianos de aquella época muy apegados a imágenes y ceremonias más bien supersticiosas. Montoya es uno de los pocos misioneros, el único que conozco, que admite reconocido que su maestro espiritual fue un indio guaraní. Lo cuenta él mismo y lo recoge también su biógrafo, Francisco Jarque. Montoya, al narrar el episodio, se pone a sí mismo en segunda persona: Saliendo un día de su loable ejercicio de oír misa, sin tú preguntarle cosa, ni aun haber hecho concepto de los quilates de su espíritu, te habló en esta forma: Yo, dice, en despertando, luego creo que está Dios allí presente y acompañado de esta memoria me levanto… Acudo luego a oír misa, donde continúo mi memoria y acto de fe que allí está Dios presente. Con esta misma memoria vuelvo a mi casa. Convoco mi gente a que acuda al trabajo. Voy con ellos… Vuélvome al pueblo y mi pensar en el camino es sólo que allí está Dios presente y me acompaña. Con este mismo pensamiento entro en la iglesia, primero que en mi casa… Con que alegre y contento entro en mi casa a descansar. Y mientras como, no me olvido que está allí Dios presente. Con esto duermo. Y éste es mi continuo ejercicio (MONTOYA, SÍLEX, p. 156-57). Culturas e Div. Religiosa.P65 14 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 15 “Mira tú en este ejemplo”, concluye Montoya. Ese “indio principal” se llamaba Ignacio Piraysy, y Montoya lo tiene por verdadero místico, su maestro en la búsqueda de Dios. Me he referido a ciertos rasgos de la vida de Montoya para que no se piense que mi experiencia religiosa es nueva o moderna, algo debido a abertura de nuevos tiempos. Lo nuevo, si cabe, es que he vivido varias religiones y puedo confesarlo sin extrañamiento de la Compañía de Jesús, a la que pertenezco. Creo que la religión es una experiencia que pasa ante todo en el cuerpo y por el cuerpo. La palabra es cuerpo y no se hace sin el cuerpo. Por ello aun las experiencias más espirituales son corpóreas. Los místicos, aun lo inefable, lo hacen de alguna manera sensible. No hay espíritu sin cuerpo. Gracias al cuerpo y la física de la palabra pueden establecerse diálogos experimentales En algunos y algunas esas experiencias que son diálogos de amor se expresan con lenguajes eróticos que aluden al tacto, al gusto, a la vista, al oído, al olfato. La religión la han sentido y ¿cómo? Por ello es esencial para Santa Teresa la Humanidad de Cristo. A veces hay especialistas en religión que no saben o no quieren entrar en la “brutalidad” de la religión y prescinden de la experiencia religiosa corporal. En el fondo se avergüenzan de ella. He visto a antropólogos que no se atreverían a cantar y danzar con las personas a quienes estudian, como si su propio cuerpo fuera de otra materia, capaz de sustentar una racionalidad superior, no carnal, de cabeza sin pies, sin vientre, sin pecho. Su cabeza la consideran envoltorio aséptico de un pensamiento intocable. Tal vez exagero la caricatura, ya que quien dialoga de verdad con una religión no la puede dejar de sentir de algún modo. Lo patético es cuando misioneros, que por profesión deberían ser especialistas en religión, en largos años de convivencia con sus misionados, ni siquiera se percataron de su religión y por ende tampoco lograron profundizar la suya propia. No entendiendo de religión, no pueden entender ni tomar el hecho religioso. Hay una manera taimada de vaciar la religión de su sentido cuando se la denomina hecho religioso, un fenómeno que por otra parte sería irrelevante religiosamente. Me ha cabido en suerte vivir con diversos pueblos indígenas y sus religiones. Algunos de ellos simplemente extraordinarios por el cuerpo de creencias y ritos, según la definición clásica, simple y al mismo tiempo muy completa. Decir la religión y actuarla, dos formas concretas y discernibles de experiencia que ocupa lugar y tiempo, sustenta la vida de esos pueblos. Con temor y temblor, pero con sentimientos de agradecimiento por la puerta que a uno le permiten franquear, me he asomado a esa experiencia como niño que a sus cuarenta y más años sabe que lo tiene que aprender todo, expuesto al ridículo del aprendiz. Por otra parte, sabiendo Culturas e Div. Religiosa.P65 15 21/10/2010, 14:18 16 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) que nunca será ni un avezado dirigente y ni siquiera un practicante capaz. La religión siempre nos coloca ante niveles inalcanzables, pero que nos atrevemos a pretender. No es el caso ni la ocasión de describir las noches de danza y canto con los guaraníes, en sus diversas expresiones y particularidades, o con los ena wené nawé del Brasil, que he dedicado de 12 a 18 horas por día al ceremonial también de cantos y danzas, durante períodos que se prolongan por una luna y hasta dos en varios tiempos del año. Gracias a Dios, no se viven impunemente esas experiencias que por otra parte siempre son bastante desaprovechadas. Porque hay que reconocer que en muchas circunstancias hay religiones, extraordinariamente ricas en el papel, si se me permite la expresión, que han perdido su carne de tanto adelgazarse en raciocinios poco religiosos, porque han dejado de practicarse corporal y carnalmente. El hecho de que la experiencia religiosa a la que he hecho referencia se me haya dado en diálogo con indígenas sudamericanos, no excluye que pueda darse y se dé con otras religiones, incluso las de alcance más universal. Pero siempre tendré para mí que en el átomo está la galaxia, y en una palabra toda la lengua. La religión no es la relación con ideas, sino con personas. Y al fin con la Persona, que se dice, que suena y resuena en los armónicos del cuerpo experimentado. La palabra tiene su fundamento, como dicen los guaraníes. En una religión todas las religiones, porque cada una de ellas es la única que habla con todos. Notas 1 Douctor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo. Foi profesor y pesquisador da Cultura Guarani na Universidade Católica de Asunción (Paraguay), diretor do CEADUC – Centro de Estúdios Antropológicos – e como editor das Revistas Acción, Suplemento Antropológico e Estudios Paraguayos. Membro da Comissão Nacional de Bilingüismo do Paraguai. E-mail: [email protected] Culturas e Div. Religiosa.P65 16 21/10/2010, 14:18 PARTE I 1 CULTURA, TERRITÓRIO E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL Ivo M. Theis1 Sólo cuando la canción existe como tal antes que como instrumento crudamente ideológico (o sea, cuando cumple primero las leyes de la canción, y sólo después las del mensaje), sólo entonces pasa a ser una ventana abierta, algunas veces hacia el pasado aleccionante, y otras hacia un futuro que queremos ganar (BENEDETTI, 2002, p. 131). Introduzindo: Cultura, Culturas O tema desta intervenção é cultura e desenvolvimento desigual. A questão central que se explora nas linhas a seguir diz respeito à natureza da relação entre cultura e desenvolvimento na moderna sociedade capitalista. A hipótese é de que há uma dialética entre cultura e desenvolvimento 2, mais precisamente, entre a cultura dominante e as desigualdades produzidas pelo desenvolvimento capitalista. De modo que o propósito nesta intervenção é analisar as interações mútuas e recíprocas entre cultura e desenvolvimento desigual em uma sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias. Mas, o que se deve entender por cultura aqui? Uma dificuldade inicial deriva do fato de que cultura tem inúmeros significados – provavelmente, tantos quantas sejam as culturas que se possam identificar. Um desses significados se refere ao ato, efeito ou modo de cultivar algo. Com isso se pode associar o termo, por exemplo, à agricultura. Outro Culturas e Div. Religiosa.P65 17 21/10/2010, 14:18 18 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) significado, bem mais complexo, quando não dúbio, com provável origem no século XVI, remete à civilização3. Um terceiro significado (o que aqui interessa), derivado do latim cultûra e oriundo do alemão Kultur, acabou sendo disseminado a partir da França como culture. De maneira que é difícil escapar à conclusão de que a palavra cultura é, ao mesmo tempo, ampla demais e restrita demais para que seja de muita utilidade. Seu significado antropológico abrange tudo, desde estilos de penteado e hábitos de bebida até como dirigir a palavra ao primo em segundo grau de seu marido, ao passo que o sentido estético da palavra inclui Igor Stravinsky, mas não a ficção científica (EAGLETON, 2005, p. 51). Com o tempo, o termo cultura passou a compreender, em termos de senso comum, “todas as possibilidades de realização humana, além de marcar [...] o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos”4. O significado que aqui interessa tangencia cultura enquanto “ato de cultivar algo” (uma amizade), coloca-se em relação (de aproximação e diferenciação) com civilização e, certamente, afirma-se em contraste ao que é naturalmente dado. O significado que aqui interessa é produto da história e exige que se confrontem sociedades humanas e natureza. Para dar conta do objetivo desta proposição – analisar as interações entre cultura e desenvolvimento desigual em uma sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias – procedeu-se, apenas por motivos didáticos, a uma divisão do artigo em seis seções: a esta introdução segue uma seção em que se busca contextualizar historicamente o significado de cultura relevante ao propósito desta intervenção; depois se examinam as desigualdades a partir da noção de desenvolvimento desigual e de sua inscrição geográfica; em seguida, procura-se examinar como a cultura hegemônica favorece a reprodução das desigualdades na moderna sociedade capitalista; e a última seção é dedicada a uma breve (in)conclusão. 1 Meio Natural, Sociedades Humanas, Tecnologia. Cultura? Para se delimitar o significado de cultura que interessa tratar nesta intervenção, é preciso proceder a uma mui concisa síntese da criação das condições em que se poderiam manifestar as ainda múltiplas e diversificadas possibilidades culturais do presente. Advertindo que tais condições incluem o surgimento do planeta que habitamos e a evolução das formas mais elementares de vida até aquelas tidas como mais complexas, desembocando, por fim, no aparecimento do próprio homo sapiens sapiens, o presente não poderia limitar-se ao aqui e agora. O presente se refere, com efeito, à moderna sociedade capitalista, em cujo contexto faz sentido falar numa dialética entre cultura e desenvolvimento. Culturas e Div. Religiosa.P65 18 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 19 Para começo de conversa, cabe lembrar que a Terra tem uma idade aproximada de 4,6 bilhões de anos. E que os fósseis das primeiríssimas formas de vida, chamadas prokaryotes (ou seja, células sem núcleos que incluem bactérias e algas verdes-azuis), datam de 3,5 bilhões de anos. Registros das formas mais complexas de vida, chamadas eukariotes (as primeiras células com núcleos) datam de um bilhão de anos. Também consta que faz apenas 600 milhões de anos (portanto, quatro bilhões de anos depois que surgiu a Terra) que apareceu a maioria dos animais invertebrados. O detalhe é que eles apareceram no curto espaço de apenas um milhão de anos. Uns 100 milhões de anos mais e surgiram os primeiros peixes. E não faz mais do que 180 milhões de anos que apareceram os primeiros mamíferos, época que coincide com o surgimento dos répteis (WERNER, 1987). Mas, a primeira evidência que se tem da existência de um primata – a ordem biológica que inclui o ser humano, os macacos e os prosímios – aponta para algo como 70 milhões de anos. Nas florestas tropicais que cobriam o Egito, num período entre 30 ou 35 milhões de anos atrás, existiam várias espécies de um primata que, convenientemente, passou a ser identificado como egiptopiteco. Um bom tempo se passou até que se chegasse a um hominídeo bípede. Por exemplo, existem registros confiáveis de fósseis que indicam rastros de dois hominídeos andando juntos há 3,6 milhões de anos, na Tanzânia. Esses dois seres andavam eretos em dois pés (não em quatro), eram pequenos (medindo entre 1,2 e 1,5 metros de altura) e relativamente leves (pesando entre 20 e 40 quilos). Também ganharam um nome: australopiteco afarensis. Outros australopitecos foram identificados: o australopiteco africanus, por exemplo, parece ter vivido entre três e dois milhões de anos atrás; o australopiteco robustus, entre dois e um milhões de anos atrás (WERNER, 1987). E, então, faz uns dois milhões de anos, apareceu alguém de quem parece descender o homo sapiens sapiens: o homo habilis. Fósseis encontrados na África, na Europa e na Ásia indicam que outro hominídeo, o homo erectus, tenha vivido entre 1,5 milhões de anos e 300 mil anos. E uma nova etapa da evolução humana pode ser divisada com a identificação do homo sapiens neandertalis, que viveu na África, na Europa e na Ásia, entre 100 mil e 40 mil anos atrás. E o que vem em seguida é uma passagem em direção a um mundo que conhecemos um pouco melhor: Os neandertalis desapareceram do registro paleontológico uns 35 mil anos atrás para serem substituídos pelo homo sapiens sapiens, o ser humano moderno. Não sabemos ainda como se efetivou a transição entre homo sapiens neandertalis e homo sapiens sapiens (WERNER, 1987, p. 27). Aqui, nossa concisa síntese precisa proceder a um novo salto, dando como certo que o homo sapiens sapiens se estabeleceu e recomeçando do Culturas e Div. Religiosa.P65 19 21/10/2010, 14:18 20 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) ponto em que passaram a existir novas condições para a manifestação do tipo de cultura em que estamos interessados. E esse ponto se refere ao período que retorna até 10 mil anos de nosso tempo5. Uma primeira questão relevante é a concernente aos critérios com os quais se busca explicar os fatos importantes desse período. Outra, evidentemente, é a que diz respeito aos fatos mesmos: onde se estava? Por onde se passou? Aonde se chegou? Quanto à primeira questão, pode-se recorrer a diversos critérios, optando-se aqui por considerar a história das sociedades humanas dos últimos dez mil anos “em termos de uma sucessão de revoluções tecnológicas e de processos civilizatórios” (RIBEIRO, 1978). Quanto à segunda questão, o ponto de partida é, necessariamente, a condição generalizada de caçadores e coletores da maioria dos seres humanos vivos naqueles primórdios 6. A evolução dessas sociedades humanas se dará para modos mais uniformes do que diferenciados de prover sua subsistência, organizar sua vida social e explicar suas próprias experiências7. Assim, tem-se um ponto de partida e este é a condição generalizada de caçadores e coletores da maioria dos seres humanos vivos. Não se trata de desprezar 4,6 nem 3,5 bilhões de anos. Mas, são as sociedades humanas de dez mil anos para cá – que compreendem as correspondentes culturas – que importam. E importam, porque aí se identificam esforços de seus integrantes no sentido a) de ordenarem as relações que, obrigatoriamente, contraem entre si, assim como b) de exercerem alguma forma de controle sobre a natureza. As culturas de que tais sociedades humanas são dotadas constituem, por assim dizer, modos padronizados de pensar e de saber. E de três maneiras distintas se manifestam o pensar e o saber constitutivos das culturas das sociedades humanas de dez mil anos para cá (RIBEIRO, 1978, p. 35): • Materialmente (isto é, nos artefatos e bens); • Expressamente (isto é, através da conduta social); e • Ideologicamente (isto é, pela comunicação simbólica e pela formulação da experiência social em corpos de saber, de crenças e de valores). Neste ponto é preciso proceder a um novo salto. O homo sapiens sapiens se estabeleceu, desenvolveu técnicas e com elas tem explorado seus semelhantes e a natureza. Na moderna sociedade capitalista, surgida na segunda metade do século XVIII, ele passou a construir artefatos e bens mais sofisticados e, correspondentemente, a compartilhar crenças e valores que produzem desigualdades. E são tais crenças e valores, contraface simbólica do sistema de produção de mercadorias, que parecem respaldar as relações de exploração que passaram a predominar entre o homo sapiens sapiens e seus semelhantes no âmbito da moderna sociedade capitalista e entre esta e a natureza – relações que impulsionam o desenvolvimento capitalista desigual. Culturas e Div. Religiosa.P65 20 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 21 2 Desigualdades. Desenvolvimento Desigual? De que desigualdades se tratam aqui? Não são as diferenças encontradas na natureza nem aquelas que os seres humanos trazem consigo ao nascer que se tem em mira. Tratam-se das socialmente construídas. Nas sociedades menos complexas, elas eram, praticamente, inexistentes. Por exemplo, entre caçadores e coletores predominava, largamente, o costume de compartilhar 8. Entre os agricultores extensivos não era diferente. A novidade aí era uma forma mais sofisticada de “redistribuição”. E entre os pastores especializados, geralmente nômades, as desigualdades eram limitadas, porque era limitado o número de bens pessoais que podiam possuir e transportar. De fato, “é com o desenvolvimento da agricultura intensiva que surge o direito à terra privada, e as grandes diferenças de riqueza entre as pessoas”. Daí em diante, evidências de desigualdades foram identificadas, por exemplo, em túmulos de crianças no Iraque, entre 5500 e 5000 a.C. E, “antes de 3000 a.C., o Sumer [no sul do Iraque] já tinha [...] um sistema de classes sociais de nobres, cidadãos comuns e escravos capturados nas guerras” (WERNER, 1987, p. 64-67). Essas desigualdades, todavia, parecem ter sido mantidas em grau consideravelmente inferior ao que se passa a observar com o advento do sistema de produção de mercadorias. De fato, as evidências indicam que é com o surgimento da moderna sociedade capitalista, na segunda metade do século XVIII, que as diferenças entre os indivíduos ganham dimensões intoleráveis. Para se entender as desigualdades no âmbito da sociedade materialmente baseada no sistema de produção de mercadorias, pode-se recorrer à noção de desenvolvimento desigual, cuja origem está na literatura marxista. Consta que tenha sido Lênin quem, pela primeira vez, examinou com maior profundidade uma experiência concreta – o desenvolvimento do capitalismo na Rússia – da perspectiva de sua desigualdade socioeconômica. No entanto, foi depois da Revolução de 1905 que a noção de desenvolvimento desigual, por intermédio de Leon Trotsky, ganhou um significado mais preciso. Aliás, com Trotsky, ela passou a ser desenvolvimento desigual e combinado, uma lei que já não dizia respeito apenas à dimensão econômica, mas remetia a uma questão política imediata9. Essa lei já integra uma teoria – a teoria da revolução permanente. A formulação mais completa da referida lei encontra-se no capítulo inicial do primeiro volume da História da Revolução Russa. Aí, com efeito, se lê que O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do processus histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado [...] A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do Culturas e Div. Religiosa.P65 21 21/10/2010, 14:18 22 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas10. Sem esta lei, tomada [...] em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha (TROTSKY, 1978, p. 25). Trotsky parece ter chegado a essa formulação ao constatar o crescimento das desigualdades na mesma Rússia de Lênin, no início do século XX. Se, então, ainda se acreditava que a Rússia deveria expandir suas forças produtivas para amadurecer a revolução, a observação dos fatos conduziu a que Trotsky se inclinasse “em favor de uma direta determinação política da história” (SMITH, 1988, p. 237). Assim, parece correto interpretar a lei do desenvolvimento desigual e combinado como tentativa de conferir maior autonomia à esfera política (LÖWY, 1981, p. 97-98). O caráter desigual e combinado das relações sociais de produção em formações sociais periféricas, como era o caso da Rússia no início do século XX, repousa na articulação entre o capital urbano-industrial com a propriedade rural, entre as classes possuidoras da cidade e do campo. Nesses países, o progresso urbano e o desenvolvimento rural são marcados por ritmos e velocidades distintos, por contradições e por rupturas abruptas. Mudanças políticas não podem ser mecanicamente deduzidas de um desenvolvimento economicamente pré-determinado. As contradições do desenvolvimento desigual e combinado nas formações sociais periféricas requerem que se considerem suas especificidades, remetendo a antes referida autonomia do nível sociopolítico. De 1930 em diante, a noção de desenvolvimento desigual parece ter mesmo caído na obscuridade. Contudo, por razões diversas, ela voltaria ao debate a partir dos anos 1980 11 . Como, porém, essa noção pode contribuir para a compreensão da espacialidade do desenvolvimento socioeconomicamente desigual? 3 Desenvolvimento Desigual do Território A noção de desenvolvimento geográfico desigual é bem mais recente que a de desenvolvimento desigual e combinado, e precisa ser associada aos esforços que, especialmente, geógrafos têm feito no sentido de construir uma teoria do desenvolvimento desigual 12 . O que distingue a lei do desenvolvimento desigual e combinado da teoria do desenvolvimento geográfico desigual é: enquanto a preocupação da primeira está em explicar por que Culturas e Div. Religiosa.P65 22 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 23 uma formação social periférica (cujas forças produtivas não estão desenvolvidas e nem sob o controle de uma burguesia nacional consolidada) pode experimentar uma revolução política, a segunda constitui uma tentativa teórico-metodológica que busca captar a espacialidade do desenvolvimento desigual, portanto, a natureza especificamente geográfica da desigualdade socioeconômica entre regiões e países13. Talvez, deva ser dito mais: não se trata das desigualdades socioeconômicas entre espaços geográficos em geral, mas das produzidas pelo capitalismo. Em outros termos: é a geografia do desenvolvimento desigual especificamente capitalista que importa aqui14. E essa principia pela diferenciação do espaço geográfico, que resulta dos processos sociais cotidianos. Lembremos: tudo o que se passa no local de trabalho e no processo de produção e consumo está, de algum modo, contido no interior do processo mais amplo de acumulação e circulação de capital. Quase tudo o que se come e bebe, veste e usa, ouve e vê vem em forma de mercadorias e está perpassado por divisões do trabalho – e por crenças e valores que difundem os preceitos do capitalismo. Entretanto, isso tudo (mercadorias, processos, valores) não está fora do espaço: a competição territorial por trás das relações do cotidiano tem uma importância incomum no processo de acumulação de capital e no desenvolvimento geográfico desigual (HARVEY, 2006, p. 82, 85). A geografia do desenvolvimento desigual repousa, portanto, na diferenciação do espaço geográfico, engendrada tanto pelo processo imanente da acumulação quanto pelo processo transcendente da propagação de crenças e valores da cultura capitalista. Embora haja um número considerável de causas que possa explicar esse efeito, as evidências mostram ser o moderno sistema de produção de mercadorias, desde que este se estabeleceu, o que vem produzindo diferenças no espaço. A geografia herdada, na forma de espaços econômicos antes existentes, é completamente modificada por inovações, tanto nas mercadorias quanto nos costumes, tanto nos artefatos e bens quanto nos valores. Os meios de comunicação e transportes, por exemplo, eles mesmos mercadorias, são veículos importantes da cultura capitalista. As atividades previamente dominantes dão lugar a outras. Algumas desaparecem, outras surgem. Espaços econômica e culturalmente relevantes no passado são tornados irrelevantes no presente. Já desertos econômicos são convertidos em espaços pujantes. Todavia, uns e outros acabam sendo integrados, nas economias nacionais e internacionais, como parte de uma nova configuração de espaços desiguais (SMITH, 1988, p. 208). Na etapa neoliberal do desenvolvimento capitalista, em decorrência de processos de centralização e dispersão, a paisagem geográfica parece se encontrar em constante mudança. O capital ignora os espaços em que Culturas e Div. Religiosa.P65 23 21/10/2010, 14:18 24 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) as perspectivas de lucro são baixas e, por entre as diversas escalas, movese em direção aos espaços em que as perspectivas de lucro são mais altas. Daí porque uns espaços experimentam taxas elevadas de acumulação, enquanto outros ficam à espera de uma mão visível que opere algum milagre – como, por exemplo, a realização de investimentos públicos. Daí porque certas regiões vêm crescendo e enriquecendo seus habitantes já ricos, enquanto outros espaços vêm definhando e empobrecendo os seus habitantes já pobres. Os contrastes crescentes entre ricos e pobres no território conformam a paisagem do capitalismo neoliberal, expressão exacerbada do desenvolvimento geográfico desigual15. 4 Cultura Capitalista e Reprodução das Desigualdades À produção e ao consumo de artefatos e bens corresponde, portanto, certo conjunto de crenças e valores que, combinadamente, produzem e perpetuam as desigualdades socioespaciais na moderna sociedade capitalista. Como, porém, pode-se caracterizar a cultura própria dessa sociedade? São, fundamentalmente, as ideias, noções, valores e doutrinas produzidas no interior do próprio capitalismo, como exigência de sua formação e reprodução, que compõem a cultura espiritual do capitalismo. Tanto o princípio da propriedade privada, que compreende a apropriação do produto do trabalho operário pelo capitalista, como o princípio da liberdade de circulação das pessoas e coisas na sociedade, são elementos fundamentais da cultura burguesa. Da mesma forma, é elemento nuclear dessa cultura a transformação das relações burguesas, isto é, das relações capitalistas de produção, em leis imutáveis naturais, ou leis humanas universais (IANNI, 1979, p. 24). Ainda mais: a produção e reprodução sistemática e organizada de ideias, noções, valores e doutrinas na moderna sociedade capitalista são bancadas por uma verdadeira indústria cultural. A indústria cultural do capitalismo abarca o processo de produção e comercialização de mercadorias culturais, voltadas para o funcionamento e o aperfeiçoamento das relações capitalistas de produção. Esse processo abrange elementos da cultura espiritual e material que incluem (IANNI, 1979, p. 59): Ideias, noções, valores, princípios, categorias, doutrinas, teorias; Palavras, imagens, cores, sons; Livro, jornal, revista, rádio, televisão, filme, “xerox”; Empresa, estabelecimento, conglomerado, organização; Sistemas de comunicação, ensino e propaganda; Técnicas de informação, processamento de dados, tomada de decisões e implementação; s Força de trabalho, capital, tecnologia, divisão do trabalho social. s s s s s s Culturas e Div. Religiosa.P65 24 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 25 Esses elementos da cultura capitalista, emanados de um dado centro, constituem a afirmação, no plano simbólico, do moderno sistema de produção de mercadorias. As teorias, as imagens, as notícias, as multinacionais, a publicidade e tudo o mais não apenas derivam, como inocente subproduto da produção de mercadorias, mas reforçam a ideologia, difundida desde aquele centro em direção às periferias16, que subjaz à moderna sociedade capitalista, ampliando as desigualdades socioespaciais que lhe são inerentes já desde a origem. Sua disseminação capilar, por todos os espaços em direção aos quais se estende o capital, assegura um processo de acumulação que toma as relações capitalistas de produção como lei humana universal e incontestável. Assim, esses elementos concorrem para a perpetuação das desigualdades socioespaciais na moderna sociedade capitalista. Malconcluindo A questão central que se buscou explorar nessas páginas refere-se à natureza da relação entre cultura e desenvolvimento na sociedade em que vivemos. Parece evidente, agora, que há uma dialética entre a cultura dominante e as desigualdades produzidas pelo desenvolvimento capitalista – hipótese que orientou esta intervenção até aqui. Todavia, para captar as possíveis interações, mútuas e recíprocas, entre cultura e desenvolvimento desigual na sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias, ainda cabem duas considerações: uma correspondendo às vozes de resistência à imposição dos elementos que conformam a cultura capitalista; outra referente às possibilidades que se abrem para a cultura a partir do presente em que nos encontramos. Quanto às vozes de resistência: desde o fim do segundo conflito mundial até meados dos anos 1970, houve um progressivo processo de politização no ocidente capitalista, que desembocou no “maio de 1968” e, em muitas partes, na contestação da sociedade alicerçada no sistema de produção de mercadorias. E, desde então, o otimismo da mudança parece vir dando lugar a um profundo pessimismo quanto às possibilidades de transformação. Isso pode ser constatado desde a superação da politizada cultura dos anos 1960 e 1970 até a ascensão da pós-moderna cultura da década de 1980. Desde então, as forças do mercado penetraram decisivamente na produção cultural. E também derrotaram as lutas da classe operária e dispersaram as forças socialistas. Nos anos 1970, a crítica da cultura hegemônica ainda tentou compreender o lugar da cultura na política e da política na cultura. No entanto, o empreendimento acabaria sendo solapado não por algum filistinismo anticultural, mas, por uma inflação de interesses culturais. A cultura, fragmentada em suas múltiplas manifestações, esvaziava-se da política. O que à cultura ameaçava, Culturas e Div. Religiosa.P65 25 21/10/2010, 14:18 26 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) então, não era inanição, mas indigestão. A famosa volta para o sujeito, com a sua estonteante combinação de teoria do discurso, semiótica e psicanálise, mostrou ser um afastamento da [...] da política como tal (EAGLETON, 2005, p. 180). Essa indigestão parece ter reduzido as possibilidades de resistência à imposição dos valores da cultura capitalista. Entretanto, mesmo no alegre e passivo ocidente pós-político, em que todos pareciam convertidos em alegres sujeitos passivos (EAGLETON, 2005, p. 181), identificam-se vozes de resistência. Elas têm vindo das avenidas ocupadas pelos piqueteros argentinos. E das ruas tomadas pelos trabalhadores e sindicatos bolivianos na guerra do gás. E das lutas travadas pelas comunidades indígenas de Chiapas, no México. E do movimento contra a guerra do Iraque. E de muitos outros movimentos que resistem à ou lutam contra a sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias (HOLLOWAY, 2004, p. 9). Será exagero considerar que esses movimentos e lutas apontam para uma reconciliação entre cultura e política? Quanto às possibilidades culturais do presente: a crise do capitalismo neoliberal não é promessa de superação do sistema de produção de mercadorias; nem de convivência pacífica entre a cultura hegemônica e as múltiplas manifestações que lhe vem resistindo bravamente; nem, tampouco, de mitigação das intoleráveis desigualdades socioespaciais que o sistema de produção de mercadorias, combinado com a cultura capitalista hegemônica, vem reproduzindo desde seu surgimento até o presente. No entanto, há que se resgatar a política no debate entre uma não-fragmentada cultura – confluência de uma pluralidade e diversidade de culturas – e desenvolvimento. Diante de nós está o desafio: Todos os povos lutam [...] para ter acesso ao patrimônio cultural comum da humanidade, o qual se enriquece permanentemente. Resta saber quais serão os povos que continuarão a contribuir para esse enriquecimento e quais aqueles que serão relegados ao papel passivo de simples consumidores de bens culturais adquiridos nos mercados (FURTADO, 1984, p. 25). Notas 1 Economista, doutor em Geografia pela Universität Tübingen (Alemanha). Professor e pesquisador da Universidade Regional de Blumenau (Email: [email protected]). 2 Ou, pela proposição de Celso Furtado (1984, p. 31), é preciso “indagar as relações que existem entre a cultura como sistema de valores e o processo de desenvolvimento das forças produtivas, entre a lógica dos fins, que rege a cultura, e a dos meios, razão instrumental inerente à acumulação”. 3 Sobre a proximidade, a oposição e/ou a separação entre cultura e civilização, cujo aprofundamento não é possível, aqui, ver, entre outros, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (1978, p. 93-104). 4 Conforme Laraia (1986, p. 25). Convém advertir que não é objetivo, nesta breve intervenção, adentrar os estudos sobre multiculturalismo – como, por exemplo, na perspectiva de Stuart Hall (2001) ou Machado (2002) e McLaren (1997) – e interculturalidade – como, por Culturas e Div. Religiosa.P65 26 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 5 6 7 8 9 10 27 exemplo, na ótica de Fornet-Betancourt (1994) ou Panikkar (1990, 2006); nem, tampouco, no debate entre esta e aquele. Cabe lembrar que “o primeiro processo civilizatório corresponde à Revolução Agrícola, que se desencadeou originalmente há cerca de 10.000 anos passados, entre os povos da Mesopotâmia e do Egito” (RIBEIRO, 1978, p. 69). Acrescente-se que “a primeira evidência de agricultura vem do Oriente Médio, onde foram domesticados o trigo, a cevada, a lentilha e a ervilha há uns dez mil anos atrás. O arroz foi provavelmente domesticado no sudeste da Ásia há uns 6 mil ou 8 mil anos [...] O feijão, o amendoim, a pimenta, a mandioca e a batata foram domesticados [no] Peru, há menos de 8 mil anos” (WERNER, 1987, p. 57). Abstraindo-se o fato de que se poderia considerar como revolução tecnológica também o surgimento dos primeiros instrumentos de pedra (e estes parecem remeter para mais ou menos dois milhões de anos,, tendo, provavelmente, sido feitos pelo homo habilis), podemse identificar, de então em diante, e tomando-se os critérios mencionados, inicialmente, uma sociedade de caçadores e coletores, depois uma sociedade com agricultura extensiva, uma sociedade com agricultura intensiva, uma sociedade de pastores especializados etc. (WERNER, 1987, p. 57). Parece correto, portanto, considerar que “tais modos diferenciados de ser, ainda que variem amplamente em seus conteúdos culturais, não variam arbitrariamente, porque se enquadram em três ordens de imperativos. Primeiro, o caráter acumulativo do progresso tecnológico que se desenvolve desde formas mais elementares a formas mais complexas, de acordo com uma sequência irreversível. Segundo, as relações recíprocas entre o equipamento tecnológico empregado por uma sociedade em sua atuação sobre a natureza para produzir bens e a magnitude de sua população, a forma de organização das relações internas entre seus membros, bem como das suas relações com outras sociedades. Terceiro, a interação entre esses esforços de controle da natureza e de ordenação das relações humanas e a cultura” (RIBEIRO, 1978, p. 34-35). “Nas sociedades de caçadores e coletores, a terra e outros imóveis, poços de água ou árvores frutíferas, não podem ser posse de ninguém. Entre alguns caçadores e coletores estes imóveis [...] estão à disposição de qualquer um, mesmo que seja de outro bando” (WERNER, 1987, p. 61). “Esse foi o conceito [desenvolvimento desigual e combinado] que Trotsky resgatou e depurou [...] Hoje, a lei do desenvolvimento desigual e combinado está claramente associada à tradição trotskista [e] o conceito caiu na obscuridade” (SMITH, 1988, p. 18; ver também p. 150). Contra a afirmação de que o conceito tivesse caído na obscuridade, pode-se lembrar Ernest Mandel, para quem, bem ao contrário, “a ideia de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial é – com a exceção da concepção de Marx sobre a determinação econômica da luta de classes – a tese marxista mais amplamente assimilada já há meio século, mesmo que raramente seja feita referência ao seu autor” (LÖWY, outubro, p. 79). Recentemente, Terry Eagleton (2005, p. 40) afirmou, num tom indisfarçavelmente trotskista, que “o excessivamente cultivado e o subdesenvolvido forjam estranhas alianças”. 11 Aqui, caberia ressaltar a presença destacada de Michael Löwy. De sua lavra precisa ser consultado, sobretudo, the politics of combined and uneven development, de 1981, anterior ao tufão neoliberal. 12 Antes da publicação da conhecida obra de Neil Smith (1984), já haviam conhecido a luz do mundo duas importantes contribuições oriundas da geografia marxista: as de David Harvey (1982) e M. Dunford & D. Perrons (1983). 13 A insistência para com a espacialidade do desenvolvimento desigual é devida à tendência da teoria social de excluir a espacialidade de toda análise ou de tratá-la como mero contêiner imutável, no interior do qual ocorrem processos sociais. O enfoque do desenvolvimento geográfico desigual propicia uma concepção de espaço como relativo e relacional (HARVEY, 2006). Culturas e Div. Religiosa.P65 27 21/10/2010, 14:18 28 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 14 Embora Ernest Mandel tivesse insistido na suposta validade universal da lei do desenvolvimento desigual e combinado, é evidente, como se viu, que o desenvolvimento pré-capitalista foi desigual. Todavia, as razões para a desigualdade pré-capitalista foram bastante distintas das que caracterizam a desigualdade sob o capitalismo (SMITH, 1988, p. 151). Note-se que a insistência na validade universal da desigualdade sugere que traços e valores específicos ao capitalismo estivessem presentes em modos de produção anteriores. No entanto, essa intuição requereria não uma formulação da história do capitalismo, mas da história em geral (WOOD, 2003). 15 Conforme Harvey (2006). A esse propósito, Terry Eagleton (2005, p. 77) afirma que, “como a brecha entre ricos e pobres no mundo aumenta constantemente, toma [...] vulto a perspectiva [...] de um capitalismo autoritário cada vez mais amuralhado, sitiado, num panorama de decadência social, por inimigos internos e externos cada vez mais desesperados, abandonando finalmente toda a pretensão de um governo consensual em favor de uma defesa brutalmente franca do privilégio. Existem muitas forças que talvez possam opor resistência a essa perspectiva sóbria, mas a cultura não tem nenhuma posição de destaque dentre elas”. 16 Com incomparável ironia, embora amparado em evidências incontestáveis, Terry Eagleton (2005, p. 133) sugere que, “se os Estados Unidos estão relativamente livres do peso da História, são igualmente alheios à Geografia, assunto em que são notoriamente incompetentes. Como uma das sociedades mais provincianas do mundo, estão isolados de qualquer lugar, exceto do Canadá (muito parecido) e da América Latina (muito assustadoramente diferente), com espantosamente pouco sentido de como são vistos do exterior”. REFERÊNCIAS BENEDETTI, Mario. Subdesarrollo y letras de osadía. Madrid: Alianza Editorial, 2002. DUNFORD, Michael; PERRONS, Diane. The arena of capital. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1983. EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora UNESP, 2005. FORNET-BETANCOURT, Raúl. 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Religiosa.P65 28 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 29 LÖWY, M. The politics of combined and uneven development: the theory of permanent revolution. London: Verso, 1981. ______. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Outubro, p. 73-80, s.d. MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da diferença. Rio de Janeiro, DP&A, 2002. McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 1997. PANIKKAR, Raimon. The pluralism of truth. World Faiths Insight, 26, p. 7-16, 1990. ______. Decálogo: cultura y interculturalidad. Cuadernos Interculturales, 4 (6), p. 129-130, 2006. RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da evolução sócio-cultural. São Paulo: Círculo do Livro, 1978. SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção de espaço. Tradução Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. TROTSKY, Leon. A história da revolução russa. 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A cada susto, um novo olhar. A cada ai, uma inspiração. A cada salto, uma descoberta de bons parceiros, de saborosas fontes, de novos horizontes, de auguradas pontes, para mundos possíveis. Reinaldo Matias Fleuri Carlos Drummond de Andrade Considerações Iniciais A interculturalidade se tornou hoje um tema de moda. Justamente por isso, configura-se como um tema paradoxal 4. O interesse pela interculturalidade, assumido em programas governamentais, movimentos sociais e mesmo pela pesquisa científica e pela mídia, vem promovendo o reconhecimento da diversidade cultural. Mas, ao mesmo tempo, apresentase por vezes como nova tendência multicultural que se isenta de qualquer sentido crítico, político, construtivo e transformador. Contraditoriamente, o esforço por promover o diálogo e a cooperação crítica e criativa entre sujeitos socioculturais diferentes corre o risco de reeditar novas formas de sujeição e subalternização. Compreender em profundidade essa contradição é um desafio que se coloca hoje no campo das pesquisas interculturais. De um lado, encontram-se as perspectivas teórico-epistemológicas que reduzem as relações interculturais às relações individuais, sem considerar os contextos Culturas e Div. Religiosa.P65 30 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 31 sociopolíticos de subalternização, ou que as adequam funcionalmente às novas estratégias globalizantes de dominação. De outro lado, surgem perspectivas de interculturalidade crítica que apontam para a descolonialização do saber, do poder, do ser e do viver. Desconstruir os padrões culturais coloniais-modernos implica agudizar seus paradoxos, promovendo relações de reciprocidade capazes de construir significados e processos de subjetivação plurais, polissêmicos. Nesse contexto, a pesquisa pode se constituir como fator mobilizador da interação entre sujeitos, na medida em que pode promover a compreensão, ressignificação e transformação de seu próprio contexto interativo. Trata-se de elaborar e mobilizar formas de saber, poder, ser e viver que possam garantir a convivência de todos os seres humanos com a natureza e entre si, para além de dispositivos e de estruturas de dominação sociocultural e de destruição sistemática da natureza, vigentes no atual contexto mundial. 1 Pesquisas Interculturais: Perspectivas e Prospecções Catherine Walsh (2009), em sua conferência de abertura ao XII Congresso da Association internationale pour la Recherche Interculturelle (ARIC) (www.aric2009.ufsc.br), explora os múltiplos sentidos e usos contemporâneos da interculturalidade sob três perspectivas diferentes. A primeira, designada como relacional, faz referência ao contato e intercâmbio entre culturas diferentes, como algo que sempre tem existido, considerando como naturais os processos de mestiçagem, os sincretismos e as transculturações. Esta perspectiva relacional tende a ocultar ou minimizar os conflitos e os contextos de poder e dominação, assim como a limitar a relação ao nível individual. Isso, na medida em que encobre as estruturas sociais, políticas, econômicas e também epistêmicas, posiciona a diferença cultural em termos de superioridade ou inferioridade. Uma segunda perspectiva de interculturalidade, que Walsh chama de funcional, enraíza-se no reconhecimento da diferença cultural com a intenção de incluí-la no interior da estrutura social estabelecida. Busca promover o diálogo, a convivência e a tolerância, mas não questiona as causas da assimetria e da desigualdade social e cultural. Segue a nova lógica multicultural do capitalismo global. Reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração de modo funcional à expansão do sistema-mundo-moderno (QUIJANO, 2005). Não aponta à criação de sociedades mais equitativas e igualitárias, mas ao controle do conflito étnico, mediante a inclusão dos grupos historicamente excluídos, de modo funcional à manutenção da estabilidade social, segundo os imperativos econômicos do modelo (neoliberalizado) de acumulação capitalista. A terceira perspectiva, assumida por Walsh como interculturalidade crítica, problematiza a estrutura colonial racial e sua ligação ao capitalismo de mercado, apontando para a construção de sociedades diferentes, a outra ordem social. A interculturalidade crítica é um apelo dos povos e grupos Culturas e Div. Religiosa.P65 31 21/10/2010, 14:18 32 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) sociais que têm sofrido historicamente a subalternização, assim como dos setores que lutam, junto com eles, pela re-fundação social e descolonização, pela construção de um mundo mais igualitário. O problema intercultural central não é a diversidade étnico-cultural. É a diferença construída como padrão de poder colonial que atravessa praticamente todas as esferas da vida. Trata-se de entender e construir a interculturalidade como projeto político, social, ético e epistêmico. Um projeto que pretende intervir sobre a matriz da colonialidade e transformar os dispositivos de poder que mantêm a subalternização de seres, saberes, lógicas e modos de vida, particularmente das práticas de exclusão, negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos sujeitos racializados. A interculturalidade crítica aponta, pois, para um projeto necessariamente descolonial. Pretende visualizar e enfrentar a matriz colonial do poder, que articulou historicamente a ideia de “raça” como instrumento de classificação e controle social com o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno, colonial, eurocêntrico), e que se iniciou como parte da constituição histórica da América. 2 Crítica à Modernidade-Colonialidade Segundo Castro-Gómez (2005a), as teorias críticas à modernidadecolonialidade constituem uma vertente pós-colonial de estudos culturais latino-americanos. Tais estudos buscam desenvolver uma leitura nãoeurocêntrica da modernidade, desvelando seu caráter eminentemente colonial (Mignolo, 2005). Para Lander (2005), modernidade e colonialidade constituíram-se historicamente de modo recíproco. Ao se autorreapresentar como topo da evolução do mundo, a Europa moderna, consequentemente, trata como marginais e atrasados os povos do continente americano. O colonialismo diz respeito à dominação política e econômica de um povo sobre outro em qualquer parte do mundo. Diferentemente, a colonialidade indica o padrão de relações que emerge no contexto da colonização europeia nas Américas e se constitui como modelo de poder moderno e permanente. A colonialidade atravessa praticamente todos os aspectos da vida, e se configura, segundo Walsh, a partir de quatro eixos entrelaçados. O primeiro eixo – a colonialidade do poder – refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação social baseado na categoria de “raça”, como critério fundamental para a distribuição, dominação e exploração da população mundial no contexto capitalista-global do trabalho. Com base na noção de “raça”, as relações entre Europa e os “outros” se configuram segundo hierarquias étnico-raciais, que se instauram no sistema-mundo-moderno. É a partir da categoria de raça que se configuram todas as relações de dominação, incluindo as de classe, gênero, sexualidade, geração, limitações físicas e mentais, entre outras. Culturas e Div. Religiosa.P65 32 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 33 O segundo eixo é a colonialidade do saber. A suposição de que a Europa se constitua como centro de produção do conhecimento descarta a viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e de outros conhecimentos que não sejam os dos homens brancos europeus ou europeizados. A colonialidade penetra e organiza os marcos epistemológicos, acadêmicos e disciplinares, induzindo a caracterizar como fundamentalistas, essencialistas e racistas tanto as lógicas desenvolvidas por comunidades ancestrais quanto as novas tentativas desses povos, assim como levando grupos sociais, historicamente subalternizados, a desenvolverem formas próprias e não-coloniais de pensamento. O terceiro eixo, a colonialidade do ser, é o que se exerce por meio da subalternização e desumanização dos sujeitos colonizados. O valor humano e as faculdades cognitivas dessas pessoas são desacreditados pela sua cor e pelas suas raízes ancestrais, que as distanciam da modernidade e da “razão”. O quarto eixo é o da colonialidade da natureza e da própria vida. Com base na divisão binária natureza/sociedade se nega a relação milenar entre mundos bio-físicos, humanos e espirituais, descartando o mágico-espiritualsocial que dá sustentação aos sistemas integrais de vida e de conhecimento dos povos ancestrais. Para estes, a natureza é a mãe de todos os seres, é a que confere o sentido ao universo e à vida, tecendo conhecimentos, território e história dentro de um marco cosmológico relacional e complementar de convivência. Desacreditar tal relação com a natureza, tecida pelos povos ancestrais, é a condição que torna possível desconsiderar os modos de ser, de conhecer e de se organizar desses povos e, assim, subalternizá-los e sustentar a matriz racista que constitui a diferença colonial na modernidade. Para Catherine Walsh, construir criticamente a interculturalidade requer transgredir e desmontar a matriz colonial presente no capitalismo e criar outras condições de poder, saber, ser e viver, que apontem para a possibilidade de conviver numa nova ordem e lógica que partam da complementaridade e das parcialidades sociais. Interculturalidade deve ser assumida como ação deliberada, constante, contínua e até insurgente, entrelaçada e encaminhada com a do descolonializar. Para os pensadores e pensadoras pós-coloniais, o poder colonial se expressa primordialmente como subordinação e invisibilização dos saberes dos povos colonizados, através da “violência epistêmica” (Castro-Gómez, 2005b), operada pela imposição do pensamento científico-técnico e da ideologia liberal, como pensamento “universal”. Esses autores e autoras evidenciam o nexo entre ciência, modernidade e colonialidade, que se manifesta no que Walsh (2004) chama de “geopolíticas do conhecimento”, ou seja, na organização e no funcionamento do conhecimento a partir de centros de poder articulados com regiões subordinadas. Culturas e Div. Religiosa.P65 33 21/10/2010, 14:18 34 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Nessa vertente, a crítica ao eurocentrismo, proposta por Lander (2005), é uma crítica à sua episteme que opera separações sucessivas e reducionismos vários. Ele ressalta que, nos conhecimentos eurocêntricos colonializantes, o ‘neoliberalismo’ é debatido apenas como uma teoria econômica, quando deve ser compreendido como um modelo civilizatório europeu, uma extraordinária síntese de pressupostos e valores básicos da sociedade liberal moderna. Há uma naturalização de que essa sociedade expressa tendências espontâneas do desenvolvimento histórico, caracterizando-se como sua forma mais avançada. Para Lander (op.cit.), é possível identificar duas dimensões constitutivas dos saberes modernos que contribuem para explicar sua eficácia naturalizadora: a primeira se dá por meio das sucessivas separações ou partições do mundo “real”, que ocorrem historicamente na sociedade ocidental; a segunda, na forma como se articula saber-poder, especialmente na subordinação da colônia ao império, constituinte do mundo moderno. Nessa história de rupturas sucessivas que garantiram a modernidade colonializante, a primeira é de origem religiosa, ao afirmar o índio desprovido de alma por não cultuar o Deus dos ‘brancos’; entre a razão e o mundo que se torna ‘sem razão’, um mundo mecânico desligado de Deus; entre mente e mundo, no qual se coloca o humano-mente numa posição externa ao corpo e ao mundo, e, assim, possibilita uma postura instrumental frente a eles. A cultura moderna radicaliza-se com essas separações. Tais cisões se tornam constitutivas da modernidade, como no caso do senso comum e do mundo dos especialistas. Na identidade europeia, as sucessivas fraturas subsidiam o contraste essencial na conformação colonial do mundo na qual a Europa é, como se tivesse sempre sido, o centro. Essa culminância ocorre entre os séculos XVIII e XIX. Assim se instaura a noção de um mundo unificado, de uma única história e geografia universal. Lander (op.cit.) afirma que os direitos do colonizador se instituíam por meio da negação dos direitos dos colonizados. Ele ainda nos lembra que diferentes recursos históricos (evangelização, civilização, modernização, desenvolvimento, globalização) têm como sustento a falsa concepção de que o padrão epistemo-civilizatório europeu é universal, superior e normal. Superar essa estrutura de relações internacionais e interculturais apresentase como o grande desafio pós-colonial. Castro-Gómez; Schiwy y Walsh (2002) propõem que o mundo acadêmico e os movimentos sociais se unam no esforço para romper a divisão moderna entre sujeitos e “objetos” de conhecimento. Trata-se de forjar outras formas de produção do conhecimento, através do diálogo entre a “episteme moderna” e “outras epistemes”. Wash (2003) considera que o desenvolvimento de um “pensamento crítico transdisciplinar” terá como referência fundante não a episteme moderna, mas as epistemes que foram historicamente marginalizadas. Por isso, a mesma Walsh (2005) vê Culturas e Div. Religiosa.P65 34 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 35 na interculturalidade – como projeto político dos movimentos indígenas e afrodescendentes no Equador – o projeto social, político, ético e intelectual que melhor assume a “descolonialidade como estratégia, ação e meta”, possibilitando um pensamento crítico de “outro modo”. 3 Interculturalidade e Desconstrução de Subalternidades Descolonializar o saber e o poder, assim como o ser e o viver, vem se constituindo em um importante tema-desafio de pesquisa para o Núcleo Mover5. Na última década, esse grupo tem se concentrado na busca por compreender, numa perspectiva interdisciplinar e complexa, o caráter híbrido e deslizante da interculturalidade, focalizando questões transversais, tanto no campo das relações étnicas, quanto nos campos das relações entre gerações, de gênero, de classe ou de identidades por características físicas e mentais. O estudo de diferentes práticas sociais e educacionais vem desafiando os pesquisadores do Núcleo a explicitar sentidos, intencionalidades e jogos de poder que têm informado essas práticas. De modo particular, novas questões têm emergido no campo da educação popular e da formação de educadoras e educadores, na direção da desconstrução de subalternidades 6 ou da emergência de outros processos de subjetivação e interação sociocultural. O conceito de “desconstrução” remete ao entendimento proposto por Derrida, mesmo que este não tenha considerado o termo “desconstrução” como representativo de sua obra. Para o autor, “não existe ‘a’ desconstrução: há muitas singularidades, pessoas diferentes, estilos e estratégias diversas [...]. Por outro lado, ela não é apenas um discurso, e menos ainda um discurso acadêmico” (NASCIMENTO; DERRIDA, 2001). A desconstrução não é neutra: ela intervém. (DERRIDA, 2001, p. 117). A desconstrução refere-se ao questionamento das formas totalizantes do pensamento hegemônico na modernidade ocidental. A desconstrução predispõe a uma experiência de descentramento em relação às próprias certezas e verdades construídas a partir do pensamento hegemônico. Significa propor a possibilidade da convivência com o paradoxo: a permanência na fronteira, naquilo que Derrida chama de “indecidibilidade”. Situar-se nesse entrelugar 7 pode gerar estruturas fecundas, que abram novas possibilidades de pensar e fazer, que escapem à dicotomia e possam “substituir a noção de tradução pela de transformação” (DERRIDA, 2001). A desconstrução, pelo crivo do pensamento rigoroso, encoraja a pluralidade dos discursos, legitimando o desenvolvimento concomitante de diferentes processos e regimes de verdade. A partir da diferença colonial, Mignolo compreende a descolonização como complementar à desconstrução. Ao afirmar que a Culturas e Div. Religiosa.P65 35 21/10/2010, 14:18 36 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) desconstrução “precisa ser descolonizada dos silêncios da história” (2003, p. 435), encontrando as brechas onde “das feridas das histórias, memórias e experiências coloniais emergem epistemologias liminares” (2003, p. 66), o próprio Mignolo parece remeter ao que Azibeiro chama de desconstrução de subalternidades. Desconstruir a relação de subalternidade é transformá-la em relação de reciprocidade, não como um pacífico, conciliador e amorfo face a face, mas como a potenciação dos paradoxos, das contradições, explodindo na construção de significados e processos de subjetivação diversos dos habituais, porque plurais, polissêmicos – implicando muitas vezes a transgressão, ou subversão, significada como crítica e mudança de modos de entendimento e ação. Essa transgressão, em geral, pode significar introduzir – ou perceber – o inusitado, o inesperado em nossas ações e reações, levando à reflexão e à tomada de posição, pelo deslocamento de significados enrijecidos, cristalizados (AZIBEIRO, 2006, p.86-87). Entendendo que “o poder funciona e se exerce em rede” (FOUCAULT, 1979, p. 183), desconstruir subalternidades pode significar, ainda, identificar as emergências de relações que ativem múltiplos e heterogêneos regimes de verdade. Na cultura ocidental moderna, as relações entre culturas diferentes são consideradas a partir de uma lógica binária (índio x branco, centro x periferia, sul x norte, homem x mulher, normal x anormal). Toda dicotomia traz implícita uma hierarquização, na medida em que induz a privilegiar um termo em detrimento do segundo. Dessa forma, o pensamento dicotômico não permite compreender a complexidade dos agentes e das relações subentendidas em cada polo, nem a reciprocidade das interrelações, nem a pluralidade e a variabilidade dos significados produzidos nestas relações (FLEURI, 2003). A desconstrução dessa lógica subalternizante implica levar ao extremo cada dicotomia e evidenciar que, no limite, ela é falsa, porque construída como universal e natural a partir de concepções e histórias locais: datadas e situadas. Boaventura de Souza Santos (2003, p.444) propõe “ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e o outro pé em outra. Nisso reside seu caráter diatópico”. Mignolo fala na “dupla consciência”: a dupla consciência, dupla crítica, outra língua, outro pensamento [...] tornam-se categorias necessárias para eliminar a subalternização do conhecimento e para procurar formas de pensamento além das categorias do pensamento ocidental (MIGNOLO, 2003, p. 439). O desafio desse entendimento de intercultura é manter as diferentes perspectivas emergentes, criando entrelaçamentos que possibilitem a interação dos contextos. Ou melhor, criar um enredo que coligue, de modo crítico e criativo, os diferentes elementos, potencializando as diferenças como conexões. Culturas e Div. Religiosa.P65 36 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 37 Desse modo, o que estamos aprendendo, de tudo isso, é que a atenção do pesquisador e da pesquisadora, assim como do educador e da educadora, deve estar sempre voltada para as conexões: entre as pessoas, entre os grupos, entre os acontecimentos, entre as ideias. Entendemos que as conexões se configuram não apenas por oposição ou composição, mas simultaneamente nos desafiam a explorar também outros dispositivos relacionais, como os de “superposição, subposição, anteposição, posposição, transposição, proposição, contraposição, exposição, imposição, reposição, justaposição, interposição...”8. Aprendemos, ainda, a necessidade de considerar sempre múltiplos centros, múltiplos contextos e múltiplas relações, que envolvem diferentes sujeitos, também eles policentrados. 4 Pesquisas Interculturais e Educação Pensar em processos interculturais descolonizantes implica, portanto, a necessidade de transpor fronteiras e inaugurar novos paradigmas no campo da pesquisa, e, por conseguinte, do ensino e da aprendizagem. Nesse sentido, todo pesquisador necessita “olhar de dentro e do alto”, como destacam Fleuri e Costa (2000, p.100) para compreender conceitos como o de espaço de aprendizagem e perceber novas elaborações, especialmente se atentar para o fato de que os espaços9 são construções feitas pelas pessoas a partir de processos interativos. Esses processos, por sua vez, oportunizam a criação de projetos entre os envolvidos e sedimentam possibilidades de construção identitária. De acordo com Boutinet (2002), todo projeto corresponde à certa “antecipação operatória de um futuro desejado”. Vale dizer que, através da identificação de um futuro desejado, assim como dos meios que fazem com que ele venha a acontecer, estabelece-se uma espécie de horizonte temporal dentro do qual ele evolui; ao mesmo tempo, há a possibilidade de considerar a relação “presente-futuro” em permanente processo de construção. Barbier diz que “o projeto não é uma simples representação do futuro, do amanhã, do possível, de uma idéia: é o futuro a fazer, um amanhã a concretizar, um possível a transformar em real, uma idéia a transformar em acto” (apud MACHADO, 2000, p. 32). O projeto traz em si, também, a ideia de movimento. Três características básicas compõem a ideia de projeto nos parâmetros adotados neste estudo: “a referência ao futuro, a abertura para o novo e o caráter indelegável da ação projetada.” (Idem) Nesse sentido, propor projetos de pesquisa interculturais que têm por finalidade favorecer a interação e promover o intercâmbio entre culturas distintas é comprometer-se também com práticas sociais educativas. Pesquisas interculturais sinalizam possibilidades de se gestar o que Boutinet (op.cit.) chama de “projetos de referência”, cuja finalidade é ser uma espécie de mapa para orientar ações. Por meio das finalidades evidenciam-se os valores Culturas e Div. Religiosa.P65 37 21/10/2010, 14:18 38 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) culturais que inspiram a ação. “[...] é com o projeto de referência que se avalia melhor os estreitos vínculos que unem cultura e projeto. Este último pode ser considerado uma forma de construir um consenso a partir de certos valores presentes em uma cultura” (Idem, p. 110). Compartilhamos do pressuposto de que um projeto de referência demanda princípios, tais como: participação, envolvimento, parceria, ação dialógica, pesquisa e ensino, cultura de aprendizagem; produção e socialização de conhecimentos, valorização de saberes prévios, entre outras ações. Tais conceitos nos remetem também à interculturalidade. De acordo com Coppete (2007), o prefixo inter marca reciprocidade, interação, intercâmbio, a ruptura do isolamento e, concomitantemente, indica separação, interposição e diferença. Refere-se, portanto, a um processo dinâmico marcado pela reciprocidade de perspectivas que podem ser entendidas como representações sociais produzidas em interação. A interculturalidade busca promover relações dialógicas entre as pessoas e grupos provenientes de diferentes culturas. “Destarte, é um processo permanente e inacabado, fortemente marcado pela intenção de promover relações democráticas e dialógicas entre grupos e culturas diversas (Idem, p. 130). Para que a perspectiva intercultural aconteça de fato é necessário, fundamentalmente, que sejam criadas condições para a troca ou reciprocidade, quando, no reconhecimento do outro, seja possível tomar consciência da cultura de si mesmo, pois a presença do outro não demanda somente a capacidade para se descentrar ou decifrar a sua cultura, bem como as implicações que este contato desencadeia. Para que se realize o encontro é necessário o estabelecimento de relações. Assim, as práticas cotidianas deixam de ser óbvias. Como comenta Falteri (1998, p. 39), [...] nos damos conta do quão local é o saber-fazer que transmitimos, quão etnocêntricas são as estruturas das disciplinas nas quais nos formamos, quanta pedagogia implícita existe na organização material da sala de aula (tempos, espaços, sistema dos objetos) nas redes de relações e de papéis, nas formas de comunicar. Outros autores, como Martinez e Carrera (1998), também apontam a dinamicidade existente na abordagem intercultural. Para eles, o termo intercultura apresenta-se como algo dinâmico e em íntima relação, na qual as culturas se interpenetram e seus membros se relacionam de maneira ativa. A dinamicidade, integração e reciprocidade inerentes à educação intercultural aparecem no conceito de Fermoso Estébanez (1998), que as define como um processo de natureza eminentemente humana, intencional e plural. Assim, todo projeto de pesquisa, estruturado dentro desses princípios, é sinônimo de ação social, cujo conceito de educação não está assentado apenas em sua utilidade; está, acima de tudo, no sentido que a Culturas e Div. Religiosa.P65 38 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 39 educação precisa ter. É o sentido que possibilita a uma pessoa colocar-se em uma determinada situação. Nessa perspectiva, todo agir tem implicações no tecido histórico-social. Por isso, pesquisas interculturais e práticas que delas decorrem são carregadas de intencionalidade promissora, na medida em que investem na perspectiva educativa como dimensão coletiva (COPPETE, 2003). Nessa direção, é possível alcançar práticas interculturais, especialmente do ponto de vista dos diálogos possíveis que podem ser realizados e do quanto tais práticas podem contribuir, no sentido de atribuir outros significados à própria linguagem empregada nos espaços educativos. Como diz Souza (2002, p. 322), “a educação intercultural nos convida a construir pontes, recuperando a importância da língua(gem) no campo educacional [e no campo da pesquisa].” A intercultura, segundo Falteri (op.cit., p. 37), efetiva-se quando “são criadas as condições para a troca; quando são estabelecidas relações de reciprocidade; quando, ao reconhecer o ‘outro’, tornamo-nos conscientes de nossa própria cultura. [...] Para que se realize o encontro, é necessário que se estabeleça uma relação,” (Idem, p. 41), o que remete considerar a perspectiva de articulação de pesquisas e trabalhos realizados em redes. Pensar numa abordagem de rede supõe o entendimento de ações e relações que mantenham, ao mesmo tempo, as conexões e a autonomia, assim como a coerência - com escolhas ético-políticas que possibilitem o que Nadir Azibeiro (2006) nomeia de desconstrução de subalternidades, citada anteriormente -, e a flexibilidade, que permite a criatividade e o crescimento. A opção ético-político-epistemológica pela desconstrução de subalternidades, que se coloca como condição para a possibilidade da reciprocidade, é inerente à perspectiva intercultural. Desse modo, é fundamental compreender a educação intercultural a partir da perspectiva relacional que ela engendra. Fleuri (1998) comenta que o horizonte da educação intercultural é constituído a partir da criação de contextos educativos que oportunizem a integração e a interação criativa e cooperativa tanto entre os diferentes sujeitos quanto entre seus contextos sociais e culturais. As práticas de troca se consolidam mediante ações comprometidas com a democracia e a justiça social. Nessa perspectiva, Barandica (1999, p.18) apresenta as principais características de uma educação intercultural: • Enfoque global, no sentido de incorporar propostas educativas em projetos de caráter social e propositivo, o que expressa um projeto de estabelecimento de relações igualitárias entre culturas; • Facilitação e promoção de processos de intercâmbio, interação, cooperação entre culturas, com um tratamento igualitário entre elas; • Evidência não somente das diferenças, mas também das similitudes; • Base em um conceito dinâmico de cultura e de identidade cultural; • Aproximação crítica (analisando e valorizando) as culturas; Culturas e Div. Religiosa.P65 39 21/10/2010, 14:18 40 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) • Renúncia de ideias de vazios culturais e de hierarquização das culturais; • Clara preocupação com o binômio diferença-igualdade; • Extensão da educação intercultural não unicamente a centros que contem com a presença de minorias étnico-culturais; • Diversidade cultural no processo educativo vista não como elemento segregador ou diferenciador, mas sim como elemento enriquecedor e articulador; • Princípio dialógico entre culturas, compreensão e aceitação da alteridade como fundamento do modelo de interação entre elas; • Ausência de hibridação cultural (por justaposição de assinaturas ou amálgama de materiais), mas, sim, enriquecimento e compreensão mútua, mediante aprendizagens baseadas nas essências culturais de cada uma. A educação intercultural contempla, assim, uma abordagem emancipatória, constituída na e pela percepção da multiplicidade de olhares, nas inter-relações e na interação entre as diversas culturas. Demanda, indubitavelmente, um encontro. Todavia, não se trata de um encontro pura e simplesmente entre pessoas diferentes. Para que um encontro seja intercultural, na forma como neste estudo se defende e se procura, é significativo que as diferenças sejam como “tensões produtivas”, como sugere Torres (1998), de onde se pode partir para a construção de conhecimentos, mediante pesquisas e práticas educativas que sejam relevantes para os vários grupos sociais envolvidos. 5 O Desafio Epistemológico de Pesquisas Interculturais O principal desafio epistêmico para conseguir se abrir a perspectivas complexas de análise é perceber os diversos saberes como sistemas abertos, que se atravessam ou transversalizam, que se interconectam, produzindo emergências que, ao mesmo tempo, são causadas pela relação entre eles e os transformam, produzindo, por sua vez, outras conexões e possibilidades de relações. Nisso consiste o que Morin entende como a busca de uma ecologia do pensamento, isto é, o entendimento dos contextos múltiplos e complexos em que cada ideia apareceu e se desenvolveu. Pensar a questão da diferença unicamente em termos de exclusão, inclusão ou sincretismo – como únicas alternativas possíveis – significa, ainda, pensar a partir da perspectiva de uma única cultura ou caminho possível, ou nos marcos de uma uni-versalidade, como a imposta pela modernidade ocidental. Como alternativa a isso é que se busca a invenção de entrelugares, em que outras relações se tornem possíveis. Nesses espaços liminares, as diferenças permanecem em tensão, em ebulição, fazendo com que as mesmas palavras, as mesmas imagens e os mesmos símbolos não apenas produzam diversas interpretações, mas se mantenham ambivalentes. E, assim, mantenham também a flexibilidade, a possibilidade de continuar interagindo e mudando, deslocando relações de poder. É este, para Bhabha (1992), o espaço da ressignificação, da possibilidade de Culturas e Div. Religiosa.P65 40 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 41 dissolução de estereótipos e preconceitos e de empoderamento, de fortalecimento da autoconfiança e da capacidade de ação das pessoas e dos grupos populares. É esse o sentido do polifônico, para Mikhail Bakhtin (1992). São polifônicos os textos – ou contextos – em que as múltiplas vozes e significados permanecem em interação, ao mesmo tempo em que podem continuar a ser distinguidas, identificadas – sempre fluindo, modificando-se, buscando outras tessituras. Assim também Edgar Morin entende o conceito de dialógico: como a possibilidade de interação e inter-relação de múltiplas perspectivas, inclusive as aparentemente antagônicas, que permanecem em tensão e interação, levando a entendimentos plurais, ao pensamento complexo. É esse também o entendimento da hermenêutica pluritópica para Walter Mignolo. Esses conceitos explicitam dimensões e características fundamentais do que denominamos uma educação intercultural. Operacionalizado como uma pedagogia do encontroconfronto, levada às últimas consequências, esse entendimento de interculturalidade enfatiza a relação entre sujeitos – individuais e coletivos – buscando possibilitar uma produção efetivamente plural de sentidos e lugares sociais, a partir da compreensão de que os significados podem ser reelaborados nos processos de interação social, pelo estabelecimento de contextos relacionais que inventem outras políticas de verdade. Para além de uma proposta idealista de convivência pacífica, a interculturalidade, sob esse ponto de vista, coloca-se como proposta de produção molecular e cotidiana de espaços, tempos e subjetividades plurais, movendo-se no terreno do plurilinguajamento, do polifônico, do dialógico. Atua no espaço deslizante do inter, onde se torna possível, como propõe Bhabha, a dissolução de preconceitos e estereótipos, a substituição das verdades absolutas e dogmáticas, a percepção de que existem outras modulações para os significados enrijecidos e cristalizados. Atuar no espaço fluido do inter não significa não assumir posição. A tomada de posição se constitui a partir da acolhida, da reflexão, do compromisso, da ousadia, da abertura à imprevisibilidade e às infinitas possibilidades. Para Boaventura de Souza Santos (2004, p. 796), “a possibilidade é o movimento do mundo”. Para ampliar ao máximo essas possibilidades é que propõe uma “sociologia das ausências” e uma “sociologia das emergências” como formas de expandir o domínio tanto das experiências sociais já disponíveis, como das experiências sociais possíveis. Propõe uma ecologia de saberes, temporalidades, reconhecimentos, produções e distribuições sociais. Comum a todas estas ecologias é a idéia de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe. Trata-se de uma versão ampla de realismo, que inclui as realidades ausentes por via do silenciamento, da supressão e da marginalização, isto é, as realidades que são ativamente produzidas como não existentes (SOUZA SANTOS, 2004, p. 793). Culturas e Div. Religiosa.P65 41 21/10/2010, 14:18 42 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Criar inteligibilidade entre diferentes saberes, como entre diversas formas de organização e objetivos de ação, identificar o que os une e o que os separa, inventando, ao mesmo tempo, a possibilidade de se manterem em emergência e em confronto, provocando deslocamentos, mudanças de valores e de significados, sem a imposição de novas sínteses ou hierarquias. Esse é o principal desafio dessa proposta de interculturalidade. Enfatizar o caráter relacional e contextual (inter) dos processos sociais permite reconhecer a complexidade, a polissemia, a fluidez e a relacionalidade dos fenômenos humanos e culturais. E traz implicações importantes para o campo da pesquisa. A pesquisa, na perspectiva intercultural, deixa de ser assumida como um processo de formação de conceitos, assim como de valores, a partir de uma relação unidirecional, unidimensional e unifocal, conduzida por procedimentos lineares e hierarquizantes. A pesquisa passa a ser entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas respectivas identidades, tornam-se ambientes criativos e propriamente formativos, ou seja, estruturantes de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais. O desafio que se coloca, pois, para a pesquisa intercultural crítica é justamente o de reconhecer os múltiplos fatores, dimensões, contextos, sujeitos e “perspectivas que interagem e que não podem ser reduzidas por um único código e um único esquema a ser proposto como modelo transferível universalmente” (FLEURI, 2003). Assim, o processo de pesquisa se constitui não a partir do posicionamento individual em um ponto de observação supostamente neutro e exterior aos fatos e sujeitos observados, nem simplesmente na formulação de um referencial teórico que permita a organização hierárquica e progressiva de informações. A elaboração crítica de conhecimento exige a inserção, como interlocutor, dos autores no contexto de diálogo entre diferentes sujeitos e entre os seus respectivos contextos. Ao interagir com outros sujeitos, torna-se importante que cada autor dedique particular atenção às relações e aos contextos que vão se criando, de modo a poder contribuir para a explicitação e elaboração dos sentidos (percepção, significado e direção) que os sujeitos em relação constroem e reconstroem. O desafio da pesquisa é o de se desenvolver recursos e processos capazes de ativar a elaboração e a circulação de informações entre sujeitos, de modo que se auto-organizem em relação de reciprocidade entre si e entre seus respectivos ambientes. A pesquisa se constitui como fator mobilizador da interação entre sujeitos, que pode promover a compreensão, ressignificação e transformação de seu próprio contexto interativo. A necessidade de descolonializar as formas de poder, saber, ser e viver é mais profunda e ampla do que a de reconhecimento e valorização das configurações de poder, de saber, de ser e de conviver apenas dos Culturas e Div. Religiosa.P65 42 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 43 povos autóctones de nosso contexto latino-americano. Reconhecer a densidade e a originalidade da contribuição dos povos ancestrais e dos grupos sociais tradicionalmente subalternizados e aprender com eles, de modo crítico e dialógico, é condição de sobrevivência e de crescimento de todos. E isso pressupõe o desenvolvimento de processos interculturais descolonializantes. Considerações Finais Sabe-se que a sociedade contemporânea é constituída de culturas multifacetadas. Por essa, entre outras razões, é inconcebível pensar projetos de pesquisa e práticas educativas estruturados mediante modelos universais, hegemônicos e monoculturais. Por outro lado, ao se dar visibilidade às diversas culturas, é preciso ter o cuidado de não considerar cada cultura fechada em si mesma; a valorização da diversidade cultural necessita ser o ponto de partida para que as aproximações entre as culturas aconteçam. Com base nessa premissa, este artigo buscou problematizar e refletir sobre as pesquisas interculturais e as possibilidades de descolonializar o saber, o poder, o ser e o viver, tentando delimitar perspectivas, contradições e desafios existentes neste campo. Sinalizou a relevância da interculturalidade crítica, na medida em que aponta para essa descolonialização, ou seja, do saber, do poder, do ser e do viver. A desconstrução de padrões culturais coloniais-modernos demanda visibilizar seus paradoxos, no sentido de promover relações de maior reciprocidade capazes de construir significados e processos polissêmicos. É justamente nesse sentido que a pesquisa pode ser mobilizadora da interação entre as pessoas, na medida em que pode otimizar processos que levem a compreender, ressignificar e transformar seu próprio contexto interativo. O que se buscou mostrar foi a importância e a possibilidade de elaborar e mobilizar formas de saber, poder, ser e viver que busquem garantir a convivência de todos os seres humanos com a natureza e consigo, desconstruindo dispositivos e estruturas de dominação sociocultural e de destruição sistemática da natureza, vigentes no atual contexto mundial. Notas 1 Doutorado em Educação (1988), pós-doutorado na Università degli Studi di Perugia, Itália (1996), e na USP (2004). Professor titular da UFSC. Presidente da Association pour la Recherche Interculturelle (ARIC), (2007-2009). Pesquisador e consultor do CNPq, nível 1C. Coordena o Núcleo de Pesquisa Mover - Educação Intercultural e Movimentos Sociais (UFSC/CNPq). Pesquisador colaborador do Centre de Recherche sur l’intervention éducative - CRIE (Canadá). Suas obras mais recentes são: Educação Intercultural: mediações necessárias (Rio de Janeiro: DP&A, 2003); Entre Disciplina e Rebeldia na Escola. (Brasília: LiberLivros, 2008). Contato: [email protected] Culturas e Div. Religiosa.P65 43 21/10/2010, 14:18 44 2 3 4 5 6 7 8 9 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Graduação em Pedagogia e Especialização em Fundamentos da Educação (UNESC). Mestrado em Educação e Cultura - UDESC (2003). Professora titular da UDESC. Doutoranda (2008) pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC e pesquisadora do Núcleo MOVER. Contato: [email protected] Graduação em Pedagogia. Mestrado em Educação pela UFSC (1994) e doutorado em Educação pela UFSC (2006). Atuou no Instituto Cajamar, no Programa de Formação de Educadores Populares. Atualmente é professora titular da UDESC e coordenadora pedagógica do Centro Cultural Escrava Anastácia. Contato: [email protected] Paradoxo é uma contradição lógica que, se não resolvida, coloca em cheque toda a estrutura lógica da argumentação que a gerou. Trata-se de uma afirmação – aceita como verdadeira – mas que contradiz e questiona o sistema de entendimento em que se baseia. As proposições em confronto se encontram dentro de um contexto maior que as envolve e ressignifica. Cf. Bateson, 1986, p.125ss.; Fleuri e Costa, 2001, p.66; Souza, 2002, p.239. O grupo de pesquisa “Educação Intercultural e Movimentos Sociais”, conhecido na Universidade Federal de Santa Catarina como “Núcleo Mover”, está registrado no Diretório de Grupo de Pesquisas do CNPq. Cf em http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/ detalhegrupo.jsp?grupo=0043708JCBVE0N Sobre esta temática é particularmente relevante a tese de Nadir Esperança Azibeiro (2006). “O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entrelugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade” (Bhabha, 1998, p. 19-20). Michel Serres (1994) valoriza as preposições, por causa da sua plasticidade topológica: dizem as passagens, os contratos, as interferências, os distanciamentos ou as traduções. O autor afirma que existe uma filosofia virtual em cada preposição da nossa língua. Assim, escreve este pensador, existe uma filosofia da transcendência na preposição “sobre”, da substância e do sujeito em “sob”, da interação entre o mundo e o eu em “dentro”, da Comunicação e do contrato em “com”, da tradução em “através de”, das interferências em “entre”, da passagem em “por”, da parasitagem em “ao lado de” e do distanciamento em “fora” (Serres, 1994). O conceito foi postulado por Certeau (1995, p. 101, 110): “existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo. O espaço é o cruzamento de móveis. É, de certo modo, animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desbobram [...] O espaço é um lugar praticado.” REFERÊNCIAS AZIBEIRO, N.E. Educação intercultural e comunidades de periferia: limiares da formação de educador@s. Florianópolis, 2006, Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pósgraduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: <http:/ /www.tede.ufsc.br/teses/PEED0538.pdf >. 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Lo que quiere decir que debemos reflexionar sobre lo que hacemos cuando hacemos teología. Tenemos, por tanto que hacernos cuestión de nuestra propia “profesión” como teólogos y teólogas, y preguntarnos por ella además en una situación concreta, relativamente nueva, que intuimos que nos desafía con retos específicos. Hacer del quehacer teológico tema de nuestras reflexión es, pues, preguntarse por la relación que mantenemos con nuestro quehacer profesional en teología. Esta pregunta puede surgir por muchas razones y motivos, tanto personales como objetivos, así como puede ser resultado también de la sensibilidad frente a una exigencia contextual determinada. Nosotros vamos a suponer ahora que hacemos cuestión del “quehacer teológico en el contexto del diálogo entre las culturas en América Latina” no por motivos de mejorar las condiciones de salida profesional de los teólogos y las teólogas en el mercado laboral ni por acrecentar la competitividad de las instituciones de enseñanza teológica en las sociedades latinoamericanas actuales sino que hacemos esta “interrupción” en el curso de nuestro quehacer profesional porque “nos llega” la interpelación de una situación contextual que sentimos que al menos en algo nos desconcierta y que nos confronta con la pregunta de si, al cumplir hoy con nuestro quehacer teológico, estamos realmente haciendo el quehacer que deberíamos hacer, y si lo hacemos como de verdad deberíamos hacerlo. Vamos a suponer, por tanto, que nos ocupamos con “el quehacer teológico en el contexto del diálogo entre las culturas” en razón de lo que apuntábamos antes como sensibilidad frente a una exigencia contextual determinada. Y es por este supuesto que nos parece conveniente encaminar el debate del tema con una tesis a favor de la necesidad de la transformación intercultural de la teología hoy en América Latina. Culturas e Div. Religiosa.P65 47 21/10/2010, 14:18 48 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Formulada de manera sintética y provisional, ya que se trata de ofrecer una pista para el enfoque del tema en cuestión, nuestra tesis se puede resumir de la siguiente manera: Un quehacer teológico que, por sensibilidad frente a las exigencias con que lo interpela hoy en América Latina el diálogo de las culturas, se cuestiona a sí mismo para examinar si está o no está a la altura de su misión teológica en la historia – que desde la visión de la fe cristiana es siempre también historia de la salvación – tiene que entender este cuestionamiento de sí mismo o esta pausa reflexiva interruptora de la normalidad en que se desarrolla como una posibilidad u oportunidad (¿un Kairos?) para reformarse y transformarse radicalmente, entendiendo este proceso en el sentido de una renovación desde las raíces memoriales de las sabidurías de los muchos pueblos de América Latina. La tesis que adelantamos para que se vea clara la perspectiva desde la que enfocamos nuestra reflexión sobre el quehacer teológico en el contexto del diálogo entre las culturas en América Latina, es, por tanto, las tesis de que las exigencias de ese contexto hacen necesaria una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en nuestras cabezas, nuestros hábitos de trabajo, nuestros modos de enseñar, nuestras instituciones, etc. A la luz de la perspectiva de esta tesis estructuraremos nuestras reflexiones en tres pasos argumentativos fundamentales en los que intentaremos mostrar, primero, porqué es hoy necesaria e indispensable una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico, segundo, qué es lo que la hace posible y, tercero, cuáles son las dificultades mayores con que se encuentra este proyecto. Nuestras consideraciones sobre la necesidad, la posibilidad y la dificultad de desarrollar un quehacer teológico intercultural e interreligioso en América Latina serán, por las razones obvias de espacio y tiempo, más puntuales o aproximativas que exhaustivas pero confiamos en que sean lo suficientemente relevantes como para que se vean la pertinencia y la plausibilidad de la tesis aquí propuesta en vistas a encarar el futuro del quehacer teológico en América Latina. 1 De la necesidad de una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina Decíamos que dábamos por supuesto que nuestra pregunta por el quehacer teológico en el contexto del diálogo entre las culturas en América Latina refleja de por sí una cierta sensibilidad frente a las exigencias específicas con que nos interpela dicho contexto en nuestro quehacer profesional. Recordamos esta motivación porque creemos que es un indicador confiable de que la necesidad de transformar intercultural e Culturas e Div. Religiosa.P65 48 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 49 interreligiosamente el quehacer teológico hoy, y por cierto no únicamente en América Latina, viene en primera línea de las exigencias contextuales nuevas con que nos confronta la época histórica de la que tenemos que dar cuenta teológicamente; una época en la que han cambiado tanto las condiciones básicas bajo las cuales se hacía teología como las referencias teóricas que garantizaban el sentido del quehacer teológico en nuestras sociedades. De esos cambios vienen precisamente esas exigencias que sentimos como nuevas y que, al “desconcertarnos” en los recursos que tenemos para responder ante ellas, nos hacen vislumbrar que problemas y situaciones nuevos requieren también un pensamiento nuevo, presentándose así ante nosotros como exigencias contextuales que hablan de la necesidad de revisar y reformar el oficio de la teología. De esos cambios que han transformado el rostro del mundo, y ello a pesar de la aplastante hegemonía de la cultura dominante que se extiende hoy con el capitalismo neoliberal, queremos ahora resaltar uno que está en el fondo de muchos otros cambios y que nos parece particularmente relevante para nuestro tema. Nos referimos al reconocimiento de la facticidad del pluralismo; reconocimiento que se nota, es más, al que pagamos tributo ya con la formulación que hemos escogido para indicar el aspecto contextual a cuya luz queremos reflexionar aquí sobre el quehacer teológico, pues hablamos justamente de revisar el sentido de éste “en el contexto del diálogo entre las culturas en América Latina.” Si hablamos de diálogo entre las culturas es porque damos por supuesto la diversidad, la pluralidad y las diferencias entre las mismas. Reconocemos, pues, el hecho de un pluralismo cultural; y este hecho, al ser reconocido como factor de la contextualidad donde nos movemos, de la contextualidad de la que formamos parte y en la que, por consecuencia ejercemos nuestro quehacer teológico, pasa a ser una interpelación contextual a nuestra manera de hacer teología; una exigencia que nos pide justamente que nos ocupemos de esa realidad. De este llamado de la realidad del pluralismo cultural como tema que no podemos soslayar en nuestro quehacer teológico, porque constituye ya parte de su contextualidad histórica, viene la necesidad de hacer un alto en el curso de nuestra normalidad teológica para preguntarnos si estamos en condiciones de ocuparnos responsablemente de las nuevas exigencias de una realidad marcada por el pluralismo cultural. En una palabra: la realidad del pluralismo cultural, con su consiguiente despertar de las alteridades, conlleva para la teología la necesidad de preguntarse por su transformación intercultural. Esta exigencia vale a nivel mundial. Pues el pluralismo cultural desafía a la teología o, mejor dicho, a las teologías, sean éstas cristianas, ortodoxas, musulmanas, budistas o guaraní, en su normalidad cultural al Culturas e Div. Religiosa.P65 49 21/10/2010, 14:18 50 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) ponerles delante un espejo pluridimensional que les queda grande o en el que pueden ver reflejada la estrechez cultural de su normalidad discursiva. En el espejo del pluralismo cultural las teologías actuales se ven como regiones y, si son autocríticas, reconocen que su normalidad cultural les impide llevar su mensaje en perspectiva realmente universal.2 Pero, para nosotros aquí, que debemos limitarnos al ámbito latinoamericano, esa exigencia del pluralismo cultural se concretiza en el desafío de que las teologías de América Latina se vean primero en el espejo que les presenta la diversidad de culturas en el continente y que descubran los límites culturales de su normalidad teológica. Nos parece evidente que este desafío de tomar conciencia de los propios límites culturales y, por tanto, también del alcance del propio discurso que conlleva el contexto del diálogo entre las culturas en América Latina para el quehacer teológico que se practica hoy en ella, es un desafío que toca en primera línea y fuertemente a las teologías cristianas porque, debido a múltiples razones conocidas, como son el alto porcentaje de población que se confiesa cristiana, el peso de las tradiciones cristianas en el llamado mestizaje cultural latinoamericano o la fuerza de los centros de investigación, enseñanza y publicación de que disponen, es innegable que las teologías cristianas detentan hoy un cierto monopolio en la producción teológica del continente. Mas igualmente evidente nos parece que ese desafío del pluralismo cultural interpela también a otras teologías contextuales que se elaboran en América Latina y que se entienden a sí mismas como portavoces de culturas indígenas o afroamericanas. Pues el pluralismo cultural también confronta a estas teologías con la experiencia de sus propios límites culturales y, por lo mismo, con la cuestión de su sentido en un contexto marcado por la pluralidad de la diversidad cultural. Resumiendo este punto diríamos que en América Latina el pluralismo cultural confronta a todo quehacer teológico con la exigencia de responder a esa nueva realidad tratando de formar parte del diálogo entre culturas que implica dicho pluralismo; y que esta exigencia se traduce para la teología en una necesidad de transformación, ya que, al asumirla, descubre que no puede entrar en la dinámica de ese diálogo de las culturas sin “sacudir” la normalidad teológica que ha alcanzado asentándose en una cultura determinada.3 Y ha de observarse todavía que esta necesidad de transformación intercultural que, viniendo del contexto del diálogo de las culturas, podríamos decir que crece en la teología por una razón “externa” a ella, es decir, por imperativo contextual, revierte en la teología de tal manera que se convierte en el punto de partida para una transformación intercultural de la teología por razones o necesidades internas a ésta misma. Porque es en ese intento de responder a las nuevas exigencias contextuales donde la teología sufre la experiencia de que todavía tiene un discurso, pero que Culturas e Div. Religiosa.P65 50 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 51 éste no es suficientemente amplio como para dejar que resuenen en él todas las experiencias culturales de Dios ni para dejar que resuene en el mundo la palabra de Dios en toda su diversidad. Por esta experiencia, mediante la cual la teología sufre en el marco del contexto del pluralismo cultural su propia normalidad teológica como aquello que le impide justamente abrirse a la infinitud que indica el pluralismo cultural, la necesidad de la transformación intercultural se profundiza todavía más como una necesidad interna que brota ya no sólo de la experiencia de finitud del discurso teológico elaborado sino además del presentir de alguna manera que en el pluralismo cultural y la interculturalidad se anuncia la sublime infinitud de la Palabra cuya presión de diversidad hace estallar toda frontera cultural y lanza la teología al éxodo continuo. Así la transformación intercultural se prolonga, por necesidad de lo que late en el corazón de toda teología contextual, en un proceso de transformación interreligiosa de la teología. El quehacer teológico que se pregunta por su sentido en el contexto del diálogo de las culturas se adentra así por un camino (¿el camino al que lo abre el Espíritu?) que lo impulsa a sentir también la necesidad de reconfigurarse desde experiencias interreligiosas. Pues no hay diálogo de culturas sin diálogo de religiones, al menos cuando tomamos el diálogo en su verdadero sentido intercultural de caminar acompañado hacia la profundidad del otro. Hacer ese camino, en el que se acompaña y se es acompañado, es participar en el misterio de la diferencia del otro, que es siempre en última instancia una diferencia con espíritu, en el espíritu y del espíritu. En todo diálogo de culturas palpita, pues, un diálogo de espiritualidades; espiritualidades que, aunque no siempre, muchas veces se condensan en religiones identificables. Esta pluralidad de espiritualidades y de religiones urge en América Latina al quehacer teológico a plantearse como una tarea necesaria su transformación interreligiosa, es decir, a complementar su capacidad de hablar de Dios interculturalmente con el desarrollo de un lenguaje que libere su discurso sobre Dios de los límites de su religión de proveniencia por la interacción con el espíritu de Dios en el otro. Podemos decir, en síntesis, que la necesidad de transformar interculturalmente e interreligiosamente el quehacer teológico en América Latina es una exigencia de la profunda e inagotable diversidad del Espíritu; necesidad que para nosotros es históricamente necesaria para que nuestras teologías particulares no hagan de Dios su botín ni nuestras religiones funcionen como una prisión para el Espíritu que nos convoca a la liberación y , con ello, a una vida que crece en la convivencia acogedora de las diferencias. Culturas e Div. Religiosa.P65 51 21/10/2010, 14:18 52 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 2 De la posibilidad de una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina Así como la necesidad o, mejor dicho, la toma de conciencia de que la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico hoy en América Latina hay que verla en última instancia vinculada al misterio del Espíritu que nos revela su diversidad insondable en la pluralidad de las culturas y las religiones, del mismo modo podemos decir que la posibilidad de dicha transformación tiene su fundamento último en el misterio de Dios y de su plan salvífico en nuestra historia. Podemos, con posibilidad real, transformar intercultural e interreligiosamente el quehacer teológico porque la realidad que confesamos con el nombre de Dios se da ella misma en muchos nombres y nos habla en muchas lenguas, culturas y religiones. La actualización real de esa posibilidad, que en su fondo es gratuita, depende sin embargo de nuestra capacitación para aprender a revisar nuestras teologías, y las religiones a partir de las cuales se articulan, desde Dios y su diversidad, desde su misterio. Lo que quiere decir que hay que desaprender a ver a Dios desde nuestras teologías y religiones. Por eso la posibilidad de la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico concretamente en el contexto latinoamericano del pluralismo cultural y religioso supone adentrar la teología en un proceso de aprendizaje cultural y/o de recapacitación religiosa por el que, por decirlo de esta forma, la teología se capacita para revisar su religación a la religión que la sostiene en su normatividad cultural y teológica, porque se trata justamente de un proceso de apertura a la palabra del otro como memoria religiosa original, en este caso, en la que también resuena la verdad de Dios. Se trata, en breve, de capacitar nuestras teologías y religiones para que sean lo que deben ser: caminos de participación en la verdad de Dios. Pero esto supone precisamente que aprendan a caminar “por los muchos caminos de Dios”; y que aprendan, al transitar esos caminos, a rehacer el propio camino desde sus cruces y relaciones con los caminos del otro. La posibilidad de la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina se concretiza así, en un primer paso, mediante el desarrollo de una hermenéutica de la propia tradición desde la relación con las tradiciones del otro. Antes de seguir con la explicación de este primer paso debo intercalar, sin embargo, una observación que me parece necesaria para comprender la lógica de nuestra argumentación en este punto. Es la siguiente: la hermenéutica de lo propio desde la relación con el otro es posible en virtud de la misma contextualidad del pluralismo cultural y religioso. Pues hay que tomar conciencia de que pluralismo es más, mucho más, que la simple afirmación o constatación de la multiplicidad como Culturas e Div. Religiosa.P65 52 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 53 situación de hecho, porque apunta a un horizonte de convivencia en la diversidad en tanto que expresa la idea de que el hecho de que “hay o somos muchos” implica la consecuencia político-ética del reconocimiento de la relatividad de los puntos de vistas, de las creencias y convicciones de cada uno de los muchos. El pluralismo afirma así una diversidad que se reconoce en sus limitaciones justo porque tiene conciencia de su relación con el otro, y con ello de la necesidad de relativizar la pretensión de universalidad de todo universo cultural o religioso.4 De esta suerte el contexto del pluralismo hace posible una hermenéutica de lo propio que parta del reconocimiento de la relación con el otro. Y decíamos que el desarrollo de una hermenéutica semejante está a la base de una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico hoy en América Latina porque desplaza el centro interpretativo de las teologías, culturas o tradiciones religiosas con las que las diferentes alteridades se identifican, al aprovechar la relación con el correspondiente otro como una ocasión para ponerlo en el centro de interpretación. Hermenéutica de lo propio desde la relación con la tradición del otro quiere decir de este modo reconocer la dimensión de pasividad que, como elemento fundamental de autoconocimiento, conlleva la relación con el otro y que nos hace ver que somos sujetos de interpretación en sentido pleno cuando, y sólo cuando, sabemos complementar el momento activo del “nos interpretamos” con el momento pasivo del “somos interpretados”. En un segundo paso la posibilidad de una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina se muestra por el desarrollo de teologías contextuales enraizadas en las culturas de los pueblos indígenas y afroamericanos del continente. Su desarrollo es hoy ya un hecho reconocido. Es decir que no son un programa o un proyecto todavía por realizarse sino que representan ya una aportación con peso propio5. Por eso no nos detendremos más en ellas, señalando solamente – porque esto basta en el marco de estas consideraciones – que, aún en el caso en que las teologías indias a afroamericanas se confiesan como teologías cristianas, representan una contribución fundamental a la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico (cristiano) en cuanto que por su articulación desde las espiritualidades de las culturas indígenas y afroamericanas pluralizan la experiencia de la fe cristiana, hacen posible una lectura intercultural e interreligiosa de la Biblia y ponen fin a la hegemonía del cristianismo occidentalizado que ha servido de referente casi exclusivo para el desarrollo del quehacer teológico en América Latina. Un tercer paso en la posibilitación de la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina lo vemos nosotros en otro desarrollo que ya es también un hecho y que, en cuanto tal, nos indica que esta transformación no es una simple posibilidad de futuro sino Culturas e Div. Religiosa.P65 53 21/10/2010, 14:18 54 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) una posibilidad en curso de realización. Nos referimos a las contribuciones que se están haciendo a la fundamentación y a la explicitación de una teología cristiana del pluralismo religioso desde América Latina. Como en el caso anterior, dejamos también esa aportación apuntada sólo como muestra de la posibilidad de la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en la actualidad de América Latina. Sí queremos en cambio detenernos algo más en un cuarto paso en el que a nuestro modo de ver, se concretiza la posibilidad de la transformación que propugnamos para el quehacer teológico latinoamericano en el contexto del diálogo de las culturas. Se trata del desarrollo de una metodología teológica intercultural e interreligiosa que se haga eco de la hermenéutica anotada en el primer paso y que abra desde ella caminos plurales y equivalentes de hacer teología. En cierta forma es la metodología que ya se vislumbra, aunque más implícita que explícitamente, en las contribuciones mencionadas de las teologías indias, afroamericanas y del pluralismo religioso; pero que debe todavía ser elaborada como una metodología que asume de manera conciente que los llamados “lugares teológicos”, sean éstos tradiciones religiosas, culturas o lugares histórico-sociales, como “el pobre” o “la mujer” son de por sí métodos que encaminan el peregrinaje de la humanidad por las huellas de Dios en la historia. Se elaboraría de este modo como una metodología compleja de métodos o, si se prefiere, como una interacción de métodos diversos mediante la cual éstos se interfieren, se cruzan, se contrastan y eventualmente reconocen confluencias o convergencias. Señalemos, por último, que para la elaboración efectiva de esta metodología intercultural e interreligiosa nos parece fundamental la encarnación del quehacer teológico en la dinámica del desarrollo real de la identidad religiosa de la gente, pues ésta es, tal es nuestra sospecha, mucho más intercultural e interreligiosa en su curso y práctica cotidiana de lo que frecuentemente acertamos a ver los “profesionales”. 3 De las dificultades con que todavía tiene que contar la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina En primer lugar están las dificultades que podríamos llamar “externas”. Son las que vienen, por una parte, del impacto de las políticas internacionales de globalización del neoliberalismo y su consiguiente “cultura global” en el desarrollo actual de las sociedades latinoamericanas; y, por otra, de la propia historia de los países latinoamericanos que, no habiendo superado hasta hoy las secuelas del pasado colonial, sigue confrontando a los pueblos de Abya Yala con el desprecio, el racismo y la marginación de sus tradiciones. Pero no son a éstas dificultades a las que nos queremos referir ahora. Lo que no quiere decir que no sean importante o que lo sean menos que Culturas e Div. Religiosa.P65 54 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 55 aquellas en las que preferimos detenernos. Pues si preferimos detenernos en éstas otras, que llamaremos dificultades “internas”, es porque pensamos que su superación, a diferencia de las primeras, depende en primera línea de nuestro comportamiento, ya que son responsabilidad directa nuestra. En un nivel general está en primer lugar la dificultad que representa para el quehacer teológico cristiano su vinculación con la idea de un cristianismo “misionero” que supone que con la misión llega la verdadera religión y la verdadera teología. Esta vinculación es una limitación fuerte y una dificultad grave para repensar el quehacer teológico, en este caso el cristiano, en el contexto del diálogo de las culturas y de las religiones. ¿Cómo replantear o resignificar la labor misionera de las iglesias cristianas y la misma universalidad del mensaje cristiano de salvación en este nuevo contexto? Una respuesta honesta o, al menos, una consideración sincera y dialógica a esta pregunta podría ayudar a superar esta primera dificultad6. También en este plano general vemos una segunda dificultad interna que viene concretamente del paradigma teológico de la inculturación que representa sin duda alguna un gran avance respecto del paradigma más tradicional de la misión; pero que sigue aferrado a una concepción monocultural de la universalidad del cristianismo y defiende así la necesidad de intervenir en todas las culturas y reorientarlas en sus caminos de salvación. Una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico (cristiano) tendrá que plantearse, por tanto, la cuestión de resignificar también este paradigma para abrirse sin reservas a las potencialidades teológicas que le ofrece el pluralismo religioso y cultural.7 La tercera dificultad que queremos nombrar en este breve recuento y que se plantea también en un nivel general es la que representa la teología dogmática con su carga de definiciones sancionadas por los diversos magisterios doctrinales. Aquí hay para una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en el contexto del diálogo de las culturas y de las religiones, en especial por parte cristiana, una fuerte barrera cuya superación requiere sin duda un largo proceso de aprendizaje y una ardua tarea de deconstrucción de la monoculturalidad de la razón teológica que subyace a la dogmática de la fe cristiana. Pasando ahora a un plano más concreto o personal apuntamos una cuarta dificultad que viene de nuestros propios hábitos de estudio y de enseñanza; es decir, de las costumbres que hemos adquirido por la formación recibida y que sostienen la teología que practicamos. Hablando en otros términos, podríamos decir que se trata de la dificultad que viene de la rutina y de la inercia que genera en nosotros la teología en la que estamos instalados.8 Culturas e Div. Religiosa.P65 55 21/10/2010, 14:18 56 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico tiene que contar por tanto también con la resistencia de los hábitos heredados de los teólogos y las teólogas. Pues la interculturalidad y la interreligiosidad exigen “éxodo” y no sede; son reclamo de abandono de las instalaciones construidas, por muy cómodas que resulten. Por último una quinta dificultad que está unida a la anterior. Forma parte de la normalidad teológica dominante comprender muchas veces las diferencias culturales y religiosas, por no decir también confesionales, en sentido contradictorio. Y esto es un obstáculo fuerte en el camino de la transformación intercultural e interreligiosa de toda teología en el contexto actual del pluralismo porque el diálogo de las culturas y las religiones requiere precisamente un nuevo trato con eso que llamamos “contradicciones”. Dicho muy brevemente, ese nuevo trato significa, primero, historificar las “contradicciones” para conocer su génesis y ver cómo y porqué se han cristalizado como tales, esto es, como barreas que nos separan; y, segundo, redimensionarlas desde el diálogo a la luz de un horizonte mayor en el que a lo mejor se revelan simplemente como el “contra” que da el relieve a la “dicción” del otro. Para terminar: una sugerencia En el camino hacia una resignificación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico hoy en América Latina no se puede olvidar, sobre todo cuando ponemos como marco de esa resignificación el contexto del diálogo de las culturas, que se trata de contribuir a que América Latina asuma en teología las consecuencias que se desprenden de dicho diálogo. O sea que se trata de ayudar a que el diálogo de América Latina con su diversidad se cumpla también en el ámbito teológico, y ello con todas sus consecuencias. En este sentido la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en este continente tiene que preocuparse por ampliar cada vez más sus espacios discursivos de manera que sean ámbitos abiertos a la resonancia de todos los sonidos teológicos que producen las culturas de América Latina. Notas 1 Doutor em Filosofia pelas Universidades de Aachen e de Salamanca. Professor de Filosofia na Universidade de Bremen (Alemanha). Diretor do Departamento para América Latina do Instituto de Missiologia em Aachen (Alemanha). Coordenador do Programa de Diálogo Filosófico Norte-Sul e dos Congressos Internacionais de Filosofia Intercultural. E-mail: [email protected] 2 Ver sobre estos trabajos pioneros, entre otros, de Jaques Dupuis, Hacia una teología cristiana del pluralismo religioso, Santander 2000. John Hick y Paul F. Knitter, The Myth of Christian Culturas e Div. Religiosa.P65 56 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 57 Uniqueness. Toward a Pluralistic Theology of Religions, Maryknoll 1987; Paul F. Knitter, No Other Name? A Critical Survey of Christian Attitudes Toward the World Religions, Maryknoll 1985; Raimon Panikkar, El silencio de Dios, Madrid 1970; íd., El Cristo desconocido del Hinduismo, Madrid 1970; íd., The Interreligious Dialogue, New York 1978; Aloysius Pieris, Fire and Water: Basic Issuses in Asian Buddism and Christianity, Maryknoll 1996; y Paul Tillich, El futuro de las religiones, Buenos Aires 1976. 3 Sobre el significado que damos al término “asentarse” en el sentido de “sentar”, tener “sede” y también “cátedra” ver las consideraciones que hemos presentado en nuestro trabajo “Filosofía e interculturalidad: una relación necesaria para pensar nuestro tiempo” que recogemos en nuestro libro: La interculturalidad a prueba, Aachen 2007. 4 Para un análisis filosófico de las condiciones y exigencias del pluralismo hoy así como para la consideración de la bibliografía actual sobre este tema ver Hans Jörg Sandkühler, “Pluralismus”, en íd. (ed.), Enzyklopädie Philosophie, tomo 2, Hamburg 1999, pp. 1256-1265. 5 Para el desarrollo de la teología indígena ver por ejemplo las actas de los encuentros celebrados hasta ahora: CENAMI/Abya Yala (eds.), Primer encuentro-taller latinoamericano, México/Quito (2ª edición 1992); íd. (eds.), Teología India. Segundo encuentro-taller latinoamericano, Quito 1994; Ramiro Argandoña, et al. (eds.), Teología india. Sabiduría india, fuente de esperanza. Tercer Encuentro-Taller Latinoamericano, 2 tomos, Cusco 1998; AAVV., En busca de la tierra sin mal. Mitos de origen y sueños de futuro de los pueblos indios. Memoria del IV Encuentro – Taller Latinoamericano de Teología India, Quito 2004. 6 Sobre esta cuestión es provechoso consultar las actas del congreso internacional „Teología y Misión. A los 40 años de Ad Gentes” organizado por la Escuela de Teología de la Universidad Intercontinental en México del 18 al 22 de abril de 2005. Estas actas se recogen los números monográficos 25 y 26 (2005) de la revista Voces. 7 Ver sobre este punto mi estudio “De la inculturación a la interculturalidad” (y la bibliografía citada en el mismo) que recogemos en nuestro libro : Interculturalidad y religión, Quito 2007. 8 Como puede ser de interés consultar para la consideración de este aspecto lo que hemos escrito sobre esto refiriéndonos a la filosofía, nos permitimos remitir a nuestros estudios: “Rumbos actuales de la filosofía. O de la necesidad de reorientar la filosofía” y “¿Qué hacer con la enseñanza de la filosofía? O de la necesidad de reaprender a enseñar la filosofía”, recogidos en nuestro libro: Filosofar para nuestro tiempo en clave intercultural, Aachen 2004, pp. 27-44 y 45-57 respectivamente. Culturas e Div. Religiosa.P65 57 21/10/2010, 14:18 4 IDENTIDADE CULTURAL E DESENVOLVIMENTO Antônio Sidekum1 Alguns Tópicos sobre a Definição de Cultura Ao tratarmos da natureza humana, encontramos, já na sua origem, um dado fenomenológico constitutivo. O homem se encontra desprovido para, naturalmente, poder sobreviver. Ele necessita aprender elementos para que tenha condições de sobreviver. A aprendizagem da cultura é possível por ser ele dotado de razão e de espírito. Assim, a natureza é espiritualizada e interpretada, a natureza do mundo é simbolizada pelo homem. Insere-se no conceito de cultura a concepção de um humanismo universal. O ser humano adota comportamentos diversos diante de uma mesma situação, pois o comportamento humano é aprendido e transmitido socialmente. Essa aprendizagem tem um caráter essencialmente inédito, dentro da natureza dos comportamentos, por ser social. O homem não vive predeterminado pelo instinto, o qual dotou, de maneira completa, a vida dos animais irracionais. O ser humano vem ao mundo despreparado para sobreviver; ele precisa aprender a viver. Com aprendizagem social, ele supera as situações que lhe são adversas para a sobrevivência plena. Aprendendo a viver, pode, também, aprender a viver melhor. Denominamos cultura todo o ato de aprender a viver e o processo de humanizar-se. Cultura passa a ser o processo de humanização. Assim, podemos definir a cultura como o modo de viver do ser humano. Pela cultura o homem supera o que lhe é dado pela natureza. Portanto, a cultura é todo o processo com o qual ele se transforma: a sociedade e o mundo material. O ser humano é compreendido como um ser em relação com o mundo, com o outro e com Deus. Mas o mundo não é para o homem apenas um dado vital, elemento imprescindível para a sua vida; é um mundo interpretado. A relação do homem com o mundo é uma relação simbólica, o mundo adquire um sentido por ser interpretado e transformado. Com isso, pode-se afirmar que a natureza se revela plenamente no ser humano através da força do espírito humano. O homem, no entanto, não se acomoda simplesmente ao meio natural, assim como acontece com os animais, mas é portador de uma capacidade que está fora do seu corpo. A capacidade para interpretar, para imaginar um modo de ser diferente do mundo natural tenta dar-lhe formas diferentes de crescer historicamente. O ser humano está ciente das limitações físicas diante da Culturas e Div. Religiosa.P65 58 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 59 natureza. Essa consciência de suas limitações físicas lhe possibilita criar ferramentas. Por meio dos elementos culturais e materiais, ele adapta o mundo a uma existência mais plena e lhe confere sentido. Pela cultura o homem assume conscientemente o mundo; a matéria do mundo é elevada a novas possibilidades. Essas possibilidades são históricas, são criadas pela tomada de consciência histórica das necessidades a serem satisfeitas em todas as suas exigências. A cultura tem um lastro social que é criado pela aprendizagem e pela transmissão dos conhecimentos adquiridos. No entanto, podemos observar e compreender um processo que se constituiu ao longo da história, definindo o modus operandi e a forma como muitos elementos constitutivos da cultura se criaram e foram inseridos nas tradições, construindo a identidade cultural. Esses elementos constitutivos da cultura são os diversos modos de pensar, a interpretação do mundo, a ideologia, a convicção política-ideológica, o processo tecnológico e econômico e a experiência religiosa. Essa confluência dos inúmeros elementos na história nem sempre foi harmoniosa ou pacífica. Muitas vezes, eram encontros perpassados pela violência e não permitindo um desenvolvimento naturalmente adequado. Há de se observar a existência de um processo conflitivo nas diversas etapas do desenvolvimento cultural ou nas constantes situações de contradição dialética que os variados processos de confluência cultural provocaram, tais como os grandes movimentos dos povos que migraram, saindo da suas terras, impulsionados pela pobreza e miséria material, em busca de uma terra feliz, com riquezas, causando prejuízo aos outros povos por onde passavam. Convém acrescentar aqui as conquistas operadas pelos impérios da Europa, causando destruições e mortes. A cultura compreende-se a partir da criatividade humana. Essa criatividade é sua característica fundamental. O caráter antropológico é a divisa que se estabelece com um mundo dado, que é contemplado pela admiração em virtude do espetáculo estupefaciente que ele provoca no ser racional. Além de contemplá-lo, o ser humano idealiza-o numa perfeição maior para o seu bem material e espiritual. O ser humano, face à consciência de seus limites físicos, da consciência do poder do espírito criativo e da necessidade que sente, precisa transformar o mundo em pressuposto radical para a sua sobrevivência. Em virtude de seus dons naturais, da fantasia, da imaginação e do uso de sua racionalidade como razão instrumental, é impulsionado a imaginar a natureza na possibilidade de ser transformada. Esse processo de idealizar uma transformação do mundo natural pode ser considerado, antropologicamente, uma segunda natureza, uma realidade como consequência da ideação. Com isso, quer-se dizer que a ideação é o poder que o ser humano cria a partir da imaginação, respondendo às necessidades físicas e sociais. Criando a partir da imaginação e das necessidades naturais, configura-se Culturas e Div. Religiosa.P65 59 21/10/2010, 14:18 60 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) o arquétipo do humano e de seu ethos cultural. A ideação já era um tema dos filósofos pré-socráticos, de Platão e Aristóteles, que lançaram as primeiras concepções de cultura, ou seja, a cosmovisão e a primeira experiência religiosa e teológica. Para efetivar-se aquilo que é concebido no mundo da ideação, em práxis, a manipulação da natureza, requer-se um novo processo de possibilidades: a técnica. A técnica implica o como do criar e do fazer uso de equipamentos e desenvolver as habilidades, o conhecimento para manuseá-los. O ser humano nasce com poucas habilidades e capacidades para criar seu mundo e transformar a natureza. Ele precisa aprender a técnica, precisa adquirir conhecimentos, aprender a pensar e a criar. É uma Paideia. Aprender e desenvolver pela educação suas habilidades técnicas e despertar para a tomada da consciência histórica. Mas a técnica recebe um ordenamento de poder, uma racionalidade concebida, um logos que, no sentido grego, é poder e uma forma de dominação que será concebia e utilizada na Modernidade. A tecnologia é concebida por muitos antropólogos como o fator constitutivo da civilização. A cultura expressa o desenvolvimento das habilidades cognitivas e espirituais do ser humano. Além da ideação do mundo, o ser humano é impulsionado para a transformação do mundo. Esse processo de transformação chama-se manipulação: atuar com as mãos, com instrumentos sobre o mundo para torná-lo mais adaptável, de modo a servir como um bem para a vida do ser humano. A tecnologia, para alguns antropólogos, é o grande fator que preenche o hiato entre a ideação e a manipulação. A tecnologia é também usada como fator indicativo de desenvolvimento. Ela sempre marcou um desenvolvimento cada vez mais inovador e revolucionário na história dos povos. Na atualidade, no entanto, caracteriza-se de maneira peculiar como fenômeno de libertação e também de dominação. É um fenômeno paradoxal do ser humano, pois, o conceito de desenvolvimento, tão proclamado por tantas autoridades mundiais, na década de sessenta do século passado, logo se apresentou como uma falácia que foi denunciada pela Teoria da Dependência. Assim, compreende-se o tema da cultura e desenvolvimento. A tecnologia no mundo da globalização da economia se caracteriza pela sua dependência ao poder econômico. O poder econômico possibilita uma inovação tecnológica sem precedentes. Houve uma mundialização do poder econômico. Ele é agora transnacional; é ele quem dita suas normas para que venham em defesa dos interesses políticos e, por sua vez, possibilite inovações tecnológicas sem concorrências. A tecnologia, o saber como fazer, é desenvolvida nas grandes empresas transnacionais, que em nada querem ficar devendo à ordem política de uma nação. Um forte poder econômico poderá destinar um alto valor em capital para a tecnologia de ponta, e, com isso, liderar econômica e politicamente o domínio atual. Culturas e Div. Religiosa.P65 60 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 61 No entanto, mesmo que a tecnologia venha, a cada instante, facilitar o bem-estar das pessoas, vem também ampliar o processo de comunicação em nossas comunidades, ou na chamada aldeia global. Através dessa perspectiva da tecnologia, veremos, por um lado, o benefício para que tenhamos mais tempo a contemplar, apreciar a arte e trabalhar menos, mas, por outro lado, pela nova situação da globalização do mercado, seremos submetidos a uma unidirecionalidade e a uma unidimensionalidade no modo de pensar e de ser social. Essa categoria da mundialização da economia modifica completamente os parâmetros da sociedade. Com isso, sofremos violentas modificações em todos os aspectos da sociedade contemporânea. A Crise da Identidade Cultural e Desenvolvimento A crise da identidade ocupou, muitas vezes, o centro dos grandes debates filosóficos, educacionais e psicológicos durante a segunda metade do século XX. Essa crise também teve sua repercussão na religião. A pergunta quem sou?, que é tão antiga quanto a tomada da consciência histórica pelo ser humano, é renovada, a cada período da humanidade, com novos desafios e confrontos em relação à identidade de cada pessoa. O tema da cultura não se restringe ao âmbito da identidade pessoal e interpessoal, mas chega a atingir a dominação política da cultura imperialista de uma cultura hegemônica sobre os grupos humanos. Isso por motivos políticos e financeiros, elevando-se a reais conflitos de civilização. Tais conflitos foram descritos como os choques das civilizações. Um fator saliente de nossa experiência atual de “identidade cultural”, pluralismo e globalização está na tensão que existe, por um lado, entre muitos líderes políticos e econômicos nos países do Atlântico Norte, e por outro, de muitos dos líderes e povos das mais tradicionais sociedades políticas e religiosas. A paz e o desenvolvimento humano do nosso mundo cultural, durante os últimos vinte séculos, dependeram largamente da capacidade e da boa vontade política dos líderes (políticos e religiosos) para encontrar bases que servissem de consenso à sua realização como tal e que, atualmente, são endereçados em nível mundial. Como primeiro passo para encontrar alguns exemplos do conflito entre essas diversas perspectivas, de emergência de significativo grau de consenso e concepção de desenvolvimento cultural equivocado, dirigimonos à Conferência Mundial de População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, em 1994, e seguimos para Beijing, onde, em 1995, realizou-se a IV Conferência Mundial das Mulheres. Os documentos de trabalho e de propostas para conclusões finais para ambas as conferências foram amplamente defendidos por líderes políticos do Hemisfério Norte, sendo marcados excessivamente por interpretações individualistas dos Direitos Humanos. Por exemplo, a aceitação do aborto como método de Culturas e Div. Religiosa.P65 61 21/10/2010, 14:18 62 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) planejamento familiar; os direitos dos teenagers de autoexpressão sexual, independente da anuência da responsabilidade familiar em seu desenvolvimento pessoal. No Cairo, as piores propostas iniciais foram derrotadas por uma coalizão entre nações do Hemisfério Sul, pelos países islâmicos e o Vaticano. Em Beijing, as piores propostas foram derrotadas por parte dessa coalizão e pelo apelo de agências governamentais e não-governamentais, representadas naquele Congresso Mundial. Também, em Beijing, os povos dos países europeus não sabiam o que seus governos estavam propondo no Congresso, nos diversos comitês em que eram apresentados projetos para o debate e aprovação, completamente opostos às constituições políticas de seus países no que diz respeito à família, por exemplo. A crise de identidade cultural toma, na atualidade, dimensões internacionais, assim como podemos observar nos dois Congressos Mundiais acima citados. Pois, nessas duas conferências, encontramos a afluência de representantes políticos de diversas nações e a presença de uma diversidade cultural com diferentes níveis de desenvolvimento econômico, tecnológico e social. No centro das inúmeras conferências que se realizam na atualidade estão as questões essenciais dos Direitos Humanos até a concepção do meio ambiente e diversidade biológica. É onde se desenrola o debate sobre a diversidade dos direitos morais e diferenças nas concepções morais que estão por trás da lei civil ou das tradições dos países. Esse consenso tem sido chamado, na sociedade ocidental, de “lei natural”. O impacto moral das propostas debatidas nas importantes conferências desde o século XX, como a criação da ONU, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outras, serve para tratar da perspectiva da identidade cultural e de seu desenvolvimento, sem, no entanto, excluir algumas dificuldades metalinguísticas e de falácias. Algumas hipóteses e aproximações são utilizadas aqui para o tema da identidade cultural e para, assim, delinear melhor as inquietações que surgem na prática. Essas inquietações são de ordem jurídica para muitos povos que se manifestam pela perda do direito a uma pátria, pelos “indocumentados”, pelas novas formas de escravidão etc. Alejandro Serrano Caldera (1998, p. 15) aponta para as seguintes hipóteses e aproximações: Toda cultura é síntese. Nossa cultura é uma contradição sem síntese; uma continuidade de rupturas sem restauração, uma estrutura de superposições. Existe um processo de identidade em marcha que se manifesta na arte, na simbologia, no imaginário religioso e na literatura. Este processo de identidade não acontece no âmbito jurídico e políticosocial, onde melhor se apresenta a contradição entre o mundo real e o mundo institucional. Culturas e Div. Religiosa.P65 62 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 63 Pelo estudo da antropologia cultural, aprendemos que a cultura como síntese se produz quando existe grande afluência de povos na história da civilização. Lembramos os clássicos textos de Norbert Elias (1976) e de Darcy Ribeiro (1979) que se têm ocupado do processo da civilização. O processo civilizatório aconteceu pela convergência de povos diferentes, mesclando suas diferentes linguagens, concepção religiosa, artística e tecnologias. Dessa convergência sempre resultará uma novidade cultural, que, muitas vezes, é uma expressão qualitativamente nova. Assim, podemos falar de uma situação concreta de nossa história cultural, desenvolvida num processo do contexto universal e particular, levando-se em consideração a experiência de identidade e da autenticidade. O humanismo, que está implicado na concepção da autenticidade e da identidade cultural, está também inserido na derivação de um projeto cultural que tem a educação como implícita, pois a cultura trata dos seres humanos concretos, de carne e osso, de uma humanidade de milhões e milhões de rostos diferentes uns dos outros, mas precisamente sempre iguais, no que tange ao seu comum direito para ostentar as próprias peculiaridades, iguais em seu comum direito de ser diferente. Por um lado, proclamamos o direito à diversidade cultural e ao desenvolvimento das potencialidades humanas para a plenitude da felicidade. Por outro, para o conceito de cultura trata-se de uma humanidade em plural, que existe somente no plural, e de um humanismo que reside basicamente no reconhecimento e no respeito ao pluralismo das manifestações humanas. O ser humano como valor universal, que se manifesta na linguagem, política, economia e religião. Notas 1 Doutor em Filosofia pela Universitat Bremen. Professor titular da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas. Diretor da Editora Nova Harmonia. E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre JOU, 1977. ELIAS, Norbert. Über den prozess der zivilization. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976. RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. Petrópolis: Vozes, 1979. SERRANO CALDERA, Alejandro. La unidad en la diversidad. Manágua: Ediciones Progreso, 1998. Culturas e Div. Religiosa.P65 63 21/10/2010, 14:18 5 DA RELIGIOSIDADE DE LIBERTAÇÃO AO TEXTO E À OPRESSÃO Luiz José Dietrich1 Celso Kraemer2 Introdução O presente texto parte de um dado histórico que parece perfazer um ciclo comum às três grandes religiões, a de Moisés (Hebraica), a de Jesus (Cristã) e a de Maomé (Islã). Tal ciclo se configura por uma espécie de tríade. Segundo o que foi levantado na primeira parte do trabalho, o início de uma religião está relacionado a práticas comunitárias, no meio popular, muitas vezes por circunstâncias de sofrimento, de exploração ou de opressão. Com o desenvolvimento das comunidades ocorreu uma estratificação da sociedade em distintas classes sociais. Com isso a religiosidade de resistência e de libertação da comunidade é absorvida por grupos sociais dominantes, que a integram a seu projeto de poder, tornando-a a sua religião oficial, passando, então, a ser obrigatória à comunidade. É nesse momento que se constitui o texto escrito e os preceitos doutrinários que, obviamente, recolhem e conservam os discursos e práticas de libertação tanto quanto os discursos e práticas de dominação. Com breve retomada histórica do percurso da religião dos hebreus e dos cristãos - localizando os momentos em que ela apresentou-se como religião de libertação -, da religião integrada a grupos de poder, do aparecimento do texto escrito e da doutrina da obrigação, pretende-se indicar a modalidade de religião que acompanhou a ocupação da América Latina, muito mais religião e Deus da dominação do que de libertação. Salienta-se, entretanto, que, na América Latina, a partir da segunda metade do século XX, reaparecem diversas manifestações, no meio popular, da religião de libertação. Quais os fatores sociopolítico, econômico e antropológico a propiciar esse acontecimento, após quase 500 anos de ocupação, expropriação, dominação e opressão? Que lições, em termos históricos e de perspectivas futuras, esse acontecimento nos mostra? Quais os significados desse acontecimento para novos modos de ser e de fazer religião na América Latina? Indicaria ele uma abertura para um diálogo entre diferentes igrejas? Mais profundamente ainda, poder-se-ia apostar em um novo modo de se compreender, em sentido conceitual e antropológico, as diferentes manifestações religiosas entre os povos submetidos à religião dos conquistadores? Qual a importância de uma compreensão crítica da ambiguidade entre a prática religiosa aliada ao Culturas e Div. Religiosa.P65 64 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 65 poder ou à resistência para a modalidade de ensino religioso escolar? Em que medida o diálogo entre igrejas e entre religiões fortalece a dominação ou favorece a resistência e a libertação? Até que ponto o aparecimento da Ciência da Religião denota um momento histórico em que se produz um novo texto, de intelectuais e acadêmicos, na lógica de religião a serviço de grupos de poder que querem legitimar-se, disseminando um discurso apaziguador e unificador, minimizando o vigor de resistência e de libertação que se fomenta na religião viva, praticada pelas comunidades? Até que ponto o Esclarecimento é, por si mesmo, uma forma de colonialismo e dominação? 1 A Religião e sua Consciência Crítica As culturas produziram as religiões. Estas respondem a necessidades fundamentais da humanidade. Elaboraram maneiras de enfrentar as questões existenciais da humanidade: de onde viemos? Porque vivemos? O que acontece conosco ou para onde iremos após a morte? Existe algo que interfere em nossas vidas pessoais e coletivas? As religiões ajudam as culturas a elaborarem sentidos para sua existência, de forma a permitir a convivência social, a fornecer identidade e dignidade para os indivíduos e os grupos humanos, em sua vida cercada de incertezas e mistérios. As religiões nascem e se desenvolvem a partir de práticas e propostas significativas para um determinado grupo de pessoas. Aparecem como uma coisa boa. Nascem de uma experiência de vida, de promoção da vida, de resgate da dignidade, de libertação ou de paz e salvação. Surgem possibilitando uma elevação do patamar da qualidade de vida. Mas, se é assim, por que a história nos relata tantas violências, massacres e tantas guerras promovidas em nome de religiões? Aqui, não estamos pensando nem abordaremos todas as religiões de modo genérico. Trataremos, principalmente, de duas, das três principais religiões de matriz semita e que estão próximas de nós: Judaísmo e Cristianismo. Por dois fatores não contemplamos o Islamismo, mesmo admitindo sua vital importância na nova ordem geopolítica da atualidade: ele não teve papel determinante na ocupação da América Latina, enquanto religião a serviço da dominação; a necessária economia do texto, para não se tornar inviável ou demasiadamente superficial naquilo que o presente trabalho se propõe. Segundo esses mesmos critérios, igualmente não serão diretamente abordadas as religiões dos povos nativos do Brasil e do continente americano, nem as religiões africanas e afro-brasileiras. Mas podem ser consideradas indiretamente, já que, muitas vezes na história, foram atacadas e suas culturas e seus povos foram destruídos por representantes, principalmente, do Cristianismo. Culturas e Div. Religiosa.P65 65 21/10/2010, 14:18 66 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Se as religiões nascem como coisas boas para o povo, como “boas notícias”, o que acontece no desenvolvimento e na compreensão das religiões para que elas passem a legitimar ataques, violências, guerra, destruição e até extermínio de outros povos? Geralmente nos referimos às manifestações mais radicais, como “fundamentalismos”. Importante termos em mente que nem todo fundamentalismo se expressa de formas truculentas e agressivas. Ao falar de fundamentalismo, devemos utilizar o conceito no plural, uma vez que “existem diferentes fundamentalismos conforme os diferentes contextos culturais e religiosos em que nasceram e actuam os movimentos, grupos e organizações extremistas” (PACE e STEFANI, 2002, p. 15).3 Deve-se alertar ainda para um possível equívoco epistemológico. Em primeiro lugar, é necessária uma tomada de posição no sentido epistemológico. As religiões precisam ser compreendidas, também pelos seus próprios membros, de forma crítica, assumindo, conscientemente a evidência de que o ser humano em nenhum nível, tampouco em nível de conhecimento pode pretender ser o sujeito possuidor de um ponto de vista absoluto. Essa pretensão é absurda e contraditória. A condição insuperável da finitude faz dela uma ilusão impossível. [...] Na religião, como em qualquer outra área da experiência do conhecimento do ser humano, a finitude humana significa um “estar” obrigado ao exercício ou para a práxis da tolerância, que é também um exercício da escuta e da tolerância do outro. (FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 12). Fornet-Betancourt, na mesma linha, argumenta ser um dado histórico inequívoco o fato de que toda a cultura desenvolva sistemas referenciais próprios que se condensam em tradições que, por sua vez, sirvam como fronteiras para tudo o que resulta familiar e compreensível no interior dessa cultura. Não obstante esse fato de que uma cultura possa prover o ser humano que nela nasce de um horizonte com sentido, não suprime a condição de finitude. Esse horizonte é o horizonte de um ‘umbral’ cultural, quer dizer, da ‘fronteira’ traçada pelas experiências de um grupo humano. Por isso, nenhuma cultura pode pretender ignorar essa condição da finitude, e elevar sua tradição, seus sistemas de referências etc. à categoria da tradição humana sem mais. Nenhuma tradição humana pode dizer de si mesma que é a tradição humana. (FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 12). Uma das causas da intolerância e da violência legitimadas com leituras para a guerra de seus referenciais religiosos é, sem dúvida, o esquecimento desta condição, principalmente no discurso que impera em largos setores das três grandes religiões acima mencionadas. No caso do Cristianismo, isso acontece também porque “o Ocidente, a partir de sua expansão sistemática desde 1492, não se entende como uma região, mas como eixo da história universal, e confunde, desde então, o universal com sua própria tradição” (FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 13). Mas outra causa está relacionada com a posse de um livro sagrado, considerado “a Palavra de Deus”, e ao qual se faz constante referência. Culturas e Div. Religiosa.P65 66 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 67 2 Livro Sagrado: Livro que Salva, Livro que Mata O que se verifica nas três religiões é que elas possuem um livro sagrado, uma Palavra de Deus. Por isso, são também conhecidas como “religiões do livro”. Ao longo de suas histórias, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo elaboraram livros. Em determinado momento, esses foram ungidos com caráter de santidade e foram instituídos como livros sagrados. Este é um aspecto importante: livros, mesmo que escritos por uma única pessoa, são obras polissêmicas, abertas a várias possíveis linhas interpretativas. Quanto mais o serão a Bíblia Hebraica, a Bíblia Cristã e o Alcorão um trabalho redacional dividido entre incontáveis autores, redigidos em períodos que variam entre meia centena de anos (Alcorão), mais ou menos três séculos (Bíblia Cristã) e quase um milênio (Bíblia Hebraica). Além disso, no círculo hermenêutico, devem ser consideradas também todas as possíveis contextualizações a partir das quais esses textos são lidos. Assim, um livro como o Alcorão, por exemplo, pode ser lido como um texto que fala de Deus e das coisas que um ser humano tem que fazer para estar em harmonia com Sua vontade; como um código normativo válido para as organizações sociais; como um texto de Antropologia e de Cosmologia; como um tratado de Filosofia da história; e, por fim, como o código lingüístico fundamental da nova língua, o árabe (ARKOUN apud PACE, 2005, p. 84-85). Mas a existência de um livro sagrado e a relação muito específica que se estabelece entre o crente e o livro é um aspecto decisivo. Pois, a existência de um livro sagrado e a relação particularíssima que vem a se criar entre o crente e o livro são aspectos que contribuem decididamente para uma definição mais precisa do perfil desse movimento religioso. De fato, só podemos falar de fundamentalismo quando estão presentes os seguintes elementos: a) crença no princípio da inerrância do conteúdo do livro sagrado, sendo este último assumido no seu todo como uma totalidade de sentido e de significados que não podem ser seleccionados (eliminando, por exemplo, as partes mitológicas e aceitando as que apresentam, simultaneamente, uma validade histórica e universal) e interpretados livremente pela razão humana sob pena de uma deturpação da verdade que o livro sagrado contém; b) assunção do princípio da astoricidade da verdade e do livro que a conserva; astoricidade significa que a razão não tem poderes para perspectivar historicamente a mensagem religiosa nem deve ousar adaptá-la às novas condições que se vão produzindo no decurso dos tem-pos; c) baseado nos dois anteriores princípios, a crença de que é possível deduzir do livro sagrado um modelo integral de sociedade perfeita — superior a qualquer forma de sociedade humana existente, conforme o princípio da superioridade da lei divina sobre a lei terrena, pois a soberania política é legitimada somente pela soberania divina; d) por fim, a referência a um princípio absoluto estimula a imaginar a possibilidade de decalcar a «cidade terre-na» sobre o modelo ideal de Culturas e Div. Religiosa.P65 67 21/10/2010, 14:18 68 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) sociedade apresentado no livro sagrado, numa tensão entre o presente e o passado que atribui ao primado do mito da fundação da identidade de um grupo, ou de um povo inteiro, a função simul-tânea de assinalar o caráter absoluto do sistema de crenças a que cada crente deve aderir e o sentido pro-fundo de coesão que une todos aqueles que a ela per-tencem (a ética da fraternidade) (PACE; STEFANI, 2002, p. 20-21). Essa longa citação se impôs, porque, segundo Pace e Stefani, “estes quatro elementos constituem as características distintivas do fundamentalismo e, por isso, podemos assu-mi-los como quadro que permite uma definição suficien-temente ampla, capaz de abarcar as várias formas do fenô-meno em questão.” (PACE e STEFANI, 2002, p. 21). 3 Livro Sagrado: Antes de Tudo, Fruto da História Humana Acontece que esses livros permitem leituras para a paz e leituras para a guerra, pois são fruto da história humana e são, por isso, marcados pelas virtudes e pelas sombras, pelas aquisições e pelas destruições da humanidade. Assim, leituras para a guerra são também possíveis, porque, já no próprio processo de constituição, tanto das religiões como de seus livros, em certos estágios sofrem forte influência de determinados grupos sociais que as integram em um projeto de poder. Num primeiro momento, as religiões existem no meio do povo, como tradição oral, viva na memória, nas histórias, nas práticas e nas instituições de suas sociedades. Nesse momento ainda não estão ligadas a estruturas estatais, monárquicas e/ou imperiais; organizações populares ainda as controlam. Só depois são integradas à organização sociopolítica de um estado e/ou império que, às vezes, inclusive se constitui no principal sujeito controlador da religião. Somente nesse estágio começam a ser codificadas em textos escritos. A religião que circulava entre o povo nas tradições orais torna-se livro. Nessa forma, torna-se lei do rei, do estado, do imperador e desempenhará outros papéis. Será orientada por uma hermenêutica do poder e para o poder. É claro que a codificação escrita não faz desaparecer a religião viva nas histórias orais e na memória do povo que a instituiu antes da escrita. Essas duas formas da mesma religião coexistem, não só no meio do povo, mas também no corpo dos escritos. Coexistem nos textos, ora colidindo, ora competindo, ora excluindo uma à outra. Coexistem, porque o livro, para ser sagrado, precisa nutrir-se do sagrado instituído antes pelo povo, precisa permitir que o povo se reconheça e se identifique com a palavra escrita. Do contrário, não terá a força almejada. Assim, os textos sagrados e a história das grandes religiões são como que atravessados por dois riachos de águas abundantes. De um deles se tiram águas para a guerra, do outro, porém, tiram-se águas para a paz e para a vida. Culturas e Div. Religiosa.P65 68 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 69 4 Uma Nova Experiência de Deus No caso da religião de Israel, embora seu livro sagrado inicie com a narrativa da criação do mundo, do surgimento do povo e da fé de Israel, está ligado com o que ficou conhecido como o Êxodo: a libertação dos escravos da opressão do faraó do Egito. Hoje se sabe que o grupo dos escravos que se libertaram da opressão egípcia não foi tão grande como se pode inferir de uma leitura mais apressada e superficial dos textos bíblicos – que fala em 600.000 homens, sem contar as mulheres e crianças, além de uma mistura de gente (Ex 12, 37-38) – e que essa história apresenta-se engrandecida, inchada por conter, nas linhas e entrelinhas, muitas outras histórias de opressão e libertação. A história dos escravos tornou-se o paradigma preferido para denunciar processos de opressão e para contar experiências de libertação. Assim, no que hoje conhecemos como o “Êxodo”, temos, por exemplo, também a experiência dos milhares de camponeses cananeus, e de muitos clãs de pastores seminômades que se libertaram da exploração a que duplamente estavam submetidos nas mãos dos reis cananeus, sob o poder do império egípcio. Estes, sem nunca terem pisado no Egito, também foram libertados da opressão egípcia, pois a terra de Canaã estava submetida ao império dos faraós. Diversos grupos que viveram essa experiência de resistência e libertação, não sendo ainda monoteístas, interpretaram-na como fruto da intervenção de um de seus muitos Deuses e Deusas. Descobriram, na experiência de libertação, um rosto de Deus completamente diferente dos outros rostos conhecidos. O rosto de um Deus dos oprimidos, que vê a miséria, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para os libertar (Ex 3,7-8). Para uns esse Deus foi Elohim (Ex 3,6; cf. Gn 31,53); para outros, foi El Shadai, o Deus das Estepes ou o Deus das Montanhas (Ex 6,3 cf. Gn 17,1). Para os escravos do Egito, parece ter sido o Deus dos Hebreus, sendo que aqui “hebreu” não tem ainda a conotação racial de “descendente de Abraão”, que terá no pós-exílio, mas é a transliteração hebraica da palavra Hapiru, que designa a condição social de gente marginalizada. E para muitos dos camponeses cananeus, este deus foi El, o Deus supremo do panteão cananeu (Nm 23,22; 24,8; cf. Gn 33,20; 35,7). Essas leituras teológicas elaboradas por sujeitos de processos de resistência e de libertação originam uma teologia radicalmente diferente das teologias conhecidas na época. Predominavam as teologias oficiais dos reis cananeus, dos faraós egípcios que mostravam as divindades hierarquizadas, com as grandes e poderosas divindades sempre apoiando reis e faraós. Não se conhecia nenhum Deus libertador nas teologias até então. Os escravos do Egito, pastores seminômades e camponeses cananeus são os portadores dessa revelação: Deus é contra a opressão e a exploração. Dentre a diversidade de suas divindades, descobriram um rosto de Deus que milita para libertar os oprimidos. A experiência e a integração desses vários grupos constituirão Culturas e Div. Religiosa.P65 69 21/10/2010, 14:18 70 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) o primitivo Israel, que se consolidará num processo de, mais ou menos, dois séculos, integrando e controlando as estruturas das cidades-estado cananeias sob a hegemonia dos camponeses cananeus libertos, estabelecendo uma sociedade tribal. Nas tribos, a terra e o poder são partilhados, as relações são mediadas por leis coerentes com a teologia dos rostos libertadores de Deus, leis que impedem o acúmulo de terras e bens, impedem a opressão e a exploração, promovendo a solidariedade. 5 A Monarquia Apropria-se do Deus dos Camponeses Israel tribal existe, sem poder centralizado, do ano 1250 ao ano 1050 a.C. A partir de então, entre 1050 e 950 a.C., os processos de acumulação de riquezas e poder militar rompem com a sociedade tribal, fazendo surgir uma elite que institui a monarquia e consolida as relações assimétricas. Pela longa duração desse processo, podemos ver que ele não aconteceu sem resistência. A monarquia significa uma centralização de poder, explorando o trabalho e a produção dos camponeses. Estes são obrigados a entregar parte de sua produção agro-pastoril, bem como suas filhas e filhos para trabalharem nas obras e guerras decididas pela corte (1 Sm 8,11-17). Tal modificação no espaço social exige uma legitimação. Esta é projetada e executada no concurso de algumas técnicas próprias ao poder: construção de suntuoso templo ao Deus libertador, na antiga cidade cananeia de Jerusalém; codificação de uma teologia, de uma espiritualidade e de uma liturgia oficial, constituídas a partir do culto mais importante entre as tribos, o culto ao Deus YHWH. Após esse feito, Israel terá duas principais vertentes teológicas: a vertente provinda da libertação e da partilha da terra, viva na memória, nos diversos santuários e cultos tribais, entre as organizações camponesas que, de tempos em tempos, é retomada e reapresentada pelos profetas; outra, a vertente da teologia oficial da corte e do templo de Jerusalém, dos sacerdotes, escribas e funcionários do rei. Somente a partir da instalação da monarquia, principalmente com Davi e Salomão, que a Bíblia começará a ser escrita. Essas duas teologias estão entrelaçadas nos textos sagrados do Judaísmo. 6 O Texto Cristão Algo semelhante sucede no movimento de Jesus. Jesus, como reformador da fé de Israel, busca resgatar os princípios e as práticas que deram origem ao povo de Israel. Inspira-se na vertente popular, do Deus libertador do Êxodo, da partilha da terra e do poder experimentado no tribalismo, presentes nas mais genuínas tradições de Israel. Aliado ao discurso dos profetas de Israel, busca superar o legalismo, o ritualismo que se haviam instalado em Israel. Resgata as práticas de solidariedade, Culturas e Div. Religiosa.P65 70 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 71 acolhendo pessoas pobres, doentes que, por serem consideradas impuras, eram excluídas do convívio social. Ataca as elites que se autolegitimavam como justas, puras e cumpridoras da vontade de Deus. Anuncia o julgamento de Deus para as elites e o Reino de Deus para os pobres. Seus seguidores, organizados em pequenas comunidades domésticas, nas periferias das grandes cidades do império romano, traduziram a proposta de Jesus para seu próprio contexto, criando comunidades de partilha do pão, resgatando a dignidade dos pobres, dos sem-terra, sem-lugar, semcidadania, sem-liberdade. Comunidades se reuniam em torno de mesas onde se desfaziam todas as hierarquizações e discriminações, tanto nas comunidades judaicas mais tradicionais, como na sociedade greco-romana em geral. Ali, já “não se distingue mais o judeu do grego, o homem da mulher, o senhor do escravo” (Cf. Gl 3, 27 e 28). A mesa do pão partilhado, em nome do Pai e do Filho, torna, a todos, irmãos no mesmo espírito do Deus libertador. A partir dela, cresce uma ética que deve invadir todas as relações que perfazem o cotidiano dos que seguem Jesus. Começam a viver concretamente, aqui e agora, os sinais do que será o Reino de Deus. Assim, o Cristianismo cresce e se espalha pelo império. Para reforçar e defender essa prática, surgem os escritos que comporão o Novo Testamento. Porém, no Cristianismo, emparedado pelas perseguições do império romano, no final do primeiro e no segundo século, crescem algumas correntes que acentuam o patriarcalismo, a hierarquização, o espiritualismo e o ritualismo, onde a ética que o distinguia do império se desvanece. Tais correntes, que já eram frequentadas por muitos poderosos, estão prontas para aceitar o imperador em seu meio. Assim, certa linha do Cristianismo, mais ou menos em torno do ano 400 d.C., torna-se a religião oficial do império romano. A partir dessa aceitação, começamos a ter também duas formas de ver o Cristianismo. Uma mais coerente com o caminho apontado por Jesus e trilhado pelas primeiras comunidades; outra, organizada, instituída e integrada a partir do projeto de poder do império romano. Um pouco diferente do processo do Judaísmo é a questão dos escritos. Os escritos do Novo Testamento, a essa altura, já estavam elaborados. Mas a influência de Constantino se fará sentir na definição do Cânon cristão, na ordem dos livros, principalmente na estruturação do poder e da hierarquia dentro da igreja romana, bem como na elaboração da teologia e da dogmática cristã e na codificação doutrinal que se fará nessa nova perspectiva hermenêutica. Essas duas vertentes perpassam o Texto e adentram na história cristã. Numa alinham-se os profetas, Jesus e a fraternidade da mesa partilhada na igreja primitiva; da outra provêm a exigência do sacrifício, das oferendas e tributos, o legalismo e o ritualismo que excluem os pobres e beneficiam e justificam as elites. Embora se refiram a um mesmo Deus, os conflitos revelam que se trata de Deuses diferentes: o Deus do dever e da submissão e o Deus da resistência e da libertação. Culturas e Div. Religiosa.P65 71 21/10/2010, 14:18 72 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 7 A Ocupação da América e a Igreja Sabe-se que a igreja aliada ao império romano acabou por se instalar no próprio império, fazendo surgir o Sacro Império Romano. Foram mais de mil anos de religião oficial, instalada no coração do poder político e econômico, estendendo seu domínio por quase toda a Europa. Foi a fase em que a Igreja (cristã) mais foi pecadora: assassinatos, execuções até sumárias, domínio do campo científico, intelectual, moral, militar, conquistando e dominando comunidades e povos através das mais diversificadas estratégias. Remonta, inclusive, a essa época uma das ferramentas mais usadas pelo capitalismo contemporâneo, a propaganda, que significava propagar a mensagem de Deus, a libertação dos povos pela Verdade. Obviamente que se tratava, na maioria dos casos, do Deus da obrigação e da dominação, aliado aos mais íntimos desejos de poder e domínio que se fomentaram ao longo do Sacro Império Romano. Nesse longo período do Deus da dominação e da conquista na Europa, não deixou de aparecer o Deus da resistência e da libertação em comunidades que se formavam às sombras do Império. Seguindo sua estratégia geral, tais comunidades foram declaradas heréticas e, sistematicamente, perseguidas e aniquiladas, para que a Verdade (do poder) pudesse brilhar. À época da ocupação e conquista da América, foi o modelo do Deus da dominação que acompanhou o transplante da religião para as novas terras. Foi a religião da dominação que fomentou as ações da Igreja sobre os povos, conquistados e dominados com sua colaboração. Libertar os povos conquistados de sua religiosidade pagã, primitiva e trazê-los para a verdadeira religião. Os religiosos não só acompanhavam a conquista oficial dos governos, mas eles, por conta própria, embrenhavam-se nas florestas, contatando e conquistando novos grupos, constituindo comunidades que, em certo sentido, eram de resistência à ocupação oficial, mas não deixando de ser conquista e submissão à Igreja, através das técnicas de imposição cultural e de conversão à Verdadeira religião. Esse processo de conquista e extermínio do Outro se estendeu por quase 500 anos, em todo o território da América. Em nome de quê? Em nome da Salvação, da Verdade e da Liberdade que a religião da conquista e da dominação prometia. Houve, é verdade, algumas vozes discordantes, mas estas somente fizeram eco nas paredes e em alguns poucos corações sensíveis aos gritos dos povos dominados. É nesse contexto que, na segunda metade do século XX, ressurge o outro Deus, o Deus da resistência e da libertação. Quais causas tornaram esse acontecimento possível? É difícil, quando não impossível, determinálas todas, exaustivamente. Mas não se deve perder de vista o significado desse acontecimento: ele modificou profunda e definitivamente a Verdade do Poder. Mesmo considerando-se as dificuldades em determinar as causas exatas, arriscamo-nos a indicar alguns fatores relevantes, em diferentes Culturas e Div. Religiosa.P65 72 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 73 frentes da atividade humana. Em princípio, a significativa produção intelectual dos três mestres da suspeita que, no sentido dos fundamentos da Verdade, promoveram uma abertura ao terreno maciço da verdade aliada ao poder: Marx, Nietzsche e Freud. Suas investigações, movidas por novos fundamentos do pensamento, mostraram que somos, essencialmente, seres históricos, mergulhados no mundo, condição a partir da qual somos obrigados, por nossa condição antropológica, a dar a nós mesmos nossa própria verdade. Mostraram ainda que a verdade não é uma revelação pura e desinteressada do intelecto humano. Ao contrário, a verdade se produz a partir de condições estratégicas de poder e sempre traz a marca dessas condições. A verdade não só é fruto de condições específicas de poder, como também promove sua extensão e permanência a partir das condições de poder. Mesmo a verdade da resistência e da libertação não deixa de refletir essa condição, em que grupos ou comunidades tomam ciência desse caráter da verdade e organizam-se para refutar a verdade da dominação e gerar uma nova verdade libertadora, sem opressão. Alertaram-nos ainda de que a verdade pode, também, resultar de alienação antropológica ou de modos inconscientes da “razão” consigo mesma. Além dessas obras singulares, os acontecimentos históricos da Europa, como a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais; o Holocausto, no Nazismo; a fragmentação do conhecimento e da verdade; e a Revolução Socialista são relevantes enquanto deslocamento definitivo dos discursos homogêneos da verdade. À esteira desses pioneiros, há múltiplas formas de produção intelectual pautadas na necessidade de rever e mudar o curso das práticas humanas. Entre esses se podem destacar alguns, como Heidegger, Levinas, Gramsci, Apel, Casalla, Alberdi, Leopoldo Zéa, Dussel, Fornet-Betancourt, Frei Beto, Leonardo Boff, Paulo Freire, entre muitos outros. Outro fator relevante é o surgimento, nos anos de 1960-1970, da noção de subdesenvolvimento, gestado na Teoria da Dependência. Essas novas leituras da condição geopolítica-econômica do mundo mostraram que a suposta superioridade do Primeiro Mundo não reside na superioridade antropológica ou intelectual, mas está construída sobre um rigoroso sistema de dominação intelectual, moral e, essencialmente, econômica. Os países do centro constroem sua superioridade através da exploração dos países periféricos. Eles são ricos às custas de nossa pobreza. Essa lição foi fundamental para o aparecimento do que é conhecido por Filosofia da Libertação, Pedagogia da Libertação, Teologia da Libertação. A grande novidade dessa nova maneira de inserir-se na produção social da verdade é que elas, além de incorporarem, já em sua origem, as implicações políticas e econômicas da verdade, asseguram um novo estatuto ontológico aos excluídos. Os excluídos, os miseráveis, os explorados do mundo não precisam esperar que o explorador venha os libertar, através de sua verdade dominada. A libertação, em verdade, só pode provir do excluído. É dele que deve provir a nova verdade, não mais de dominação, mas de libertação. Além disso, ela se ergue contra as formas de dominação e opressão, mas Culturas e Div. Religiosa.P65 73 21/10/2010, 14:18 74 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) não necessariamente contra as pessoas. Uma mostra disso é a produção intelectual do “Seminário Internacional do Programa de Diálogo entre Ética do Discurso e a Filosofia da Libertação”, agregando pessoas da América Latina, da Europa, dos Estados Unidos, Canadá etc. Junto a esse significativo movimento no terreno do pensamento e da verdade, ocorre um número significativo de práticas populares, às vezes, por iniciativa de lideranças comunitárias locais, e outras vezes, com a participação ativa de agentes formados nessa nova maneira de ver o realhistórico. Se o reaparecimento da religião da resistência e da libertação não pode ser indicado pelo significativo movimento que se desenvolveu no espaço do pensamento, pois trairia a ideia mesma de religião comunitária, popular, com sua força de resistência contra a dominação e sua força libertadora, é justamente no espaço das práticas comunitárias, em grupos periféricos que ressurge a virtude de um Deus libertador, animando e fortalecendo as ações coletivas, agregando a energia e a esperança de uma vida comunitária, igualitária, um Deus da Vida que reúne as pessoas ao redor de uma mesa para a partilha, e não para a doutrina e a submissão à verdade conquistadora. Mesmo que, em um primeiro momento, essa vivência comunitária se dê no interior de igrejas específicas, ela gesta uma nova semente para o diálogo. Pelo fato de ser uma experiência de resistência e oposição à verdade dominante, a serviço do poder, seu fundamento não está na vontade de dominação, mas no desejo de liberdade em condições de igualdade. Com isso, sua mirada não está em Propagar A Verdade, mas instituir condições para novas práticas da verdade (talvez, seja melhor usar o plural, novas práticas das verdades, uma vez que se aceita, já na origem, as imbricações entre formas da verdade e práticas de poder). O elemento agregador, nessas comunidades, é a experiência de sofrimento que a exclusão, a exploração e a dominação promovem. Percebeu-se, com essa nova leitura, que a opressão não está localizada em uma igreja específica, mas é uma experiência comum às diferentes comunidades pelo mundo, independente da religião a que estejam filiadas. Esse ensinamento produz uma disposição de espírito ao diálogo, à troca, à solidariedade, podendo ser força-motriz para romper barreiras “igrejistas”, facilmente suplantáveis quando o que está em causa é o combate ao sofrimento e à submissão. Junto à solidariedade no combate à injustiça, entre os engajados nessa nova prática religiosa, adveio uma forma de solidariedade entre diferentes religiões, disposta a respeitar as diferenças, sem o histórico confronto entre a verdade de uma e de outra, sobre qual delas deteria o verdadeiro Deus. Percebeu-se que essa disputa era fomentada pelos Deuses da dominação, os Deuses aliados às práticas de poder (que são múltiplos, pois múltiplos são os grupos desejosos de poder). Uma nova consciência instaurou-se no âmago das práticas religiosas de resistência e de libertação: a consciência de que o Deus da libertação é um só, mostrandose de maneiras diferentes, conforme a experiência cultural da comunidade que o invoca. Culturas e Div. Religiosa.P65 74 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 75 Uma última interrogação nos persegue, antes de concluir este texto. Tendo-se em vista que a Iluminação da Verdade, o “critério ‘iluminador’ sobre os povos periféricos” (GONZALEZ, 1994, p. 188) foi o motor do Colonialismo e do Neocolonialismo, responsáveis por tanta violência, submissão e extermínio, cabe perguntar o que está ocorrendo nesse momento histórico, com a novidade que desponta a partir do que se vem chamando de Ciência da Religião. A noção de ciência implicada nesse conceito poderia ser um apelo à iluminação que o pressuposto científico contém? Não se estaria pretendendo esclarecer as comunidades acerca de uma nova verdade, não mais religiosa, mas científica, acerca do fenômeno religioso, conforme ocorreu ao longo do século XIX, em diferentes espaços da vida social e coletiva? Quais os pressupostos que fizeram aparecer a Ciência da Religião? Em que contexto geopolítico ela apareceu? A que, exatamente, destina-se a Ciência da Religião? Quais as práticas que a legitimam, enquanto vivência junto às comunidades do Deus da resistência e da libertação? Poder-se-ia supor que as condições de aparecimento da Ciência da Religião localizam-se junto à preocupação de uma das formas do poder dominante, desejoso de combater a força que a vivência religiosa nas comunidades constitui, parecendo-lhe uma ameaça à dominação? O discurso acadêmico pode legitimar tanto as forças de dominação e opressão quanto as forças de resistência e de libertação. Sabe-se que grande parte dos intelectuais e pesquisadores aliados à religiosidade popular, de comunidades de resistência, encontra espaço para atuar concretamente na formação de profissionais para o ensino religioso escolar, justamente nos cursos de Ciências da Religião. Portanto, não é das pessoas e de sua boavontade que se está falando, mas do projeto em si, que fez aparecer as Ciências da Religião. É possível que, ao pretender libertar do dogmatismo o ensino religioso escolar, estejamos escrevendo um novo texto a serviço das novas tecnologias do poder de governar populações, o que Foucault (1999) chamou de biopoder. Não temos resposta a essas interrogações, apenas contribuímos com a colocação da questão, levando-se em conta o ciclo: vivência comunitária; estratificação da sociedade; apropriação da religiosidade das pessoas por parte do grupo dominante, integrando-a ao seu projeto de poder; escritura do texto; retorno à comunidade em forma de doutrina (agora seria uma doutrina científica, esclarecida). Concluindo Para um mundo de convivência fraterna entre os povos, onde predominem as leituras dos textos sagrados para a paz, muito ainda há por avançar. É claro que não é só uma questão de mudança de hermenêutica, mas, sem dúvida, essa mudança é fundamental. Igualmente, uma autocompreensão menos arrogante, historicamente situada, de nossas Culturas e Div. Religiosa.P65 75 21/10/2010, 14:18 76 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) tradições religiosas, o reconhecimento dos erros e um pedido de perdão pelas violências cometidas. Entretanto, a efetividade dessas atitudes se verificará com o desmantelamento das estruturas e doutrinas que tornaram possíveis e aceitáveis as violências no passado. Se esse desmantelamento não ocorrer, o pedido de perdão será inócuo, pois as atitudes violentas continuarão aninhadas nos velhos suportes e neles encontrarão apoio para suas novas estocadas. É preciso contemplar, no mistério da Vida, este grande mistério ao qual a humanidade dá muitos nomes. Não devemos adorar um Deus tão pequeno que possa ser aprisionado e que caiba totalmente dentro de nossos livros sagrados, ou de nossas culturas e religiões. Quando se perde a noção do mistério, acaba a humildade, entra a prepotência e vai se acabando a humanidade, porque, afinal de contas, humildade e humanidade têm, ambas, raiz na finitude do húmus. Mas, acima de tudo, essa atitude de superioridade nos leva a sermos algozes da vida, na inferiorização do outro, da outra, sejam estes humanos ou não, e não permite que experimentemos, com profundidade, o prazer de ser aprendizes e co-autores da grande sinfonia da vida em toda a sua tremenda e complexa diversidade. Notas 1 Doutor em Ciências da Religião. Professor do curso de Ciências da Religião da Universidade Regional de Blumenau, professor do Instituto Teológico de Santa Catarina e professor da União Catarinense de Educação. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD E-mail: [email protected] 3 Ver também VELHO, 2007, p. 125-135. REFERÊNCIAS FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e interculturalidade. Tradução Antônio Sidekum. São Leopoldo: Sinodal/Nova Harmonia, 2007. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Marins Fontes, 1999. GONZALEZ, Pablo Guadarrama. Los puntos de partida de la filosofia de la liberación y la ética del discurso. In: SIDEKUM, Antonio (org.). Ética do discurso e filosofia da libertação – modelos complementares. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994. PACE, Enzo, Sociologia do Islã. Fenômenos religiosos e lógicas sociais. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2005. _____ ; STEFANI, Piero, Fundamentalismo religioso contemporâneo. Raízes islâmicas, protestantes, hebraicas, induístas (sic!). Leitura fundamentalista da Bíblia. Tradução de José Jacinto Correia Serra. São Paulo: Paulus, 2002. VELHO, Otávio. Civilização, fundamentalismos e espiritualidade sem Deus: os termos do debate. In: GÓMEZ DE SOUZA, Luiz Alberto (org.), Relativismo e transcendência. Rio de Janeiro: Educam/Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, 2007. Culturas e Div. Religiosa.P65 76 21/10/2010, 14:18 6 DIVERSIDADE CULTURAL RELIGIOSA E CONCEPÇÕES DE SAGRADO Tarcísio Alfonso Wickert1 Rodrigo Wartha2 Introdução Toda cultura e cultura religiosa pressupõem a diversidade. Esta pode se manifestar de diversos modos, entre elas, a dimensão do sagrado. Isso se constata em todas as tradições culturais, grupos e indivíduos, pois cada um tem uma forma de explicar e explicitar o mundo em sua volta, o imanente, o transcendente e a si mesmo. Por isso que, ao longo da história da evolução humana, o homem buscou explicações para tudo o que não conhecia, para aquilo que lhe era um enigma, um mistério. O processo de globalização impulsionou um mundo multicultural que, atualmente, é animado pela lógica do capitalismo, e esta pressupõe o intercâmbio de mercadorias e serviços. Mas também é através de redes de trocas comerciais que se desenvolvem as relações de trocas culturais e uma delas é a religiosa. No entanto, em que medida essas trocas culturaisreligiosas são, de fato, trocas culturais-religiosas? Não seriam relações esvaziadas de seus sentidos culturais-religiosos, entrando no campo de uma eugenia cultural? E, dessa forma, levando os seres humanos a classificar as culturas entre superiores ou inferiores? Sendo assim, compreende-se que não existem culturas melhores ou piores, mas, sim, paradigmas culturais criados por cada sociedade para explicar a vida, uma vez que explicitam relações de poder. As imposições de culturas mais bem colocadas economicamente podem levar à pulverização de culturas mais frágeis, do ponto de vista econômico, tal como ocorreu com milhares de povos, testemunho da chegada do colonizador à América. Pois, “todas as sociedades estão a tornarem-se cada vez mais multiculturais, e, ao mesmo tempo, mais permeáveis.” (TAYLOR, 1998 p. 83). Na medida em que cultura e poder são interdependentes, a lógica capitalista-neoliberal naturaliza o extermínio de algumas culturas, fazendo-nos crer na superioridade de algumas, oriundas de países economicamente favorecidos, pois, “Todavia acreditar que a essência da plenitude humana se encontra em determinada cultura de determinado povo é um preconceito que não precisamos aceitar.” (GEERTZ, 1978, p. 55). Logo, nenhuma cultura pode precisar os critérios que são determinantes em cada uma delas. A oposição a isso, ou seja, a crença de que uma cultura expressa a evolução máxima da cultura humana, levou vários líderes a cometerem diversos genocídios ao longo da história. Culturas e Div. Religiosa.P65 77 21/10/2010, 14:18 78 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 1 Diversidade Cultural-Religiosa A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, assinada e aprovada por unanimidade em Paris, no dia 2 de novembro de 2001, na 31ª Reunião da Conferência Universal da UNESCO, realizada dois meses após a queda das Torres Gêmeas, em Nova York (11 de setembro de 2001), reafirma a convicção de que o diálogo intercultural é um caminho para buscar e garantir a paz rechaçando-se todo e qualquer choque ou barbárie entre culturas e civilizações. Isso vem garantir o direito da existência e o reconhecimento da possibilidade de as culturas serem autônomas e diferentes entre si. A razão de existir da diversidade cultural é justamente a possibilidade da convivência das diferenças entre elas. É nesse sentido que a homogeneidade não é o pilar central da aproximação das culturas, mas, justamente, as suas diferenças. Pois, tanto as manifestações culturais, como culinária, arquitetura ou mais complexas, como a ligação com o transcendente, são formas de ver o mundo e de representá-lo. Ainda em Geertz, “Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir a sua particularidade. As descrições das culturas devem ser calculadas em termos das construções que imaginamos que seus protagonistas colocam através da vida que levam” (GEERTZ, 1978, p. 24-5). Na medida em que uma cultura expressa um saber e esse saber é a razão de sua existência, é seu mundo que se revela para uma totalidade. Mas, se os seus saberes são velados, pela força externa ou interna, pelo poder imposto, expressam a morte da própria cultura e de sua diversidade. No entanto, o que ocorre em muitas culturas é justamente a “negação do outro” para garantir a sua autoafirmação. Ou seja, o outro precisa ser negado para garantir a minha existência. Ao longo da história das culturas, a intolerância ceifou muitas vidas, pois a existência e a convivência com o diferente eram inaceitáveis, conforme padrão doutrinário, estético e econômico estabelecido pelas culturas da homogeneidade. E justamente são essas práticas que precisam ser eliminadas para que um mundo melhor seja realmente possível e livre de preconceitos. É na diversidade e pela diversidade da cultura e das culturas que o diálogo se torna possível, pois toda linguagem, os mitos, ritos e expressões necessitam de abertura para se mostrarem ao mundo. A cultura é um reverenciar de si e de seu povo, mas sua manifestação faz-se necessária em direção às outras culturas. De acordo com Geertz: “O ponto global da abordagem semiótica da cultura é, como já disse, auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceitual no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles” (GEERTZ, 1978, p 35). É importante entender que a linguagem e o elemento simbólico são referenciais da própria existência do ser humano e da sua cultura. É por isso que: Culturas e Div. Religiosa.P65 78 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 79 [...] da linguagem como lugar da mediação total de toda experiência do mundo e de todo dar-se do ser, a que remete a tese de que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, é caracterizado, mais fundamentalmente ainda do que como fato da linguagem – ou de maneira igualmente originária -, como âmbito ético. [...] a linguagem não é tanto, ou, antes de tudo, aquilo que o indivíduo fala, mas aquilo pelo que o indivíduo é falado. É, sobretudo, enquanto sede, ou lugar, de realização do concreto, do ethos comum de uma determinada sociedade histórica, que a linguagem serve de mediação total da experiência do mundo (VATTIMO, 1996, p. 131-2). Logo, a linguagem só é inteligível a partir de uma consciência social. Ou seja, a cultura se traduz pela linguagem. Ela mantém viva a tradição e o ethos de uma cultura, pois possibilita que aquilo que foi vivido e sentido por alguém possa ser transformado em entendimento social. Como resultado da história social, a linguagem transformou-se em instrumento decisivo do conhecimento humano, porque, através dela, o ser humano pôde superar os limites da experiência sensorial, individualizar as características dos fenômenos e formular determinadas generalizações ou categorias. Ela é decisiva para o desenvolvimento da atividade consciente dos sujeitos. De acordo com Luria (1986, p. 25), o elemento fundamental da linguagem é a palavra, pois ela “designa ações, relações, reúne objetos em determinados sistemas. Dito de outra forma, a palavra codifica nossa experiência”. Linguagem é simbolismo. Segundo Cassirer (1997, p.72): sem o simbolismo, a vida do homem seria como a dos prisioneiros na caverna do famoso símile de Platão. A vida do homem ficaria confinada aos limites de suas necessidades biológicas e seus interesses práticos; não teria acesso ao “mundo ideal” que lhe é aberto em diferentes aspectos pela religião, pela arte, pela filosofia e pela ciência A linguagem, ao permitir a comunicação dos seres com o mundo, passa a ser a possibilidade concreta de os dados da realidade chegarem à consciência. De acordo com Brandão (2004, p.108), a linguagem precisa ser vista não “apenas como instrumento de comunicação de transmissão de informação ou como suporte do pensamento”. Surgiu da necessidade de os seres humanos compartilharem suas ideias e pensamentos com outros seres humanos e, desse modo, entenderem e serem entendidos. A linguagem é “interação, um modo de ação social” (BRANDÃO, 2004, p. 108). Assim, não é possível pensar o ser humano no mundo isento das interações que realiza socialmente e isolado do discurso. Somos constantemente interpelados por discursos, que movimentam sentidos e posicionam os sujeitos socialmente, pois “quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém, também de algum lugar da sociedade, e isso faz parte da significação” (ORLANDI, 2003, p. 26). Ao mesmo tempo em que a linguagem vai constituindo os Culturas e Div. Religiosa.P65 79 21/10/2010, 14:18 80 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) sujeitos, esses se constituem no processo de desenvolvimento da linguagem. Pensar a diversidade cultural-religiosa é pensar o próprio ser humano; é no seu tempo e espaço que ele percebe o mundo e se dirige ao outro, à outra cultura. Sem o respeito à diversidade, violaremos o princípio fundamental da Constituição Federal de nosso país e da Declaração Universal dos Direitos Fundamentais, de 10 de dezembro de 1948. Pois, se todos devem ser tratados de modo igual perante a lei, não podemos permitir a discriminação e, muito menos, o proselitismo. A própria Constituição Brasileira, de 1988, garante um Estado laico, ou seja, que não opta por uma religião e, além disso, garante que todas as manifestações religiosas possam se expressar, como consta no artigo 5º, inciso VI, da Constituição: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias.” Constituição Brasileira. Uma única verdade absoluta não existe, assim como não existe uma única e verdadeira religião e cultura. Mas, sim, existem religiões e culturas diversas, cada qual com seus valores e princípios, suas doutrinas, seus textos sagrados e suas filosofias. São exatamente essas simbologias e experiências que constituem a memória e a experiência de cada cultura. É nesse sentido que pensar o ser humano como um ser cultural leva a que “o homem não deve ser estudado em sua vida individual, mas em sua vida política e social” (CASSIRER, 1997, p.107), pois são essas “criações” que vão dar ao homem as bases para a interpretação do mundo, e, desta forma, toda a sua ligação com o cosmo, não só da sua existência, mas também da existência dos outros. Essa cosmovisão é uma visão coletiva do mundo a partir da própria cultura. O grande desafio para um mundo livre de violência e barbáries, legitimadas por preconceitos criados em torno da cultura, seja ela religiosa ou não, perpassa pelo diálogo intercultural e inter-religioso. Mas um diálogo onde sejam consideradas ambas as partes, e as trocas culturais sejam realizadas horizontalmente, sem a existência de um pré-julgamento que defina a valorização e a desvalorização de determinadas culturas, levando, assim, a proliferação da discriminação. Somente assim, com um diálogo em pé de igualdade, é que poderemos alcançar um estágio onde as representações culturais possam ser apresentadas ao mundo como realmente são: apenas representações do mundo. E, por isso, toda e qualquer característica cultural que venha a proliferar ou mesmo a reproduzir concepções preconceituosas deve ser entendida como agressão a toda a humanidade e ser rechaçada. Deve ser entendida como uma representação errônea do mundo, pois não pode ter como base atividades excludentes. Culturas e Div. Religiosa.P65 80 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 81 2 Concepções de Sagrado O processo de ligação do homem ao transcendente está, entre outros aspectos, ligado ao fato de que o homem é potencialmente um ser crítico, e, ao ser crítico, critica e duvida de sua própria existência. Em toda a trajetória da humanidade, o infinito, o desconhecido despertou interesse no homem. Como o tempo e a distância separam os povos, estes e suas subjetividades criaram diversas expressões culturais. Tal como os desafios do cotidiano são diferentes entre esses povos, a ideia de buscar respostas também o é. Nessa busca por respostas, que são levantadas por questões, muitas vezes, além de nosso entendimento, o homem criou a religião. O termo Religião deriva do latim “Re-Ligare”, que significa Religação com o divino. Esse termo diz respeito a toda e qualquer manifestação dos seres humanos com o que está fora do mundo natural, ou seja, do mundo físico. Erroneamente, a religião que foi criada para unir o homem ao transcendente, muitas vezes, é causadora de conflitos e discórdias, e separa os homens entre si. O fato de esses terem criado diversas religiões, diversas formas de se relacionarem e entenderem o transcendente, mostra-nos, mais uma vez, como reflexo de suas culturas, a subjetividade de cada uma, e a forma peculiar como cada povo constrói as suas respostas para seus desafios. E, em função disso, também ocorrem diversas interpretações do sagrado. O sagrado é um elemento pelo qual o ser humano atribui qualidades sacras, mas, tal como já afirmado, pode variar de cultura para cultura. Ou seja, o que para algumas concepções religiosas pode ser sagrado e tido como elemento capaz de ligar o homem ao transcendente, para outra concepção religiosa pode ser algo profano, ou mesmo pior que isso, algo ligado a alguma força de caráter duvidoso. O sagrado é essencialmente uma construção subjetiva de cada indivíduo, mas não propriedade de um indivíduo, e sim uma vivência estética. Ele se expressa no modo de ser e de estar no e para o mundo de cada ser humano. É sua relação com o outro e com as culturas, com a linguagem de uma coletividade, com a história e com a própria ciência. Por isso, a dimensão do sagrado é uma dimensão humana, não necessariamente natural, mas construída, elaborada e reelaborada a cada instante de sua vida. O sagrado nos causa espanto, tanto no sentido de causar temor, quanto no de causar alegrias. É aquilo que fica mais próximo do ser humano; é o divino no humano e fora dele. São perspectivas e expectativas de vida que se traduzem na experiência com o sagrado. Mas é preciso lembrar que o sagrado não é necessariamente um objeto: pode ser um símbolo, uma imagem, alguma coisa ou alguém. O sagrado se dá na medida em que criamos representações e atributos a um determinado objeto (símbolos), lugar, situações, ritos e pessoas. A dimensão do sagrado não está no fenômeno do objeto, mas é produzido por nós, através da linguagem. Está como mediadora entre o Culturas e Div. Religiosa.P65 81 21/10/2010, 14:18 82 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) sujeito e o objeto a ser compreendido e entendido. É notório, nas culturas, ser o sagrado uma reverência coletiva, portanto, internalizado, ritualizado, respeitado e venerado pela cultura. É por isso que é a exaltação de algo ou de alguma coisa; representa a ruptura com o estável, causando ou instalando novas emoções e desinstalando outras. Falar em sagrado é falar na própria existência e liberdade do ser humano. Não é possível viver e conviver de modo respeitoso e livre, se não permitirmos o sagrado humano de Deus nos seres humanos e nos seres em geral. Pois, ser um ser humano é ser sagrado e divino; é ser divino por ser humano. Na medida que o humano se faz como humanidade, o sagrado se consagra como o divino em nós mesmos. Somos eternamente visitados pelo diferente em nós mesmos e no mundo. É esse o espaço e o lugar, por excelência, do sagrado. Aquilo que a nossa consciência tem como valor moral humano e de toda a vitalidade existente designa, em última instância, o sagrado. Dentro das definições de sagrado, citamos Rudolf Otto, que afirma: O sagrado é, antes de mais nada, interpretação e avaliação do que existe no domínio exclusivamente religioso. Sem dúvida, esta categoria passa por outros domínios, como, por exemplo, a ética; mas ela não provém desses domínios paralelos. Essa categoria é complexa; compreende um elemento de qualidade absolutamente especial que se subtrai a tudo aquilo que nós chamamos de racional; é completamente inacessível à compreensão conceitual, e constitui algo inefável. O mesmo acontece com a conceituação do belo em outros domínios do conhecimento (OTTO, 1985 p 11). Segundo Otto (1985), a categoria sagrado perpassa por vários fatores. Por ser uma categoria que está além da compreensão, não pode ser inteligível a partir de conceitos puramente humanos de descrição. E, dentro dessa concepção, ela pode ser entendida como conceito irracional, utilizando a definição que o autor se apropria, irracional no sentido de ser inexprimível a sua forma de descrição. Nesse sentido, Otto nos coloca a ideia de um sagrado que não possa ser inteligível a partir de conceitos teóricos, racionais e especulativos, mas, sim, sentido e vivido a partir da experiência. Logo, o homem moderno, com o evoluir da ciência, passou e passa por um processo de secularização. Esse processo implica a criação de um mundo, onde o que rege a mente humana é a ideia da evolução científica. Pois, a tese central da secularização nega à idade moderna a propriedade original dos seus conteúdos culturais e a reduz a uma mera versão daquilo que veio antes, negando qualquer perspectiva histórica. Na medida em que a secularização nega o fio que liga o homem ao passado, nega a própria ancestralidade. Todo o processo de negação da ancestralidade parte, invariavelmente, do pressuposto de criação do novo. A preocupação inerente ao ser humano é a de criar valores relevantes ao mundo, sem estar preocupado com o outro mundo, com a parusia. O retorno do homem sobre si mesmo é uma Culturas e Div. Religiosa.P65 82 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 83 constante, porque o secularismo é dar espaço ao “eu” na proliferação de invenções de novas técnicas e novas ciências. Com tal pensamento, toda a concepção do sagrado passa a ser reavaliada. Nesse sentido, não só a percepção de sagrado está intrínseca a novos valores, como também a própria concepção do profano. Na sociedade pósmoderna, guiada por invenções tecnológicas, o homem está se refazendo a partir de conceitos cada vez mais materialistas, em que a percepção do transcendente parece estar voltada para o campo apenas da cultura. O que rege a sociedade são outros conceitos. No entanto, a reformulação do pensamento humano no mundo pós-moderno, a partir de conceitos materialistas, criando um mundo cada vez mais secularizado, está pautada em uma tradição religiosa milenar, portanto, repleta de conceitos sacros. Nessa perspectiva, toda ideia, tanto de religiosidade quanto de elementos do sagrado, está passando por uma reformulação subjetiva de cada ser humano. Em um momento quando novas religiões surgem a cada instante, o sagrado também é criado, recriado e destruído. Podemos perceber essa discussão da subjetividade da criação de conceitos em Urbano Zilles: Mas o pensamento moderno não consegue pensar a subjetividade humana em seu relacionamento teórico e prático com o mundo, sem referência, positiva ou negativa, a Deus. A questão de Deus passa a ser tematizada não mais a partir do mundo, e sim através da mediação do homem e de suas relações com o mundo, ou seja, a partir da subjetividade (ZILLES,1991, p. 08). O que Zilles nos mostra é justamente a ideia de que a percepção humana está ligada e intrínseca à percepção de Deus. Nessa linha de raciocínio, o autor aponta que a compreensão humana só pode ser alcançada a partir de um entendimento da relação homem-Deus. Sendo assim, como a relação de Deus com o mundo passa a ser mediada pelo homem, é justamente este que também estabelece a relação e as definições para o sagrado. O sagrado como elemento de ligação homem – Deus passa a ser subjetivado pelas interpretações pós-modernas de transcendente e imanente. Pois, como dito anteriormente, não existem verdades absolutas, e sim a criação de paradigmas de conhecimentos que procuram explicar a existência. O ser humano deu-se conta da insuficiência científica e de que ela representa um referencial teórico incapaz de satisfazer as necessidades do sujeito diante da transcendentalidade. A ciência não consegue administrar e atingir a dimensão transcendente através da experiência empírica do mundo e do ser humano pelas vias da racionalidade, gerando desconforto às instituições religiosas, pois a razão tem como princípio fundamental a reflexão e os questionamentos. A interpretação, a leitura e a análise de mundo passaram a ser apenas racionais e empíricas. Essas se mostraram como insuficientes e o ser humano, não encontrando uma resposta satisfatória, chega ao vazio da racionalidade na modernidade. Como Culturas e Div. Religiosa.P65 83 21/10/2010, 14:18 84 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) consequência da insatisfação, temos o que é denominado de pósmodernidade. Neste mundo (da pós-modernidade), ocorre o processo de “desreferencialização” do real e de “dessubstancialização” do sujeito, ou seja, o referente (a realidade) se confunde em fantasmagorias e imagética, e o sujeito (indivíduo) perde a substância interior, sente-se vazio. Notas 1 2 Doutorando em Filosofia pela UFSC. Professor de Filosofia da Universidade Regional de Blumenau. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento GPEAD. E-mail: [email protected]. Especializando em Educação e Cultura Indígena pela Escola Superior de Teologia EST. Graduando em História pela Universidade Regional de Blumenau. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. E-mail: [email protected]. REFERÊNCIAS BRANDÃO, Helena, H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. CASSIER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomas Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1997. GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Tradução Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 LURIA, Alexandre Romanovich. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Tradução Diana Myriam Lichtenstein e Mário Corso. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios & procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes, 2003. OTTO, Rudolf. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a sua relação com o racional. Tradução Procoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985 TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Tradução Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. 3.ed. São Paulo: Paulus,1991. Culturas e Div. Religiosa.P65 84 21/10/2010, 14:18 PARTE II 1 DIVERSIDAD RELIGIOSA EN CHILE: CULTURA E IDENTIDAD MAPUCHE Ramón Francisco Curivil Paillavil1 La Diversidad El diccionario de la Real Academia Española dice que la diversidad hace referencia a “variedad, desemejanza, diferencias”. También significa “abundancia y gran cantidad de varias cosas distintas”. En este sentido la diversidad es lo opuesto a “lo único y lo homogéneo”. Desde esta perspectiva, la diversidad se da en todos los ámbitos de la realidad: la naturaleza es diversa, es diversa la realidad social, cultural, económica, religiosa en cualquier país. En la practica lo que existe es diverso y es diverso no porque lo pensemos nosotros – en nuestras reflexiones – sino la vida en sí, la realidad en sí, es diversa. El problema es cómo nosotros los seres humanos, pertenecientes a distintas tradiciones culturales y religiosas, integramos, asumimos, vivimos o tomamos conciencia de esta diversidad. En general todos hemos aprendido a ver la realidad desde nuestra cultura y pensamos que todo el mundo, toda cultura para que sea tal, debe ser como la nuestra y si es diferente es ya dudosa, por lo tanto, hay que hacerla como la nuestra. En la práctica somos nosotros que muchas veces nos hemos negado a aceptar la diversidad como un hecho normal, como parte de la vida. Mas aún cuando hemos creído que solo lo nuestro tiene valor, nos ha llevado a despreciar las diferencias, porque es más fácil ordenar la vida desde un horizonte de igualdad que desde un horizonte diverso. En este sentido, Chile, siendo un país tan pequeño, largo y angosto como una faja de tierra, teniendo una variedad de clima y paisaje natural tan diverso, tiene el desierto más árido del planeta y unos fértiles valles en la zona central, un paisaje cordillerano que se combina con una serie de Culturas e Div. Religiosa.P65 85 21/10/2010, 14:18 86 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) volcanes que cautivan e impresionan a los visitantes; bosques centenarios, aunque ya no quedan muchos, islas, lagos, fiordos y glaciares en el sur. A pesar de esta variedad natural en un país tan pequeño, es difícil imaginar que al mismo tiempo sea un país que se ha negado sistemáticamente a reconocer y valorar una dimensión importante de la diversidad en el ámbito humano. Tradicionalmente Chile se considera un país de blancos donde “lo indígena” se ha querido llevar en forma oculta y silenciosa, pensando quizá que en algún momento éstos pudieran desaparecer. Un cambio de mentalidad en Chile es reciente y se ha dado específicamente en un momento histórico relacionado con la recuperación de la democracia y específicamente con el gobierno de la Concertación, donde se abrió el debate en relación al lugar que ocupan los indígenas en este nuevo escenario nacional de post dictadura. En este contexto era necesario tener informaciones más precisas sobre número y distribución de la población indígena. El primer paso fue reformar la Ley indigenista que se había heredado de la dictadura, promulgándose una nueva legislación el año 1990. Esta ley reconoce la existencia de tres grupos étnicos: Mapuche, Aymara y Rapa nui. Después vino el Censo de Población y Vivienda el año 19922, que por el tipo de pregunta, infló en cierta forma, la población indígena, lo que fue positivo para las demandas de los pueblos indígenas, porque entregó un panorama social que sorprendió a la población nacional. Por ejemplo, los datos censales mostraron que la población indígena era mayor de la que se suponía, pero la sorpresa más grande fue que el Censo constató que prácticamente el 80% de la población indígena vive en los centros urbanos. Este nuevo panorama indígena ayudó a cambiar la mentalidad de los chilenos y en parte de los propios indígenas. Muestro a continuación la diversidad étnica y cultural en Chile según Censo Nacional del año 2002. En esta ocasión la pregunta era ¿a cuál de estos pueblos indígenas perteneces? Se considera perteneciente a: Hombre Mujer Total 1. Alacalufe (Kawashkar) 1.423 1.199 2.622 2. Atacameño 10.852 10.163 21.015 3. Aymará 24.188 24.313 48.501 4. Colla 1.687 1.511 3.198 5. Mapuche 304.580 299.769 604.349 6. Quechua 3.037 3.138 6.175 7. Rapa Nui 2.263 2.384 4.647 8. Yámana (Yagán) 876 809 1.685 9. Ninguno de los anteriores 7.098.789 7.325.454 14.424.243 Total 7.447.695 7.668.740 15.116.435 Fuente: Censo de Población y Vivienda 2002. Culturas e Div. Religiosa.P65 86 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 87 De acuerdo al Censo el 4,6 % dijo pertenecer a uno de los 8 pueblos indígenas. De esos el pueblo mapuche representa el 87.3% del total de la población indígena. Otro dato interesante es que en la práctica el 80% de la población indígena vive en los centros urbanos, concentrándose especialmente en la ciudad de Santiago. La Diversidad Religiosa en Chile En cuanto a la diversidad religiosa en Chile habría que tener en cuenta, a mi modo de ver, las siguientes consideraciones: primero, cuando se habla de diversidad, diálogo y acercamiento religioso se está pensando en las distintas tradiciones cristianas (Iglesias), teniendo como meta – al menos de parte de la Iglesia Católica - la unidad en la diversidad, lo que se ha expresado en las últimas décadas en una participación conjunta en los Te Deum de Fiestas Patrias. En este contexto existe un tipo de diversidad religiosa donde prácticamente todas las religiones tienen un tronco común, por lo tanto, mínimamente debe existir “respeto y tolerancia” entre ellas. En este terreno de diversidad religiosa, las tradiciones religiosas indígenas son consideradas y valoradas sólo como una expresión de religiosidad popular y no se les reconoce su “status de religión”, por lo tanto, los pueblos indígenas siguen siendo considerados “tierra de nadie”, donde todas las religiones quieren sacar provecho y en instancias de diálogo siempre se pregunta ¿con quién dialogamos?, ¿quién es el sujeto más representativo? Yo entiendo por diversidad religiosa donde existe una concepción de mundo diferente, una manera de entender a Dios diferente, una manera de entender la vida y una manera de vivir diferente. Entre cristianos la diferencia entre una y otra Iglesia o Congregación no es sustancialmente diferente, por lo tanto, ahí hablar de diversidad religiosa, para la tradición cristiana mayoritaria (católica), es hablar de respeto, dialogo, unidad en la diversidad y teniendo como referente a otras tradiciones cristianas. Por lo tanto, la diversidad religiosa como presencia real de tradiciones religiosas diferentes, solo podría identificar tres tradiciones: la tradición religiosa cristiana, diversa internamente pero con un tronco común; las tradiciones religiosas indígenas, diversa también internamente y de la misma forma con elementos comunes, como por ejemplo ritos ligados el ciclo de la naturaleza, otros ligados a la agricultura, otros ligados al fortalecimiento de las relaciones sociales; y finalmente la presencia de la tradición religiosa musulmana que se expresa en un porcentaje muy bajo en relación al resto de la población nacional mayoritariamente cristiana. En la práctica esta es la diversidad religiosa en Chile. Lo que sin duda llama la atención al mirar las estadísticas es el alto porcentaje de adscripción al cristianismo en la población indígena. El gráfico siguiente (lado derecho) muestra la adscripción religiosa mapuche mayores de 15 años: Culturas e Div. Religiosa.P65 87 21/10/2010, 14:18 88 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Mapuche Católicos 256.753 Evangélicos 125.914 Test.de Jehová 3.443 Judaica 134 Mormón 3.649 Musulmán 115 Ortodoxo 158 Otra. Relig 14.329 Ning/ate/agnos 38.345 Total 442.840 A continuación el gráfico muestra la adscripción a tres categorías religiosas: la religión católica, evangélica y otra religión, de todos los grupos étnicos que alcanza a un 91.4%: Culturas e Div. Religiosa.P65 88 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 89 Esta proporción de adscripción es muy similar a la población no indígena que representa un 91.7%. Sin duda el porcentaje de adscripción al cristianismo de la población indígenaes sorprendente. Los mapuches están presentes en todas las Iglesias cristianas, lo que podría significar, que el cristianismo ya ha echado raíces en la población mapuche, aunque muchos no quieran reconocerlo ni estén de acuerdo, pero también esto se puede interpretar simplemente como una doble militancia religiosa y que no representa el abandono de la religión tradicional. Cultura e Identidad Mapuche: una Cultura de Resistencia No voy a detenerme en los aspectos teóricos de la cultura y de la identidad, ya habrá autores que abordaran esta temática. La idea general de cultura en la cual se sustenta esta parte de mi reflexión tiene que ver con una “forma de vida”. Dicha forma de vida se ha dado históricamente en un territorio concreto y se ha reproducido a lo largo del tiempo mediante una serie de ritos. Los ritos deben entenderse como una expresión cultural y religiosa que posibilita la reproducción social y el mantenimiento del “az mapuche” como sinónimo de un éthos cultural que hace presente un rostro, una manera de ser, una manera de pensar y de ver la vida en forma distinta y original. Se trata de un ethos que históricamente ha resistido la intolerancia de la cultura hispana occidental cristiana, pero que en ese desencuentro ha sabido capitalizar experiencias ajenas aprendiendo de ellas. Otro aspecto importante de la cultura que está presente en esta parte de mi reflexión es que toda cultura en si misma es dinámica y en este sentido sólo la cultura que cambia y resiste, que posibilita encuentros y que es capaz de enfrentar los desencuentros, es la cultura que se reproduce en el tiempo. La cultura mapuche en este sentido es una cultura de resistencia. Resistir tiene un doble sentido, un sentido pasivo, que significa encerrarse en si mismo, aguantar hasta morir, en el fondo este sentido tiene que ver con la resignación, con un camino hacia la muerte. Pero la resistencia tiene también una dimensión dinámica en el sentido de que, quien resiste, soporta, aguanta, pero ese resistir le permite al mismo tiempo apropiarse de experiencias de otros y aprender. Esta forma de resistencia entre los mapuches tiene que ver con la idea de “newen”. El newen es la fuerza, el poder, la energía que tiene la tierra y que posee también todo ser humano. En el che, tener newen significa tener fuerza, valor, capacidad de resistencia frente a cualquier adversidad de la vida. Esta fuerza, este valor se adquiere y se aprende. Esta capacidad de resistencia del ethos mapuche y esta capacidad de aprender del otro, se pusieron en juego a partir de la Conquista y se trató en un primer momento de una resistencia en bloque, dado que era el Culturas e Div. Religiosa.P65 89 21/10/2010, 14:18 90 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) pueblo mapuche que quería expulsar al invasor. Sin embargo, ante la superioridad del enemigo, el segundo momento, estuvo marcado por una resistencia selectiva que se expresó históricamente en diversos Pactos o Alianzas con los conquistadores, incluso en la recepción de misioneros, por algunos líderes y en algunos sectores del territorio. En este sentido el contacto con la sociedad conquistadora, a pesar del clima de violencia, trajo como consecuencias grandes cambios, algunos más positivos que otros, al interior de la sociedad mapuche: por ejemplo, de una sociedad tribal, recolectora, organizada en torno a un líder carismático (logko), con una agricultura incipiente se vio en la necesidad de cambiar su estructura social organizativa para hacer frente al conquistador; a su vez el contacto permitió incorporar nuevas técnicas para el desarrollo de la agricultura; se introdujo la ganadería; los mapuches se apropiaron del caballo y la carreta, hubo un desarrollo de la platería; los líderes políticos (logko) se transformaron en grandes negociadores. La introducción de la crianza de equino permitió a los mapuches tener una caballería temida por los propios españoles y posteriormente temida incluso por los propios chilenos. Esta es una de las razones de por qué durante 70 años el territorio chileno estaba dividido en dos: el territorio chileno propiamente tal y el territorio mapuche que definitivamente fue invadido por el ejercito chileno entre 1880 - 1883. La característica fundamental de estos cambios culturales, sociales y políticos, es que se dieron en un contexto de autonomía política y territorial, lo que significó de alguna manera un control de la cultura y un fortalecimiento de su identidad como pueblo. Este hecho duró hasta bien avanzada la República, es decir, hasta 1883. Tierra, Territorio e Identidad Mapuche Mapuche, viene de mapu: tierra, territorio y che: gente, persona. Entre el mapu y el che existe algo así como una alianza, un compromiso en un nivel de profundidad que tiene que ver con la posibilidad de ser y existir. El ser y el llegar a ser mapuche está dado en esta relación con la tierra. En este sentido la tierra es como la matriz que posibilita la existencia del che, por lo tanto, no hay che sin tierra ni territorio. La tierra pasa a ser no solo un espacio físico sino que ella en si misma posee algunos atributos que permiten en cierta manera personificarla como si fuera una Madre. La tierra mapuche no es sólo tierra, ella es Madre Tierra (Ñuke Mapu). Es Madre porque es la sostenedora o la posibilitadora de la vida, no solo la vida humana. Es Madre porque no hace distinción sino que cultiva y mantiene la diversidad en su regazo. Es Madre porque nos alimenta y sostiene. Pero al igual que toda Madre también tiene poder y autoridad sobre sus criaturas. Ella tiene poder, fuerza, energía, tiene newen. Esta manera de ver la tierra, que es propiamente una visión naturalista, instaura Culturas e Div. Religiosa.P65 90 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 91 un tipo de relación que pasa necesariamente por el respeto y valoración de la vida y la diversidad en la Madre Tierra. Esta manera de entender la tierra da origen a una manera de ser: somos en acción, en el sentido que lo que hacemos debe mostrar que somos hijos de la tierra, somos en la medida que sabemos relacionarnos con la tierra, incluso somos en la medida que intervenimos en la tierra, somos en la medida que sacamos los frutos de la tierra. Es la tierra que nos permite ser y existir. Por lo tanto, sólo somos si logramos mantener una conciencia de pertenencia a la tierra. Pertenecemos a la tierra, la tierra no nos pertenece. Esta conciencia de pertenencia se denomina maputuwvn (origen, procedencia). Este origen y procedencia marca, deja una huella en nuestra manera de ser. Se trata de una forma de ser, ligado a la tierra. Esta forma de entender la tierra, permite establecer relaciones de convivencia teniendo el convencimiento de que “aquí estamos” todos los que somos, todos los que existimos, por que en la tierra no existimos sólo los humanos, la Madre Tierra es productora de vida, ella es el origen y madre de la diversidad (fij mogen mvlei taci mapu meu). Por lo tanto, la identidad mapuche, en cuanto forma de ser, tiene que ver con una conciencia de pertenencia a la tierra y una conciencia de interdependencia y de convivencia con las diversas formas de vida que se dan en la Madre Tierra. Esta forma de sentirse parte de la tierra y de la naturaleza en general, pone los límites a la libertad del ser humano, porque el hombre no puede hacer todo lo que le de gusto y gana en la Madre Tierra. En otras palabras, no puede manipular ni destruir el hogar común. Esto significa aceptar los límites de la naturaleza humana y respetar los derechos de otras formas de vida en esta casa común. En otras palabras, la vida del hombre en cuanto ser humano definitivamente no es autosuficiente, depende de los “otros”. Esto significa que en su forma de ser hay una conciencia de comunión e interdependencia. Esta conciencia de ser y de pertenecer a la tierra se refleja claramente en el siguiente Ensayo3: Un día de calma, miraba la nada y me dije: ¿Qué hace una joven como yo mirando por la ventana? En ese momento medité, llegando a los sitios más íntimos de mí ser. En conclusión me dije en voz alta ¿por qué siento deseos de estar en contacto con la naturaleza?; sentía profunda ansias de correr por los prados, sentarme y escuchar un sin fin de sonidos. Pasados los minutos no aguanté, el deseo que sentía era más fuerte que todo. Salí de mi casa, caminé un par de kilómetros hasta que llegué a un sitio que estaba desconectado de cualquier cosa que tuviera relación con la ciudad, una vez allí hice todo lo que mi cuerpo, mente y corazón sentían: corrí en variadas direcciones, escuché al viento, al agua y a los animales, observé todo lo que me rodeaba y luego me tendí en el suelo. Fue en ese momento cuando experimenté la más grata de sensación de paz y relajo. Después de variadas horas tendida, no sentía la necesidad de marcharme, todo lo contrario, la tierra en mí inspiraba un profundo sentimiento de apego, me sentía conectado, unido con la naturaleza, como si todo esto Culturas e Div. Religiosa.P65 91 21/10/2010, 14:18 92 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) tuviera que ver con mi interior, mi pasado, mis orígenes… pensando en esto me dije ¿será que mi sangre de hombre mapuche, esa que corre con ímpetu, fuerza y valentía me une a la Tierra? Entre sollozos me respondí: mi corazón se llena de emoción, la alegría embarga hasta los últimos poros de mi cuerpo, no puedo negar que he descubierto la alianza más fuerte que puede existir: LA TIERRA Y EL HOMBRE SE HAN UNIDO PARA SIEMPRE, somos gente de la tierra, pertenecemos en cuerpo y alma a ésta, es esencial en nuestro entorno, en nuestras costumbres, en nuestra cultura. Desde ese momento comprendí que la Tierra es todo para mi y que así como mi sangre me inspira el deseo de compartir tan sagrada parte de mi, siento que la gente de mi pueblo, de mi cultura, gente Mapuche, es capaz de compartir tal sobrenatural tesoro y hacerlo patrimonio de todos, de toda la comunidad. Ahora me doy cuenta de lo que sucedió, lo escribe en este papel, para dejar constancia de este hecho maravilloso que descubrí: que nada es más reconfortante que estar compenetrado con la naturaleza, en especial con la Madre Tierra (Yasna Agurto. 4º Medio C. Complejo Educacional Claudio Arrau León, Carahue, 2009). La Tierra, El Territorio Como Lugar Del Rito Y Del Sacrificio Un elemento importante en esta relación “mapu – che – rito”, es la convicción religiosa de que esta tierra en la cual vivimos, es una tierra llena de fuerza, energía y poder. Este convencimiento, los ancianos, lo expresan con la siguiente afirmación “mapu ta niei newen, fijpule mvlei geh mapu: la tierra tiene poder, en todos los rincones de la tierra existen seres protectores llamados geh”. Esta forma de comprender la tierra inspira un temor y un respeto religioso y es justamente por esta manera de entender la tierra que al mapuche jamás, ni antes ni ahora, le pasó por la mente construir un templo, porque el templo mapuche, el lugar del rito y del sacrificio es la Tierra, la naturaleza. La celebración de los ritos en general son encuentros familiares, comunitarios e intercomunitarios, momento decisivo en el cual se produce la socialización en cuanto aprendizaje de valores, aprendizaje de un estilo de vida y aprendizaje de una forma de ser. En este sentido los ritos tienen claramente una función pedagógica porque enseñan a vivir y a convivir. Todos los ritos en general permiten crear vínculos, fortalecer lazos solidarios existentes y crear otros nuevos y en este sentido tienen también un carácter social y festivo, excepto el rito de sanación (machitun4) que es uno de los pocos ritos que tiene una dimensión dramática porque se lucha contra las fuerzas del mal. Otro aspecto importante es que los ritos permiten mantener la simetría y reciprocidad a partir de la comida, es decir, lo que he recibido como visita (wixan), participando en los ritos de otra comunidad, debo devolverlo en una celebración ritual dentro de mi propia comunidad. En este contexto quien tiene más amigos, recibe más y cuando le corresponda la celebración del rito en su comunidad deberá dar más. Todos dan y reciben en algún momento, lo importante es que la comida sea abundante. Los líderes políticos como los logko, por ser logko tienen la misma obligación Culturas e Div. Religiosa.P65 92 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 93 de dar y no recibirá más por el hecho de ser logko sino que de acuerdo a como él dé, recibirá. “Todo está regulado por la simetría y la reciprocidad: todos son iguales y deben comportarse unos con otros como tales”. Dependiendo de la tradición religiosa, parte de la comida que se reparte en la ceremonia del gijatun se ha dejado previamente en el altar, que es una mesa ubicada cerca del rewe. En cierta manera es algo que se ofrece a la divinidad y que después se comparte con los invitados. Cerca del altar suele estar el lugar del sacrificio donde tradicionalmente se sacrificaban animales. Hoy este tipo de sacrificio ha ido desapareciendo y en su lugar se queman los huesos de todos los animales sacrificados por la comunidad y que sirven para atender a los invitados. Se suele pedir a los dueños de cocina que no boten los huesos sino que los lleven al lugar del sacrificio. La Celebración del Gijatun A continuación me referiré específicamente a uno de los principales ritos mapuche llamado gijatun5. Esta ceremonia hoy día ha evolucionado en los siguientes aspectos: primero, existe una apropiación y resignificación de elementos simbólicos venidos del cristianismo; y en segundo lugar, una mayor acentuación de la dimensión religiosa dado que se habla de nuestra religión. En general esta ceremonia se considera “mapuce ñi zugu – es decir, algo nuestro, algo propiamente mapuche, algo que nos pertenece, algo que es parte de nuestro ser, algo que nos hace ser mapuche”. Ya he dicho y he demostrado mediante gráficos, como una parte importante de la población mapuche está presente en algunas de las Iglesias cristianas, principalmente en la Iglesia Católica. Entonces la pregunta es ¿quiénes participan en los ritos mapuches? La inmensa mayoría de los participantes son mapuches que paralelamente participan de los ritos católicos y de los ritos tradicionales. Es decir, como todo católico van a misa, bautizan, pagan mandas, etc. Pero de la misma forma como todo mapuche siguen participando de los ritos tradicionales. Mientras que los mapuches que participan en algunas de las Iglesias evangélicas, son presionados a dejar en el pasado las practicas religiosas tradicionales y en este sentido los líderes evangélicos mayoritariamente siguen teniendo un discurso agresivo, condenatorio y demonizador (lo mapuche no vale, eso era antes). El otro sector que participa activamente en los gijatun viene de aquel porcentaje que en el Censo marcó la opción “ninguna de las anteriores” porque entre las opciones religiosas no estaba considerada la práctica de los ritos tradicionales mapuches. En lo fundamental el gijatun es un rito ligado a la naturaleza y a la agricultura. Se celebra antes o después de las cosechas. Si es antes, es para pedir buen tiempo y buenas cosechas y las banderas son blancas y azules Culturas e Div. Religiosa.P65 93 21/10/2010, 14:18 94 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) y, si es después, es para dar gracias por los frutos recolectados y pedir buen tiempo para las nuevas siembras, los colores también suelen ser blanco y azul. En cuanto a la periodicidad, estos varían según la tradición de la comunidad, en general es cada dos o cuatro años. Dependiendo como transcurra el tiempo, durante el año si es muy seco se usan banderas negra, porque el negro pide agua y si es lluvioso, los colores que piden buen tiempo son blanco y azul. Ya he mencionado también que las tradiciones religiosas mapuches no son uniformes, al interior del mundo religioso mapuche hay una gran diversidad, en este sentido los ritos varían de una zona a otra. Por ejemplo, cada zona tiene su propia forma de celebrar este rito y eso se nota especialmente en las danzas religiosas (purun). Estas varían de acuerdo a la región. Además cada machi introduce también sus propias variantes. Teniendo en cuentas estas consideraciones, es posible distinguir, aunque sea de manera arbitraria, tres áreas religiosas6, que se diferencian de acuerdo al grado de pérdida de elementos religiosos propios o de acuerdo a la incorporación y resignificación de elementos religiosos simbólicos ajenos: •La primera, representada en la zona mapuce wijice7 (Valdivia, Osorno y Puerto Montt), que es indiscutiblemente un área de religiosidad sincrética, dado que en la celebración del lepvn (gijatun) se perciben elementos de dos tradiciones culturales y religiosas: lo hispano cristiano europeo y lo mapuche. Esto se nota, por ejemplo, en la incorporación de la guitarra, el acordeón, incluso rezan en castellano, se recita el Padre Nuestro y el Ave María; todos estos elementos venidos del mundo hispano reemplazan a otros elementos propios de la cultura y de la religiosidad mapuche, pasando a ser parte de la gran fiesta religiosa wijice. En esta práctica religiosa prevalece claramente lo hispano europeo cristiano, al menos en apariencia. •La segunda área religiosa es la Región de la Araucanía, territorio mapuche propiamente tal, donde, aunque de igual manera hay mezcla de tradiciones culturales y religiosas, sin embargo, prevalecen los elementos culturales y religiosos del ámbito mapuche. Por ejemplo, hay lugares donde se ha incorporado el acordeón pero la música que se interpreta con dicho instrumento, es música mapuche. En otros se ha incorporado la corneta militar pero la música, es claramente mapuche. Lo interesante de esta zona, entre otras cosas, es el hecho de que podemos percibir claramente un proceso de incorporación y de resignificación, tanto de elementos culturales como de elementos simbólicos venidos del cristianismo. Por ejemplo, hay una basta zona donde la cruz ha reemplazado el rewe y nadie discute su presencia en el gijatuwe 8. Evidentemente la cruz, no tiene el mismo sentido que en el ámbito Culturas e Div. Religiosa.P65 94 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 95 cristiano, dado que dicho símbolo presente en el gijatuwe, indica que en ese lugar estamos ante la presencia de un espacio sagrado que tiene newen (fuerza, poder, energía). A nivel del lenguaje religioso, específicamente en la oración, se ha incorporado de manera casi general el uso de la palabra “Dios, cau y ñuke” (Dios, Padre, Madre) y se dice por ejemplo: Wenu mapu cau, wenu mapu ñuke… Padre y Madre de la tierra de arriba (que no es lo mismo que decir Padre y Madre del cielo), Dios cau Dios ñuke… Dios Padre, Dios Madre. La visión de la divinidad mapuche es una Pareja Divina, es Padre y Madre, Anciano y Anciana. Esto muestra claramente el dinamismo de lo que significa la incorporación y la resignificación de elementos simbólicos ajenos que son llenados de nuevos contenidos y significados. •Una tercera área religiosa, está dada en los centros urbanos, específicamente en Santiago y se trata fundamentalmente de vivencias religiosas originarias del territorio mapuche (Octava y Novena Región), que lentamente fueron echando raíces y dando un nuevo rostro no sólo a los mapuches sino a la ciudad de Santiago, a partir de la década de los 90. Lo interesante de esta práctica religiosa es que los principales líderes, sean estos hombres o mujeres, encuentran una mayor posibilidad de reflexión y de discusión sobre ciertos temas, como por ejemplo “el fortalecimiento de la identidad mapuche en la ciudad”. Este hecho marcó el inicio de la celebración de ciertos ritos de la tradición campesina mapuche en la ciudad. De esta forma un sector importante de mapuches radicados ya en la ciudad pierde la vergüenza y el temor, salen a las calles y se muestran diferentes. Incluso por solidaridad con organizaciones del sur, que en la década de los 90 inician un proceso de recuperación de territorios, marchan por la Alameda (Centro de Santiago). En este contexto de recuperación y fortalecimiento de las prácticas rituales en un contexto urbano se produjo un hecho importantísimo, que tiene que ver con el reencuentro consigo mismo a partir del rito. Este reencuentro consigo mismo tiene que ver con la identidad, con el ser mapuche, pero este ser mapuche paralelamente puso en crisis dos elementos identitarios que en cierta manera ya habían sido internalizado mediante la educación: por un lado, la “chilenidad” ¿somos chilenos? Y por otro lado el ser cristiano, es decir, ¿qué aporta el cristianismo a nuestra identidad?, si hasta ahora el ser cristiano nos ha alejado de nuestras raíces. Identidad Mapuche y Ritos Independiente de la doble militancia religiosa en un sector mayoritario de la población mapuche, puesta en evidencia en el Censo del año 2002, existe un claro convencimiento de que los ritos, especialmente el gijatun es “nuestra práctica religiosa - mapuce ñi zugu…” Esta convicción Culturas e Div. Religiosa.P65 95 21/10/2010, 14:18 96 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) religiosa permite entender el celo por lo propio y el rechazo a toda intromisión de no mapuches9, sea esto en un contexto ritual o en los diversos ámbitos de la cultura. Por eso, hoy, en un sector de mapuches, adquiere mayor importancia la necesidad de marcar las diferencias con el cristianismo y en opinión de algunos, aunque podemos estar de acuerdo en que todas las religiones son una experiencia religiosa formidable, única y que cada religión representa una espiritualidad distinta que muestra la grandeza del espíritu humano, sin embargo, no podemos concluir que da lo mismo una que otra religión. Otra cosa es tener un espíritu religioso amplio, ecuménico y tolerante que permite pasar de una religión a otra e incluso participar de diversos ritos. En opinión de un grupo de dirigentes, cuando se trata de hacer la diferencia, perciben el cristianismo como algo extraño al mapuche: “wigka ñi zugu… asunto wigka”. En cambio, la práctica de las tradiciones religiosas propias la consideran: “mapuce ñi zugu… asunto mapuche, religión propia, algo nuestro”. Es decir, el cristianismo implícitamente se considera un elemento extraño que pertenece a la cultura dominante. Se trata, según algunos, de una religión traída por los conquistadores y que se impuso con la cruz y la espada, al menos aquí en América y en territorios mapuche 10. Respecto a la participación de mapuches en otras religiones, es interesante el siguiente testimonio de un machi11 radicado en Santiago, que al respecto dice lo siguiente: “El wigka persigue lo suyo, tiene su forma. Religión mapuche, taiñ religión, taiñ eleteu... (nuestra religión, la hemos heredado de nuestros antepasados...) Cada religión es como una mesa diferente, con diferentes comidas, platos sabrosos... Los mapuches dejaron su mesa, no les gusta su comida, Se fue a la mesa del wigka Es como un paracaidista. Dios dejó muchas riquezas a los mapuche, pero no dejó Escritura para nosotros... Teniendo lo propio estamos como mendigos. Faltó enseñar a los niños. Ahora nuestra religión es algo extraño. Yo soy respetuoso. En mi casa pasan los Mormones, me ofrecen Biblia, yo digo: eso dejó Dios a ustedes... Si voy a su Iglesia llego con respeto y creyendo, porque su religión también es buena”. (Testimonio del machi Augusto Aillapan de Santiago, originario del sector Ralico, comuna de Saavedra). El punto clave para entender el conflicto identitario es el encuentro con la propia experiencia religiosa. Aquí hay dos elementos claves que se pueden resumir en la siguiente convicción: “Lo nuestro es algo hermoso, Culturas e Div. Religiosa.P65 96 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 97 alegre, festivo y liberador - Taiñ zugu, ayvnke zugu tati.. taiñ zugumu kicuken gvneutukeiñ”. ¿Qué significa esto? La celebración de los diversos ritos muestra claramente el sentido festivo del espíritu y del alma mapuche, que durante un largo tiempo había quedado en el baúl de los recuerdos y que en general pasaba desapercibido o no se le daba la importancia que éste tiene. Para los mapuches la fiesta es un elemento fundamental porque ayuda a hacer más grata la vida aquí y ahora (fau, taci mapu meu). Pero este sentido de la vida, en algún momento entró en crisis y esta crisis se ha originado a partir de tres hechos decisivos: • La pérdida de la autonomía política y territorial • La influencia de un tipo de cristianismo • El impacto de la modernidad Estos tres elementos fueron el detonante de una situación de crisis radical de toda la vida mapuche, con lo cual aquellos elementos que tienen que ver con el sentido de la vida, como la cultura y la religión expresados en los diversos ritos, históricamente son despojados de su sentido, mediante un discurso demonizador, que en cierta forma, durante mucho tiempo, obligó a abandonar lo propio, bajo pena de ser considerado “no gente, bárbaro, inculto e incivilizado”. Sin duda, ha sido éste hecho la principal razón de por qué algunos buscaron ese “sentido” integrándose y dejándose asimilar por la cultura nacional o bien refugiándose en el alcohol, para olvidarse de las penas y de los avatares de la vida o como en el caso de la mayoría, participando en los ritos cristianos. Sin embargo, en la medida que se recuperan y fortalecen las prácticas de ciertos ritos propios (gijatun, macitun, we xipantu, palin entre los más importantes), nuestra gente es indudablemente más alegre y festiva, y es justamente en este momento que todo lo “ajeno” entra en profunda crisis. Por ejemplo, en algunos se trata de una crisis de la chilenidad que se expresa en preguntas como ¿es que los mapuches somos chilenos?, ¿es que los chilenos son mapuches?, ¿cómo asumir la chilenidad hoy en un mundo globalizado sin dejar de ser mapuche? Este es el punto. En otros, se trata de una crisis religiosa que se expresa en preguntas como las siguientes ¿es posible ser cristiano y mapuche?, ¿es tan contradictorio ser mapuche y cristiano a la vez? Todas estas preguntas exigen respuestas acorde a los tiempos y que no puede ser un simple sí o un no, dado que el tema de fondo tiene que ver con el sentido de la vida y con la identidad. Esta crisis, aunque no se expresa en toda su magnitud, en su dimensión socio política ha generado un movimiento de recuperación de territorios, lo que ha provocado, de parte del régimen imperante, una fuerte reacción y aplicación de leyes antiterroristas e incluso encarcelamiento de dirigentes12. En cambio en el ámbito religioso, ha generado un despertar hacia lo propio y Culturas e Div. Religiosa.P65 97 21/10/2010, 14:18 98 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) una mayor valoración del “ser mapuche” a partir del rito y específicamente en el carácter festivo y liberador que estos tienen. Esto significa lo siguiente: la participación en la celebración de los propios ritos, en cuanto se trata de un encuentro social, cultural y religioso y en cuanto son eminentemente festivos y liberadores, devuelven la confianza en una forma de vida más humana y más mapuche y de esta manera “lo propio” vuelve a ser una alternativa de vida comunitaria13, que desafía a un estilo de vida moderno, competitivo e individualista, donde lo cristiano parece ser un elemento decorativo más y como parte del sistema dominante. Por naturaleza estos encuentros festivos crean un clima fraterno, fomentan lazos sociales dado que permite encontrarse y reencontrarse con familiares y amigos. Incluso en estos encuentros surgen nuevas parejas. Mientras que el carácter liberador se expresa en crítica social y religiosa e incluso con una actitud de ruptura con el cristianismo. ¿Por qué? Porque reencontrarse con los propios ritos, para muchos es como nacer de nuevo. La gente se muestra, da la cara, sale a las calles, marcha por la Alameda en Santiago o por el centro de la ciudad en Temuco; pero se trata también de una liberación doctrinal e ideológica que gatilla una crisis que es necesario abordar con serenidad. En el plano religioso, la posibilidad de alimentar el espíritu religioso propio, validando las prácticas religiosas heredadas de los antepasados, ha obligado a un sector importante de mapuches, a buscar respuestas válidas y convincentes, que permitan aceptar o negar el cristianismo, en un nivel de opción personal, sin desconocer el conflicto, la contradicción o la ambigüedad aparente, que produce el hecho de pasar de una cultura a otra o de participar de dos o más tradiciones religiosas simultáneamente. Esta experiencia de liberación que se da ahora a partir de algunas organizaciones y se manifiesta claramente en dos aspectos: •Primero, una serie de movilizaciones sociales que apuntan a la reconstrucción de las identidades territoriales, acompañadas de acciones concretas de recuperación de territorios ancestrales. •Segundo, prácticas culturales y fortalecimiento de ritos en la ciudad a partir de experiencias religiosas comunitarias campesinas. Lo que más llama la atención en este proceso, es que en la medida que se han recuperado los ritos y en la medida que nuestra gente participa de ellos, indudablemente aparece el rostro de un mapuche más alegre y festivo. Y es en este momento donde se cuestiona el cristianismo ¿de qué y para qué nos ha servido ser cristiano? Se trata, a mi modo de ver, de una crisis profunda y radical, saludable y seria, que tiene su origen en la forma cómo se ha presentado el cristianismo, como parte de la cultura europea y siendo parte del sistema de dominación. Esta forma vino a poner en crisis lo más propio, lo más íntimo, nuestras convicciones religiosas, el sentido de la vida y nuestra identidad. Entonces hoy, cuando nuestra gente vuelve a creer en sí mismo, quiere indudablemente Culturas e Div. Religiosa.P65 98 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 99 afirmarse en lo propio, aquello que más conocen y que le da más seguridad y en este sentido, se puede afirmar que la posibilidad de alimentar el espíritu religioso propio validando las prácticas religiosas heredadas de nuestros antepasados, obliga a buscar respuestas válidas y convincentes, que permitan aceptar o negar el cristianismo, en un nivel de opción personal. Por ahora, este conflicto religioso, ha dividido a los mapuches en dos posturas, aparentemente irreconciliables. a) Abandonar el cristianismo para ser mapuche: Los partidarios de esta opción construyen un discurso en torno a la idea de que es necesario “abandonar el cristianismo para ser mapuche”. Para entender esta posición es necesario considerar algunos aspectos como los siguientes: 1° El reencuentro con las raíces y la valoración de las propias tradiciones, permite de alguna manera una reconciliación consigo mismo. Este hecho es una experiencia extraordinaria, algo semejante a una conversión o a un encuentro con Cristo en el ámbito cristiano. Paralelamente no podemos negar que el cristianismo católico y evangélico, para los partidarios de esta opción, es y sigue siendo no sólo parte del poder dominante sino una seria amenaza para la identidad. 2° Otro hecho importante a considerar es que toda la historia de la evangelización del Pueblo Mapuche, hasta nuestros días, ha estado marcada por el paradigma de la civilización y barbarie. Es decir, los misioneros se han presentado como la encarnación misma de la civilización y de la cultura verdadera. Ellos enseñaban a nuestros antepasados cómo es que se debe vivir la vida, porque estaban convencidos de que los mapuches y los indígenas en general, vivían un estado de barbarie que era necesario superar en nombre de su Dios. De acuerdo a esta mentalidad el discurso misionero, implícitamente sostenía la idea de que para ser cristiano o para ser una persona culta y civilizada, era necesario, por todas las prohibiciones impuestas, abandonar las tradiciones mapuches. Por lo tanto, es claro que un mapuche cristiano en la práctica terminaba abandonando y renegando su pasado mapuche. 3° En la historia de la evangelización del pueblo mapuche, sobre todo antes de la “Pacificación” (Ocupación), se dio un hecho que tiene que ver con lo siguiente: cada cierto tiempo algunos líderes mapuches, en cuanto encontraban las condiciones favorables abandonaban el cristianismo, esto a pesar de la catequesis, donde le enseñaban a renunciar a sus prácticas rituales. Estos una vez que volvían al campo y cuando recuperaban su libertad y una vez ya lejos de los misioneros, dejaban sus prácticas cristianas y retomaban sus propios ritos, a pesar de la condena de los misioneros. Culturas e Div. Religiosa.P65 99 21/10/2010, 14:18 100 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Algo de esto está ocurriendo hoy día, sobre todo en los centros urbanos, ya que el vivir en una gran ciudad como Santiago, da a nuestra gente una mayor libertad en muchos aspectos. Esta mayor libertad unida a un descubrimiento y valoración de sus raíces, es el punto de partida para abandonar definitivamente el cristianismo, al menos a nivel de discurso. Este abandono es un paso extremadamente complejo y audaz a la vez. Aunque en algunos casos esta decisión es una mezcla de resentimiento social y político, donde el diálogo es prácticamente imposible, sin embargo, en otros existe el sincero convencimiento de que las prácticas de los ritos propios son suficientes para la resolución de problemas y conflictos ante las situaciones límites de la vida, como el dolor, el sufrimiento, la enfermedad y la muerte. Ellos sirven para cargarse de energía en situaciones de movilización y conflictos con las autoridades chilenas. Ellos permiten alimentar el espíritu religioso mapuche y tienen un poder revitalizador, en el sentido de que renuevan las ganas de vivir. Con este convencimiento, de que lo propio es verdadero, bueno y suficiente, es completamente razonable, válida y entendible una actitud de ruptura con el cristianismo. 4° Una de las argumentaciones en contra de la Iglesia Católica, según algunos dirigentes, es que el catolicismo históricamente ha puesto en crisis no sólo nuestra identidad, sino que son las personas cristianas, católicas en su mayoría, quienes se han apropiado de nuestro territorio y siguen cometiendo injusticias en contra de nuestra gente. Situaciones donde la palabra de la Iglesia no ha sido del todo clara. Estos hechos y otros son suficientes para defender la tesis de que es necesario, o buscar una nueva forma de relación con las autoridades de las Iglesias Cristianas, o abandonar el cristianismo para ser mapuche. Por lo tanto, para este grupo es inconcebible ser cristiano y mapuche a la vez, dado que basta la fuerza espiritual de los propios ritos. Y la pregunta que surge espontáneamente es, ¿y por qué no?, ¿acaso no son estos mismos ritos que durante miles de años han dado consistencia a la vida mapuche? b) Participar de dos o más tradiciones religiosas. Esta segunda opción, aunque en la práctica carece de un discurso claro y coherente tiene, sin embargo, una postura, en cierta medida más pragmática, dado que sus miembros practican los ritos de la Iglesia Católica o participan de algunas de las denominaciones Evangélicas14 y a la vez participan de los ritos tradicionales de su comunidad. ¿Cómo se explica esto? ¿Es posible? Para entender esta postura se debe tener en cuenta lo siguiente: primero, la religión mapuche no es sólo religión es también cultura; segundo, tampoco existe un mecanismo de control como en el cristianismo; tercero, el pueblo mapuche vive una situación de colonialismo sociopolítico, cultural y religioso. Todos estos aspectos permiten y en cierta forma obligan a tener una actitud más tolerante y en cierta forma permisiva en algunos Culturas e Div. Religiosa.P65 100 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 101 aspectos de la vida. Sin embargo, el diálogo y las entrevistas muestran también que un sector, al parecer minoritario de mapuches, que han asumido el cristianismo y participan en alguna de las Iglesias cristianas, lo hacen porque “Jesús les ha cambiado la vida” y estos no tienen mayor conflicto interno en participar sea en diferentes Iglesias o en diferentes tradiciones religiosas. Lo positivo de esta opción religiosa es que, por un lado, se valora la fuerza espiritual de los propios ritos y por otro lado, se valora y respeta también la riqueza espiritual que ofrecen otras religiones, específicamente el cristianismo católico. Algunos líderes, partidarios de la doble militancia religiosa, sostienen más o menos lo siguiente: el hecho de tener dos religiones, metafóricamente hablando, es como tener dos mujeres, pero cada una debe estar en su ruka (casa): es decir, los ritos cristianos católicos, en cuanto religión traída por los conquistadores, es y debe ser en wigkazugun (usando el idioma español) y los ritos mapuche evidentemente deben ser en mapucezugun (usando el idioma mapuche). Esta solución ha dado la tranquilidad necesaria, a quienes han optado por una práctica paralela de ambos sistemas religiosos, sobre todo en los sectores campesinos. Sin embargo, el conflicto ha vuelto a resurgir cuando un sector de misioneros, grupo minoritario dentro de la Iglesia Católica, ha puesto en jaque en cierta forma este principio válido hasta ahora en el ámbito mapuche, contraponiendo un nuevo modelo evangelizador en que el ideal o la meta de la evangelización, es que un pueblo convertido o una población perteneciente a una determinada cultura, al aceptar el cristianismo, debe y puede celebrar su fe con los elementos propios de su cultura. Con esta propuesta evangelizadora se cuestiona radicalmente el principio religioso mapuche de que lo wigka es en wigkazugun (castellano) y lo mapuche es en mapucezugun (idioma mapuche). Para este grupo de misioneros existe un convencimiento de que este modelo evangelizador es lo más auténticamente cristiano y evangélico, pero para un sector de mapuches, esto no es tan fácil de aceptar, dado que existe una larga historia de intolerancia católica frente a las prácticas rituales mapuche. A la vez existe un cierto temor de que la aceptación de dicha propuesta evangelizadora signifique un duro golpe a algunos elementos culturales y simbólicos que tienen que ver con la identidad mapuche. A Manera de Síntesis En relación a la primera parte, recalcaría las siguientes ideas: definitivamente la religión es un elemento importante para toda sociedad y en segundo lugar, a las religiones indígenas se les debe dar un status de religión oficial y no mera expresión de religiosidad popular, de esta forma el reconocimiento de la diversidad religiosa existente en toda sociedad, permitirá un diálogo verdadero y una convivencia respetuosa entre sus miembros. Culturas e Div. Religiosa.P65 101 21/10/2010, 14:18 102 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) De lo que he dicho en la segunda parte sobre “Cultura e identidad mapuche” destacaría lo siguiente: la cultura mapuche es una cultura religiosa que tiene como fundamento la tierra y en este sentido la identidad mapuche (az mapuce) es una identidad religiosa que se transmite a través de los diversos ritos. Dichos ritos, en las dos últimas décadas, han generado un movimiento de recuperación y fortalecimiento de la identidad poniendo en crisis y buscando respuestas nuevas a elementos propios de la chilenidad y a la posibilidad de ser cristiano y mapuche a la vez o definitivamente abandonar el cristianismo para ser mapuche. En esta última parte considero que faltan nuevos estudios que profundicen esta relación de dos universos religiosos distintos y opuestos, teniendo en cuenta que en el pensamiento indígena en general, los opuestos finalmente son complementarios. Notas 1 Magister en Ciencias Sociales. Profesor de Filosofía del Complejo Educacional Claudio Arrau Leon (Chile). Coinvestigador del Centro de Estudio de la Realidad Contemporánea (CERC - UAHC) perteneciente a la Universidad Academia de Humanismo Cristiano. Email: [email protected] 2 El Censo de población y vivienda del año 1992 preguntaba por auto identificación. La pregunta específica era ¿con cuál de estos grupos étnicos te identificas? 3 Con los alumnos/as del 4º Medio del Complejo Educacional Claudio Arrau León, ciudad de Carahue, trabajamos el mito mapuche conocido como “Xen xen y kai kai filu” y posteriormente se les pidió a los alumnos/as hacer un ensayo teniendo como tema “El valor de la tierra en la cultura mapuche”. 4 Este rito al final también termina con una comida abundante. 5 Hay también otros ritos como el machitun (rito de sanación), el we xipantu (Celebración de un Nuevo Ciclo en la naturaleza – Año Nuevo Mapuche), konchotun (rito de la amistad), lakutun (rito para poner nombre), el palin solemne (deporte), etc. 6 Estos temas se abordan en profundidad en el libro “La fuerza de la religión de la tierra”, publicado por la Editorial Universidad Católica Raúl Silva Henríquez, Santiago, 2007. 7 Las informaciones recopiladas sobre esta área religiosa fueron escasas en Santiago, por lo que me remito a los estudios realizados por el antropólogo Rolf Foester en su libro: Religiosidad mapuche huilliche. 8 El gijatuwe es un espacio de tierra de forma circular destinado para la celebración del gijatun. Es el espacio sagrado, lugar del rito y del sacrificio. 9 La presencia de no mapuches en los ritos es siempre selectiva, quienes participan son siempre amigos o personas que dan un status social. 10 En otras partes del mundo la Iglesia ha llegado de manera más humilde e incluso ha sido perseguida. Hay lugares donde hasta el día de hoy la Iglesia no puede darse a conocer públicamente. 11 Machi es lo que comúnmente los antropólogos llaman “chaman”. 12 Bajo el gobierno de la presidenta Bachelet, como en ningún otro régimen democrático, se ha violentado de manera brutal a un sector de organizaciones mapuches con sus dirigentes, desconociendo completamente los Derechos Humanos. 13 Esto se percibe más claramente en las organizaciones mapuches de Santiago que en las comunidades campesinas. 14 La práctica de dos religiones se da más bien en el ámbito de los mapuches católicos. El sector evangélico es más complejo dado que aún existen Iglesias que promueven un discurso abiertamente condenatorio hacia las prácticas religiosas mapuches. Culturas e Div. Religiosa.P65 102 21/10/2010, 14:18 2 DIVERSIDAD RELIGIOSA EN ARGENTINA: CULTURAS EN DIÁSPORA Y MESTIZAJE Dina V. Picotti1 El tema que nos convoca en estas Jornadas me parece por demás importante y auspicioso en una época en que impera un orden global, que por una parte pareciera poder extender universalmente los grandes logros instrumentales de la civilización tecno-científica en su estadio bioinformático, pero por otra convive con la mayor exclusión y con un fuerte desconocimiento del sentido habitacional del hombre y de otras formas de vida o culturas, reduciendo la totalidad de la experiencia histórica a una especie de pensamiento único o bien a una paralogia que registra la diversidad pero no la asume para construir con ella. Importante porque al hablar de religiosidad remite a una dimensión esencial del habitar, que caracteriza a lo humano, a la vez que implica al imaginario u horizonte simbólico, que reúne la singular experiencia desde la que los pueblos o comunidades históricas piensan, hablan, actúan; y porque al referirse a la diversidad religiosa de las culturas en diáspora y mestizaje, alude a la diversidad y recreación de esas experiencias en comunidades que por ser vivas están en movimiento, se interrelacionan y recrean. Me referiré brevemente a cada uno de estos aspectos, para luego detenerme en el tema que se me ha asignado, con respecto a la situación argentina. La religiosidad Decía que lo religioso constituye una dimensión esencial del habitar, que a su vez caracteriza a lo humano. Las más antiguas tradiciones ubican al hombre en una cuádruple referencia, que hasta hoy permanece encubiertamente registrada y reducida a los cuatro puntos cardinales geográficos. Pero según ellas el hombre es tal en tanto acoge la novedad del cielo, cuida la madre tierra, acompaña a los mortales y venera a lo sagrado. En el ámbito de la cultura occidental, hoy globalizada, el poeta Hölderlin hablaba ya en el s. 19, desde el romanticismo alemán, de una época de dioses huidos y consideraba tarea de la poesía, que nombra lo sagrado, seguir sus huellas, preguntándose si se nos otorgaría un nuevo advenimiento 2 . A su vez Heidegger, representativo pensador contemporáneo, señala la esencia de la técnica, que caracterizaría a nuestra Culturas e Div. Religiosa.P65 103 21/10/2010, 14:18 104 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) época, como un determinado destino de desocultación de ser en el modo del Gestell 3, palabra con la que quiere significar el hecho de haberse convertido todo lo que es en meras existencias solicitables, lo que significa un riesgo, por otra parte ya corrido, en doble sentido, en tanto amenaza la relación del hombre consigo mismo y con todo lo que es, y en calidad de máximo riesgo cierra la posibilidad de otro tipo de desocultamiento de ser o verdad. Aunque dialogando con Hölderlin apela también a aquellas palabras “mas donde hay peligro, crece también lo salvador”. Porque aún tratándose de un máximo peligro, este envío, como todo otro, es aún un otorgamiento y pleno cuando debe crecer lo salvador; todo destino de un descubrir acaece desde el otorgar y como tal aporta al hombre esa participación en el evento del descubrimiento que éste requiere, siendo en tanto así empleado transferido –vereignet- al evento de la verdad. De este modo, lo otorgante, que envía de una manera u otra a la desocultación, es como tal lo salvador, pues deja al hombre mirar e ingresar a la más elevada dignidad de su esencia, que consiste en custodiar la inocultación y con ella antes la ocultación de toda entidad sobre esta tierra. Justamente en el Gestell, que amenaza seguir arrastrando al hombre al solicitar, como la supuesta única manera del descubrir, y así lo empuja al peligro del abandono de su libre esencia, precisamente en este extremo peligro aparece el más íntimo, indestructible pertenecer a lo otorgante, supuesto que por nuestra parte prestemos atención a la esencia de la técnica, porque mientras la representemos sólo como instrumento quedaremos prendidos a la voluntad de dominarla y pasaremos de largo por su esencia. También Hölderlin había dicho “[...] poéticamente habita el hombre sobre esta tierra”4. Lo poético lleva lo verdadero al brillo de lo que Platón en el Fedro llama to`e kfane’staton, lo que brilla del modo más puro. Lo poético esencia todo arte, todo descubrir de lo esenciante en lo bello. Heidegger se pregunta si serán las bellas artes llamadas al descubrimiento poético, para que cuiden propiamente el crecimiento de lo salvador, despierten e instituyan nuevamente mirada y confianza, y afirma que nadie puede saber si al arte le será otorgada esta máxima posibilidad de su esencia en medio del extremo peligro, aunque podemos asombrarnos ante la otra posibilidad, de que por doquier lo frenético de la técnica se organice hasta el punto de que un día a través de todo lo técnico se esencie en el evento de la verdad. La meditación y la decisiva confrontación con ella tiene que acontecer en un ámbito como el artístico, que por una parte esté emparentado con la esencia de la técnica y por otra sea, sin embargo, fundamentalmente diferente, aunque sólo cuando la meditación por su parte no se cierre a la constelación de la verdad, por la cual preguntamos. Y considera que tarea del pensar de nuestros tiempos de consumación metafísica e indigencia por la pérdida de ser y sentido es el viraje hacia otro comienzo, en el ámbito originario y abismoso del ser como acaecer, lo que exige una profunda transformación del pensar y otras Culturas e Div. Religiosa.P65 104 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 105 actitudes; tal camino es abierto por quienes llaman ‘los futuros’, porque siguen el paso del último dios que hace señas5. Lo ‘ultimo’ se identifica como el más largo precurso y por lo tanto es ya el más profundo comienzo; sustrayéndose a todo cálculo no se trata de cese sino de un espacio-tiempo de decisión con respecto a la inauguración de todo otro ámbito. Por ello, situándose en éste, la expresión ‘último dios’ no ha de ser considerada degradación y blasfemia, sino por el contrario ella destaca la singularidad de la esencia divina como una dimensión de ser, diferenciándose de la determinación metafísica como sumo ente, sólo en cuyo nivel se juegan los ateísmos y teísmos de toda especie. De este modo, el último dios no es el fin sino el otro comienzo de nuestra historia -en el sentido originario de ‘Geschichte’ o historia del ser como acaecer-, de inconmensurables posibilidades, por lo cual no puede fenecer sino ha de ser llevada a la consumación de esta etapa y ser creadas en diálogo localizador con ella las transfiguraciones de sus posiciones esenciales fundamentales hacia la disposición y el tránsito al otro comienzo. El último dios tiene que ver con el rehúso, que contrariamente a lo que se puede suponer desde el pensar vigente, equivale a plenitud de otorgamiento, es lo venidero y se relaciona con la esencia originaria de la verdad del ser, que deviene extrañamiento, serenidad del paso del último dios; rehúso que funda el origen del estilo verdadero en la retención ante la verdad del ser en su proceso de ocultadesocultación. El último dios se esencia en la ‘seña’ de la acometida y ausencia de advenimiento y huida de los dioses que han sido y de su oculta transformación. Tales señas, como evento de ser, colocan al ente en el extremo abandono del ser e irradian al mismo tiempo la verdad de éste como su más íntimo brillo, encontrándose de esta nueva forma tierra y mundo en la más simple contienda. En tal esenciarse de la seña el mismo ser llega a madurez, es decir, dispuesto a tornarse un fruto y una donación, y aquí se da lo último, el fin esencial exigido desde el comienzo y no aportado, la más íntima finitud; se encuentra asimismo la más oculta esencia del no, como todavía–no y no-más, lo noedor en el ser, en diferentes figuras de su verdad, lo que no puede ser ponderado por la lógica metafísica a través de la mera negación del ente entendido como mera presencia. Pero este ámbito es sólo ingresable gracias a la preparación de un largo presentimiento del último dios. Los futuros tan sólo son preparados a través de aquéllos que encuentran, miden y construyen el camino de retorno desde el experimentado abandono del ser. Sin el sacrificio de estos retornantes, verdaderos precursores de los futuros y completamente diferentes de los sólo reactivos -míopemente sujetos a lo vigente, sin que les sea manifiesto lo sido en su expandirse hacia lo venidero, ni lo venidero en su clamor a lo sido-, no se da posibilidad alguna al mencionado hacer señas del último dios. Para su disposición, afirma Heidegger sin ambajes, son pueblos y estados demasiado pequeños, demasiado arrancados ya a Culturas e Div. Religiosa.P65 105 21/10/2010, 14:18 106 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) todo crecimiento y sólo librados a la maquinación; el dios no aparece en visión personal o masiva sino en el espacio abismoso del ser mismo; ni tampoco los cultos e iglesias vigentes y cosas semejantes pueden volverse preparación esencial del choque entre dios y el hombre en medio del ser, para lo que es necesario otro comienzo; pocos saben que el dios aguarda la fundación de la verdad del ser y el salto del hombre de animal rationale al ser-ahí –Dasein-; en lugar de ello parece que se tuviera que esperar al dios, y tal vez esto sea la forma más capciosa de ateísmo e impotencia para experimentar ese sobrevenir del ser. Este planteo, que se ubica en nuestra época de ‘acabamiento de la metafísica’ en tanto máximo juego de sus posibilidades, movido por la indigencia de la pérdida de ser y sentido, tiene entre otras cosas el mérito, ante el orden vigente en la civilización planetaria, de reubicar lo divino, sagrado, y con ello lo humano y los demás entes en el cuarteto del ser como acaecer, como una dimensión esencial, en la contienda de cielo, tierra, mortales y divinos en que se da la verdad del ser en su juego de ocultadesocultación, donación y sustracción, y la habitación de un mundo por parte del hombre reuniendo a esas cuatro dimensiones a través de la acogida de la apertura del cielo, el salvar a la tierra, acompañar a los mortales y venerar la trascendencia de lo sagrado. Como lo testimonian antiguas culturas y también a menudo la religiosidad de la gente, lo sagrado esencialmente se sustrae pero también se da de diversas maneras a lo largo de la historia; ahora parece convocarnos, desde la resonancia del ser en la indigencia del acabamiento metafísico, en la figura del último dios, en el camino hacia el otro comienzo, como exigencia y condición de lo humano mismo. Si bien ello implica el quiebre, la sustracción, la extraña otredad de lo abisal, no está ausente del sentimiento religioso que a pesar de todo pervive en nuestra época y más bien desafía a las religiones a reunirse para la tarea esencial de recuperar la dimensión de lo sagrado en todo lo que es. La religiosidad latinoamericana El fenómeno religioso en América Latina acompaña a su propia historia. El proceso de conquista y civilización incluyó también la evangelización, que significó no sólo la imposición de una religión sino el proceso más refinado de colonización, que alcanza al propio imaginario de los pueblos. Las misiones constituyen la otra cara de la expansión colonizadora, con la que comparte un mismo proyecto; la conquista espiritual fue tan básica como la militar y la civil y sirvió durante siglos para dar a éstas los argumentos teológicos a través de la teoría salvacionista de la guerra justa e integrar el indígena al lugar subalterno que le tenía asignado tal proyecto. Sin embargo, los pueblos originarios resisten, en la forma ajena sobreviven las propias creencias. Culturas e Div. Religiosa.P65 106 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 107 Algo semejante ocurrió con las culturas negras, que asumiendo en su panteón a las deidades indígenas como gesto de arraigo, también transmitieron a las entidades religiosas cristianas vigentes el espíritu y caracteres de las formas propias. En el sistema de interrelaciones dinámicas en que se dan las culturas africanas, la religión constituye el mayor exponente, impregnando y marcando todas las actividades, aún las más profanas. En la diáspora fue el factor fundamental, que permitió el reagrupamiento de los esclavos y sus descendientes, la transmisión de valores esenciales, dentro de un proceso de continua adaptación, fagocitación de elementos foráneos y reinterpretación. A su vez, a través de la más variada gama de manifestaciones, generalmente desconocidas y malinterpretadas por el blanco a causa de su extrañeza y carácter iniciático, han influido la sociedad global, permeando sobre todo la religiosidad popular, probablemente más con actitudes que con elementos precisos. El vudú haitiano y la santería cubana, así como algunos ritos afrobrasileños y su expansión por el sur del continente, constituyen exponentes notorios de esta situación. Un análisis de los mismos permite destacar características fundamentales de la concepción religiosa negroafricana, así como de su permanencia y recreación entre nosotros. En las últimas décadas del siglo XX no sólo se produjeron cambios y transformaciones sociales, políticas, económicas y culturales, sino profundas crisis que atravesaron a las sociedades latinoamericanas, pero en particular a los sectores populares y condicionaron y replantearon de diversas maneras la trama social, cultural y religiosa. Dos procesos fundamentales vinculados con dichas transformaciones, como registran algunos sociólogos6, son los de globalización y secularización. Por una parte la incidencia del primero y las variadas articulaciones entre lo global y lo local; en el aspecto socio cultural, tanto las transformaciones científicotecnológicas y la consiguiente aceleración de los flujos culturales, como la existencia de fuertes descentramientos en un contexto de crisis de los sistemas de significación y de los procesos de construcción de identidades, su incidencia en procesos de redefinición de la tradición y de globalización de lo religioso, presentes en el imaginario colectivo, así como los nuevos lenguajes que se despliegan en torno a la relevancia de la imagen y lo audiovisual en general; el sentimiento de la falta de horizontes demandó replanteos importantes en la trama de sentidos de la sociedad, tanto a nivel de los sistemas simbólicos en general como de las religiones en particular. Con respecto al así llamado proceso de secularización que emerge cuando se analiza el fenómeno religioso en la modernidad, se produce una reconfiguración en cuyo marco es necesario analizar la singularidad de los cambios tanto institucionales como con referencia a la experiencia de los sujetos; estamos ante una clara desregulación de las creencias y un pluralismo instalado en la sociedad y convertido en uno de los elementos fundamentales de cambio; se multiplica la oferta de bienes de salvación, se complejiza la puja entre las distintas instituciones religiosas Culturas e Div. Religiosa.P65 107 21/10/2010, 14:18 108 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) en el ámbito territorial, a su vez se incrementa la presencia de una diversidad de modalidades de creencias no sujetas al control de las instituciones; un pluralismo en el que emerge un proceso creciente de individuación y autonomización y se manifiestan las opciones que llevan a cabo los propios creyentes de sectores populares, otorgando sentido a sus necesidades y demandas; aparecen instancias de consolidación, de reestructuración, nuevas formas de vinculación con lo religioso en las que se afirman relaciones directas con lo considerado sagrado o trascendente, replanteando de hecho la existencia de mediadores privilegiados y reconociendo una diversidad importante de mediaciones posibles. Se dan ciertos mestizajes religiosos que no se traducen en una mera superposición de símbolos religiosos ni en una dilución de creencias, sino suponen la capacidad de síntesis vital, de convergencias y replanteos, que lejos de excluir, integran y resignifican, respondiendo a las necesidades de los individuos en su autonomía y capacidad de elección, en medio de un movimiento de subjetivización y de crisis de las pertenencias institucionales que caracterizan al actual proceso de pérdida de influencia de las instituciones religiosas, que no impide la proliferación de diferentes creencias, situación que afecta de modo directo a las religiones tradicionales7. Un movimiento dinámico que es propio de toda religión en su dimensión más vital, lo que implica considerarla no como una dimensión ajena al conjunto del movimiento socio-histórico que intenta consolidar nuevos proyectos de sociedad, por lo que como observa R.Salas Astrain8 con respecto a la religiosidad de los pueblos originarios, no se puede considerarla exclusivamente a partir de una mera afirmación cultural de los propios dioses, de movimientos étnicos o de Iglesias nacionales; sin tener que disponer de respuestas en todos los órdenes de la vida social y económica, no pueden desvincularse de la exigencia actual de comprender las implicancias culturales del desarrollo. El predominio de visiones más integristas en muchas religiones tradicionales, se debe en buena parte a esta necesidad de encontrar respuestas integradas en donde los ámbitos sociales, culturales y económicos aparecen dislocados, siendo que en las sociedades actuales es cada vez más difícil elaborar un proceso identitario sin que se reconozcan y asuman los núcleos culturales más densos, a saber los que remiten a una memoria histórica y a un proyecto común, al lenguaje y a la religión. Ello conduce también a repensar el diálogo inter-religioso; si la cuestión ya no es cómo se vinculan la religión cristiana y las religiones indígenas en bloque, sino cómo se entrecruzan en eco-espacios regionales distintos y en localidades específicas, entonces se requiere pensar las propuestas socio-culturales de los actores religiosos en el marco de la elaboración de experiencias locales y regionales que deben asumir por cierto el desafío de su universalización. Las diferentes formas en que se asume el encuentro y el desencuentro entre religiones en un contexto intercultural como el que vive el planeta hoy a finales del siglo, podría aprender mucho Culturas e Div. Religiosa.P65 108 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 109 de un continente donde ya se han plasmado históricamente diferentes estilos de convivencia entre las minorías indígenas y las sociedades nacionales, aunque no basta sólo mostrar la riqueza de estos mestizajes religiosos, sino que se puede asumir como parte de un proyecto ecuménico deseable y posible para el mundo venidero, porque toda religión que busca ser auténtica necesita abrirse, por un dinamismo que le es propio, a las nuevas perspectivas que aporta el contacto histórico con la cultura y la religión de los otros pueblos. Las religiones de los pueblos originarios son conjuntos simbólicos y rituales que no se reducen nunca a formas completamente delimitadas, puesto que están permanentemente azuzados por los acontecimientos y peripecias socio-económicas y políticas que viven las comunidades, en búsqueda de nuevas formas de asegurar su sobrevivencia material y social como memoria pero también como destino. Sin embargo, el vínculo histórico que han tenido con las religiones cristianas no ha sido siempre el más positivo, ya que en el esfuerzo misionero se han implementado, a veces, prácticas que desconocían los derechos religiosos y la conciencia religiosa de los indígenas, aunque también en las últimas décadas han surgido otras formas de relaciones inter-culturales más fraternas y más centradas en el logro de proyectos comunes de desarrollo. La cuestión decisiva que hoy se plantea es cómo potenciar estos vínculos a fin de evitar los integrismos intransigentes. Es evidente la importancia teórica y práctica de articular espacios interculturales de encuentro y de diálogo entre las diversas religiones en territorios multi-étnicos, valorizando los particulares y diversos acercamientos a lo sagrado, porque sabemos que las dificultades no son pocas en regiones indígenas donde se vive a veces una gran polarización producto de la pobreza, la exclusión y el fanatismo de los colonos y de las empresas multinacionales, y donde también existen iglesias y movimientos que buscan entre sus objetivos directos el desarraigo cultural de los nativos. Con respecto al cristianismo, este fin de siglo encuentra a América Latina viviendo un fenómeno religioso inusitado, según los expertos. Junto a Africa, el Caribe y, en menor medida, Asia, se ha convertido en epicentro. El 70% de los cristianos del mundo habitan en esta zona y algunas proyecciones indican que para los comienzos del nuevo milenio sólo un 25% de ellos vivirá en la parte que se extiende de Estados Unidos a Rusia, el “antiguo” mundo cristiano. Pero no sólo ha crecido numéricamente sino que también aumentó su diversidad. De una Iglesia Católica Romana hegemónica hasta hace pocos lustros, nos encontramos ahora ante iglesias y movimientos evangélicos independientes que alcanzan al 20% de la población en varios países y comienzan a tener un protagonismo público activo, ya sea porque sus miembros incursionan sin timidez en la arena política o porque conocen bien y utilizan sin reservas los medios masivos de comunicación. Culturas e Div. Religiosa.P65 109 21/10/2010, 14:18 110 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) También existe un despertar de la religiosidad indígena, en sus diversas expresiones, y un reconocimiento de los cultos afroamericanos que, reprimidos durante varios siglos, salen a la luz con una fuerza que gana adeptos en una población deseosa de reencontrar sus raíces y reconstruir su identidad como pueblos dignos de una cultura y una espiritualidad propias. Y entre los no-cristianos crece la certeza de que es necesario construir nuevas relaciones sociales, en justicia y en procura de la paz, que derribe las barreras de la exclusión y plantee la necesidad de un macroecumenismo basado en la solidaridad cósmica en defensa de la vida. Cuando la Iglesia Católica con los aires renovadores del Concilio Vaticano II emprende una nueva evangelización, y en el proceso que culminó con la recordación de los 500 años de la conquista de América, comienza a darse un diálogo de reconocimiento de las propias identidades, surge una nueva concepción del ecumenismo que se había aplicado sólo al diálogo entre algunos sectores cristianos, extendiéndose a las nuevas expresiones cristianas que crecen con rapidez, a la antigua religiosidad existente en estas tierras, a la que cruzó el océano con los esclavos africanos y hoy se muestra en sí misma, y a los sectores no-cristianos solidarios con la vida. Tanto el Consejo Latinoamericano de Iglesias (CLAI), que reúne a 140 iglesias protestantes, como los líderes católicos y protestantes, incluyendo obispos, teólogos y autoridades de iglesias evangélicas, que participaron de la Asamblea del Pueblo de Dios, se unieron a la protesta generalizada que impidió una celebración “victoriosa” del así llamado descubrimiento de América. En 1992 la Asamblea del Pueblo de Dios celebró su primera reunión en Quito, Ecuador, mientras que el CLAI auspició el Programa de los 500 años y celebró la consulta “Martirio y Esperanza”, en Cochabamba, Bolivia. Los documentos que se dieron a conocer en estas reuniones y sus declaraciones finales abrieron una instancia importante de acercamiento entre cristianos y religiosos indígenas, que va más allá de la solidaridad en la búsqueda de justicia, no discriminación, respeto a las culturas nativas y llega a marcar el comienzo de un diálogo hasta ahora vedado. Este tipo de diálogo que impulsa el macroecumenismo recién comienza a implementarse en nuestro continente y requiere de un seguimiento eficaz que sepa tener una clara visión de las cuestiones culturales y de las cosmovisiones específicamente religiosas involucradas en este intento. Es preciso también que anime una relación que durante varios años ha pasado por una suerte de invierno; a la controversia provocada por las críticas del Vaticano a la teología de la liberación, y por la condena a las experiencias de las comunidades eclesiales de base y de la iglesia popular, sobre todo en Centroamérica, hay que agregar los embates católicos a las nuevas iglesias evangélicas misioneras e independientes que han surgido en el continente en las últimas décadas. Muchas de ellas han sido calificadas peyorativamente como sectas por el propio CELAM, provocando irritación en el ámbito protestante y un enfriamiento progresivo en las relaciones recíprocas. Culturas e Div. Religiosa.P65 110 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 111 En este sentido es importante tener en cuenta los significativos logros alcanzados por la teología latinoamericana de la liberación 9, entendiendo por ésta una forma de teología que bajo el impulso decisivo de Medellín en 1968 y Puebla 1979, es decir con la dinámica de renovación de la Iglesia Latinoamericana después del Concilio Vaticano II, empieza a desarrollar una reflexión contextualizada, que irá condensando un estilo propio, aunque diverso en opciones teóricas y prácticas, logrando perfilar un modelo de racionalidad con una claridad epistemológica y metodológica que sobrepasa a la alcanzada por otras disciplinas en el continente, reflejando un proceso interno de autocorrección de la razón teológica a partir de la apertura interdisciplinar e intercultural, como quehacer científico enraizado en la realidad del continente, superando la imitación y repetición de la lógica occidental y manifestando una creatividad que ha alcanzado resonancia internacional. En este proceso de autotransformación se pueden distinguir entre otros dos momentos esenciales, una teología a partir de las culturas indias y otra a partir de las culturas afroamericanas; ambas marcan un giro radical hacia la pluralidad cultural y teórica, hundiendo sus raíces en un suelo intercultural e interreligioso, fruto de un largo proceso de reajuste y de revisión autocrítica, siguiendo el programa de ‘nueva evangelización’ que exige se parta de los propios valores y culturas de los pueblos. La teología india se entiende como traducción de las experiencias religiosas indias en su especificidad y variedad, rechazando someterse a la rectoría de otras teologías, como la cristiana, sabiéndose una determinada teología y, por lo tanto, con conciencia de la necesidad de comunicarse con otras, de intercambiar experiencias religiosas. Su respectiva traducción teológica no se agota en el horizonte lógico-racional y abarca los universos transmitidos en el mito, el rito, la simbología, la metafórica, entendiéndose como proceso de acompañamiento reflexivo de la vida del pueblo o comunidad a la luz de sus tradiciones; por su sujeto y objeto se considera praxis de liberación proyectada los mismos pueblos indígenas sobre la base de sus valores y tradiciones, liberación conjunta del hombre y la tierra, de la vida. La teología afroamericana es la que patentiza con mayor claridad la tragedia de la guerra teológica de exterminio, se instala verdaderamente en una alteridad negada pero asumida como fuente creadora propia; su discurso reflexivo se articula en y desde la praxis de resistencia social y religiosa de los pueblos afroamericanos, un discurso liberador de la palabra negra de Dios y sobre Dios, siendo su referencia última un dios único, no determinable en el discurso porque trasciende todo sistema; se configura como una teología de espiritualización o reflexión, que sobre la base de una vivencia espiritual-sacral del cosmos, apunta a iluminar el mundo del ser humano como una región en la que combaten fuerzas espirituales y en la que por consiguiente no todo depende de nosotros sino de la acción de los espíritus; el espacio y el tiempo son Culturas e Div. Religiosa.P65 111 21/10/2010, 14:18 112 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) portadores de un sentido especial, vivencia de una peculiar unión entre la vida humana y la religión, que extiende el espacio religioso a todo lo vital y viceversa, eleva el cuerpo humano a espacio teológico en sentido estricto, y por ello no se expresa sólo como discurso de la inteligencia sino también de la emotividad, afectividad y sensibilidad, vehiculizado por la danza, el canto, la celebración. Se trata de una teología de la salud y de la liberación de la vida humana en esta tierra, de una teología comunitaria tanto con respecto al sujeto como al objeto, que recure eminentemente a tradiciones orales, siendo su material básico todavía transmitido por vía oral. La diversidad religiosa en Argentina La situación argentina ha de ser comprendida dentro de la situación latinoamericana, la patria grande, aunque con algunas características propias. En la sociedad argentina se muestra una amplísima mayoría de creyentes, más de un 91% dicen creer en Dios10. Desentrañar el significado de esta creencia nos lleva a un imaginario colectivo en el que está presente una marcada y a la vez variada apreciación acerca de lo sobrenatural o sagrado. Focalizando la mirada en los sectores populares nos encontramos con una diversidad de manifestaciones que expresan la fecundidad de lo religioso y la complejidad del pluralismo existente. Un buen modo de acercamiento y comprensión lo ofrecen algunas manifestaciones principales de la religiosidad popular, en tanto tienen que ver con el imaginario de nuestra experiencia histórico cultural mestiza hasta el momento actual en los términos descriptos, y con una inteligibilidad y racionalidad que se van construyendo y que bien podemos calificar de interculturales11. Se trata de creencias y prácticas religiosas vinculadas a lo trascendente, sobrenatural, sagrado, relacionadas con la existencia de seres considerados divinos, fuerzas a las que se atribuyen poderes sobrenaturales, personas santificadas constituidas después de su muerte en mediadores privilegiados ante la divinidad, ritos que establecen una diversidad de prácticas sociales y simbólicas, sobre todo creencias y prácticas relacionadas con una singular apreciación de lo que se denomina sagrado, que está presente en la vida de los sujetos y se manifiesta religiosamente de múltiples maneras. Mujeres y hombres no sólo rezan, sino van a templos o capillas, asisten a salones del reino, participan de ceremonias en lo terreiros o concurren a santuarios en general, invocan en sus oraciones a Jesús, hacen promesas a la Virgen, realizan peregrinaciones, prenden velas a los santos preferidos, generan altares y devociones en una diversidad de cultos populares, procuran agua bendita para sus múltiples quehaceres domésticos, asumen y expresan cotidianamente apreciaciones referidas a múltiples mediaciones simbólicas de carácter religioso presentes en el imaginario social. Creencias religiosas que convergen en una experiencia del creer, de desplegar una mirada sobre la vida, que sin agotarse en las Culturas e Div. Religiosa.P65 112 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 113 numerosas limitaciones y dificultades cotidianas se transforma en un recurso fundamental para encontrar sentido, y permite plantear una apertura a pesar del cierre de alternativas, considerar posible lo aún aparentemente imposible y mantener de alguna manera la esperanza. Tales creencias no sólo gravitan en comportamientos y actividades en general, sino que constituyen una parte sustantiva de su vida social, donde aparecen tanto manifestaciones vinculadas con la tradición y la memoria colectiva, como recomposiciones y nuevas modalidades e identidades religiosas. Este fenómeno fue diversamente denominado e interpretado como religiosidad de los sectores populares, religión ordinaria o popular; sufrió los mismos cuestionamientos y descalificación experimentados por otras expresiones culturales a causa de su pertenencia popular, siendo considerada por los representantes de la cultura hegemónica y los partidarios de un paradigma modernizante como una religiosidad básica, mezcla de magia y superstición, producto residual de las valoradas como grandes y verdaderas religiones. Sin embargo, se trata de una religiosidad que manifiestan y viven los sectores populares de manera profundamente vital y persistente, constituyendo un recurso imprescindible en su vida diaria, tanto por la fe que los sostiene en los momentos de angustia como por la que los moviliza. Se encuentra enmarcada en las matrices culturales de los sectores populares y en los procesos de recomposición de creencias y prácticas que llevan a cabo cotidianamente, no sujeta a las instituciones religiosas reconocidas y consolidadas. La religiosidad de los pueblos originarios, sea en el caso de los pueblos guaraníes del litoral, como los pueblos andinos, los del centro y sur del país, ha logrado sobrevivir a pesar de los procesos de colonización, destrucción y deculturación de que fueron objeto. Impregna todos los aspectos de la vida personal y social, conduce al desarrollo de una simbología y una mitología fecunda en ritos y gestos considerados sagrados, y de una forma u otra está conformando e incidiendo en el universo religioso popular en general12. Las religiones afroamericanas, existentes desde la época de la colonia, también permanecieron e incidieron en la religiosidad popular y desde mediados del s. XX se fueron expandiendo formas religiosas afrobrasileñas. La vitalidad innovadora, la gran fuerza creativa que los esclavos africanos mostraron en América, en una amplia distribución y división de pueblos, es el producto final de siglos de transformación, durante los cuales fueron agentes activos. Las creencias afroamericanas, como ya mencioné, constituyen un sistema de valores y percepciones subyacentes, que toma determinadas formas según las condiciones peculiares de cada lugar, como sucede con otros aspectos de su cultura, detentando sobre todo un profundo sentido religador, que permitió preservar un ethos a lo largo de dramáticas luchas y de presiones hegemónicas. En el sistema de interrelaciones dinámicas en que se dan, la religión constituye el mayor exponente, que impregna y marca todas las actividades, aún las más Culturas e Div. Religiosa.P65 113 21/10/2010, 14:18 114 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) profanas, puesto que caracteriza a su tipo de imaginario; por ello, en la diáspora fue el factor fundamental que permitió el reagrupamiento de los africanos y sus descendientes, la transmisión de valores esenciales, dentro de un proceso de continua adaptación, fagocitación de elementos foráneos y reinterpretación13. A través de la más variada gama de manifestaciones, generalmente desconocidas o malinterpretadas por el blanco debido a su extrañeza y carácter iniciático, han influido la sociedad global americana, permeando sobre todo la religiosidad popular, tal vez más con actitudes que con elementos precisos. El vudú haitiano y la santería cubana, así como diversos ritos en Brasil, constituyen exponentes notorios de esta situación e importancia de lo religioso. A pesar de su diferencia hay rasgos fundamentales comunes: el culto no es referido al espíritu supremo, dios creador, por considerárselo inefable, distante, sino a las más diversas manifestaciones de la divinidad, fuerzas de la naturaleza o antepasados, númenes, con sus diferentes rasgos; se suceden libaciones, ofrendas de animales, ritmos musicales, canto y danza hasta que los iniciados son poseídos o ‘cabalgados’ por un ‘loa’ o espíritu; la danza parece al profano un proceso descontrolado, sin embargo cada danzante, cabalgado por un loa diferente, sigue con espontaneidad el movimiento que le corresponde y participa de una interacción de fuerzas. Si bien en nuestro medio el proceso de trasculturación pudo ser más intenso que en otras zonas de América debido al peso mayoritario de la inmigración europea, sin embargo no dejó de ocurrir lo que F.Ortiz14 afirma para el Caribe, el hecho de que el africano, a pesar del adoctrinamiento católico, conservó sus propias creencias religiosas, porque ellas significaban algo nuclear de su identidad y reinterpretó la religión impuesta como en general el fenómeno cultural euroamericano que le tocó compartir, desde las formas de su propia cultura. Se documentan numerosas manifestaciones religiosas de origen africano, desde el pasado colonial hasta el presente 15. Los conventos contaban para sus labores con las rancherías de más de un centenar de esclavos, poseían cofradías de siervos y negros libres en cuyas ceremonias se confundían cruces cristianas con los ‘eres’ africanos, el ritual católico era asumido con los principios y las prácticas de la liturgia africana. Ha sido importante la presencia de brujos y hechiceros, ‘tatas viejos’, ‘ajés’ en nagó y ‘jenkadams’ en fon, lenguas de Nigeria y Dahomay, en una sociedad que ya conocía la hechicería por parte de los indígenas, entre quienes alcanzó gran relieve; algunos cobraron gran nombradía, por ej. desde toda la ciudad de Buenos Aires se acudía a San Telmo para consultarlos, recordándose en particular a la negra Mercedes, así como en Montevideo a la Tía Celedonia; prácticas que no dejaron de asumir también elementos amerindios y católicos. Entre las ceremonias más sugestivas y añosas se registra la ‘danza del santo’, culto hierático y esotérico, en el que se daba tanto lo mágico como lo religioso, y se celebraba antes de formular imploraciones, ofrendas y vaticinios para la curación de algún miembro enfermo de la comunidad, por parte del ‘tata viejo’ o ‘brujo doctor’. Una Culturas e Div. Religiosa.P65 114 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 115 fervorosa devoción distinguió al santo negro Benito de Palermo, Sicilia; asimismo se honró a San Baltasar, el rey mago africano, patrón de los afroargentinos; en la ciudad de Corrientes, en el barrio de Cambá Cuá ’viejo negro’ en guaraní- se le homenajea con ceremonias de gran fervor, en armoniosa síncresis con elementos católicos. Por influencia afrobrasileña se veneró a la Virgen del Rosario, cuya cofradía estaba en la Iglesia de Santo Domingo en Buenos Aires; hasta hoy subsiste la famosa Capilla de los negros en Chascomús bajo la advocación de Nuestra Señora del Rosario, fundada hace más de 150 años por el negro Alsina de Ruiz con la colaboración de la Hermandad de los morenos, que vivía en el barrio del Tambor; Sarmiento hizo referencia a cultos semejantes en Córdoba y Pelegrini los representó pictóricamente. En las ceremonias católicas los negros introducían una inconfundible marca a través de sus danzas, cantos y música; se adueñaron de la fiesta de San Juan, de origen europeo e introducida en América por los españoles, dando lugar a ‘La noche de San Juan’, día de los candomberos, con algún esoterismo. Si bien los rituales con el tiempo se fueron debilitando y diluyendo en las vías de la trasculturación, y con mayor intensidad en nuestra zona a causa del rápido absorberse del negro en una población cosmopolita, sin embargo no se debe olvidar que el sistema negroafricano de pensamiento y creencias no le impide acomodarse a nuevas situaciones y que detenta toda una tradición en ello, procediendo como un factor activo en el mestizaje americano. Es así como el fenómeno de expansión del Umbanda que se está verificando desde hace algunas décadas nos lo hace repensar; como lo afirma J.E.Gallardo16. Roger Bastide señalaba en l972 el aspecto religioso de las migraciones afro desde Maranhâo hacia la Amazonia y desde Recife, Bahía y Alagoas hacia San Pablo, donde ya cristalizaba el fenómeno urbano y suburbano del Umbanda; en el contexto más amplio que abarcaría la diáspora de la santería afrocubana, del vudú haitiano y del changó de Trinidad, sobre regiones de U.S.A, México y el Caribe, el caso del Umbanda pertenece a un contexto más específicamente brasileño y en el tipo de sincretismo que reconoce aspectos espiritistas, católicos, tupí-guaraníes sobre una base africana bantú, fon y yoruba; desde Rio Grande do Sur ejerció influencia sobre Bolivia, Paraguay, Uruguay y Argentina, donde la difusión se da sobre todo en la cercanías de las fronteras con estos países, aunque la casi totalidad de los templos registrados oficialmente se encuentren en Buenos Aires y su periferia; la fuerza de este fenómeno de expansión no se debe al proselitismo sino a las respuestas que ofrece a las necesidades materiales y espirituales una matriz cultural que por otra parte ya tenía su presencia histórica. Además de los ritos litúrgicos fueron significativos los ‘ritos mortuorios’ según las tradiciones africanas, para las que la muerte tiene la misma trascendencia que el nacimiento y es aceptada como un hecho que pertenece a la vida, guardándose un estrecho parentesco y comunicación entre vivos y difuntos. La ofrenda, que Culturas e Div. Religiosa.P65 115 21/10/2010, 14:18 116 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) distingue a la práctica religiosa africana, es expresión ejemplar de la interacción de las fuerzas vitales del universo. El catolicismo popular constituye una de las formas más importantes de religiosidad popular, predominante en el país. Un alto porcentaje de la población se autodefine como católica, un 76% según la Encuesta sobre creencias y actitudes religiosas en Argentina, siendo mucho menor el de quienes participan y concurren asiduamente a la Iglesia, mientras una mayoría sólo lo hace en algunas oportunidades o con muy poca frecuencia. Caracterizado por una escasa práctica sacramental, con un vínculo con los llamados ritos estacionales o de pasaje del catolicismo, asociados con etapas de la vida como el bautismo o el culto a los difuntos, no sujeto a controles o regulaciones institucionales, con instancias de crecimiento y reproducción más allá de las mismas. Directamente vinculado en sus orígenes con el proceso de evangelización, en convergencia de la tradición del catolicismo popular ibérico con las formas de religiosidad de los pueblos originarios y afroamericanos, en un proceso de mestización cultural con manifestaciones de carácter sincrético que dan lugar a diversas formas de catolicismo popular: modalidades de origen rural, pasando por las urbanas, hasta numerosos cruces en los que es posible encontrar desde modalidades propias del catolicismo popular tradicional hasta las nuevas de un catolicismo popular difuso. Una forma de religiosidad que lejos de planteos intelectuales o abstractos, enfatiza la relevancia de la emotividad y la denominada piedad del corazón, se expresa tanto en una diversidad de prácticas sociales y simbólicas en la vida cotidiana, como a través de creencias y devociones especiales, requiriendo de mediaciones particularizadas, accesibles y directas. Un complejo sistema de creencias, ritos, vivencias y experiencias religiosas, que junto a los factores que caracterizan a la religiosidad popular en general, como la preeminencia de lo sagrado, los elementos míticomágico-simbólicos y la vitalidad, hay que sumar la relevancia de la creencia en Jesús, el culto a la Virgen, las devociones a los santos, el culto a los difuntos, la importancia de la fiesta religiosa popular y las peregrinaciones, las creencias y santificaciones populares, los cultos de sanación. Perspectivas pedagógicas En el contexto mundial globalizado de extensión de la racionalidad filosófico-científico-técnica y de sistematización total, a la vez que de fuerte búsqueda de alternativas en sociedades contemporáneas que sufren el impacto de la falta de reconocimiento e inclusión de las identidades y en general del ser y sentido de todo lo que es, lo religioso, en tanto sentimiento de y religación a lo sagrado, una dimensión esencial de ser de la que da elocuente testimonio la memoria de todos los pueblos, se torna fundamental, en tanto asimismo implica sustancialmente el Culturas e Div. Religiosa.P65 116 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 117 imaginario social. De allí que frente a lo que podría ser llamado una tercera colonización, sean importantes los diálogos interreligiosos, capaces de integrar la diversidad de configuraciones religiosas, y la tarea intercultural, capaz de reconocer y reunir la multiplicidad de experiencias, cada una insustituible y fecundable en el diálogo con otras, correspondientes a la diversidad de culturas o formas de vida. Se advierte entonces la evidente exigencia de construir una inteligibilidad y racionalidad interlógicas que correspondan a tal experiencia, y la importancia de educar en esta actitud que reconoce lo humano en la diversidad de conformaciones en las que se ha venido dando, aprendiendo, discerniendo, para poder traducirlo en la organización política, en un continente como el americano, de constitución intercultural, y en el mundo, que también siempre lo ha sido. Notas 1 Doctora en Filosofía de la Universidad de Munich. Profesora de pregrado y posgrado, como profesora invitada en Universidades argentinas y europeas.Traductora de Martín Heidegger a lengua castellana. Membro fundadora da ASAFTI. Lidera yunto con Raúl Fornet-Betancourt, el proyecto de Filosofía Intercultural. E-mail: [email protected]; 2 Hölderlin, “Germanien”, p.333 y “Brot und Wein”, p.294, en Sämtliche Weke, p.333, Insel Verlag, Frankfurt, 1961 3 M. Heidegger “Die Frage nach der Technik”, en Vorträge und Aufsätze I, Neske, Tübingen, 1967. El sentido común de la palabra Gestell equivale a andamiaje, armazón, estructura, pero recibe aquí el especial de nombrar lo reuniente de ese poner –stellen-, que exige al hombre descubrir lo real en el modo del solicitar como existencias, manera del descubrir que reina en la esencia de la técnica moderna sin ser algo técnico, mientras a lo técnico pertenece todo tipo de armazón, montaje. 4 Hölderlin, “In lieblicher Bläue…”, en Sämtliche Werke, op.cit., p.481. 5 M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), GA t.65, V.Klostermann, Frankfurt am Main, 1989, especialmente VII. Der letzte Gott. 6 A.Frigerio compil. Ciencias sociales y religión en el Cono Sur, Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1993. 7 A. R. Ameigeiras, Religiosidad popular- Creencias religiosas populares en la sociedad argentina, Biblioteca Nacional/UNGS, Buenos Aires, 2008. 8 R. Salas Astrain, “Catolicismo y Religiones Indígenas en el marco de la modernización en América Latina”, en VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, San Pablo, 22-25 de septiembre de 1998. 9 Como observa R.Fornet Betancourt, “La teología latinoamericana: una pista para el trabajo interdisciplinar en el programa de una filosofía íberoamericana intercultural”, en Transformación intercultural de la filosofía, II,3, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2001 10 F.Mallimaci dir., Primera encuesta sobre creencias y actitudes religiosas en Argentina, Ceil Piette/Conict, UBA/UNSE/UNR;UNC, 2008. 11 A.R.Ameigeiras, Religiosidad popular- Creencias religiosas populares en la sociedad argentina, op.cit. 12 C.Martínez Sarasola, Nuestros paisanos los indios, Emecé, Buenos Aires, 1992. L. Golluscio, El pueblo Mapuche: poéticas de pertenencia y devenir, Biblos, Buenos Aires, 2006. 13 J.E.y Descoredes M.Dos Santos, Religión y cultura negra, en M.Moreno Fraginals compil.,”Africa en América Latina”,op.cit. 14 F.Ortiz, Los bailes y el teatro de los negros en Cuba, LaHabana l951. 15 Entre otros, N.Ortiz Oderigo, Aspectos de la cultura africana en el Río de La Plata, op.cit. J.E.Gallardo, Presencia africana en la cultura de América latina, F.G.Cambeiro, Buenos Aires l986. 16 Op.cit. Culturas e Div. Religiosa.P65 117 21/10/2010, 14:18 3 TERCERA RELIGIÓN: LENGUAJE RELIGIOSO DEL PUEBLO DEL PARAGUAY Bartomeu Meliá, s.j.1 Su hablar no es más que un agregado de solecismos y barbarismos, mezclando español con guaraní y guaraní con español; españolizan el guaraní y guaranizando el español, lo mismo que el vizcaíno cerrado, cuando aprende el español, o como un muchacho gramático de menores, que quiere hablar latín. Así hablan los españoles esta lengua en toda la jurisdicción de las Corrientes y Paraguay: por lo cual ni se saben explicar con los indios, ni los indios los entienden bien, ni ellos a los indios. (AHN, Jesuitas. Leg. 120j. 82. p.45). Si la primera conquista es la de la tierra, en cuanto descubierta, explorada, invadida o privatizada y la útima es la conquista de la lengua, negada, sustituida o transformada, es en la religión donde se dan las sustituciones y transformaciones simbólicas más profundas. El paso de una religión a otra deja huellas. Cambios lingüísticos y cambios religiosos tienen mucho que ver entre sí. Si hablamos de tercera religión, es porque se dan en América, y para nuestro propósito en Paraguay, terceras lenguas. Todo el vulgo, aun las mujeres de rango, niños y niñas, hablan el guaraní como su lengua natal, aunque los más hablen bastante bien el español. A decir verdad, mezclan ambas lenguas y no entienden bien ninguna...Así nació una tercera, o sea la que usan hoy día. (DOBRIZHOFFER, 1967, p. 149-150). La producción de un tertium quid, es uno de los rasgos más característicos de la colonización, en un largo proceso definido como un ya no es y un todavía no es, tan propio de las ideologías evolucionistas. A esta cosa tercera se le ha llamado muy ordinariamente, mestizaje y sincretismo. No es del caso discutir la evolución sentimental que ha habido respecto a estos conceptos. De todos modos prefiero acudir a la figura de la tercera lengua para hablar de la religión colonial de los indígenas cristianos y del pueblo paraguayo. Reducir La Lengua Toda lengua se desarrolla en tres niveles fundamentales: el de la fonología, el de la morfología, y el del léxico. Hay un cuarto nivel, más complejo, en el que juegan otros muchos factores extralingüísticos, que es el del discurso. Culturas e Div. Religiosa.P65 118 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 119 Pero lo propio de cualquier lengua es ser sistema y, cuando se encuentra con otra lengua, lo que estará en juego es el careo de sistemas, que se resolverá como guerra a muerte o como diálogo; es decir, como supresión de una de las lenguas, como bilingüismo, o como surgimiento de una tercera lengua. El contacto de las lenguas se inicia generalmente como un juicio mutuo, una toma de conciencia de las diferencias, pero la hostilidad no es necesariamente el primer cuadro que se presenta, sino por el contrario la posibilidad de traducción. Los intérpretes y “lenguas” son las figuras más comunes en los primeros tiempos, teniendo presente que son los indígenas los que presentan mayor capacidad de “interpretación”. Apliquemos estas figuras generales de la lingüística, más bien de la socio lingüística, a la religión. Ladridos De Perros Desde la clave que usamos surge una primera aproximación entre lengua y religión. Aunque no haya sido lo más ordinario, se les negó a los indígenas que tuvieran lengua. Y se les negó también que tuvieran religión. Ya por su fonética muchas lenguas no serían lenguas. Del dulce y maravilloso guaraní, en son de befa, dirá Félix de Azara que “la unidad de lengua entre los guaraníes indica aún que estos salvajes han tenido el mismo maestro de lenguaje que enseñó a los perros a ladrar” (AZARA, 1969, p. 248). De la falta de determinados fonemas en una lengua se tomó pie para disminuir la lengua indígena. Se dirá de la lengua tupí, y lo mismo vale de la guaraní, que “carece de tres letras, conviene a saber: no se halla en ella F, ni L, ni R, cosa digna de espanto porque así no tienen Fe, ni Ley, ni Rey, y de esta manera viven desordenadamente sin tener por lo demás ni cuenta, ni peso, ni medida” (GANDAVO, 1980, p. 124). Yendo adelante en el camino de la negación, se echará de menos en las lenguas indígenas palabras apropiadas para expresar los altos misterios de la fe cristiana. El obispo Lorenzana (1769), de Méjico, repetía que “es muy difícil o casi imposible explicar bien en otro idioma los dogmas de nuestra santa fe católica...” (cf. MELIÀ, 1969, vol. I, p. 26, n. 72). Y nuestro Azara, “que es imposible redactar un catecismo en lenguas tan pobres, a las que faltan palabras para expresar las ideas abstractas, y aun para contar más allá de tres o cuatro...” (AZARA, 1969, p. 248). Como Urracas y loros Solórzano Pereira no se recataba en decir que “antiqua et solemnis consuetudo omnium fere nationum fuerit, ut victores victis suum idioma, ac mores communicent, sentientes hoc ad iura victoriae, atque superioritatis Culturas e Div. Religiosa.P65 119 21/10/2010, 14:18 120 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) respicere” (cf. MELIÀ, 2003, p. 52), en la que el castellano aparece conquistador y victorioso, hubo ciertamente otras tendencias que apreciaron y cultivaron las lenguas indígenas, sobre todo aquellas que podían prevalecerse del título de lenguas generales. Fue la posición, desde temprana hora, de religiosos, especialmente dominicos, franciscanos y jesuitas. Son la pléyade de los “misioneros gramáticos”, verdaderos pioneros de la lingüística americana, como se los reconoce científica y académicamente. Ellos fueron los constructores de las lenguas indígenas coloniales -en cierta manera un nuevo tipo de lengua-, pues las redujeron a escritura, a arte de gramática, a diccionario, y con estas bases crearon un nuevo tipo de discurso, representado por oraciones, catecismos, doctrinas y sermonarios. La lengua no es negada, pero es instrumentalizada a afectos de traducción. Todo puede ser traducido en una lengua indígena; resemantizar palabras tradicionales, crear neologismos, introducir hispanismos, serán los grandes recursos de este vasto plan de traducción, que llegará a los niveles del discurso. Aquí no se niegan las palabras de la lengua, pero se prescinde de la lengua. Son las palabras de la lengua sin la lengua, una especialidad que llega a sus expresiones más revulsivas en las prácticas lingüísticas de algunas sectas actuales. La Imprenta en la Selva La misma lengua, tomada como instrumento de traducción sin límites, y por ello conceptualmente dependiente de otro lenguaje, trasluce otra concepción que podríamos caracterizar como platónica – la teoría está en efecto expresada en el Cratylo - y es la que ve en las lenguas un don singular de Dios. Y esto aunque sean habladas por “salvajes” y “bárbaros”. El reconocimiento de un cierto carácter divino en las lenguas será la respuesta de los teólogos a los ideólogos que propugnaban su extinción y substitución. “Causando justa admiración que en tanta barbarie, como era la de la nación guaraní, cupiese tan admirable artificio” (LOZANO, 1754, vol. I, p. 259). Curiosamente surge una especie de teología de la lengua, como rasgo fundamental de la cultura, que la redime de la maldición de Babel. “Por su admirable artificio... quien le conocerá no podrá dejar de admirar la infinita sabiduría de Dios que infundió tantas sutilezas en unos entendimientos tan toscos” (El padre Ig. Chomé, en VARGAS UGARTE, 1931, p. 148155). La teología lingüística les hace incluso suponer a algunos que la lengua es mayor que la cultura, la potencia lingüística mayor que el acto, el don mucho mayor que el receptor. El autor de un Diccionario Portuguez, e Brasiliano (/1795/: ix-x) adelantaba un curioso argumento: “[...] não tendo eles idéia alguma de religião, excepto a da natureza, na sua propria Culturas e Div. Religiosa.P65 120 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 121 linguagem tiverão signaes para representar toda a sublimidade dos mistérios da religião e da graça; sem lhes ser preciso mendigaremnos de outra língua”. Muchas lenguas indígenas se han mantenido en América y se siguen hablando. Ninguna de ellas, sin embargo, puede prescindir del contacto, de la interferencia, del conflicto, del recelo frente al castellano. Hay que confesar que ninguna de ellas ha conseguido mantener ni el prestigio ni la generalidad que le fueron atribuidas en los primeros tiempos coloniales. Desde la perspectiva socio-lingüística aparece el fenómeno que se da en llamar de diglosia, para distinguirlo del bilingüismo, que sería el uso coordinado de dos lenguas. Conversión de la Religión A las modalidades lingüísticas presentadas le corresponden, analógicamente, otras tantas actitudes y posiciones de carácter religioso. A las pretensiones por implantar una sola lengua corresponden en gran medida los trabajos por propagar una sola religión. En otras ocasiones he analizado los juicios y prejuicios sobre las religiones indígenas y los caminos de su intentada substitución o conversión. Religiosamente los indígenas fueron calificados a veces de “finos ateistas”, otras de “monos de Dios”, pero también de “discípulos de Santo Tomás”. Con ello se declaraba la no existencia de religiones indígenas, su carácter diabólico, o sus vestigios incluso evangélicos. La Religión Clandestina A partir de estas actitudes, que a veces se dan simultáneamente en un mismo lugar, se originan diversas respuestas religiosas, que casi nunca coinciden plenamente con la conversión pretendida. La religión negada por desconocimiento o por ignorancia, puede continuar en el pueblo por el camino de la clandestinidad, que no se atreve a manifestarse a la luz del día; esto es, a la luz de la religión oficial. Aun en las misiones jesuíticas, que han quedado como paradigma y modelo de un cierto control absoluto por parte de los padres, se habían mantenido prácticas de religión y magia “paganas”, como lo muestran una serie de procesos de hechicería levantados a fines del siglo XVIII. A la ignorancia de la Iglesia sobre la religión indígena corresponde generalmente una religión soterrada y paralela. El fenómeno es tanto más importante cuanto la propia Iglesia de América Latina, cuyo clero ha salido en buena parte de sus estratos populares, ignora este hecho que, sin embargo, fue vivido por sus miembros en su infancia y es practicado por sus parientes más próximos, si no es que forma parte del mismo sentir y pensar profundo del clérigo. Es aquello de: On les croyait chrétiens: les aymaras. Paris, 1969, libro de Jacques Monast, tesis ciertamente discutible, pero con datos dignos de consideración. Culturas e Div. Religiosa.P65 121 21/10/2010, 14:18 122 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) De todos modos una religión que tiene que esconderse se somete a sí misma a un nuevo lenguaje, que en cierta manera la hace nueva religión. Cuando, sin embargo, se admitió, frente a la nobleza y bondad de vida que se descubría en muchas sociedades indígenas, que en ellas no podía haber sino vestigios de una revelación primera y antigua, cual podía ser la del apóstol Santo Tomás en América, del cual por doquier se descubrían huellas perennes marcadas en la roca, se pudieron rescatar algunos aspectos de la religión indígena. En este caso, sin embargo, era como mantener palabras de la lengua sin la lengua. La Diglosia Religiosa Esta configuración del proceso es, con todo, excesivamente fragmentada. Las religiones indígenas conservaron lenguajes nuevos y propios que, a modo de hipótesis, me atrevería a denominar “tercera religión”. Como en las terceras lenguas, no hay un único modelo ni un paradigma que hayan seguido las diversas sociedades que tuvieron que inventarse a sí mismas de nuevo. Las distinciones técnicas que se hacen en la lingüística se reproducen en cierta manera en la religión. Se da así lo que yo llamaría religiones bilingües, religiones diglósicas, religiones pidgin, religiones criollas. Naturalmente no puedo aquí detenerme en cada una de estas modalidades. Voy solamente a considerar una forma, que sería la diglósica. En lingüística llamamos diglosia “una situación lingüística relativamente estable en la que, al lado de los principales dialectos de la lengua (...), hay una variedad superpuesta muy divergente, altamente codificada (a menudo gramaticalmente más compleja), vehículo de un cuerpo de literatura extensa y respetado, procedente de un período antiguo o de otra comunidad linguística, que se aprende ampliamente en la educación formal y se usa sobre todo en la escritura y en el hablar culto, pero no se emplea por ningún sector en la conversación ordinaria” (FERGUSON, 1959; cf. VALLVERDÚ, 1972, p. 11-12). Con ello se tiene una variedad de lengua alta, o standard, empleada en la comunicación más culta y formal, y una variedad baja, empleada en la comunicación doméstica y coloquial. Por supuesto que no se puede aplicar mecánicamente el parámetro de diglosia a las formas como se dan las religiones en América Latina, pero por lo menos a nivel de lenguaje las analogías revelan aspectos fundamentales de la vida y expresión religiosa de nuestros pueblos. La eterna manía de los catecismos, sobre todo los catecismos universales, la preocupación por la monoliturgia, los textos de doctrina, los mismos documentos de la Iglesia, establecen fácilmente una lengua que se pretende alta y standard, pero que, en el mejor de los casos, sólo es Culturas e Div. Religiosa.P65 122 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 123 reinterpretada en sus variedades bajas. La misma designación de religiosidad popular para estas formas religiosas trae embutida en su ser la discriminación diglósica. La Religión Folclórica La religión de los paraguayos apenas ha sido objeto de descripciones, aproximaciones más bien diría yo, de carácter folclórico, lo cual implícitamente la sitúa en un terreno “bajo”. En un país donde la mayoría habla guaraní – 83% de la población – la religión católica se ha expresado desde los mismos tiempos de la colonia en castellano, o en latín, lo mismo que los cantos en la liturgia: castellano o latín. El cantoral en guaraní no es abundante y es poco usado. Actualmente hay textos litúrgicos en guaraní, traducidos literalmente de los textos típicos romanos de la Iglesia universal. Son guaraní, sin guaraní, si bien al ser usados en la celebración de la misa, producen en ciertos ambientes una corriente de extrañeza al principio, de compenetración después. En relación con lo mismo, apenas hay reflexión teológica sobre la religión cristiana paraguaya. Apenas algunos esbozos, como los que traza repetida y sistemáticamente la hermana Margot Bremer. Los nuevos movimientos religiosos instalados en Paraguay no tienen como fuente ni cauce la religiosidad paraguaya y se desarrollan más bien en ambientes burgueses de variedad religiosa “alta” y como sucedáneos de movimientos generales, como pueden los carismáticos, el camino catecumenal, cursillos de cristiandad, Schoenstat, focolarasimo, legionarios de Cristo, heraldos del evangelio, liturgias de sanación, etc., cada uno circunscrito a su parcela. Y en las parroquias, legión de María, Hermandad de San Roque, Apostolado de la oración. En todos esos grupos y movimientos es casi nulo el bilingüismo siquiera que, sin embargo, está cada vez más presente en la vida cultural. El uso de guaraní, que de por sí no es señal de inculturación o especificidad religiosa, pero sí le confiere un cierto color local, está presente en parroquias y capillas del campo, donde los curas de ascendencia campesina la mayoría y que saben guaraní en su casi totalidad, usan la lengua indígena por lo menos en la parte homilética. Es curioso el esfuerzo que hacen sacerdotes extranjeros de las zonas del interior del país –y es prácticamente interior, todo lo que está fuera del centro de Asunción, la capital-, por usar el guaraní aún a costa de sus limitaciones y dificultades. Las religiones fundamentalistas no parecen haber adoptado un lenguaje paraguayo, probablemente por su procedencia y dependencia del exterior. La religión cristiana paraguaya se manifiesta en prácticas que son también propias de muchos pueblos de América Latina, y que aquí se Culturas e Div. Religiosa.P65 123 21/10/2010, 14:18 124 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) revisten de rasgos particulares. Señalaría como una de las prácticas más significativas la procesión, las pequeñas procesiones familiares y las grandes procesiones en las fiestas patronales. La fiesta de la Virgen de Caacupé es ante todo una gran caminata en la que llega a participar un millón de personas, si no más, en la noche del 7 al 8 de diciciembre. Y es probablemente en el caminar religioso donde encontramos uno de los rasgos que de manera ya implícita nos elija con el caminar guaraní. Las imágenes de santos, que rompen con la tradición guaraní que no conoce esta expresión, entran la intimidad doméstica con fuerza y amplia presencia. Donde podemos encontrar más acuerdos y asociaciones con raíces indígenas guaraníes es en el trance de la muerte y las ideas y prácticas post-mortem que remiten a la presencia del alma en el lugar de la muerte y la necesidad de aplacar la misma alma en pena. Este aspecto ha sido ampliamente asumido en las recordaciones que se hacen de los difuntos en las misas, que se presentan larga lista en las misas incluso ordinarias. El vaso de agua debajo del ataúd no puede faltar. Por desgracia muchas de las “palabras”, gestos y signos del vocabulario religioso paraguayo están relegados al llamado folclore, que no es reconocido como religión, aunque en realidad es la manifestación más auténtica y casi única que tiene el pueblo de paraguay con Dios. El Verbo Dialectal Seguir la formación de una tercera religión, de las terceras religiones en América Latina, es una de las principales tareas históricas y teológicas con las que nos enfrentamos. La tercera religión es un verdadero sistema, cuya matriz hay que descubrir. En esta matriz hay principios, a manera de una fonología profundamente arraigada en la sociedad, que siguen dándole el acento y el tono. Estos principios a veces están radicalmente reñidos con los fonemas que trajeron, por ejemplo, el Estado, el monoteísmo, la jerarquía, la privatización y los monopolios en la producción y difusión de textos, tanto doctrinales como rituales. Si la situación diglósica ha sido la salida que encuentran ciertas sociedades para no perder las llaves de su propio modo de ser, aun a riesgo de innegables pérdidas en su propio sistema, para el futuro algunas de estas sociedades se estarían orientando hacia un bilingüismo coordinado. Hoy somos conscientes de que los derechos humanos y religiosos de las personas llegan hasta los “dialectos”. Los lenguajes universales son y deben ser sólo esto: generales. Teológicamente es perversión de Babel, que fue castigada con una corrección que era su remedio y bendición: la multiplicación de lenguas. Porque, como dice el poeta: “El Verbo universal, sólo habla dialecto” Culturas e Div. Religiosa.P65 124 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 125 Notas 1 Douctor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo. Foi profesor y pesquisador da Cultura Guarani na Universidade Católica de Asunción (Paraguay), diretor do CEADUC – Centro de Estúdios Antropológicos – e como editor das Revistas Acción, Suplemento Antropológico e Estudios Paraguayos. Membro da Comissão Nacional de Bilingüismo do Paraguai. E-mail: [email protected] REFERENCIAS AHN (Archivo Histórico Nacional. Madrid), Jesuitas. Leg. 120j. 82. (p.45). AZARA, Félix de. Viajes por la América Meridional. Madrid: Espasa-Calpe, 1969 (Colección Austral 1402). DOBRIZHOFFER, Martín. Historia de los Abipones. 3 vols. 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Culturas e Div. Religiosa.P65 125 21/10/2010, 14:18 4 DIVERSIDAD RELIGIOSA EN BOLIVIA: EL CAMPO RELIGIOSO Y LAS CULTURAS Y SABIDURÍAS ANDINAS Josef Estermann1 Introdución Como prácticamente todos los países de América Latina (con excepción de unos pocos en el Caribe, Surinam y las Guayanas)2, Bolivia es un país eminentemente católico, aunque evidentemente muy sui generis, debido al alto grado de sincretismo con las religiones ancestrales andinas y amazónicas. Sin embargo, la situación de una hegemonía católica viene cambiándose desde unas décadas y la diversificación del campo religioso en Bolivia se acelera de manera dramática en los últimos años. Dos son las razones principales para esta evolución: Por un lado el avance de iglesias, movimientos y agrupaciones cristianos no-católicas, y por otro lado el resurgimiento y empoderamiento de una religiosidad ancestral pre-cristiana que va de la mano con la irrupción de lo indígena en la sociedad, política y la vida cultural. Estas dos causas se potencian por el cambio político que apuesta por un Estado laico y el fin de la ideología de la “cristiandad”3 como factor identitario decisivo de la sociedad boliviana. En este trabajo quisiera analizar con más detenimiento la evolución reciente del campo religioso, con especial énfasis en el rol que tienen las culturas y sabidurías andinas, como también las posibles consecuencias de la nueva Constitución Política del Estado que entró en vigencia en febrero de 20094. Avance Evangélico Y Crisis Católica Los últimos datos sobre la afiliación religiosa de la población boliviana resultan de una Encuesta de hogares que realizó el Instituto Nacional de Estadística (INE) inmediatamente después del Censo Nacional de 20015. En el mismo Censo, no se preguntó por las preferencias y afiliaciones religiosas o el credo de la gente. El próximo Censo de 2011 probablemente tampoco tomará en consideración preguntas sobre preferencias y membresía religiosas, debido a la “neutralidad confesional” del Estado y de sus órganos. Mientras que en el periodo de 1827 a 1959 (132 años) fueron registrados en la Subsecretaría de Culto (un vice ministerio del ministerio de Asuntos Exteriores) 59 nuevas iglesias, cultos e instituciones religiosas, Culturas e Div. Religiosa.P65 126 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 127 en el periodo de 1960 a 1995 (35 años), este número ascendía a 1606. La gran mayoría de ellos eran de procedencia cristiana (evangélica) o paracristiana (como los mormones, Testigos de Jehová, iglesia Moon, etc.). En la Encuesta de Hogares de 2001, sólo se tiene datos de la población mayor de 15 años y según categorías bastante cuestionables (“protestantes/evangélicos”; “otros de origen cristiano”), preguntando por la “religión actual” (en 2001) y aquella “siendo niño” (proyectando en un promedio de 20 años al año 1981). Los datos más destacados de esta Encuesta son: a) El porcentaje de “católicos” ha disminuido de 90.5% (sobre la población entera) en 1981 (“de niño”), pasando por 80.7% en 1992 (Censo) a 77.8% en 2001 (Encuesta), siendo el periodo de mayor pérdida los años ochenta del siglo XX (-10%). b) El porcentaje de “protestantes/evangélicos” ha crecido de 6.4% en 1981, pasando por unos 13% en 1992 (sólo había la categoría “otros nocatólicos”) a 16.5% en 2001, siendo el periodo de mayor crecimiento también los años ochenta del siglo XX (+7%). c) El porcentaje de los “sin religión” pasa de 1.8% (1981), por 2.3% (1992) a 2.2% (2001), lo que no significa un cambio significativo. Sigue habiendo un número muy reducido de agnósticas/os o ateas/os en Bolivia; con un 97.8% de “creyentes” en 2001, Bolivia sigue siendo un país altamente “religioso”. Una misma tendencia se observa respecto a los “con una religión no-cristiana” que ha sido 0% en 1981 y sólo 0.1% en 2001; hay muy pocos judíos, musulmanes, budistas o hinduistas en Bolivia. d) Dentro del grupo muy heterogéneo de “protestantes/evangélicos”, las llamadas “iglesias históricas”7 (calvinista, luterana, anglicana, metodista, bautista, presbiteriana, menonita) que ascienden en 2001 a un 19% sobre el total del grupo “no-católico” (o 4.2% sobre la población boliviana), han crecido en los últimos 20 años con un factor de multiplicación de 2.5. e) El grupo “evangélico” con mayor crecimiento (factor 3.5) son los “pentecostales” (incluyendo los llamados “neopentecostales”8); ascienden en 2001 a un 26.1% sobre el total del grupo de los “no-católicos” (5.8% sobre la población boliviana), es decir el grupo “evangélico” mayor. El resto de los “no-católicos” se reparte entre “adventistas” (11%), “otros, poco definidos” (32.8%) y de “no creyentes y con otra religión” (un 11.2%). f) Evidentemente, la deserción de miembros de la iglesia católica no incrementa (como en Europa) las filas de agnósticas/os y ateas/os, ni de religiones no-cristianas, sino de las iglesias “evangélicas”, y dentro de ellas sobre todo a las iglesias (neo-) pentecostales. Esto se corrobora por el hecho de que un porcentaje importante de los/las novatos/as (neo-) pentecostales provienen de iglesias protestantes “históricas”9. g) Considerando la pertenencia étnica y geográfica (ciudad o campo) de las y los convertidos/as al neopentecostalismo, llama la atención el mayor porcentaje de entre la población rural e indígena. Los/as aimaras nocatólicos/as, por ejemplo, han crecido en los últimos 20 años en el campo en un 22.3%, con respecto a un 9.5% en la ciudad. Culturas e Div. Religiosa.P65 127 21/10/2010, 14:18 128 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) El debilitamiento de la iglesia católica se debe a varios factores, tanto internos como externos. En números absolutos, quizás no haya disminuido, pero sí en relación porcentual. Entre las causas se puede mencionar el rol que viene jugando la cúpula jerárquica de la iglesia católica en los últimos años respecto a los movimientos sociales y al proceso de cambio iniciado por el Movimiento al Socialismo (MAS) que llegó a gobernar el país en enero de 2005. En las llamadas “guerras” del agua de 2000 en Cochabamba y del gas de 2003 en El Alto y La Paz, la jerarquía católica se abstuvo –salvo contadas excepciones– de una postura clara a favor de las reivindicaciones populares por los recursos naturales del agua y del gas natural, mientras que una parte de la base eclesial se unió a las protestas10. Más bien ha asumido la posición “clásica” de mediadora entre las frentes, tal como lo sigue haciendo hasta hoy día, aunque últimamente es la iglesia metodista que se postula como “mediadora” en los conflictos entre Gobierno y oposición. En el proceso de cambio que inició el Movimiento al Socialismo (MAS) y que viene a ser continuado en forma sostenida por el Gobierno de Evo Morales, la jerarquía católica se siente más una víctima que un actor protagónico. Desde el inicio de la gestión del nuevo Gobierno, se producían varios “desencuentros” y ataques verbales mutuos entre el Ejecutivo y la iglesia católica. Este hecho se debe básicamente a cuatro factores: 1. El nuevo Gobierno plantea con mucha fuerza la tarea de una “descolonización” profunda de todas las instituciones y la sociedad en general. El ex ministro de Educación, Felix Patzi, había identificado a la iglesia católica como la principal institución que sigue promoviendo una “colonización mental y cultural”11. 2. Con la llegada al poder de la población indígena, las diferentes formas de religiones ancestrales se hacen visibles y son reconocidas abiertamente por el Gobierno. En muchas ocasiones (ceremonia de asumir la presidencia; fiestas cívicas; etc.), las bendiciones y Te Deum católicos son reemplazados por rituales andinos. 3. La Nueva Constitución Política del Estado que entró en vigencia el 7 de febrero de 2009, acaba con el privilegio que otorgó el Estado a la iglesia católica, al establecer un Estado laico, con lo que la iglesia católica no sólo pierde el privilegio de la educación religiosa en las escuelas fiscales (públicas), sino también la presencia en los actos oficiales de instituciones estatales, las preferencias impositivas y facilidades en trámites oficiales. 4. La actuación del primado de la iglesia católica, Cardenal Julio Terrazas de Santa Cruz de la Sierra, ha creado muchos anticuerpos en las filas del Gobierno e incluso de entre la población en el occidente del país (la región andina). Terrazas no sólo demostraba públicamente su simpatía por el Estatuto Autonómico del Departamento de Santa Cruz que fue aprobado Culturas e Div. Religiosa.P65 128 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 129 en un referéndum popular inconstitucional, sino que se alineaba con la oligarquía cruceña (terratenientes, empresarios), al negar la existencia de semi-esclavitud en algunas haciendas del Departamento, hecho que fue comprobado por una delegación internacional12. A estos factores internos se suman factores externos que tienen que ver con el proceso paulatino de “(neo-) pentecostalización” de la sociedad boliviana, sobre todo en la región andina. Aunque también las iglesias evangélicas históricas han sufrido “pérdidas” en los últimos treinta años, es la iglesia católica que tiene que lamentar la deserción del mayor número de miembros que se han convertido a una de las numerosas iglesias neopentecostales (“Ekklesía”, “Poder de Dios”, “Cristo Viene”, etc.). Al mismo tiempo se nota una “pentecostalización” paulatina en las mismas iglesias históricas, tanto en la católica (el movimiento carismático y neocatecumenal) como en las evangélicas (celebraciones de sanación; entusiasmo litúrgico; uso de massmedia, etc.). Llama la atención que estas iglesias tienen más acogida entre la población indígena rural que entre la mestiza urbana. Por un lado, este hecho se debe a una cierta ausencia de la iglesia católica en el campo, en forma permanente y sostenida desde la Colonia13. En general, los sacerdotes bolivianos recién ordenados sólo van al campo como una obligación del inicio de su labor laboral, para retornar lo más antes posible a las ciudades con mayor comodidad y posibilidades de ganarse algo (como los maestros en los colegios). Por otro lado, muchas de las nuevas iglesias neopentecostales evangelizan en base a una teología de la prosperidad y los respectivos medios económicos para ponerla en práctica. A pesar de una fuerte “campaña de extirpación de idolatrías”, muchos/as aimaras y quechuas están dispuestos/as a dejar su identidad religiosa indígena, para acceder a una vida mejor, el progreso y la “civilización”. Se trata de una nueva forma de “colonización” en nombre del progreso y de la civilización occidental que conlleva la exterminación de las costumbres y creencias ancestrales como el pijcheo (masticar) de la hoja de coca, las ofrendas a la pachamama o el culto a los difuntos y ancestros. Un tercer factor es, en la opinión de las iglesias evangélicas neopentecostales, la asociación del catolicismo con los vicios del alcohol, de la violencia familiar y de una doble moral, sobre todo respecto a la sexualidad, que es aprovechada por las nuevas iglesias para “liberar” a la población indígena del “demonio”. Para muchas de estas iglesias, las y los católicos/as son idolátricos/as, adúlteros/as, violentos/as y alcohólicos/ as. Sobre todo mujeres que sufren las consecuencias del consumo excesivo de alcohol de sus parejas, están fácilmente dispuestas a adoptar la nueva religión, como única salida de este círculo vicioso de la violencia y del maltrato. Culturas e Div. Religiosa.P65 129 21/10/2010, 14:18 130 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Religiones Ancestrales E Iglesia Católica Aunque el catolicismo ha sido, desde la Conquista, la religión hegemónica en Bolivia, siempre era y sigue siendo un catolicismo sui generis. Por la presencia permanente, camuflada e invisibilizada de religiones14 ancestrales pre-hispánicas, el sincretismo religioso en los Andes viene marcando hasta hoy en día el rostro de las diferentes denominaciones cristianas. En este proceso de “sincretización”, la iglesia católica ha adoptado diferentes estrategias: desde una feroz campaña de “extirpación de idolatrías” en el siglo XVII, sobre todo en territorio peruano, pasando por la incorporación de elementos andinos en el propio catolicismo (la época de la “aculturación”) hasta los esfuerzos de una “inculturación” de la fe cristiana en las culturas andinas, a partir del Concilio Vaticano II. A pesar de todos estos esfuerzos por los doctrineros y misioneros católicos, las religiones autóctonas han sobrevivido, en su mayoría mediante una estrategia de “doble fidelidad” (ESTERMANN s.f.) y de clandestinidad, hasta tal punto que últimamente están en un proceso de resurgimiento y de reivindicación de su identidad más acá de la “colonización”. Mientras que la “teología india” trata de recuperar un cristianismo genuinamente andino e indígena, la “teología india” rechaza todo tipo de cristianización de la religiosidad y espiritualidad indígenas como traición a las religiones autóctonas pre-hispánicas15. Aunque esta última corriente fuera sobre todo un fenómeno de un grupo reducido de intelectuales aimaras y quechuas que apuntan en lo político a una nación aimara Qullasuyu y en lo ideológico a un indianismo, indigenismo y pachamamismo en la tradición katarista16, en el Gobierno “indígena” de Evo Morales ha encontrado una caja de resonancia que hace sonar sus voces mucho más fuertes de lo que en realidad son. En ninguna de las encuestas y de los censos se ha preguntado por la pertenencia a una “religión ancestral”, pero en base a ciertas encuestas de hogar se puede concluir, que más de un 95% de la población boliviana se consideran “cristianos/as”, sea de vertiente católica, evangélica o de otro tipo de la religión cristiana17. Sin embargo, gran parte de esta población realiza al mismo tiempo rituales típicamente andinos (más que amazónicos o guaraníes), tal como la tradicional ch’alla (que es practicada incluso por la población mestiza y blanca), la waxt’a, el pago a la pachamama y los múltiples “ritos de paso” sincréticos18. Según el censo de 2001, más del 60% de la población boliviana se considera perteneciente a uno de los pueblos indígenas, con una religiosidad fuertemente impregnada por la cosmovisión y las creencias ancestrales. Al mismo tiempo, un 78% se considera racialmente mestizas/ os (Encuesta de UNIR de 2008). Pero las religiones ancestrales también están presentes en la religiosidad católica popular, en las fiestas patronales, en el Carnaval (o la Culturas e Div. Religiosa.P65 130 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 131 anata), el santoral católico, la devoción fervorosa de la Virgen (que se junta en el imaginario, a menudo, con la pachamama), Todos Santos, la Fiesta de la Cruz y hasta en las celebraciones sacramentales y litúrgicas. La teología relativamente “incluyente” del catolicismo permitía una simbiosis sui generis entre el panteón andino y las múltiples mediaciones católicas, favorecida aún más por el fuerte elemento femenino de la mariolatría de la religiosidad española renacentista19. Aunque la iglesia católica oficial se muestra un tanto reservada respecto a ciertas costumbres y creencias “andinas” (tal es el caso de las “ñatitas” en La Paz)20, en la práctica adopta una postura de tolerancia y respeto, salvo algunos movimientos eclesiales (como Opus Dei, los neocatecumenales y el movimiento carismático). La Comisión de las Culturas de la Conferencia Episcopal Boliviana promueve una pastoral y una teología indígenas que trata de partir de las diferentes cosmovisiones y sabidurías originarias como para “inculturar” mejor el mensaje cristiano. Estos esfuerzos (de encuentro, de inculturación, de indigenización) se ven frente a dos tipos de oposición: Por un lado las iglesias evangélicas más conservadoras y fundamentalistas, sobre todo las pentecostales y neopentecostales, y por otro lado los ya mencionados grupos indígenas que luchan por una “descolonización” total en el sentido de un regreso a una religión ancestral “pura” y no contaminada por elementos cristianos. Para algunas iglesias evangélicas de corte “fundamentalista”, la iglesia católica en general, y la andinizada en particular, promovería la “idolatría”, el “neopaganismo”, el alcoholismo y el politeísmo o animismo indígenas. Para el otro extremo, los representantes de un andinismo militante, la iglesia católica sigue siendo la protagonista de una “neo-colonización” cultural y mental. Las Iglesias Evangélicas Y El Mundo Andino Ciertas iglesias protestantes “históricas” han subido desde cierto tiempo al tren de la “andinización”, tal como la Iglesia Evangélica Metodista en Bolivia (IEMB) y, en menor rigor, la Iglesia Evangélica Luterana de Bolivia (IELB) y la Iglesia Metodista Pentecostal. Otras se han constituido como “iglesias populares indígenas” (“Iglesia del Nazareno”, “Dios de la Profecía”, “Los Amigos”, “Iglesia Dios Boliviana”), aunque en su gran mayoría rechazan las culturas indígenas como “idólatras”. La gran mayoría de las iglesias evangélicas, sean históricas (presbiteriana coreana, bautista, anglicana, luterana latinoamericana), pentecostales (“Asambleas de Dios”, “Iglesia de Dios”, “Evangelio Cuadrangular”, “Iglesia del Evangelio Completo”) o neopentecostales (“Ekklesía”, “Poder de Dios”, “Cristo Viene”) no solamente son política y teológicamente conservadoras y hasta “fundamentalistas” (evangelicals), sino que rechazan las culturas y religiones autóctonas como “diabólicas”, Culturas e Div. Religiosa.P65 131 21/10/2010, 14:18 132 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) “satánicas” e “idólatras”. Por los métodos agresivos de evangelización, algunas llevan adelante una verdadera nueva “campaña de extirpación de idolatrías” que implica un etnocidio simbólico (o culturocidio), a través de una “reprogramación” sistemática de las identidades culturales de sus miembros21. Según las posturas de la gran mayoría de las iglesias neopentecostales, las culturas ancestrales de los Andes conllevarían una fuerte carga religiosa “pagana”, con tal de que las personas que se convierten a la nueva religión, tengan que renunciar a su propia identidad cultural. Esta nueva “circuncisión” neopentecostal implica no solamente la abjuración a cualquier rito religioso andino (ch’alla, waxt’a, pago a la pachamama), pero también a la red de padrinazgo, compadrazgo, ayuda mutua (ayni, mink’a), y en algunos casos hasta a su idioma materno (aimara, quechua), al consumo de la hoja de coca, alcohol, tabaco y hasta café. Llama la atención que para el Gobierno que plantea una línea política de “descolonización” y de reivindicación de las culturas y modos de vida indígenas, sigue siendo la iglesia católica el primer actor de “colonización” y que las iglesias “culturocidas” de origen norteamericano quedan todavía fuera de su crítica22. En los últimos años, el Gobierno se ha acercado a ciertas iglesias evangélicas “históricas”, sobre todo a la metodista, para buscar una alternativa al monopolio de la iglesia católica de ejercer el rol de mediadora. Las iglesias evangélicas de corte neopentecostal no han sido sometidas (aún) a la crítica del discurso de la “descolonización”, a pesar de que, en su gran mayoría, llevan adelante un proyecto neo-colonial igual o peor que el que ejecutaba la iglesia católica en la Colonia. Aparte del rechazo tajante de las culturas ancestrales como correas de transmisión del “neopaganismo” y de “idolatrías”, estas iglesias promueven un estilo de vida y valores culturales occidentales, normalmente de origen estadounidense. La “evangelización” en el sentido de la extirpación de idolatrías va de la mano con una suerte de “modernización” y “civilización” que promueven un fuerte individualismo, una teología pragmática de prosperidad y sanación y una “filosofía” fuertemente dicotómica y hasta maniquea. La división del mundo, promovida por la Administración Bush, en “buenos” y “malos”, se replica en las teologías maniqueas, milenaristas y fundamentalistas de ciertas iglesias neopentecostales de origen norteamericano23. La Buena Nueva que se lleva a los pueblos originarios de Bolivia, viene a ser el “sueño americano” que reafirma de manera inesperada la tesis de Max Weber del lazo intrínseco entre protestantismo y capitalismo. El “Evangelio” del egoísmo religioso, de la superioridad de la “cultura” occidental-norteamericana y de la prosperidad como consecuencia de la sumisión ciega al lavado de cerebro y la “circuncisión” cultural plantea nuevamente, en un acto neo-colonial sin precedentes, la equiparación de Culturas e Div. Religiosa.P65 132 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 133 cristianismo y civilización occidental, esta vez en clave estadounidense. Estas iglesias y sus intelectuales ven las causas del “atraso” y de la pobreza de la gran mayoría de las y los bolivianos/as en la “latinidad”, “catolicidad” e “indigeneidad” del proceso colonial y de la evangelización concomitante. Surgen con cierta periodicidad las tesis sobre los efectos de una supuesta conquista anglosajona de América Latina, con la subsiguiente conclusión de que sólo la erradicación de las “creencias” paganas indígenas y de la “idolatría” católica acabaría con el estado de subdesarrollo del país24. La Nueva Constitución Política Del Estado Y El Campo Religioso En el proceso constituyente que ha sido muy difícil, por la fuerte oposición de la vieja guardia política y la oligarquía agro-petro-industrial25, las iglesias han tratado de ejercer cierta influencia, sea mediante sus representantes en la Asamblea Constituyente, sea a través de los medios de comunicación o sea mediante movilizaciones y protestas callejeras. Mientras que parte de la iglesia católica en un inicio hizo oposición al plan del MAS (Movimiento al Socialismo) de declarar “confesionalmente neutral” al nuevo Estado, otras iglesias aplaudieron tal propósito, pero se resistieron a ciertas consecuencias “morales” de la laicidad del Estado, tal como los derechos sexuales y reproductivos26. Sectores conservadores de diferentes iglesias – incluyendo a la católica – movilizaron a la población a oponerse con todos medios posibles a una Constitución “comunista, atea y neopagana”, pintando la visión horrorosa de un futuro de persecuciones y de la supresión de la libertad de culto. Hasta en los últimos días antes de la aprobación del texto constitucional hubo una campaña mediática agresiva de desacreditar al Gobierno, “difundiendo y multiplicando […] toda clase de falacias acerca de la nueva carta magna, urdiendo un discurso basado en mensajes breves pero aterrorizadores sobre los supuestos males que acarrearía la aprobación del nuevo texto (limitación severa de las libertades religiosas, vía libre al aborto y a los matrimonios entre personas del mismo sexo, cierre de escuelas confesionales, imposición de creencias de los pueblos originarios por sobre las del cristianismo, contradicción insalvable entre el nuevo texto y el mismísimo Dios, etc.)”27. A pesar de las diferencias significativas entre los credos, su postura (anti-) ecuménica, la estructura institucional, la actitud respecto al proceso de cambio y a las culturas ancestrales, sectores conservadores de prácticamente todas las iglesias se encontraban y siguen encontrándose en una “alianza ideológica” respecto al tema de los “derechos sexuales y reproductivos”, bolso al que se mete todo tipo de “aberraciones” como la promiscuidad, el aborto, el matrimonio homosexual, la libre decisión por la educación sexual y la permisividad sexual de la sociedad28. Culturas e Div. Religiosa.P65 133 21/10/2010, 14:18 134 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) En este sentido había y sigue habiendo (deliberadamente) mucha desinformación respecto a la naturaleza y las consecuencias de la laicidad del Estado y sus instituciones. Advertidas por los pronunciamientos poco diplomáticos de algunos ministros y ex ministros respecto al proceso de la “descolonización” y el rol de las iglesias en un nuevo Estado plurinacional, muchas iglesias impusieron en sus fieles el miedo ante el escenario de un Estado “ateo” a lo cubano. Hubo incluso cierta propaganda religiosa (en los canales de televisión) de sectores fundamentalistas que plantearon para su grey la alternativa: “O Dios o Evo”.29 Yo mismo era testigo (indirecto) de una conferencia de un pastor evangélico fundamentalista que interpretó a Evo Morales como el Anticristo a quien Dios se sirviera de instrumento para combatir a la “Gran Ramera”, la iglesia católica, para dispersar a las “naciones” (los pueblos originarios) y abrir de este modo el camino para la batalla final, el Armagedón en suelo boliviano30. Analizando la nueva Carta Magna, el panorama es un tanto distinto. Nunca había una Constitución Política del Estado tan “religiosa” como ésta, no en un sentido institucional o eclesial, sino en un sentido integral y espiritual, incorporando los valores de la sabiduría ancestral indígena31. Una simple exégesis sinóptica de los dos textos constitucionales – la anterior Constitución de 1967 (C 1967) y la nueva Carta Magna de 2009 (C 2009) – revela tanto el tenor “religioso” de la nueva Constitución como diferencias de fondo con la anterior. Los términos “religión” y “religioso/a” aparecen en C 1967 seis, en 2009 once veces32; “iglesia” y “enseñanza religiosa” en C 1967 una vez, en C 2009 no están presentes; “culto (religioso)” en las dos constituciones tres veces. Mientras que en C 1967 no se menciona ninguna vez “espiritualidad”, “cosmovisión(es)”, “Dios”, “pachamama” y “credo religioso”, en la C 2009 estos conceptos aparecen en forma bastante significativa: “cosmovisión(es)” siete veces, “espiritualidad” cuatro veces y “Dios”, “pachamama” y “credo religioso” una vez cada uno. Se puede decir que la nueva Constitución Política del Estado tiene una concepción des-institucionalizada del campo religioso y fomenta la perspectiva predilecta de lo espiritual y de las cosmovisiones, lo que hasta podría cualificarse como un punto de vista “posmoderno”. En el artículo 4, la Carta Magna reafirma la libertad de religión y creencias, en los siguientes términos: “El Estado respeta y garantiza la libertad de religión y de creencias espirituales, de acuerdo con sus cosmovisiones. El Estado es independiente de la religión.” En el artículo 21, en el marco de los “Derechos Civiles”, se puntualiza la garantía de las libertades en general, entre ellas la religiosa: “Las bolivianas y los bolivianos gozan de los derechos: […] 3. A la libertad de pensamiento, espiritualidad, religión y culto, expresado en forma individual o colectiva, tanto en público como en privado, con fines lícitos. 4. A la libertad de reunión y asociación, en forma pública y privada, con fines lícitos. 5. A expresar y difundir libremente pensamientos u opiniones por cualquier medio de comunicación […]”. Culturas e Div. Religiosa.P65 134 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 135 En el Art. 30. II y III sobre los “derechos de las naciones y pueblos originario indígena campesinos”, la nueva Carta Magna afirma: “En el marco de la unidad del Estado y de acuerdo con esta Constitución, las naciones y pueblos indígena originario campesinos gozan de los siguientes derechos: (…) 7. A la protección de sus lugares sagrados. […] 9. A que sus saberes y conocimientos tradicionales, su medicina tradicional, sus idiomas, sus rituales y sus símbolos y vestimentas sean valorados, respetados y promocionados. […]. III. El Estado garantiza, respeta y protege los derechos de las naciones y pueblos indígena originario campesinos consagrados en esta Constitución y la ley”. Algunos líderes evangélicos quieren ver en este Artículo la “prueba” de que el Estado impondría las “religiones originarias” en “desmedro del cristianismo”, un temor difundido ampliamente por sectores conservadores antes del referéndum33. Finalmente hay que ver el “toque de piedra”, el pasaje sobre “derechos sexuales y reproductivos” que refleja, según la mencionada alianza conservadora entre las iglesias, una “visión de un oscuro plan de organismos internacionales y movimientos feministas, gays y lésbicos, dedicados a legalizar el aborto y promover prácticas sexuales libertinas, sodomistas y pedófilas” (CÓRDOVA, 2008b, p. 8). En el marco de los “derechos fundamentalísimos”, el Artículo 15. I afirma que “toda persona tiene derecho a la vida y a la integridad física, psicológica y sexual […]”. Sectores anti-abortistas y la iglesia católica han reclamado que se agregue “…desde la concepción”, lo que convertiría ilegal el aborto terapéutico considerado legal por el actual Código Penal (Artículo 266)34. Y el Artículo 66 la CPE dice literalmente: “Se garantiza a las mujeres y a los hombres el ejercicio de sus derechos sexuales y sus derechos reproductivos”. Mientras que la C 1967 garantizaba la no discriminación por razones de sexo (Artículo 6. I), la C 2009 va más allá: prohíbe y sanciona toda discriminación fundada “[…] en razón de sexo […], orientación sexual, identidad de género […]” (Artículo 14. II). Para los sectores conservadores de las iglesias, estos dos incisos constituirían una puerta abierta a todo tipo de “perversiones”, la liberalización total del aborto y una sociedad de libertinaje. En realidad, se trata sólo de la garantía de iguales derechos para todas las personas, independientemente de sus preferencias religiosas, su género, su orientación sexual y su raza, pero en ningún momento se emite un juicio ético sobre uno que otro comportamiento o preferencia concretos. Parece que aún falta mucho para que las iglesias entiendan que la “laicidad” del Estado no es lo mismo que “laicismo” y mucho menos “ateísmo” o el reemplazo de un credo (el católico) por otro secular (agnosticismo o ateísmo) o indígena (la “religión andina”). A menudo los miedos han adquirido dimensiones paranoicas, y nada indica que el nuevo Gobierno quisiera “abolir” la religión como tal o imponer un credo no cristiano (el andino), lo que equivaldría volver a un Estado “confesional” Culturas e Div. Religiosa.P65 135 21/10/2010, 14:18 136 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) y contradiría el mismo Artículo 4 de la nueva CPE. Ésta más bien garantiza aún más enfáticamente la libertad religiosa, pero incluye a la vez dentro de las posturas religiosas e ideológicas –más allá de las iglesias cristianas– a las cosmovisiones y sabidurías indígenas, las religiones ancestrales y las espiritualidades autóctonas35. De hecho que el Gobierno tiene que elaborar una “ley religiosa” que regularice las múltiples relaciones entre el Estado y el campo religioso, en la que también se verá (entre muchos otros puntos) la cuestión de la “educación religiosa” en los colegios estatales (fiscales), los “colegios de convenio” (que se garantiza en Art. 87) y la presencia de rituales religiosos en actos públicos del Estado. La “imparcialidad o neutralidad confesional” no significa que el Estado ya no pueda apoyar y sustentar la actividad religiosa, ni que ya no pueda admitir enseñanza religiosa alguna en la educación pública. Sólo que ya no puede apoyar y sustentar (tal como lo expresa el Artículo 3 de la C 1967)36 a un grupo religioso en desmedro de otro, ni declarar un cierto credo como el contenido obligatorio de enseñanza religiosa en los colegios públicos. Tal como se ha visto ya en algunos actos públicos después de la promulgación del nuevo texto constitucional, había la presencia de representantes de diferentes denominaciones e iglesias, junto con yatiris y paq’os (sacerdotes andinos). El representante católico – en el caso concreto el obispo de la ciudad de El Alto – era uno entre muchos otros, con los mismos derechos y la misma posibilidad de hacerse escuchar que todos los demás37. Según el nuevo proyecto educativo (Ley de Educación “Avelino Singani”)38 que está impregnado por un espíritu de “descolonización”, en vez de una enseñanza religiosa católica (que hasta la fecha tenía el monopolio en las escuelas públicas) se prevé una suerte de enseñanza “ecuménica-espiritual” (poco definida) que contiene elementos de las sabidurías y cosmovisiones autóctonas, las religiones ancestrales de la región, como también los fundamentos religiosos y rituales del cristianismo en sus diferentes denominaciones, y además una enseñanza ética y espiritual. Será un gran desafío llegar en la práctica a este tipo de enseñanza interreligiosa, inter-espiritual y ética, debido a la falta total de preparación de profesores/as que podrían asumir esta tarea. Hasta ahora, las “Normales” católicas (Institutos Pedagógicos Normales Superiores para la formación de maestros de primaria) han formado las y los profesores/ as de religión, pero en clave católica39. Otro punto neurálgico será nuevamente la reedición de los “derechos sexuales y reproductivos”, proyecto de ley que fue observado por el anterior presidente (interino) Carlos Mesa, bajo la presión unánime de los sectores conservadores de diferentes iglesias. Sobre la base de la nueva Constitución Política del Estado, habrá que replantear el tema y elaborar otra ley. La Carta Magna no se pronuncia sobre los puntos concretos del aborto, del matrimonio homosexual, de la educación sexual, de la edad Culturas e Div. Religiosa.P65 136 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 137 de mayoría “sexual” y reproductiva y otros temas polémicos. Sólo plantea como marco referencial el criterio de la no-discriminación de personas por sexo, orientación sexual, credo, espiritualidad, etc. (Art. 14. I) y el ejercicio de los “derechos sexuales y reproductivos” (Art. 66), sin definirlos en detalle. En este punto se espera una mayor “batalla ideológica”, debido a la feroz resistencia contra la nueva Constitución por algunos sectores de las iglesias que se orientaba justamente en la oposición a estos derechos (entre otros puntos)40. En el discurso del presidente Evo Morales, pronunciado en ocasión de la promulgación oficial de la nueva Constitución (7 de febrero de 2009), éste menciona en dos ocasiones a la iglesia católica, y en otra a “las iglesias” (como sinónimo de “denominaciones evangélicas”). Por una parte rescata las figuras de religiosos que durante la Colonia defendían la vida, la justicia y la soberanía, y también recuerda por su nombre a Luís Espinal, un sacerdote jesuita que fue asesinado por paramilitares en 1980, durante la dictadura de García Meza, subrayando que “dio la vida por la vida de los demás”. Por otra parte, criticaba más adelante –en el mismo discurso– la campaña de algunos sectores en contra de la nueva Constitución, desarrollada activamente desde algunas parroquias y templos del país. En otras ocasiones41, el Gobierno ha diferenciado –refiriéndose a la iglesia católica– entre una “iglesia de base” que apoya el proceso de cambio y se alinea con la opción por las y los pobres, por un lado, y una iglesia que busca mantener el status quo y se alinea con la vieja oligarquía poderosa y adinerada, para no perder los privilegios gozados durante quinientos años. Muchos acontecimientos demuestran, que esta lectura del campo religioso no es del todo equivocada, sólo que no solamente compete a la iglesia católica, sino a todas las iglesias y grupos religiosos. La línea divisoria entre personas, grupos y movimientos que apoyan el cambio y apuestan por la “descolonización”, y aquellos que más bien pretenden conservar el orden (neo-) colonial o apuestan por una modernización al estilo estadounidense, esta línea divisoria pasa por medio de cada una de las iglesias (ESTERMANN, 2008, p. 303-314). La Nueva “Extirpación de Idolatrías” Aunque Bolivia no es un país étnica y culturalmente homogéneo, la influencia de lo “andino” se puede notar hasta en la parte oriental (Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija), sobre todo a causa de las grandes migraciones del occidente andino a los valles y llanuras del oriente, en el transcurso de lo que se denominaba “la marcha hacia el oriente”, fomentado por los gobiernos a partir de la Revolución Nacional de 1952. Hoy día, partes importantes de las mayores ciudades del oriente boliviano son constituidas por descendientes quechuas y aimaras del Altiplano boliviano que no solamente han llevado consigo las costumbres culturales, sino también una Culturas e Div. Religiosa.P65 137 21/10/2010, 14:18 138 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) religiosidad particular que se distingue del catolicismo original de las tierras de acogida42. Santa Cruz, la mayor ciudad de Bolivia en términos de población y de movimiento económico, se caracteriza por un crecimiento espectacular del “cinturón de pobreza” que aglutina a una población migrante mayoritariamente andina y que se ubica a partir del tercer o cuarto anillo hacia las afueras de la ciudad (a veces se dice que se trata de un cinturón que puede “asfixiar” al centro comercial y pituco de la ciudad). A pesar del discurso “camba” (una supuesta identidad étnica prestada de la población rural del Departamento) de la oligarquía cruceña, la mayoría de la población no se identifica plenamente con sus valores43 y mantiene una identidad “andina”, guaraní, chaqueña o al menos híbrida, pero normalmente invisibilizada y en forma semi-clandestina. El creciente racismo de una élite “blanca” frente a los migrantes “indios” provenientes del Altiplano andino conlleva una compartimentalización segmentaria de la población urbana, un apartheid a lo boliviano que a veces desemboca en violencia fascista motivada racialmente. La historia de la evangelización de Bolivia muestra una diferencia bien marcada entre el oriente y occidente. La Conquista española operó en la zona oriental fundamentalmente a través de reducciones jesuíticas y misiones franciscanas, debido al fracaso de las avanzadas militares españolas y el desencanto y posterior desinterés de los conquistadores al no hallar oro o plata. Al ambiguo tutelaje de los misioneros, protector pero alienante a la vez, se le sumó en la historia más reciente el sometimiento de importantes porciones de la población del oriente boliviano a la estructura del patronazgo y gamonalismo, primero en las explotaciones de la goma y la castaña, y luego en las grandes haciendas y latifundios que hasta el día de hoy cuentan con trabajadores en condiciones de semi-esclavitud, tal y como fue comprobado por diferentes instancias nacionales e internacionales. La Reforma Agraria de 1953 no tenía prácticamente ningún impacto en esta parte del país que sigue arrastrando, por tanto, los problemas del latifundismo y de una religiosidad arraigada en el feudalismo y una actitud señorial. Mientras tanto, el occidente andino, sobre los cimientos de las civilizaciones de Tiwanaku, Tawantinsuyu, Uru y Pukara, no corrió la misma suerte. La “convergencia” estructural y cosmológica entre el catolicismo español renacentista y el sentimiento religioso andino 44 permitía una penetración colonial mucho más fuerte, usando la existencia de centros rituales y comerciales importantes (wak’as) de la región como puntos de partida de la evangelización española (Sucre o Charkas; Potosí; Chuqiyapu o La Paz; Tiwanaku; Copacabana). Como efecto paradójico, el catolicismo andino – y posteriormente también las iglesias evangélicas– iba a manifestarse mucho más “andino” y sincrético (que “español”) que por ejemplo el catolicismo en oriente que se mantuvo más “español” que chiquitano, guaraní o chaqueño. Culturas e Div. Religiosa.P65 138 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 139 Mientras que la religiosidad –tanto católica como evangélica– en la parte oriental del país ha mantenido un rostro mucho más occidental e hispano, en el occidente se manifiesta bajo diferentes grados de sincretización con las religiones autóctonas, sobre todo de origen quechua y aimara. Y esto tiene validez hasta para algunas iglesias evangélicas (principalmente la metodista, la luterana y la metodista pentecostal), tal como confirman los datos de la Encuesta de 2001 (ALBÓ, 2002). Sin embargo, a partir de la irrupción de iglesias neopentecostales, se nos presenta un panorama un tanto distinto. En un estudio interesante sobre la presencia del pentecostalismo entre la población aimara del altiplano boliviano, el sociólogo Gilles Rivière afirma que “el grupo religioso se construye a partir de una ruptura radical con el ‘mundo’, ruptura que pasa por el rechazo y el abandono de las ‘costumbres’, de las prácticas y ‘supersticiones’ de los no convertidos, llamados ‘católicos’ o ‘paganos’” (RIVIÈRE, 2004, p. 268). Los fieles tienen prohibido mascar la hoja de coca, beber alcohol, jugar al fútbol, escuchar la radio, y se les exhorta incluso abandonar su lengua nativa, el aimara o quechua que es considerado “idioma de indios”, sustituir la vestimenta tradicional por una más urbana y destruir los instrumentos musicales tradicionales. El tradicional “camino” (thaki) de un comunero para acceder a los diferentes cargos sociales y religiosos en su comunidad es sustituido por el camino “evangélico” de la renuncia total al “mundo” y las “idolatrías” de los católicos (imágenes, Virgen María, fiestas patronales, etc.) y de los rituales andinos (pago a la pachamama, waxt’a, wilancha, pijcheo de la hoja de coca, etc.). Hoy en día, en algunas comunidades rurales andinas, estamos presenciando una reedición de las campañas de “extirpación de idolatrías”, parecidas a las que la iglesia católica pretendió llevar adelante en el siglo XVII45. Sólo que esta vez, la empresa tiene el apoyo económico e ideológico por parte de poderosas iglesias evangélicas fundamentalistas de EE.UU. que luchan en nombre de la “civilización” y de un evangelio de la “prosperidad” contra lo que llaman “neopaganismo” y “comunismo indigenista”46. Cabe recordar que el auge de las iglesias fundamentalistas de origen estadounidense en el país se remonta al tiempo de la dictadura militar (décadas setenta y ochenta del siglo pasado), como una estrategia de lucha espiritual contra los “curas comunistas” (parte de la iglesia católica luchaba abiertamente contra la dictadura y se volvió mártir) y su Teología de la Liberación47. El discurso actual de algunos líderes de iglesias evangélicas fundamentalistas apunta a la misma dirección: Si bien es cierto que el enemigo principal (la “ramera” del libro Apocalipsis) sigue siendo la iglesia católica, se interpreta al Gobierno indígena de Evo Morales como un instrumento en las manos de Dios para “juntar las naciones dispersas” y prepararse para la batalla final. Llama la atención que resurge un discurso de la era de la Guerra Fría que une los sectores más conservadores de las Culturas e Div. Religiosa.P65 139 21/10/2010, 14:18 140 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) iglesias y del empresariado en contra del “neo-comunismo” político, del “libertinaje” moral (en alusión a los derechos sexuales y reproductivos) y del “neo-paganismo” andino. Por otro lado, el discurso de la “descolonización” promovido por los movimientos sociales y el Gobierno indígena, también empieza a dirigirse –aunque temerariamente– a estas iglesias evangélicas “etnocidas”. Después de las arremetidas contra el “neo-colonialismo” de la iglesia católica, algunos sectores de la inteligentsia indígena se dan cuenta de los verdaderos propósitos de alienación cultural que llevan adelante ciertas iglesias evangélicas y sus ONGs que trabajan sobre todo en el ámbito rural y entre las y los migrantes indígenas en las grandes ciudades. Aunque la postura de estas iglesias e instituciones religiosas respecto al campo político es aparentemente “apolítica”, su ideal civilizatorio (occidentalnorteamericano) implica una resistencia y lucha contra el proceso de cambio de la reivindicación indígena y a un alineamiento tácito con la oligarquía económica y los partidos tradicionales48. La Pelea Por La Educación Religiosa En base a la nueva Constitución Política del Estado, la educación religiosa en los colegios fiscales (estatales), hasta ahora monopolio de la iglesia católica, debe de ser rediseñada en términos de la “neutralidad confesional” de todos los órganos e instituciones públicas. Hasta la fecha no existe ninguna propuesta contundente por parte del Ministerio de Educación que llamó a una convocatoria para elaborar un currículum para la nueva asignatura. Existen al menos cuatro posibilidades respecto a la educación religiosa en Bolivia: 1. Que se descarte cualquier tipo de educación religiosa en las instituciones educativas públicas y que las iglesias asuman ésta fuera del ámbito público (escuelas dominicales, catequesis parroquial, etc.). 2. Que se introduzca una suerte de educación interreligiosa en los colegios fiscales que toma en cuenta los diferentes credos existentes en el país, incluso las religiones ancestrales de los pueblos originarios. 3. Que se incorpore una asignatura de Fenomenología de la Religión que se abstenga de todo tipo de debate y adoctrinamiento confesional. 4. Que se incorpore una asignatura de ética, sabidurías indígenas, espiritualidad y cosmovisiones que se orienta en tradiciones pre-hispánicas indígenas. Vamos a discutir brevemente cada una de las alternativas, empezando por la última: Ad 4: Si bien es cierto que la última opción violaría la imparcialidad religiosa del Estado que incluye una neutralidad ideológica y religiosa respecto a creencias espirituales, cosmovisiones y filosofías (Art. 21 de la CPE: “libertad de pensamiento, espiritualidad, religión y culto”), el afán “descolonizador” del proceso de cambio podría implementar como una suerte de “actitud afirmativa” (o “discriminación positiva”) la enseñanza Culturas e Div. Religiosa.P65 140 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 141 pública de espiritualidades, cosmovisiones y filosofías indígenas andinoamazónicas, para contrastar la tradicional enseñanza “neo-colonial” de los valores y conceptos occidentales-cristianos. Sólo que este tipo de enseñanza “espiritual” debería de ser regionalizada, para no caer en un andinocentrismo, crítica reiterada no solamente por ciertos sectores de las iglesias, sino sobre todo por los líderes departamentales del oriente boliviano. Además, no existe ninguna propuesta concreta, ni materiales didácticos ya elaborados, aparte de unas propuestas aún muy prematuras de amautas andinos de introducir la “cosmovisión andina” en los currículos de las escuelas públicas. Ad 3: La tercera opción – una suerte de Fenomenología de la Religión – tomaría en cuenta la “neutralidad confesional” al trasmitir información religiosa totalmente libre de adoctrinamiento confesional. Este ideal “positivista”, sin embargo, no se podría realizar en la práctica concreta de la sociedad boliviana, debido a la “carga altamente ideológica” que contiene el campo religioso y/o espiritual. Una “indiferencia” confesional posmoderna ante el panorama tan diverso de credos y cosmovisiones podría ser una opción en sociedades secularizadas como son la mayoría de las europeas, pero no para la boliviana que se declara en un 98% “religiosa”. Eso no quiere decir que no fuera necesaria una información la más “objetiva” e “imparcial” posible sobre las diferentes ofertas religiosas, incluyendo las religiones y sabidurías ancestrales. Existe muchísima desinformación y grandes prejuicios al respecto, de un lado y del otro. Mientras que ciertas iglesias evangélicas fundamentalistas “satanizan” a las manifestaciones espirituales indígenas, éstas “demonizan” a su vez el afán lucrativo y neo-colonizador de aquéllas. Ad 1: Por lo tanto, es muy probable que se llegue a una de las primeras dos opciones: O bien prescindir de cualquier educación religiosa pública (estatal), o bien apuntar a una suerte de educación interreligiosa. El primer modelo que se da en muchos países donde rige el principio de la laicidad del Estado (como en México, Chile o incluso países con alta población indígena como Guatemala, pero también en países “seculares” como Francia), delega la educación religiosa a los diferentes actores de la sociedad civil (iglesias, congregaciones y asociaciones religiosas, escuelas coránicas, etc.) y se reserva una educación “ética” y/o “filosófica” que pretende ser ideológica y religiosamente neutral. Sin embargo, a pesar de la laicidad constitucional del Estado, muchos países ven conveniente que sus futuros/as ciudadanos/as tengan conocimientos básicos sobre el campo religioso y de las principales tradiciones religiosas que han tenido y siguen teniendo impacto en la sociedad en la que viven. En la perspectiva de un renacimiento o resurgimiento de lo religioso en la era posmoderna, el Estado también tendrá un cierto interés y responsabilidad en una enseñanza respecto al campo religioso y sus implicaciones para la sociedad, los procesos de cambio y su rol en lo que viene ser el programa de “descolonización” mental e intelectual. Culturas e Div. Religiosa.P65 141 21/10/2010, 14:18 142 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Ad 2: El modelo de una educación interreligiosa en las instituciones educativas públicas (estatales) podría ser una alternativa atractiva, tanto para los diferentes actores religiosos como para el mismo Estado. De este modo, se mantendría el principio regidor de la “imparcialidad confesional”, pero no se renunciaría a la enseñanza religiosa como un campo importante de saberes y destrezas de las y los futuros/as ciudadanos/as. En este momento, entre los responsables del Ministerio de Educación no existe la más mínima idea de cómo podría ser una plan de estudios, un currículum y las respectivas competencias educativas de una “educación interreligiosa”. Las y los profesores/as actuales de religión en los colegios estatales tienen una formación “confesional” católica, y hasta el momento son los institutos pedagógicos católicos (las llamadas “Normales”) los que tienen el monopolio de la formación de las y los docentes de religión, tanto para los colegios fiscales como para los de convenio y los católicos49. Será muy difícil “reprogramar” a estos/as docentes en un sentido ecuménico y más aún en perspectiva interreligiosa. Pero más complicada me parece la formación de docentes “interreligiosos/as” que pertenecen a una de las mencionadas iglesias evangélicas fundamentalistas (neopentecostales) que ya desde su propia concepción rechazan todo tipo de ecumenismo inter-denominacional y, por supuesto, cualquier macroecumenismo interreligioso con las manifestaciones religiosas ancestrales de los pueblos originarios que son vistas como “diabólicas”, “idólatras” y “paganas”. Por el otro lado, también resultará muy conflictiva la inclusión como “docentes interreligiosos/as” a los amautas, yatiris, paq’os y otros ritualistas indígenas, debido a una postura a menudo hostil y hasta fundamentalista hacia cualquier religión o iglesia cristiana. Un andinismo, indigenismo o pachamamismo intransigente no sólo sería incompatible con la “imparcialidad confesional” del Estado, sino que creería problemas con regiones con poca presencia de la religiosidad andina indígena y, por supuesto, con sectores amplios de las iglesias. Éstos se verían en su derecho al haber advertido desde la toma de poder del gobierno indígena de que se iba a imponer las creencias de los pueblos originarios por encima de las del cristianismo. Como garante de la libertad religiosa, el Estado también tendría que vigilar por la “imparcialidad confesional” de una educación interreligiosa. Al asumir la tarea de la formación de las y los futuros/as docentes, le tocaría adoptar ciertos criterios de equilibrio, tanto en los contenidos como en la selección del personal educativo. Sería incompatible con el carácter laico de la enseñanza pública la posibilidad de que un/a docente “interreligioso/a” que pertenece a una iglesia neopentecostal fundamentalista o que forma parte del movimiento indigenista anticristiano adoctrine en sus clases “interreligiosas” a las y los alumnos/as y haga proselitismo para su respectivo credo. Pero el Vice-ministerio de Culto Culturas e Div. Religiosa.P65 142 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 143 – o como se lo llamará en el futuro – tampoco puede convertirse en una suerte de “Congregación por la Doctrina” interreligiosa, guardián de un equilibrio religioso muy débil o hasta inexistente. A Manera de Conclusión: En Búsqueda de la Inclusión A pesar de una aparente homogeneidad religiosa en Bolivia, los factores que contribuyen a mayor exclusión, discriminación y enfrentamientos se han multiplicado en los últimos años50. El proceso político de cambio que pretende acabar con el (neo-) colonialismo externo e interno, buscando la inclusión integral de los sectores marginados y excluidos de la vida política, económica y social, este mismo proceso de cambio viene agudizando (o hace visibles) las contradicciones y las relaciones de poder que también se manifiestan en lo religioso. No es por nada sorprendente que la línea divisoria de aguas entre oposición y Gobierno, entre oriente y occidente, entre los defensores del viejo orden y los ideólogos del socialismo del siglo XXI atraviesa las mismas iglesias y congregaciones religiosas. En el caso de la iglesia católica que sigue siendo –de lejos– el grupo religioso con mayor adhesión, se nota –en sintonía con lo que pasa a nivel mundial– de manera cada vez más notable una iglesia “restauradora” y otra “progresiva”, división que no coincide simplemente con niveles de jerarquía, ni con regiones del país. Tal como en tiempos de la dictadura militar, hay católicos y católicas que apuestan por el proceso de cambio hacia un socialismo democrático y plurinacional, mientras que otros/as luchan en contra de este Gobierno tildado de “cripto-comunista” y “ateo”, o, en el mejor de los casos, “neopagano”. Cabe notar que son sobre todo dos sectores de la iglesia católica que se oponen al proceso de cambio: una jerarquía neo-conservadora que manifiesta posturas cercanas al Opus Dei (aunque casi no hay miembros nominales de esta prelatura personal católica) y a otras tendencias restauradoras (neo-clericalismo y sacramentalismo), por un lado, y los movimientos laicales carismáticos, Schoenstatt y neo-catecumenales. Ambas bandas se asocian con las clases media y alta de los ámbitos urbanos y se distancian de la tradición liberacionista en la teología latinoamericana y los intentos de la “inculturación” indígena, tanto en lo pastoral como en lo teológico (“teologías india y andina”). Lo mismo se puede observar en otras iglesias, sobre todo en las llamadas “iglesias evangélicas históricas”. En la iglesia metodista (IEMB) se puede observar un proceso de tensión muy notable en su propio proceso constituyente, entre una fracción aimara (hasta ahora la dominante) y otra mestiza que toma distancia del proyecto de cambio del MAS. Sólo en las dos vertientes “fundamentalistas” – las neopentecostales y las andinistas anti-cristianas51 – existe un consenso tácito de lucha contra el “enemigo”, identificado y personificado en la figura de Evo Morales, de la jerarquía Culturas e Div. Religiosa.P65 143 21/10/2010, 14:18 144 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) católica (en el caso de las iglesias evangélicas fundamentalistas) o de los pastores evangélicos alienados y “etnocidas” (en el caso de los movimientos andinistas, indigenistas y pachamámicos). Parece que el fin del monopolio religioso de la iglesia católica en la Constitución Política del Estado recién abra las heridas y las diferencias religiosas en el seno de la población boliviana, lo que va de la mano con un creciente racismo y una confrontación regional y étnica 52. En vez de contribuir a un diálogo intercultural e interregional, la mayoría de las iglesias y grupos religiosos atizan aún más la mecha encendida de una lucha por la “verdad”, a veces incluso en términos de un milenarismo militante y violento53. Las sabidurías y cosmovisiones indígenas, tanto del Altiplano, de la Amazonía como de las llanuras orientales, reflejan un espíritu de inclusión, de complementariedad polar, de una integración de los opuestos, de armonía y equilibrio. Sólo en el caso de un deterioro irreparable de las relaciones humanas y cósmicas, se plantea la posibilidad de un pachakuti, un cambio brusco y violento, una revolución cósmica que implica un reordenamiento total de lo que viene a ser el orden tradicional de las cosas. Un tal pachakuti se produjo, según la sabiduría indígena andina, hace 500 años con la Conquista y la subsiguiente colonización cultural, religiosa y económica. Para muchas personas en los Andes, hoy en día estamos ante un nuevo pachakuti de dimensiones históricas que se manifiesta en los “signos del tiempo” del cambio paradigmático emprendido por el primer gobierno indígena, del cambio climático, de la crisis financiera y económica y del aumento de epidemias y pandemias. Para muchos representantes de iglesias evangélicas fundamentalistas y de un indigenismo radical, vivimos en tiempos “apocalípticos”, respectivamente “revolucionarios”. A pesar de que el discurso “descolonizador” y “andinista” es sobre todo un asunto de una clase aimara (y en menor medida quechua) intelectual reducida, empieza a pegar en la población indígena que sigue considerándose “cristiana” y en su mayoría “católica”. Depende mucho de la postura de la iglesia católica respecto al proceso de cambio, a la inclusión de la población indígena y el compromiso firme en el sentido de la “opción por las y los pobres”, si estos sectores pueden continuar siendo católicos/as y a la vez revolucionarios/as del cambio y del proceso de “descolonización”. Muchas señales apuntan últimamente a otro camino: Asociar a la iglesia católica con las y los “neo-colonizadores/as”, a la oposición férrea al cambio, a la oligarquía de siempre y a la occidentalización (posmoderna) de la sociedad boliviana. Esta tendencia es fomentada no solamente por sectores dentro de la misma iglesia católica, sino de forma mediaticamente muy eficaz por ciertos sectores del Gobierno, de las iglesias evangélicas neopentecostales y de representantes de un indigenismo militante y duro. Culturas e Div. Religiosa.P65 144 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 145 Notas 1 Doctor en Filosofía. Docente e investigador en el Instituto Superior Ecuménico Andino de Teología/ISEAT, Universidad Católica Boliviana San Pablo/UCB e Universidad Mayor de San Andrés/ UMSA. Coordinador Nacional de la Misión Belén de Immensee (MBI) en Bolívia. E-mail: [email protected] 2 Véase al respecto una publicación muy reveladora del NIM (Instituto de Misionología de Nimwega en Holanda) que ha realizado una investigación sobre el campo religioso en el Caribe: CASTILLO GUERRA, Jorge E. y VERNOOIJ, Jaap (eds.). Relaciones interreligiosas en el Caribe: Ecumene, interculturalidad e interreligiosidad. Münster-Hamburgo-Londres: LIT, 2009. (en prensa). 3 Hay que precisar que esta postura no sólo es defendida por sectores de la iglesia católica, sino, y sobre todo, por ciertas iglesias neopentecostales que consideran el paso a un Estado laico como el fin de la “cultura cristiana” y el inicio de un neo-paganismo y/o ateísmo en clave indígena. 4 La nueva Constitución Política del Estado (CPE) fue aprobada por el pueblo boliviano el 25 de enero de 2009, con un 61.43% y promulgada por Evo Morales el 7 de febrero de 2009, después de un largo proceso de avances y retrocesos, obstáculos y enfrentamientos desde la instalación de la Asamblea Constituyente, el 6 de agosto de 2007. 5 La Encuesta se aplicó a una muestra representativa de hogares; las cuatro preguntas sobre la religión se aplicaron a 16.786 personas mayores de 15 años. En las respuestas figuran 292 nombres de iglesias y congregaciones religiosas que se reparten entre las iglesias católica, evangélicas históricas, pentecostales, neopentecostales, otras cristianas y otras instituciones religiosas no cristianas. 6 Cabe mencionar que no todas las iglesias y “asociaciones religiosas” mencionadas por las personas encuestadas en 2001 (292) figuran en la lista que maneja el vice ministerio de Culto. En octubre de 2007 estaban registradas 323 “asociaciones religiosas no católicas” y 229 “congregaciones de la iglesia católica” con personería jurídica. 7 Con este denominador se llama a las iglesias evangélicas que proceden de la Reforma Protestante del siglo XVI, tanto del ala magisterial (luterana, calvinista, reformada, anglicana) como del ala radical (metodista, bautista, presbiteriana) y del anabaptismo (menonita). 8 Según Julio Córdova (2008a, p. 94s.), hay tres posiciones respecto a la relación entre el pentecostalismo y el neopentecostalismo: 1) La que no ve diferencias sustanciales entre los dos; 2) La que identifica al movimiento neopentecostal como una corriente dentro del pentecostalismo; 3) La que considera el neopentecostalismo como un fenómeno sustancialmente diferente al pentecostalismo y a las iglesias evangélicas clásicas. En un esquema agrupa estas dos vertientes (pentecostalismo y neopentecostalismo) según diferencias doctrinales-teológicas, de organización eclesiástica, origen histórico, diferencias sociológicas y culturales. Respecto al origen histórico, las iglesias pentecostales surgen a principios de 1900 en EE.UU., mientras que las iglesias neopentecostales se extienden, a partir de mediados de los años 1960, también a partir de EE.UU. debido a la crisis de la modernidad. 9 Esto quiere decir que las iglesias evangélicas históricas se encuentran en una situación parecida a la de la iglesia católica, respecto a la pérdida de miembros. La única diferencia es el desfase temporal: La iglesia católica empieza a “perder” miembros desde el ingreso de otras iglesias al territorio nacional (fines del siglo XIX) y la implementación de la libertad de culto (1906), pero con mayor aceleración a partir de los años 1970, por la incursión de iglesias neopentecostales. Las iglesias evangélicas históricas manifiestan un crecimiento hasta los años 1980, para llegar después también a una tendencia descendiente cada vez más acentuada. 10 Véase Helgeson y Estermann, 2008, al respecto. Culturas e Div. Religiosa.P65 145 21/10/2010, 14:18 146 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 11 Felix Patzi ha sido antes director del Instituto de Investigaciones Sociológicas de la Universidad Mayor de San Andrés (UMSA) en La Paz, bastión del trotzkismo y, posteriormente, de una línea indigenista intelectual dura y anti-religiosa. Su remoción del gabinete, después de unos seis meses, se debía sobre todo a su postura de intransigencia con la iglesia católica respecto a los colegios particulares y de convenio, y su discurso cada vez menos compatible con una línea conciliadora dentro del mismo Gobierno que buscaba nuevamente el acercamiento a la iglesia católica. Apenas instalado como Ministro de Educación, Patzi proponía sacar la religión católica y evangélica de la escuela para reemplazarlas por clases de historia de las religiones ancestrales. 12 En diferentes ocasiones, Cardenal Terrazas atacó en sus homilías dominicales al Gobierno. En una de ellas, en la asamblea del CELAM en Aparecida, deslegitimó ante la prensa internacional el proceso de cambio en el país, denunciando el “centralismo”, la tendencia “dictatorial” y el nepotismo del Gobierno. Posteriormente, negó la existencia de la semiesclavitud (de la población guaraní) en ciertos latifundios del Departamento, investigada por el Instituto Nacional de Reforma Agraria y comprobada por una delegación internacional. Junto con el voto público en el mencionado referéndum por la autonomía de Santa Cruz, se alineaba ante los ojos de la población sencilla con la oligarquía agroindustrial y petroquímica y el Comité Cívico que lleva adelante un discurso de derecha y de las clases pudientes. El atentado al Cardenal, el 13 de abril de 2009, por un grupo para-militar de la ultra-derecha, tenía como propósito echar la culpa al Gobierno y hacer de Julio Terrazas un mártir por la lucha contra el Movimiento al Socialismo y el proceso de cambio. 13 Esta ausencia es una de las causas de una “evangelización a medias”, mediante un sacramentalismo y ritualismo puntuales, que fomentaba la subsistencia de los rituales andinos prehispánicos y la “idolatría”. Por otro lado, el vacío fue aprovechado desde un inicio por las iglesias no-católicas que vieron el campo como un área de “civilización” (priorizando la educación), modernización y de progreso, es decir: “occidentalización”. 14 Hay un debate académico sobre la pertinencia de llamar al universo religioso-espiritual andino “religión”, “religiosidad”, “espiritualidad” o simplemente “cosmovisión”. Los mismos representantes andinos entienden su forma de creer y su ritualidad normalmente en términos de “espiritualidad”, pero cuando les toca entrar en un diálogo con otras tradiciones religiosas, sapienciales, filosóficas y espirituales, a menudo subrayan que viven una “religión” en pleno sentido de la palabra, poseen una “filosofía” propia (y no solamente una “cosmovisión”) y que comparten muchos elementos con las religiones llamadas “altas” (especialistas rituales; una doctrina; una liturgia; un credo; textos sagrados, etc.). Cf. Estermann 2007. 15 Lo mismo se puede decir de la “teología andina”. Existen básicamente dos vertientes: Una “teología andina” cristiana que pretende reelaborar una teología cristiana en base a los parámetros filosóficos (o mejor dicho: pachasóficos) y espirituales andinos. El proyecto de investigación del ISEAT (2005-2006), con los dos tomos de “Teología Andina” (ISEAT (ed.) (2006/2009). Teología Andina: El tejido diverso de la fe indígena. 2 Tomos. La Paz: ISEAT/Plural. 2ª ed. ISEAT 2009), se inserta en esta corriente. Por otro lado, una “teología andina” indígena y autóctona no-cristiana que quiere recuperar un pensamiento religioso y una espiritualidad “no contaminadas” por el cristianismo. Esta corriente se alinea con el proyecto político de un indigenismo o indianismo radical y trata de constituirse académicamente, como por ejemplo en la carrera de “Teología Andina” en la Universidad del Tawantinsuyu, en la ciudad de Laja y El Alto. 16 Las propuestas del Movimiento Indígena Pachakuti (MIP) del Mallku (líder indígena) Felipe Quispe, quien ha sido catequista católico y compañero de lucha de Álvaro García Linera, actualmente vicepresidente de Bolivia, en el Ejército Guerrillero Tupac Katari (EGTK) incluyen la constitución de una “Nación Aimara” en el Qullasuyu, una de las cuatro regiones del Tawantinsuyu de los Incas. Tanto el concepto de una ‘nación aimara’ como de una etnia qulla son construcciones ideológicas de los últimos cuarenta años, incluyendo a la Whipala Culturas e Div. Religiosa.P65 146 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 147 (bandera con 49 cuadrados de siete colores) como símbolo panandino. En lo religioso, este movimiento busca la restauración de una “religión andina” pre-hispánica, con la recuperación de deidades como Wiraqucha, Pachakamaq, T’unupa y los espíritus tutelares de los ancestros. 17 Pienso que será menos de 1% de la población que afirmaría tener una “religión autóctona no-cristiana”. 18 La ch’alla o el asperje con alcohol o chicha de maíz se ha vuelto una práctica tanto de la población indígena, como mestiza e incluso blanca. Se la practica en ciertas fechas claves del calendario agrícola-religioso del año (Carnaval; agosto, Todos Santos), en fiestas patronales, en inauguraciones de instituciones, edificios y colegios, en el inicio de un negocio, para una nueva movilidad, etc. La waxt’a o el “despacho” andino es una mesa ritual que establece una “comunión” entre los diferentes actores, niveles y tiempos, reestableciendo la armonía y el equilibrio cósmicas. El pago a la pachamama se realiza antes de la siembra (para pedirle permiso), después de la cosecha (para agradecer) y en cualquier ocasión para implorar su intercesión ante Dios y los achachilas (espíritus tutelares). 19 Según la teoría de la “convergencia”, los dos universos religiosos –el andino prehispánico y el católico español– convergen en sus estructuras rituales, muchas afirmaciones teológicas y las prácticas sacramentales. Hay muchos indicios para afirmar que es por esta “convergencia” paradigmática que la religión impuesta ha sido asimilada por la población indígena con asombrosa velocidad, reinterpretando al universo católico en clave indígena: la Virgen María se asocia con la pachamama, Jesucristo con los achachilas o apus, los espíritus tutelares y protectores con los Santos, y los ritos de paso andinos con los sacramentos católicos. 20 Se trata de una costumbre milenaria que ha recobrado vida y publicidad en los últimos años, por el carácter público de la fiesta de las ñatitas el 8 de noviembre, en el Cementerio Central de La Paz. Desde mucho tiempo, la gente guarda en su casa una calavera (ñatita) de un ser querido, como signo de protección y prosperidad; en algunos casos, se la lleva incluso en los viajes o para los negocios. En la fiesta central, se lleva la ñatita (adornada y vestida) al Cementerio, se la hace fumar cigarrillo, mascar coca y comer, y se pide al cura católico que se las bendiga. El año pasado, el cura encargado del Cementerio rechazó tal pedido, con el argumento de que se tratara de una costumbre “pagana” y un ritual para la muerte. 21 No sólo se prohíbe el consume de alcohol, tabaco y el pijcheo de la hoja de coca, sino que se obliga tanto a varones como mujeres a ponerse vestimenta “occidental” (terno con corbata; faldas largas) y adoptar hábitos patriarcales (el varón como cabeza de la familia). Pero se erradica sobre todo cualquier ritual y símbolo religioso “andino”, desde la ch’alla, la cruz andina, hasta la waxt’a y la hoja de coca y costumbres religiosas en torno al matrimonio, entierro y fenómenos naturales. 22 Puede ser que el mismo Gobierno no se haya percatado todavía del cambio fundamental del campo religioso en Bolivia y sigue con una mentalidad (inconsciente) de la “cristiandad” en el sentido del quasi-monopolio de la iglesia católica. 23 Esto hasta se refleja en el lenguaje, al denominar a la fracción radical del ala indigenista (el MIP de Felipe Quispe y otros) como “Talibanes andinos”. La “guerra santa”, desatada a raíz del 11 de septiembre de 2001 (el atentado a las Torres Gemelas en Nueva York) entre la “civilización occidental-cristiana” y el “islamismo fundamentalismo”, se repite en el ámbito andino como lucha apocalíptica entre la verdadera “religión cristiana” evangélica y la civilización occidental-norteamericana, por un lado, y la “idolatría neopagana” del fundamentalismo andino (“Talibanes andinos”), por otro lado. 24 El silogismo es muy simple, pero a la vez convincente para las iglesias evangélicas “fundamentalistas”: 1) La Conquista de América Latina por España y Portugal, dos naciones eminentemente católicas, conllevaba la implementación de un modo y estilo de vida acorde con la “festividad” e “idolatría” católicas, llevando al despilfarro de la riqueza y la escasez periódica. 2) La Conquista de Norteamérica por Gran Bretaña (y de menor peso Culturas e Div. Religiosa.P65 147 21/10/2010, 14:18 148 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) por Holanda), una nación eminentemente protestante, conllevaba la implementación de un modo y estilo de vida acorde con la “ascesis” y la “laboriosidad” (núcleo de la tesis de Max Weber), llevando a la acumulación de riquezas (capital) y una economía floreciente. 3) Ergo: Una supuesta Conquista de América Latina por Gran Bretaña y el espíritu anglosajón-protestante hubiera hecho surgir naciones prósperas y económicamente florecientes, comparables con EE.UU. En este silogismo, la superioridad religiosa (la “pureza” del evangelismo) se junta con la superioridad cultural-civilizatoria de la “filosofía” anglosajona-occidental sobre la “latinidad” que, en el caso de la iglesia católica, se “contamina” aún más con la “inferioridad” civilizatoria al fomentar el sincretismo indígena-católico. Cf. Estermann 2009. 25 Cabe recordar que el pedido de una nueva Constitución Política del Estado resulta principalmente de la lucha de los pueblos originarios, primeramente de las Tierras Bajas (1993) del oriente boliviano, y de los movimientos sociales, a través de las dos “guerras” por el agua (2000) y el gas natural (2003). Entre las condiciones que los movimientos sociales ponían al Gobierno de transición, después de la derrota de “Goni” (el presidente Gonzalo Sánchez de Lozada) y su régimen ultra-neoliberal en octubre de 2003, figura la convocatoria a una Asamblea Constituyente. Bajo el presidente interino, Carlos Mesa, el pueblo boliviano se pronuncia, junto al referéndum por las autonomías departamentales, a favor de una Asamblea Constituyente que sería instalada finalmente por Evo Morales, el 6 de agosto de 2006. Había mucho forcejeo entre el Senado, todavía dominado por los seguidores de Goni, y la Cámara de Diputados, sobre el modo de elección de los miembros de esta Asamblea. Casi durante medio año, sus miembros debatieron sobre cuestiones de procedimiento (sobre todo la espinosa cuestión de los “dos tercios”, condición para aprobar los artículos propuestos de la nueva CPE), y la oposición intentó entorpecer el proceso introduciendo temas polémicos como la capitalidad plena de Sucre y el tema de las autonomías departamentales que fueron adelantadas en cuatro Departamentos de la llamada “Media Luna” (Pando, Beni, Santa Cruz y Tarija), en procesos ilegales y anticonstitucionales. El ulterior proceso de la aprobación de la CPE por la Asamblea Constituyente, su revisión en el Congreso y la votación en el referéndum popular (25 de enero de 2009), es un ejemplo triste y tragicómico de la pugna por el poder entre la mayoría de izquierda y una mayoría de derecha decidida a defender sus privilegios con dientes y armas. 26 La postura de las iglesias evangélicas respecto a la laicidad del Estado, hasta el día de hoy, es muy ambigua. Por un lado, consideran la “neutralidad confesional” como una victoria de su permanente lucha contra la iglesia católica y su monopolio en la enseñanza religiosa, pero, por otro lado, siguen apuntando por una suerte de “cristiandad” evangélica, sobre todo respecto a temas como el aborto, la educación sexual y la defensa del matrimonio heterosexual. 27 Suso, Martín (2009). “Religiosidad y cambio social”. En: http://www.colectivorebeldia.org/ religiosidad_cambio_social.html> En un comunicado de la Asociación Nacional de Evangélicos de Bolivia, las Iglesias Unidas y las Asociaciones Cristianas Evangélicas (ANDEB) del 14 de enero de 2009 (10 días antes del referéndum sobre la nueva Constitución), se advertía de que la nueva CPE contemplara la “constitucionalización de la idolatría en Bolivia”, proclamaba “que la homosexualidad está prohibida enfáticamente por Dios” y alertaba “a toda la sociedad sobre la inserción de los derechos sexuales y reproductivos en el proyecto de la Constitución Política del Estado, sin protección para los niños y adolescentes”. [En: <http://www.eforobolivia.org/sitio/ leerNotaEspecifico.php?id=5326&categoria=1>]. 28 A pocos días del Referéndum, el presidente de Iglesias Evangélicas Unidas, José Luis de Losantos, señaló en la CPE “cinco aspectos que preocupan, como Dios y el Estado, la familia, los derechos sexuales y reproductivos, la educación y la propiedad privada. […] La posibilidad de la legalización del aborto y los matrimonios entre personas del mismo sexo. […] Otro elemento que ha llamado la atención de la comunidad evangélica es la Culturas e Div. Religiosa.P65 148 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 149 relación que mantendrá el Estado con las religiones y con los creyentes. […] El cristiano cuestionó el reconocimiento de otras deidades en el proyecto constitucional que, si bien señala que existe libertad de culto, “revaloriza” los símbolos de adoración de los pueblos indígenas”. En: <http://www.laprensa.com.bo/noticias/21-01-09/21_01_09_poli3.php> 29 Es decir: aceptar la nueva CPE significaría ser un acto de apostasía e idolatría. Había también voces de pastores evangélicas que hicieron alusión al nombre del presidente (“Evo”) como portador (en analogía con la ancestra bíblica Eva) e incitador del mal y del pecado. 30 En dicha ocasión, el predicador incluso manifestó una interpretación teológica del holocausto cometida por los nacionalsocialistas alemanes contra los judíos (la Shoah) que revela toda la dimensión antisemita y fascista de su postura: “Dios se sirve de Evo Morales, tal como se ha servido de Hitler para castigar a los judíos que han matado a nuestro Señor Jesucristo”. 31 Entre aspectos que no son explícitamente religiosos, se menciona en varias ocasiones (Prólogo; Art. 8; 80; 306; 313) el trílogo andino (“No robes, no seas mentiroso, no seas flojo” – Ama suwa, ama qhilla, ama llulla), la concepción andina del “buen vivir” (suma qamaña; allin kawsay; ñandereko; teko kavi), la utopía guaraní de la “loma santa” o de la “tierra sin mal” (ivi maraei) y la perspectiva espiritual quechua del “camino sagrado” (qhapaj ñan). 32 En forma sintética: Art. 4. Afirma la libertad de religión y creencias espirituales; y establece que el estado es independiente de la religión. Art. 14. (Inc. II) Prohíbe cualquier tipo de discriminación, también la fundada en credo religioso. Art. 21. (Nº 3) Reconoce el derecho a la libertad de religión y culto, ya sea en forma individual o colectiva, tanto en público como en privado. Art. 30. (Inc. II) Afirma el derecho de las naciones y pueblos originarios a su identidad cultural, creencia religiosa y otras. Art. 86. Afirma que en los centros educativos se reconocerá y garantizará la libertad de conciencia y de fe y de la enseñanza de religión, así como el respeto a las diversas opciones religiosas, sin imposiciones dogmáticas, y que no se discriminará la aceptación de estudiantes por su opción religiosa. Art. 87. Reconoce y respeta el funcionamiento de unidades educativas de convenio, así como el derecho que tienen las entidades religiosas de administrar dichas unidades. Art. 99. (Inc. III). Reconoce como patrimonio cultural del pueblo todo tipo de riqueza cultural, también la procedente del culto religioso. Art. 104. Habla del acceso al deporte sin distinción de género, idioma, religión, orientación política, etc. [Resaltado en cursiva es nuestro]. 33 Este temor viene a ser alimentado por las prácticas rituales que el actual Gobierno y sus instituciones promueven en fechas significativas. La ceremonia de la toma de poder, el 17 de enero de 2006 en el santuario precolonial de Tiwanaku, desplazó por primera vez un Te Deum católico, y a fortiori, una ceremonia cristiana. Los ritualistas indígenas (yatiris, kallawayas, kawayus, etc.) frecuentan el Palacio de Gobierno y marcan presencia en los aniversarios cívicos nacionales. 34 En la carta de la Conferencia Episcopal Boliviana (CEB) de marzo de 2008, Para que el pueblo tenga vida. “Yo he venido para que tengan vida y la tengan en abundancia” (Jn 10: 10): Orientaciones pastorales sobre el proyecto de CPE –que en lo general es bastante prospectiva y abierta al cambio – se afirma en el punto 34 que “es esencial e indispensable precisar que este derecho [a la vida] existe desde la concepción del ser humano”, y en el punto 35 “que el proyecto de CPE, al reconocer los derechos sexuales y reproductivos (Cf. Art 66), abre la posibilidad de que se legalice el aborto, que es supresión de la vida de un ser humano por nacer”. 35 La mención explícita de este tipo de religiosidad y espiritualidad y la no-mención de la religión católica y las prácticas evangélicas (no se habla nunca de “iglesia”) es consistente con un tenor de una “actitud afirmativa” o “discriminación positiva” de lo indígena, en general. 36 “El Estado reconoce y sostiene la religión católica, apostólica y romana. Garantiza el ejercicio público de todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante concordatos y acuerdos entre el Estado boliviano y la Santa Sede”. Culturas e Div. Religiosa.P65 149 21/10/2010, 14:18 150 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 37 Ocurrió por primera vez por el Día de El Alto, en marzo de 2009, cuando los diferentes líderes religiosos estaban en el palco oficial, junto a las autoridades políticas. Este cuadro, muy inusual para el ojo acostumbrado a la presencia de un obispo católico al lado del Presidente de la República, refleja esta “neutralidad confesional” del Estado que no significa la ausencia de la religión, sino la imparcialidad en las relaciones oficiales con instituciones y personajes religiosos. 38 Después de varios congresos y readecuaciones significativas, aún no fue aprobada por el poder legislativo. En el Artículo 2, sobre los “Principios de la Educación”, recoge la laicidad del Estado, afirmando que la educación pública “es laica, pluralista y espiritual porque respeta cada cultura y la libertad de creencias religiosas, promueve los valores propios y rechaza todo tipo de imposición dogmática religiosa”. 39 En el capítulo 6 voy a enfocar el tema de la educación religiosa. 40 Cf. nota 28. 41 Especialmente en la polémica entre el Gobierno y el cardenal Julio Terrazas sobre la cuestión de la existencia de formas de (semi-) esclavitud en ciertos latifundios del Departamento de Santa Cruz, sobre los estatutos autonómicos, el procedimiento de la Asamblea Constituyente y la cuestión del narcotráfico, a lo largo del año 2008. 42 De acuerdo a una Encuesta realizada por la Fundación UNIR en 2008, sobre la “Valores y Actitudes frente a la Conflictividad en Bolivia”, un porcentaje de entre 15 y 20% de la población de los departamentos Santa Cruz, Tarija, Pando y Beni (la “Media Luna”) se identifica “totalmente” con la “cultura colla” (que se refiere a las identidades andinas). El concepto ‘colla’ que procede de la región (suyu) sureña Qullasuyu del Tawantinsuyu o Imperio Incaico, se ha impuesto últimamente como sinónimo de la parte andina de Bolivia donde los pueblos originarios quechua y aimara forman la mayoría de la población. Aunque comprende los departamentos de La Paz, Oruro, Potosí, Cochabamba y Chuquisaca, éstos últimos dos se debaten política y étnicamente en un intermedio entre “cultura colla” y “cultura camba” lo que se refleja a menudo en peleas políticas y manifestaciones de índole racista. 43 Según la mencionada Encuesta, un 29% de la población de Santa Cruz se identifica “totalmente” con los valores de la “cultura camba” y un 40% “bastante”. 44 Esta “convergencia” se manifiesta en muchos niveles y en rituales y prácticas religiosas muy diversas (véase nota 18). Cf. Vertovec, Steven (1998). „Ethnic distance and religious convergence: Shango, Spiritual Baptists, and Kali Mai traditions in Trinidad”. En: Social Compass (Londres) 45 (no. 2). 247-263; Estermann, Josef (2003). “Religión como chakana: El inclusivismo religioso andino”. En: chakana vol. 1, No. 1. 69-83. 45 Se suele dividir las campañas de extirpación del siglo XVII, sobre todo en lo que hoy es territorio peruano, en tres etapas: la llevada a cabo por Francisco de Ávila entre 1609 y 1619; la de Gonzalo de Ocampo entre 1625 y 1626; y la última realizada por el Arzobispo Pedro de Villagomez entre 1641 y 1671. Las “campañas” contemporáneas son impulsadas por iglesias evangélicas “fundamentalistas” (de origen norteamericano), a menudo en nombre del “progreso” y de la “civilización”, y quedan aún prácticamente desapercibidas. 46 La articulación que establecen estas iglesias entre “indigenismo” y “comunismo” resulta probablemente del programa del Movimiento al Socialismo (MAS) y del movimiento katarista que reivindican un “comunitarismo” y una economía comunitaria y solidaria, lejos de cualquier tipo de “comunismo” en la vieja tradición marxista o estalinista. Por otro lado, también sectores empresariales y terratenientes del oriente boliviano tildan con cierta regularidad al Gobierno de Evo Morales de “comunista”, en la peor tradición de la Guerra Fría. 47 Sobre el rol de una izquierda católica militante en tiempo de dictaduras, se recomienda consultar dos publicaciones del sociólogo Hugo José Suárez: (2003a). La transformación del sentido: Sociología de las estructuras simbólicas. La Paz: Muela del Diablo; (2003b). ¿Ser cristiano es ser de izquierda?: La experiencia político-religiosa del cristianismo de liberación en Bolivia en los años 60. La Paz: Muela del Diablo. Cf. la reseña de Luís Donatello: (2002). “Transformación Culturas e Div. Religiosa.P65 150 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 151 de sentido y radicalización política: El catolicismo liberacionista boliviano y la política”. En: Sociedad y Religión N° 24/25. 139-141. 48 En 2008 y parte del 2009, las relaciones entre el Gobierno de Evo Morales y los EE.UU. han llegado a un punto de congelamiento total. Primero fue expulsado el embajador de EE.UU. en La Paz, Philipp Goldberg, por actos presuntamente desestabilizadores, seguido por la expulsión del embajador de Bolivia en EE.UU, Gustavo Guzmán. Después, el Gobierno rescindió el convenio con la DEA, la fuerza anti-narcótica norteamericana, y más tarde también arremetió contra la cooperación internacional (USAID) y ciertas ONGs de EE.UU, acusándoles de actividades conspirativas. Al parecer, hasta la fecha no ha sido identificada ninguna iglesia evangélica de corte norteamericana como parte del plan conspirativo contra el Gobierno “comunista”. 49 Véase al respecto el No 16 de la revista Fe y Pueblo, editado por el Instituto Superior Ecuménico Andino de Teología (ISEAT) en La Paz, que se dedica al tema de la “Educación interreligiosa” y que acaba de salir (julio de 2009). Matthias Preiswerk plantea en su artículo “Educación religiosa en la Escuela: de confesional a interreligiosa” la siguiente tipología: 1. “Educación religiosa cristiana” con los dos sub-tipos de “cerrada (o catequesis escolar” (1.1) y “abierta (1.2); 2. “Enseñanza del hecho religioso”; 3. “Educación a las cosmovisiones” con los dos sub-tipos de “Educación multirreligiosa” (3.1) y “educación interreligiosa” (3.2). 50 Hasta la fecha, el factor religioso no fue mencionado en forma explícito como un detonante “divisionista”. Sin embargo, con el correr del tiempo, los aspectos económicos, étnicos, regionales e ideológicos se traducen cada vez más en términos religiosos (“ateísmo”, “neocolonialismo”, “neopaganismo”, “idolatría”, “politeísmo”, “animismo”, etc.). 51 Desde unos tres años, la Universidad del Tawantinsuyu, con sede en Laja y El Alto, ofrece una carrera de “Teología Andina” que se considera el lugar con el monopolio de formar a los/as futuros/as yatiris y paq’os, sacerdotes aimaras y quechuas. La postura ideológica de esta universidad es decididamente anti-cristiana, al equiparar el proceso de “descolonización” con el de una profunda “descristianización”. Hay personas cercanas al Gobierno de Evo Morales que están ligadas a la Universidad del Tawantinsuyu, aunque no han podido imponer su postura como una posición oficial. 52 Cf. los resultados de la “Encuesta Nacional sobre Valores y Actitudes frente a la Conflictividad” en Bolivia que presentó la Fundación UNIR en marzo de 2009. Un 65% de la población afirma que “lo que falla en Bolivia es su gente” y un 85% que “no se puede confiar en las otras personas”. Un 59% opina que “hay mucha discriminación en el país” y sólo un 2% piensa que “no hay discriminación”. Entre los factores de discriminación, el “color de piel” está en primer lugar, con 28%. 53 Incluso hay voces que vaticinan una suerte de “guerra santa” en los Andes que se llevaría entre el fundamentalismo religioso cristiano (sobre todo neopentecostal) y el indigenismo religioso militante de sectores afines al movimiento Pachakuti y sacerdotes (yatiris) pachamamistas. Ciertos sectores del segundo grupo se auto-denominan “Talibanes andinos”. Para ambas frentes, este conflicto ya tiene dimensiones apocalípticas, sea desde el fundamentalismo evangélico milenarista (Armagedon, segunda venida de Cristo), sea en términos del pachakuti andino (cataclismo cósmico). REFERENCIAS ALBÓ, Xavier. Una casa común para todos: Iglesias, ecumenismo y desarrollo en Bolivia. La Paz: Clave/Cipca/EED, 2002. CASTILLO GUERRA, Jorge E. y VERNOOIJ, Jaap (eds.). Relaciones interreligiosas en el Caribe: Ecumene, interculturalidad e interreligiosidad. Münster-Hamburgo-Londres: LIT, 2009 (en prensa). Culturas e Div. Religiosa.P65 151 21/10/2010, 14:18 152 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) CONFERENCIA EPISCOPAL BOLIVIANA (CEB) Para que el pueblo tenga vida. “Yo he venido para que tengan vida y la tengan en abundancia” (Jn 10: 10): Orientaciones pastorales sobre el proyecto de CPE. Carta pastoral. 2008. CÓRDOVA, Julio. “Evangélicos y procesos de desarrollo en Bolivia”. En: ISEAT (ed.). Religión y desarrollo en los Andes: Reconstrucción intercultural de una relación difícil. La Paz: ISEAT, 2008a. p. 79-112. CÓRDOVA, Julio. “Proyecto de CPE, diversidad social y libertad religiosa”. [manuscrito]. 2008b. DONATELLO, Luís. 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Contrariamente a lo que se creía, esta vivencia humana no solo es algo producido por la abundancia de cosas, modos y modas que simbolizándola ha creado valoraciones de lo que todavía ahora se denomina “alto estándar de vida”. Gran número de humanos nos estamos hastiando de esta calificada “buena”, “alta” y “moderna” calidad de vida. Sin embargo, es muy importante que seamos conscientes de que este hastío no se está produciendo únicamente en sectores poderosos por la propiedad y el dinero, sino que avanza a sectores que poco o casi nada tienen para vivir en la medida en la que van convirtiéndose en consumistas de las cosas originales o de sus réplicas con tal de estar a la altura de la cultura que domina. En ambos se trata de un doble hastío: hastío por carecer y hastío por tener. Asistimos subordinados a la imposición de las cosas cuyo valor sustrae nuestro sentido de vida dándole un valor per se por encima de lo que podríamos definir o resolver con nuestra soberanía. Pero esta subyugación no es total ni es que carece de crítica y búsqueda de alternabilidad. Precisamente uno de los contenidos con quien se estaría produciendo una cada vez más honda contradicción es con el hastío que va tornándose en búsqueda y construcción de otro sentido de la vida que es el deseo de espiritualidad. El totalitarismo de la globalización del modo de producción de una vida subordinada al mercado, muestra sus límites cuando los seres humanos suspiramos, expresamos y manifestamos signos, sonidos o texturas, buscamos aire o levantamos la mano buscando auxilio, solidaridad, calor, sentido natural de la existencia. Buenas señas y buenas nuevas para un tiempo suelto, turbulento, dominador del espacio y que sin embargo es un acontecer que se nos ofrece como desafío. El hastío es hambre de pan, pero también de trascendencia, es nostalgia de sacralidad, es hambre de espiritualidad, es también hastío de la gula. Culturas e Div. Religiosa.P65 153 21/10/2010, 14:18 154 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Efectivamente, si sentimos que podemos y somos capaces de comprender que el tiempo-espacio se desenvuelven y enroscan, toca ahora que la vida en su conjunto y que nuestra particular vida, camine redescubriendo, volviendo, re-tornando. Un ir hacia adelante, volviendo y buscando conectarnos, es decir volver a ser plenitud. El hastío humano expresa la sed de re-integración en la totalidad sagrada que solo se la podría vivenciar haciendo la experiencia de superar la radical división y oposición entre cuerpo y espíritu, tiempo y espacio que la cultura moderna ha producido considerándolo verdadero y necesario. En el Ecuador en medio de un catolicismo mayoritario en su población, un día se abrió una ventana no para un simple aggiornamento sino para vivir un cristianismo de liberación que empataba con una creciente movilización social de obreros, campesinos y sectores estudiantiles. La viva huella dejada por el testimonio de Dn. Leonidas Proaño en la zona mayoritariamente indígena del Ecuador, que es la provincia de Chimborazo sacude todavía el orden socio político victimador de los pueblos indígenas, a través de sus organizaciones las mismas que nacieron y se fortalecieron con el poder de su Palabra. Es justo e importante reconocer el papel de la educación en este despertar de los pueblos ecuatorianos; pero estoy hablando de la calidad liberadora de la educación y aquí los ecuatorianos tenemos una grata deuda con el maestro Paulo Freire, de la pedagogía del oprimido nacieron muchas experiencias de pedagogías liberadoras que vertebraron nuestras organizaciones sociales. Son quizás las tremendas condiciones de opresión que han venido soportando estos hermanos pueblos, que incidieron en la priorización de lo socio político por parte del conjunto del movimiento reivindicador que dejaron de lado el aspecto de su identidad cultural. Esta definición de fondo impidió aprovechar sus filosofías, todas con basamento e integración espiritual básicas para continuar buscando con acierto, una alternativa respondiendo a los apremios de nuestro espacio-tiempo. Entonces vivíamos momentos en donde creíamos que la respuesta urgente y completa era una salida y compromiso que resultó incompleto pues el alma de nuestros pueblos andino selváticos – muchísimo de lo cual nos identifica a todos y a todas en Abya Yala América – es el sentido integrador de lo espiritual. El avance arrollador del neoliberalismo viene imponiendo la idolatría del mercado y al mismo tiempo se multiplican espiritualidades masivas y masificantes viabilizadas por los medios de comunicación. Sin embargo, al frente de las confesiones penitentes hay un renacimiento de las filosofías andinas no solo tomadas desde su contenido académico sino desde lo propiamente espiritual por vía de lo ecológico, de la búsqueda de la salud, de una calidad de economía comunitaria y solidaria, todo ello dentro de una búsqueda de encontrar otro sentido de nuestra existencia y de nuestra soberanía reducida a mercancía y a usuarios del supermercado mundial. Culturas e Div. Religiosa.P65 154 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 155 Si el maestro Raimon Panikkar me permite, diría que ciertamente como él dice que si “el gran desafío para el hombre, es el hombre mismo”, yo añadiría que por ello necesitamos volver a tenernos como humus y así el humanismo de nuestro tiempo, ya no sería nuestra egolátrica complacencia sino la dignidad de recordarnos que somos tierra fértil, es decir humus-mismo. *** En las nuevas definiciones de lo político la Constitución de la República del Ecuador recoge el espíritu de la Pachamama y dice asumir como objetivo de la ciudadanía y Estado llegar al Buen Vivir, una de las posibles traducciones del Sumak Ally Kausay. En mi país dada esta histórica trayectoria, lo intercultural todavía continúa siendo tratado como parte de lo indígena y por ello tenido de poca valía, lo que no quiere decir que se está produciendo una ruptura precisamente por el desafío del medio ambiente, de una nueva definición de la educación, la salud y por la necesidad de hacer otra economía desde la potenciación de lo doméstico, lo comunitario y lo solidario. Animando este nuevo caminar está la sed de una espiritualidad que nos provea del agua con cariño maternal. Pero es el acercamiento a la Filosofía Intercultural, uno de los espacios y contenidos que vienen a proveer de nuevas visiones en todos los aspectos para emprender en lo que quiere decir construir otro país. Si bien fue el impulso de la Teología de la Liberación lo que sacudió el peso de una Iglesia conservadora y tridentina, una corriente ecumenista al acercarse a las espiritualidades de nuestras culturas habla de un mismo Dios presente y actuante como Padre en todas las culturas y, por lo tanto, en las religiones indígenas. Esto es comprensible porque nuestro cristianismo latinoamericano no puede todavía liberarse de su occidentalidad, mientras tanto, no debe seguir pretendiendo convocar a un ecumenismo bajo su sola concepción teológica. José Estermann nos ayuda a comprender mejor cuando dice, “El término “teología” no solo refleja una cierta racionalidad (el logos griego) sino también una determinada concepción de lo divino (theos, deus, “dios”)” (ESTERMANN, 2006). Una perspectiva ecuménica no puede realizarse desde la única convocatoria de cualquiera de las iglesias porque se estaría cayendo en la inculturación religiosa. Así, los antiguos templos fueron reemplazados por construcciones de cemento absolutamente desvestidos de los símbolos de las culturas propias de nuestros pueblos, las variantes de cristianismo continúan obedeciendo a sus referentes eurocentristas con lo que vemos que no camina el ecumenismo porque le falta el sentido de interespiritualidad. Un ecumenismo de interespiritualidad no puede construirse bajo ninguna concepción o tutela única sino en un espacio constituido como fraternidad de iguales, diversos, preocupados por la trascendentalidad y sacralidad de la vida que debe ser enaltecida y celebrada para reincorporarlo en la búsqueda de dignidad en diferencia con el orden Culturas e Div. Religiosa.P65 155 21/10/2010, 14:18 156 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) geopolítico cultural universal que oprime y usa todo sentido y creación con el fin de reproducir su condición de dominio y destrucción. Sintamos que hemos ido demasiado lejos. Volvamos … Una superación para retornar, es hacer el camino de estar para ser, eso es el fluir. Este camino es posible porque provenimos de pueblos cuyas culturas vivieron en sensibilidad, es decir, en observación como contemplación de la integración. Por ello el hecho de Aprender era – y continúa siendo – una experiencia iniciática producida incesantemente por la mutua donación, es decir, por el motor de la reciprocidad porque produciéndose entre diferentes manifestaciones de vitalidad, se sabía el fondo creativo materno natural. El ayni – el dar y el recibir – permitía entonces la armonía, porque ninguno fue considerado objeto. El fondo maternal de su hechura hacía de su existencia, sujetos en diálogo, en mutuo pago, en encuentro de diferentes que gratuitamente se donaban. Entonces la economía no era sino el señorío entre dones y donantes acto vital impregnado de aprendizaje nada posible sin su calidad de espiritualidad. La sabiduría no era sino el resultado de este caminar aprendiz. Siempre caminar, siempre aprendiz. Siempre camino de curvas, elevaciones, descendimientos, vueltas, detenimientos, nunca rectilíneo, ni unilineal, realidad que garantizaba tener como referente el saber acumulado, el saber aprendido, el papel de los mayores cuya experiencia era una especie de espejo que iba delante: el pasado iba adelante y así se garantizaba la base del saber, el sentido de la cultura, la unidad de diversidades vitales en el Todo y como un Todo de calidad maternal como la calificación más alta y sagrada. El pasado como memoria que guía personal y públicamente y no como archivo reservado para especialistas que solo luego publican el secreto. La espiritualidad es y era la maternalidad siempre pariente del origen y mantenimiento de la Vida que reclama calor amoroso y que los abuelos sabedores vivenciaban como rito constante en ese proceso de conocimiento integrado e integrante. Esta Vida Mama, esta existencia Mama, exige que la observación sea un acto vital, una vida de iniciación y entrega tal como en el acto mamatorio hay una fusión madre-hijo, hijo-madre que hace que el conocimiento “producido” sea emocionante. Por ello no hay separación entre vivir y el conocer porque se trata de una relación filial, de filialidad sagrada. Y ya que se ha penetrado en lo sagrado, en lo wakan, esto tiene que pronunciarse como fiesta espiritual en sus ritos, en sus cantos, en sus mitos, en toda acción vital de estos narradores. Todo tal si fuera una creación artística. Culturas e Div. Religiosa.P65 156 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 157 Es íntima la relación producida entre madre-hijo/a y el saber que no encuentran mejor vehículo de aprendizaje que no sea lo bello, no es una manifestación separada de la vitalidad filial sino su celebración, gratitud, devolución en este eterno “criar y, dejarse criar”. Al respecto dice José Estermann “La celebración y el ritual son para el ser humano andino un acto gnoseológico y ético de primer rango, celebrar el orden cósmico, significa conocerlo y conservarlo” (ESTERMANN, 2006). Por ello la celebración de un rito no es un acto aislado, sino un concentrado fractal de la holística sagrada de la vida que no admite que algo sea profano aparte de la des-integración, de la huída de la comunidad, de la negación de la fraternidad y filialidad. Celebrar esta espiritualidad todavía es una grata devolución y un aliento para que Mamá siga prodigando vida al estar siempre embarazada y siempre pariendo. Solo ante la evidencia actual del riesgo planetario de la vida es que es posible comprender el nombre y voz del maíz que en lengua náhuatl suena-enseña: IXIM que quiere decir: Yo Soy el Origen. El conocimiento sobre el conjunto amoroso Pachamama celebrado ritualmente como regocijo y aprendizaje social para que se sepa el por qué y el cómo de la vida, su tejido, su evidencia palpable, íntima y colectiva, runa y allpa, flor y cóndor, taita y mama, es el método cognoscitivo nunca separado de la vida. Bueno, entonces sólo así se puede comprender la fusión social del conocimiento con la economía, con la espiritualidad accionando el Sumak Ally Kausay que no solo es buena, sino hermosa y digna calidad y actitud ante la vida radicalmente diferente de un proceso de evolución, de dinámica para determinada élite o del pernicioso Desarrollo impuesto geopolíticamente a nuestros países que hoy malviven en esa condición del cual ya hay buenos visos también de hastío. Esta sensación de vacío, de inseguridad de vivir, es un producto de la orfandad del ser humano ante una Madre maltratada y olvidada orfandad que no sólo nos ha desconectado de la rueda de la vida sino de su armonía que es el propio nombre de la Salud ya sea como salu-recibir o como salu-dar. La doble decadencia que vivimos en la actualidad como producto de siglos de Modernidad, de Desarrollo y de cultura del mercado capitalista es un poderoso llamado de la selva madre para retornar y es en las espiritualidades de la Madre Tierra, en las espiritualidades salvajes, del agua, del maíz en donde podemos encontrar algunas respuestas y proyectos de vida. Aquí ya estamos en condiciones de poder sentir que estamos ante una realidad de por sí difícil por el riesgo que ella entraña. Lo que agrava y no permite crear respuestas aprovechando el desafío, es que nos presentamos solo con mentalidad y, con mentalidad uni-lineal. La mentalidad con que nos presentamos es resultado de una educación que Culturas e Div. Religiosa.P65 157 21/10/2010, 14:18 158 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) nos ha enseñado una sola cultura, la cultura del conocimiento que se ha declarado único, creado en el orden universal Moderno para una prolongación del Viejo Régimen solo que por otros medios. En lo que se llama la postmodernidad el Hombre se hace valer ante sí y por si supuestamente liberado de los grandes relatos y los valores. Hoy el Hombre vale y hace valer todo aquello que le sea útil siendo por ello necesario tener información e información abundante y rápida porque todo es efímero ante la velocidad de la existencia y del consumo de la mercancía, la versatilidad plástica del orden y su super cultura. En medio de esta realidad la condición humana no solo es de individualidad, sino de soledad y destierro, es decir de negación de su condición de filialidad natural, de donde tal vez nos es posible comprender la razón íntima del ecocidio como efecto y fundamento de este absolutismo humanista. Pero hemos dicho que es honda la realidad que nos interpela y desafía. No estamos contando entonces un relato de terror y de desconsuelo sino de esperanza porque en lo más oscuro de la noche no puede ya haber más tiniebla sino encenderse la luz, como correspondencia. Sin embargo se trata de una esperanza integral de la vida dentro de la cual hay una responsabilidad del ser humano que al necesitar reorganizar precisamente su sistema-vida tiene que volverse natural, es decir reintegrarse a la Madre y en ello se tornan indispensables aceptar las invitaciones espirituales de nuestras culturas de Abya Yala. Este es el Espacio y este es el Tiempo porque como dice José Estermann “El tiempo del reloj para el runa/jaqi tiene importancia secundaria, hay momentos propicios y momentos no apropiados. No tiene sentido cumplir si el kairós no se da” (ESTERMANN, 2006) Hoy es ese tiempo apropiado, hoy se ha abierto el kairós. Uno de los Caminos … Lo que denominamos educación debería ser un hecho aprendiz de vida, un acontecer al que se ingresa como opción libremente determinada para una iniciación al conocimiento, tal como lo hace toda persona que decide soberanamente tomar cualquiera de los caminos iniciáticos espirituales. Parecería exagerado hablar en estos términos, nada relacionado con lo que es un proceso educativo pero es que toda iniciación al conocimiento presupone y debe presuponer una actitud de entrega, de aceptación de sus desafíos, de saber que se trata de comenzar un largo y profundo camino que va a tener gran implicación en la calidad de una persona. Es digno de ver esa actitud en lo que hace un aprendiz de carpintero, de lama, de yachak, de científico, para comprender y apoyar lo que manifestamos. Culturas e Div. Religiosa.P65 158 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 159 En el fondo lo que sucede es que una iniciación al conocimiento demanda una actitud ética integral que nada tiene que ver con la alocada búsqueda de titulación como la única y absoluta meta que el arribismo – vacío de iniciación al conocimiento – exige para alcanzar posicionamiento, figuración, prestigio, comodidad y un determinado tipo de poder. Muchas veces solo repudiamos la realidad de baja calidad de nuestros estudiantes olvidando que esta situación de la calidad del estudio de nuestros amigos es el asunto y nuestra misión de transformación. En efecto, plagada de prejuicios, de información no solo atrasada sino sesgada, de formalidades impuestas, la educación, como dice Monseñor Leonidas Proaño, “…es clasista y arribista. Juntas estas dos características traen como resultado que elementos humanos extraídos del pueblo se conviertan en clase aparte de ese mismo pueblo y en profesionales del arribismo. Lo que interesa es subir para ganar más dinero y para colocarse encima de otros” (PROAÑO, 1993). Conjuntamente con ello la globalización crematística ofrece a sus subordinados el éxito como fin de esa desesperada carrera. El individualismo arribista es una escuela de formación ética que embadurna poco más o menos al conjunto de la educación y unifica masivamente a todas las procedencias, identidades y opciones. Se podría decir que esto es el meollo de la mala calidad de educación que tenemos. Trabajar en ello y con ello es una realidad dura ciertamente, pero repito, es nuestra misión contar con eso para transformar. Un juzgar y un actuar consecuente solo se lo puede construir en medida del asumir el Ver, del conocimiento, de su profundidad en el sentir no sólo mental racional sino afectivo y pasional. Un docente que se inicie en esta maestría debe saber que ello es una opción de vida, una misión que demanda paciencia, un actuar de sabiduría, una iniciación también ética y espiritual, es decir un camino de Aprendiz. Es un Ver integral que no sólo hace referencia al órgano de la vista, sino al sentir integral que en nuestro caso cultural significa un querer el establecimiento de una relacionalidad afectiva y amorosa. Esta relacionalidad lejos de que sea una reedición del paternalismo que la debemos entender como una deformación de lo amoroso, es el inicio de un camino de múltiples reciprocidades, a saber: • Con la naturaleza vegetal y animal • Con la naturaleza humana • Con la naturaleza social comunitaria • Con la naturaleza humana individual personal de nosotros y nosotras mismas. Todo ello para conectarnos con esa red maternal que es el ser de la esencia de la vida. Por eso no debemos hacer una educación solo para la efectividad, las habilidades, las destrezas y las competencias separadas y contrapuestas con el fondo en el que se determina nuestra calidad de seres vivos y humanos. Culturas e Div. Religiosa.P65 159 21/10/2010, 14:18 160 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Este conjunto constituye la madre y maestra del aprendizaje, es el conjunto donador a cuyo proceso iniciático integral, intercultural y comunitario debe propender la educación. La vida misma tomada como madre y como maestra es lo que nos enseña y, transfigurarnos como aprendices de esta profundidad es el paso inicial y permanente de mayor importancia. Aprendiz, recalco, no es un nombre de rebajamiento sino de disposición de toda nuestra naturaleza humana personal al hecho integralmente vital de aprender para Ser. Los procesos de la vida así tomada, son grandes y simplemente complejos y sólo quienes se disponen integralmente a caminar en sus meandros, sendas, procesos, reflexiones, lecturas la aprehenderán y con ello, aprenderán; llegando a ciertos sitios para reanudar el camino. El modo como se debe tomar el inicio de este camino es el de sentir que esa Madre Vida es sagrada tal como nos proponen nuestras culturas ancestrales. Claro que para una mentalidad moderna esto significaría como dice Panikkar, un retroceso. “Pero – continúa – lo que necesita ser resacralizado es la misma vida humana. La vida humana necesita ser vivida plenamente como una realidad más real que lo meramente empírico, es decir como realidad sagrada”. Y, entonces es la “lectura” de esta calidad de vida, de esta vida sagrada, de esta vida no solo humana, que recupera nuestra animalidad, de esta vida espacio temporal maternal – como lo toman y aprenden las culturas andinas - de esta vida vuelta a comprenderla como sagrada, lo que constituye la primera calidad del hecho educativo e intercultural del aprendizaje. Me imagino y propongo que deberíamos llamarle el hecho aprendiz y, como consecuencia de esta reflexión: camino de aprendiz, una vez que este hecho hace relación con un momento singular, integralintegralizante, iniciático y privilegiado de la “educación”. Estando en víspera de retornar a una eco y eco-nomía de la naturaleza que viviéndola no como consumidores sino como uno de sus integrantes, demanda de conocimiento y autoconocimiento y en ello resulta muy definitorio sabernos naturales y que nuestra diversidad de identidades, sentidos, visiones, es decir, culturas, es básico por todo lo cual tenemos que aprenderla y no precisamente por métodos neo-conductistas que alientan la imposición de una cultura antropocéntrica como calidad y contenido de la educación. Debemos entonces señalar que un camino está repleto de hechos de aprendizaje, de donde podemos colegir que un hecho educativo que para nosotras y nosotros podría ser un hecho aprendiz, es el tiempo y el espacio en el que se produce el aprender por una reciprocidad de donación de saberes de la vida y para la vida. Esto es propiamente lo andino en donde el ser humano es producido y productor en la medida que es chakana, es decir relación armoniosa, puente. Así, estamos hablando de transformaciones vitales de los donantes: donamos saberes para que el proceso continúe, pero somos donados para Culturas e Div. Religiosa.P65 160 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 161 que la vida siga, de donde podemos concluir que aprender es vivir y vivir es aprender. La poética del maravillarse en el acto vital y vitalicio de conocer y llegar a saber trasunta que lo cognitivo es entonces un hecho espiritual y artístico y, todo ello, un acto o hecho de creación y autocreación en el que también somos permanentemente creados. Nosotros y nosotras los humanos, los árboles, el agua, los animales, el viento, la luz somos donantes diferentes pero integrados e integrantes precisamente para que la dinámica vital continúe. Cualquier “aprendizaje” en desintegración pone en riesgo ese proceso. En la catástrofe ambiental del cambio climático hay una ruptura evidente de uno de los actores del hecho vital del aprendizaje. Al haberse dado una des-integración del ser humano con respecto a su Madre, este rompe su proceso de aprendizaje, su proceso de hominización propiamente natural y el resultado es una cultura no diferente sino contraria a la naturaleza y la naturalidad. El ser humano, para las culturas andinas, es chakra, es decir es tierra de cultivo: es un “criar y dejarse criar”, pues es una cultura de agricultura. Para el saber andino esto de estar fuera de la maternalidad de la naturaleza sería tenido como motivo de desquiciamiento, soledad y desprotección es decir: el no aprender. Con ello se rompe el proceso cíclico de la vida. Es más, el romper la concatenación de pagos, de reciprocidad que hacen un proceso vital, es decir el romper con el aprendizaje traerá desequilibrio, pestes, hambruna, cataclismos que no son castigos sino consecuencias. Garantizar el proceso vital exige una re-integración, es decir, el volver a aprender a vivir como conjunto de múltiples donaciones, es decir de reciprocidades. Aprender es vivir, puesto que vivir es aprender. El aprender casi nada tiene que ver con la instrucción y lo que comúnmente llamamos la educación. Aprender es distraerse y hasta perderse en los caminitos que nacen del camino conocido, jugar, proceder con alegría, cumplir con la parte del ciclo que en realidad es un ciclo de aprendizaje. Tornarse aprendiz es volverse niño, ser con disposición vital y vitalizante, voluntarioso, juguetón, elevado y aventurero (a despecho de la cultura dominante y de su modelo de familia) que como dice el Buda Sakiamuni “es el ser que se extasía ante lo que todo el mundo ve”. Es un ver diferente, integral y vital que permite que uno se detenga, que no pase de largo. Aquí el aporte y ubicación de la investigación es apropiado. El hecho aprendiz es un hecho investigativo connatural con el aprender y el saber, con el gusto, el arte y el juego. Es de manera holística y compleja – es decir integrada y relacional – como se debe aprender la vida, de la vida en las culturas andinas. Pero “la ciencia como narración de la realidad se asienta en la visión analítica, compartida, atomizada, y simplificada de la realidad” (COLOM, 2002). De esta manera un hecho aprendiz integrado, es decir complejo, constituye Culturas e Div. Religiosa.P65 161 21/10/2010, 14:18 162 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) una calidad de aprendizaje que no corresponde con la simplificación de la realidad y la vida de lo que parte la visión todavía hegemónica de la ciencia. El transcurso del hecho de aprender ha pasado del simplismo a la complejidad y de la complejidad a la simplejidad que es lo más complejo de lo complejo porque integra y resume todos los procesos desde el vuelo de un quinde que puede volverse sunami y desde el abrazo que produce energía amorosa hasta la organización de una comunidad de otro humanismo. Una siguiente calidad del hecho de aprendizaje o aprendiz sería el aprender de la vida como un hecho complejo no lineal ni unilineal, en cuya lectura, la ciencia constituye una de tantas lecturas, pues existen otras calidades vivas de contar lo que es el mundo y la vida, que utiliza el libro y las diversas significaciones así como los enunciados mántricos, el joveo y la ritualidad como actitud permanente. En esta calidad de nuestro hecho aprendiz, hay pie para abordar la diversidad como característica de la realidad, que fundamenta la diversidad de aprendizajes. De ahí la diversidad de pedagogías, de hechos, de comunicación, de procesos de captación y reflexión, muchos de los cuales no pueden ni tienen porque cientifizarse para que adquieran validación. Cuando se educa habría que enunciar desde qué narración se pretende explicar una determinada realidad vital. Cierto que es posible escoger esta o aquella narración que dirija un hecho educativo. Pero lo que ya no es aceptable, (no solo para la interculturalidad) es sobreentender e imponer que un hecho educativo particular, construido desde cualquier punto de vista o cultura, sea el único. Cada cultura o cualquier vitalidad humana es un mundo de aprendizajes. Es un mundo pedagógico, venimos diciendo en nuestra escuela aduciendo que toma la complejidad como vía para un mejor abordaje cognitivo. Entonces como cada cultura es un mundo de saberes, es por ello que el hecho aprendiz intercultural analiza y sensibiliza su atención ante conceptos, ideas, imágenes, desde y como producción del otro para saberlas en el sentido de vivirlas, tratarlas. Sin embargo, esa es otra característica de nuestro hecho de aprendizaje: es el buscar combinar lo individual integral con y en lo comunitario. Lo individual personal contradice lo ego-ísta en la medida en la que lo asumimos como integral, lo cual requiere de búsqueda de encuentro. “Lo humano empieza por ser público, por ser de todos, por ser de cualquiera. De esta manera el ser humano se encuentra primariamente vertido a los demás biológicamente; pero su modo de actuar, de estar vertido a los demás supone que estos se han incrustado ya en su vida” dice Piedad Vazquez. Entonces en lo personal existe un ámbito individual que va al encuentro con el Otro, de enlace, de ida y vuelta con el Otro. Esto otra vez constituye una complejidad y en este sentido una totalidad, es decir una integralidad, de ahí el sentido de Comunidad de todas las naturalezas y no la sumatoria o amontonamiento de ego-ismos o entidades aisladas. Culturas e Div. Religiosa.P65 162 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 163 En nuestra experiencia educativa venimos hablando el enunciado de la Pedagogía Integral, Intercultural Comunitaria. Sin embargo, el asunto central es su carácter de unidad de la diversidad de las diferentes calidades y maneras de conocer, simbolizar, festejar, imaginar, comunicar y ser de la pluralidad de humanidades del mundo. La comunidad como espacio común de la diversidad a ser aprendida es no sólo el sitio, la vivencia humano social kausayllactacunahuan sino la pedagogía para aprender del encuentro. En este caso no necesariamente nos referimos a la comparecencia física de los diferentes sabedores, simbolizaciones o estéticas, sino a que una comunidad de aprendizaje intercultural tiene como hecho, el aprender por medio del diálogo de los aprendizajes de las culturas como socio humanidades, como mundos cognitivos, como mundos de sabiduría. Una vez que no medie un afán de dominio, es posible hacer de la comunidad un encuentro de saberes, es decir una interculturalidad pedagógica. Si dialogar no necesariamente significa llegar a “acuerdos”, o en este caso a uni-versalizaciones, la noción y sentido de inter-versidad – sin negar la comparecencia física de las culturas – es la constatación de las válidas diferencias que debaten, fijan sus diferencias, enuncian su crítica, su posicionamiento, pero también incorporan conocimiento y conocimiento aprendiz es decir nada absoluto y definitivo sino como invitación, propuesta, y donación histórica desde las varias miradas de ella como expresión de complejidad. Es entonces un producto y una construcción obtenida de la participación de haceres, reflexiones y elevaciones del camino aprendiz que hace del Hecho, no un momento congelado ni tan solo una sucesión evolucionista. Hecho comunitario es decir participativo y por ello y para ello, crítico. El primer actor y maestra del hecho educativo de aprendizaje es el sentido de existencia de comunidad. En ella están integrados y/o representados los estudiantes, los profesores, las familias. Una profunda y exquisita preparación pedagógica intercultural harán del profesor o profesora un actor comunitario de incentivación, mediación (en el sentido gramsciano) y coordinación que no es simple actitud de procedimiento sino de acolitación de profundización. El monólogo Magister Dixit, construido políticamente unas veces por cualquiera de las variantes del conductismo de “la letra con sangre entra”, otras por el intelectualismo herbartiano, o, por el paternalismo y demagogia de minusvalidación del otro tomado como pobre y carente de conocimiento cultural, etc son desplazados por esta actoría comunitaria cuyo papel es el diálogo, es el animado interaprendizaje. El o la profesora, cumplen en cambio un nuevo papel en el hecho educativo intercultural, cual es el de ser adelantados en tener una mensensibilidad que les permite saber de diferentes, hacerlos dialogar en su persona una vez que ha roto el paradigma de la linealidad y la universalidad, y que por ello enseña aprendiendo y aprende dando testimonio, Culturas e Div. Religiosa.P65 163 21/10/2010, 14:18 164 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) de todo lo cual muestra en su “rostro y en su corazón” como señala el Calmecac o que dentro y con la Comunidad de Aprendizaje, profundiza la calidad de Pachayachachik: espacio-tiempo madre y maestra. Fernando Urbina, hablando de los Abuelos Sabedores en los Huitoto y Muinane, dice que “unos pocos recorren el arduo sendero del saber, el que ensambla elementos haciéndolos entrar en un conjunto armónico y dinámico” (URBINA, 2001) con calidad de sistematización en el coqueadero en donde el Abuelo que sabe, habla. De esta manera el saber es “la palabra fuerte”. El Abuelo es un personaje que “contiene y ejecuta ese saber haciéndole visible en obras”. “El chamán al volar lo hará como águila o gavilán. Este alejarse de lo inmediato para visualizar el conjunto y en él ubicar la parte que cobra así sentido, constituye la esencia de la cosmovisión. Pero el chamán no se queda en las alturas, desciende a las profundidades, a los ámbitos oscuros donde la tiniebla lo diluye en las raíces del mundo. Este camino a lo íntimo, a lo interior de los seres no es un viaje para ver sino para con-fundirse…” (URBINA, 2001). He aquí una propuesta de procedimiento para una calidad de docencia que partiendo no sólo de la realidad en su dimensión socio política sino de una necesaria conciencia y sentir de ser parte del maternal espacio-tiempo, lo reflexione haciendo testimonio. El aula no es solo el sitio de paredes. Pero, más que eso, la Comunidad de Aprendizaje Intercultural no es el aula o el nombre que hay que poner en el letrero del establecimiento educativo. La Comunidad de Diálogo que enseña es una pedagogía y sin embargo, es el mundo y con ello, un sistema educativo intercultural no solo urbano, ni solo rural (en realidad ello cobra otro sentido) no solo es de lecto escritura, ni solo de rituales, ni tan solo de “salir a la orilla del rio”. Es el aprendizaje por medio del acceso a los conocimientos según los caminos, mediaciones, vehículos, destrezas y estados concordantes y/ o contradictorios de las culturas. Es la realización del saber que se dona para que la vida continúe pero cada vez con mayor dignidad. Es la activación del interaprendizaje por la evidencia del ser del Otro. Se trata de un Aprender entre nosotros. El hecho educativo de aprendizaje intercultural es vital, es permanente, hace de cada individuo, cultura o institución un espacio, una representación de ese diálogo de aprendizajes del cual se aprende. Se comprenderá la calidad de iniciados que se requiere y al cual hacíamos referencia al inicio. De esta manera el aula es un fractal de la casa cósmica, maloka en donde nos cobijamos todos como comunidad de aprendizaje en una cosmo-comunidad y cosmo-participación. Hoy ante la realidad de la Vida, este diálogo de aprenderes por aprender, debe tener como misión la dignificación de aquella a través de re-conocerla y en particular actuando sobre el fondo actual de lo Humano, “otorgarle rostro y corazón” como todavía dicen los náhuatl de México. Esto último es la intensión abierta del contenido de lo político y su ethos Culturas e Div. Religiosa.P65 164 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 165 que viene a diferenciar nuestro pensamiento con respecto a otros que veladamente lo plantean o que taxativamente lo niegan sin que quiera decir que ello constituye un apoliticismo. El diálogo en la interculturalidad desde nuestro punto de vista tiene como contenido la no aceptación de dominio alguno, etnocentrismo o pretensión de purismo. Las diferentes entradas cognitivas, las “diferentes maneras de explicar el mundo” de las diferentes etnicidades incluida la occidental (aunque enseñada a ver al Otro como lo étnico) no pueden servir únicamente para coleccionar información, o para ubicar roles funcionales puesto que esto lo realizan a las mil maravillas el espionaje empresarial petrolero, la biopiratería del conocimiento, la venta de la investigación, o cualquier fanatismo confesional y su trasfondo geopolítico, pues estos también tienen una versión particular de interculturalidad como noción plástica adaptable a cualquier intensión. La construcción integral, intercultural y comunitaria de un ser de conocimiento o mejor, de saber, exige una descentración, es decir un viaje al otro, la negociación de posibles acuerdos en donde el desacuerdo es validado pero jamás tenido como fracaso o motivo de violencia, discrimen, o invisibilización. Resumido esto en una frase se podría decir que el hecho educativo aprendiz requiere de una autoexigencia y no de una imposición al otro, de un “conocimiento interpersonal que nos proyecte hacia el interior mismo” como propone el testimonio de Don Leonidas Proaño caminante hacia una Teología de la Liberación, desde una Teología Tridentina (PROAÑO, 1993). Camino liberador de la opresión socio política de los indios ecuatorianos en el cual él mismo se convirtió y liberó por la fuerza espiritual del runa andino. Esto último nunca se vio así por el desconocimiento de la valía de la espiritualidad andina, pueblos a quienes siempre se les tomó únicamente como pobres, políticamente oprimidos a quienes había que culturalizarles e inculturalizarles. Es por esto que nuestro hecho de aprendizaje intercultural tiene la abierta intensión de saber y ser los humanos que requiere este tiempo de tan profunda invitación a responder testimonialmente sobre aquello. Para ello es necesario deconstruir la narración pedagógica elaborada en la modernidad a través del orden que ésta supuso y aquella acolitó. “La mentalidad, por contraposición a la cultura, hace referencia a la impronta y a las valoraciones, habitualmente inconscientes, que un sistema cultural imprime en el comportamiento de los individuos” (VILLACORTA, 1993). Así, nuestra propia versión y crítica postmoderna no es un ensayo de estética sin crítica – como esta supone – sin propuesta; al contrario, es la construcción de una ontológica (como también botánica y zoológica) de la Dignidad de la Vida que tenga como uno de sus baluartes el respeto y conocimiento de esas diferentes entradas para ello; que más allá de la simple preservación, propone construcciones. El hecho educativo intercultural desde la de-construcción de la pedagogía supone asumir la complejidad. En el Paradigma Perdido, Edgar Culturas e Div. Religiosa.P65 165 21/10/2010, 14:18 166 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Morin dice que “la relación ecosistémica no es una relación externa entre dos entidades cerradas, sino una relación integradora entre dos sistemas abiertos, que constituyendo cada uno de ellos un todo por si mismo, no dejan de formar parte el uno del otro” (MORIN, 1992). La conciencia y la sensación de vivir con, en, por y como agua, tierra, aire y fuego nos hermana como Comunidad otorgándole sentido a este hecho de aprender. Por eso, la base de la Pedagogía Intercultural que anima a la comunidad de aprendizaje intercultural, tiene como garantía el hecho de ser significaciones y conocimientos abiertos desde su naturaleza. Morin añade “Cuanto mayor es la autonomía de la que goza un sistema vivo, mayor es su dependencia con relación al ecosistema”. No podemos educar salidos de la naturaleza sino ligados a ella en filialidad. La Pedagogía Intercultural del hecho educativo aprendiz pide una naturalización de la vida. En efecto siendo una actitud espiritual, no necesariamente requiere de estar en la montaña aunque su cercana presencia resulta mayormente propiciadora de escenarios pedagógicos inusitados y sensibilizadores. Al efecto señalan Desiderio Catriquir y Teresa Durán P, hablando de los Mapuche, que “…el pensamiento emerge de la continuidad entre mapu (naturaleza) y che (gente) y entre che y mapu, lo que deja por los suelos la consabida oposición entre cultura y naturaleza de la que generalmente parte la educación moderna en casi todas sus versiones y mentalidades” (CATRIQUIR y DURÁN, 2005). Esta realidad esto se ve hondamente comprendido por la evidencia de la mayor esclavitud de la naturaleza que se hace en la persona del niño. Por todo esto podemos continuar diciendo amparándonos en la reflexión que para la filosofía latinoamericana hace Raúl Fornet-Betancourt, en el sentido de que una calidad de educación transformada, renovada y apropiada puede lograrse “al hacerse cargo precisamente del impacto que las tradiciones indígenas significan para ella” superando el dominio eurocentrista, antropocentrista e incluso mestizo tributario de occidentalismo, que venimos dando a esa calidad y trabajo determinado por una “filosofía que hemos heredado y que continuamos, con nuestros métodos monoculturales” (FORNET-BETANCOURT, 2001) Cabe entonces preguntarnos ¿qué es ahora y aquí, la educación? ¿Con qué contamos para una respuesta adecuada? ¿Qué importancia debieran tener los saberes andinos en la búsqueda y construcción de una calidad de educación para este ahora y este aquí mundial? Ensayo respuestas diciendo: aceptar la invitación que nos hace la oscuridad y aprender a encender la luz. Contamos con la diversidad de seres y saberes. Los saberes andinos tienen que cumplir con su misión de servir para ser runacuna, haciendo minga con sus hermanas culturas del mundo en una pluriversidad e interversidad. Indudablemente que se trata de una de las mayores oportunidades que tenemos los humanos de reconstruir-construir un Sumak Ally Kausay Culturas e Div. Religiosa.P65 166 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 167 planetario solo en la medida de naturalizarnos naturalizando el pensamiento, la calidad general e integral de la vida, redescubriendo que su calidad de Madre es una espiritualidad oiko-nómica, oiko-lógica y oikoménica y que por no ser universalizante dado su carácter de reciprocidad y complementariedad está abierta a toda inclusión de calidad armónica es decir, no pretendiente de dominio. Esta espiritualidad de la Madre Tierra invita a construir un espaciotiempo para ritos, mitos y sentidos que al devolvernos nuestra calidad de seres llamados a ser sagrados, recuperemos lo sagrado de la creación, continuemos con esta obra aprendiendo y educándonos en estos caminos de diversidad y que desde sus contenidos hagamos y seamos comunidad de aprendizaje intercultural. Notas 1 Doctor em Sociologia. Director de la Escuela de Educación y Cultura Andina - Universidad Estatal de Bolívar. E-mail: [email protected] REFERENCIAS CACERES VAZQUEZ, Milton. Documentos internos de la Escuela de Educación y Cultura Andina-EECA. Universidad Estatal de Bolívar. 2006-2008. CATRIQUIR, Desiderio y DURAN, Teresa. Revista ANTHROPOS No 207. Universidad Católica de Temuco, 2007. COLOM, Antoni. La (de) construcción del conocimiento pedagógico: Nuevas perspectivas en teoría de la educación. Papeles de Pedagogía. Barcelona: Paidós, 2002. ESTERMANN, José. 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Religiosa.P65 167 21/10/2010, 14:18 6 DIVERSIDAD RELIGIOSA EN COLOMBIA: SITUACIÓN Y DESAFÍOS Olga Consuelo Vélez Caro1 Introducción Asistimos a un proceso creciente de diversidad religiosa en Colombia. Es un fenómeno que no se puede pasar de largo porque la homogeneidad religiosa ha constituido la cultura colombiana y cualquier cambio en este sentido afecta el mismo ser de los varones y mujeres de este país. Más aún, haciendo uso de la categoría de análisis “género” podríamos decir que este cambio afecta de diferente manera a cada uno de los sexos porque tradicionalmente las mujeres son las que más han expresado su fe y los varones la han reservado a una esfera más privada, sin por eso decir, que no se han visto constituidos también por esa experiencia religiosa. La importancia de esta reflexión puede expresarse también en lo que algunos analistas han llegado a afirmar en el sentido de que las transformaciones de los últimos cincuenta años no se dan tanto en los partidos políticos, en los sindicatos, en los movimientos guerrilleros, ni en la estructura socioeconómica, sino en la transformación religiosa que ha influido decisivamente en la sociedad civil (BIDEGAIN y DEMERA, 2005, p. 14). Cabe anotar, que esta realidad no es exclusiva del contexto colombiano sino que se puede reconocer en toda Latinoamérica aunque con diferentes acentos y matices2. Dividimos nuestra exposición en tres partes. Partimos de afirmar la hegemonía católica en Colombia y de las causas que fueron quebrando esa hegemonía. Acompañaremos esta presentación con la legislación civil que fue expresando esa transformación. En un segundo momento presentaremos la conformación religiosa plural que hoy podemos ir reconociendo en la realidad colombiana. Finalmente, señalaremos algunas reflexiones y desafíos que se desprenden del panorama aquí presentado. No pretendemos hacer una descripción completa sobre esta realidad pero sí ofrecer unas pautas para una reflexión ulterior que, como dijimos antes, es central para comprender y acompañar este nuevo momento que se percibe en la realidad colombiana. 1 Transformacion de la Hegemonía Católica Colombiana Podemos afirmar que la historia del país está marcada por una vivencia cultural compartida en la que el catolicismo ha jugado un papel determinante. Éste integró y forjó la cultura nacional, a partir de la cual se Culturas e Div. Religiosa.P65 168 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 169 valoraron o se rechazaron todas las demás propuestas culturales que llegaron por diferentes medios. Hasta 1950 la hegemonía católica fue indudable. A tal punto que en el gobierno de Laureano Gómez (1950-1953) la defensa de esa hegemonía justificaba la persecución efectiva de los protestantes. Cabe anotar que no faltaron intentos de gobiernos liberales (1853-1886) de implantar un laicismo que propiciara la secularización y quebrara el monopolio católico aunque sin éxito y, por el contrario, afianzaron la hegemonía católica o sociedad de cristiandad (BIDEGAIN, 1985, p. 35). Es verdad que existían acuerdos legales para permitir otras expresiones religiosas (protestantismos históricos y judaísmo) pero no lograron romper la primacía de la cultura católica. Ahora bien, hay que distinguir entre el sustrato cultural católico vigente y la experiencia religiosa individual de los colombianos y colombianas. A este respecto existen investigaciones que demuestran la existencia de una pluralidad religiosa en ese ámbito individual (BIDEGAIN, 1995). Pero sin duda, a nivel institucional y en el imaginario nacional sólo se da paso a la diversidad étnica, cultural y religiosa en el país, con la Constitución de 1991. 1.1 Causas de la Transformación Religiosa En Colombia Como acabamos de decir, hasta la mitad del siglo XX, el 99% de la población colombiana se declaraba católica. Es después de esa época que el panorama empieza a cambiar por diversas razones internas y externas que señalaremos a continuación (BIDEGAIN y DEMERA, 2005, p. 15-18). Causas externas: •Las misiones adelantadas por las conferencias evangélicas que consideran a América Latina desde comienzos del siglo como tierra de misión. •Los cambios operados en el catolicismo desde 1948 con el reconocimiento de la libertad de conciencia y de cultos, así como la preparación y realización del Vaticano II. Todo esto fue fruto de una apertura a la modernidad. •Nuevas cosmovisiones como resultado del fin de la Segunda Guerra Mundial y el inicio y desarrollo de la Guerra fría. •La política exterior de Estados Unidos frente a la expansión del comunismo, el marxismo y la teología de la liberación, explicitadas en los documentos de Santa FE I y II. •El impacto de los medios de comunicación. •La modernización, industrialización y urbanización en el conjunto de América Latina. •El reavivamiento y expansión mundial de nuevos movimientos religiosos originarios tanto de Oriente como de Occidente. Culturas e Div. Religiosa.P65 169 21/10/2010, 14:18 170 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Causas internas: •Hasta la década del 50 la mayoría de la población colombiana se concentraba en las zonas rurales. La violencia (1948-1953) produjo un fenómeno migratorio que cambió la configuración de la población rural y urbana del país. •La pastoral típicamente rural no encontró los caminos adecuados para inculturarse en el mundo urbano perdiendo espacio y significatividad. De la misma manera entre las clases medias y altas, afectadas por los valores traídos por la modernización, muchas de las prácticas devocionales católicas fueron perdiendo vigencia. •La incapacidad del clero colombiano para entender el cambio cultural que se producía en la realidad colombiana, muchas veces, por la obsesión de centrar todo su esfuerzo en combatir el comunismo. •La estrecha relación de la jerarquía católica con los gobiernos del Frente Nacional a los cuales legitimara entre las décadas de 1960 y 1980 produciendo un desencanto entre la población católica y favoreciendo la migración hacia otros grupos cristianos (PEREIRA, 1996, p. 43-65). •La aceptación y justificación por parte de la jerarquía y de las comunidades religiosas (OSPINA, 1945) de la persecución a los protestantes (MADRID-MALO GARIZÁBAL, 1991, p. 23) durante la violencia (1948-1953) provocando sentimientos anticatólicos entre la población. Dicha persecución no sólo consistió en expulsarles de sus tierras sino también en agredirles físicamente y robarles sus bienes (PEREIRA, 1996). •La afirmación de las identidades étnicas que ha traído consigo la valoración de sus religiones ancestrales. 1.2 Legislación Civil Colombiana Y Diversidad Religiosa3 Un breve recorrido histórico por el camino legislativo colombiano sobre esta materia, nos permitirá entender la transformación religiosa que ha sufrido el país. Antes que nada vale la pena recordar las declaraciones internacionales que anteceden a la Constitución de 1991 en la que se reconoce efectivamente el derecho a la libertad religiosa. Nos referimos a la Declaración Universal de Derechos Humanos (10 diciembre 1948, artículo 18), el Pacto Internacional de Derechos civiles y políticos (16 diciembre 1966, artículo 18) y a la Convención Americana de Derechos Humanos (22 de noviembre de 1969, artículo 12). En todos esos documentos encontramos la afirmación de la libertad a nivel de pensamiento, conciencia y religión y la libertad para expresarlo en la enseñanza, la práctica, el culto y la observancia. En Colombia esa libertad religiosa se reconoce en la Constitución de 1991 en sus artículos 18: “se garantiza la libertad de conciencia. Nadie será molestado por razón de sus convicciones o creencias ni compelido a revelarlas ni obligado actuar Culturas e Div. Religiosa.P65 170 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 171 contra su conciencia” y 19: “se garantiza la libertad de cultos. Toda persona tiene derecho a profesar libremente su religión y a difundirla en forma individual o colectiva. Todas las confesiones religiosas e iglesias son igualmente libres ante la ley”. Antes de la Constitución del 91 podemos también señalar los momentos fundamentales en este camino legislativo. Una vez separados de la corona española, el estado de Cundinamarca expide la constitución de 1811 donde se reconoce a la religión católica apostólica y romana como la religión de este Estado. Posteriormente todos los otros Estados del Nuevo Reino de Granada proclaman sus constituciones coincidiendo en este punto. En 1821 el Libertador Simón Bolívar convoca al Congreso constituyente el cual elabora una constitución en la que no se menciona la religión. Es en 1828 en la Convención de Ocaña, en ausencia del Libertador, se expide un decreto orgánico que reconoce a la religión católica como religión de los colombianos. En la Constitución de 1830 se reafirmó la religión católica, apostólica y romana como la oficial y se invoca al gobierno a protegerla y no permitir ningún culto público de otro credo. Sólo tolera las creencias individuales y su ejercicio privado. En la Constitución de 1853 se hace una reforma en la que se admite la profesión libre, pública y privada de la religión que a bien tengan con tal de que no se turbe la paz pública, la sana moral e impida a los otros el ejercicio de su culto. En la de 1863 se deja de invocar el nombre de Dios en el preámbulo y por eso se considera una Constitución atea. Aunque permitía la libertad religiosa y de cultos sirvió para desapropiar de los bienes a la Iglesia Católica y se expulsaron algunas comunidades religiosas. Una vez sofocada la revolución contra Núñez, se redacta la Constitución de 1886 que es teocrática y así se expresa en el artículo 38: “La religión Católica, Apostólica y Romana es la de la Nación. En consecuencia, los poderes públicos la protegerán como esencial elemento de orden social. Se entiende que la Iglesia católica no es ni será oficial y conservará su independencia”. A partir de ahí se reconoce a la Iglesia católica la personería jurídica y se faculta al Estado colombiano a celebrar convenios con la Santa Sede. En 1897 se establece por primera vez el Concordato. En la convención adicional de 1892 se refiere al fuero eclesiástico, la administración de los cementerios y el manejo del registro civil por parte de la Iglesia. La reforma de 1936 derogó el artículo 38 que consideraba la religión católica como la oficial y se eliminó la obligación del Estado de brindar la educación católica en los establecimientos públicos. Se modificó la expresión de tolerancia de cultos por la de libertad de cultos. En 1957 se vuelve a incorporar el nombre de Dios como fuente de toda autoridad y la religión católica como elemento esencial del orden social. Con estos antecedentes Culturas e Div. Religiosa.P65 171 21/10/2010, 14:18 172 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) se establece el Concordato de 1973 que concedió muchos privilegios y derechos a favor de la religión católica y su clero. Para 1990 la situación social del país era muy tensa por la presencia de la guerrilla, el narcotráfico, la descomposición política y la desconfianza en las instituciones. El asesinato del candidato presidencial Luis Carlos Galán (1989) propició un movimiento estudiantil que lideró la formulación de una nueva constitución. Es así como el gobierno de César Gaviria convoca la Asamblea Nacional Constituyente que elabora la Constitución de 1991 a la que ya hemos hecho referencia. Es importante recordar que en la Asamblea Nacional constituyente estuvieron presentes las confesiones cristianas protestantes y en especial las denominaciones pentecostales. Éstas que habían crecido notablemente en el país a partir de los años 70, comenzaron a participar a nombre confesional en la contienda política de 1982 agrupadas en la Confederación Evangélica de Colombia, apoyando primero a candidatos liberales que consideraban más cercanos a sus posturas y en 1988 con candidatos propios presentándose al Consejo de Bogotá y a la contienda presidencial. No ganaron en esos comicios pero consiguieron dos curules en la Asamblea Nacional Constituyente. Lamentablemente su presencia no fue tan significativa como se esperaba porque sus esfuerzos se concentraron (y aún hoy, en muchos casos, se concentran) en ganar privilegios para ellos y derogar los de la iglesia católica más que en hacer propuestas efectivas de transformación social y compromiso con la realidad del país (HELMSDORF, 1996). Podemos entonces afirmar que con la Constitución del 1991 se establece en el país la libertad religiosa y se deroga el Estado confesional. Posteriormente con base en la Constitución algunos ciudadanos presentan demandas contra el Concordato de 1973 consiguiendo que se declare inconstitucional. Se expide así la Ley 133 de 1994 en que se estipula lo siguiente: •Ninguna Iglesia o confesión religiosa es, ni será oficial o estatal (art. 2) Cabe anotar que esto no significó una relación hostil entre Estado e Iglesia ya que el Estado no se declara ateo, ni irreligioso, ni anticlerical. •Se reconoce la diversidad religiosa del país (art. 3) •Excluye del ámbito de la libertad religiosa el satanismo, el estudio y experimentación de fenómenos psíquicos y parapsicológicos, las prácticas mágicas, supersticiosas o espiritualistas u otras análogas ajenas a la religión (art 5). •Además se garantizan como parte de la libertad religiosa: •Los efectos civiles de los matrimonios religiosos •La asistencia religiosa pública de su propia confesión •La de impartir enseñanza religiosa en lugares públicos sLa libre elección por parte de los padres de la educación religiosa dentro y fuera del ámbito escolar que deseen para sus hijos •La creación de sus propios institutos de formación y estudios teológicos Culturas e Div. Religiosa.P65 172 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 173 •El reconocimiento de la actividad ministerial o jerárquica •El cumplimiento de actividades de educación, beneficencia o asistencia social •El reconocimiento de la personería jurídica especial a las Iglesias, confesiones y denominaciones religiosas, sus federaciones, confederaciones y asociaciones de ministros. El Decreto 354 de 1998 establece un convenio de derecho público interno con algunas entidades religiosas cristianas no católicas. En dicho decreto se otorga el derecho efectivo de: •Celebrar matrimonios religiosos no católicos con efectos civiles. •La libertad de escoger educación religiosa no católica en los establecimientos educativos del país •La introducción de la educación religiosa no católica en los establecimientos educativos del país •La regulación sobre docentes y textos para este tipo de educación religiosa no católica •La asistencia religiosa espiritual y pastoral cristiana no católica en los establecimientos de la fuerza pública, en los centros educativos, en los hospitales y en los centros de reclusión del Estado. Participan de estos derechos las siguientes confesiones religiosas: Adventistas del Séptimo Día, la Iglesia Pentecostal Unida de Colombia, la Iglesia Anglicana, Concilio de las Asambleas de Dios en Colombia, la Iglesia Comunidad Cristiana Manantial de Vida Eterna, la Iglesia Cruzada Cristiana, la Iglesia de Dios en Colombia, Casa sobre la Roca, Iglesia Cristiana Integral Casa sobre la Roca, la Iglesia de Dios Pentecostal, el Movimiento Internacional de Colombia, la Iglesia Wesleyana, la Iglesia Cristiana de Puente Largo y la Federación Consejo Evangélico de Colombia (Cedecol). Con el Decreto 1321 de 1998 se crea el comité interinstitucional para la reglamentación de los convenios de derecho público interno. Este recorrido legislativo que hemos hecho nos permite afirmar que si por una parte se reconoce y se hace efectiva la libertad religiosa y de cultos, por otra parte, ha llevado, en muchos casos, a duplicar los privilegios de los que antes gozaba la iglesia católica y su clero en las iglesias y ministros de las otras confesiones cristianas. Además surgen otras dificultades como el control de los divorcios ya que al tener efectos civiles los matrimonios de todas las confesiones religiosas no siempre se realizan los procesos civiles que comportan, y es muy difícil todavía garantizar la oferta educativa y a la presencia pastoral de las otras denominaciones cristianas en los entes públicos. De todas maneras todavía se puede afirmar que la iglesia católica mantiene un liderazgo y un reconocimiento mayor que las otras denominaciones no sólo por su tradición histórica sino por su compromiso social con el país. Se le reconoce como una institución creíble y capaz de ser un interlocutor válido en la búsqueda de solución para los conflictos que se viven, especialmente, lo que tiene que ver con la urgencia de la paz y de la justicia social. Culturas e Div. Religiosa.P65 173 21/10/2010, 14:18 174 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 2 Hacia Una Pluralidad Cristiana Y Otras Expresiones Religiosas Una vez visto el camino recorrido de una hegemonía católica abalada por un Estado confesional hasta una legislación que garantiza la diversidad religiosa, conviene mostrar el panorama religioso que hoy se presenta en el país. Antes de hacerlo es importante hacer una constatación fundamental: frente al vaticinio del fin de la religión o de su privatización e individualización y de una secularización radical proclamada por la modernidad, en países como Colombia se puede observar un proceso completamente inédito que cuestiona ese paradigma y merece ser examinado más de cerca para pensar el desarrollo de la religión en la modernidad tardia (BASTIAN, 2005, p. 323-324). Muy al contrario de lo que se esperaba, no sólo la religión no ha desaparecido sino que se ha diversificado y desarrollado en muchas y diversas formas. Al mismo tiempo, no se ha quedado en la esfera privada sino que busca una visibilización y protagonismo público bien sea en su reconocimiento legal como en la participación política, aunque, como se dijo antes, esa presencia pública aún no ha dado los resultados esperados en el sentido de un trabajo efectivo por la transformación social del país (HELMSDORF, 1996). En 1989 en un sondeo realizado en 523 parroquias del país se constató que el 5.5% de la población profesaba otras confesiones cristianas, el 93% se consideraba católico pero sólo 43% se declaraban practicantes, el 1% pertenecían a otras iglesias no cristianas y el 0,5% se declaraban no creyentes (SPEC, 1989). En ese mismo año se podían reconocer en Colombia la existencia de unas 50 confesiones religiosas cristianas diferentes a la católica, incluidas las iglesias históricas y se veía un aumento progresivo en el número de fieles. De 9.000 personas en 1930 pasó a 69.000 en 1969 y cerca de 4’000.000 en la década de 1990 (ADARVE, 1993; PEREIRA, 1996). Hoy se puede afirmar que unos 7’000.000 pueden estar en las distintas denominaciones cristianas no católicas que clasificaremos esquemáticamente a continuación (BELTRÁN, 2005, 257-291): 2.1 Los Protestantismos Históricos Defienden su autenticidad en el hecho de ser los herederos de los desarrollos doctrinales de los grandes reformadores europeos, especialmente de las doctrinas luteranas y calvinistas y su capacidad de mantenerse a lo largo de la historia. La Iglesia presbiteriana reclama el título de ser la primera iglesia protestante en Colombia con una historia nacional de más de un siglo lo que la hace merecedora de un lugar privilegiado dentro del movimiento protestante nacional. En general no aceptan las “obras” como medio de salvación. La salvación depende de la “sola fe” y por lo tanto los ritos son sólo simbólicos. Algunas iglesias históricas han adoptado algunas prácticas del pentecostalismo. En este grupo podemos reconocer las siguientes denominaciones: Misión Wesleyana, Iglesia Bautista, Iglesia Discípulos de Cristo, Iglesia Menonita, Iglesia Evangélica Luterana, Iglesia Metodista, Iglesia Presbiterana e Independientes. Culturas e Div. Religiosa.P65 174 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 175 2.2 El Protestantismo Fundamentalista Es más conocido como Evangelicalismo y a sus seguidores se les denomina “evangélicos” (aunque así se denomina, muchas veces, a todos los que no son católicos). Es una vertiente doctrinal del protestantismo histórico, una reacción frente a los desarrollos de la razón que se desprendieron de la Ilustración y la Modernidad (evolucionismo, ateísmo, comunismo, teología liberal). Se oponen al relajamiento moral de occidente. Afirman la inerrancia e infalibilidad de la Biblia y promueven el “cambio de vida radical” o “un nacer de nuevo”. Además creen en el “rapto o arrebatamiento” que consiste en que un día cualquiera Cristo recogerá a sus fieles de la tierra y de ahí la necesidad de vivir diariamente en santidad y rectitud. Estas confesiones también han dado un giro hacia el pentecostalismo por razones de atracción de más fieles. En este grupo se inscriben: Casa sobre la Roca, Cruzada cristiana, Iglesia cristiana Filadelfia, Confraternidad Cristiana, Iglesia del Nazareno, Alianza Cristiana y Misionera, Misión Interamericana, Ejército de Salvación, Iglesia Cruzada Evangélica y Templo Bíblico. 2.3 El Movimiento Pentecostal Representa la segunda fuerza religiosa del país. Una característica básica es su capacidad de adaptarse a la cultura de cada realidad incorporando ritmos, cantos, rezos, oraciones de la cultura en que surgen, acercándose a la religiosidad popular. Al contrario del protestantismo histórico, su concepción de Dios es mágica con lo cual atraen a muchas personas deseosas de recibir beneficios de la divinidad. Su expansión deriva de las misiones de las Asambleas de Dios (la mayor organización pentecostal en el mundo), la Iglesia Cuadrangular y el Movimiento Misionero Mundial junto con organizaciones pentecostales surgidas en el propio contexto como la Iglesia Panamericana. Se destaca la importancia de la música, la manifestación de los dones del Espíritu, las expresiones emotivas del culto, la forma de gobierno en cabeza de un líder carismático y las manifestaciones sobrenaturales como milagros y exorcismos. Este movimiento pentecostal lo podemos dividir en tres clases. Los pentecostalismos fundamentalistas (Iglesia Pentecostal Unida, Asambleas de Dios, Independientes, Centro Misionero Bethesda, Iglesia Cuadrangular, Misión Cristiana Sendero de Paz, Movimiento Misionero Mundial, Misión Panamericana, Iglesia Evangélica Discípulos de Cristo, Iglesia de Dios Pentecostal, Misión Cuerpo de Cristo, Asamblea de Iglesia Cristianas, Casa de Oración, Iglesia de Dios de la Profecía, Iglesia Cristiana del Norte, Iglesia de Dios en Colombia, Comunidad Cristiana de Colombia, Misión Cristiana en Colombia, Dios está formando un Pueblo, Iglesia Universal de Jesucristo, Roca de la Eternidad, Misión Cristiana Fuente de Vida Eterna, Misión Bethesda Internacional); los neopentecostalismos o movimientos carismáticos (Misión Carismática Internacional, Independientes, Cruzada Estudiantil y Profesional, Avivamiento Centro para las Naciones, Proyecto Culturas e Div. Religiosa.P65 175 21/10/2010, 14:18 176 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) de Alcance internacional, Comunidad Cristiana de Fe, Centro de Alabanza Oasis, Iglesia Cristiana Orabes, Misión Ados de Colombia) y los pentecostalismos mágicos (Oración Fuerte al Espíritu Santo, Dios es Amor, Iglesia Ministerial de Jesucristo). Todos ellos tienen una característica común: son movimientos autónomos con una dinámica propia, que no admite ningún tipo de control o fiscalización de su actividad religiosa. 2.4 Los Movimientos Seudoprotestantes Aquí se ubica la Iglesia de Jesucristo de los Últimos Días (Mormones), los Adventistas y los Testigos de Jehová movimientos que se desprendieron del protestantismo estadounidense en el siglo XIX. Nacen de una nueva revelación a través de un profeta quien se considera tan importante como el mismo Jesucristo. Son milenaristas y su misión es preparar al mundo para la futura y definitiva intervención de Dios en la historia que está a punto de suceder. 2.5 Otras Denominaciones No Cristianas En este grupo podemos reconocer las religiones amerindias y afroamericanas que han introducido sus prácticas chamánicas y los rituales de origen africano no sólo entre sus propios grupos sino que han permeado diversos sectores de población mestiza. Los ritos de origen oriental han penetrado las grandes urbes y convocan especialmente a las clases media y alta. El Islam se ha fortalecido especialmente entre los descendientes de inmigrantes sirio-libaneses instalados en Colombia desde 1920 que habitan principalmente las costas pacífica y Caribe colombianas. Finalmente, el judaísmo posicionado históricamente en el país desde sus orígenes constituye una comunidad pequeña pero respetable. En centros universitarios como la Javeriana se ha admitido desde tiempo atrás que la formación teológica obligatoria para todos sus estudiantes sea impartida por un rabino judío para los estudiantes judíos y cuentan con el permiso institucional para ausentarse de las clases en los días de cumplimiento de sus deberes religiosos. 2.6 Configuración Social de los Grupos Protestantes Para finalizar este apartado conviene decir una palabra sobre la configuración social de los miembros de las denominaciones cristianas no católicas. Las congregaciones históricas, los neopentecostales y los mormones tienen entre sus seguidores gente de origen urbano porque su culto es menos emotivo y más racional ya que uno de sus ejes importantes es la lectura del texto sagrado. Los jóvenes de origen urbano y las clases medias son allegados a los movimientos neopentecostales porque encuentran espacio para una religiosidad de desahogo y de posibilidad de prosperidad. Hay grupos que se han especializado en atraer universitarios como la Misión Carismática Internacional o la Cruzada Estudiantil y Culturas e Div. Religiosa.P65 176 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 177 Profesional. Los protestantismos fundamentalistas se aproximan mucho a los sectores más desfavorecidos que son más propensos a aprender una doctrina sin ningún cuestionamiento al estilo tradicional católico. Congregaciones que ofrecen milagros atraen a gente de toda clase social pero sobretodo, a los marginados, especialmente aquellos que llegan a la ciudad y necesitan un espacio de acogida y orientación frente a su nueva situación. 3 Algunas Reflexiones Y Desafios Que Emergen De Este Nuevo Contexto De Diversidad Religiosa En Colombia Este recorrido realizado hasta aquí nos ilustra sobre el panorama religioso que vive Colombia actualmente y cómo se ha llegado a este momento. Pero esto no es suficiente. ¿Qué hacemos con estos datos y de qué manera influyen en la identidad nacional? Más aún, en un país marcado por la violencia y la injusticia social ¿qué significa una diversificación de la experiencia religiosa? ¿de qué manera afecta la cultura y las relaciones sociales? Queremos esbozar aquí un intento de respuesta a estas interrogantes, conscientes de la necesidad de una profundización ulterior. 3.1 Tomar En Cuenta Y Comprometerse Con La Nueva Configuracion Cultural Y Religiosa El primer elemento que queremos destacar es que si el catolicismo configuró la identidad nacional, hoy estamos asistiendo a una nueva configuración de identidades que aún no está alcanzada y que supone ruptura, desorientación y muchos desafíos. Nos encontramos entonces con unos procesos complejos y que necesitan una reflexión profunda y detallada. El imaginario cultural aún está marcado por la hegemonía católica pero las personas individuales comienzan a explorar múltiples y distintos caminos. Esto ha de llevarse en cuenta a la hora de una educación, una evangelización y cualquier mensaje que quiere llegar a los colombianos y colombianas. No se puede dar por supuesto una identidad que ya no está permeando la cultura colombiana pero tampoco se puede dejar de lado. El desafío consiste en ser capaces de descubrir los imaginarios culturales que siguen existiendo y, al mismo tiempo, trabajar por construir nuevos referentes. Es necesario además denunciar aquellos imaginarios culturales que no han sido positivos para la construcción nacional y anunciar nuevas posibilidades y concreciones del ethos colombiano. Una realidad muy palpable es la urgencia de trabajar por una ética civil que constituya a los habitantes del país. Si los principios católicos comienzan a no ser significativos en las relaciones sociales el peligro que palpamos es la falta de principios que norteen la vida social. No significa que no se siga apelando a la experiencia religiosa para formar la conciencia moral del pueblo colombiano. Pero junto a eso, no se puede olvidar que la Culturas e Div. Religiosa.P65 177 21/10/2010, 14:18 178 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) migración religiosa y la fragilidad de las nuevas experiencias no son suficientes para garantizar el ethos moral de un país. Se necesita una formación ética que teniendo en cuenta la dimensión religiosa, la trascienda en el sentido de favorecer una convivencia humana y responsable independiente de la experiencia religiosa que profesen las personas. 3.2 El Debate Educativo Que Contemple La Libertad Y Formación Religiosa En Colombia ha sido constante el debate sobre la formación religiosa en el sistema educativo público. Se exige una formación plural y el derecho a recibir la educación religiosa de la denominación a la que pertenecen los padres o a la que se escoja en el caso de los jóvenes. Vemos como positivo el derecho a ser educado en la propia confesión y el garantizar tal derecho. Sin embargo esto implica una formación adecuada de los docentes y unas condiciones que garanticen que este derecho se cumpla. Podemos caer en el extremo de “deformar” la conciencia religiosa de los pueblos al no cumplir con las condiciones para tal formación y aumentar el relativismo ético y religioso. Pero el desafío no queda aquí. ¿Cómo tener una adecuada formación ecuménica e interreligiosa que posibilite brindar una formación religiosa desde ese horizonte? Esta es una reflexión que nos compete a todos y que está por estrenar. Por eso la urgencia de crear espacios que hagan posible esa realidad. Y no menos urgente un compromiso de cada confesión religiosa de revisar todo su horizonte doctrinal en ese horizonte ecuménico e interreligioso de manera que se tengan elementos adecuados para brindar posteriormente una formación en ese mismo sentido. En otras palabras, el desafío es formar en la propia identidad, en el contexto de la diversidad, el respeto y la tolerancia frente a los demás. 3.3 Globalización Y Diversidad Religiosa No podemos dejar de lado el fenómeno de la globalización que afecta diversos aspectos de la vida social pero también influye directamente en este panorama de diversidad religiosa. Aunque la religión siempre ha tenido un aire expansionista por su misma razón de ser evangelizadora, en la actualidad el fenómeno de la globalización mundial también influye en ese hecho y podemos constatar un paso de lo internacional a la transnacional. Hasta estos últimos años, las estrategias de expansión religiosa, por ejemplo, no se encontraban tan ligadas como antes a las expansiones políticas imperialistas y corresponden más a nuevas lógicas que no dependen más de las relaciones entre los Estados. Si la exportación de religiones estuvo estrechamente ligada a la historia de las expansiones coloniales, los actuales flujos religiosos no corresponden a esa única lógica. Se observa un proceso de globalización religiosa que escapa a los Estados y trasciende las fronteras. Lo religioso se desarrolla más y más a través de configuraciones en redes, a partir de necesidades y demandas, de parte de grupos y de individuos en búsqueda de identidad, de promoción cultural y social, de reestructuración personal o de métodos alternativos de salud y Culturas e Div. Religiosa.P65 178 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 179 bienestar. En este sentido puede decirse que la globalización religiosa no lleva a la homogenización sino al particularismo que fomenta identidades locales, regionales o internacionales (BASTIAN, 2005, 325-326). La transnacionalización religiosa es un proceso de difusión multilateral que atraviesa fronteras sin que vaya emanando de un punto de arraigo específico, ni determinado por intereses estatales. Se pueden señalar tres rasgos de la transnacionalización religiosa: la multilateralidad, la hibridez y la visibilidad mediática de las prácticas y de las creencias en situación de mercado. Desde la primera mitad del siglo XIX la expansión de los protestantismos en América Latina se operó a través de un movimiento misionero de origen estadounidense. Pero cabe anotar que no se puede analizar ese fenómeno en forma lineal sino que supuso la selección de ciertas prácticas para ciertos agentes, en provecho de ciertas reelaboraciones simbólicas autóctonas rompiendo los lazos con las iglesias madres y sin necesitar de su apoyo financiero. Surgieron líderes en las propias regiones con sus recursos propios y también han exportado su presencia religiosa a otros lugares del planeta. Y esa exportación religiosa que va para todos lados no responde a la transmisión de una verdad sino a la lógica del mercado. Parece que los predicadores externos tienen más acogida y eso es aprovechado en todos los lugares A esto hay que sumarle la nueva realidad con la que afloran esta pluralidad de oferta religiosa. Se caracteriza por lo híbrido, abandonando toda pureza de doctrina y optando por la yuxtaposición de todo aquello que garantice el éxito de la oferta religiosa. Por último la visibilidad mediática de las prácticas juega un papel determinante en la expansión y venta del productor religioso. Ya no se trata de predicadores que anuncian un mensaje sino de pastores de show televisivo que adaptan músicas y estilos autóctonos para garantizar la acogida y cercanía con los fieles y usando todos los recursos mediáticos disponibles (BASTIAN, 2005, 3228-331). 3.4 Presencia Y Participación De La Mujer En Este Nuevo Panorama Religioso4 En las últimas décadas la participación de la mujer ha aumentado en la vida eclesial. Tanto por los diferentes ministerios pastorales que están siendo ocupados por mujeres como por la producción teológica. Esto está siendo posible por esta diversidad religiosa y cabe anotar que precisamente las otras denominaciones cristianas han abierto espacios en sus ministerios y en la formación teológica a las mujeres. Sin embargo, esto no significa que se haya transformado radicalmente la organización patriarcal que ha constituido las instituciones religiosas. Puede observarse que en muchas denominaciones cristianas no católicas el papel de la mujer sigue siendo limitado en los niveles de decisión. En algunos grupos se destaca su papel como esposa del Pastor pero no por su propio valor. En realidad en pocos Culturas e Div. Religiosa.P65 179 21/10/2010, 14:18 180 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) grupos hay una verdadera igualdad entre varones y mujeres y un reconocimiento del liderazgo eclesial que está llamada a ejercer. No significa que en las bases no haya más participación. En muchos grupos pentecostales la posibilidad de evangelizar y de ser protagonista en el culto que tiene la mujer es notoria y podría explicar la migración de tantas mujeres a esos grupos. Pero esta realidad no es determinante. Muchas veces esos grupos mantienen el rol tradicional asignado a la mujer en la familia y en la sociedad y, de alguna manera, la exigencia sigue siendo dupla: responder a sus roles tradicionales multiplicándolos con los servicios en la iglesia. De todas maneras no se desconoce que no sólo la mujer sino también los varones quieren una participación más efectiva en la comunidad eclesial a la que pertenecen y buscan espacios para ello. Si éstos se les niegan ya tienen menos dificultad para exigirlos y/o migrar a otro grupo religioso que valore su protagonismo y le permita desplegar su ser personal y su responsabilidad evangelizadora. En este sentido la iglesia católica tiene un inmenso desafío porque aunque ha abierto muchos espacios de participación y en su discurso reconoce el nuevo momento eclesial que se exige, en la práctica tiene disposiciones generales y locales que desdicen una comunidad eclesial verdaderamente inclusiva donde todos y todas sientan su pertenencia en igualdad de deberes y derechos. A Modo de Conclusión: Hacia Una Diversidad Religiosa Que Permita La Construcción De Sujetos Integrales, Capaces De Vivir La Identidad En La Diferencia Concluimos nuestra reflexión con la propuesta de comprometernos con la posibilidad de vivir la diversidad religiosa sin que eso menoscabe la integralidad de los sujetos y sin postular un relativismo o subjetivismo que impida la construcción de sociedades verdaderamente plurales, tolerantes y diversas. No es suficiente proclamar y defender la diversidad religiosa. La dimensión trascendente de toda existencia humana no es un añadido o un aspecto sin importancia en la propia vida. Por el contrario está dimensión es fundamental y constituye mucho de las sociedades actuales. Más aún, estamos inmersos en un mundo donde la guerra no es sólo de ideologías políticas sino que las religiones están jugando un papel determinante en la construcción de la paz. ¿Cómo entonces detenernos en esta dimensión humana y comprometernos con su auténtico desarrollo? ¿No podemos esperar que de una experiencia religiosa surjan sociedades más justas e inclusivas, más auténticas y generadoras de valores humanos que posibiliten el desarrollo integral de los individuos? Lo anterior no se logra sin un trabajar por la propia identidad religiosa a partir de la cual se pueda entender la diferencia con los otros grupos. No me refiero a una identidad cerrada sobre sí misma o a la defensiva. Sino la que surge de una búsqueda sincera y una apertura Culturas e Div. Religiosa.P65 180 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 181 constante a dejarse recrear y cuestionar y que esté dispuesta a dejar la seguridad de lo alcanzado para abrirse a la asimilación de lo nuevo. Sólo desde una identidad sincera, con raíces firmes pero no anquilosadas, con pilares sólidamente fundamentados pero no inamovibles, se podrá abrirse al diálogo ecuménico e interreligioso que posibilite la construcción de un nuevo orden social donde las religiones contribuyan a la unidad y no sean motivo de separación, conflicto y muerte. La riqueza de la diversidad sólo alcanzará a los sujetos particulares en la medida que estos sepan dar razón de su fe y asuman libremente su creencia y pertenencia eclesial. Por eso la formación continúa siendo un desafío inaplazable. Pero no la formación que responde a una actitud defensiva, no la que pretende emprender campañas proselitistas sino la que se abre a los desarrollos actuales del quehacer teológico y se deja confrontar con los retos del tiempo presente. En este sentido no se puede dejar de lado el diálogo intercultural, la cuestión social, el problema ecológico y la subjetividad personal que a nivel étnico y genérico reclama un lugar en sociedades verdaderamente igualitarias y justas, incluyentes y solidarias. Finalmente queremos reconocer los esfuerzos de la Conferencia Episcopal Colombiana por crear un departamento de ecumenismo y diálogo interreligioso en el que se han llevado jornadas de oración por la paz y un encuentro sobre bioética con expositores de diferentes denominaciones. Además está constituido un comité permanente en el que participan miembros de diferentes confesiones religiosas permitiendo así un espacio de diálogo y de trabajos comunes. Por parte de las iglesias cristianas y de las otras confesiones religiosas también se perciben acercamientos y apertura al diálogo pastoral, teológico, litúrgico y eclesial. De todas maneras para todas las denominaciones religiosas en Colombia, el desafío de construir una patria justa y en paz, está vigente. No bastan obras asistenciales sostenidas por ellas ni manifestaciones públicas para alcanzar una reforma legislativa o una presencia pública en determinado contexto. Se necesita una seria reflexión sobre la doctrina que se anuncia y el compromiso solidario que se vive. Más aún se exige una revisión de su eficacia real en la construcción de la identidad colombiana y de su pertinencia a la hora de visibilizarse y reclamar espacios educativos. “La fe sin obras es muerta” (St 2, 26) y una diversidad religiosa no puede olvidar esta realidad fundamental. Por el contrario debe multiplicar su capacidad de responder a la realidad social mostrando que el Dios al que se sigue es un Dios vivo que vela por la vida de su pueblo. Notas 1 Doctora en Teologia. Diretora de la Facultad de Teología de la Pontificia Universidad Javeriana. E-mail: [email protected] Culturas e Div. Religiosa.P65 181 21/10/2010, 14:18 182 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 2 Diferentes autores, ponencias y artículos en que se afirma esta realidad pueden verse en Bidegain y Demera, 2005, p. 14, nota 1. 3 Para este apartado seguimos algunos de los aportes de Múnevar, Jorge, “La libertad religiosa en Colombia. Orígenes y consecuencias”, 247-256. 4 Cfr. BELTRÁN CELY, 2006, p. 302-309. REFERENCIAS ADARVE, Mauricio. Presencia de la diversidad confesional en Colombia. Ponencia presentada en el I Encuentro del ICER (Instituto colombiano para el estudio de las religiones) sobre la Pluralidad del hecho religioso en Colombia. Bogotá, noviembre, 1993. BASTIAN, Jean-Pierre. Pentecostalismos latinoamericanos. Lógicas de mercado y transnacionalización religiosa. En: BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores). Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia, 2005. p. 323-344. BELTRÁN CELY, William Mauricio. De microempresas religiosas a multinacionales de la fe. La diversificación del cristianismo en Bogotá. Serie Religión, sociedad y política 1, Bogotá: Editorial Bonaventuriana, 2006. ______. La diversificación del cristianismo en Bogotá. En: BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores). Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia, 2005. p. 257-291. BIDEGAIN, Ana Maria. Iglesia, pueblo y política. Bogotá: Universidad Javeriana, 1985. BIDEGAIN, Ana Maria. La pluralidad religiosa en Colômbia. Arte y cultura democrática, Bogotá: Instituto Luis Carlos Galán, 1995. BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores). Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia, 2005. CONFERENCIA EPISCOPAL COLOMBIANA. El ser y quehacer del movimiento ecuménico hoy en Colômbia. Bogotá: Editorial Bonaventuriana, 2005. HELMSDORF, Daniela, Participación política evangélica en Colombia (1990-1994). Historia crítica, nº. 12, 1996. MADRID-MALO GARIZÁBAL, Mario. La libertad de rehusar. Bogotá: Centro de publicaciones ESAP, Ed. Príncipe, 1991. MÚNEVAR, Jorge, La libertad religiosa en Colombia. Orígenes y consecuencias. En: BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores). Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia, 2005. p. 247-256. OSPINA, Eduardo. El protestantismo en Colombia. Bogotá: Ed. Javeriana, 1945. PEREIRA, Ana Mercedes, El pentecostalismo: nuevas formas de organización religiosa en los sectores populares. Origen, evolución y funciones en la sociedad colombiana, 19601995. Historia crítica, nº. 12, enero-julio, 1996. p. 43-65. SPEC. Proliferación de sectas. Bogotá: SPEC, 1989. Culturas e Div. Religiosa.P65 182 21/10/2010, 14:18 7 DIVERSIDAD RELIGIOSA EN COSTA RICA: CRISTIANISMO Y DIALOGO INTERCULTURAL Juan Carlos Valverde Campos1 [...] Nunca podrán con un lugar así, de lluvias torrenciales, de eternas inundaciones y de suampos perennes, de podredumbre y gangrena, tanto que hasta los frutos de mi vientre están podridos, enfermos y malsanos, contaminados por este ambiente húmedo de acequia y fosa séptica, los canales inmóviles donde ponen huevos miles de zancudos de paludismo [...] María la noche. Anacristina Rossi2. El título de este encuentro es “Culturas y diversidad religiosa: investigaciones y perspectivas pedagógicas”, y a mí se me ha solicitado que les presente el tema de la “Diversidad religiosa en Costa Rica: cristianismo y diálogo intercultural”. Logro identificar varias problemáticas, todas muy importantes: culturas, religión, diversidad religiosa, diálogo intercultural y perspectivas pedagógicas. Es interesante notar que aunque se me invita a reflexionar sobre la diversidad religiosa en Costa Rica, el énfasis recae en el cristianismo en el contexto de un diálogo con las culturas. En este sentido yo invertiría los términos para hablar de “Los retos que la diversidad religiosa y la interculturalidad le plantean al cristianismo en Costa Rica”. No podría dar inicio, sin embargo, a esta presentación sin aclarar antes al menos dos términos. El primero de ellos es el de cultura seguido éste del de religión. Permítanme recordar que el vocablo cultura proviene del latín cultus el cual a su vez deriva de la voz colere que significa cuidado del campo o del ganado. En el Siglo de las Luces (siglo XVIII) aparece el sentido figurado del término que conocemos, a saber, cultivo del espíritu. De ahí que se diga que una persona sea culta, es decir, instruida, que pasó por las aulas universitarias y que además tiene un comportamiento reconocido socialmente. Sin lugar a dudas esta acepción del término es muy pobre. No es ciertamente la única. Entenderé la cultura como todas las formas y expresiones de una sociedad determinada. Esto incluye costumbres, prácticas, códigos, sexo, normas y reglas de la manera de ser, vestimenta, religión, rituales, normas de comportamiento y sistemas de creencias. En la cultura encontramos todo cuanto hombres y mujeres hacen y las razones por las que lo hacen. Así, el homo religious es una producción cultural; las religiones son igualmente un producto de la cultura y por tanto no pueden comprenderse Culturas e Div. Religiosa.P65 183 21/10/2010, 14:18 184 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) fuera del contexto en el que nacieron en el pasado y se encuentran en el presente. Ahora, ¿Qué entiendo por religión? Encontramos definiciones (en función obviamente de los/as autores/as que las proponen) que hablan de sistemas de creencias y prácticas relacionadas con fuerzas que configuran el destino de los seres humanos (G. Lenski) o conjunto de símbolos que ordenan y dan sentido a la vida de los seres humanos (Clifford Geert). Xabier Zubiri afirma que el hombre en su apertura a la realidad, lejos de experimentarse como un ser “arrojado” a la existencia, se siente un ser “religado”. La religación es el acceso del hombre a Dios. La religión es así la vía o el camino que me da acceso a Dios, es lo me une con lo trascendente. La desligación es asentarse en la facticidad. Decir religión y no pensar en aquello que desde siempre ha sido llamado DIOS es imposible. Menciono estas pocas ideas para decir que no existe consenso entre los/as estudiosos/as con respecto a una posible definición de la religión. Entenderé aquí como religión el conjunto de símbolos, creencias y prácticas relacionadas con un “algo” trascendente que dan sentido y orientan la vida y por tanto el comportamiento de los seres humanos. En cuanto a DIOS, prefiero decir que es un símbolo, el producto de convenciones sociales. Entorno a él nacen todos los días cientos de mitos. Dicho esto, daré inicio a mi presentación la cual consta de tres momentos, precedidos ellos de una introducción que considero fundamental. Dividiré mi presentación en tres secciones: 1. Introducción. Costa Rica hoy (diversidad cultural y religiosa). 2. Breve ubicación histórica: culturas y religión en CR. 3. Interculturalidad y cristianismo en Costa Rica: propuesta pedagógica. Dado que la religión es un producto de las culturas, por lo tanto de las sociedades, es decir hechura en buena medida de manos humanas, no puedo no decir algo de la situación actual de mi país. 1 Introducción. Costa Rica Hoy. En Costa Rica, como ciertamente sucede en muchos países más, muchas cosas están sucediendo. No estamos bien. La gran clase media que nos caracterizaba está desapareciendo o polarizándose cada vez más. Hemos comenzado a ver cómo funciona el crimen organizado, los sicarios son ya parte del sistema. Funcionarios públicos y privados buscan enriquecerse sin importar los medios que utilicen o de quién sea el dinero que tomen. El dinero no alcanza. Calles y autobuses exponen a cientos de hombres, mujeres, niños y niñas solicitando nuestra ayuda. La actual y ya célebre crisis está dejando a cientos o miles sin empleo. Costa Rica se ha convertido en un paraíso para quienes quieren evadir el fisco, para albergar el crimen organizado, para trasegar droga. Costa Rica es el refugio de Culturas e Div. Religiosa.P65 184 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 185 delincuentes en las películas hollywoodenses. Este modelo de sociedad está llegando a su agotamiento. La competencia desencarnada en la que unos/ as luchan por ser mejores que otros/as nos conduce al abismo. Las diferentes expresiones religiosas no han escapado de esta dinámica. Las iglesias se “pelean” a los fieles ofreciéndoles de todo. También hemos visto nacer en medio de nosotros las iglesias de la prosperidad o las que tienen como premisa “pare de sufrir”. Ciertamente no todo es malo. El acceso a la educación universitaria ha aumentado – aunque eso no sea garantía de empleo –, la tecnología ha entrado actualmente en un porcentaje bastante alto en muchos hogares, la seguridad social atiende a nacionales y extranjeros. La diversidad es evidente, algunos sectores desprotegidos dan luchas y ganan terreno. Pero Costa Rica no está sola. Según el informe, Estado de la Región 2008, en la actualidad, Centroamérica enfrenta una nueva y más apremiante situación internacional con la carga de importantes deficiencias históricas: una mano de obra barata y no calificada, mayorías pobres, distribución de la droga, una alta población emigrante, un medio ambiente degradado y débiles Estados de derecho. Este escenario reduce las opciones estratégicas para afrontar los nuevos desafíos. En cada uno de estos ámbitos Centroamérica, como región, necesita dar pasos firmes. Todas las sociedades centroamericanas viven profundos y rápidos cambios. Desde el punto de vista de la población, los 41,3 millones de personas que habitaban el istmo en 2007 representan casi un 20% más que las registradas en 1995 (8 millones más), pese a que, para el año 2006, más de cuatro millones de centroamericanos habían migrado dentro o fuera de la región. Las sociedades son mayoritariamente urbanas, lo que contrasta con la situación prevaleciente a lo largo de la historia, cuando la mayoría de las personas residía en el campo. En los últimos años, Costa Rica ha experimentado cambios en natalidad y migración. Esto último es particularmente importante para nuestro propósito. En efecto, con la llegada de personas de otros horizontes culturales hemos visto aumentar el número de prácticas religiosas. La disconformidad de los nacionales se ha hecho sentir ante las diferentes y variadas prácticas culturales que nos llegan de fuera. La educación es otro rubro importante. Hasta hace algunas décadas muy pocos/as jóvenes terminaban sus estudios de secundaria y todavía menos los que ingresaban a la universidad. Costa Rica cuenta hoy con aproximadamente 53 universidades privadas y 4 públicas. Del hecho mismo de su existencia infiero que todas han de tener una abundante o razonable población estudiantil. Eso es una muy buena señal. A principios de los años 70 se hablaba de democratización de la educación y fue así como nació la primera universidad privada. Culturas e Div. Religiosa.P65 185 21/10/2010, 14:18 186 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) En los últimos años han visto la luz muchas ciudadelas y barrios cuyos habitantes provienen tanto del campo como de otros países. En estas zonas la pobreza extrema es una constante y con ella vienen la violencia y los muchos intentos de sobre vivencia. Obviamente no estoy diciendo que la violencia es fruto de la pobreza aunque ciertamente existe alguna relación. Los y las jóvenes se reúnen en torno a la música y nuevas costumbres o prácticas. Algunos de los grupos que permanecen son los siguientes: los Rockeros, los Metaleros, los Hippies, los Mods (Modernos), los Grunge, los High Class, los Punks, los Raperos, los Skatos o Patinetos, los Surfos, los Skinsheads, los Góticos, los Rasta, los Ragga‘s, los Emo´s, los Reggetoneros, los Friáis, los Otakus. Todos estos grupos han sido llamados por algunos estudiosos culturas emergentes, nuevas formas de agruparse para celebrar lo que tienen en común. En este sentido yo me atrevería a hablar de nuevas religiones o prácticas religiosas. Estoy convencido que los profundos cambios que experimentamos a nivel religioso tienen algo que ver con esta difícil situación de nuestros pueblos. Al final volveré sobre este punto. ¿Qué corre por la sangre de los y las costarricenses de hoy? ¿De quiénes somos hijos e hijas? En la búsqueda de nuestros orígenes debemos recorrer la época precolombina, la cruenta colonización europea, los variados intentos de estructuración de la nueva Costa Rica independiente y, más recientemente, los intercambios culturales fruto de la llamada era de la globalización. Así, tenemos costarricenses de origen indígena, negro, asiático, europeo y/o muy probablemente un/a costarricense con un poco de todo ello. El proceso de mestizaje entre indígenas, españoles y afrodescendientes, con sus tonalidades y sincretismos culturales, ha adoptado rasgos particulares en las diferentes regiones del país, desde la Época Colonial hasta la actualidad. Aunque no todas las migraciones han tenido la misma importancia en número, sí han sido igualmente significativas en términos culturales, para la conformación de la Costa Rica multicultural y multiétnica que hoy conocemos. Permítanme hacerles una pregunta: ¿Alguna vez han tenido la oportunidad de saborear un delicioso casado? El casado es un platillo que acostumbramos a pedir en los restaurantes y que ilustra muy bien lo que somos. Muchos ingredientes en un solo plato formando una montaña inmensa y todo ello revuelto. Una porción importante de costarricense son hijos de los primeros africanos traídos a Costa Rica en condición de esclavitud y más tarde, para la construcción del Ferrocarril al Atlántico y el desarrollo de las plantaciones bananera, enriqueciendo de igual forma la diversidad del pueblo costarricense. Buscando nuevas oportunidades que en su país no podían encontrar por causa de la pobreza y la sobrepoblación, los chinos migraron al país Culturas e Div. Religiosa.P65 186 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 187 desde mediados del Siglo XIX, para trabajar en algunas haciendas en el Valle Central. Con la construcción del Ferrocarril al Atlántico aumentó la presencia de chinos, los que luego orientaron sus actividades dentro de la economía hacia el sector comercial, sobre todo, en los puertos de Limón y Puntarenas. La migración ha sido una constante en la historia centroamericana. Esto se incrementa en la década de 1980 cuando muchos nicaragüenses, salvadoreños, guatemaltecos y otros huyen de la guerra y buscan refugio en el país. La relativa paz alcanzada en la región no ha hecho que cesen estos movimientos. La pobreza es ahora la nueva explicación. A finales del Siglo XIX y principios del XX, llegaron españoles, italianos, árabes, judíos e hindúes, algunos buscando trabajo en la construcción del ferrocarril y otros huyendo de la crisis económica de sus países, de la persecución o de la guerra. También llegaron otros europeos y estadounidenses que se integraron principalmente a las actividades comerciales de las clases altas y medias. Quiero terminar este apartado haciendo una breve anotación sobre la situación religiosa de la Costa Rica de hoy. Ya mencioné las culturas emergentes y las nuevas religiones que generan. En el siguiente cuadro encontrará el lector una síntesis numérica, relacionada con lo que está sucediendo en Costa Rica a nivel religioso, basada en una encuesta reciente. Culturas e Div. Religiosa.P65 187 21/10/2010, 14:18 188 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) De este gráfico vale la pena señalar el crecimiento significativo de los llamados “sin religión” quienes pasan de un 3,5 en 1988 a un 11,3 en el 2007. Por otro lado, los protestantes se mantienen bastante regulares, de un 10,2 en 1991 a un 13,8 en el 2007. De igual forma es significativo que los católicos practicantes estén ahora en un 44 % cuando en el 2000 eran el 53%. La mayoría de la población judía costarricense es de tipo ortodoxa y askenazí aunque existe una sinagoga reformista. Se calculan unos 3000 los judíos en Costa Rica. El Islam en Costa Rica es practicado por aproximadamente 150 familias (por lo que habrían más de mil individuos incluyendo menores de edad), la mayoría inmigrantes del Medio Oriente pero incluyendo conversos. En cuanto al budismo se refiere, Costa Rica es el país centroamericano que cuenta con mayor cantidad, aproximadamente 96.000 personas, los cuales en su mayoría son emigrantes chinos, japoneses y coreanos, pero también existen costarricenses conversos. Los budistas cuentan con unos cinco templos budistas entre ellos una pagoda de budismo chino situada en Pavas (San José), el templo budista tibetano de barrio Amón (San José), el budismo nichiren situado en Rohrmoser (San José) y la Casa Zen de Costa Rica situada en Heredia. Finalmente, diferentes prácticas religiosas indígenas se preservan entre los indígenas costarricenses, tanto cabécar, bribri y boruca, como el culto a Sibö. ¿En qué creen los ticos3 y las ticas? ¿A qué le tienen fe? ¿Cuáles son sus miedos, esperanzas y sueños? Con la finalidad de dar respuesta a estas preguntas, Demoscopía encuestó en noviembre del 2002 a 1.213 personas y se obtuvo como resultado el documento que lleva como título “Fe y creencias de los costarricenses”. Como ya hemos visto, parece claro que en los últimos años la sociedad ha experimentado un cambio y, por eso, en ciertos temas, sobre todo sociales y religiosos, los/as ticos/as se muestran más tolerantes que nunca antes. Por ejemplo, en el último quinquenio disminuyó en 17 puntos porcentuales la cantidad de gente que cree que exista una única religión. Es decir, hay un mayor número de personas convencidas de que no es determinante si se es católico, evangélico o de otro culto cristiano. Es más, la cantidad de católicos/as ha disminuido y se ha incrementado el número de fieles de otras religiones. Quizá, por esta misma apertura espiritual que está viviendo el pueblo costarricense, muchos/as de los/as ticos/as (el 42 por ciento) aseguran que estarían de acuerdo en votar por un candidato no católico (el menor apoyo lo tienen los judíos) e incluso, en llevar a la silla presidencial a un ateo. Esto era simplemente impensable en otras épocas. La mayoría en Costa Rica sigue creyendo en el poder de Dios y está convencida de que su presencia es clave dentro de sus vidas, sobre todo en tiempos difíciles, 3 de cada 10 de los encuestados no comparten la afirmación de que una persona no creyente sea un individuo sin valores morales. Culturas e Div. Religiosa.P65 188 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 189 Este cambio de perspectiva no solo invade el campo religioso. En ámbitos tan controversiales como el aborto se nota un mayor respaldo, especialmente en el área metropolitana y en el resto del Valle Central. Casi un 6 por ciento más de entrevistados/as que en 1996 se mostraron a favor de la interrupción voluntaria de un embarazo. Obviamente, esta mentalidad “liberal” respecto a asuntos controversiales no es generalizada, pues todavía hay un marcado apego a los valores familiares tradicionales. Ejemplo de ello es que el 93 por ciento de los/as ticos se proclaman en favor de los derechos y las garantías de la “familia nuclear”, compuesta por hombre y mujer. La mayoría de los expertos que analizaron los resultados de esta encuesta coinciden en que los/as costarricenses están insertos/as en la era de la globalización, que es también la era de Internet, de la ciencia y la tecnología. Por eso, no es extraño que los/as ciudadanos/as de hoy, más empapados/as de lo que ocurre en todos los rincones del planeta, piensen muy distinto a sus abuelos y acepten costumbres o prácticas otrora rechazadas tajantemente. Esto no significa necesariamente que estamos en crisis, como podría percibirse de buenas a primeras, aclara José Alberto Rodríguez Bolaños. En criterio de este sociólogo, lo que sucede es que la sociedad está modificando sus valores y no es correcto calificar este comportamiento como positivo o negativo, pues todo depende del cristal con que se mire. En ese sentido debería verse como ventajoso el hecho de que existe una creciente noción de los derechos humanos y de la igualdad entre géneros, así como un mayor respeto hacia quienes tienen preferencias sexuales distintas a las que el patriarcado judeocristiano calificaba de normales. Preocupa, ciertamente, estar en la era de la comunicación y ver al mismo tiempo los serios problemas de comunicación que tenemos. Igualmente llama a la preocupación – considera el sociólogo y exrector de la Universidad Nacional, Jorge Mora – no ese deseo de cambio, que a la postre podría arrojar más beneficios que perjuicios, sino la falta de credibilidad en quienes deberían conducirnos hacia la transformación anhelada, hacia la sociedad justa y equitativa. De acuerdo con los resultados de la encuesta, es palpable que los/as ticos/as no confían en sus líderes religiosos ni políticos. En la actualidad, la mitad de los costarricenses consideran que no hay nada en la labor o la actitud de monseñor que sea digno de imitación y el 52 por ciento piensa lo mismo del presidente. De modo semejante opinan los/as entrevistados/as sobre otros/as líderes religiosos/as, sobre los/as jueces y magistrados/as, sobre los/as empresarios/as y sobre los políticos en general. Para la psicóloga social y catedrática de la Universidad de Costa Rica, Isabel Vega Robles, el costarricense muestra desconfianza y falta de crédito hacia las personas de su comunidad, instituciones públicas y quienes la representan. Y esa insatisfacción parece provenir, principalmente, de lo que percibe como ineficiencia y falta de atención a sus necesidades. La Culturas e Div. Religiosa.P65 189 21/10/2010, 14:18 190 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) crisis económica, que en los últimos años ha golpeado con fuerza a la clase media, la corrupción generalizada, los escándalos en que se ha visto envuelta la Iglesia Católica (al igual que algunos pastores de otras denominaciones religiosas), la crisis de los partidos políticos tradicionales y la inseguridad ciudadana son factores que también contribuyen a que los/as ticos/as se muestren desencantados/as y desesperanzados/as, agrega el sociólogo Jorge Mora. Pero si los costarricenses no creen en sus líderes tradicionales ni en ellos mismos, ¿hacia dónde van? El futuro es incierto. No obstante, por esa necesidad propia del ser humano de buscar respuestas en fuerzas superiores a la humana, un número creciente de católicos ha abandonado su redil para partir hacia otras iglesias. Si bien este fenómeno es más notorio entre los católicos por ser el grupo con mayor número de seguidores, lo mismo está sucediendo con fieles de otros cultos que, de igual manera, deciden experimentar en nuevas sectas, explica el rector del Seminario Teológico Bautista, David Guevara. También están quienes se aferran a lo místico o sobrenatural para hallarle sentido a sus vidas. Así, el 94 por ciento de los encuestados creen en los milagros y, al compararse los nuevos datos con las respuestas obtenidas en 1996, se ve que ha habido un incremento en el porcentaje de personas que creen en los ángeles, la reencarnación, los fantasmas, los espíritus, la brujería y la magia blanca o negra (aunque, al igual que sucede con el resto de los líderes, la gente cree menos en quienes dicen tener poderes psíquicos). El impacto de los medios de comunicación, el apogeo de los programas televisivos que explotan los asuntos paranormales, las películas que desarrollan historias de extraterrestres, el fenómeno de la New Age y la demanda por libros de autoayuda, podrían justificar, de cierto modo, el auge que están cobrando estas corrientes místicas. Un sector considerable de la población se encuentra hoy atrapado en estas tendencias, probablemente como consecuencia de la decepción que le han producido los planteamientos espirituales tradicionales. Terminemos diciendo que, contrario a lo que afirman muchos/as, Costa Rica sigue siendo un país profundamente religioso y mayoritariamente cristiano. Estamos lejos aún de los procesos de secularización tan avanzados en Europa. Es más, no tiene por qué suceder de la misma manera. Esta es la Costa Rica de hoy. No podemos hablar de pureza, sino de diversidad. Esto es lo que somos, la misma naturaleza canta lo que somos. En un mismo árbol conviven tantas especies en armonía como personas recorren nuestras calles y avenidas. No hemos terminado de aprender a vivir juntos en medio de este pluralismo. A penas empezamos a caer en la cuenta y eso causa un cierto dolor. En los últimos años hemos comenzado a ver acrecentarse otro fenómeno: la xenofobia. Debe haber una o muchas Culturas e Div. Religiosa.P65 190 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 191 explicaciones. Los que detentan el poder han trabajado arduamente para hacernos creer que somos uno solo, que la diversidad es mala. La gran mentira de la unicidad. Pero la diversidad es evidente y no estamos acostumbrados a ella. Aunado a esto tenemos la praxis de las sociedades capitalistas que han alcanzado un punto tal que estamos a las puertas de una auto destrucción que causa horror. Ahora debemos hacer un alto en la reflexión y devolvernos en el tiempo para buscar en él nuestras raíces. Veamos. 2 Breve Ubicación Histórica “Costa Rica es un país mestizo” (ULLOA, 1999, p. 25). Efectivamente, la identidad del tico/a debe ir a buscarse muchos siglos atrás. Como afirma F. Corrales, no resulta imposible establecer conexiones entre la población actual y los grupos precolombinos. Algunos grupos indígenas han incluso permanecido. Otros grupos se fueron integrando con el paso del tiempo. Es de todos y todas harto sabido que Cristobal Colón se embarcó en 1492 buscando una ruta más corta a Asia y poder así abaratar los productos que se necesitaban en Europa. Había, además, en el ambiente europeo un deseo de expansión y un ansia de buscar un hombre nuevo. Marco Polo es testigo de ello. Sus aventuras en Asia lo demuestran. El 12 de octubre de 1492 Colón se topa4 con unas tierras que creyó era lo que andaba buscando. Primero llegó a una de las islas de las Bahamas llamada Guanahaní creyendo haber llegado a la India supra Ganges5. En su cuarto y último viaje, en septiembre de 1502, partiendo de Cariarí (Limón, Costa Rica), recorre las costas ricas en oro y las llama Veragua 6 . Desembarcan en la isla de Quiribrí (Uvita) y así comienza el largo y cruel proceso de conquista con la lógica desestructuración cultural, “arrancando” al nativo de su tierra, por medio de las ya conocidas encomiendas y reducciones. Recuerdos de la conquista quedan en numerosos nombres de lugares, ríos y pueblos. ¿Quiénes habitaban estas regiones antes de la llegada de los españoles? Los habitantes de Abya Yala7, hoy llamada América, entraron por el estrecho de Bering, las islas Polinesias y las islas Pascuas. Muy probablemente el continente americano comenzó a ser ocupado hace unos 40.000 años (MOLINA; PALMER, 1997, p. 3) y el actual territorio de Costa Rica entre 12.000 y 8.000 años atrás. Al descubrimiento de América, poblaban el territorio que llegaría a ser Costa Rica diferentes agrupaciones de aborígenes cuya población se calcula era de unos 40.000 seres humanos. Estos se dividían en diferentes reinos, agrupados básicamente en dos grandes áreas de influencia cultural, por un lado la Mesoamericana (Mayas y Aztecas) y por el otro lado, la cultura Suramericana. Culturas e Div. Religiosa.P65 191 21/10/2010, 14:18 192 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Los estudiosos 8 coinciden en afirmar que Costa Rica tenía la característica de ser el punto de congruencia de ambas tradiciones culturales, por lo que se convirtió en una gran área de paso y comercio, lo que explica la gran variedad de riqueza cultural, en un espacio territorial tan pequeño. Otra característica es lo relativamente pequeño de sus infraestructuras, esto debido a que este territorio no pertenecía directamente a ningún reinado mayor. Se podría decir que era una tierra sin conquistar por parte de los grandes reinados indígenas, ya que su población se distribuía en pequeñas aldeas o tribus, que para el caso de la región de influencia Mesoamericana, era un poco más estratificada, con asentamientos bien establecidos y con concentraciones importantes de población (algunos cientos). En la región Caribe había pequeñas agrupaciones muy dispersas con algunas decenas de personas. En lo que se conoce hoy día como el Valle Central existían tribus bien definidas y estratificadas, pero su número de habitantes no era muy desarrollado. En el caso de la región Caribe nunca fueron sometidos, además eran bastante belicosos, lo que dificultó su conquista por parte de los españoles. En 1502, el territorio costarricense estaba poblado, como decía, por diferentes grupos indígenas. La zona noroeste se encontraba habitada por indígenas chorotegas, de tradición mesoamericana. En el resto del territorio, región central y costa atlántica, se ubicaban grupos de influencia suramericana, a saber, los huetares y los bruncas. La llegada de los españoles a Costa Rica hace que se formen otros grupos que tendrán gran importancia en la estructura social, económica y política del territorio nacional. Estos son: españoles, criollos, indígenas, negros (traídos en el siglo XVII) junto a los ladinos (mestizos, mulatos y zambos) y también chinos. Obviamente los españoles asumirán desde el inicio el rol de grupo dominante aunque también ellos estarán divididos en varias categorías9, a saber: • Los Caballeros Hijosdalgos, naturales de las Indias Occidentales y residentes en Cartago. •Los Hijosdalgos de Pobladores de Sangre, descendientes de pobladores de Indias pero que no tienen pruebas de su hidalguía paterna. •Los Hijosdalgos de Pobladores de Privilegio cuya hidalguía solo se reconoce en América. •Los Segundones de las tres categorías anteriores. •Los hijos de los españoles nobles y de Indias. •Los indios nobles y sus descendientes en línea directa. En contraste con este grupo dominante se encuentra otro que constituye la mayor parte de la población, compuesta de españoles pobres (plebeyos), los indígenas y los ladinos. Aunque ciertamente en Costa Rica no existió la desigualdad tal como se concibió en otras regiones de Centroamérica, es claro que no se puede hablar de una sociedad igualitaria. Culturas e Div. Religiosa.P65 192 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 193 Con la llegada de los conquistadores viene también un nuevo dios que prevaleció sobre los dioses ancestrales de los indígenas. Como afirma M Picado, “el cristianismo entró a América Latina de la mano de los vencedores.” (GATJENS, 2008, p. 5). Este mismo autor señala que en realidad la conquista espiritual fue un complemento de la conquista militar. La colonización española procuró eliminar las religiones amerindias por considerarlas claramente como bárbaras. El demonio había tomado posesión y desde luego había que desterrarlo de estas tierras. En honor a la verdad, se debe decir que la opinión de los estudiosos está dividida en cuanto a la participación de la iglesia Católica en el proceso de colonización. Constantino Láscaris (1983, p. 24) defiende la idea de que los frailes ejercieron un fuerte dominio en la Provincia de Costa Rica a pesar de la escasa asistencia de la población a los cultos religiosos. Otros historiadores ven a la iglesia Católica como la gran terrateniente de la época colonial. Lo cierto es que algunas cofradías inscribieron a su nombre grandes extensiones de tierra. Las capellanías prestaban dinero o alquilaban tierras para que fueran trabajadas y con las ganancias se pagaban tanto los estudios de algún seminarista en Nicaragua o Guatemala como su manutención en el ejercicio del ministerio. De igual forma algunos sacerdotes acumularon riquezas a título personal. M. Picado Gatjens (2008, p. 11) insiste, por su cuenta, que todo lo anterior debe ser visto como casos aislados, la iglesia católica en la Costa Rica colonial, carecía de bienes cuantiosos. El verdadero problema durante la Colonia no fueron las riquezas sino la violencia que se ejerció contra los indígenas. El estado costarricense nació y creció de la mano de la iglesia Católica tanto así que incluso en la división geográfica del territorio fue sumamente importante la división eclesiástica. Para defender internacionalmente las fronteras del país se citaban las diócesis y los templos existentes en esos territorios. El 15 de septiembre de 1821 la Provincia se independiza dando inicio a una nueva aventura. Costa Rica debe comenzar a organizarse. Aclaremos que en Costa Rica no existía un movimiento fuerte en pro de la Independencia. Simplemente fue acogida cuando llegó la noticia. La independencia se llevó a cabo, además, en etapas. En primer lugar, Costa Rica se independizó de España. En un segundo momento lo hizo del Imperio Mexicano y finalmente de la República Federeal Centroamericana. Mientras en Costa Rica se aceptaba sin problemas a Fernando VII, en Nicaragua la situación se complicó al grado de iniciarse una lucha entre una junta gubernativa y un grupo de insurgentes. En nuestra historia patria el siglo XVIII es particularmente importante. Los encomenderos que habían explotado a los aborígenes y se enriquecieron se transformaron en hacendados durante el siglo XVII. En el siglo siguiente pasarán a ser comerciantes exportadores e importadores y llegarán también a apropiarse de las tierras que eran de la Corona Culturas e Div. Religiosa.P65 193 21/10/2010, 14:18 194 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Española. Igualmente era frecuente que acapararan los puestos más importantes, tanto civiles como eclesiásticos. Por otro lado tenemos a los encomenderos pobres quienes recibieron pocos indígenas o no recibieron ninguno. Estos se convirtieron en pequeños y medianos productores. Es así como aparece la pequeña y mediana propiedad, diríamos la clase media. Esta clase media estableció relaciones de comercio y crédito con los hacendados y generalmente eran empresas familiares. Así, la principal transformación que sufrió Costa Rica en el siglo XVIII fue la expansión de la producción campesina. Los agricultores se lanzaron a colonizar acaparando la tierra en Cartago. El Valle Central, con su producción campesina y una estructura social que no se basó en la servidumbre, era un espacio más integrado étnica y culturalmente. Fuera del Valle Central la estructura económica y social era muy diferente. El cultivo itinerante era practicado por los indígenas en áreas lejanas. Los misioneros católicos encontraron numerosas dificultades en la tarea de convertir los nativos al cristianismo. Los frailes franciscanos intentaron de muchas maneras reunirlos en poblados con pocos resultados positivos. Aunado a la negativa de los pueblos indígenas de “juntarse” o agruparse en territorios comunes, tenemos la aparición de piratas ingleses y los llamados zambos-mosquitos quienes comenzaron a penetrar en Talamanca para atacar a los habitantes y llevarlos presos para venderlos como esclavos en Jamaica. La dispersión fue así una de las características de los pobladores de entonces que hacía cada vez más difícil cualquier intento de unificación. Gustaban de entrar en bosques y hacer surgir allí milpas, trigales, cañaverales, tabacales, frijolares, entre otros, evitando el contacto con otros. Además, estos primeros pobladores no obedecían las órdenes que los religiosos les daban. En 1711, nos dice C. Monge Alfaro (1959, p. 117), vino a Costa Rica el obispo de Nicaragua, Benito Garret y Arlovi, y al ver la situación en la que se encontraban los habitantes ordenó construir oratorios para que pudieran cumplir con sus deberes religiosos. Así se hizo, sin embargo, pasaron varios años y todo se mantuvo en su lugar. Al final el prelado excomulgó a los habitantes de Costa Rica. Costa Rica se fue llenando de parcelas que los colonos, en su mayoría ladinos, iban apropiándose10. Cada familia tenía su parte, convirtiéndose en propietaria de su predio. Estos labriegos solamente reaccionaban cuando intentaban moverlos de su rancho. La mayor parte de la gente era sencilla y sin formación. La única preocupación fue el cultivo de la tierra, cada uno tenía lo suyo, nadie se sintió sometido a la explotación feudal. La catequización consistía en memorizar la doctrina cristiana (catecismo). La religión en este tiempo se practicaba en los hogares, las familias eran los agentes de la catequesis, la fe se transmitía en el seno de los hogares, por la madre y el padre. Culturas e Div. Religiosa.P65 194 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 195 Las iglesias cristianas protestantes Con la independencia llegan también otras iglesias cristianas. Así, por ejemplo, en 1844, el marino inglés William Le Lacheur, de religión protestante, se establece en estas tierras y con él el comercio regular entre Costa Rica e Inglaterra y en 1891 llega a Puerto Limón William McConnell, primer misionero protestante. Es el comienzo de una relación a veces complicada aunque no siempre entre la iglesia Católica y las iglesias nacidas de la Reforma. 3 Interculturalidad Y Cristianismo En Costa Rica: Propuesta Pedagógica a) Tiempos y momentos No puedo dejar de mencionarlo: la pluralidad de tiempos y momentos ha sido olvidada. Nos han hecho creer – y hemos caído en la trampa – que la historia es lineal y que en esta línea del tiempo están todos los tiempos y momentos. Así, estamos acostumbrados a inscribir los sucesos, eventos o cuanto hacemos y sucede en una línea continua del tiempo. Hemos hecho coincidir en una misma línea temporal el logos cristiano – con el misterio de la encarnación – con otros logos. Todo en una misma línea temporal. Empero, la realidad es mucho más compleja. Cabe entonces preguntarse si hay coincidencia entre realidad e historia. De igual manera debemos interrogarnos sobre la realidad. La hoy conocida epistemología intercultural desea incluir otras narraciones que han sido olvidadas. Las narraciones que conocemos surgen de los centros de poder, debemos rememorizar la historia desde otras memorias olvidadas. En esta línea de pensamiento, debemos afirmar con firmeza que, por ejemplo, los tiempos de los niños y las niñas no han sido tomados en cuenta, tampoco los tiempos de las mujeres, los indígenas, los afro-descendientes. Los centros de poder les han impuesto otros ritmos que no son los suyos. Los niños y las niñas, las mujeres, los indígenas, los afro-descendientes sienten y viven según otros tiempos, otras realidades. Raúl Fornet-Betancourt (2008) habla del “crucigrama de los muchos tiempos contextuales y memoriales de la humanidad.” Esta imagen me parece maravillosa. No hay líneas continuas, hay líneas que corren en múltiples y diversas direcciones y que eventualmente se encuentran pero que no siempre coinciden. Esas líneas en otras direcciones son tan reales e importantes como las de los poderosos que escriben la historia. Me pregunto cómo sería una historia narrada desde la realidad de los niños y las niñas. Otro mundo es posible, otra educación es posible, la actual es excluyente. Debemos hacer justicia y reconocer esas voces que desean poder pronunciar su propio logos. Culturas e Div. Religiosa.P65 195 21/10/2010, 14:18 196 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) b) Interculturalidad y moda Ante nuestros ojos hemos visto pasar muchas y diversas teorías que fueron o están siendo rechazadas o discutidas, la famosa y aceptada inculturación, por ejemplo. Quisiera insistir en esto: la interculturalidad no debe ser vista como una moda o nueva teoría. Se trata de un principio epistemológico y de vida fundamental. Es la existencia del otro u otra lo que está en juego. Es el respeto esencial y primario del otro de la otra. Este respeto debe traducirse en escucha y conocimiento de su mundo, de sus razones, de su historia, de sus tiempos. Cuando digo escucha y conocimiento no estoy diciendo comprensión. Estoy hablando más que todo de una contemplación silenciosa del misterio. El otro, la otra es un misterio que se debe respetar en un gesto de adoración. c) Interculturalidad y pedagogía El sistema educativo costarricense es excluyente. Contamos con una educación gratuita y obligatoria en primaria y gratuita en secundaria. Esto de gratuita y obligatoria es ciertamente discutible. La educación en Costa Rica está pensada para las clases media y alta. La clase baja difícilmente podrá enviar a un hijo o hija a estudiar, son ingresos que se pierden. Los y las estudiantes con dificultades de aprendizaje y los superdotados son un problema. La educación está pensada para niños, niñas y jóvenes obedientes, buenos repetidores y que no piensan demasiado. Estos/as ultimos/as son especialmente molestos/as. Volvemos al punto antes mencionado de los tiempos y momentos. ¿Qué se debe aprender y cómo hacerlo? Las universidades nos encontramos en esa misma encrucijada. ¿Enseñar lo que pide el mercado hoy? Quedaríamos reducidos, al menos en Costa Rica, al inglés y la informática. En un encuentro que tuvimos recientemente en Costa Rica sobre Teologías de la Liberación e interculturalidad un compañero de la Escuela Ecuménica, Dr. Mario Méndez (2009), presentó una ponencia de la que quisiera rescatar los siguiente puntos: •Para qué de la educación. Dado que la educación es una mediación, la interculturalidad nos ayuda a revisar el tipo de mediación. Desde la interculturalidad se hace posible un equilibrio epistemológico en el que se supere la deslegitimación de saberes que no coinciden con los paradigmas que dominan en la actualidad. Una transformación intercultural de la educación nos colocaría en la posibilidad de acoger, reconocer y valorar la diversidad de referencias culturales, de memorias y ritmos que caracterizan la vida cotidiana de los actores y actoras de los procesos educativos. La educación no sería, entonces, un paréntesis que hace abstracción de la vida, sino un espacio en el que confluye la vida con toda su diversidad. Desde la interculturalidad se pueden construir ambientes en donde todas las voces sean escuchadas. Desde la Culturas e Div. Religiosa.P65 196 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 197 interculturalidad las personas educadoras se piensan más como servidoras y no como dueñas de los procesos educativos. Las personas educadoras son, entonces, más mediadoras de interrelaciones y de intercambios interculturales que transmisoras de contenidos en cuya selección no ha tomado parte; son actoras que pueden aprenden a ver la diversidad más como una posibilidad que como un obstáculo para el aprendizaje. Tal diversidad (cultural, epistemológica, contextual) debe quedar reflejada en los programas educativos (planes curriculares, planeamiento didáctico), lo cual garantizaría – al menos en parte – el desarrollo de procesos educativos interculturales: “de esta forma los programas educativos serían el espacio en el que se efectúa el diálogo con muchos saberes y se aprende a sopesar el lugar que les corresponde en nuestras vidas y en el mundo que queremos habitar” (FORNETBETANCOURT, site, p. 39). •No neutralidad de la educación. Los procesos educativos no son neutrales. Frente a esto, la interculturalidad nos recuerda el carácter ético-político de la educación y la exigencia de realizar opciones en que se favorezcan la acogida y la aceptación solidaria de todas las personas. Como hemos dicho, la educación tal y como está planteada en nuestros días es excluyente. Se trata pues de hacer propuestas que superen la exclusión. La interculturalidad puede ofrecer a la educación la posibilidad de generar adecuaciones curriculares que den respuesta a las demandas de justicia cultural presentes en los ambientes educativos y en sus entornos. De todos y todas es sabido que, en general, las adecuaciones curriculares obedecen sobre todo a limitaciones (discapacidades) motoras, visuales, auditivas, mentales. Sin embargo la realidad multicultural de nuestros países, así como la creciente migración y el surgimiento de nuevas culturas urbanas y juveniles, exige que en las aulas seamos capaces de desarrollar también adecuaciones curriculares “culturales” que ayuden a superar las asimetrías generadas por la existencia de grupos y culturas dominantes y de culturas llamadas “minoritarias”. No son los actores y actoras – con sus referencias culturales – quienes deben adecuarse al sistema, sino el sistema (planes, estructuras, procesos) el que debe adecuarse a las personas concretas, reconociendo y valorando sus diferencias. •Convocar y convidar. El diálogo entre educación e interculturalidad debe ayudar a repensar los procesos educativos, las actoras y los actores han de sentirse mutuamente con-vocados y con-vidados (NAJMANOVICH, 2001, p. 206) ; como dinamismos en los cuales se superan las asimetrías y se aprende desde las diferencias. Las personas educadoras que asumamos una perspectiva intercultural tendremos que renunciar a nuestras pretensiones de posesión de la verdad, para ser buscadores y buscadoras en comunión con otras personas que también se consideran y están en situación de búsqueda. Reconoceremos que lo que podemos compartir es una perspectiva, y que otras perspectivas son igualmente válidas y dignas de reconocimiento. Las personas educadoras nos sentiremos Culturas e Div. Religiosa.P65 197 21/10/2010, 14:18 198 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) invitadas a escuchar, nos descubriremos interpelados e interpeladas por otros saberes y perspectivas y entenderemos esa interpelación como una posibilidad, más que como una amenaza. Seremos conscientes, por lo tanto, de la contextualidad de nuestro propio aprendizaje y del aprendizaje de las otras personas. d) Un ejemplo para terminar Permítanme cambiar de tema y describirles, para terminar, lo está sucediendo actualmente en Costa Rica, relacionado con la Enseñanza de la Religión en escuelas y colegios. Este me parece un ejemplo claro de lo que no se debe hacer. Contrario, a todas luces, a lo que acabo de proponer en los párrafos anteriores. El artículo 75 de nuestra Constitución Política dice lo siguiente: La Religión Católica, Apostólica, Romana, es la del Estado, el cual contribuye a su mantenimiento, sin impedir el libre ejercicio en la República de otros cultos que no se opongan a la moral universal ni a las buenas costumbres. Este artículo de la Constitución ha sido el argumento único y suficiente para que tanto en primaria como en secundaria se enseñe la religión católica como una materia obligatoria que se debe aprobar al lado de las matemáticas, los estudios sociales, la química, la biología, entre otras. Los protestantes o quienes no deseen que sus hijos o hijas asistan a las clases de religión deben indicarlo de manera explícita con una carta dirigida al director o directora de la institución. El gobierno de la República puso en manos de la Conferencia Episcopal la organización y administración de los programas de religión y la contratación de los/as profesores/as. Se elaboraron las guías y un reglamento que han llamado “Reglamento de otorgamiento y remisión de la Missio Canonica”. Esta organización y administración es paralela a la de cualquier otra institución gubernamental. Los profesores y las profesoras de Religión se ven sometidos a un régimen disciplinario diferente al de todos los empleados y las empleadas públicas. Así por ejemplo, se requiere que tengan una vida ejemplar (según los criterios de la iglesia Católica). Un joven que se divorcia y vuelve a casar pierde la missio y el trabajo. Aunado a lo anterior, la Conferencia Episcopal decidió que solamente serán contratados/as aquellos/as que estudian y/o se gradúan de la Universidad Católica violando el derecho a la libre elección del centro educativo al que se desea asistir. Se impide igualmente la posibilidad de que cualquier universidad, pública o privada, ofrezca esta carrera. Las iglesias tienen todo el derecho de conservar su enseñanza pero en el marco de la catequesis o escuelas varias que ofrecen. Ya no se debe utilizar más la enseñanza oficial para catequizar. Por el contrario, el estado debe garantizar una formación que les dé herramientas a los y las jóvenes de hoy para ser, actuar con responsabilidad ante las tantas situaciones que se les presentan. Culturas e Div. Religiosa.P65 198 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 199 Notas 1 Académico de la Escuela Ecuménica de Ciencias de la Religión - Universidad Nacionales de Costa Rica. E-mail: [email protected] 2 Bella imagen propuesta por una mujer costarricense describiendo el Atlántico rudo con el que tuvieron que haberse encontrado los españoles. 3 Término familiar utilizado para referirse a los y las costarricenses. 4 Cristóbal Colón no descubrió un continente, se encontró con uno que ya estaba habitado. Así lo explica FERRERO, 1986, p. 17. 5 Por este equívoco llamó a los habitantes de esta región “indios”. 6 Colón sigue creyendo que se encuentra en Asia, de hecho afirma estar en Ciamba al sur del actual Vietnam, del cual ya Marco Polo había hablado. 7 Vocablo Kuna que designa los territorios comprendidos entre Alaska y Patagonia y cuyo significado es “Tierra madura”. Véase FUNCOOPA. 1999. 8 Así, por ejemplo, ALFARO, 1959, p. 17. También MOLINA; PALMER. 1997, pp. 4-5 y ULLOA. 1999, pp. 25-26. 9 Para mayores detalles véase GARCÍA, 1985, pp. 86-91. 10 Esto hacía que los indígenas se quejen ya que tanto sus tierras como sus ganados son integradas en cofradías y los ladinos y los criollos son los verdaderos beneficiados. Cf. GARCÍA. 1985, pp. 86-91. REFERENCIAS ALFARO, C. Monge. Historia de Costa Rica. San José, C.R.: Trejos, 1959. FERRERO, L. ¿Por qué prehistoria si hay historia precolombina? San José, C.R.: EUNED, 1986. FORNET-BETANCOURT, Raúl. La interculturalidad a prueba. Versión en PDF disponible en la página web de la Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), <http:// www.uca.edu.sv/deptos/filosofia/web/admin/files/1210106845.pdf> FORNET-BETANCOURT, Raúl. Teoría y praxis de la filosofía intercultural. La interculturalidad o por una universalidad más allá de la historicidad. Documento inédito. Será publicado en la Revista SIT de la Escuela Ecuménica de Ciencias de la Religión en el volumen 1, 2008. FUNCOOPA. Los pueblos indígenas de Costa Rica. Historia y situación actual. San José, C. R: Fundación Coordinadora de Pastoral Aborigen, 1999. GARCÍA, Y. González. Continuidad y cambio en la historia agraria de Costa Rica. San José, C.R.: Editorial Costa Rica, 1985. GATJENS, M. Picado. La Iglesia Católica de Costa Rica en la historia nacional: desafíos y respuestas. San José: EUNED, 2008. LÁSCARIS, C. Desarrollo de las ideas filosóficas en Costa Rica. San José, C.R: Editorial Studium, 1983. MÉNDEZ, Mario. Aportes de la filosofía intercultural en la tarea educativa. Ponencia. Texto inédito. Mayo 2009. MOLINA, I.; PALMER, S. Historia de Costa Rica. San José, C.R.: Ed. De la Universidad de Costa Rica, 1997. NAJMANOVICH, Dense. Pensar la subjetividad. Complejidad, vínculos y emergencia. Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 6, Nº 14. 2001. ULLOA, F. Corrales. Más de diez mil años de historia precolombina. En: SOBRADO, Ana María Botey (coordinadora). Costa Rica. Desde las sociedades autóctonas hasta 1914. San José, C.R.: EUCR, 1999. Culturas e Div. Religiosa.P65 199 21/10/2010, 14:18 8 DIVERSIDADE RELIGIOSA NO BRASIL: DINÂMICAS, CONFLITOS E ACOMODAÇÕES Afonso Maria Ligorio Soares1 Diversidade, Sim. Diálogo, Talvez O honroso convite para participar deste I Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento, cujo fio condutor é o tema “Culturas e Diversidade Religiosa: Pesquisas e Perspectivas Pedagógicas”, oferece-me a oportunidade de revisitar uma questão que me é cara e tem me ocupado ao longo das últimas décadas, ou seja, a questão das interações religiosas entre nós.2 Aliás, é incrível como ainda existam setores latino-americanos em que falar de Diálogo Inter-Religioso (DIR) entre os povos que compõem nossos países soe como novidade. Tal diálogo, pensa-se, comumente, é o desafio vital das igrejas cristãs que se encontram nos países da Ásia e da África. Para elas, é imperativo pôr-se à escuta de verdadeiros patrimônios da humanidade, tais como o hinduísmo, o budismo, o confucionismo, o taoísmo, o xintoísmo e, com cada vez mais urgência, o islamismo. Entre nós, deste lado do Atlântico, a teologia cristã do pluralismo religioso apenas engatinha. Durante séculos, e até mesmo nas primeiras décadas que sucederam ao IIº Concílio Ecumênico do Vaticano – para ficarmos aqui apenas no caso da igreja católica, outrora hegemônica – tal esforço teológico-pastoral simplesmente inexistia, em razão da absoluta “ausência” de interlocutores para o diálogo. Explico-me. Reinava, hegemônica, a convicção de que o povo latinoamericano era essencialmente cristão – mais até: católico. Setores e práticas da população que se mostrassem mais heterodoxos eram tolerados como superstição e religiosidade popular ou atacados como perversões demoníacas herdadas de nossos ancestrais indígenas e africanos. O caso brasileiro é lapidar a esse respeito. Desde o início do século passado, e com a permissão mais ou menos tácita da hierarquia católica, as casas de candomblé e, posteriormente, as tendas de umbanda foram sistematicamente perseguidas pela polícia. A diversidade político-religiosa era assim fichada e relegada aos dossiês de crimes comuns. Alguns autores afirmavam, até mesmo, que as religiões de origem africana eram fonte de criminalidade (FERNANDES apud ORTIZ, 1978, p. 179-180). A nascente psiquiatria nacional rapidamente elencou a umbanda na lista das causas de doença mental - juntamente com a sífilis, o alcoolismo e os males contagiosos. O fenômeno do transe místico em rituais do candomblé foi mal traduzido como possessão e associado à loucura e a sintomas histéricos. Culturas e Div. Religiosa.P65 200 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 201 Embarcada nessa maré de ataques, a igreja católica, em vez do diálogo, preferiu avançar contra “o adversário”. Assim, lamentava-se o Cardeal Motta, arcebispo paulistano e grão-chanceler da PUC-SP, alguns anos antes do último Concílio Ecumênico do Vaticano: Além do fetichismo dos nossos indígenas e daqueles povos provindos da Ásia e da Europa, nosso povo recebeu esta triste herança oriunda também da África, por intermédio dos antigos escravos negros. Hoje em dia, por uma insensata aberração e falta de espírito, cultiva-se até mesmo a macumba africana com um esnobe pretexto folclorístico. E se presta culto a uma tão bárbara superstição de magia negra justamente em centros que deveriam ser mais representativos da civilização brasileira, como Rio de Janeiro e Bahia. É uma ignomínia a prática de tais abusos entre cristãos... É triste constatar que a marcha do nosso progresso espiritual e cultural seja feita da senzala ao salão, e não do salão à senzala. A macumba é um dos maiores atentados contra a fé, contra a moral, contra os nossos direitos de educação, contra a higiene e contra a segurança. É a atestação alarmante da nossa ignorância religiosa e científica, e da insuficiência da proteção que a polícia nos oferece (MOTTA, 1953, p. 302). Poder-se-ia retrucar que essas são águas passadas e vivemos um novo tempo de abertura ao diálogo, ao menos na Igreja católica. Quem sabe, mas as fumaças espessas que se levantaram com o recente acordo diplomático entre o Vaticano e o Estado brasileiro nos fazem ficar, como se dizia antigamente, “com as barbas de molho”. 1 Preconceitos e Mal-Entendidos a Partir das Ciências Sociais Por outro lado, quero deixar claro que a dificuldade em lidar com a diversidade religiosa não é privilégio da hierarquia católica nem de teólogos cristãos. As pesquisas de religião na área de Ciências Sociais também têm seus senões. Exemplifico com o caso que conheço melhor aqui, no Brasil: as interações entre religiões afro-indígenas e o cristianismo. Conforme S. Ferretti, “o fenômeno do sincretismo não foi especialmente analisado pelos estudiosos das religiões afro-brasileiras e não interessou aos maiores expoentes no estudo da religião nas ciências sociais”. A razão do silêncio parece estar no fato de que os deuses cujos sequazes detêm as melhores armas tendam a incorporar, liquidar ou segregar as divindades vencidas (FERRETTI, 1995, pp. 41-74).3 A história é pródiga em relatos de destruição de concepções divergentes. Todavia, de uma forma ou de outra, o tema acaba entrando na literatura científica brasileira. Embora sem usar o termo sincretismo em seus trabalhos, (FERRETTI, 1995, p. 41) o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues inaugura a abordagem da questão no Brasil. Ficou famosa a sua tese acerca da ilusão da catequese do negro, dada a incapacidade física “das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo” (FERRETTI, 1995, p. 42). Tal incapacidade impediria que negros africanos e seus descendentes compreendessem bem o culto católico, levando-os a Culturas e Div. Religiosa.P65 201 21/10/2010, 14:18 202 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) simplesmente adicionar santos católicos à galeria de deidades africanas. Com o passar das gerações, tornava-se cada vez mais tênue o imaginário tradicional africano, tendo por consequência a adoração, de fato, dos santos católicos. Seja como for, a equivalência das divindades daria essa ilusão, pois “sem renunciar aos seus deuses ou orixás, o negro baiano [tinha] pelos santos católicos uma profunda devoção” (RODRIGUES, 1935, p. 182). Mais tarde, entretanto, o médico baiano proporá duas formas de adaptação fetichista do culto católico: uma interna ou subjetiva; outra externa ou cultual. A primeira dava-se quando a direção do culto cabia a um sacerdócio mais ou menos esclarecido (caso do candomblé); a segunda, quando os negros dirigiam livremente o culto (caso da cabula) (FERRETTI, 1995, pp. 42-43) Artur Ramos, divulgador e continuador das intuições de Nina Rodrigues, analisa o sincretismo na perspectiva da teoria culturalista. Diz ele: “o que Nina Rodrigues julgou ser uma justaposição no negro e uma fusão no crioulo e mulato, não são mais do que etapas do processo de aculturação, graus de sincretismo, pela maior ou menor percentagem de aceitação, por um grupo religioso, dos traços culturais de outro grupo” (RAMOS, 1942, p. 9). Para Ramos, se o negro não compreendeu o cristianismo, isso se deveu antes à mentalidade atrasada que herdou de seu grupo social de origem. Todavia, essa “deficiência” poderia, em tese, ser suprida do ponto de vista psicológico e sociológico (RAMOS, 1951, p. 114)4. Gonçalves Fernandes e Waldemar Valente, médicos da Escola de Recife de Estudos Afro-brasileiros, são, conforme S. Ferretti, os primeiros a publicar trabalhos entre nós com título sobre sincretismo. 5 Também culturalista, Valente define sincretismo como “um processo que se propõe a resolver uma situação de conflito cultural”, e o faz por meio de “uma intermistura de elementos culturais, uma interfusão, uma simbiose entre componentes de culturas em contato” (FERRETTI, 1995, p. 47). Tal processo percorre uma primeira etapa de acomodação, ajustamento e redução do conflito social. Em seguida, vem a assimilação, que implica um lento e inconsciente movimento de interpretação e fusão (VALENTE, 1976, p. 12).6 Valente entende que a influência cada vez maior do catolicismo é decisiva na superação da incapacidade mental do negro (VALENTE, 1976, p. 72). Mas, pelo menos, Valente destaca que tal relação não se processa como estratégia ou disfarce, a não ser em escravos diretamente oriundos da África; 7 e afirma que o sincretismo religioso é uma obra realizada inconscientemente por tais grupos, sem um prévio planejamento. O tom pejorativo dos estudos interculturais começa a mudar com Roger Bastide, um dos pesquisadores mais publicados e influentes no campo dos estudos afro-brasileiros. Estudaram com ele autores hoje respeitados, como R. Ortiz, J. E. dos Santos e outros. Ele explica o chamado sincretismo afro-católico, baseando-se em três relações que facilitaram os contatos interreligiosos. Primeiramente, o padrão teológico católico da intercessão aos Culturas e Div. Religiosa.P65 202 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 203 santos para se chegar a Deus Pai, que se acomodou à cosmovisão iorubana dos orixás como intercessores dos humanos junto a Olorum. Em segundo lugar, a relação cultural: em se tratando de cura e proteção, os santos estão para as necessidades cotidianas como os orixás para as situações do mundo natural. Por último, a teia social construída entre as nações africanas e confrarias criadas e/ou permitidas pela Igreja Católica (BASTIDE, 1971, p. 362). Da análise dessa correspondência externa (BASTIDE, 1971, p. 374), o sociólogo francês passa ao estudo do sincretismo interno correspondente à primeira relação, ou seja, aos mecanismos psíquicos postos em ação pelo negro nessa identificação do orixá com o santo católico. Ao centrar-se em tal análise, Bastide chega, aos poucos, à conclusão de estar trabalhando com um pseudoproblema, somente encarado pelos negros quando entrevistados a respeito (BASTIDE, 1973, p. 160). O fato é que os fiéis não sentem contradição alguma entre os orixás e os santos. Para tentar explicar semelhante processo, Bastide afirma que o chamado sincretismo não tem a ver com misturas ou identificações (entre orixás e santos), mas com semelhanças e equivalências. Conforme tal explicação, o indivíduo das sociedades tradicionais divide o universo em certo número de compartimentos estanques, realizando as participações no interior dessas divisões e não de uma divisão a outra (FERRETTI, 1995, p. 56). Não sendo os compartimentos encaixáveis uns nos outros, não existiria, por conseguinte, entre os adeptos do candomblé, uma pessoa dividida entre dois mundos. Portanto, quando um dos fiéis se diz católico não está mentindo; ele é, ao mesmo tempo, católico e membro do candomblé. Pela lei da analogia, ambas as pertenças não são opostas, apenas separadas.8 A cisão consiste em que, se houver num templo de candomblé um altar católico e um peji africano, estes se correspondem, mas, por desempenharem papéis distintos, não se identificam.9 Em suma, o sincretismo religioso constatado entre as tradições africanas e o catolicismo brasileiro implicaria justaposição, jamais mistura. Finalmente, em As Américas negras, Bastide fala de um sincretismo cujas formas passam do nível morfológico (sincretismo em mosaico ou espacial) ao institucional (sistema de correspondências entre deuses africanos e santos católicos), e deste aos fatos da consciência coletiva (reinterpretação) (BASTIDE, 1974, pp. 140-143). O primeiro nível é o dos “sólidos indeformáveis” como os pejis africanos, que coexistem no terreiro com altares católicos, embora sejam reciprocamente discordantes. O seguinte, visível, sobretudo, na combinação dos calendários litúrgicos, provê uma contínua retroalimentação entre o universo católico romano e o africano. O terceiro, mais presente nos meios protestantes devido à maior pressão catequizadora, significa a saída possível da reinterpretação da Bíblia com base na mentalidade negra.10 Culturas e Div. Religiosa.P65 203 21/10/2010, 14:18 204 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Um crítico atual assevera que Bastide “não foi capaz de perceber, na própria cosmovisão afro-brasileira, o critério que possibilita a reconstrução da sua experiência religiosa [...] um critério mais profundo, de ordem existencial-antropológica: a busca de participação na força vital do Axé” (VASCONCELOS, 1999, p. 197).11 As pesquisas mais recentes (1980 em diante) são, porém, promissoras. O antropólogo P. Sanchis debate-se nos mal-entendidos suscitados pelas concepções de sincretismo e propõe que se deixe a consideração meramente descritiva de seu conteúdo, aspecto substancialista e valorativo, para defini-lo simplesmente “como um processo tendencialmente universal dos grupos humanos quando em contato com outros: a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar realidades e relações do seu próprio universo”.12 Todavia, além de tendência, Sanchis o vê como “princípio dinâmico de ordenamento e de transformação”, que configura “um processo que se cria a si próprio, tanto quanto cria o seu produto, nunca acabado” (SANCHIS, 1996, p. 159). No Brasil contemporâneo, Sanchis depara com dois processos diferentes de sincretismo: o tradicional, fruto de um encontro desigual de civilizações, por ele chamado de “sincretismo de ida”; e o “sincretismo de volta”, que vai da religião efetivamente praticada em direção às raízes atávicas do indivíduo. Em quase vinte anos de convivência com Agentes de Pastoral Negros (APNs) e, mais especificamente, pela amostragem recolhida em depoimentos, pude constatar a expansão do “sincretismo de volta” nesse meio.13 R. Motta tem-se somado às fileiras dos que contestam a concepção de “simples disfarces”, entendendo por sincretismo não somente concessão dos escravos aos senhores (por medo) ou destes aos primeiros (como estratégia de dominação), mas também uma legítima apropriação dos bens do opressor pelo oprimido (MOTTA, 1982, p. 7). Já M. Augras, ao incluir como essencial, na definição de sincretismo, a fusão de vários elementos, desconfia “que o sincretismo seja mais aparente que real, e, sobretudo, não seja vivido do mesmo modo pelas diversas religiões de origem africana”. Assim, infere a autora, haveria sincretismo na fusão de divindades e ritos da umbanda, mas, justaposição, no caso do candomblé de rito nagô. Houve, sim, fusão real no nível das divindades africanas, mas, “no candomblé tradicional, não há fusão, nem síntese entre a ideologia cristã e o sistema nagô” (AUGRAS, 1983, pp. 27-32). O argentino A. Frigerio reclama do pouco que se tem estudado sobre o sincretismo. Em Salvador, diz ele, dos cerca de 3.000 terreiros existentes, menos de 20 (os mais ortodoxos) foram estudados. Critica R. Bastide pela noção do candomblé como enquistamento cultural e J. E. dos Santos por utilizar material africano na análise de dados brasileiros. Mas, a maior contribuição de Frigerio tem sido a pesquisa das religiões afro-brasileiras em sua expansão pelo Cone Sul (FRIGERIO, 1993). Nessa mesma direção, Culturas e Div. Religiosa.P65 204 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 205 vão os estudos mais recentes de A. P. Oro, (1999)14 que procuram analisar a transnacionalização das chamadas “religiões do axé” para o Mercosul, mais especificamente para o que ele chama de “área do batuque”.15 O avanço e a sistematização desse novo veio têm contribuído com o questionamento e a reelaboração, já em andamento, de muitos dogmas clássicos das ciências que se detiveram nas religiões africanas e afrobrasileiras. Por exemplo, a pressuposição do caráter étnico de tais religiões, o desinteresse missionário daí decorrente, certa visão depreciativa da umbanda como adversária do candomblé tradicional (tido como mais puro), as implicações econômicas e culturais do fenômeno, e assim por diante. R. Segato verifica que o sincretismo cumpre hoje a tarefa de complementar o que o povo-de-santo considera incompleto na mitologia dos orixás. Assim, para dar ideia da postura de Ogum, serve-se do cavaleiro São Jorge, enquanto a imagem de N. Sra. da Conceição saindo do mar retrata a superioridade distante e a melancolia de Iemanjá. Esse seria o único campo em que se nota uma ponte semântica entre catolicismo e candomblé. Segundo a autora, tal qual nos sonhos, o sincretismo ajuda numa visão mais clara dos orixás incorporados nos devotos em transe. Tal fenômeno, mais que estratégia de ocultação, foi uma necessidade decorrente da perda quase completa da estatuária africana na diáspora negra, tornando inevitável a substituição, a fim de não comprometer o processo iniciático de atribuição de orixás (SEGATO, 1998, pp. 80-81). Entretanto, também ocorre um fenômeno distinto do sincretismo strictu sensu. Detendo-se na noção de crença do candomblé tradicional do Recife e da Bahia, a autora explica que esse crer não tem o sentido de uma escolha, como para os cristãos. Portanto, é possível crer isto e aquilo também. Candomblé e catolicismo, diz ela, são, aos olhos dos filhos-de-santo, suplementares, coexistentes, complementares. O catolicismo oferece o limite moral (separação entre o bem e o mal) e a possibilidade de transcendência;16 o candomblé articula um discurso para o mundo social, as relações interpessoais e a dimensão psíquica.17 Os orixás são um “léxico para a introspecção”, que aproximam o candomblé de uma sociologia e de uma psicologia práticas, das quais está ausente uma linguagem de redenção (pecado, salvação, céu). Portanto, aos olhos dos adeptos, candomblé e catolicismo (popular, nesse caso) oferecem uma complementaridade sem superposição: um é filosófico, o outro, ético; um é utópico, o outro, pragmático. Não se pode, pois, traçar uma equivalência entre ambos; é mais adequado explicar a maneira como os sujeitos envolvidos operam a coexistência em termos de “alternância de códigos”. Nesse âmbito da complementaridade, embora com sinal trocado, estão algumas posições que recolhi de intelectuais ligados ao candomblé e Culturas e Div. Religiosa.P65 205 21/10/2010, 14:18 206 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) com bom trânsito nas pastorais católicas. Para eles, o catolicismo (cristianismo) vem a ser a base mínima indispensável ao povo. A partir daí, o candomblé oferece aos mais aptos (mais sensíveis ou audazes) a oportunidade de voos mais altos.18 Pois bem, ao final desse sucinto percurso pelas ciências sociais, gostaria de retomar as cinco fases localizadas por S. Ferretti, nos debates sobre sincretismo religioso afro-brasileiro (FERRETTI, 1995, p. 87-89). A primeira, de R. Nina Rodrigues, é a da teoria evolucionista. A segunda, de A. Ramos e seguidores, segue o culturalismo e vê o sincretismo como etapa que inclui conflitos, acomodação e assimilação rumo à desejada aculturação. R. Bastide e discípulos inauguram uma fase de explicações mais sociológicas, analisando a mentalidade do negro e a religiosidade afrobrasileira por meio da sociologia em profundidade e do princípio de cisão. Daí a insistência de J. E. dos Santos, uma de suas ex-alunas, na “capacidade do negro ‘digerir’ ou africanizar as contribuições e os cultos se acomodarem sem se embranquecer” (FERRETTI, 1995, p. 88). A quarta fase, sobretudo entre os anos 70 e 80, detém-se no chamado “mito da pureza africana”. Autores como P. Fry criticam a nagoização ou nagocracia dos terreiros, que faz com que os pesquisadores voltem-se mais para a África idílica do que para o Brasil sincrético. Nesse sentido, também B. Dantas dá sua contribuição quando demonstra, ao investigar uma pequena área de Sergipe, que a busca de pureza não abdica da mistura; apenas rejeita algumas delas. Portanto, talvez seja o caso de repensar a polarização entre puro e misturado ou, pelo menos, de esclarecer a lógica com que se adultera a presumida pureza original. “A perda da pureza”, infere Dantas, “não decorre simplesmente de combinações de coisas diferentes, mas de determinados tipos de combinações, donde se conclui que a própria noção de ‘mistura’ é culturalmente definida, [sendo] fruto de certas percepções” (DANTAS, 1988, p. 141). 19 Ferretti identifica uma quinta fase, que vem à tona a partir dos anos 80, e volta-se para aspectos específicos como, por exemplo, uma melhor precisão do conceito em questão. Não são mais aceitas as seguintes proposições: a tese do sincretismo como máscara colonial para driblar a dominação; a hipótese do sincretismo como estratégia de resistência; a sinonímia com justaposição, colcha de retalhos, bricolagem (Lévi-Strauss) ou aglomerado indigesto (Gramsci), pois, não explicariam os casos em que a religião permanece como um todo integrado. Tem-se maior consciência do preço que pagaram certos conceitos por estarem atrelados a determinadas teorias. Ou ainda, do reducionismo de ver o sincretismo num arco de bipolaridades do tipo pureza versus mistura, separação versus fusão etc. Oferecendo sua própria contribuição ao debate, Ferretti sugere que “o sincretismo também se enquadra nas características desta capacidade Culturas e Div. Religiosa.P65 206 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 207 brasileira de relacionar coisas que parecem opostas” (FERRETTI, 1995, p. 17).20 E a fim de driblar mal-entendidos e confusões, o autor propõe um quadro com três variantes dos principais significados do conceito de sincretismo. Partindo de um hipotético caso zero de separação ou nãosincretismo, chega ao nível três, da convergência ou adaptação, passando por dois níveis intermediários: a mistura, junção ou fusão (nível um) e o paralelismo ou justaposição (nível dois). Desse modo, Ferretti (1995, p. 91) pode tecer as seguintes distinções: [...] existe convergência entre idéias africanas e de outras religiões, sobre a concepção de Deus ou sobre o conceito de reencarnação; [...] existe paralelismo nas relações entre orixás e santos católicos; [...] mistura na observação de certos rituais pelo povo-de-santo, como o batismo e a missa de sétimo dia, e [...] separação em rituais específicos de terreiros, como no tambor de choro ou axexê, no arrambam ou no lorogum, que são diferentes dos rituais das outras religiões. 21 2 Na Casa do Abbá e das Iyas Há Tantas Moradas Habitáveis Isso me recorda um Simpósio Ecumênico Internacional do qual participei, e que reuniu, em Belo Horizonte, Brasil (abril-2003), teólogos e teólogas brasileiros, franceses e alemães para pensarmos juntos os caminhos da fé neste início de século. Risquer la foi dans nos sociétés foi seu lema. O que lá constatei é que o tema da diversidade é muito mais amplo do que se pensa, e abrange questões de gênero e de opção sexual, questões de geração (juventude do século 21) e de cibercultura (até cyber religion). O encontro foi muito rico, principalmente por ajudar a quebrar certos paradigmas, já que, como dizia um dos ponentes do Simpósio, “para muchos teólogos europeos, América Latina sigue siendo un continente vibrante, con una teología comprometida con los grandes problemas sociales, políticos y económicos, con comunidades de base muy vivas, en fin: como un continente eminentemente católico en un sentido más político que espiritual. Para sus colegas en América Latina, la teología europea sigue teniendo prestigio y un cierto grado de seducibilidad, pero también como un quehacer demasiadamente académico e intelectualista, y las iglesias son consideradas como empresas que administran el patrimonio cristiano sin entusiasmo ni mayor compromiso político”.22 “La fuerte ola de globalización neoliberal que vivimos todas y todos”, proseguia Estermann, “aunque de manera muy diversa, en las dos costas del Atlántico, llevó a una revisión paulatina, cuidadosa o hasta audaz de estos estereotipos. Nos damos cuenta que también en Europa hay un “sur”, y en América Latina hay un “norte”, que muchos fenómenos anteriormente limitados a un cierto contexto geográfico se presentan tanto en Brasil como en Alemania. El mundo se ha tornado mucho más complejo, hasta tal punto que explicaciones simples, monocausales e ideológicas ya no dan Culturas e Div. Religiosa.P65 207 21/10/2010, 14:18 208 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) para más. Existe en Brasil una teología muy conservadora, como existe una teología progresista en Alemania; hay gente sin teche en las calles de Francfort como hay yuppies hedonistas en São Paulo”.23 Em sua fala, Estermann continuava dizendo que só teríamos a ganhar se perdêssemos o medo e nos dispuséssemos a aprender uns com os outros. Porém, superação das diferenças que nos separam não é meltingpot. A pluralidade não é eliminável, mas deve ser fonte e motor de um diálogo intercultural teológico. “Tenemos que mantener la curiosidad por la alteridad”, concluía o autor. Essa lembrança me remeteu a um dos dias daquele Simpósio, que teve por lema e desafio “Pensar o agir das igrejas”. O fórum do qual participei como especialista ou “pessoa-fonte” (resource person) intitulavase “Comunidades cristãs e dispersão das trajetórias espirituais”. Animados ao longo da jornada por Josef Estermann, ouvimos e analisamos três experiências muito distintas, e que poderiam dar algumas pistas para o tema que me foi proposto nesta conferência: Arnd Bünker (Münster) deu seu testemunho sobre a prática comunitária das comunidades “queer”, numa paróquia alemã; Sérgio Vasconcelos apresentou aspectos do sincretismo ou da dupla pertença religiosa afro-católica na região de Recife (Pernambuco, Brasil); e Denis Villepelet (Paris) expôs os desafios da igreja católica francesa, cada vez mais identificada com comunidades de anciãos distantes do interesse e dos questionamentos da juventude. No início dos trabalhos matinais, Arnd Bünker expôs um tema extremamente delicado para o cristianismo, principalmente para a igreja católica: a existência de homossexuais no seio das igrejas e seu crescente desejo de plena visibilidade em suas respectivas comunidades de fé. Quais são as regras de pertença à igreja? Perguntava-se Bünker. É possível ser gay e católico ao mesmo tempo? Sim, respondia o jovem teólogo, se aceitarmos a ruptura entre identidade e pertença. Para Bünker, os cristãos gays não são apenas objetos da pastoral ou tema da teologia (moral); eles são sujeitos na igreja e em todo o arco da teologia. Na realidade, o fulcro teórico da questão é a teoria queer, um desenvolvimento da teologia de gênero que desidolatriza a identidade sexual, quando preconiza que o ser humano pode ter outras orientações sexuais (homo, hetero, trans). Ademais, a iniciativa das comunidades queer apresenta-se como alternativa à estrutura paroquial europeia, que gira em torno da família tradicional. Elas são comunidades de acolhida e diaconia de todos aqueles que não têm lugar na sociedade hodierna: anciãos, pessoas fora dos padrões de beleza, doentes e demais solitários da nova urbe. No debate que seguiu ao depoimento de Bünker, o subgrupo que discutiu o desafio queer reafirmou que a visibilidade recente dos católicos gays sugere que a identidade nunca é cabalmente definível, mas dá-se no processo, numa constante rede de pessoas. Se antes até se falava de uma antropologia de identidades, hoje é preciso aceitar distintos níveis de Culturas e Div. Religiosa.P65 208 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 209 pertença (que, de resto, sempre existiram, mas poucas vezes foram assumidos por princípio); as pertenças são provisórias, nômades, precárias. Eis aí uma primeira pista para os que pensam serem possíveis novas modalidades de diálogo entre as religiões – e não simplesmente uma cooperação mútua frente a problemas globais. O segundo testemunho concreto foi-nos proporcionado por Sergio Vasconcelos, que narrou sua aproximação ao fenômeno do sincretismo afro-católico no nordeste brasileiro. Salientou o espírito de diálogo que o norteou e o consequente esforço para compreender seu significado, embora reconhecendo que cada sincretismo é único. Da lentidão e gradualidade de tal processo é prova a própria experiência de Vasconcelos, que levou oito anos de relações de amizade na comunidade até descobrir quais de seus vizinhos eram do candomblé. Com a autoridade de quem fez a experiência, mas também domina as categorias da teologia e das ciências da religião, Vasconcelos propôs uma categoria fundamental para entender a lógica do sincretismo: a força vital ou o axé. Há um desejo de fundo na comunidade (terreiro) de participar dessa força. Daí a facilidade de fazer sincretismo, já que o axé está em tudo e permeia todas as coisas. A partir dessas premissas, Vasconcelos levantou duas questões bastante instigantes com respeito à chamada “inculturação” e ao pretendido “diálogo inter-religioso”: 1. O que seria uma inculturação para a(s) cultura(s) afro? Pois, afinal, o que a igreja está propondo somente agora já é feito há séculos pelos negros e isso é chamado de sincretismo. 2. Fala-se hoje de diálogo entre cristianismo e religiões de origem africana. Já é um avanço, pois foram necessários quase 500 anos para reconhecer o candomblé como religião. Entretanto, em que termos fazer tal diálogo, uma vez que 90% dos membros do candomblé já são católicos? A discussão posterior, desenvolvida nos subgrupos, enriqueceu a reflexão iniciada por Vasconcelos. Falou-se da grande sensação de liberdade que envolve essas múltiplas experiências, que vão fazendo parte da normalidade. “Não nos sentimos mais clandestinos”, desabafava alguém do grupo. E, ao jogo da teologia, não cabe nenhuma mudança radical de propósitos; ela deve continuar fazendo o de sempre: ajudar as pessoas a construir sentido em suas vidas. Falou-se também da politerminologia que ronda a área: inculturação, interculturalidade, inreligionação, sincretismo, dupla e múltipla pertença, vivências plurais24 e por aí vai. Foi ficando muito clara a importância de deixar os verdadeiros sujeitos serem sujeitos, mesmo que o preço seja a perda das ideias claras e distintas, pois, como dizia Vasconcelos, em feliz formulação: “A teologia que leva em conta o sujeito gagueja por honestidade intelectual”. Culturas e Div. Religiosa.P65 209 21/10/2010, 14:18 210 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Claude Geffré foi chamado em causa em nome dos contemporâneos que têm insistido neste aspecto: só é possível falar de dupla pertença, uma vez que a questão cultura-religião jamais se resolverá. Por isso, propugnar algo semelhante a uma inculturação pode significar, em certos ambientes, uma variável platônica, na medida em que se pretenda que um núcleo intocado vá ao encontro de toda cultura. De outra parte, se inculturação significar, como diz a igreja católica, um “revelar a cultura a si mesma”, na opinião de alguns, isso é simplesmente absurdo. De minha parte, creio que o debate não deve disfarçar a seguinte questão: o que há de positivo, de complexo e de criativo nas construções sincréticas afro-católicas? E o que há de preconceituoso ou simplesmente equivocado nos estudos que se realizaram sobre o assunto? Como já mencionei antes (SOARES, 2004, p. 136), muitas explicações desse fenômeno já foram descartadas pela comunidade científica. Pois bem, como ler tudo isso teologicamente, levando em conta as luzes que vêm das ciências da religião? No meu modo de entender, precisamos de uma nova categoria que ouso jogar no debate: a fé sincrética. Penso que uma teologia (fundamental e dogmática) mais arejada não se furtará a reconhecer, com o auxílio das ciências da religião, a condição e os condicionamentos radicalmente humanos do acesso à fé cristã (e a qualquer outra, afinal). A fé sincrética é absoluta quanto aos valores fundamentais que estão em jogo na escolha aparentemente contraditória dos significantes religiosos (dimensão fé); mas é relativa quanto aos resultados efetivamente atingidos (dimensão ideológicosincrética). Pode-se falar, portanto, de fé sincrética para identificar o modo mesmo de uma fé “concretizar-se”. De fato, não existe fé em estado puro; ela mostra-se na práxis. Creio que até se possa aproximar a fé sincrética da fé inculturada. Desde que se perceba a diferença de trajeto, ou seja, o ponto de vista de onde se observa a invenção religiosa popular. A comunidade eclesial propõe-se a inculturar ou inreligionar a mensagem evangélica; o povo responde, acolhendo a “novidade”, de acordo com suas reais estruturas significativas. Dizer fé inculturada é pressupor um dado transcendente, um valor absoluto finalmente garantido pelo Ser Absoluto acolhido na fé. Presumindo que tal verdade esteja sob sua custódia, a igreja dá o passo de comunicá-la para além das fronteiras originais. Mas, quando afirmo a fé sincrética, saliento que o sopro do Espírito já esteja agindo nas demais tradições culturais, contra ou mesmo apesar do contato com as comunidades cristãs. O povo-de-santo inreligiona o que pode ou quer acolher da Tradição cristã. De fato, muitos praticantes da tradição dos orixás, da umbanda e de outras variáveis religiosas de nossa herança africana sentem-se sinceramente católicos. Acolheram em suas tradições de origem o enxerto cristão, expurgaram o que lhes pareceu desumano ou sem-sentido, Culturas e Div. Religiosa.P65 210 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 211 misturaram o que não tinha muita importância, e mantiveram o que julgaram positivo e enriquecedor para sua própria cosmovisão. Voltando aos depoimentos instigantes do mencionado Simpósio França-Alemanha-Brasil, tivemos a oportunidade de acolher uma terceira experiência, ainda não muito sentida em ambientes latino-americanos (embora já definitivamente presente nas metrópoles existentes também entre nós). Relatou-a Denis Villepelet e fez-nos voltar para outro ângulo da discussão: a dispersão das trajetórias espirituais numa diocese parisiense em que 60% da população ainda se diz cristã, mas só 2% querem participar da comunidade. A realidade das novas cidades é de homens e mulheres que trabalham, com grande número de oriundos da África que seguem o islamismo. Os mais jovens, muitas vezes, submetem-se a três horas de viagem para ir trabalhar. O resultado na prática religiosa é que a comunidade cristã é constituída por anciãos na faixa dos 60 anos, enquanto a juventude procura bem-estar a seu modo e se deixa fascinar pelo apelo new age. Villepelet partiu do pressuposto de que religião é questão de pertença ou de identidade. Por isso, encerrou sua fala com três conclusõesprovocações: •De início, é preciso aceitar que a noção de igreja como comunidade paroquial está desaparecendo para sempre. Teremos de aprender a lidar com isso. •Daí decorre que a noção de comunidade esteja agora em questão: inserida em uma sociedade a ela indiferente, a igreja tende a demarcar sua área com normas, reúne-se em grupos por afinidade ou vive a nostalgia da noção de bairro e de família. Como descobrir, então, o que significa fazer “comunidade fraterna”, ser igreja? •Por último, qualquer que seja o perfil dessa nova comunidade, ela deve se caracterizar por não fugir dos desafios. Um deles, segundo Villepelet, é a Internet. Embora não tenhamos aprofundado muito a questão da www nos debates do Fórum, creio que há recursos muito positivos nessa nova “rede” de comunicação. Ouvi, certa vez, de uma professora de comunicação que a Internet é o contrário da “paranoia”; ela é uma pronoia. Ou seja, em vez de imaginar, doentiamente, que alguém está me perseguindo, uma das utopias dessa nova rede é que alguém, a qualquer momento, vai me ajudar. Ademais, creio que o conceito de comunidade virtual (que não se confunde com os milhões de chats espalhados pelo mundo afora) mereça uma atenção cada vez maior de nossa parte, pois nada mais é do que um novo degrau na histórica e contínua busca humana de expansão de seu corpo físico (como foram, a seu tempo, as pinturas rupestres, as pirâmides, os papiros, o livro, a invenção da imprensa, o cinema, o telefone, a televisão e quem sabe o que mais está por vir). Culturas e Div. Religiosa.P65 211 21/10/2010, 14:18 212 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Do debate desencadeado depois, no subgrupo correspondente, o relato de Villepelet suscitou uma conclusão bem marcante e evangelicamente positiva: a igreja francesa (e tantas outras em similar situação) está redescobrindo a sensibilidade para a fraqueza. O centro da igreja está-se desfazendo (“Hoje vivemos um policentrismo”, declararia Henri-Jerôme25 mais tarde, no plenário do último dia) e ela se vê cada vez mais pobre, à margem, excluída. O que está prestes a renascer após essa era glacial poderá ser, para todos nós, ocasião de graça. Os três depoimentos fizeram-me pensar, já naquela ocasião e ainda hoje, sobretudo porque vinham de pessoas ao mesmo tempo francas e decididamente cristãs. Retomando-os agora, à luz do tema geral deste Simpósio, eu gostaria de destacar três insights que, por sua vez, não eliminam nem inibem outras possíveis abordagens. É uma breve amarração (talvez, provocação), cujos principais itens registro a seguir. Falou-se muito, ao longo daquele Fórum, de catolicidade – é preciso salvaguardá-la, redescobri-la, iluminá-la etc. Foi uma preocupação evidente da equipe organizadora. Poderíamos perguntar, então: onde está a catolicidade dessas/nessas três experiências/testemunhos partilhadas acima? Ocorreu-me aquela conhecida frase bíblica: “Na casa de meu Pai há muitas moradas”. Parece incrível, mas o conceito de (a nota da) catolicidade amplia-se para contemplar uma pluralidade de experiências que têm em comum o encontro com Jesus de Nazaré. Pode ser que nem todas geraram ou gerarão o seguimento strictu sensu, mas cruzaram com Jesus no caminho (de Emaús?). Enfim, a catolicidade não é nem poderá ser nunca uma propriedade da instituição igreja católica. O mencionado Vasconcelos reforçaria essa linha mais tarde, em um debate ulterior, ao recordar-nos que a igreja é católica porque já vive escatologicamente a salvação. Assim, nenhuma configuração histórica do cristianismo seria normativa. Henri-Jerôme retrucou que a igreja é apostólica, e isso é normativo. Bünker devolveu-lhe outra questão: “Mas, quem decide qual comunidade é fiel?”. Creio que precisamos ter presente alguns critérios consensuais, ou não faremos caminho juntos. No caso cristão, fala-se da Tradição (com T maiúsculo), da Escritura e do cimento da experiência da comunidade. As três iluminam-se reciprocamente. A Tradição sozinha ou correndo na paralela degenera em tradicionalismo; a sola Scriptura pode virar literalismo/fundamentalismo (ou, no mínimo, exegese sem hermenêutica); a simples experiência comunitária do presente, por si só não vai além de um clube ou, como se diz hoje em dia, de uma tribo urbana. Nesse ponto, creio que também é preciso chamar a atenção para a experiência (humana) do Transcendente. É um ganho da teologia contemporânea a redescoberta de que a revelação ou autocomunicação do divino é um processo histórico, com momentos/dimensões que têm seu sentido próprio (DV 15: a pedagogia divina), mas não são definitivas. Nesse Culturas e Div. Religiosa.P65 212 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 213 processo, o povo bíblico (autores e comunidades leitoras) sempre procurou modular em linguagem humana o sopro e as ressonâncias do Espírito Santo. Daí vem a força (e a fraqueza) do umbral cristão: este depende intrinsecamente de uma experiência ineludível que só tem sentido se o indivíduo a fizer por si mesmo. Nem é garantido que o resultado deva, necessariamente, configurar-se como uma comunidade nitidamente eclesial (ao menos, nos moldes em que as podemos descrever hoje). E mesmo que o fosse, isso não eliminaria a inevitável ambiguidade da tradução “práxica” deste encontro, ou seja, da vida cristã. É por isso que costumo dizer que nossa condição humana empurra-nos ao sincretismo. O que requer do cristianismo uma contínua crítica e autocrítica do statu quo, de suas realizações pastorais, de suas formulações teórico-teológicas, e assim por diante. Uma segunda consideração. Algo que vislumbrei nos três testemunhos descritos acima foram variações de uma experiência de amor (Ou, se quisermos, um evento de graça, ou de gratuidade, ou de espiritualidade). E onde há amor, repetia-nos um velho professor, não há pecado.26 Por que a comunidade de Arnd teima em ter a missa, a eucaristia e a reunir-se como católicos queer? “Chi lo sa”? É um caso de amor por essa velha senhora nariguda (a igreja, segundo a imagem sugerida na fala de Veronika Prüller, também ponente no referido Simpósio). Por que o povo-de-santo (do candomblé) não desgruda da igreja? Talvez tenha razão o octogenário Dom Boaventura Kloppenburg, antigo inimigo figadal das religiões mediúnicas nas décadas anteriores ao Vaticano II: “São aqueles que mais amam a igreja católica aqui no Brasil”, admite o prelado, “embora sejam os que mais apanham dela”. Sempre digo a meus alunos e alunas que a história da revelação divina é uma história de amor entre Deus e a humanidade, e tem por tálamo a história. Porque, como dizia mestre Juan Luis Segundo, faz parte da revelação também a maneira como os povos foram chegando aos dogmas, isto é, em meio a avanços e retrocessos, erros e acertos, gestos amorosos e pecaminosos. Só assim podemos entender como o conjunto de “revelações” auto-excludentes, recolhido e mantido em contiguidade pelos redatores bíblicos, componha hoje a “Palavra de Deus”. Em suma, outras variáveis possíveis, a partir de uma mesma intuição original, têm lugar na Tradição cristã. É o caso da fé abrâmica a que hoje se reportam tanto judeus quanto cristãos e muçulmanos. E se assim é, estou certo de que o sincretismo é a história da revelação em ato, pois o vejo como o caminho real da pedagogia divina em meio a povos como o (afro-) brasileiro. É claro que faço aqui uma leitura teológica do sincretismo. A terceira consideração foi inspirada no livro de Adolphe Gesché, Dieu pour penser. Ou seja, Deus como condição de possibilidade para pensar qualquer coisa. A teologia é assim “ciência dos excessos”, que pensa o impensável, vai até os limites do pensamento, e tem em Deus a metáfora para esse limite. Se, de um lado, como dizia K. Rahner, toda teologia é Culturas e Div. Religiosa.P65 213 21/10/2010, 14:18 214 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) antropologia, de outro, ela pretende estudar Deus mesmo, Deus em si, pondo-se no lugar Dele. É uma ousadia, da qual também não queremos abrir mão. Pois bem, pensei nisso ao tentar considerar a teima dos “sincretistas” em permanecer no colo do cristianismo: o problema é que eles não querem largar nenhum dos dois amores (catolicismo e candomblé, por exemplo). Querem os dois; são contra a monogamia. Os três testemunhos ouvidos (Arnd, Vasconcelos, Villepelet) mostram que ainda estamos longe do limite. Pode ser desesperador para a antiga escolástica (pois, como dizia Vasconcelos no debate, quando a gente narra, desconcerta), mas é fantástico para a mística de ontem, hoje e sempre. É fascinante (sem deixar de ser tremendo) para quem está vivendo a experiência. Porém, é um saber experiencial que gera um novo poder oriundo dessa nova experiência. E isso é conflitivo, pois, o saber sempre foi uma forma de administração do poder e esses novos sujeitos aqui testemunhados (queers, afrodescendentes, juventude do século XXI) provêm de um não-poder. Indicações Provisórias Isso posto, a título de interrupção do debate, retomo algumas ideias que permeiam este texto e poderiam consistir em três pequenas conclusões provisórias: •As três experiências nos sensibilizam a uma acolhida generosa. Em sua inevitável ambivalência, e sem querer ser ingênuos diante dos pecados de nossa história cristã, é impossível não vê-las também como casos de amor. O silêncio obsequioso prévio à palavra segunda da teologia é mais do que oportuno no julgamento dessas experiências; afinal, de certa forma, Jesus também foi queer, pois seu comportamento causou estranheza. E Estermann arrematava: “Ele também era inter-identidades”. •As experiências testemunhadas dão conta de novos sujeitos assumindo o leme, dentro e fora do cristianismo deste novo século. É um acontecimento em que emergem o parcial, o provisório e o conflitivo. Como, de resto, em qualquer acontecimento da história. Entretanto, sabemos que a teologia é sempre parcial e não se pode procurar totalidades rápidas. •Finalmente, essas experiências mais (para alguns) ou menos (para outros) desconcertantes nos põem diante do desafio de uma nova catolicidade a ser construída [não, evidentemente, aquela configurada hoje como igreja católica], uma catolicidade juntamente com e para além das nítidas configurações religiosas. E as perguntas multiplicam-se: como fazer comunidade em cada um desses contextos? Que significa hoje fraternidade e sororidade? Como lidar com o medo diante do novo, principalmente desses sujeitos emergentes? Algumas pistas muito ricas têm sido sugeridas nos mais diversos areópagos hodiernos. Houve quem apelasse para o Culturas e Div. Religiosa.P65 214 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 215 recente jargão da Física moderna e propusesse que as energias dissipativas do fenômeno que estamos chamando de “dispersão das trajetórias espirituais” afastam-se para se reagruparem em novas configurações. E a experiência de Jesus bem poderia ser capaz de reorganizar as energias. Mas por que não a tradição dos orixás? Por outro lado, a partir de sua experiência parisiense, Villepelet insistia em um dado importante: o caos é contínuo; já é hora de aceitarmos que estaremos sempre em crise e não há situação ideal de equilíbrio. E talvez o equilíbrio mais difícil seja a sutil distinção proposta por Estermann, da qual me aproprio para interromper (sem concluir) estas considerações: ao falar de catolicidade, é preciso distinguir entre o “tudo cabe” (eclético refrão pós-moderno) e o “todos cabem” (este, sim, utopicamente evangélico e evangelicamente utópico). Com certeza, nosso diálogo intra e inter-religioso está apenas começando. E Oxalá continue gerando bons frutos pelos caminhos da vida. Axé! Notas 1 Livre-docente em Teologia (PUC-SP), pós-doutorado em Teologia (PUC-Rio), doutorado em Ciências da Religião (Umesp), mestrado em Teologia Fundamental (P. Univ. Gregoriana, Roma). Professor Associado da PUC-SP, onde leciona e pesquisa no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião. 2 Tratei desse tema anteriormente em Soares, A. M. L. Algunos desafios del diálogo interreligioso en América Latina. Iglesia Viva, 208 (2001), p. 19-29. De forma mais exaustiva em Interfaces da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso (Paulinas, 2003) e No espírito do abbá: fé, revelação e vivências plurais (Paulinas, 2008). 3 Para corroborar sua opinião, o autor cita BERGER & LUCKMANN, 1973, pp. 148 e 164. 4 Ferretti observa (1995, p. 45) que Ramos acaba não distinguindo bem sincretismo de aculturação, além de não entender sincretismo como forma de resistência cultural. Isso diminui a abrangência e a objetividade de sua teorização sobre a realidade. Para Liana Trindade (2000, p. 20), “a concepção de sincretismo como justaposição, fusão ou mistura, conforme se apresenta na teoria antropológica de Artur Ramos, [e outros culturalistas] traz implícita a noção de uma sociedade homogênea e a idealização de uma hegemonia aglutinadora da cultura dominante, em que não há rupturas, nem conflitos entre as diferenciações de conhecimentos”. Ao contrário, a autora constata a “existência, ainda na atualidade, de aspectos cognitivos e afetivos da cultura africana entre brancos e negros brasileiros, assim como a presença de concepções e práticas religiosas divergentes e, muitas vezes, antagônicas em um mesmo contexto social e como explicação e respostas aos mesmos problemas sociais”. 5 Fernandes em 1941; Valente em 1953 (O sincretismo religioso afro-brasileiro). 6 Vasconcelos esclarece que, na visão de Valente, o catolicismo leva grande vantagem no momento da assimilação, pois teria uma superioridade evidente nessa simbiose. Nos casos em que tal superioridade ainda não tivesse se manifestado, só restava aguardar que a “base mental” dos negros cedesse “aos conceitos delicados e sutis do cristianismo” (VASCONCELOS, 1999, pp. 151-153). Culturas e Div. Religiosa.P65 215 21/10/2010, 14:18 216 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 7 S. Vasconcelos reconhece ser difícil, porém, pela falta de material disponível, analisar os sentimentos dos escravos em relação ao cristianismo. O autor não está convencido da diferenciação efetuada por Nina Rodrigues em que negros africanos teriam realizado uma justaposição, enquanto os mulatos seriam iniciadores do processo de sincretismo. E assim se explica: “Nos três séculos de escravidão no Brasil, houve um movimento permanente de chegada de novos escravos vindos da África, mas, ao mesmo tempo, já nas senzalas, nas vilas e cidades, o desenvolvimento de uma população mestiça. Como seria, então, possível afirmar que os dois grupos, africanos e mulatos, possuíram ao mesmo tempo duas posturas diferentes diante do catolicismo, tendo em vista que não houve, até a abolição da escravidão, uma superação do negro africano pelo mulato? Dessa forma é, a nosso ver, difícil de afirmar a localização de uma linha divisória entre os que realizaram uma justaposição estratégica e os que iniciaram o sincretismo” (VASCONCELOS, 1999, p. 153, n. 477). 8 “Os escravos trazidos ao Brasil pertenciam a etnias extremamente diversas, cada uma tendo seus deuses e sua religião. Os negros procuraram analogias entre essas divindades. Frisemos bem: não se tratava de identificá-las, nem de misturá-las, o que seria o verdadeiro sincretismo, no sentido exato e original do termo. Tratava-se de encontrar, entre elas, equivalências. Cada ‘nação’ conserva seus deuses, mas todos esses deuses estão reunidos conjuntamente por séries de equivalências místicas. Apresentam a mesma realidade sobrenatural, mas numa língua diferente; portanto, é necessário compor uma espécie de dicionário que nos permita traduzir uma religião na outra. É claro que a tradução atingirá apenas as semelhanças, não as identidades, pois cada religião tem o seu paideuma” (BASTIDE, 1973, p. 183). 9 Um informante do autor lhe diz que “rezando ladainhas não mistura nada de africano e que em outros momentos celebra festas africanas e não mistura nada de católico”. P. Verger também declara que “candomblé e catolicismo são como água e óleo – podem ficar no mesmo copo, mas não se misturam”. E o mesmo Verger assevera que, “com o passar do tempo, [...] eles se tornaram tão sinceramente católicos quando vão à igreja, como ligados às tradições africanas, quando participam, zelosamente, das cerimônias do candomblé” (FERRETTI, 1995, p. 57). Assim, “... os santos católicos são colhidos nas malhas dessas participações e se, se quiser falar de sincretismo, será preciso acrescentar que se trata de um sincretismo de gênero especial, pois se organizou no interior de uma mentalidade com uma lógica diferente da nossa” (BASTIDE, 1973, p. 185). 10 Guardadas as devidas proporções, creio ter sido uma variável desse terceiro processo que vigorou na constituição do catolicismo negro de Minas Gerais. 11 E conclui o autor: “Esta categoria antropológica afro-brasileira é a base existencial primeira que deve iluminar a compreensão das várias dimensões constitutivas da interpretação desse fenômeno. Todo o drama religioso com a complexidade da sua constelação simbólica deve ser compreendido e analisado com base nessa busca” (VASCONCELOS, 1999, p. 197). 12 Essa é, para Sanchis, “uma tendência das sociedades humanas a entrar num processo de redefinição da própria identidade, quando confrontadas ao sistema simbólico do outro” (SANCHIS, 1996, p. 155). 13 “Se, tradicionalmente, os fiéis afros se viam compelidos a adentrar o catolicismo, o processo contemporâneo faz os negros católicos, em nome mesmo do seu catolicismo, reassumir a religião atávica” (SANCHIS, 2006, n. 50). Em confirmação a essa observação de Sanchis, ver, por exemplo, Rocha, 1994, p. 28. Cf. também Rocha, Negros: um clamor de justiça, 1988. 14 Esse estudo, pela primeira vez, resume e unifica as investigações realizadas por estudiosos argentinos, uruguaios e brasileiros acerca da expansão dessas religiões nessa região. “Este livro constitui, provavelmente, a primeira etnografia sobre a transnacionalização de bens culturais populares no Mercosul” (FRIGERIO, 1999, p. 11). 15 Tal expressão não se refere a uma rígida demarcação territorial; é “uma formulação ideal-típica, cujo valor heurístico reside, sobretudo, no fato de que, num determinado território (Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai), historicamente se desenvolveu Culturas e Div. Religiosa.P65 216 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 217 uma religião de origem africana própria, o batuque, independentemente de outras prestigiosas religiões da mesma tradição, como o candomblé” (FRIGERIO, 1999, p. 20). 16 Eis o depoimento que a autora recolhe de um pai-de-santo: “O Deus cristão coloca o limite, porque o orixá não dá sentido moral do bem e do mal, não dá religiosidade nesse sentido. Para isso, o fiel vai para o catolicismo. Por outro lado, o ‘culto do ori’ [fazendo referência à cerimônia de dar de comer à cabeça do novo adepto com que começa o processo de iniciação] faz você se conhecer. Os orixás são forças da natureza. Essas forças podem servir tanto para se construir como para se aniquilar. Eles não dão limites. Então, para essa religiosidade, a gente necessita lançar mão do catolicismo” (SEGATO, 1998, p. 78). 17 Essa qualidade do candomblé é discutida em Segato, 2005. 18 Cf. depoimentos recolhidos durante a IIª Consulta Ecumênica de Teologia e Culturas Afro-Americana e Caribenha (nov./1994. Arquivo do Grupo Atabaque). 19 Ver também Dantas, Repensando a pureza nagô. Religião e sociedade. pp. 15-20. 20 O autor alia-se aqui a R. Da Matta, para quem “é uma característica brasileira (...) a facilidade de inventar relações, de criar pontes entre espaços, de unir tendências separadas por tradições distintas, de sintetizar, de ficar no meio” (DA MATTA, 1991, p. 117). 21 O autor adverte, porém, que “nem todas essas dimensões ou sentidos de sincretismo estão sempre presentes, sendo necessário identificá-los em cada circunstância. Numa mesma casa e em diferentes momentos rituais, podemos encontrar assim separações, misturas, paralelismos e convergências” (FERRETTI, 1995, p. 91). 22 Cito a fala de J. Estermann ((MWI, Aachen)), bem como as Atas do Simpósio foram publicadas em Hadwig Müller & Denis Villepelet. Risquer la foi dans nos sociétés: Églises d’Amérique latine et d’Europe en dialogue. (Paris: Karthala. Coll.: “Chrétiens en Liberté”, 2005. 343p). 23 Ibidem. 24 Esta última é a que adoto em meu último livro: No espírito do Abbá: fé, revelação e vivências plurais (Paulinas, 2008). 25 Professor do Institute Catholique de Paris. 26 Henri-Jerôme discordou depois dessa última afirmação. Para ele, só quando há amor é possível pecar, pois somente quem ama reconhece o pecado. Não vejo contradição, mas ênfases complementares em nossas perspectivas. Quem ama está mais alerta ao dano que se comete contra as pessoas; mas o ato amoroso em si não é pecaminoso, embora, pela nossa própria concupiscência, no sentido que K. Rahner deu a esse termo, ele sempre será um gesto ou atitude mesclado, ambíguo. REFERÊNCIAS AUGRAS, M. O duplo e a metamorfose: a identidade mítica em comunidades nagô. 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O mito é a armadura que protegerá os seres vulneráveis, a casca que defenderá na lagarta o que ela poderá ser no futuro... Em certos casos a história de um povo não está no ontem, mas no amanhã: uma necessidade de existência dos seres, o esqueleto que sustentará a carne da palavra retomada (GONZÀLEZ, 1980). O fator religioso e mítico coloca diante de nós o desafio de resignificar o que entendemos por mística ou espiritualidade. Não! Não é tática nem só estratégia! Não é dinâmica de grupo nem encenação! Pensar a educação popular e a religião popular como cascas de lagartas, exercícios do mito, estruturas cotidianas de reinvenção que sustentarão a palavra retomada de novas relações sociais de poder. Como religião imposta o cristianismo não tem contribuição positiva. Não há maneira de mudar essa avaliação sem comprometer os dados e as interpretações da história já conhecida por todos/as. O cristianismo oficial entre nós foi mecanismo eficiente de violenta expulsão da história dos povos de muitos nomes e muitos deuses e deusas. O cristianismo deixa de ser religião imposta quando, finalmente, olha nos olhos do continente, nas muitas caras de muitos povos... quando aceita ser uma religião entre outras, uma possibilidade salvadora entre outras. Assim... o cristianismo pode deixar de ser religião imposta para ser religião acolhida, apropriação popular marcada pelo sincretismo. Nossa possibilidade de reinvenção e superação do cristianismo comprometido com o poder das elites está na história precária da evangelização, na qual fomos subevangelizados, mal-evangelizados, semievangelizados. Uma avaliação dos 500 e tantos anos de conquista das Américas não pode desprezar ou menosprezar o peso que a questão religiosa tem assumido na formação da identidade latino-americana, de modo especial o catolicismo ibérico, que tem moldado ideológica e culturalmente o continente. Sem restringir o impacto civilizatório somente entre seus fiéis, o catolicismo é, na verdade, matriz reguladora de comportamentos e atitudes, forjador de normas e parâmetros. Culturas e Div. Religiosa.P65 219 21/10/2010, 14:18 220 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Se for verdade que o catolicismo identificado com o Estado tratou de dificultar a chegada de missões protestantes no continente sulamericano, também é verdade que o protestantismo que aqui chegava não oferecia alternativas que viabilizassem outro modelo de sociedade, a convivência entre cristãos e entre outras religiões. Marcado pela etnia ou por interesses de expansão de modelos missionários norte-americanos, o protestantismo latino-americano participou também no estabelecimento do clima de proselitismo e intolerância que caracteriza as relações interconfessionais no continente. Outras religiões também se viram forçadas a se estabelecer no continente, movimentando-se no interior de opções e espaços sob influência hegemônica do catolicismo oficial. Também, nesses casos, o proselitismo classista ou o vínculo étnico circunscrevia os limites que cada grupo poderia pretender, fazendo com que assumissem ares folclóricos ou de curiosidade tolerável, uma vez que não questionavam as estruturas sociais impostas. Monólogo vencedor, violenta liturgia, o cristianismo nas Américas se confunde com o modelo civilizatório do homem branco ocidental. Pai, patrão, senhor, marido. Intransigente e intolerante, o cristianismo combate e devora até mesmo suas variáveis e alternativas, tornando quase impossível o diálogo entre cristãos. Mas tem sido as mulheres do continente - dos povos indígenas, das nações africanas ou europeias - que mais têm sofrido com a fala e as práticas de exclusão do cristianismo: El choque cultural de la conquista ibérica de la América Central y Sur asume una dimensión especialmente trágica para las mujeres autóctonas. La agonía de los viejos dioses y diosas es un proceso traumático tico que arrastra consigo toda una visión del mundo, de los hombres y mujeres y de sus interrelaciones: la nueva ética, la nueva moral del severo cristianismo español de la Contrarreforma, cuando no es coartada para los explotadores y violadores, resulta amargo veneno que enturbia lo que era el placer erótico. Ni la bondad de sacerdotes individuales como de Las Casa, ni la dulzura inherente al Evangelio bastan para salvar a los americanos de la miseria sexual que ser su destino hasta hoy (MARCOS, 1988). Ao passar por cima de modelos outros de organização social, os conquistadores reforçaram os mecanismos de opressão da mulher que, de modo diferenciado, já perpassavam outras culturas. Na imposição do modelo patriarcal ocidental cristão, os colonizadores estabeleciam não só o domínio de uma civilização sob outras... mas estabeleciam e reforçavam o domínio do masculino. A religião cristã não só cumpriu um papel importante na consolidação do modelo de exploração econômica e política, como também foi elemento primordial de justificação do poder masculino e da subordinação das mulheres como elemento intrínseco e natural. Aqui, a análise precisaria ser elaborada a partir de muitos referenciais, fazendo interagir as questões de classe, gênero e raça para uma avaliação que desse Culturas e Div. Religiosa.P65 220 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 221 conta das particularidades e, ao mesmo tempo, tratasse do fenômeno social do feminino excluído da cultura e das culturas, da espiritualidade e das espiritualidades. Não é suficiente lamentar e registrar o sofrimento milenar dos povos primeiros do continente; ainda é pouco denunciar o massacre de povos e culturas quase que por completo... o lamento, o registro, o estudo e a denúncia precisam assumir o caráter sexista da conquista das Américas. Ao assumir essa característica tanto a metodologia historiográfica como a teológica passam a exigir instrumentais e procedimentos de desconstrução e crítica das estruturas e linguagens religiosas exclusivamente masculinas. A ideia de um continente consensualmente cristão já não resiste a um teste de opinião pública. Somos um continente com pluralidade religiosa. Costumávamos falar da África e da Ásia como sendo continentes com diversidade de religiões e, por isso mesmo, marcados por conflitos. Nós, latino-americanos, de certo modo, orgulhávamo-nos de nosso cristianismo. A emergência de movimentos de libertação, étnicos e de mulheres ao lado das organizações populares e a tentativa de recuperar a história a partir dos pobres, de fazer teologia a partir e com os pobres revelaram um continente cortado por religiões, deuses e deusas. Essa descoberta tem trazido desafios enormes para o cristianismo-já-não-tãohegemônico: uns querem resolver a contradição com um pedido apressado de desculpa e uma rápida justaposição de religiosidades e divindades dizendo...é tudo a mesma coisa! Deus é um só! Incorpora-se, na liturgia e na pastoral das igrejas, um ou outro elemento de outros cultos e divindades, fazem-se ajustes e recauchutagens teológicas... tudo rápido e simples num proselitismo disfarçado de ecumenismo Na pressa acabam reforçando os esquemas de dominação e exclusão. Roubam os cultos e os deuses e deusas dos outros/outras... para que fiquem obedientes e contentes dentro dos limites impostos pelo cristianismo. Muitos chamam isso de inculturação. Outra possibilidade tem sido a de tratar da religião dos outros/ outras como tema de estudo, exotismo a ser explorado, vídeo a ser feito, terreiro a ser visitado, conferência a ser feita, livro a ser publicado... num exercício de tolerância que, reduzindo a fé - do outro/a - em coisa, foge-se do enfrentamento e crítica do suposto lugar de consenso e liderança que o cristianismo goza nas sociedades latino-americanas. Reduzidos à tese de doutorado, os deuses e deusas do continente continuam encurralados por esse olhar aparentemente displicente e desapaixonado, mas que, a partir da objetividade científica, continua servindo aos interesses de um cristianismo que come na mesa do poder. Difícil tem sido aprender que somos uma religião entre outras, que nosso Deus é único só dentro de nossas tradições, igrejas e credos, mas tem que conviver com outras divindades no dia a dia da vida dos povos pobres, do continente latino-americano. Difícil tem sido perder a pose de monoteísmo esclarecido, de ecumenismo compreensivo para aprender a conversar e conviver, de igual para igual, com o sagrado plural. Culturas e Div. Religiosa.P65 221 21/10/2010, 14:18 222 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Uma reflexão que pretenda se ocupar das religiosidades populares deve aceitar o desafio de revisão da forma do discurso. Na afirmação da reflexão construída a partir das falas e narrativas das práticas religiosas das classes populares - especialmente mulheres - contraria-se o discurso competente de ordenação da realidade de domínio exclusivo dos dominantes - especialmente homens - e seus instrumentais de controle da ciência, da história, do documento, dos sentidos. A pluralidade de falas não deve ser vista como obstáculo à objetividade da reflexão, mas como matéria-prima fundamental para a produção de um conhecimento do real que reconhece o tecido social como malha complexa de relações. A emergência de novos atores sociais, até então negligenciáveis, e o reconhecimento da multiplicidade dos processos e dos agentes constitutivos das práticas sociais populares trazem a necessidade da crítica das metodologias desenvolvidas e a construção de instrumentais que deem conta da presença de agentes como mulheres, crianças, minorias, raças, trabalhadores da economia informal e suas expressões culturais e religiosas. De acordo com Carlos Rodrigues Brandão (1980, p. 296): Talvez, a melhor maneira de se compreender a cultura popular seja estudar a religião. Ali ela aparece viva e multiforme, mais do que em outros setores de produção de modos sociais da vida e de seus símbolos; ela existe em franco estado de luta acesa, ora por sobrevivência, ora por autonomia, em meio a enfrentamentos profanos e sagrados, entre o domínio erudito dos dominantes e o domínio popular dos subalternos. O problema é que a religião e, em particular, as expressões populares de religiosidade, sempre foram vistas com muita desconfiança por historiadores e cientistas sociais... até mesmo por teólogos! Relegadas ao campo da alienação, as religiões populares eram avaliadas como obstáculos à construção da consciência de classe e entendidas como instrumentos de dominação por parte dos dominantes. Uma idealização das CEBs (comunidades eclesiais de base) pode reinventar a máxima “fora da igreja não há salvação” pela fórmula: “fora das CEBs não há salvação”, imobilizando a radical encarnação do evangelho na cultura. Brandão chama a atenção para dois enganos: primeiro, o que reduz a discussão ao âmbito da história e da etnografia, e um segundo, que se expressa na lógica funcionalista, que vincula mecanicamente o serviço prestado por agentes do sagrado a determinados grupos sociais como legitimação pura e simples de determinada ordem social. Dizer da educação e da teologia da libertação não pode ser um projeto dominado por uma temporalidade ordenada, linear, tratando de alinhavar bem-sucedidas prosas teológicas. Não! Não será pela lista pródiga de livros e escritos, nem pelo número de conferências e ouvintes. Não se poderia avaliar a educação popular a partir dos nomes de seus filhos mais ilustres... Parida na luta de classes dos terríveis anos de chumbo na América Latina, o pensamento crítico latino-americano não pode ser uma montagem seletiva de autores, ideias e escritos. Culturas e Div. Religiosa.P65 222 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 223 O cristianismo deixa de ser religião imposta, quando, finalmente, olha nos olhos do continente, nas muitas caras de muitos povos... quando aceita ser uma religião entre outras, uma possibilidade salvadora entre outras. O processo de inculturação do cristianismo na América Latina exige a quebra da hegemonia dos modelos de cristandade trazidos de fora (católico e protestante) e inaugura um complexo e ininterrupto processo de formatação eclesial. Assim... o cristianismo pode deixar de ser religião imposta para ser religião acolhida. Esse é um processo complexo e exuberante, que tem sua explicação mais desenvolvida nos esforços da teologia da libertação, mas não pode ser resumido a esta expressão2. Meu lugar de inserção é a Teologia e a Bíblia: mas, não! É meu lugar de interpretação e produção de conhecimento. O texto organizado por Raúl Vidales de 1982, Volveré... y seré millones3 apresenta uma reflexão sobre “El sujeto historico de la Teologia de la Liberación” e abre para o debate com Enrique Dussel, Hugo Asmmann, Jurgen Moltmann, Luis Rivera Pagan e outros (num tempo em que as teólogas ainda não existiam, eles diriam!). As perguntas e os debates são extremamente honestos, quase severos, difíceis. Nada fica intacto! Tudo pode ser criticado! Dussel (1985) dispara: si la teologia parte de la teologia, entonces yo tomo el Worterbuch de Kittel. Si la teologia parte de la comunidad cristiana, entonces yo parto de la historia de la iglesia. Pero si la teologia quisiera partir de la realidad concreta de la acción de esas mayorias oprimidas el problema es mucho mas complejo y exige uma precisión categorial mayor también. Nesse diálogo se pode perceber as inquietações da Teologia da Libertação e as implicações metodológicas para a investigação bíblica: a Bíblia mesmo não é o ponto de partida, nem a motivação. Mas, então, deveria haver um suposto de que o “camponês/sujeito popular” é cristão e lê a Bíblia. Seria, então, necessário estabelecer que a Bíblia é central na(s) religiosidade(s) do “camponês/sujeito popular”. Enuncio meu exercício, lembrando que: Aprendemos com Marx e Engels que as ideias não têm história. Naturalmente não se discute que haja uma história das ideias, mas o que se quer dizer é que a força impulsionadora dessa história não são, de novo, ideias, e sim que a história material forma o subtexto da história ideal. (HAUG, site, 2009) O teólog@, entre os viventes, é o canibal, um ‘polemista’ (do grego pólemos = luta, combate). A teologia como linguagem polêmica, de luta, com sua lógica alegórica criando uma distância explícita entre os signos e as coisas, de tal sorte que o mundo da linguagem se torna plural. Compreendido como valor, como mediação, deixa de impor um sentido único, automático e viciado da significação. Culturas e Div. Religiosa.P65 223 21/10/2010, 14:18 224 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) A Teologia da Libertação não explica: desexplica! Sem caráter descritivo, não se contenta em estabelecer nexo causal entre isso e aquilo, Deus e o mundo. A teologia atrasa relógios, ataca o mecanismo de permanência e constância, desinstala o tic-tac ininterrupto e participa da criação desse tempo de agora, o momento exato em que é possível intervir, alterar, destruir, transformar. Como narrativa e ritual, a teologia pode fissurar o tempo e estilhaçar o fluxo vazio do tempo passante do “progressismo” burguês. E Deus também não pode ser “o grande relógio” a marcar o tempo e a história como mecanismo fora do tempo mesmo e da história. A teologia burguesa de um deus intervencionista e onipotente funcionou e funciona como normatizador do relato dos vencedores. O deus de Jesus, encarnado na história, morre na luta dos pobres e ressuscita na luta dos pobres, não como fator de certeza e justiça predestinadas, mas como exercício constante de radical solidariedade e amor revolucionário, profunda misericórdia e fidelidade à vida. Assim, não há certezas escatológicas nem especulações metafísicas garantidoras de uma ação divina realizadora da justiça... que confortem teólogos e teologias em suas cátedras “rasas e confortáveis”... parafraseando o mesmo Mariátegui: A teologia burguesa se satisfaz com uma crítica racionalista do método, da teoria, da técnica das práticas pastorais... Que incompreensão! A força dos agentes eclesiais de base não reside em sua ciência e sim em sua fé, sua paixão, sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária [...] é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas e sociais (MARIÁTEGUI, 1925). Escolho minhas polêmicas. Escolho meus materiais de imaginação e desejo sem precisar me explicar demais: trabalho com os estalidos da realidade não mais como destino ou necessidade, mas desconhecendo qualquer fronteira entre orgasmo e terremoto no corpo da minha história pessoal e coletiva, no corpo subevangelizado dessa América Latina. Minha referência não é a teologia, nem a igreja... nem a Teologia da Libertação, nem as CEBs ou outra eclesialidade. Na lida entre a história, a antropologia e o corpo, essas dimensões se confundem e se afirmam já como exercício de teologia feminista. 1 Das Leituras Populares Um camponês achava estranho que o padre da paróquia lia um trecho da Bíblia a cada domingo, e cada domingo a Bíblia lhe dava a razão. O camponês dizia: “Não pode ser que a Bíblia sempre dê razão ao padre e nunca a nós, os camponeses. Acho que o padre não lê tudo, mas escolhe o que lhe convém”. E assim foi: os textos propostos pela liturgia eram textos selecionados e os pregadores comentavam o que lhes convinha. Ora, o que interessava aos camponeses era justamente o resto, aquilo que os clérigos não liam e muito menos comentavam (COMBLIN, 1985). Culturas e Div. Religiosa.P65 224 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 225 Essa pequena narrativa, apresentada por José Comblin, faz parte da Introdução Geral do Comentário Bíblico Latino-Americano, de 1985. O texto inicia afirmando: Este é um comentário latino-americano da Bíblia. Na forma de parábola, o autor apresenta a identidade e as motivações do Comentário Latino-Americano. De um lado, o “camponês” e sua desconfiança. Do outro lado o “padre da paróquia” e seu controle sobre o texto bíblico. Esse encontro entre a desconfiança do camponês e o poder do padre acontece “a cada domingo”, no espaço da “liturgia”. O poder de seleção e comentário dos textos bíblicos pertence ao “padre”, que exerce sua leitura com a autoridade de “escolher o que lhe convém”. O “camponês” tem o poder da suspeita, de ouvir a leitura e identificar as lacunas de sentido, identificar o texto atrelado às “razões do padre” e desautorizar a Bíblia por seu desinteresse com a “razão camponesa”. A desconfiança do “camponês” se expressa na fórmula: “não pode ser!” como intuição de que a Bíblia não está sendo comunicada na sua inteireza - “o padre não lê tudo” - e como reivindicação de que da Bíblia se leia o que “interessa aos camponeses”. Esse texto traduz bem o momento da leitura bíblica latinoamericana, em 1985, no âmbito das lutas de libertação que atravessavam o continente, dos movimentos de resistência contra a violência de ditaduras militares, a organicidade dos processos de educação popular e na radicalidade evangélica da Teologia da Libertação. Assim como no espaço da educação, os conflitos da luta de classes se expressam também no espaço eclesial, nos “domingos” e em suas “liturgias”, no poder desigual entre o “padre” e o “camponês”, na leitura bíblica marcada por interesses contrários, na luta pelo processo de produção, gestão e socialização de significados de crença. A leitura da Bíblia controlada por um corpo burocrático sacerdotalintelectual impede que leigos tenham acesso ao processo hermenêutico e participem da produção dos significados teológicos. Mais do que a oposição clero-leigo, a leitura popular assume a contradição de classe no âmbito do espaço da educação e da produção de conhecimento, na oposição entre um segmento de controle de saber versus o saber “camponês”. A educação e a leitura popular assumiam – e assumem -, assim, a parcialidade hermenêutica como valor, inviabilizando qualquer tentativa e pretensão de universalidade e objetividade de qualquer comentário outro. Os conhecimentos produzidos, também no campo das ciências bíblicas, são historicamente e politicamente engendrados, vinculando os conceitos e as formulações teóricas e interpretativas às relações sociais de poder vividas e experimentadas. A pretensão de fazer educação e interpretação na prática do povo é apresentada como um projeto assumidamente “parcial”, “vivido” e “experimentado”, que se insere numa prática real, numa trajetória política Culturas e Div. Religiosa.P65 225 21/10/2010, 14:18 226 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) e organizativa. Essa explicitação do caráter de conflito da produção de conhecimento e de significados é vital nas formulações metodológicas e implica um reconhecimento do campo religioso latino-americano, marcado pela luta de classes e por interesses de classe. 2 Os Lugares Plurais da Educação e da Leitura Popular: Cotidianos A exigência de partir da realidade concreta das maiorias exige maior precisão de categorias de análise, mas não substitui a “ação das maiorias oprimidas”, que era assumida como o lugar da experiência. O pensamento crítico latino-ameircano assume a experiência de vida das maiorias oprimidas como ponto epistêmico e hermenêutico. Uma distinção entre ponto de partida e motivação pode ser importante aqui. Tomar a experiência das maiorias oprimidas como ponto de partida pode reduzir a experiência da realidade a casos exemplares, sem intervenção real na construção do conhecimento mesmo. Assim será possível identificar as práticas, textos e leituras do período que assume a realidade das maiorias oprimidas como prólogo de estudos, exemplos sem interferência efetiva nos procedimentos de crítica e análise, limitando-se, muitas vezes, à delimitação do tema. Temas populares, introduzidos por relatos da vida do povo, seguidos de procedimentos de crítica tradicionais. Se entendermos a realidade das maiorias oprimidas como motivo e motivação, devemos identificar a materialidade dessa experiência, interferindo e modificando o método, subordinando os procedimentos metodológicos às materialidades da experiência dessas maiorias oprimidas. O processo de concretização da razão das maiorias oprimidas vai se diversificando na difícil articulação entre classe – gênero – etnia. Quando o camponês estranhava a leitura do padre nas liturgias dominicais, expressava um estranhamento cultivado na leitura comunitária e militante da Bíblia. Um aprendizado de instrumentos de análise e interpretação que formatou e continua formatando um sem número de comunidades que leem a Bíblia a partir da realidade. O método se curva diante da vida material, da vida cotidiana e faz da hermenêutica bíblica um exercício comunitário de construção de significados existenciais e sociais. A Bíblia é livro de religião. A Palavra de Deus não está no Livro... mas no encontro da vida no texto com a vida na realidade. Eu sou - e muitos somos - herdeira e aprendiz desse processo nos últimos 20 anos, na América Latina. A consciência é material. Na conversa registrada no livro de Raul Vidales (1982) há um diálogo interessante. Jurgen Moltmann pergunta: “por qué tenía que llegar a ser cristiano? Si comienzo por este método no veo razón de hacerme cristiano.” Responde o jovem Hugo Assmann: Culturas e Div. Religiosa.P65 226 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 227 Aquí sí me vuelvo materialista. Se trata de la última instancia material de la vida real. Ni Marx ni yo jamás hemos dicho otra cosa: la vida, la produción de la vida real, la reproducción de la vida real, la reproducción de las condiciones de la vida real... La consciencia es material. El funcionamento de todo lo que implica la capacidad de la alegria, la capacidad de pensar, la capacidad real de gustar la belleza, todo eso es material porque se inscribe en el ser material de los hombres. Esa última instancia de la vida para mi... no puede ser contestada sin la intromisión de uma transcendentalidad em el seno de la vida real... en el encuentro entre el materialismo histórico y los reclamos más originales de la tradición judío-cristiana. 3 Cotidianos Ágrafos – um Exercício de Não-Leitura Bíblica Mas, de que maneira se pode dizer que esses esforços, estudos e práticas do movimento bíblico expressam/objetivam a razão camponesa ou a razão das maiorias oprimidas? De que maneira a leitura popular da Bíblia participa do esforço emancipatório da construção da razão dos oprimidos na América Latina e de seus projetos revolucionários? O cristianismo é uma religião de livro, de leitura, de alfabetizados... tanto no modelo fundamentalista de repetição literal como no modelo crítico-histórico de interpretação. Na América Latina, as maiorias oprimidas, em especial o campesinato, participam de maneira limitada das oportunidades de educação. As maiorias oprimidas são subalfabetizadas e, o mais importante, pertencem a um mundo ágrafo, isto é, um mundo de representação cultural em que a escrita/leitura não são hegemônicas. Se for verdade que houve/há um sistemático e criativo processo de “alfabetização” nas experiências das comunidades de base e das pastorais sociais, na expressão de processos de educação popular de interpretação da realidade, interpretação do texto bíblico e das comunidades como agentes de intervenção e espiritualidade, esse modelo não pode ser idealizado nem silenciar outras formas culturais das maiorias oprimidas. Se, por um lado, existe o esforço de tradução da Bíblia para línguas indígenas ou a produção de traduções na linguagem de hoje, mais acessível, o grande desafio, por outro lado, continua sendo não deixar que a centralidade/ autoridade da leitura/escrita bíblica continue sendo elemento de destruição das formas culturais que não dependem da leitura/escrita. Bruna Franchetto (2009, site), por exemplo, aponta alguns dos pontos principais da preocupação dos linguistas quanto à situação de “comprometimento lingüístico ou línguas em perigo de extinção”: • “Nos 500 anos que se seguiram à chegada dos europeus, aproximadamente, 85% das línguas indígenas do Brasil foram perdidas”; • “O Brasil continua sendo um país com a mais alta densidade linguística (muitas línguas diferentes em um mesmo território) e uma das mais baixas concentrações demográficas por língua (muitas línguas e poucos falantes)” (FRANCHETTO, 2009, site). Culturas e Div. Religiosa.P65 227 21/10/2010, 14:18 228 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) A leitura popular da Bíblia também deve ser identificada no avesso dos grupos de base, organizados nas formas dos movimentos sociais, isto é, no complexo mundo das pentecostalidades latino-americanas. Esta pentecostalidade tem como característica comum a relação autônoma com formatações do cristianismo histórico (católico romano ou protestante). A Bíblia funciona como objeto de poder sem exigir tratamento históricocrítico, curvando-se a um uso simples, narrativo, alegórico e imagético. Carrega-se a Bíblia. Canta-se a Bíblia. Repete-se a Bíblia... sem precisar estudar, sem precisar do especialista e do tradutor. O perigo real de leituras fundamentalistas e rasteiras é relativizado pela extrema fluidez do texto e pelos excessos de interpretações. Tal fluidez evidencia um acelerado processo de desnormatividade do texto e um movimento constante de deslocamento da autoridade bíblica. Sem os instrumentos de poder e de autoridade eclesiáticos e científicos, o livro é facilmente acessado e usado, inviabilizando hegemonias interpretativas. Outra variação “variadíssima” e antiga é a presença do texto bíblico nas festas populares brasileiras, em que é muito difícil dizer onde começa e onde termina o religioso. As maiores contribuições da Bíblia à cultura nacional foram: construção de acervo para as diferentes narrativas da literatura brasileira; narrativas e enredos bíblicos começaram a servir de tema para muitas expressões da arte; as religiosidades passaram a usá-la como devoção particular; narrativas e personagens fazem parte do imaginário nacional (MAGALHÃES, 2009). A presença das narrativas e imagéticas bíblicas nas festas populares brasileiras também desafia as lógicas discursivas e controladoras das igrejas tradicionais. Numa apropriação laica, não dogmática, mas, sim, performática, as festas populares dialogam com as tradições bíblicas nos espaços híbridos do sagrado e profano, e na ambiguidade do calendário religioso latino-americano. Assim, as festas de junho associadas a São João e os cantos de cururu, no centro-oeste brasileiro, reinterpretam a vida e morte de João Batista, mesclando informações bíblicas com elementos da cultura religiosa local (SOUZA, 2004); também na Festa de Sairé: Promovida há cerca de 300 anos pela comunidade de Alter do Chão, em Santarém, no Pará; o Sairé é um semicírculo de madeira, que contém o relato bíblico do dilúvio: o grande arco representa a arca de Noé; os espelhos, a luz do dia; os doces, as frutas; a abundância de alimentos existentes na arca, o algodão; o tamborim, a espuma e o ruído das ondas durante os 40 dias de dilúvio. Os três semicírculos simbolizam a Santíssima Trindade (FESTA, 2009). Também os festejos da Folia de Reis, que acontecem entre o Natal e o dia 6 de janeiro, onde grupos de cantadores e músicos trajando fardamento colorido percorrem as ruas de pequenas cidades brasileiras, entoando cânticos bíblicos que relembram a viagem a Belém dos três Reis Magos (Baltazar, Belchior e Gaspar) para dar boas-vindas ao Menino Jesus. Culturas e Div. Religiosa.P65 228 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 229 Do lado de fora, os palhaços vestidos a caráter e cobertos por máscaras, representando os soldados do rei Herodes, de Jerusalém, dançam ao som do violão, do pandeiro e do cavaquinho, recitando versos. Estas festas populares são vividas simultaneamente com as práticas eclesiais e as normatividades bíblicas, escapando dos olhares teológicos e exegéticos, e sendo melhor estudadas no campo da antropologia cultural (PESSOA; FÉLIX, 2007). Para uns é superstição, mas, para os foliões, apenas a fidedignidade à narrativa bíblica. É assim que eles são rigorosos às normas e rituais, sempre relembrados e estudados, antes de seguirem o trajeto. O jovem Reinaldo Pessoa, de 24 anos, é um dos mais emocionados e compenetrados. Pudera. Sua função – a de embaixador – requer improviso, agilidade, oralidade e, sobretudo, conhecimento da tradição. “Dentro da folia, narro a história cantando... Só que não tem nada decorado. É tudo no improviso mesmo. O que precisa saber é a história dos Reis Magos (TRADIÇÃO, 2007). Assim, a referência à razão camponesa ou às maiorias oprimidas não pode ser reduzida a formas eclesiais de organização, mas precisa ser expressão abrangente e complexa das formas religiosas das classes populares na América Latina. O reducionismo às formas consagradas das comunidades eclesiais de base ou a outros processos eclesiais de leitura da Bíblia restringe e atrofia a dimensão vital da presença da Bíblia nas múltiplas formas das culturas populares latino-americanas, como resistência, apropriação autônoma e disputa dos imaginários de poder da religião imposta (NORGET, 1997). Nas palavras de Humberto Cholango: La vida nos ha enseñado que al “árbol se lo conoce por sus frutos”, como dijo el Cristo, y sabemos distinguir quien le sirve en los pobres y quien se sirve de ellos. Cabe comunicar al Pontífice que nuestras religiones JAMAS MURIERON, aprendimos a sincretizar nuestras creencias y símbolos con las de los invasores y opresores. (RESPOSTA, 2009). Para além das sistemáticas teológicas, para além das dogmáticas e metafísicas, para além do texto emoldurado por metodologias, a leitura popular da Bíblia escapa das tentativas de controle e se realiza como linguagem, descosturando as intencionalidades de um projeto de evangelização/colonização opressor e se misturando com outras figuras, outros mitos, outras possibilidades e rituais diversos. Mais do que uma teologia da hermenêutica do símbolo – dizia Dussel (1985, p. 283) - que se esgota na identificação da cultura popular como forma de resistência, o desafio de uma teologia da libertação continua sendo o de dissolver as fronteiras eclesiológicas e cristológicas, recusando qualquer triunfalismo cristão latino-americano e recolocando a Bíblia em relação. Não se trata do sincretismo asseado e sutilmente violento das inculturações que perpetuam a conversão e a inserção do sagrado dos outros, na ordenação tolerante da cristandade. Significa perceber a religião da Bíblia como uma religião entre outras, de forma plural, descentrada, fragmentada e conflitual (CANEVACCI, 1996, p. 14). Culturas e Div. Religiosa.P65 229 21/10/2010, 14:18 230 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 4 Cotidianos Erotizados: Religiões e Relações Sociais de Gênero As mulheres dos muitos povos indígenas, as mulheres dos muitos povos negros e as mulheres pobres do continente europeu produziram formas de resistência e sobrevivência de sua espiritualidade que, de certo modo, confundem-se com a possibilidade de sobrevivência também da identidade cultural. Alguns exemplos que vêm sendo estudados (A mulher mexicana no Movimento Cristero; Mulher mapuche e cristianismo: reelaboraçåo religiosa e resistência étnica; As muitas formas da devoção de Maria e inculturação na pesquisa Maria e os pobres: um modelo de ecumenismo evangelizador (MARCILIO, 1984); Religiosidad popular y mujer andina (TAMEZ, 1986, p.189); O poder do feminino no culto aos orixás (TAVARES, 1990, p.157) apresentam um quadro complexo e estimulante no resgate das teologias de mulheres nesses 500 anos. Maioria absoluta do grupo “dos” fiéis, minoria absoluta nas hierarquias administrativas e acadêmicas, as mulheres tiveram que conviver com o domínio masculino, aceitando-o e negando-o ao mesmo tempo, gerando expressões religiosas que, se formalmente não superam a intolerância e o proselitismo que marcam as instituições, tecem uma rede ecumênica que habita o sagrado nas relações do cotidiano. Talvez nas religiões afro e índias e no cristianismo popular ainda se encontre elementos, não de uma fantasiosa supremacia e fraternidade natural de mulheres, mas núcleos privilegiados de expressão de uma religiosidade extremamente vinculada com a luta diária pela vida. O que se sabe dessas culturas aponta para uma estrutura patriarcal. Mas, nas formas de resistência das mulheres, é possível encontrar elementos que vislumbram outras formas de organização e convivência que não puderam se apresentar como alternativas de modelo civilizatório nas Américas, uma vez que o paradigma do cristianismo tratou de silenciar e anular possibilidades. O que se encontra no sincretismo religioso popular, tanto nas religiões afro como no catolicismo popular, como no pentecostalismo e em outras expressões, não poderia ser chamado de campo religioso privilegiado e livre de mulheres, porque não o é. Mas seria possível reconhecer elementos de expressão de uma espiritualidade de resistência de mulheres. O campo vasto e complexo das religiões populares seria mais propício a isso, porque foge, de certo modo, do controle das hierarquias, todas elas masculinas. Na pesquisa, O poder feminino no culto aos orixás, Cristiane Cury e Sueli Carneiro afirmam que: [...] a organização social do candomblé procura reviver a estrutura social e hierárquica de reinos africanos que a escravidão destruiu, porém, na diáspora esta forma de organização visa reorganizar a família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo e, ainda, a transmutação nos deuses africanos serem a fonte de sustentação dessas mulheres para o confronto com uma sociedade hostil (CURY & CARNEIRO, 1990, p.159). Culturas e Div. Religiosa.P65 230 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 231 Aurora Lapiedra registra experiência semelhante no que diz respeito à Religiosidad popular y mujer andina: La mujer andina es un artífice fundamental en la nucleación de relaciones para el desarrollo de la actividad agropecu ria...Tres elementos se hallan constituyendo una importante y dinâmica unidad: la agricultura, la familia y la mujer. La interrelación entre ellos constituye uno de los espacios más privilegiados por donde circula la religiosidad andina (LAPIEDRA, 1986, p. 52). Essas religiões populares articulam muito mais o espaço da casa, da família e da sobrevivência diária, cotidiana das populações. Daí, talvez, a explicação para o grande número de mulheres que atuam e até mesmo lideram esses grupos religiosos. No candomblé, no pentecostalismo, no catolicismo popular e até mesmo nas CEBs e nas congregações femininas, sem querer pretender uma utópica liderança e expressão exclusiva de mulheres, o que se pode perceber é a viabilização da espiritualidade da mulher. Os doentes, o casamento, as crianças, as comidas... coisas da casa e de rotina doméstica se revestem de linguagem religiosa e recebem tratamento teológico. Nas orações e nos trabalhos, nos serviços prestados e nas comidas das festas, a mulher traduz sua relação com o sagrado. Essas formas de expressão se mostram de modo ambíguo, uma vez que passam pelo crivo do poder masculino. Nessa ambiguidade, as expressões religiosas das mulheres encontram os espaços de sua resistência e de sobrevivência. Esta ambiguidade não só deve ser entendida como limite, mas deve ser avaliada como elemento fundamental da espiritualidade feminina, uma vez que o caráter ambíguo da mulher é visto de formas diferenciadas em todas as religiões, merecendo, por isso, uma legislação especial, ou o afastamento no estabelecimento do tabu de determinadas práticas, como o sacerdócio, e a negativa do acesso pleno a todos os níveis desta ou daquela organização religiosa. Ao esvaziar a mulher e seu corpo do sagrado e ao permitir o estabelecimento de uma dupla moral violentadora da dignidade das mulheres dos povos conquistados, a evangelização no continente passou por cima de alternativas de religiosidade que consideravam a mulher, seu corpo e a sexualidade de outra maneira. De acordo com a pesquisa de Sylvia Marcos, a partir da análise de tradições de povos mexicanos: Mientras el sexo huele a sucio en todo el continente cristiano y todas las energías se dedican al ascetismo negador del impulso sexual, las culturas arcaicas de América colocaban al centro de rituales religiosos. La espiritualidad sexual americana tuvo en sus sacerdotisas, celebrantes privilegiadas...A través de la represión del erotismo indígena, la moral católica logró sacudir las bases de la cosmovisión americana (MARCOS, 1988, p. 31) O mesmo poderia ser avaliado na experiência dos povos africanos que tiveram Culturas e Div. Religiosa.P65 231 21/10/2010, 14:18 232 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) o horizonte simbólico africano [...] desarranjado a partir do seqüestro de corpos biológicos, humanos, mas também dos corpos das representações materiais produzidas artisticamente como expressão do agir e do pensar no seu mundo cotidiano (TAVARES, 1990, p.133). O cristianismo se mostrou decididamente violento na erradicação dos cultos e gestos das religiões dos povos conquistados, que se articulavam em torno das expressões corporais e sexuais, inviabilizando, de modo específico, as expressões religiosas de mulheres. É que tivemos sempre joelhos tão mal-evangelizados... dobrados liturgicamente na forma do Medo, da Festa e da Morte. A gestualidade final da conquista cristã do continente latino-americano, marcada pelo longo alcance da Inquisição (final do século XVI no Brasil), educou os joelhos para a desproporção entre o gesto e a crença. Os corpos aprenderam a obedecer, primeiro, pelo peso da violência e do castigo que acompanhava a catequese e a homilia. Ninguém foi convidado ao convencimento. Os joelhos foram coagidos à flexão e assim se inventou a crença: contra o corpo, sem o corpo, apesar do corpo. Pois, então, trata-se da desevangelização dos joelhos! A contribuição ética do feminismo se dá na insistência de que o pessoal é político, o cotidiano é histórico, a reprodução é produtiva, a produção é distributiva, o consumo é criativo. Essta reversabilidade dos sentidos e de suas relações confronta qualquer modelo político metafísico de alienação das relações cotidianas e fetichização de desejos e necessidades. Nossas teologias têm cheiro de corpo. Pedimos, aqui, que a Teologia da Libertação caminhe uma segunda milha. Já foi feito o caminho de construir a teologia a partir da realidade e seus conflitos, fazendo-o de modo comprometido na preferência pelos pobres. As teologias feministas insistem que a mediação socioanalítica não pode se esgotar no pobre-ideal e insiste em apontar o corpo como ponto de mediação hermenêutica. O corpo cheira, é contextualizado, datado, situado. Mais que isto, o corpo é sexuado. Raça e gênero não são, portanto, mero apetrecho decorativo da reflexão, mas, na interação com o corte socioeconômico, circunscrevem as condições objetivas e subjetivas aonde a interpretação e a formulação do discurso e da prática do sagrado acontecem. Radical encarnação. Deus conosco. Essas expressões e organizações ainda não foram visitadas e avaliadas e consideradas... continuam como desafio para historiadores/ as, cientistas sociais e teólogas/os que, comprometidos com as lutas feministas, reconheçam o espaço da religiosidade das mulheres como campo de trabalho privilegiado na construção da memória e da presença da mulher nas Américas. Fala poética, política e teológica que se esconde e brilha no inesperado, no cotidiano e no corpo. Nas palavras de Ivone Gebara: Culturas e Div. Religiosa.P65 232 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 233 Aquilo que chamamos salvação, entra nesse mesmo jogo da vida. Não é mais uma única direção, não é mais algo dado por um Deus todo-poderoso de uma vez por todas, não é mais o gozo eterno no céu. É marcada pela conflitividade de nossa existência histórica, pelos interesses em disputa, pelas buscas honestas que fazemos em meio à nossa fragilidade constitutiva. E acontece de forma sempre renovável como é renovável a vida de todos os seres que existem. (GEBARA, 2007, pp. 105-108). Deus conosco. Notas 1 Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo/UNIMESP. Professora de Bíblia no Rio de Janeiro (Universidade Severino Sombra). Pastora metodista e agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra/CPT. E-mail: [email protected] 2 Sobre a leitura fundamentalista da Bíblia, confira: ZABATIERO, site, 2009. 3 O título do livro recupera a expressão atribuída a Tupac Katari, liderança indígena na luta contra a violência colonial. REFERÊNCIAS BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo - um estudo sobre a religião popular. São Paulo: Brasiliense, 1980. CANEVACCI, M. Sincretismos – uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996. CURY, Cristiane & CARNEIRO, Sueli. O poder feminino no culto aos orixás. Revista de Cultura Vozes. Rio de Janeiro: Vozes, n.2 março/abril 1990 DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1985. vol IV. FESTA do Sairé. Disponível em <http://www.horadobrasil.net/ index.php?option=com_events&task=view_detail&agid=90>. Acesso em 05 jun. 2009. FRANCHETTO, Bruna: Línguas indígenas e comprometimento lingüístico no Brasil: situação, necessidades e soluções. 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Um aspecto a ser destacado nesta reflexão é a pergunta por um “algo fundamental” que perpasse as realidades fragmentadas, tornandose comum a todas elas. Respondemos que esse “algo fundamental” é um saber que impele o ser humano a agir numa certa direção, e, quando age contra essa direção, ele destrói a vida, e com ela a si mesmo. Dessa forma, o existir da pessoa estará sempre perante uma opção. O viver humano sempre tem implicações éticas. Entretanto, a indagação sobre essa compreensão tem como finalidade a questão dos possíveis desafios para a ética na educação. 1 Mudanças na Cidadania A “Declaração de Margarita”2, de novembro de 1997, colocou em destaque um conceito de cidadania que, de alguma forma, acabaria moldando os objetivos da educação no continente latino-americano. Esse documento anota, no seu terceiro ponto, o seguinte: Culturas e Div. Religiosa.P65 235 21/10/2010, 14:18 236 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Estamos convencidos de que a democracia não é apenas um sistema de governo, mas também uma forma de vida, à qual os valores éticos dão consistência e durabilidade. A tolerância, a capacidade de valorizar e aceitar o pluralismo; o direito à livre expressão e ao debate público; o respeito, a promoção e a proteção dos direitos humanos, a aplicação das regras de convivência civilizada estabelecidas pela lei; a validade do diálogo na solução dos conflitos; a transparência e a responsabilidade na gestão pública são princípios jurídicos e valores éticos da prática democrática, que devemos fortalecer e promover dentro de programas efetivos e estratégias nacionais de formação da cidadania. (OEI, 1997). No Brasil, esse conceito é incorporado ao projeto educativo através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Neles (PCN, v.8, 2001), a cidadania é entendida como democracia. Entretanto, a democracia assume o sentido de sociabilidade. Dessa forma, quer-se apontar para uma mudança no âmbito das relações sociais. O que se sugere é que, em nível social, há a passagem de uma “cidadania passiva” (como receptora e portadora de direitos e deveres) para uma “cidadania ativa” (criadora de direitos). Isso significa que a cidadania quer ser caracterizada pelo compromisso que intervém e transforma a realidade, orientada pelos princípios da dignidade da pessoa e da igualdade de direitos. Das palavras anteriores, podemos afirmar que a cidadania busca ser compreendida como uma dinâmica crítica e criativa, que tem como finalidade a procura de novas maneiras de articular as relações humanas. Nesse sentido, a cidadania carrega o desafio de organizar a vida já não mais pela desigualdade, depredação, abuso e dependência, muito pelo contrário, o desafio é articular a vida para a paz, a igualdade, a preservação, a saúde, o desenvolvimento, a autonomia, o cuidado e a responsabilidade. No fundo, a cidadania foi amarrada à sua dimensão ética. Quer dizer, não é possível pensar cidadania sem as exigências dos compromissos éticos e morais que ela ocasiona. Assim sendo, a cidadania hoje exige da educação um compromisso com determinados aspectos éticos e morais. Compromisso acolhido e articulado pela educação através dos conteúdos transversais propostos pelos PCN. Entretanto, o antes exposto sobre a cidadania deve ser confrontado com outro antecedente, a fragmentação da identidade. 2 A Identidade Fragmentada Não é nenhum segredo que a cidadania está vinculada à questão da identidade, e é aqui onde surge um dos nossos problemas: qual é o conceito de identidade com que estamos trabalhando? Para responder a essa pergunta será necessário dirigir um olhar, mesmo que geral e sucinto, para três concepções de identidade configuradas no Ocidente. A primeira é a identidade do sujeito do Iluminismo. Nele, a pessoa era tida como um “indivíduo totalmente Culturas e Div. Religiosa.P65 236 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 237 centrado, unificado e dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior” (HALL, 2005, p. 11). Aqui, a educação tinha a missão de desenvolver aquele núcleo, que permanecia essencialmente o mesmo. E, a cidadania, nesse contexto, manifestava-se na atuação dos papéis e na ocupação dos espaços designados pela sociedade para cada indivíduo. Espaços e relações a serem moldados, segundo o gênio ou caráter do indivíduo. A segunda identidade corresponde a do sujeito sociológico. Em meio à complexidade do mundo moderno, surge uma crescente percepção de que aquele núcleo interior do sujeito “não era autônomo e autossuficiente. [A identidade e o núcleo do sujeito do iluminismo] é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2005, p. 11). Nessa articulação da identidade, a educação passa a ser vista como vinculada a um projeto social que visa a construção ou preservação de uma determinada sociedade. Isso é assim, porque a cidadania passa a ser entendida como expressão externa do mundo interno da pessoa. Mundo interno que não é mais do que a interiorização do mundo externo. Assim sendo, ambos os espaços, interno e externo, tornam-se recíprocos, interdependentes e unificados. A terceira identidade é aquela do sujeito pós-moderno. Com as mudanças estruturais e institucionais do mundo externo, produz-se uma quebra naquela reciprocidade entre os espaços interno e externo, por conseguinte, a perda da identidade unificada. Esta última aparece agora como fragmentada, aberta e contraditória. Como diz HALL (2005, p.13): “à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, e com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”. Entendemos que essa identidade pós-moderna é o nosso contexto atual. Assim sendo, surgem novos questionamentos. Foi sugerido, anteriormente, que a “cidadania ativa” é a expressão e a manifestação da identidade. Entretanto, perante uma “pluralização” de identidades, como falar de “cidadania ativa” em singular? Nesse contexto, que componentes éticos significativos podem ser apontados para ser articulados pela educação na formação do cidadão? 3 Globalização e Identidade(s) Antes de esboçar uma possível resposta à pergunta acima, parecenos pertinente anotar alguns efeitos da globalização sobre a identidade. Uma característica apontada por HALL (2005, p. 68) é a “‘compressão espaço-tempo’, a aceleração dos processos globais”. O autor observa que as coordenadas do espaço e tempo, mesmo que simbólicas, são fundamentais para a representação e localização da identidade. No Culturas e Div. Religiosa.P65 237 21/10/2010, 14:18 238 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) entanto, a modernidade colocou num processo de distanciamento o espaço do lugar. Citando Giddens, Hall (2005, p. 72) escreve: Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas pela presença – por uma atividade localizada... A modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão ‘ausentes’, distantes (em termos de local), de qualquer interação face a face. Esse processo de distanciamento, na globalização, teria entrado num destroço do espaço por meio do tempo. Quer dizer, enraizados num lugar que permanece fixo, o espaço é comprimido num instante, seja de maneira real ou virtual. Por exemplo, por um avião ou E-mail, respectivamente. Essa compressão do espaço-tempo expõe as culturas nacionais às influências de fora, enfraquecendo-as e, com isso, “as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos e lugares, histórias e tradições específicos e que parecem ‘flutuar livremente’” (HALL, 2005, p. 75). Outra característica é a resistência à globalização (homogeneização global), a qual encontra, segundo Hall, três qualificações: a primeira é uma atração pela diferença, pelo local, que leva a uma nova articulação entre as novas identidades globais e locais. A segunda avalia a globalização como um processo desigual com sua própria distribuição do poder pelo mundo. E a terceira é que, mesmo a globalização afetando o mundo todo, ela é um fenômeno eminentemente Ocidental. A última característica é que as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando o seu lugar (HALL, 2005, p. 69). Nesse contexto, alguns defendem o sincretismo (o híbrido) como aquilo que possibilita a criação de novas formas de identidade cultural. Outros, porém, olham com desconfiança para o hibridismo por causa da sua indeterminação, seu relativismo, propondo como alternativa a reconstrução de identidades puras, identidades culturais homogêneas, que possam restaurar uma antiga coesão. Exemplos dessa perspectiva são o nacionalismo e o fundamentalismo. Perante tais características, que moldam a identidade cultural expressa na “cidadania ativa”, trazemos novamente a pergunta antes anotada: existe algo fundamental que sobreviva e perpasse as diferentes realidades sociais do nosso mundo atual e que se constitua num componente ético significativo, a ser articulado pela educação na formação do cidadão para uma “cidadania ativa”? 4 Por um Componente Ético Significativo O que é aquilo que torna a pessoa um agente ético? As respostas são variadas. Por exemplo, a teologia cristã nos diz que a construção da pessoa à imagem de Deus permite que ela possa discernir e interpretar a Culturas e Div. Religiosa.P65 238 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 239 lei, ou vontade de Deus, base de toda ética, e com isso alcançar um conhecimento de si e de seu mundo, mesmo que derivado da revelação. A Filosofia, no entanto, destaca a razão como o mais próprio do humano. Mediante o raciocínio, as pessoas podem adentrar num entendimento da lógica existente por trás da organização da realidade toda, inclusive do bem e do mal. A Psicologia, por sua vez, assinala para a consciência. Por ela o ser humano tem a possibilidade de alcançar uma autocompreensão de si mesmo. Pela consciência de si, ele sabe que pode viver e organizar a sua existência para além dos instintos. Todas essas respostas colocam o acento numa diferença, uma marca de “distintividade” presente no ser humano para fundamentar a sua capacidade do agir eticamente. Quer dizer, a pessoa pode ser um agente, porque possui algo único, exclusivo, algo que não está presente no resto da natureza. Agora, bem, cabe também observar que essa “distintividade” (Imago Dei, Razão ou Consciência) tem sido geralmente vinculada a uma função cognitiva, seja mediante um processo racional, ou como uma apropriação veiculada pela corporeidade, como propõem as perspectivas feministas. No fundo, é a capacidade de conhecer ou saber o que, tradicionalmente, tem-se colocado como aquilo que marca e fundamenta o agir ético da pessoa. Entretanto, esse componente de distintividade geralmente tem sido usado como base para distanciar o humano da natureza, colocando-o acima de toda a ordem natural. E, uma vez instalado no topo, e quase fora do natural, foi constituído na medida de todas as coisas, inclusive da ética, criando-se uma organização das diversas relações que hoje não são mais sustentáveis. Tudo parece indicar que a capacidade de saber não é suficientemente fundamental como para se tornar um componente ético significativo. O que talvez nos possa auxiliar seja seguir o conselho de não separar aquilo que deve permanecer unido. Isto é, o conhecedor e o conhecido, a pessoa e a informação. O fato de que o ser humano se encontre em condições de conhecer é porque o conhecido é crucial. Uma chave não tem valor em si mesma. Seu valor é diretamente proporcional àquilo que ela consegue desvendar. A pessoa humana tem a capacidade de “enxergar” o seu mundo e a si mesmo, porque aquilo que ela “enxerga”, o modo de viver/existir do ser humano é o que a constitui num agente ético. Não é apenas a capacidade de saber o que faz com que a pessoa humana seja agente ético, mas aquela informação fundamental que ela capta acerca de si mesma e do mundo. Por isso, a pessoa nunca poderá deixar de ser um agente ético, e nunca poderá ser a medida da ética. Então, qual é essa informação que leva o ser humano a atuar como um agente ético? O saber do qual a pessoa humana se apropria, e que a converte num agente ético, é: o modo mais fundamental da vida humana, nas suas Culturas e Div. Religiosa.P65 239 21/10/2010, 14:18 240 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) diferentes dimensões, acontece sempre “em meio de” e “enfrente a”. Isto é, o ser humano existe numa “teia” ou “rede”, não tanto pelas relações que ele estabelece, quanto por ser essa a sua condição mais básica. Esse fato é geralmente esquecido no decorrer da reflexão ética por causa da antropologia iluminista, herdada e perpetuada pela modernidade, e ainda presente na pós-modernidade, a saber: um sujeito de existência individual e autônoma. Assim sendo, a reflexão ética se converte, nas mais das vezes, na afirmação de uma existência humana como incondicionada. Entretanto, o que essa imagem de sujeito individual e autônomo oculta é o seu reverso: que a vida só acontece “em meio de” e “enfrente a”. Dois exemplos podem ajudar na nossa exposição. O primeiro é a situação de um recém-nascido, que pode ser expressa nas seguintes palavras: A mudança relativamente súbita da existência fetal para a humana e o seccionamento do cordão umbilical marcaram a emancipação do bebê do corpo da mãe. Esta emancipação, no entanto, só é real na mera acepção de separação dos dois corpos. Em sentido funcional, o bebê continua sendo parte da mãe: ele é alimentado, carregado e cuidado em tudo que é vital por esta. (FROMM, 1983, p. 30). Da nota anterior duas coisas devem ser observadas. A primeira é o óbvio que não é tão óbvio: que nos primeiros tempos de um ser humano ele é total e absolutamente dependente da “teia” ou contexto que o gera e o sustenta. Esse fato é fundamental, já que sem a possibilidade de estar “em meio de” e “enfrente a” nenhum recém-nascido pode existir. A segunda coisa tem relação com aquilo que o contexto diz sobre o recém-nascido. Mesmo que ele não tenha noção da qualidade da sua própria existência, para essa “teia”, “rede” ou contexto ele já está qualificado como alguém, uma pessoa. Isto é assim, porque a primeira e mais fundamental expressão de existência de um ser humano é a sua corporalidade, ainda que na condição de bebê. As pessoas que fazem parte do contexto dessa criança agiram em coerência com o que acreditam acerca dela: que ela é alguém. Essa coerência e agir se constituem, assim, num polo que levará a criança a configurar os traços da sua própria pessoa. Outro exemplo que pode ser anotado é tomado do processo de formação da humanidade. A existência humana tem início quando a falta de fixação das ações pelos instintos ultrapassa certo ponto; quando a adaptação à Natureza perde seu caráter coercitivo; quando o modo de agir não mais é estabelecido por mecanismos recebidos através da hereditariedade. Por outras palavras, a existência humana e a liberdade são, desde o início, inseparáveis. Liberdade é aqui empregada não em seu sentido positivo de ‘liberdade para’, porém no negativo ‘liberdade de’, ou seja, liberdade da determinação instintiva de suas ações (FROMM, 1983, p. 35-36). Cabe notar que esse processo que faz aparecer o humano se dá numa interação com o entorno. No fundo, dificilmente poderia ter surgido Culturas e Div. Religiosa.P65 240 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 241 o humano como uma pessoa com liberdade, sem uma luta do “homo sapiens” com a natureza. Então, o saber mais radical que o ser humano tem a respeito de si mesmo é aquele formulado pela linguagem religiosa cristã, que diz: “do pó és e em pó te converterás”. Essa frase não é para ser tomada como informação fatalista acerca da existência humana, mas como declaração fundamental do existir humano, a saber: que nunca poderá se desligar totalmente da natureza, já que seu único modo de vida é existir “em meio de”, “enfrente a” natureza, o mundo e os outros. A partir do antes exposto, é possível dizer que um ser humano nunca surge do nada. Ele sempre existirá em, com e por um contexto e nunca fora dele, nunca em solidão. Por isso, seu agir nunca está isento da ética. Qualquer ato humano sempre acontece “em meio de”, por isso sempre está amarrado à responsabilidade, e é exatamente isso o que faz com que a pessoa humana seja um agente ético. Quer dizer, o ser humano não pode deixar de ser um agente ético, porque seria ir contra a vida, buscar a própria morte. Negar-se, então, a vocação de agente ético seria como se um náufrago, no meio do mar, colocasse fogo na sua balsa para não morrer de hipertensão. Resumindo, esse saber que o ser humano percebe sobre sua condição de existência não lhe escraviza, muito, pelo contrário, busca torná-lo sábio. Compreender que a vida humana surge e se desenvolve numa certa tensão de dependência e autonomia adverte para o fato de que a vida permanecerá, na medida em que se conserve a estrutura que a faz possível. Esse saber assinala os limites e possibilidades das multirrelações a serem construídas pelas pessoas, no intuito de manifestar a vida. Quer dizer, o simples fato de viver humanamente tem implicações éticas. 5 Articulando Palavras de Amarre Como foi dito acima, esse contexto, ou teia de relações, que acolhe e permite o desenvolvimento de cada ser humano, que antes foi entendido como homogêneo pela distância entre os grupos humanos (culturasidentidades) e pelo processo de homogeneização aplicado pela modernidade, hoje aparece como fragmentado, como foi visto anteriormente. No entanto, essa fragmentação não nega que o existir humano seja sempre a partir de um contexto. E que o viver humano seja sempre um agir ético. Pode ser que esse contexto seja híbrido ou homogêneo, mas nunca será possível abandonar uma existência referenciada e ética. Tudo parece indicar que essa aproximação, pelo seu radicalismo, seja mais pertinente do que um discurso de ética fundamentado na alteridade. Nesse último, o acento recai na relação entre sujeitos, indivíduos e pessoas que procuram ser validados como interlocutores de um encontro, o qual possibilitará o aparecimento do humano e de sua individuação. Entretanto, o outro nunca é um outro sem contexto, aliás, o outro é sempre um expoente da sua rede, do seu contexto. Culturas e Div. Religiosa.P65 241 21/10/2010, 14:18 242 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Começamos dizendo que a democracia, entendida como socialização, aponta para a construção das relações sociais mediante a expressão “cidadania ativa”. O fato de que a cidadania seja algo a ser construído por todos os atores sociais indica que a fragmentação, que aparece como pluralidade de identidades no âmbito social, está sendo considerada. Sem dúvida, o maior desafio hoje é passar da tomada de consciência do nosso modo de existir para as atitudes e as condutas coerentes com esse saber. No âmbito da educação, isso significa passar do discurso para a vivência. Notas 1 2 Doutor e mestre em Teologia e História pela EST –IEPG/RS. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Aleridade e Desenvolvimento - GPEAD.. E-mail: [email protected] Documento final da VII Reunião Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, realizada na “Isla de Margarita”, Venezuela, nos dias 8 e 9 de novembro, promovida pela Organização de Estados Iberoamericanos - OEI em 1997. REFERÊNCIAS FROMM, Erich. O medo e a liberdade. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DR&A, 2005. OEI. VII Conferência Ibero-americana de Ministros da Educação - Declaração de Mérida. Mérida, Venezuela, 25 e 26 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.oeibrpt.org/ viicumbre.htm> PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: apresentação dos temas transversais: ética. Ministério de Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3. ed., Brasília: A Secretaria, v. 8, 2001. Culturas e Div. Religiosa.P65 242 21/10/2010, 14:18 2 PRINCÍPIOS DO ENTENDIMENTO DO VALOR DA IGUALDADE E DA DIVERSIDADE SOCIAL Dilnei Lorenzi1 Para superar as desigualdades sociais é indispensável saber, antes de tudo, que tipo de igualdade se quer instituir, e como fazê-la; ou seja, ter clareza quanto ao objetivo e precisão quanto ao método de ação política. Ao criticar o comunismo de bens, preconizado por Platão, em A República, Aristóteles observou, na sua obra Política, que o postulado ou hipótese de base da argumentação socrática, qual seja, a igualdade absoluta dos cidadãos na polis, era evidentemente inaceitável. A cidade constitui, pela sua própria natureza, uma pluralidade, de tal sorte que, se a sua unificação for levada ao extremo, de cidade ela se torna família, e a família, indivíduo, segundo Aristóteles. Ainda que pudesse levar a efeito essa unificação total, que para Platão é o bem supremo da sociedade política, seria preciso evitá-la, pois ela conduziria fatalmente à sua ruína. Em qualquer cidade, há sempre diferenças específicas entre os cidadãos, as quais devem ser respeitadas. A capacidade de respeitar os princípios de diferenças culturais passa pelo crivo da construção da racionalidade, entendendo-se esta como quase sinônimo de tolerância, da habilidade de não ficar desconcertado demais com as diferenças em relação aos outros, e de não responder agressivamente a tais diferenças. Essa habilidade está par a par com a disposição de alterar os próprios hábitos – não apenas para obter mais do que se desejava inicialmente, mas também para transformar-se em outro tipo de pessoa, um tipo de pessoa que quer coisas diferentes das que queria antes. A racionalidade é acompanhada também da confiança e da persuasão, em vez da força; numa inclinação para discutir, em lugar de lutar, incendiar coisas ou banir pessoas. É uma virtude que torna indivíduos em comunidades, de viver e deixar viver, e estabelece novos modos de vida, sincréticos, comprometidos. Portanto, nesse sentido, a racionalidade às vezes é pensada, como faz Hegel, como um quase sinônimo de liberdade2. A tradição intelectual ocidental, com frequência, inspira-se nesse sentido de racionalidade. Sempre se sugere que só se pode usar a linguagem e, portanto, a tecnologia para obter o que se quer – ser tão eficiente quanto somos em satisfazer nossos desejos – porque se tem a Culturas e Div. Religiosa.P65 243 21/10/2010, 14:18 244 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) racionalidade, um ingrediente precioso, quase divino, que os parentes distantes dos homens brutos não possuem. Com igual frequência, parte-se do pressuposto de que a adaptabilidade sinalizada é igual à virtude da tolerância que, nesse momento, denomina-se racionalidade. Ou seja, parte-se do pressuposto de que, quanto mais hábil a pessoa for em se adaptar às circunstâncias por meio do aumento da abrangência e da complexidade das respostas dadas aos estímulos, mais tolerante ela será para com outros tipos de ser humano. Quando se reúne diversos tipos de entendimento a respeito da racionalidade, pode parecer evidente que os humanos bons na arte de se armarem de meios tecnológicos para satisfazer seus próprios desejos, automaticamente adotarão os desejos corretos – desejos de acordo com a razão – e mostrarão por que esses desejos indesejáveis foram adquiridos. Isso produz a ideia de que o local onde surge a maior parte da tecnologia – o Ocidente – é também o melhor local para manter ideais morais e virtudes políticas (RORTY, 2005). A unidade política que implica uma igualdade absoluta entre os cidadãos, ressalta Aristóteles, só deve existir quanto àquilo que representa a essência de cada cidade, que é a sua constituição, vale dizer, o consenso comum quanto à justiça de suas instituições. A igualdade cívica é, antes de tudo, uma virtude que deve ser encorajada pela educação. Aristóteles, no último capítulo da Política, enfatiza que a educação dos cidadãos deve ser adaptada a cada forma particular de politeia, pois cada uma delas tem o seu ethos, os seus próprios costumes ou maneiras de ser, os quais a conservam, mantendo a unidade. Disso se seguem, como consequência lógica, que a educação na polis deve ser uma só para todos, e que a tarefa educacional é de competência da comunidade, e não pode ser deixada à pura iniciativa privada, pois a educação propagada deve expressar os aspectos fundamentais e de tradição cultural da comunidade. É necessário destacar o grau de importância que se almeja nesse momento com o conceito de cultura. Cultura, no seu sentido mais simples, é um conjunto de hábitos de ação compartilhados, hábitos que permitem aos membros de determinada comunidade humana conviverem tão bem quanto lhes é possível, com os outros membros e com o ambiente que os cerca (JONAS, 2006). Também é possível pensar a cultura a partir da ideia de ela ser uma virtude. Nesse sentido, “cultura” significa algo como “cultura elevada”. Boas indicações de que uma pessoa possui cultura são a habilidade de manipular ideias abstratas por puro prazer e a habilidade de discutir longamente sobre o valor de um amplo conjunto de diversos tipos de pintura, música, obra arquitetônica e obra literária. A perspectiva que ganha força no Ocidente é, de forma peculiar, sinônimo do que é produzido pelo uso da racionalidade, principalmente, à medida que a história se desenvolve, sobre a natureza, sobre o que se compartilha com os brutos. É a superação do básico, irracional e animal Culturas e Div. Religiosa.P65 244 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 245 por algo universalmente humano, algo que todas as pessoas e culturas são mais ou menos capazes de reconhecer e respeitar (JONAS, 2006). O reino universal da cultura é o objetivo maior da história, defendia Hegel. Dizer que uma cultura é mais avançada do que outra é dizer que ela se aproxima mais da concretização do “essencialmente humano” do que outra cultura, que ela é uma expressão de “autoconsciência do Espírito Absoluto” (FABRE-GOYARD, 2002). Hegel não foi o único a sistematizar a relação da Cultura e dos parâmetros sociais de tal forma, pois Montesquieu aprofundou tais elementos na sua prima-obra, De l’Esprit des lois, havendo distinguido a “natureza de um governo” do seu “princípio”, indicou como princípio do regime popular a virtude; do aristocrático, a moderação; do monárquico, a honra; e do regime despótico, enfim, o temor. Diante das críticas recebidas por ocasião das primeiras edições do seu livro, Montesquieu sentiu-se obrigado a acrescentar posteriormente uma advertência preliminar, a fim de explicar o que quis dizer, ao falar em virtude no regime popular ou republicano. “É amor da pátria, isto é, o amor da igualdade”. Não se trata, esclareceu ele, da virtude moral ou relativa à vida particular de cada um; mas da virtude política. Na virtude política se manifesta o Direito e a Liberdade, que são verdadeiros contrapontos entre o poder, o não-poder e o dever. O grande abolicionista, Nabuco, em A Escravidão, já posicionava que não há direito sem dever, como não há direito e dever sem justiça; ora, a primeira regra dessa justiça reguladora é a do direito romano: menimem ladere, não ofender a ninguém, isto é, não invadir o direito de alguém (NABUCO, 1999). De tudo isso, argumenta Nabuco, está palpitante que a escravidão não é um direito, e que, por consequência, não impõe um dever. Entretanto, para a sociedade, quando sua liberdade sofre restrição considerável que a muda em direito, o homem não perde certos direitos naturais, primordiais. Esses direitos são barreiras que não se pode atravessar. A grande glória da Revolução Francesa é ter conseguido reunir os direitos fundamentais em um código, que é o código da grandeza humana, de sua origem divina! Esses direitos a escravidão viola-os em legítimos proprietários, quer dizer que a escravidão funda-se sobre a violência, que é um estado de guerra. Destruindo a liberdade humana, na raça conquistada, ela destrói a noção do Estado, substitui a força à equidade, a tirania ao direito, a opressão ao dever, por isso não dá direito nenhum ao senhor sobre o escravo, nem impõe dever algum ao escravo para com o senhor, diz Nabuco. O grande abolicionista, em texto memorável, faz referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e à Revolução Francesa, como argumento favorável à necessidade de se valorar a pluralidade no conjunto da sociedade para o bem-estar dos indivíduos. A liberdade e a preservação da pluralidade dos valores consolidados no Estado são elementos decisivos na constituição dos fundamentos de Culturas e Div. Religiosa.P65 245 21/10/2010, 14:18 246 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) um Projeto de Educação. A liberdade, palavra-chave da Revolução Francesa, apresenta duas perspectivas diferentes: (1) ex-parte principi e (2) ex-parte populli. A primeira limita a liberdade de ação do Estado, e a segunda garante a liberdade do cidadão. As duas são interdependentes, uma complementando a outra. O Estado Constitucional, ao limitar o poder do soberano, garante os direitos naturais dos indivíduos. As duas transformações são simultâneas e são a essência do novo Estado Constitucional ou Estado de Direito. A racionalização do direito na sua superlegalidade constitucional significa que, no Estado, a Constituição é a chave da lei e da regularidade das decisões de direito. Entenda-se por isso que ela se impõe de modo coercitivo como fonte de legalidade e que, por essa razão, torna inteligível, desde seus princípios primeiros, todo o sistema jurídico do Estado. Em outras palavras, ela permite pensar o sistema do direito segundo as categorias da razão. A doutrina constitucionalista corresponde, com efeito, a uma preocupação de racionalização da ordem jurídica (FABREGOYARD, 2002). A regra constitucional é a chave da lógica da ordem jurídica, principalmente, a ideia do constitucionalismo, que pertence à doutrina moderna, e mergulha não obstante suas raízes longe do tempo. É fato que a questão jurídica do legicentrismo estatal de Hobbes só ganhava sentido através da racionalização do poder político e de seu exercício: a promulgação e a publicidade das leis e decretos “expressos por signos adequados”, sua clareza obtida graças à exposição dos considerandos que os motivaram, sua autenticação pela assinatura dos ministros e pelas chancelas públicas, sua reunião em compilações oficiais e outros são exigências de uma metodologia jurídica que provêm de uma intenção de racionalidade. É decisivo incutir uma coerência interna e uma generalidade unitária do direito do Estado e organizá-lo num edifício sistematicamente ordenado. Deve ser lembrado, segundo Hobbes, que o direito é construído como uma ordem artificial hipotético-dedutiva more geométrico. No corpus das regras, cuja clareza é acompanhada de obrigatoriedade, a potência calculadora e instituinte da razão torna-se uma capacidade prática de regulação: a razão jurídica é normatizadora. Hobbes decerto não desenvolvia, nas formas, uma concepção constitucionalista da ordem de direito. Mas seu cuidado com a racionalização e a unificação da esfera jurídica era tal que, sob a autoridade suprema do Estado-Leviatã, a razão impunha irrevogalmente uma consequência: ninguém pode escapar da regra, já que toda contravenção submete imediatamente o contraventor a outra regra, punitiva, pertencente à mesma ordem do direito, pois a racionalização do direito lhe confere sua força imanente. Em torno desse filosofema fecundo, a nomofilia que invade as últimas décadas do século XVIII impõe às regras de direito uma estrutura Culturas e Div. Religiosa.P65 246 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 247 lógica e hierarquizada que, de patamar em patamar, determina-lhe o funcionamento e a existência, pois só as forças constituintes e organizadoras da razão garantem a legitimidade da legalidade e da juridicidade. Sem dúvida, os constituintes pensavam inicialmente, num projeto fundamentalmente político, em combater o absolutismo e a arbitrariedade régia. Mas, em seu otimismo jurídico, lançam um desafio simultaneamente às figuras da transcendência e às vertigens da espontaneidade natural (FABRE-GOYARD , 2002). Nesse sentido, segue a ideia de que contra o poder pessoal, contra o direito divino, contra a ordem natural afirmam a ordem racional do corpus das regras de direito e atribuem ao Estado do cálculo, cujo soberano poder provém do contrato social, a pesada e sublime tarefa de assumir, sob a Constituição, como desejara Rousseau, em instituir de justiça e de liberdade. A Constituição, de fato, fixa a distribuição das competências dos diferentes órgãos do Poder: é o estatuto matricial da institucionalização que, materialmente, estende-se a todos os campos da vida social (JONAS, 2006). Do ponto de vista político, a Constituição é, portanto, uma proteção contra os riscos de arbitrariedade e de absolutismo que acompanham como uma sombra a individualização do poder. A Constituição é a garantia dos direitos e das liberdades. Do ponto de vista jurídico, a supremacia da Constituição é a caracterização do que se chama o “Estado de direito”, não só porque ela exclui a arbitrariedade individual dos governantes, mas porque, por comandar a processualidade interna da ordem jurídica, firma-se também como critério de sua validade. Kant, que compreendeu perfeitamente a necessidade da subsunção do “direito privado” no “direito público”, a fim de transformar a “provisoriedade” de sua naturalidade em “peremptoriedade”, viu, ao mesmo tempo, no “republicanismo” a soberania da lei suprema. Na ordem jurídica, cuja pedra angular são as leis constitucionais, o importante para ele é decifrar a não-subordinação do direito à ética: direito e moral são formalmente distintos a tal ponto que “mesmo um povo de demônios” poderia – até mesmo deveria – viver sob uma Constituição. A consequência é clara: o direito de resistência é uma contradição nos termos. Impõe-se, hoje, uma constatação: a concepção formalista do direito, que remete classicamente à racionalidade constitucional, está ameaçada por uma outra concepção do mundo jurídico. Esta depende menos da lógica que da prática: tudo se passa como se, no universo jurídico, o fato tendesse a se igualar ao direito, como se o fundamento da juridicidade tivesse se deslocado da razão para a experiência, do universal para o singular. O resultado é claro na perspectiva apresentada: o direito está sendo processado. Os princípios fundamentais de coerência sistemática e de hierarquia das normas que, na via do constitucionalismo, davam à ordem jurídica sua unidade e sua densidade, hoje estão sob suspeita. No próprio Culturas e Div. Religiosa.P65 247 21/10/2010, 14:18 248 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) funcionamento da ordem jurídica, constatam-se incessantes idas e vindas entre o direito e o fato. Dessa forma, um ordenamento jurídico tende a se caracterizar pela passagem do fechado para o aberto, de modo que a “produção de seus elementos constitutivos, as normas jurídicas, depende da intervenção de agentes externos” (BERMANN, 1995). Outro fator importante é a ideia segundo a qual cabe a órgãos constitucionalmente habilitados promulgar as regras de direito que se encontram fragilizadas, o que abala a fundação do direito e sua natureza: sua fundação, pois já não é certo que a velha máxima Jus ex facto non oritur conserve sua verdade e que seja o direito que cria o direito: sua natureza, pois o direito já não poderia apresentar-se como um corpus de regras, de categorias e de conceitos abstratos de alcance mais ou menos geral. A fisionomia do racionalismo jurídico oriundo da Filosofia das Luzes francesas perde nitidez: já não pode ter a forma altiva e pura de uma ordem sistemática; curva-se e se flexibiliza ao sabor das múltiplas e incessantes relações com seu contexto social. Os fenômenos sociais e políticos, econômicos e históricos, ao intervirem como outros tantos elementos determinantes na construção do direito e nas suas aplicações em sociedade, não só condenariam as regras jurídicas a uma mutabilidade e a transformações perpétuas, mas modificariam o caráter da normatividade jurídica. A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades de construção de processos, que permitem a ampliação da presença legítima da pluralidade e diversidade no seio social. Notas 1 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUCSP. Secretário Executivo da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil/ANEC Professor do Centro Universitário de Brasília - UniCeub. E-mail [email protected] 2 Milan Kundera descreve a utopia impregnada de racionalidade como o “paraíso de indivíduos”, vislumbrado pelo romance europeu. REFERÊNCIAS BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: CIA das Letras. 1995. FABRE-GOYARD, S. Os fundamentos da ordem jurídica. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2002. JONAS, H. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Editora PUC-RIO. 2006. NABUCO, J. A escravidão. São Paulo: Atlas. 1999. RORTY, R. Verdade e progresso. São Paulo: Manole, 2005. Culturas e Div. Religiosa.P65 248 21/10/2010, 14:18 3 DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSA NO BRASIL: ENTRE DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA UMA FORMAÇÃO DOCENTE Cledes Markus1 Lilian Blanck de Oliveira2 Introdução A sociedade brasileira é caracterizada pela diversidade étnica, cultural e religiosa. Vivem hoje, no território nacional, cerca de 2103 etnias indígenas, entre as quais, Kaingang, Xokleng, Guarani no sul do país; Xavante, Bororo, no Centro-Oeste; Baniwa, Tukano, Piratapuia no noroeste amazônico; Xocó, Fulniô, Kiri no nordeste. Cada uma com identidade e cultura própria, tradição religiosa diferenciada e representando riquíssima diversidade. Convive igualmente um grande número de grupos com culturas e religiões específicas, formados pelos descendentes de povos africanos, entre os quais, Daomeanos, Iorubás, Gegês, Kêtus, Bantos, Congoleses, Angolanos e Moçambicanos. Faz parte também um numeroso grupo de imigrantes e descendentes de povos de vários continentes com diferentes tradições culturais e religiosas, como portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, italianos, alemães, poloneses, húngaros, lituanos, egípcios, sírios, libaneses, armênios, indianos, japoneses, chineses, coreanos, ciganos e latinoamericanos. Apresenta ainda uma variedade de grupos específicos e singulares, que formam novas configurações e identidades a partir de uma convivência intercultural, como: caboclos e cafuzos, entre outros grupos. Um mesmo indivíduo pode vincular-se a diferentes grupos ao mesmo tempo, reportando-se a cada um deles com igual sentido de pertença. Em consequência das especificidades étnico-culturais, os grupos que vivem no Brasil e formam sua população apresentam os mais variados recortes linguísticos, religiosos, artísticos, simbólicos e regionais. A diversidade se apresenta com diferentes cosmologias, organização social, relação com a natureza, vivência religiosa, valores éticos e projetos de vida. Essa configuração de construção cultural muito complexa apresenta traços históricos oriundos das relações desiguais de poder, tecidas sob formas de exploração e discriminação. Culturas e Div. Religiosa.P65 249 21/10/2010, 14:18 250 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) O presente texto busca trazer à roda das discussões algumas falas e aportes relativos à diversidade cultural e religiosa em trânsito no contexto social e escolar brasileiro, em interlocução com os desafios que estas lançam à comunidade educadora, no intuito de contribuir e (pró)vocar estudos, discussões e pesquisas envolvendo essa temática de abrangência internacional. 1 Homogeneidade e Igualdade Cultural Brasileira?! Um Discurso em Telhado de Vidro Historicamente, a diversidade e complexidade presentes na construção dos povos e vidas brasileiras foram ignoradas e/ou descaracterizadas. Atitudes de omissão e/ou invisibilização à diversidade cultural e religiosa têm múltiplas origens e podem ser identificadas de forma acentuada em momentos históricos distintos. Um deles, o período de colonização - um processo impositivo de homogeneização por parte do Estado com uma cultura dominante de origem europeia, conduzido por leituras e critérios de superioridade, usava a justificativa do “civilizar pelo evangelizar” os povos incultos e bárbaros (RAMPINELLI; OURIQUES, 1999). O nacionalismo exacerbado nos períodos autoritários da história brasileira (RIBEIRO, 1998) também organizou e impôs ações de caráter homogeneizador na sociedade, algumas destas veiculadas e respaldadas pelas gerações anteriores. As ações governamentais buscavam interpretar e construir um Brasil na perspectiva da homogeneidade e igualdade étnico-cultural. Neste intento, foram construídos, instituídos e amplamente divulgados discursos ideológicos em todos os espaços sociais. Na esteira dessas práticas, um pensamento foi tomando forma, ganhando força, discurso e incurso nos espaços e lugares mais diferenciados: o “mito das três raças”, que descaracterizava e buscava suprimir por completo a percepção de uma diversidade étnico-cultural brasileira, buscando decretar a homogeneidade brasileira. Esse “mito” afirmava que a população, a cultura e a sociedade brasileira foram constituídas através das influências de três raças: branca (europeia), negra (africana) e a indígena, que se dissolveram paulatinamente, dando origem a um povo homogêneo, único, especial e inconfundível. Segundo Darcy Ribeiro (1979), antropólogo e político brasileiro, as três matrizes se conjugaram para, num processo de fusão, constituir o perfil do povo brasileiro. Esse autor salienta a peculiaridade dos traços uniformes da nação brasileira, embora de origens diversas, ao referendar que, [...] apesar da disparidade das matrizes originais e das diferenças ecológicas, plasmou-se no Brasil uma etnia peculiar: racialmente heterogênea e em pleno processo de fusão, mas culturalmente coesa pela unidade do idioma, dos Culturas e Div. Religiosa.P65 250 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 251 modos de ação sobre a natureza, das formas de organização social, das crenças e da visão do mundo. Este foi o processo básico de formação de todos os Povos-Novos. O que têm os brasileiros de singular decorre das qualidades diferenciadoras trazidas por suas matrizes indígenas, africanas e europeias, da proporção particular em que elas se congregaram no Brasil (RIBEIRO, 1979, 221). Esse “mito”, vindo com argumentos persuasivos, defendia e ainda defende (uma vez que ainda circula em muitas leituras e falas sociais) a mistura como o principal elemento identitário da população brasileira. Traz a visão de um Brasil miscigenado e mestiço como característica da identidade nacional. Apresenta uma diversidade de noções problemáticas em sua fundamentação e que não encontram respaldo teórico. Uma das noções que o integram é tratar a diversidade étnico-cultural com critérios raciais. Nessa argumentação se encontra o determinismo biológico, há muito tempo rechaçado pela antropologia e pela própria biologia. Segundo DaMatta (1987, p.85), “do ponto de vista biológico, raça é uma variação genética e adaptativa de uma mesma espécie. Mas na conceituação social elaborada no Brasil, ‘raça’ é algo que se confunde com etnia e assim tem uma dada ‘natureza’.” Nesse sentido, o autor acrescenta que, no Brasil, ao abordarmos as questões da diversidade étnico-cultural em nosso meio, “o biológico se confunde com o social e o cultural, permitindo assim, realizar uma permanente miopia em relação à nossa possibilidade de autoconhecimento.” (DAMATTA, 1987, p.85). Outra noção problemática é considerar as categorias “europeia”, “africana” e “indígena”, como dados singulares e homogêneos, desconsiderando-se toda diversidade étnico-cultural existente em cada uma delas. E, não por último, difunde-se a noção da mistura apropriada do negro, branco e índio, que, através de um processo de fusão, vão criar um ‘tipo brasileiro’ com cor, cultura, língua, organização, religião e cosmovisão única. Segundo DaMatta (1987, p. 81), aí se configura “a antiga noção de que a ideia de um povo contém em si o postulado básico da identidade e homogeneidade física, social, cultural e política. Essa noção, desenvolvida tanto no senso comum quanto em obras de autores como Darcy Ribeiro (2000) e Gilberto Freire (1998), ao afirmarem que a sociedade brasileira foi constituída através das influências culturais de três raças, que, dissolvidas, originaram um povo homogêneo, descaracteriza e conflita frontalmente com o contexto étnico, social e cultural brasileiro. Ao divulgar-se uma concepção de cultura uniforme depreciam-se e velam-se os múltiplos traços que compõem a identidade e o “rosto” da nação brasileira. Em termos de ações, esse discurso ideológico foi implantado e imposto através de políticas de integração nacional, onde as diversidades eram coagidas a se acomodar/submeter a um panorama nacional, Culturas e Div. Religiosa.P65 251 21/10/2010, 14:18 252 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) caracterizado pela homogeneidade. A escola foi um espaço importante para a divulgação e aplicação das políticas nacionais de homogeneização preconizadas no país, através da edição de materiais didáticos, processos de formação de formadores, abordagens metodológicas, entre outros meios. É comum, na atualidade, ainda termos acesso a registros orais ou escritos de descendentes de imigrantes europeus, indígenas, asiáticos e outras etnias acerca dos sofrimentos vivenciados ao adentrarem o contexto escolar, onde eram obrigados a “esquecer” sua língua, cultura e crenças, para adotar a língua e ordem nacional - uma política de assimilação e homogeneização. As ações oficiais para proceder à homogeneização foram acompanhadas pela pregação de outra ideia, que se compôs nesse cenário, que é a do “mito da democracia racial”, que dissimulava o quadro real do racismo sofrido pelas populações discriminadas. Este mito, analisado por Roberto DaMatta (1987), refere-se à perspectiva de um Brasil “de braços abertos”, acolhedor, onde todas as pessoas, etnias e culturas vivem em igualdade e fraternidade. Assim, na sociedade em geral, discriminações praticadas com base em diferenças ficam ocultas sob o manto de uma igualdade que não se efetiva, e coage homens e mulheres para uma zona de sombras, pontuada por vivências de sofrimento e exclusão. Esses “mitos” difundidos em dados momentos históricos continuam sendo (rea)firmados no contexto social e escolar na atualidade. As ideias de um Brasil igualitário buscam neutralizar e/ou invisibilizar diferenças culturais, instaurando a subordinação de uma cultura à outra, a instauração e/ou manutenção de estereótipos dos mais diversos. Objetivam mascarar as muitas e diferenciadas violências sobre os povos ameríndios, africanos e os que lhe acompanham no processo formador da nação brasileira. Referendam práticas de colonização, seja pelas matrizes iniciais europeias, seja pelas formas transcriadas no decorrer dos processos históricos, como o caminho necessário para a construção de um relativo equilíbrio de forças, “harmonia” social e cultural, quando de fato inocula o desequilíbrio ontológico e social, a perda de referenciais, culturas e identidades de povos, etnias e culturas. Essas interpretações conduziram e ainda conduzem a atitudes e dados estatísticos a dissimular traços, feições, cicatrizes do e no “rosto” brasileiro em constante (re)construção, gerando preconceitos difusos, porém efetivos, com inferências diretas e precisas na vida cotidiana das populações. Incisões de caráter cirúrgico, ora sutis, ora causticantes; ora ínfimas, ora exacerbadas; ora perceptíveis, ora invisíveis, marcaram e marcam profundamente as vidas, as histórias, as memórias e as culturas de homens e mulheres, que habitam este país. Buscam tecer discursos, mentalidades e atitudes para a leitura e olhares de um tecido imaginário de cores, pontos e desenhos múltiplos, porém coesos e homogêneos – harmônicos, cujo ideário perverso busca, de forma subliminar, abstrair a dignidade, a identidade, a respeitabilidade do cidadão brasileiro como sujeito.4 Culturas e Div. Religiosa.P65 252 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 253 Se, por um lado, existe o discurso à imagem de um Brasil homogêneo, sem diferenças, camuflando preconceitos e discriminações, por outro lado, os diferentes grupos étnicos e culturais, articulados em movimentos sociais, desenvolvem uma história de resistência a padrões culturais que estabelecem e sedimentam injustiças. O telhado de vidro que acobertava tais construções gradativamente vai se rompendo e sucumbe a ventos e impactos de uma realidade que se faz por ouvir, ver e ser. Esse movimento é fortemente impulsionado pelo contexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assume a importância do tema da diversidade étnico-cultural em termos globais. A Organização das Nações Unidas - ONU, preocupada com a conquista da paz mundial, promove conferências que buscam propostas e iniciativas que visem à superação do preconceito e da discriminação. Incentiva a contribuição na construção da democracia, a partir da promoção de princípios éticos da alteridade, dignidade humana, respeito mútuo, justiça, solidariedade e diálogo. A “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”5 reafirma a convicção de que o diálogo intercultural é um caminho para buscar e garantir a paz, rechaçando-se todo e qualquer choque ou barbárie entre culturas e civilizações. Propõe que os países assumam grandes linhas para um plano de ação; que seu texto se torne uma ferramenta para o desenvolvimento capaz de humanizar as nações, criando ações com parcerias entre o setor privado e a sociedade civil; que se traduzam estas iniciativas em políticas inovadoras do desenvolvimento das comunidades e superem-se concepções fundamentalistas, vislumbrando um mundo aberto, democrático e solidário. A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO reafirmou sua adesão à plena realização dos direitos humanos e às liberdades fundamentais, proclamadas na “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, apresentando instrumentos universalmente reconhecidos, entre eles: os Pactos Internacionais de 1966 relativos aos direitos civis e políticos, aos direitos econômicos, sociais e culturais. Como resultado de muitas lutas, foram e continuam sendo conquistados espaços para a construção de lugares, leituras e olhares às manifestações diferenciadas com uma legislação específica, no que diz respeito às peculiaridades e diferenças de grupos sociais, etnias e povos. A Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez, reconheceu o Brasil como um país multiétnico e pluricultural, e, a partir disso, estabelece a discriminação racial como crime; prevê o direito, o respeito e a proteção das distintas identidades étnicas; e garante o pleno exercício dos direitos culturais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº 9394/ 96, fiel às determinações da Carta Magna brasileira, a partir de seus ditames, Culturas e Div. Religiosa.P65 253 21/10/2010, 14:18 254 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) encaminha os enunciados para as construções teóricas, pedagógicas de forma teórica e pedagógica e técnicas nos contextos formadores do país. Este édito legal, por sua vez, desencadeia urgências de (re)formulação das leis subsequentes no Estado da federação, assim como dos documentos curriculares que as fomentam e efetivam no contexto educativo. Em relação às histórias e culturas dos povos africanos e indígenas, a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, altera a LDBEN no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, já modificada pela Lei no 10.639, de 09 de janeiro de 2003, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. No que se refere ao componente curricular de Ensino Religioso, historicamente de caráter homogêneo, em grande parte do território nacional é questionado em sua gênese epistemólogica e metodológica pela Lei nº 9475/97, que altera e dá nova redação ao artigo 33 da LDBEN e estabelece o desafio à construção de um currículo e práticas pedagógicas, que respondam às exigências legais, assegurando “o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo” (BRASIL, 1996). Nesse sentido, urge a construção de propostas para formação de docentes, que atendam à diversidade cultural religiosa e busquem a superação de práticas educacionais com viés da homogeneidade, para assumir uma perspectiva intercultural, numa atitude de abertura e respeito às diferentes culturas e tradições religiosas. 2 Diversidade Cultural e Religiosa no Brasil: Desafios a Novos Olhares, Leituras à Práticas de Formação Docente O cenário no qual se encontram os estudos e pesquisas relacionados à diversidade cultural religiosa no contexto escolar e área de conhecimento6 de Ensino Religioso, no Brasil foi alterado a partir de 1997 com a revisão do artigo 33 da LDB (Lei nº 9.475/97), delegando aos Sistemas de Ensino da federação a responsabilidade de orientar este componente curricular quanto à organização de seus conteúdos e à formação de seus professores. O Ensino Religioso passou a integrar uma discussão em uma esfera mais ampla: a da diversidade cultural, quando, historicamente até a década de setenta, era prioritariamente de caráter catequético cristão romano, excetuando-se alguns Estados da federação com propostas e práticas ecumênico-cristãs (FIGUEIREDO, 1994). Dessa forma, ainda sob os impactos de um passado próximo, de mais de 500 anos, encontramos na atualidade, no Brasil, situações diversificadas para a compreensão dos aspectos que explicitam a identidade do Ensino Religioso, enquanto área de conhecimento, no que diz respeito aos seus aspectos estruturais, funcionais, curriculares e à formação de professores. Culturas e Div. Religiosa.P65 254 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 255 O cotidiano escolar e formador é um dos espaços onde, continuamente, transitam sujeitos e conhecimentos, cujas vivências e redes de significados se percebem entretecidas com questões que circunscrevem e indicam a presença do religioso. As diferentes vivências, percepções e elaborações integram o substrato cultural da humanidade, cujos relatos e registros elaborados sistematicamente por diferentes grupos sociais se constituem em uma rica fonte de conhecimentos a instigar, e a desafiar, as gerações vindouras. Conhecer significa captar e expressar as diferentes dimensões das comunidades de forma mais ampla e integral. Nesse sentido, problemáticas que envolvem questões, como discriminação étnica, cultural e religiosa, têm a oportunidade de sair das sombras que levam à proliferação de ambiguidades nas falas e atitudes, alimentando preconceitos, para serem trazidas à luz, como elementos de aprendizagem, enriquecimento e crescimento do contexto escolar como um todo (BRASIL, 1997). De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNER são requisitos essenciais ao profissional de Ensino Religioso: a constante busca do conhecimento das manifestações religiosas; clareza quanto à sua própria convicção de fé, e sensibilidade à pluralidade e consciência da complexidade sociocultural da questão religiosa. A disponibilidade para o diálogo, a capacidade de articulá-lo a partir de questões suscitadas no processo de aprendizagem do educando, a arte de escutar, ser o interlocutor entre Escola e Comunidade, mediar conflitos e considerar a família e comunidade religiosa espaço privilegiado para a vivência religiosa e opção da fé, colocando seu conhecimento e experiência pessoal a serviço da liberdade do educando, configuram o perfil desejado para este profissional (FONAPER, 1997). Na atualidade, os educadores responsáveis pela formação de docentes do Ensino Religioso, atentos às exigências de um contexto histórico, político e cultural plural, em constante reconfiguração, vêm se debruçando em avaliar os processos em desenvolvimento e construção. Pesquisas, discussões e estudos, que tomem por objeto ênfases, deficiências, ausências e necessidades percebidas instigam outras formas e possibilidades de respostas em relação aos diferentes desafios oriundos do contexto educacional e formador. Compartilhamos, a seguir, algumas percepções identificadas e registradas no decorrer das rodas de algumas de nossas pesquisas, interlocuções e interações como educadoras.. Na provisoriedade desse alinhavo, objetivamos contribuir para com discussões e reflexões, que circunscrevem uma formação de docentes, que tenha como pressuposto a diversidade dos sujeitos, que desvele “mitos” de uma suposta homogeneidade cultural brasileira e deem espaços para exercícios e vivências de e em alteridade. Culturas e Div. Religiosa.P65 255 21/10/2010, 14:18 256 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 2.1 Leituras de Totalidade A LDBEN nº 9394/96 encaminha que “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando” (BRASIL, 1996, título I, art. 2º), estabelecendo, desta maneira, os pressupostos éticos a gerir o processo educativo, assim como o fim último deste em relação aos seus sujeitos. Essa percepção de totalidade requer currículos que viabilizem uma formação voltada para todas as dimensões do ser humano, num processo de íntima relação com as diversidades presentes no universo que o circunda. Isso propiciará, ao futuro profissional da educação, um ferramental para leituras ampliadas, de caráter diferenciado com perspectivas de interações críticas, criativas e contextualizadas. Como fazê-lo na atualidade, questiona Miguel Arroyo (1999, p. 147), se “a visão tecnicista, utilitária e mercantil desqualificou a educação básica, o papel de seus profissionais e os processos de sua formação”? Ou quando, segundo Freire (2000, p. 130), “a desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo”? Identificam-se aqui linhas paralelas em direções opostas. De um lado, encontram-se orientações para propostas de formação de docentes tendo como pressuposto o desenvolvimento pleno de ser humano e, de outro lado, práticas formadoras desconectadas dessas premissas. A conjugação e sintonia entre pressupostos e práticas de formação de docentes, que incorporem abordagens, conteúdos e metodologias inter e trans disciplinares minimizarão dicotomias entre fins, objetivos e formativas, assim como propiciarão um olhar teórico-prático diferenciado de totalidade de ser humano, cultura, sociedade e educação. Nas palavras de Andreola (1999 p. 68), [...] a aventura de compreender os segredos da vida não pode se reduzir, por isso, a uma tarefa solitária ou ao empreendimento paralelo e estanque das diferentes ciências. A visão do todo, a perspectiva da totalidade impõe-se como necessidade. A interdisciplinaridade é, pois, um compromisso ético com a vida e uma exigência ontológica, antes ainda de se impor como imperativo epistemológico e metodológico. Um processo de formação de docentes, atento às questões mencionadas, deve tecer suas reflexões e práticas pedagógico-didáticas, percebendo o cotidiano acadêmico como um espaço de construção de saberes e competências profissionais comprometidas com as diversidades históricas, culturais e religiosas, que transitam no contexto escolar e social. Culturas e Div. Religiosa.P65 256 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 257 2.2 Percepção Histórica de Ser Humano e Educação O ser humano, segundo Freire, de natureza finita e inconclusa, percebe-se condicionado por fatores culturais e sociais aos quais se encontra sujeito, mas jamais sendo determinado por eles, pois tem a história como tempo de possibilidade e superação. Movido pela curiosidade, indaga, questiona, busca formas de ser mais e melhor, faz e constrói história (FREIRE, 2000). Enquanto ser histórico, é herdeiro das gerações passadas, construtor e interventor nas gerações onde se encontra inserido e responsável direto pelas que o sucederão. Todo educador é primeiramente um homem e uma mulher que, antes de ser educador, foi educado e continuamente se educa no cotidiano. Traz em seu corpo as marcas indeléveis da construção de sua própria história. História como ser social, religioso, familiar, político e acadêmico. Essa construção é um processo lento, imperceptível a olhos menos avisados, mas que, na coleta de dados mil, vai tecendo a teia que se configura na sustentação perene de toda uma existência e um agir (OLIVEIRA, et. al., 1997). De modo formal e informal, o ser humano vai incorporando conceitos que, no decorrer de sua vida, serão decodificados e ancorados a outros esquemas que, por sua vez, irão construindo o ser educador. Segundo Freire (1993, p. 87), “[...] não nasci, porém, marcado para ser um professor assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras práticas ou a prática de muitos sujeitos”. Propostas de formação de docentes, que omitirem ou minimizarem leituras e percepções de ser humano como ser histórico, e a visão do processo educativo também como histórico inibirão possibilidades de (re)construção de concepções epistemológicas e pedagógicas amalgamadas no decorrer de suas vidas. Para Catani (2000, p. 34) e colegas pesquisadoras,7 [...] as concepções sobre as práticas docentes não se formam a partir do momento em que os alunos e professores entram em contato com as teorias pedagógicas, mas encontram-se enraizadas em contextos e histórias individuais que antecedem, até mesmo, a entrada deles na escola, estendendose, a partir daí, por todo o percurso de vida escolar e profissional. A utilização de metodologias que incorporem histórias de vida e autobiografias como uma das formas de acesso, desenvolvimento e/ou decodificação de situações ou paradigmas postos no processo formador, exercita a eticidade ontológica, percepções de totalidade e uma profunda reflexão epistemológica. Implica, outrossim, assumir que ninguém forma ninguém e que a “formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos da vida” (NÓVOA, 1998, p. 116) e, por isso mesmo, essencialmente histórica. Culturas e Div. Religiosa.P65 257 21/10/2010, 14:18 258 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 2.3 Relações e Interações Cotidianas O ser humano, um todo multifacetado, porém um conjunto indivisível, inconcluso, condicionado, mas não determinado historicamente, com capacidades de intervir, criar e recriar, constitui-se num ser de relações, em relação e constantes interações com o(s) outro(s), a natureza e o Transcendente (FONAPER, 1997). É no estar “face a face”8, que o ser humano se exige e é exigido, descobre-se a si mesmo. Este relacionamento é definido por Ebeling como coram9 e nele confundem-se as formas como o ser humano se encontra com os outros, como estes se encontram com ele e como ele se encontra consigo mesmo. Esse movimento lhe constrói e constitui humanidade, na medida que percebe e percebe no outro a sua provisoriedade, inacabamento, necessidades, historicidade, que clamam por superações conjuntas, movidas ambas pela esperança que desaloja, desinstala e propõe a construção e percepção do outro. O processo de formação de docentes para o Ensino Religioso, enquanto agente fomentador de reflexão, construção e intervenção históricas, é constrangido a um diálogo permanente em suas práticas cotidianas. Serão suas leituras de mundo, ser humano, sociedade, educação, cultura, sagrado em contínuos processos de (re)construções, que encaminharão a qualidade do processo educativo. Segundo Freire (1994), para a efetivação de um diálogo superador faz-se necessário que ambos, educador e educando, tenham muito amor ao outro, respeito no ouvir, muita troca, partilha de saberes, humildade no dar e receber, negar e acatar. Torna-se fundamental, nesse processo, a fé nos homens e mulheres parceiros e cúmplices nesse projeto de construção, assim como a prática da esperança com vistas à concretude do mesmo, compostos pelos seus diferentes e iguais. Uma sociedade gerida pela competição instaura mecanismos de poder e hierarquização, que premiam o conhecimento e a força em detrimento de relações e sentimentos/sensibilidades, entre elas a gratuidade, identificados enquanto fraquezas e/ou meios para um fim. As práticas desenvolvidas sob tal paradigma são altamente excludentes na perspectiva de um paradigma homogeneizador. Os processos de formação em seus níveis e modalidades necessitam rever suas práticas educativas, a partir de leituras cuidadosas das relações e interações (des)envolvidas nos mesmos. Arroyo aponta nessa direção ao questionar os tempos e espaços de formação a que são ou foram submetidos os docentes, de forma particular os de Educação Básica. A partir de sua prática formadora cotidiana, o autor revela, Culturas e Div. Religiosa.P65 258 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 259 [...] que a maioria dos aprendizes de magistério, de licenciatura e de pedagogia trabalha e estuda, tem pouco domínio de seu tempo de estudo, passa o mínimo de tempo nos centros, [...] são frequentadores de disciplina, em tempos espremidos, corridos, [...] encontrando-se nos espaços de formação estabelecem interações sociais e culturais, profissionais e afetivas, que tendem a fechar o grupo, a reproduzir expectativas, perfis, traços e imaginários [...] os mais iguais em classe, gênero e raça (ARROYO, 2000, p. 130) Nesse contexto, perguntamo-nos: como se (pró)vocariam relações e interações de cunho pedagógico com vistas a uma reflexão crítica sobre a práxis, que estabelece significados numa percepção de formação de docentes, que percebe o ser humano e a vida de forma integral, inserido com possibilidades de intervenção na história, desafiado a vivenciar relações conduzidas em processos de alteridade? Como subverter conceitos e práticas, que postulam enunciados de homogeneidade e igualdade de direitos, acesso, culturas, etnias e credos com vistas à promoção de bem coletivo imaginário? Pesquisas e estudos revelam a presença de possibilidades históricas da construção de relações emancipadoras, a partir do exercício de produções, reflexões e trocas, de saberes e conhecimentos nas múltiplas relações e interações de um projeto de formação docente, inserido no atual contexto social brasileiro, que se perfila contraditório, complexo e excludente. 2.4 Sensibilidade e Compromissos Éticos Numa sociedade fragmentada, competitiva, regida por um sistema político neoliberal, intervenções educacionais e formadoras que objetivem coerência por parte de seus autores, transparência de suas práticas pedagógico-didáticas e pressupostos vinculados à promoção e emancipação de todos são uma força que se propõe a caminhar em sentido contrário ao movimento posto. O desenvolvimento de sensibilidade e compromissos éticos, que integram a diversidade de culturas e expressões religiosas e levam o ser humano a buscar, ouvir, acolher e conferir dignidade ao outro constituemse em premissa, que, por sua vez, reclama um compromisso corporificado em ações cotidianas. Freire (1995, p. 44) credita seu apreço em ser gente precisamente ao fato de ser portador de uma responsabilidade ética e política em relação ao mundo e aos outros. Para ele, a educação é um movimento que, sozinho, não tem o poder de transformar a sociedade, mas sem ele tampouco a sociedade tem condições de mudar. Na introdução da coleção “Docência em formação”, os autores argumentam que o exercício do magistério requer que seus agentes sejam portadores de conhecimentos científicos, pedagógicos e educacionais, bem como capazes de indagação teórica e criatividade para encarar as situações por vezes ambíguas, incertas, conflituosas, discriminadoras e até violentas, Culturas e Div. Religiosa.P65 259 21/10/2010, 14:18 260 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) presentes nos contextos escolares e não escolares. Para interagir com essas situações, “o profissional da educação necessita da competência do conhecimento, de sensibilidade ética e de consciência política” (MANFREDI, 2002, p.15). Diante do atual, complexo e excludente quadro mundial, vozes se elevam em todo o planeta em defesa da construção de uma ética que encaminhe vivências fraternas e solidárias e espírito de alteridade. As religiões e a educação são pontas do iceberg a demarcar espaços vitais a serem mobilizados. Hans Küng (1992) enfatiza que não haverá futuro de vida no planeta sem o exercício de uma ética mundial, um estado de paz no mundo. A educação é apontada como uma das formas basilares a inibirem barbáries como a de Auschwitz10 e possibilitarem a assunção de seres humanos, enquanto sujeitos construtores e interventores históricos, capazes de promover vida em constantes processos de libertação. É muito mais que exercitar a empatia, ou estar com o outro, é ser com o outro. Não seriam estas as pistas seguras a apontar caminhos desafiadores para mobilizar e (re)orientar propostas e práticas de formação docente de cunho diferenciado, no contraditório, complexo e excludente contexto educacional brasileiro? 2.5 Participação da Família na Formação de Docentes?! Esta reflexão-ação se apresenta como desafio numa época e contexto onde cada vez mais crianças e adolescentes crescem e se desenvolvem sob a tutela da escola. A responsabilidade dos famíliares e do Estado, no tocante à oferta de uma educação de qualidade para seus filhos e cidadãos, obrigatoriamente deve passar pela formação profissional destes. Pesquisas apontam para uma histórica ocupação do Estado relacionada à educação de seus cidadãos, ora por questões ideológicas maquiadas sob o beneplácito de cuidados para com sua polis, ora como pressão de situações e órgãos externos de coerção social.11 Em função desses pressupostos, constata-se uma política de formação docente que, ainda atrelada a tais mecanismos, acaba por gerir profissionais que reproduzem, no cotidiano, representações apreendidas nos tempos/espaços do exercício formador (ARROYO, 2000). Historicamente, são reduzidos os registros de propostas e referências de governos, academias ou responsáveis pela formulação de projetos de formação de docentes, que incluíram ou incluem em sua pauta de consultas os interesses e saberes da família e/ou responsáveis pelos educandos, em relação ao perfil dos profissionais a serem formados para interagir e orientar a educação dos cidadãos. Instâncias como documentos oficiais, consultas do mercado profissional e interesses de caráter filosófico-político são as que, em grande parte, definem as diferentes propostas de formação docente. Culturas e Div. Religiosa.P65 260 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 261 Lutero, educador e reformador religioso do século XVI, desafiou os pais e a sociedade alemã a se envolverem com as questões relativas à formação dos educadores e dos currículos escolares para seus filhos. Também os comissionou às tarefas pertinentes à educação dos filhos, cobrando-lhes igual responsabilidade de ensino e acompanhamento de sua educação (LUTERO, 1995). Nesse sentido, é pertinente o questionamento: numa sociedade regida por um código democrático, quais e como se interpretam e efetivam os pressupostos à (in)/(ex)clusão do grupo diretamente interessado e responsável pela educação de crianças, adolescentes e jovens, como um elemento participativo na elaboração de propostas e/ou ações de formação de docentes? 2.6 Currículo de Formação de Docentes Comprometido com a Vida Solidária Muitas são as definições sobre currículo e oferecer uma de validade e aceitação de cunho universal torna-se extremamente dificultoso e inoperante, uma vez que cada uma dependerá de marcos e perspectivas variáveis aos quais se encontrará sujeita. Contudo, segundo Sacristán (1998), é importante considerar em qualquer conceitualização e discussão sobre currículo, que este serve para oferecer uma visão da cultura que se dá nas instituições formadoras; entendido como um processo historicamente condicionado, mas não determinado; um campo no qual interagem reciprocamente ideias e práticas. Por se tratar de um projeto elaborado culturalmente, pode condicionar e/ou limitar o trabalho docente, necessitando, portanto, de uma pauta com diferentes graus de flexibilidade e mediações. O currículo de uma proposta de formação de docentes tem a capacidade de encerrar, em si, pontos estratégicos para a reforma ou manutenção de um determinado status quo educacional. Entre estes, encontram-se os referenciais filosóficos, epistemológicos e pedagógicodidáticos, que deveriam direcionar a escolha dos profissionais, materiais didáticos, atividades, posturas e relações mediadoras no processo. Essa visão extrapola o conceito de currículo como mera especificação de temas e conteúdos de todo tipo, explicitados num documento repleto de objetivos e planos. Para Sacristán (1995, p. 86), currículo, [...] é a consequência de se viver uma experiência e um ambiente prolongados que propõe - impõe - todo um sistema de comportamentos e de valores e não apenas de conteúdos de conhecimento a assimilar, [...] a soma de todo o tipo de aprendizagens e de ausências que os alunos obtêm como consequência de estarem sendo escolarizados. A presença de diversas culturas, saberes e de conhecimentos num sistema educacional exige uma tomada de consciência na definição e Culturas e Div. Religiosa.P65 261 21/10/2010, 14:18 262 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) encaminhamento de suas diretrizes curriculares. As singularidades dessas situações, denominadas por Sacristán (1995) como multiculturais, criam dificuldades quanto à disponibilidade de esquemas conceituais e modelos pedagógicos válidos, que extrapolam de certos contextos para outros, indo muito além da mera clarificação de um conjunto de objetivos e ideias. Na atualidade, a discussão e o pensamento educacional em relação a essas questões encontram-se ainda numa fase embrionária, decorrência da educação ocidental secularizada e unicultural, que, de forma abrangente, aciona seus mecanismos “extracurriculares” de propagação e consequente perpetuação dos estereótipos culturais e homogeneizadores de crenças e valores sobre a identidade dos diferentes povos, nações, religiões e culturas. Urge considerar e efetivar mudanças nos pressupostos epistemológicos e pedagógicos, buscando construir propostas formadoras que veiculem a complexidade das culturas e das experiências humanas e conduzam à discussão, reflexão e encaminhamento de processos e práticas formadoras e educativas, comprometidas radicalmente com a diversidade, num contexto marcado por desigualdades, singularidades e diversidades. As diferentes “vivências curriculares” revelam as reais intencionalidades e possibilidades de um projeto e/ou ação formadora. A organização curricular de um curso pode ser um meio que relaciona teoria e prática no aprofundamento de interações geradoras de conhecimentos, mas são as vivências deflagradas que constroem, num processo contínuo de (re)construção, os envolvidos no exercício formador. O combate às diferenças é próprio de uma sociedade pautada por uma política de competição e exclusão, pois estas são guiadas pela intolerância e descaso aos diferentes regidos por um processo de globalização, que longe de suas falácias doutrinárias de preocupação e suporte para com todos, visa o monopólio (pelo exercício da privatização) dos mais fortes, conforme denuncia Carlos Alberto Torres (1995). Para Suaréz, esse lastro organizacional da sociedade atinge de igual modo os encaminhamentos e processos formadores de docentes, manifestando ingerências próprias de um currículo pautado por princípios educacionais neoliberais em detrimento das reais necessidades da escola, predominantemente a pública. Isto se dá, de acordo com o autor, quando, [...] um dado grupo social que, em junção de relações de poder favoráveis, prioriza a inclusão hierarquizada de certos conteúdos e valores (próprios) como se fossem objetivamente e universalmente válidos e legítimos, em detrimento de outros (alheios), aos quais desqualifica ou ignora (SUARÉZ, 1995, p. 265). Nessa perspectiva, a presença de diversas culturas com suas diferentes expressões de ordem linguística, artística, religiosa, entre outras, num sistema educacional exige uma tomada de conciência e constantes (re)flexões sobre os encaminhamentos e elaboração de suas diretrizes curriculares. Estas são algumas das questões, que obrigatoriamente devem Culturas e Div. Religiosa.P65 262 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 263 perpassar uma reflexão mais acurada sobre os pressupostos curriculares de um processo de formação docente para o Ensino Religioso, inspirado “nos princípios de liberdade e solidariedade humana”, (BRASIL, 1996, art. 2º), inserido num projeto de educação superior, que tem como uma de suas finalidades “estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular, os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade” (BRASIL, 1996, art. 43º, VI). 2.7 Pressupostos Epistemológicos e Metodológico-Didáticos A opção e a utilização de pressupostos epistemológicos e encaminhamentos metodológico-didáticos coerentes entre si, com as especificidades do projeto formador e necessidades, limites e possibilidades dos estudantes na pluralidade de situações e aspectos do contexto acadêmico, visando promover uma aprendizagem com sentido e significativa, talvez sejam os maiores desafios para uma qualitativa efetivação da proposta formadora. Num primeiro momento, implica conhecer o grupo de pessoas para o qual a proposta de formação se destina; suas expectativas, interesses, limites, possibilidades, saberes, conhecimentos, relações, atividades cotidianas, entre outros pontos. Implica, outrossim, conhecer profundamente o projeto de formação a ser desenvolvido em relação a seus pressupostos, objetivos e especificidades, enquanto área(s) de conhecimento. No entrecruzamento dessas informações, obter-se-á indicativos a direcionarem a escolha e a utilização de pressupostos epistemológicos e encaminhamentos metodológico-didáticos para a efetivação das práticas de formação de docentes. Participar desse movimento exige de seus articuladores (res)significar pensamentos, valores, posturas, sentimentos, imaginários, autoimagens. Exige redefinir competências, práticas e capacidades de fazer escolhas. Propõe outro sentido e significado para o exercício formador e para a própria existência humana. Muitas propostas de formação de docentes se configuram, na atualidade, a partir dos referenciais e reflexões de teóricos e educadores preocupados com essas questões. Considerando a elaboração de conhecimentos e diferentes conjugações entre saberes práticos e teóricos no cotidiano do processo de formação docente, o professor de Estudos Urbanos e Educação Donald Schön propõe, sobre a formação de profissionais reflexivos12, um novo design13 para o ensino e a aprendizagem. Schön (1992), alicerçado no pensamento de John Dewey, organiza uma proposta de reforma educativa na área de formação de docentes, tomando por princípio o fator “reflexão-na-ação” e “reflexão sobre a reflexão-na-ação”, enquanto chave que acessa e (de)codifica os mecanismos de formação/reprodução postos pelas instituições formadoras. Culturas e Div. Religiosa.P65 263 21/10/2010, 14:18 264 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) O autor situa a questão nas duas formas diferentes de se considerar o conhecimento, a aprendizagem e o ensino: a noção de “saber escolar” e a noção de “saber tácito”. Para Schön (2000, p. 81), “o saber escolar se pauta pela onisciência do conhecimento que os professores supostamente possuem para transmitir aos acadêmicos, na “visão dos saberes como fatos e teorias aceitas, [...] significando uma profunda e quase mística crença nas respostas exatas”. O saber tácito ou conhecimento na ação é tido como um conhecimento espontâneo, intuitivo, experimental, que se (re)vela nas circunstâncias instigadoras e emergentes do cotidiano, sugere possibilidades, descortina horizontes, provoca diálogos e encaminha a um conhecimento que se dá na ação, pela reflexão de e para as questões postas. Para o autor (1992), um professor reflexivo se permite ser surpreendido com o que o estudante faz, reflete sobre a questão, procura compreender a razão de sua surpresa, reformula o problema suscitado pela situação, formula hipóteses e aplica-as, investigando possibilidades de compreensão ou superação da questão posta. Essa reflexão que se processa no decorrer da ação nem sempre se vale de palavras. Através do processo de reflexão-na-ação, o professor reflexivo poderá chegar a discernir entre a compreensão figurativa de um estudante e a formal de outro, assim como valorizar e encorajar a confusão destes e a sua própria confusão, pois é impossível aprender sem ficar confuso. Além do exercício da reflexãona-ação, Schön desafia o professor a fazer uma reflexão sobre a sua reflexão-na-ação, ou seja, olhar retrospectivamente sobre a sua prática docente no cotidiano, observando, descrevendo e (res)significando o seu devir educativo. Freire também advoga um amplo processo de reflexão sobre a prática dos docentes, visando desocultar formas de opressão, levando-os a se perceberem enquanto seres oprimidos e/ou opressores. O autor enseja uma formação autêntica que considera as situações-limite de docentes e discentes, buscando a sua superação pelo processo de conscientização. É uma reflexão crítica sobre a práxis, que estabelece significados e passa a ser compreendida como compromisso ético diante do ser humano e da vida como um todo.14 O aspecto reflexivo, enquanto pressuposto epistemológico em um processo de formação de docentes, é de importância basilar para a efetivação de uma aprendizagem com sentido e significativa para todos os envolvidos. No entanto, será a coerência, profundidade e íntima relação entre os pressupostos epistemológicos, os encaminhamentos metodológico-didáticos com as necessidades, expectativas, possibilidades, diferentes leituras de mundo, sociedade, cultura e educação em políticas públicas de formação, doscentes e estudantes, que encaminharão o grau de qualidade e criticidade da reflexão e consequentes aprendizagens no processo formador. Culturas e Div. Religiosa.P65 264 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 265 2.8 O Exercício do Diálogo Um processo de formação de docentes comprometido com práticas metodológico-didáticas cotidianas, numa perspectiva de formação inicial e continuada, precisa ter clareza sobre a relevância e exata compreensão da presença do outro no exercício educativo. Este outro difere do grupo ou na relação pessoa a pessoa, ou seja, aquele que anda diferente, que fala diferente, que vê o mundo com outros olhos, que tem cor da pele diferente, que crê de modo diferente, que deseja e se identifica de outro modo, que pertence a outra cultura, a outra geração, outra etnia. Esse outro, percebido como “presença/presente”, presente que não é invólucro, mas conteúdo. Presença, enquanto ser e estar ali, em sua historicidade, provisoriedade, inconclusão, limitação, busca em sua digna humanidade (OLIVEIRA, et. al., 2007). Uma das muitas diferenças presentes no contexto educacional está relacionada com a questão religiosa, originada na diversidade cultural própria dos diferentes grupos de humanos. Ela envolve toda uma gama de relações, interações e conexões, associada a outras questões, que movem, facilitam ou emperram o processo educativo como um todo. É fundamental, que os diferentes estágios, momentos e espaços para formação de docentes tratem com urgência desse assunto, com toda a seriedade conferida aos demais conteúdos curriculares. Como anteriormente refrendado,, não se trata de acrescentar meramente alguns conteúdos sobre diversidade cultural religiosa ao projeto formador, ou seja, incluir algumas perspectivas visando suprimir e ou minimizar certos estereótipos em função de algumas situações delicadas a integrar o cotidiano educativo (SACRISTAN, 1995). Trata-se, sim, do desenvolvimento de uma aquilatada formação, também nessa área do conhecimento, visando à construção de uma prática pedagógica subsidiada pela sensibilidade diante de qualquer discriminação religiosa no trato cotidiano, pelo respeito à identidade na alteridade dos diferentes e suas opções de fé, pela admiração percebida na delicadeza da tessitura, no encontro com as diferentes expressões religiosas, pela possibilidade de descoberta das muitas afinidades entre os diferentes, pela conscientização do educador de se flagrar também um diferente num universo de diferentes. Em texto escrito por solicitação do FONAPER, por ocasião da elaboração dos PCNER, o rabino Henry Sobel (1996, p. 1) assim se expressa: Infelizmente não sei qual é a cura para a intolerância, o radicalismo, o fanatismo, o fundamentalismo religioso. Mas sei que para evitá-los é preciso cultivar o respeito mútuo entre os seres humanos. [...] O que se faz necessário não é tolerância, e sim um respeito de reverência, reverência pela diversidade, diversidade pelas crenças alheias. É somente esta reverência, este profundo respeito mútuo, que pode conduzir-nos à paz. Culturas e Div. Religiosa.P65 265 21/10/2010, 14:18 266 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) O diálogo, na concepção de Freire, é um espaço interativo e educativo que propicia e encaminha a libertação comunitária. Nesse exercício, saberes diferentes vão sendo socializados, revendo situações, limites, posturas, decisões, num movimento que atinge, emociona, desaloja e desafia o individual e o coletivo, onde o objetivo e o subjetivo se casam numa dança em que o corpo expressa o conflito e o desejo do surgimento de uma nova consciência. Nesse lugar de encontro, para ele, “não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que em comunhão buscam saber mais” (FREIRE, 1987, p. 81), homens e mulheres que na (re)apropriação de suas palavras e significados vão sendo mais, conhecendo-se e reconhecendo-se sujeitos e agentes da e na história. Os PCNER elegem o diálogo enquanto processo para o cultivo dessa reverência no processo educativo. Estabelecem que o Ensino Religioso tem a função de garantir que todos os educandos tenham a possibilidade de estabelecer diálogo. E, como nenhuma teoria sozinha explica completamente o processo humano, é o diálogo entre elas que possibilita construir explicações e referenciais, que escapam do uso ideológico, doutrinal e catequético (FONAPER, 1997). Atividades de formação de docentes visando conhecer, discutir, aprender a encaminhar questões pertinentes ao religioso, passam necessariamente pelas muitas concepções de ser humano, sociedade, educação, cultura e sagrado; pelas diferentes percepções de história e processo educativo; pelas diferentes relações entre os seres humanos; pela sensibilidade e compromisso ético de todos os envolvidos e, portanto, exigem muitos e diferentes diálogos. Diálogos que buscam a graça da convivência entre pessoas de leituras e concepções religiosas diferentes, não em decorrência de suas semelhanças, mas com as suas diferenças, Pesquisas, seminários, trabalhos, filmes, documentários, avaliações são algumas entre muitas atividades que buscam contribuir com o processo formador nos seus diferentes níveis e espaços. Os autores e obras escolhidos são de suma importância; a organização das atividades e qualidade dos docentes, fundamental; a diversidade de abordagens um fator estratégico; a opção por uma metodologia participativa, crítica, criativa e prazerosa, um requisito elementar; possibilidades de trocas, uma necessidade; mas, dialogar com e em saber e amor é o exercício que possibilita (des)velar e (re)construir tramas e tessituras do processo educativo em constantes exercícios de e em alteridade. Enquanto os processos de formação de docentes apenas sugerirem o diálogo para as práticas educativas, debaterem exaustivamente sobre diferentes formas de diálogos, ensinarem passos metodológicos para a efetivação do diálogo no ambiente escolar, mas não exercitarem o diálogo no cotidiano pedagógico formador, poucas posibilidades existirão de práticas dialógicas em relação aos diferentes. Para Freire (1995, p.74), dialogar não se restringe a uma abordagem metodológica; é, antes de tudo, uma ferramenta epistemológica. Culturas e Div. Religiosa.P65 266 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 267 É no exercício do diálogo com o diferente que o ser humano gesta a possibilidade de se flagrar também como um diferente e como outro diante de alguém outro. Quando o eu e o outro se percebem, nasce a ética. Dialogar é exercitar essencialmente o ouvir; é conhecer o outro em diferentes espaços e situações; é buscar compreender na alteridade; é respeitar os costumes e dizer o que precisa ser dito com palavras que soam serenas; é usar de delicadeza, respeito, humildade, ternura, muita empatia e, acima de tudo, olhar o outro com o olhar da afetividade, do amor. Dialogar não é falar do outro, sobre o outro, dialogar é falar com o outro (FREIRE, 2000). Um processo de formação de docentes com vistas à construção de educadores comprometidos com a vida numa perspectiva de diversidade deverá passar inicialmente e impreterivelmente pelo exercício do diálogo, visando criar lastro e competências para o transcender de diferenças discriminatórias, processos homogeneizadores e invisibilização de conteúdos na proposta que o organiza e sustenta. Considerações Finais: Reunindo Alguns Traços Uma formação de docentes conduzida em diálogo e consubstanciada com a presença das diversidades, que encoraje posturas onde o gosto da pergunta, o deleite no ouvir o outro, a paixão de saber com o outro, movida pela curiosidade em (des)cobrir, pela alegria de criar e o prazer de conviver nas e com as diferenças constitui a liturgia de um processo libertador e inovador nas vidas dos que ali se descobrem e se encontram sujeitos, propõe-se, enquanto permanente estudo e pesquisa crítica, a ser dialógica e consciente do e no universo educativo. O caráter de diversidade cultural e religiosa em um processo de formação de docentes desafia a extensão, multiplicidade e qualidade das práticas cotidianas empreendidas, que transcendem os tempos e espaços institucionais, processos reducionistas e cristalizados historicamente. Estudos, pesquisas, discussões e reflexões, que circunscrevem uma formação de docentes, que tenha como pressuposto a diversidade dos sujeitos e culturas que os constituem e com os quais interagem em suas práticas, requerem a construção de outras epistemologias e metodologias, assim como outras organizações curriculares. Quebrar o ritmo posto é muitas vezes “pagar um preço alto pela coerência entre o que se faz e o que se diz, o que se escreve. A coerência do formador e do educador não se limita à atividade docente” (GADOTTI, 1989, p. 98); transcende o espaço educativo formal e se encarna no cotidiano que o constitui. Ousemos fazê-lo?! Culturas e Div. Religiosa.P65 267 21/10/2010, 14:18 268 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Notas 1 Mestra em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB/SC. Especialista em Antropologia pela Pontifícia Universidad Católica del Peru – PUC/Lima/ Peru. Coordenadora do Conselho de Missão entre Índios - COMIN/IECLB-RS. E-mail> [email protected] 2 Doutora em Teologia – Área: Educação e Religião pela Escola Superior de Teologia/ESTRS. Pegadoga e Especialista em Séries Iniciais e Educação Pré-Escolar. Docente e pesquisadora no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau. Líder do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. Email: [email protected]. 3 Consulte o site do Instituto Socioambiental - ISA para ver dados da história, cultura e localização de todos os povos indígenas no Brasil: www.socioambiental.org/. 4 Sujeito é a categoria usada por Freire para definir homens e mulheres que, libertos de sua condição de oprimidos, a partir de um processo de educação progressista, libertam-se e libertam seus pares, assumindo uma postura de compromisso diante da vida, dos outros e de si próprios. Leia-se a obra de referência Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, traduzida em muitas línguas. É leitura obrigatória para quem concebe o ato educativo como um devir/compromisso ético dos seres humanos para a construção de uma sociedade que prime pela dignidade conferida aos seus cidadãos. 5 A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, assinada e aprovada por unanimidade em Paris, no dia 2 de novembro de 2001, na 31ª Reunião da Conferência Universal da UNESCO, realizada dois meses após a queda das Torres Gêmeas, em Nova York (11 de setembro de 2001). 6 De acordo com a Resolução nº 02/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação do Brasil, a Educação Religiosa é área do conhecimento, na forma do artigo 33 da LDBEN. 7 As pesquisadoras integram o Grupo de Estudos “Docência, Memória e Gênero”, da Faculdade de Educação da USP/FEUSP. O grupo desenvolve pesquisas e práticas de educação continuada com educadores da rede de ensino público, contando com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. 8 “Face”, “cara”, “rosto” se diz em hebraico panim, em grego prósopon (de onde vem em latim persona). Dussel, filósofo, historiador e teólogo leigo latino-americano diz que “quando estou com meu rosto frente ao rosto do outro na relação prática, na presença de práxis, ele é alguém para ele. O ‘face a face’ de duas pessoas ou mais pessoas é ser pessoa” (DUSSEL, 1994, p. 19). 9 De acordo com Ebeling (1988), a preposição latina coram usualmente carrega o significado de “diante de”, em sentido espacial, mas que se torna insuficiente. A partir da etimologia, o significado mais apropriado seria “face a”, apresentando termos equivalentes de estruturas etimológicas iguais, tanto no grego como no hebraico. Para o autor, a percepção do “face a” significa o mesmo que “na presença de”. Isto constitui o entendimento de que “algo é definido como tal não em si, mas na sua relação para fora, para com o outro, ou melhor: a partir do outro”10. Na presença do outro, o ser humano é exigido por ele e vice-versa. Ambos se encontram na presença um do outro, implicando um olhar de natureza ambivalente; ou seja: ativo (o momento de olhar) e passivo (o momento de ser olhado). 11 12 Leia-se interessante colóquio entre Theodor Adorno e Helmut Becker, transmitido em programa radiofônico na Rádio de Hessen, na Alemanha, que versa sobre “a educação contra a barbárie”. Este se encontra transcrito integralmente na obra de Theodor W. Adorno (2000, p. 155-168). A partir de 1759, já existem referências sobre o surgimento do ensino público brasileiro e sobre a precariedade da oferta de corpo docente do mesmo (RIBEIRO, 1998). Culturas e Div. Religiosa.P65 268 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 13 14 15 269 PIMENTA (2002) analisa a apropriação do conceito “professor reflexivo” no Brasil, seus desdobramentos na área de formação de professores, limitações históricas e contextuais, apontando para a necessidade de políticas públicas para sua efetivação e ampliação conceitual. O autor usa esta expressão própria ao contexto das artes, uma vez que sua proposta educativa decorre de observações e interações com cursos de arquitetura. Com sua obra “Pedagogia do oprimido”, Freire subsidia uma verdadeira revolução político-educativa. Suas bases essencialmente antropológicas e políticas dão sustentação ao processo gnosiológico que se parteja pelo exercício de um diálogo superador. Em sua obra “Pedagogia da autonomia”, Freire discute os saberes necessários à prática educativa, intrinsecamente conectados às práticas de formação docente, necessárias para o cumprimento de tal atividade. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. ANDREOLA, Balduíno. Interdisciplinaridade na obra de Freire: uma pedagogia da simbiogênese e da solidariedade. In: Danilo R. STRECK (Org.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 63-94. ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394/96. Brasília, 1996. _______Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade cultural e orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. CATANI, Denice Bárbara, SOUSA, Cynthia Pereira de, SOUZA, M. Cecília C. História, memória e autobiografia na pesquisa educacional e na formação. 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Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Culturas e Div. Religiosa.P65 269 21/10/2010, 14:18 270 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) _____. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998. GADOTTI, Moacir. Convite à leitura de Paulo Freire. Série pensamento e ação no magistério. São Paulo: Scipione, 1989. KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência. Tradução Haroldo Reimer. São Paulo: Paulinas, 1992. LUTERO, Martinho. Uma prédica para que se mandem os filhos à escola. Traduzido por Ilson Kayser. In: Obras selecionadas: Ética: fundamentos oração sexualidade educação economia. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1995. v. 5, p. 326- 363. MANFREDI, Silvia Maria. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002. MARKUS, Cledes. Culturas e religiões: Implicações para o Ensino Religioso. 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Esta superioridade foi justificada das mais diversas formas, desde a narrativa religiosa que afirmava a superioridade do Deus Cristão sobre todos os outros, até a sofisticada narrativa filosófica que colocou o projeto da Modernidade como sendo a realização na história do próprio espírito universal, como afirmava Hegel. A Modernidade começou com a afirmação cartesiana da ciência que representava o mundo e se constituiu pela afirmação da autoridade do pensamento. O mundo tornou-se um fato produzido pela racionalidade europeia. Pensar o mundo como fato, sem levar em conta os pressupostos de sua constituição, é continuar nos domínios das certezas, sem pensar alternativas novas. Assim, no Racionalismo Moderno, a figura do sujeito centrado em si mesmo foi/é exaltada em detrimento da heteronomia. A alteridade é negada, esquecida, suprimida pelo sujeito autônomo e autoconsciente. O discurso abstrato tentou normalizar a diversidade e as identidades foram/são forjadas, segundo os moldes de um único padrão, tido como universal, e, por isso, o “mais” verdadeiro e o “mais” desenvolvido. As outras epistemologias e organizações sociais – as diferenças Culturas e Div. Religiosa.P65 271 21/10/2010, 14:18 272 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) – eram/são julgadas a partir desta posição (CECCHETTI, 2008). O atual contexto de exclusão e desigualdade e a complexidade das relações sociais do mundo contemporâneo requerem novas orientações epistemológicas, especialmente no campo educativo - o qual ainda (re)produz uma visão essencialista, universalista e monocultural da história, dos saberes e valores – que promovam o desenvolvimento das identidades pessoais/sociais e o reconhecimento das diferenças, ao mesmo tempo em que estimulem o diálogo intercultural. No Brasil, o debate sobre as relações multi/interculturais na educação é bastante recente, assimilando inicialmente elementos dos estudos que vêm se elaborando na Europa, na América do Norte e em alguns países da América Latina. Trata-se de um debate complexo, em que interagem diferentes vertentes teóricas e políticas, no qual é preciso manter o foco sobre a especificidade das relações culturais no contexto brasileiro (FLEURI, 1999). Neste, a dimensão intercultural se reveste de significados específicos: colonialismos e migrações, dominações e convivências, processos de aculturação, fusões híbridas violentas, preconceitos e discriminações invisibilizadas, perda de identidades culturais, entre outros, são elementos que caracterizam a gênese da sociedade brasileira. O encontro/confronto/desencontro entre culturas diferentes configura as raízes da formação social do Brasil, inserindo a Interculturalidade como paradigma emergente para a orientação de novas formas de relacionamento entre grupos socioculturais diferentes. Para Fleuri (1999), é imprescindível conhecer os complexos itinerários de formação e produção cultural que configuram o Brasil e a América Latina, contextos fortemente hibridizados, caracterizados por graves problemas sociais, para que se problematize a imagem de “democracia racial” que acoberta grande parte da conflitividade das relações interculturais nesses contextos, ocultando os graves fenômenos de racismos e discriminações étnica, social e religiosa. Tal conhecimento também pode orientar perspectivas pedagógicas que possam amadurecer novos níveis de consciência, focalizando, na própria reflexão e na própria prática, a dialética identidade/alteridade, como eixo sobre o qual gira a possibilidade de integração emancipatória dos grupos em desvantagem social. Isso posto, apresentaremos neste texto, inicialmente, breves noções sobre Interculturalidade e Educação Intercultural, para, em seguida, fazer memória do Ensino Religioso, uma das disciplinas do currículo escolar das escolas brasileiras, focando especialmente sua trajetória em Santa Catarina, com o objetivo de compreender seu papel, num primeiro momento, enquanto instrumento colonizador responsável pela aculturação sistemática das culturas não-católicas e, num segundo momento, enquanto possibilidade de (re)leitura crítica da diversidade cultural religiosa brasileira, com significativos “exercícios” na perspectiva de uma Educação Intercultural. “Exercícios” porque, no imaginário coletivo dos brasileiros, Culturas e Div. Religiosa.P65 272 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 273 nas decisões políticas, econômicas e educacionais e no hábitus docente, embora o Brasil seja considerado um estado laico, encontram-se práticas, discursos, metodologias e conteúdos de Ensino Religioso fortemente vinculados ao ensino confessional, com ampla hegemonia da tradição cristãcatólica, em detrimento da religiosidade de muitos outros grupos socioculturais presentes no país. O presente texto tem o intuito de apresentar e pontuar como o processo de implantação e adequação do Ensino Religioso foi e está se configurando no Estado de Santa Catarina, de acordo com a legislação vigente, numa perspectiva intercultural, buscando assegurar o respeito e o (re)conhecimento da diversidade cultural religiosa presente na sociedade catarinense e brasileira. 1 Educação Intercultural: Breves Aproximações Os termos “Intercultural” e “Interculturalidade” são de uso recente no Campo das Ciências Humanas na América Latina. Segundo Salas Astrain (2003), somente no final da década de 1980 é que tem início o seu emprego na Antropologia, Pedagogia, Sociologia, História e Filosofia. A noção de Interculturalidade emergiu em meio a um tipo de sociedade na qual comunidades étnicas e grupos socioculturais se veem desafiados a reconhecer suas diferenças e a buscar sua mútua compreensão e valorização, sob pena de produzir e legitimar violências, conflitos e processos de exclusão e dominação. Para o autor (2003), o prefixo “inter” expressa uma interação positiva que, concretamente, busca suprimir as barreiras entre povos, comunidades étnicas e grupos humanos, quaisquer que sejam seus traços identitários. Supõe que a procura pelo diálogo esteja focada na aceitação mútua e na colaboração entre culturas que se entrecruzam. Desse modo, Interculturalidade não pode ser definida somente como duas culturas em contato que se mesclam ou integram, mas tem a ver com os múltiplos processos culturais que tendem à hibridação ou à identificação diferenciada. Assim, a Interculturalidade emerge do [...] diagnóstico de um mundo ferido pela guerra, pela violência e pelo poder, mostrando que a crise cultural que afeta a totalidade de culturas tradicionais e modernas é parte de uma crise da humanidade como não-idêntica a uma sociedade moderna que impôs uma lógica comum, nos últimos séculos, das “verdades” e dos “bens públicos”, em que se tentou “civilizar” os outros, “os bárbaros”, os que não têm o saber nem o atuar “corretos” (SALAS ASTRAIN, 2003, p. 338). O filósofo Raúl Fornet-Betancourt (2004) compreende Interculturalidade não como uma posição teórica, nem só um diálogo de/ e/ou entre culturas “fechadas”, idealizadas, mas como “[...] aquela postura ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a viver Culturas e Div. Religiosa.P65 273 21/10/2010, 14:18 274 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) “suas” referências identitárias em relação com os chamados “outros”, quer dizer, compartindo-as em convivência com eles” (p. 13). Trata-se de uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e recolocação cultural e contextual, permitindo-o “[...] perceber o analfabetismo cultural do qual nós nos fazemos culpáveis, quando cremos que basta uma cultura, a “própria”, para ler e interpretar o mundo” (p. 13). Desse modo, pode-se perceber que a proposta da Interculturalidade não é um modismo de agora, mas uma demanda histórica por justiça cultural, principalmente daqueles grupos que foram marginalizados, reduzidos, silenciados e invisibilizados no decorrer dos tempos. Responde aos diversos problemas que afetam os grupos étnicos, comunidades e grupos socioculturais que coexistem na diversidade cultural, a fim de sentar as bases para uma nova forma de convivência humana. Trata-se de uma reflexão profunda sobre o “saber viver”, sobre o “saber conviver”, buscando os valores identitários em diversos tons, cores e sabores, enfrentando a crescente fragmentação e homogeneização que irrompe na quase totalidade do planeta (SALAS ASTRAIN, 2003). A Interculturalidade implica nova forma de relação social e de representação dos “nós” e dos “Outros”, questionando as hierarquias sociais e os padrões culturais que impedem não só interações enriquecedoras, mas o conhecimento dos Outros e de nós mesmos. Historicamente, as sociedades ocidentais se constituíram com base em um sistema padronizador, homogeneizador e discriminador que tem modelado e limitado significativamente a maneira como se tem compreendido e interagido com o mundo e com a diversidade. Por isso, é necessário o questionamento, uma vez que cada sujeito constrói ou desconstrói imagens e relações discriminatórias, antidemocráticas e excludentes. Desse modo, falar de Interculturalidade não é só falar de sistemas sociais, relações de poder e cosmovisões, mas de nós mesmos (BETANCOURT, 2004). Nessa perspectiva, a Interculturalidade exige mudança de paradigmas, pois requer a consideração do diferente em sua alteridade, tendo o “Outro” como ponto de partida e não mais o “eu”. Efetiva-se, assim, um diálogo intercultural que abre horizontes ao novo e predispõe à escuta do Outro, modificando e ampliando pontos de vista, condição imprescindível para a convivência pacífica. O diálogo entre culturas não impede, necessariamente, a continuidade das raízes culturais de cada um e não implica romper com a própria identidade e com a dos seus antepassados, com suas tradições e com seus valores. Ao contrário, “[...] somente através de um intercâmbio fluido teremos a possibilidade de encontrar novas soluções para nossas diferenças culturais” (MONTIEL, 2003, p. 43). O diálogo com outras culturas e o enriquecimento mútuo mediante a incorporação de novos elementos possibilita o crescimento das Culturas e Div. Religiosa.P65 274 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 275 sociedades. Desse modo, o reconhecimento das diferenças não é um obstáculo, mas, sim, a condição histórica indispensável para alcançar uma convivência solidária entre os distintos povos do mundo. Assim, para Fleuri (1999), a Educação Intercultural apresenta-se como um processo, ou seja, um caminho aberto, complexo e multidimensional, pois envolve uma multiplicidade de fatores e dimensões: os sujeitos e grupos sociais, a cultura e a religião, a língua e a alimentação, os preconceitos e as expectativas, Mas não se reduz a uma simples relação de conhecimento: trata-se da interação entre sujeitos, o que significa uma relação de troca e de reciprocidade entre pessoas vivas, com rostos e nomes próprios, reconhecendo reciprocamente seus direitos e sua dignidade. Uma relação que vai além da dimensão individual dos sujeitos e envolve suas respectivas identidades culturais diferentes. A educação intercultural se configura como uma pedagogia do encontro até suas últimas conseqüências, visando promover uma experiência profunda e complexa, em que o encontro/confronto de narrações diferentes configura uma ocasião de crescimento para o sujeito, uma experiência não superficial e incomum, de conflito/acolhimento (FLEURI, 1999, p. 208). Uma educação de perspectiva intercultural, portanto, longe de ser um instrumento homogeneizador ou um mecanismo de substituição da cultura tradicional de cada povo pela cultura da modernidade, acolhe as diferentes culturas, independente de sua origem ou forma, como elementos constitutivos da identidade humana, tendo em vista que devem ser respeitadas e valorizadas como um dos patrimônios mais valiosos da humanidade. Reconhecer que todas as culturas, embora internamente diversas, possuem saberes e valores próprios que constituem fonte para o desenvolvimento humano, educando para o diálogo intercultural, significa contribuir para a formação de sujeitos capazes de integrarem-se social e culturalmente no contexto em que se encontram inseridos. A diversidade cultural das sociedades significa enriquecimento e não ameaça, e, por isso, uma educação intercultural se propõe a educar para o respeito e convivência a partir da luta contra toda forma de discriminação entre as pessoas, buscando a efetiva igualdade de oportunidades, dirimindo os processos de exclusão e de desigualdades que assolam a contemporaneidade. Para isso, é necessário subsidiar práticas educativas que eduquem para o acolhimento da diversidade, que modifiquem estereótipos e preconceitos por meio do conhecimento de todas as culturas, em mesmo grau e valor, promovendo atitudes e relações sociais que evitem a discriminação e favoreçam interações positivas, possibilitando o desenvolvimento das culturas, em especial, a dos grupos em desvantagem social. A Educação Intercultural requer rupturas com processos educativos atuais, que descendem de uma perspectiva homogeneizadora e que Culturas e Div. Religiosa.P65 275 21/10/2010, 14:18 276 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) transformou a instituição escolar em espaço/lugar de uniformização, onde a ideologia, a pedagogia e a organização predominantes foram configuradas, desde o início, a partir dos interesses da cultura dos grupos hegemônicos (LOBROT, 1992). Constituídas sobre as bases da Modernidade Ocidental, as escolas vêm desempenhando a função de (con)formar os sujeitos aos padrões de racionalização e burocratização de uma sociedade urbano-industrial e monocultural, selecionando, classificando, hierarquizando e padronizando formas de ver a realidade, anulando e subestimando as diferentes maneiras encontradas por inúmeras culturas para explicar e compreender a existência (CECCHETTI, 2008). Por isso, é necessário modificar os padrões gerais de funcionamento da educação, da escola e dos mecanismos de seleção/desenvolvimento dos currículos, tendo presentes diversidade cultural, interesses e necessidades plurais dos sujeitos, por meio de uma estrutura curricular distinta da dominante e de uma mentalidade diferente por parte dos educadores, educandos, pais, gestores e autores de livros/subsídios didáticos, assim como dos sistemas de ensino em sua totalidade. Para Fleuri (1999), a realização dos objetivos da Educação Intercultural exige, ao menos, três mudanças no sistema escolar: a) a realização do princípio da igualdade de oportunidades: a Educação Intercultural requer que se trate, nas instituições educativas, dos grupos populares e minoritários não como cidadãos de segunda categoria, mas que se reconheça seu papel ativo na elaboração, escolha e atuação das estratégias educativas. Além disso, é preciso repensar as funções, os conteúdos e os métodos da escola, de modo a se superar o seu caráter monocultural; b) a (re)elaboração dos livros didáticos, a adoção de técnicas e de instrumentos multimediais: a Educação Intercultural requer profundas transformações no modo de ensinar. A prática educativa é estimulada a se tornar sempre mais interdisciplinar e multimedial. De modo particular, dever-se-á utilizar as técnicas e as metodologias ativas, do jogo à dramatização. Mas, principalmente, os livros didáticos deverão sofrer profundas mudanças. Estes são escritos geralmente na perspectiva da cultura oficial e hegemônica, e não para alunos pertencentes as “muitas culturas”, diferentes entre si, justamente no modo de interpretar fatos, eventos, modelos de comportamento, ideias, valores. E, talvez, sejam usados justamente por aqueles alunos cujas culturas são representadas e julgadas, a partir da cultura hegemônica, de modo preconceituoso e discriminatório; c) A formação e a (re)qualificação dos educadores são, talvez, o problema decisivo, do qual depende o sucesso ou o fracasso da proposta Intercultural. O que está em jogo na formação dos educadores é a superação da perspectiva monocultural e etnocêntrica que configura os Culturas e Div. Religiosa.P65 276 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 277 modos tradicionais e consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os modos de se relacionar com os outros e de atuação nas situações concretas. Além disso, para Jordan (1996), é necessário considerar todo contexto político, econômico, cultural e religioso das sociedades, tendo em vista outros elementos imprescindíveis: a) inclusão significativa no currículo escolar das diferentes culturas, em alteridade, e não em uma perspectiva compensatória ao déficit existente; b) conscientização de que a educação é uma prática social com profunda relação com a dinâmica da vida social concreta, e que, por isso, os resultados, as experiências e vivências decorrentes do processo educativo podem marcar positiva ou negativamente a vida social de cada sujeito; c) articulação das políticas educativas e das práticas pedagógicas tendo em vista a valorização e o (re)conhecimento da diversidade cultural, uma vez que o sucesso escolar é um direito de todos. Para finalizar, a Educação Intercultural procura possibilitar, no cotidiano escolar, uma preciosa oportunidade de crescimento e desenvolvimento da cultura pessoal de cada um, assim como de mudança das relações sociais na perspectiva de construção de uma sociedade mais livre, mais justa e mais solidária (FLEURI, 1999). 2 O Ensino Religioso em Santa Catarina: da Negação à Busca de Acolhimento da Diversidade Religiosa A implementação e a difusão da cultura escolar europeia, em território brasileiro, ocorreram com o processo de invasão e colonização empreendido pelos portugueses, a partir dos séculos XV e XVI. Os primeiros passos na formação do povo brasileiro foram dados em meio à exploração das riquezas desta terra e da submissão dos nativos aos esquemas da metrópole. Os portugueses aportaram nestas terras como “descobridores” e “civilizados”. Seus valores, costumes, religiosidade e conhecimentos eram apresentados como “superiores”, restando aos colonizados a obrigação de tudo aceitar sem questionar e avaliar (HENZ, 2002). A catequese e a educação mediaram o transplante dos bens simbólicos e culturais europeus, cujo controle, domínio e manipulação garantiam a dependência da Colônia. O ensino da religião cristã servia para manter os desníveis sociais vigentes, reforçando os privilégios das classes dominantes. Desde meados do século XVI, no Brasil-Colônia, o ensino da religião se constituiu como instrumento do colonizador, assegurado pela presença dos Padres Jesuítas, responsáveis pela educação dos habitantes do território em processo de conquista, por meio do exercício da catequese e instrução, pois o êxito do empreendimento colonizador dependia da aculturação sistemática e intensiva dos povos indígenas, aos valores espirituais e morais da civilização ocidental-cristã. Mais tarde, essa Culturas e Div. Religiosa.P65 277 21/10/2010, 14:18 278 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) mesma estratégia foi utilizada para com os povos africanos, que aqui foram feitos escravos. A partir de 1549, são fundados seminários para a formação de sacerdotes-membros da Companhia de Jesus e os primeiros colégios destinados à formação de uma elite letrada. Iniciava-se aqui um longo período histórico, no qual a catequese da Igreja Católica Apostólica Romana esteve presente nas escolas brasileiras, sendo um dos meios de propagação do catolicismo no Brasil (CECCHETTI e THOMÉ, 2007). O sistema escolar por eles implantado seguiu os moldes da metrópole portuguesa, também dirigida pela mesma ordem de religiosos. A Igreja Católica manteve-se, por um longo período, aliada ao Estado, chegando a tornar-se ora dependente deste, ora orientadora de sua ação política e, até mesmo, seu sustentáculo no projeto colonizador (FIGUEIREDO, 1995). Desse modo, no Brasil-Colônia, o Ensino Religioso, compreendido e efetivado como ensino da religião, era um dos elementos dos acordos estabelecidos entre a cúpula da Igreja Católica e o monarca de Portugal, de acordo com os princípios do Regime do Padroado. Nesse processo, os valores e a religiosidade dos povos indígenas e africanos eram considerados empecilhos à propagação da verdadeira fé. O método de doutrinação empregado revelava o caráter imposto e disciplinador da catequese, que visava à submissão, à conquista e à adesão dessas culturas à fé católica (FIGUEIREDO, 1995). Entre 1750 e 1777, a Colônia brasileira passou por transformações administrativas e sociais, implantadas pelo Marquês de Pombal, que extingue o sistema de capitanias hereditárias e tenta implantar a bandeira do Iluminismo. Para promover o espírito científico e diminuir a hegemonia da Igreja, Pombal, em 1759, expulsa os Jesuítas do território português. Com a saída forçada dos Jesuítas, o sistema educacional brasileiro, impregnado pelo Iluminismo, passa a incorporar os princípios de laicidade, em oposição ao método jesuítico. No entanto, essa mudança atinge somente a burguesia, pois os grupos populares ficam à margem, em completo estado de analfabetismo. O Ensino Religioso, nesse período, continua como ensino da religião católica, dirigido aos “índios”, escravos e à classe subalterna. Os colonizadores portugueses se autoafirmavam “evangelizados” e “catequizados”. Constituía-se um ensino, portanto, que antes de valorizar os sistemas de crenças de cada sujeito, negava-os ao impor um único modelo de fé. A vinda e a permanência da Família Real no Brasil (1822) produziram modificações na estruturação política brasileira, mas, no campo educativo, o ensino da religião continuou atrelado ao sistema de protecionismo da metrópole, concretizado pelo juramento do imperador em manter, oficialmente, a Religião Católica (FIGUEIREDO, 1995). A Constituição de 1824, em seu artigo 5º, assim declarava: Culturas e Div. Religiosa.P65 278 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 279 A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isto destinadas, sem forma alguma exterior de templo. Em decorrência, o ensino da religião se efetivava sob o protecionismo do Estado, considerado disciplina e, como tal, competência e responsabilidade estatal. Na prática, o Ensino Religioso, compreendido e tratado como catequese, era considerado um componente curricular que, através do uso dos manuais de catecismo, nos padrões tridentinos, difundia a doutrina católica (FIGUEIREDO, 1995, p. 41). O Ensino Religioso é mencionado, pela primeira vez, num documento oficial relativo à educação escolar em 15 de outubro de 1827, no art. 179 da Constituição Imperial, o qual ordena a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e nos lugares mais populosos do Império. Além disso, no artigo 6º, lia-se que [...] os professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmética, prática de quebrados, decimaes, proporções, as noções, mais geraes de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os princípios de moral christã e da doutrina da religião cathólica apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a história do Brasil (grifos nossos). Com a instalação do Regime Republicano (1889), visualiza-se o rompimento entre Estado e a Igreja, pelo Decreto de Laicização de 1890. Seguindo esse princípio, a primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891) declara, no artigo 72, parágrafo 6, que “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. A partir de então, não foram poucos os embates sobre a questão da permanência do Ensino Religioso na escola. O debate entre os que defendem a sua exclusão e os que reiteram a sua permanência nos sistemas de ensino se prolonga na atualidade. Não foram poucos também os acordos firmados entre Igreja e os Governos de Estados, onde, como em Santa Catarina, em 1919, em pleno regime republicano, o Estado cedeu espaços nas Escolas Públicas para o ensino da religião católica (HEERDT, 1992). O autor vê, nessa reaproximação entre a Igreja e o Estado, o surgimento de um novo modelo de Cristandade: No modelo anterior, o da Cristandade, o Estado providenciava a estrutura a partir da qual a Igreja mantinha sua ação evangelizadora. E, a partir do surgimento do modelo Neo-cristandade, novamente o Estado coloca à disposição suas escolas para a Igreja usar como local de ensino religioso, poupando a Igreja Católica da instalação e manutenção de novas Escolas Paroquiais (HEERDT, 1992, p. 178). Culturas e Div. Religiosa.P65 279 21/10/2010, 14:18 280 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Tentando conciliar os movimentos dos prós e dos contras à permanência do Ensino Religioso na escola pública, a promulgação da Constituição Brasileira em 1934 assegura, no Art. 153, que o Ensino Religioso, de matrícula facultativa, será ministrado de acordo com a convicção religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, constituindo matéria nos horários normais das escolas públicas (CARON, 1995). Esse enunciado visava proteger a liberdade religiosa e a confessionalidade como prática pedagógica. Na Constituição do Estado Novo, de 1937, e na Constituição Federal de 1946, o continuum da confessionalidade se manteve, apesar das duras críticas dos educadores da Escola Nova, adeptos do Positivismo, que defendiam as escolas laicas, gratuitas e obrigatórias. Na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº. 4024/61, o Ensino Religioso continua sendo confessional, de matrícula facultativa. Portanto, até o final da década de 1960, o aspecto da confessionalidade esteve muito presente no percurso histórico do Ensino Religioso na educação brasileira e em Santa Catarina. A Igreja Católica exercia ampla hegemonia: Ao defender a existência do Ensino Religioso nas escolas, a Igreja Católica manteve a concepção do ER e de natureza confessional, sendo, por isto, ministrado nas escolas públicas de forma catequética, sem muita preocupação quanto ao espaço da escola, que é pública e aconfessional (CARON, 1995, p. 29). A partir dos anos 70, emerge uma reflexão educacional significativa com a promulgação da LDBEN nº. 5.692/71, a qual apresentava o Ensino Religioso como oferta obrigatória por parte das Unidades Escolares, possibilitando ao educando o direito de optar pela frequência ou não. De acordo com Figueiredo (1996, p. 05), esse fato possibilitou um salto de qualidade na busca da identidade do ER, com distinção entre ER na escola e catequese na comunidade eclesial. Criaram-se programas de formação de professores e curriculares, em que aspectos antropológicos, sociológicos, pedagógicos e políticos foram evidenciados, deixando para trás conteúdos doutrinários e práticas desvinculadas da experiência científica cultural. Particularmente em Santa Catarina, nesse período, ocorreu também um processo de identificação e redefinição do papel do Ensino Religioso, ocasionado pela própria discriminação da disciplina no contexto escolar, o que resultou na construção de novas experiências na perspectiva de um enfoque mais ecumênico, voltado para o campo da religiosidade. Buscouse integrar diferentes credos, embora o Cristianismo continuasse sendo o marco referencial da proposta. Nascia um Ensino Religioso que privilegiava a convivência entre cristãos de diferentes credos religiosos, de forma ecumênica. Para efetivar tal compreensão, foram criadas propostas de formação para os professores e materiais didáticos com linguagem diferenciada daquela adotada até então. Culturas e Div. Religiosa.P65 280 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 281 Algumas experiências de acolhimento e respeito entre igrejas cristãs diferentes levaram, posteriormente, a repensar novamente o Ensino Religioso, principalmente buscando agora uma aproximação interreligiosa. Ao mesmo tempo, a realidade sociocultural brasileira mostrou-se cada vez mais heterogênea e diversificada, e, principalmente, no campo religioso, portadora de uma multiplicidade imensa, marcada pelo crescimento do pentecostalismo, com permanente trânsito religioso e com a emergência de novos grupos e movimentos religiosos. Devido a isso, uma nova concepção de Ensino Religioso foi sendo gestada, que acabou legitimada pela Lei nº. 9.475/1997, que alterou o artigo 33 da LDBEN nº. 9.394/1996, na qual a disciplina é considerada parte integrante da formação básica do cidadão e reconhecida como uma das áreas do conhecimento (Resolução CEB/CNE nº 2/1998), que assegura o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. Por isso, na atualidade brasileira e catarinense, o Ensino Religioso visa proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a fim de possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença, valorizando o pluralismo e a diversidade cultural presentes na sociedade, para que as culturas sejam conhecidas em mesmo grau e valor, com reverência e respeito à alteridade. Sem dúvida, esse é um fato histórico para a educação brasileira, pois, pela primeira vez, criaram-se oportunidades de sistematizar o Ensino Religioso como disciplina escolar que não seja doutrinação religiosa nem se confunda com o ensino de uma ou mais religiões. Dessa forma, o Ensino Religioso, ao proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas/vivenciadas no contexto dos educandos, discute e fomenta o direito à diferença, valorizando a diversidade cultural presente na sociedade, auxiliando na constituição de relações alteritárias entre culturas e religiões distintas, territórios e territorialidades, identidades e diferenças, no constante propósito de promoção dos direitos humanos. 3 Educação Intercultural e Ensino Religioso: Práticas, Desafios e Perspectivas O Ensino Religioso em Santa Catarina, bem como na maioria dos estados brasileiros, enquanto componente curricular, ao considerar as diferentes vivências, percepções e elaborações que integram o substrato cultural da humanidade, cujos relatos e registros, elaborados sistematicamente por diferentes grupos sociais, constituem-se em uma rica fonte de conhecimentos a instigar, desafiar e subsidiar as gerações vindouras, oportuniza a liberdade de expressão religiosa, viabilizando a prática da “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural” (UNESCO, 2001). Culturas e Div. Religiosa.P65 281 21/10/2010, 14:18 282 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Desse modo, problemáticas que envolvem questões como discriminação étnica, cultural e religiosa têm a oportunidade de sair das sombras que levam à proliferação de ambiguidades nas falas e nas atitudes, alimentando preconceitos, para serem trazidas à luz, como elementos de aprendizagem, enriquecimento e crescimento do contexto escolar como um todo (BRASIL, 1997). Nesse sentido, o estudo do fenômeno religioso em um estado laico, a partir de pressupostos científicos, visa à formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de discernir a dinâmica dos fenômenos religiosos que perpassam a vida em âmbito pessoal, local e mundial. As diferentes crenças, grupos e tradições religiosas, bem como a ausência deles, são aspectos da realidade que devem ser socializados e abordados como dados antropológicos e socioculturais, capazes de contribuir na interpretação e na fundamentação das ações humanas (FONAPER, 2008). As orientações oficiais para o desenvolvimento do Ensino Religioso em Santa Catarina descendem de uma perspectiva intercultural, uma vez que compreendem a docência como ação educativa construída e focalizada na valorização e no (re)conhecimento da diversidade cultural religiosa, presente na sociedade brasileira, por meio do exercício do diálogo, da pesquisa, do estudo, da construção, da reconstrução e da socialização dos saberes, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos, discutindo as relações de poder que permeiam as concepções históricas, culturais e religiosas que constituem as sociedades. O exercício pedagógico do Ensino Religioso considera os conhecimentos anteriores dos educandos, bem como o contexto históricosocial no qual estão circunscritos, tendo em vista a continuidade progressiva no conhecimento e na compreensão do fenômeno religioso, pelo estudo, pela pesquisa e pela discussão em exercícios de alteridade, desenvolvendo um processo de (re)conhecimento, respeito e valorização dos diferentes e das diferenças. Embora as culturas e os currículos de grande parte das escolas públicas catarinenses ainda estejam centrados numa perspectiva monocultural, os pressupostos e encaminhamentos pedagógicos do Ensino Religioso, ao buscarem compreender, respeitar e valorizar os princípios históricos, culturais, filosóficos, éticos, doutrinais e morais das diferentes matrizes religiosas (africana, indígena, oriental e semita/ocidental), rompem com conceitos e práticas excludentes e discriminatórias, presentes no contexto social e escolar, possibilitando o exercício do diálogo intercultural. Essa concepção de Ensino Religioso rompe com as práticas doutrinadoras e segmentadoras de um passado ainda recente no Brasil, ao promover e respeitar a diversidade cultural religiosa que transita no cotidiano escolar, permitindo que todos os educandos tenham acesso ao conjunto dos conhecimentos religiosos que integram o substrato das Culturas e Div. Religiosa.P65 282 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 283 culturas, vedadas quaisquer formas de proselitismo, garantindo a liberdade religiosa dos cidadãos e assumindo o compromisso da construção de uma escola que proporcione a inclusão de todos, pelo acesso e pela valorização dos conhecimentos de todas as culturas e tradições religiosas. Nesse sentido, as possibilidades são de outras narrativas, de outros discursos, de outros currículos, de outras práticas pedagógicas e de outras metodologias avaliativas que sejam capazes de (re)conhecer a diversidade na sua totalidade. Tal perspectiva da educação intercultural é complexa, pois exige um (re)pensar constante dos diferentes aspectos e componentes que tecem o cotidiano de cada escola. Muitos foram/são os esforços e investimentos públicos e privados para a efetivação deste Ensino Religioso, de perspectiva intercultural, em Santa Catarina. Um dos frutos do trabalho e da dedicação de inúmeros gestores, educadores e pesquisadores foi a criação, em 1996, do Curso de Graduação em Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso, pioneiro no país, o qual, desde então, tem atendido educadores das redes pública e privada em várias regiões do Estado. O referido curso vem habilitando educadores para o exercício pedagógico do Ensino Religioso através da busca e construção do conhecimento, a partir de conceitos e práticas que expressem a relação com o fenômeno religioso em suas diversas manifestações na vida humana, bem como vem propiciando a reflexão sobre as bases das diferentes matrizes religiosas, numa perspectiva inter/ transdisciplinar, para desenvolver, no cotidiano escolar, a capacidade de acolhimento à diversidade religiosa, através do diálogo e respeito às alteridades. Graças a essa realização, inúmeros docentes universitários e educadores egressos desses cursos vêm realizando diferentes atividades, dentre as quais se destacam: assessorias mantidas junto às Secretarias de Educação e de outras instituições educacionais, sociais, governamentais e não-governamentais; inúmeros trabalhos de conclusão de cursos e dissertações de mestrados voltados à temática das culturas, diversidade religiosa e direitos humanos na perspectiva de exercícios que encaminhem e referenciem práticas de ética, alteridade e Interculturalidade; elaborações de documentos curriculares e cadernos pedagógicos; comunicações em eventos; organização de obras bibliográficas; promoção de eventos regionais, estaduais e internacionais. A partir daí, desencadeia-se um processo diferenciado no trato do Ensino Religioso em Santa Catarina. Os acadêmicos e educadores, amparados por universidades e sistemas de ensino, lutaram/lutam pelo espaço e (re)conhecimento legal junto às redes públicas de ensino, por meio de práticas pedagógicas significativas, exercícios de uma educação intercultural. Culturas e Div. Religiosa.P65 283 21/10/2010, 14:18 284 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Notas 1 Especialista em Formação de Professores de Ensino Religioso (PUC/PR). Bacharelado em Ciências Religiosas (PUC/PR). Graduando em Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso pela Universidade Regional de Blumenau. Presidente da Associação dos Professores de Ensino Religioso do Estado de Santa Catarina (ASPERSC/gestão 20072009). Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD.. Email:: [email protected] 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso, com Especialização em Fundamentos e Metodologia de Ensino Religioso em Ciências da Religião pela Universidade Regional de Blumenau FURB. Secretário do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER). Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. Assistente Técnico-Educacional na Assessoria de Formação e Prática Pedagógica da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC). Email:: [email protected] 3 Mestra em Educação; graduada em Pedagogia e Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso, com Especialização em Fundamentos e Metodologia de Ensino Religioso em Ciências da Religião pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Coordenadora do Colegiado do Curso de Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD.. E-mail:: [email protected] REFERÊNCIAS BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394/96. Brasília, 1996. ______. Lei n. 9.475/97. Brasília, 1997. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Apresentação dos Temas Transversais - Ética. Brasília: MEC/SEF, 1997b. ______. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº. 2/1998. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. Brasília, 02 de abril de 1998. CARON, Lurdes. Educação religiosa escolar em Santa Catarina - Entre conquistas e concessões: uma experiência ecumênica com enfoque na formação de professores. São Leopoldo, 1995. Dissertação (Mestrado em Teologia). Escola Superior de Teologia. CECCHETTI, Elcio; THOMÉ, Ione Fiorini. Ensino Religioso em Santa Catarina: memórias e desafios de um percurso em constante construção. In: CAMARGO, César da Silva; CECCHETTI, Elcio; OLIVEIRA, Lilian Blanck (org). 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Religiosa.P65 285 21/10/2010, 14:18 5 DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSA NO CONTEXTO ESCOLAR: UM CONVITE A PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERCULTURAIS Dolores Henn Fontanive1 Francisca Helena Cunha Daneliczen2 Mariane do Rocio Peters Kravice3 Introdução A escola entre muitos espaços é um dos lugares onde a diversidade registra sua presença. Etnias, culturas, religiões, entre outras particularidades identificam pessoas, vivências, conflitos e perspectivas, que transitam e tecem o cotidiano escolar. Um dos grandes desafios da educação brasileira na atualidade são estudos e pesquisas sobre a diversidade cultural e religiosa existentes no contexto histórico-cultural da escola. Estudos e pesquisas buscam identificar ausências, formas de diálogo e respeito entre e com as diferenças, que se apresentam no cotidiano escolar fortemente marcado por práticas de caráter historico homogêneo e centralizador. Diante da diversidade cultural e religiosa no contexto escolar somos convidados a construir práticas pedagógicas diferenciadas, que valorizem e integrem as diferenças em uma perspectiva de alteridade. 1 Diversidade Cultural e Religiosa no Contexto Escolar A educação é um processo que oportuniza e propicia o desenvolvimento do ser humano, na busca ilimitada para transcender sua finitude e provisoriedade. O cotidiano escolar é um dos lugares em que o educando busca, através das relações empreendidas, respostas às questões que indaga sobre sua existência, seus projetos, dúvidas, seus mais diferentes conhecimentos e necessidades. A escola é um dos espaços onde a diversidade está presente e, por meio dela, o educando conhece diferentes culturas e aprende a respeitar e conviver com as diferenças. Ao considerar a relevância da escola na vida dos educandos, podemos argumentar que as práticas discursivas desempenham um papel importante no desenvolvimento da conscientização deles sobre a sua Culturas e Div. Religiosa.P65 286 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 287 identidade e a do outro. Entendemos a escola como um espaço de construção de conhecimento, de aprendizagem e de construção identitária. Nela, as identidades são constituídas e podem desempenhar um papel importante na vida dos educandos, ao se depararem com outras práticas discursivas as quais ainda não experenciaram em seu ambiente familiar e/ou cultural. Tais práticas discursivas se mostram e se revelam pelo conhecimento e pela linguagem e permitem ao ser humano interpretar e construir maneiras de se inserir na realidade. Segundo André e Lopes (2002), o conhecimento e a linguagem são manifestações do saber que vêm da existência e a elas correspondem níveis de intencionalidade, padrões e elementos culturais. Ou seja, [...] se as identidades [...] são constitutivas do processo de uso da linguagem, isto é, se o modo como construímos as identidades das pessoas é central na definição de como nos engajamos e engajamos outros no discurso e construímos significados, como argumentado aqui, a conscientização da natureza socioconstrucionista do discurso e da identidade [...] é um ponto relevante em qualquer processo de ensinar e aprender [...]. (MOITA LOPES, 2002, p. 54). Ainda para o mesmo autor, é preciso considerar a linguagem como um fenômeno essencialmente social, pois pelo seu uso se constroem as várias identidades no discurso e o modo como estas afetam os significados. O discurso, como construção social, é, portanto, percebido como forma de ação no mundo e, ao investigá-lo, a partir dessa perspectiva, é analisado como os participantes envolvidos na construção do significado estão agindo no mundo por meio da linguagem e construindo suas realidades sociais e a si mesmos. A escola, como instituição social e de cultura, é articuladora de processos de educação, um espaço para viver aspirações de um ser criativo em constante desenvolvimento, o qual adquire e produz cultura, conforme suas necessidades vitais. Assim, suas aspirações e conhecimentos baseados em princípios ajudam a estabelecer confrontos entre o que promove a vida e o que a depreda, entre o que favorece o desencadear do processo e o que limita a sua ação., Notável pela sua composição populacional o Brasil por muito tempo veiculou a imagem de um país homogêneo, sem diferenças, embora nas escolas acontecessem manifestações de discriminação de ordem religiosa e étnica, por parte de educadores e educandos, ainda que por vezes de forma involuntaria, mas que traziam dificuldades ao processo educacional pelo sofrimento e constrangimento aos quais os envolvidos se viam expostos. Diante disso, movimentos sociais foram se desenvolvendo ao longo da história, com resistências a padrões culturais que estabeleciam e sedimentavam injustiças. Culturas e Div. Religiosa.P65 287 21/10/2010, 14:18 288 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Sacristán (1995, p. 82) afirma que “discutir a integração de minorias sociais, étnicas e culturais ao processo de escolarização constitui uma manifestação muito concreta de um objetivo mais geral: o da educação multicultural”. Para ele um problema mais amplo é a capacidade da educação para acolher a diversidade; fazer com que os membros de uma minoria cultural sintam-se acolhidos e discutir, com propriedade, a questão da diversidade em geral. A escola não opera no vazio; a cultura que ali se transmite não cai em mentes sem outros significados prévios. Aqueles que aprendem dentro da educação escolarizada são seres com uma bagagem prévia de crenças, significados, valores, atitudes e comportamentos adquiridos fora da escola (SACRISTÁN, 1995). Sendo a escola um espaço de relações, cabe a ela oferecer as condições para o pleno desenvolvimento de identidades na diversidade cultural, como, por exemplo: criar um ambiente de diálogo cultural, baseado no respeito mútuo; perceber cada cultura na sua totalidade e incluir, como conteúdos, as contribuições das diferentes culturas para um país plural (BRASIL, 2001). Ao refletir sobre a escola com relação à diversidade, Sacristan (1995, p. 84), ainda afirma que isso “[...] é possível apenas quando existe variedade, e o problema fundamental está no fato de que nem o currículo, nem as práticas pedagógicas, nem o funcionamento da instituição admitem, na atualidade, muita variação”. O problema reside no fato de que o currículo, as práticas pedagógicas e o funcionamento das instituições não admitem variações e aberturas das culturas distantes daquelas em que estão inseridas. Ou seja, para Sacristán (1995, p. 84) “a escola tem-se configurado, em sua ideologia e em seus usos organizativos e pedagógicos, como um instrumento de homogeneização e de assimilação à cultura dominante”. As palavras de Sacristán parecem fornecer fortes argumentos e justificativas para a realização de estudos e pesquisas contemplando as temáticas que envolvem a diversidade cultural e como tal conhecimento poderá fazer parte do currículo e da prática educacionais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralidade cultural e orientação sexual (BRASIL, 2001), ao referendarem as questões das culturas, apontam que elas são produzidas pelos grupos sociais ao longo das suas histórias, na organização da vida social e política, nas suas relações com o meio e com outros grupos, na produção de conhecimentos. No espaço escolar, os educandos entram em contato com a diversidade cultural e têm a oportunidade de desenvolver conhecimentos sobre as suas origens e participantes de grupos culturais específicos, entre eles os de ordem religiosa. Ao valorizar as diversas culturas presentes em seu meio, o educando poderá perceber seu próprio valor, promovendo a sua autoestima como ser humano. Nesse sentido, Culturas e Div. Religiosa.P65 288 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 289 [...] cabe à escola buscar construir relações de confiança para que a criança possa perceber e viver, antes de mais nada, como um ser em formação, e para que a manifestação de características culturais que partilhe com seu grupo de origem possa ser trabalhada como parte de suas circunstâncias de vida, que não seja impeditiva do desenvolvimento de suas potencialidades pessoais. (BRASIL, 2001, p. 52). A escola é um espaço de construção e socialização dos conhecimentos historicamente produzidos e acumulados pela humanidade, também no aspecto das religiões, que devem ficar à disposição de todos os que quiserem acessá-los (FONAPER, 1997). Ao trabalhar a diversidade dos conhecimentos humanos, ampliam-se horizontes para o educador e para o educando, proporcionando uma abertura para a consciência de que a realidade em que vivem é apenas parte de um mundo complexo, fascinante e desafiador. Nesse exercício, A problemática que envolve a discriminação étnica, cultural e religiosa, ao invés de se manter em uma zona de sombra que leva à proliferação da ambigüidade nas falas e nas atitudes, alimentando com isso o preconceito, pode ser trazida à luz, como elemento de aprendizagem e crescimento do grupo escolar como um todo. (BRASIL, 2001, p. 57). Conhecer para respeitar e valorizar a diferença não significa aderir aos valores do outro, mas percebê-los como expressão da diversidade, que confere dignidade e identidade. Também “é trabalho de construção, no qual o envolvimento de todos se dá pelo respeito e pela própria constatação de que, sem o outro, nada se sabe sobre ele, a não ser o que a própria imaginação fornece” (BRASIL, 2001, p. 57). Segundo Koch (2006), o ser humano vive em constante relação com outros seres humanos e, possivelmente, nessa relação se depara com uma infinidade de diferenças, que produzem os diferentes. Logo, o que está relacionado aos diferentes e à diferença tem como pano de fundo a linguagem, e o que está relacionado e constitui a linguagem tem como pano de fundo a diferença. O cotidiano escolar se apresenta como um dos espaços para a reflexão e, consequentemente, à mudança de mentalidades, superação de preconceitos e combate a atitudes discriminatórias. A escola tem um papel importante a desempenhar nesse processo, porque é um dos espaços em que se dá a convivência entre educandos de origens diferentes, com costumes diferentes daqueles que cada um concebe e com visões de mundo diversas daquela que cada um compartilha em família. No espaço escolar, transitam seres humanos com suas aspirações, crenças, vivências que precisam ser atendidas e respeitadas. Assim, novas exigências surgem, havendo necessidade de repensar o espaço educativo, objetivando reconhecer e respeitar a presença do outro, que histórica e culturalmente constitui-se em um diferente. Registra-se, portanto, a necessidade de a prática pedagógica escolar incluir abordagens sobre a importância de uma postura ética em relação à alteridade. Culturas e Div. Religiosa.P65 289 21/10/2010, 14:18 290 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) 2 Interculturalidade e Cotidiano Escolar Na existência humana, é impossível aprender sem conhecer. Para tanto, é fundamental a interação do ser com seu meio: o processo histórico, social, cultural, religioso e científico. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2003), o outro cultural apresenta-se como problema, pois coloca em xeque nossa própria identidade. A questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social e, ao mesmo tempo, pedagógico e curricular. [...] social porque, em um mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, com o diferente, é inevitável. [...] pedagógico e curricular não apenas porque as crianças e os jovens, em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente interagem com o outro no próprio espaço da escola. [...] a questão do outro e da diferença não pode deixar de ser preocupação pedagógica e curricular. (SILVA, 2003, p.97). O currículo escolar, com algumas exceções, abrange a totalidade dos aspectos da vida humana. Entretanto, muitas vezes, prioriza apenas a visão de um único grupo cultural, caracterizando-se como projeto educacional homogeneizador. O currículo escolar que privilegia uma cultura coloca em risco a identidade dos educandos e do grupo social e cultural do qual são integrantes. Essa postura homogeneizadora não leva em conta as diferenças claramente manifestadas no espaço escolar. Tal prática poderá resultar em reflexos de relações e confrontos culturais, percebidos e identificados no ambiente escolar. A escola como espaço social e instância de poder pode (re)produzir integralmente ou parcialmente uma cultura discriminadora e desenvolver atitudes educacionais que marginalizem os sujeitos inseridos no processo de escolarização, deixando de oportunizar o conhecimento e (re)conhecimento do outro, do diferente, na diversidade dos grupos e expressões culturais. Ao mesmo tempo, percebe-se a reflexão incansável de muitos pesquisadores e teóricos em dar diferentes significados ao currículo, na tentativa de possíveis práticas pedagógicas que incluam as diferenças e reconheçam a alteridade. Percebe-se, de acordo com Fleuri (2000), a necessidade de mudanças curriculares na formação dos profissionais da educação para a efetivação de uma escola, que esteja atenta e comprometida com a diversidade das culturas em suas múltiplas manifestações que transitam, cotidianamente, no contexto escolar. Nesse sentido, o currículo deverá (re)contextualizar-se, porque novas áreas do conhecimento vão se formando por desdobramento de novas práticas culturais; portanto, o currículo sempre deverá estar ligado ao entendimento do sujeito social e culturalmente. Uma perspectiva educativa que abrange as reflexões já colocadas neste texto referentes à diversidade cultural é a Interculturalidade. O espaço escolar situa-se como tempo e lugar privilegiados para a interculturalidade. Culturas e Div. Religiosa.P65 290 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 291 Nele acontece o confronto e encontro das diversidades culturais, tornando possível o desenvolvimento de projetos interculturais. Dessa maneira, Paola Falteri expõe que um projeto de tal natureza, [...] pretende intervir nas mudanças induzidas pelo contato com a diversidade, de modo a promover atitudes abertas ao confronto e conduzir os processos aculturadores para uma integração entre culturas que não ‘colonializem’ as minoritárias [...] começa somente quando se criam condições para a troca, quando se estabelece uma relação de reciprocidade, quando, no reconhecer o ‘outro’, tornamo-nos conscientes de nossa própria cultura. (FALTERI, 1998, p.37, 38. Apud FLEURI 1998, p. 25). Nesse sentido, uma educação que integre encontro, confronto, conflito, conhecimento e respeito com as diferenças, a partir da diversidade cultural, têm na interculturalidade um referencial para “ambientes criativos de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais.” (FLEURI, 2001, p. 32). Trazemos à tona Souza e Fleuri (2001) quando se referem ao paradigma da complexidade sendo algo compreendido como percepção dos diversos sujeitos e orientação de suas relações e interações, o que se constitui em uma das formas de pensar, propor, produzir e dialogar com o processo de aprendizagem, pois a realidade não é subdividida, mas permite particularidades. É importante observar que o direito à educação intercultural se funda na necessidade de o educando viver numa sociedade formada por muitas culturas. A escola deve respeitar cada cidadão e grupo social, garantindo, por imperativo legal e ético, que os educandos acessem a totalidade dos conhecimentos elaborados pela humanidade, não somente o que é específico dos diferentes grupos culturais e/ou interesses das diferentes instâncias de poder, mas também o que é indispensável ao convívio de todos os seres humanos numa sociedade intercultural. Concebendo a alteridade como prerrogativa para lidar com as diferenças, respeitando-as e preservando-as, uma educação que pretenda atender a esses pressupostos ganha um perfil desafiador, ou seja, rompe com a postura tradicional de que as diferenças devem ser eliminadas. Entende-se que a interculturalidade se dá, principalmente, por promover acolhimento, compreensão, conhecimento, valorização e integração das diferenças e não sua eliminação ou extinção. Segundo pesquisas de Sidekun (2003, p. 259), “a interculturalidade cria um paradigma interpretativo novo, que opera pela interpretação do próprio e do Outro, como resultado da interpelação comum, mútua, em que a voz de cada um é percebida e reconhecida em sua alteridade”. A abordagem referente às formas de conceber o pensamento, o conhecimento e a prática pedagógica, em uma perspectiva intercultural, mostra a importância de saber efetivamente o que caracteriza a cultura do outro, para se estabelecer o que se espera no cotidiano educativo. Convém Culturas e Div. Religiosa.P65 291 21/10/2010, 14:18 292 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) lembrar que o ser humano desenvolve suas capacidades a partir das necessidades de sobrevivência. Possui a capacidade de pensar, permitindo conviver com a realidade, conhecendo-a, compreendendo-a, explicandoa e realizando intervenções. De acordo com Freire (2000), os humanos como seres éticos são capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher; são capazes de grandes ações, de significantes atitudes, mas também de impensáveis atitudes de indignidade, como, por exemplo, as atitudes de discriminação às diferenças sociais, culturais, étnicas, religiosas, entre outras. Buscar construir outras práticas pedagógicas , que tenham a interculturalidade como pressuposto demandam uma percepção em constantes exercício de e em alteridade. 3 Práticas Pedagógicas Interculturais: Construindo Autonomia e Dignidade no Contexto Escolar Planejar e construir uma prática pedagógica que esteja voltada para a dignidade da vida é o desafio que tem a alteridade como parceira indispensável. A alteridade depende da forma e da consciência com que as pessoas envolvidas lidam e respeitam as diferenças. No cotidiano escolar, percebemos que não é possível pensar o ser humano como um ser igual, determinado ou concluso. Percebemos, sim, o diferente e as diferenças. Segndo Wickert, (2008), todas as perspectivas de convivências e conflitos com o outro são resultantes da não-compreensão das diferenças do outro. Acolher e respeitar as diferenças é um modo de educar, que acolhe possibilidades de complementaridade e totalidade. Devemos considerar a pessoa humana constituída de um corpo lócus, que dá visibilidade ao fazer e ao ser e requer reconhecimento, autonomia e liberdade. Uma educação voltada para a vida em plenitude, que induza o ser humano à percepção de que está imerso em um mundo voltado exclusivamente para o utilitarismo e não para o respeito à diversidade, na sua singularidade, exige empenho, determinação, preparo e uma constituição teórica bem-fundamentada. Segundo Boff (2000), cabe destacar a importância da solidariedade, quando se pretende debater ações que tenham dignidade como foco. O homem adquire sua dignidade a partir da valorização dele mesmo, como fim em si mesmo, não tão somente como meio. Kant (1988, p. 161) assegura que “o que constitui a condição única que pode fazer com que algo seja um fim em si não tem apenas um valor relativo, isto é, não tem preço, mas um valor intrínseco, isto é, dignidade”. Dessa forma, não há possibilidade de uma sociedade se nomear como digna onde o ser humano Culturas e Div. Religiosa.P65 292 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 293 se constitui em sua própria destruição e onde os meios econômicos definem os rumos e as condições de todos e de todo o planeta. De acordo com o relatório da pesquisa “Dignidade Humana e Paz”, vinculada à Campanha da Fraternidade 2000 do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – CONIC1, a palavra dignidade é entendida, na linguagem corrente, como honestidade, sinceridade, responsabilidade, e, num sentido ético, como condição humana, como atributo essencial do ser humano, independente do que ela faça ou deixe de fazer para merecê-la. Nesse segundo sentido a palavra “dignidade” costuma ser usada com o adjetivo “humana”, passando a ser escrita com letra maiúscula: Dignidade Humana. É possível relacionar a palavra “respeito” tanto à Dignidade Humana, atributo de todo o ser humano, como à dignidade, algo que se conquista e que torna alguém respeitado e respeitável diante dos demais. Ao se tratar da dignidade como algo que é conquistado e como conduta moral, portanto, vinculada às normas da sociedade, as pessoas fazem uma distinção entre diferentes níveis de dignidade que devem ser respeitados. Entendem que é justo respeitar as diferenças naturais como as morais, existentes entre os indivíduos, e entendem que o respeito tem limites, possibilitando a formação de preconceitos e classes sociais. Podemos pensar a Dignidade Humana na condição relacional com o todo do universo, na medida em que todo humano se torna digno de si, quando promove o encontro com a totalidade. A dignidade é condição primária de todos os seres; não deve ser apenas do humano. Somos dignos de ser denominados humanos, quando respeitamos, nas devidas proporções, os não-humanos. Dignidade não é apenas uma esfera subjetiva, mas também objetiva, pois perpassa todas as instâncias sociais. É a paixão pela vida e pelo viver. Por isso que, [...] pathos é a capacidade de sentir, de ser afetado e de afetar. Esse é o Lebenswelt, o arranjo existencial concreto e protoprimário do ser humano. A existência jamais é pura existência; é co-existência, sentida e afetada pela ocupação e pela preocupação, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo com os outros, pela alegria ou pela tristeza, pela esperança ou pela angústia (BOFF, 2003, p.80). Toda relação educativa é digna de ser verdadeiramente humana e humanizadora, quando exclui toda relação de violência. Lévinas deixou para a humanidade um enorme legado bibliográfico, com muitos livros ainda a serem traduzidos. Vem nos auxiliar com uma proposta de ética voltada para o Outro, como prioridade sobre o Eu. É no Outro que se encontra o infinito e o finito. Quando você olha o rosto do outro, ele é muito mais do que a visagem. O Outro é o excluído, o escravo, o órfão, o Culturas e Div. Religiosa.P65 293 21/10/2010, 14:18 294 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) homossexual, o desempregado, o indígena, a mulher marginalizada, o semteto, o negro, entre muitos outros. A dignidade se apresenta em Lévinas (2005) como a condição primordial do respeito a todas as categorias nas quais se organiza a sociedade. É preciso conceber a todos como seres humanos e, por essa razão, todos devem ser dignos de ter sua morada, seu lar e condições de satisfação mínima em todos os sentidos. Mas, a alternativa para superar a condição de desumanidade dá-se na medida em que todos tiverem contemplado o seu ethos como lugar da diversidade e do bem-estar social e econômico. “Outrem, como Outrem, não é somente um alter-ego. Ele é o que eu não sou: ele é o fraco, enquanto eu sou forte; ele é o pobre; ele é a viúva e o órfão” (LÉVINAS, 2005, p. 162). Para o autor, o Outro é diferente nas suas diferenças. Todos nós somos diferentes. Nós não somos convidados a respeitar as diferenças, este é o princípio. Somos sim, responsáveis pelas diferenças, pelos diferentes. A diferença é o Outro, nós não escolhemos. Sou interpelado pelo Outro. Somos diferentes em nossa individualidade. O Outro me conduz e seduz. Tenho obrigação de respeito para com o Outro. Pivatto (2001), remete-nos para a necessidade do respeito ou igualdade pelo Outro. Por isso Não há ética quando se considera só um indivíduo, não há ética quando construída a partir do Eu, considerado protótipo de toda a humanidade. Acima e antes de tudo, a ética é uma relação primordial. Esta relação constitui o fato primeiro, é o ôntico fontal sobre o qual pode erguer-se o ontológico e que a própria racionalidade supõe e exige (PIVATTO, 2001, p. 219). Encontramos em Lévinas uma exigência primeira de uma Ética coletiva, rompendo o princípio do cogito ergo sum, de Descartes: Penso, logo existo. Se penso e, em consequência, o Eu existe, logo ele age a partir do seu existir como pressuposto do pensar. Pensar é a regra fundamental para a Ética. Portanto, individual e subjetiva. E é a esta perspectiva cartesiana-kantiana da proposta linear e dentitária que Lévinas dirige a postura da Ética da Alteridade. É preciso e fundamental, para Lévinas, trazer para o centro da fundamentação ética o princípio da heteronomia, em detrimento da desvalorização da autonomia. Heteronomia pressupõe o múltiplo, o diverso, os sem-identificação, os sem-endereço, os sem-teto, os excluídos. Diante disso, Lévinas propõe a prática do acolhimento, não como um favor, mas como um dever, responsabilidade42 irrecíproca, uma obrigação que o outro nos impõe. É exatamente nessas circunstâncias que Lévinas propõe uma ação concreta e eficaz, denominada de acolhimento e hospitalidade. A Dignidade em Lévinas (2002) é face e linguagem do acolhimento e da hospitalidade. Isso implica sermos responsáveis por aquele (a) a quem acolhemos, tornando-o hóspede, dando-lhe um lugar de direito. O Outro Culturas e Div. Religiosa.P65 294 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 295 está no mundo como um todo. Se você se separar do Outro, responsável, você se separa do mundo. Não podemos nos isentar dessa responsabilidade. “Responsabilidade em preocupação de reciprocidade: tenho de responder por outrem sem me ocupar da responsabilidade dele para comigo” (LÉVINAS, 2002, p.16). O acolhimento é a porta que se abre para a exterioridade, ao infinito que é convidado a entrar na casa da alteridade, lugar que é de todos, espaço da partilha e da solidariedade. Encontro e desencontro do finito e do infinito. O Rosto como o único capaz de promover o encontro da finitude e infinitude compreendida na epifânia do face a face. É transcender e acolher numa atitude ética o existente que grita e sofre pela exclusão. Por essa razão, “no acolhimento do outro, eu acolho o Altíssimo ao qual minha liberdade se subordina” (DERRIDA, 2004, p.71). O acolhimento é sempre o acolhimento do Outro, pois é tão somente o Outro que pode dizer sim. O acolhimento não é derivado, nem tampouco o rosto, e não há rosto sem acolhimento. É como se o acolhimento, tanto quanto o rosto, tanto quanto o léxico que lhe é co-extensivo e, portanto, profundamente sinônimo, fosse uma linguagem primeira, um conjunto formado de palavras quase primitivas e quase transcendentais. É preciso pensar, sobretudo, na possibilidade do acolhimento para pensar o rosto e tudo o que se abre ou se desloca com ele, a ética, a metafísica ou a filosofia primeira. O acolhimento determina o “receber”, a receptividade do receber como relação ética (DERRIDA, 2004). A dignidade humana ocorre quando o ser humano é reconhecido como humano e não como objeto, tanto na sua vocação ontológica, como histórica. Kant (1785 apud Comparato 2006, p. 434) enfatiza que, [...] o ser humano distingue-se das coisas materiais porque tem dignidade e não um preço, e nenhum homem deve, jamais, submeter-se à vontade do outro para servir de meio à consecução de uma finalidade, qualquer que ela seja, dado que a pessoa humana é, sempre e em todo lugar, uma finalidade em si mesma. Se não amarmos o mundo, se não amarmos a vida, se não amarmos os homens, não nos é possível o diálogo. Andreola (2002) nos afiança que o diálogo não pode ser um diálogo elitista, entre intelectuais. O diálogo é um encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, que se rompe se seus polos (ou um deles) perderem a humildade. Como dialogar, se alienamos a ignorância, isto é, se a vemos sempre no outro, nunca em nós? Como dialogar, se nos admiramos como homens diferentes, virtuosos por herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconhecemos o outro eu? Em seus escritos, Andreola (2002, p. 140) apresenta o “diálogo intercultural como estratégia política indeclinável para construir uma nova humanidade num projeto que não se conforme com o caminho suicida da especulação, da ganância, da competição, da fome e da guerra”. É através Culturas e Div. Religiosa.P65 295 21/10/2010, 14:18 296 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) do diálogo que os diferentes pontos de vista enriquecem a reflexão, possibilitando a ampliação do conhecimento para um pensar crítico e criativo. Os educadores, segundo Hoff (2005), têm um papel importante a desenvolver e construir com seus educandos: uma cultura de respeito e de abertura ao diálogo, ao diferente e ao outro. Esse papel de colocarse frente a frente com o outro, de sensibilizar-se para a beleza e diversidade de diferentes culturas é parte essencial da estrutura de cada ser humano. A dignidade do ser humano não pode ser violada em relação a si mesma, em relação ao outro, na relação com a natureza e com o Transcendente. A escola é um espaço em que as máscaras devem dar lugar ao Rosto, à transparência de mundos, vidas, sonhos, possibilidades, saberes e conhecimentos, para que, sem medos ou disfarces, perceba-se o sabor de uma convivência em dignidade. É preciso convencer e mover para que o abraço se transforme na acolhida sonhada. É preciso que o mestre se incline e tenha a humildade de aceitar-se como eterno aprendiz da e na alteridade. É preciso (re)aprendermos a respeitar o Outro e “corrermos atrás do prejuízo” de termos esquecido, no porão de nossas autodescobertas, a excelência de nossa identidade: a dignidade humana. Dignidade é resultado de um exercício incomparável da relação com o outro, o estranho, o diferente e o indiferente que machuca, que fere; é o amor, o face a face, o rosto transformado em pérola. Assim como a pérola, a dignidade se constrói, cria rosto a partir de suas defesas, na relação com o elemento estranho que a invade, machuca e tortura. Para a construção de uma sociedade justa, fraterna e livre, cujos sujeitos percebam a dignidade como sua extensão, é fundamental a compreensão ética e superadora do Outro, sujeito em movimento no exercício educativo. Nesse sentido, Oliveira (2007, p. 32) destaca que, [...] esse outro que pode deferir do grupo ou na relação pessoa a pessoa, ou seja, aquele que anda diferente, que fala diferente, que vê o mundo com outros olhos, que tem cor da pele diferente, que crê de modo diferente, que deseja e se identifica de outro modo, que pertence a outra cultura, a outra geração ou a outro grupo social. Esse outro percebido como presença/presente, presente que não é invólucro, mas conteúdo. Presença, enquanto o ser e estar ali, em sua historicidade, provisoriedade, inconclusão, limitação, busca; em sua digna humanidade. Reconhecer que a escola é um espaço pedagógico onde convivem diferentes sujeitos, com costumes diferenciados, diversas tradições religiosas e diferentes concepções de mundo, requer propostas de formação de docentes comprometidas radicalmente com o cultivo e promoção da dignidade humana. Culturas e Div. Religiosa.P65 296 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 297 Considerações Finais As perspectivas da interculturalidade na proposta curricular e prática pedagógica na escola objetiva diálogos entre diferentes saberes entre si, percebidos no convívio social e cultural dos educandos. Essa concepção tem como objetivo maior educar o ser humano para conhecer, compreender e respeitar as diferenças culturais, estabelecendo diálogo com o outro, a partir da vivência e convivência em sua família, comunidade escolar, sociedade e religião, como pré-requisito da cultura. Essa proposta de trabalho educativo integra as discussões e ações de uma Educação Intercultural para a alteridade. A educação intercultural focaliza os problemas de relação, integração e conflito entre etnias e culturas diferentes, e objetiva oportunizar contextos educativos em que a integração e a cooperação, bem como as relações sociais e culturais de diferentes sujeitos sejam favorecidas. É por meio da convivência e da construção de práticas pedagógicas atentas às diferenças que será possível sentir e reagir às discriminações religiosas no trato cotidiano. Isso será possível, na medida em que houver respeito à identidade e às diferenças e admiração permeada de delicadeza no encontro com os diferentes, no qual educandos e educadores possam se flagrar também como “um diferente num universo de diferentes exercitando a valorização da alteridade, experimentando quem eu sou, quem somos nós e quem podemos ser” (OLIVEIRA, et.all, 2007, p.33). Notas 1 2 3 4 Mestra em Educação pela Universidade Regional de Blumenau - FURB. Coordenadora de Ensino Religioso na 12ª SDR/ Gerência de Educação de Rio do Sul. Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. E-mail: [email protected] Mestra em Educação e graduada em Pedagogia e Ciências da Religião – Licenciatura Plena em Ensino Religioso (FURB/SC). Especialista em Interdisciplinaridade na Educação, Membro do Grupo Ethos, Alteridade e Desenvolvimento –,GPEAD Assessora Pedagógica na Rede Municipal de Balneário Camboriú e Blumenau/SC [email protected] Mestra em Educação pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Graduada em Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso – UNIVILLE. Especialista em Fundamentos e Metodologia do Ensino Religioso em Ciências da Religião – FURB. Membro Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. E-mail:[email protected] Essa responsabilidade pelo outro é estruturada como um-pelo-outro, até um ser refém do outro, refém em sua própria identidade de convocado insubstituível, antes de qualquer retorno sobre si. Para o outro à guisa de si – mesmo, até a substituição do outro” (DERRIDA, 2004, nota rodapé, p. 23). Culturas e Div. Religiosa.P65 297 21/10/2010, 14:18 298 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) REFERÊNCIAS ANDRÉ, Maristela G.; LOPES, Regina Pereira. A construção do humano. In: MARTINI, Antonio et al. O humano, lugar do sagrado. São Paulo: Olho D’água, 2002. p. 5-14 ANDREOLA, Baldoíno Antonio. [et.al]. Educação, cultura e resistência. Uma abordagem terceiromundista. Santa Maria, RS: Ed. Pallotti/ITEPA/EST, 2002 BOFF, Leonardo. Ethos mundial: consenso mínimo entre os humanos. Brasília, DF: Letraviva, 2000. _____ , Virtudes para um outro mundo possível. Vol III: Comer e beber juntos e viver em paz. 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Religiosa.P65 299 21/10/2010, 14:18 6 MITOS E CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA DA DIFERENÇA Carla Fernanda da Silva1 Marcos Rodrigues da Silva2 Respeitem meus cabelos, brancos Respeitem meus cabelos, brancos Chegou a hora de falar Vamos ser francos Pois quando um preto fala O branco cala ou deixa a sala Com veludo nos tamancos Cabelo veio da África Junto com meus santos Bengueles, zulus, gêges Rebolos, bundos, bantos Batuques, toques, mandigas Danças, tranças, cantos Respeitem meus cabelos, brancos Se eu quero pixaim, deixa Se eu quero enrolar, deixa Se eu quero colorir, deixa Se eu quero assanhar, deixa Deixa, deixa a madeira balançar (CÉSAR, 2003) Nesta primeira década do século XXI, diferente dos séculos anteriores, o Sagrado e o Mito recuperam lugar nas discussões teológicas e filosóficas, ganhando destaque também em novos movimentos de conhecimento, como a filosofia e a psicologia, que surgiram e se fortaleceram com a intenção de ampliar a compreensão do humano. Quando observamos o homem em atitude de veneração a um objeto natural, enquanto objeto sagrado, não significa que adore o objeto como tal, mas a manifestação sagrada contida neste objeto. Uma pedra sagrada, um espaço, um rio, por exemplo, quando venerados, não deixam de ser identificados como tal. Mas, não é ao seu estado real que se atribui a contemplação, e sim ao que é manifestado. Culturas e Div. Religiosa.P65 300 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 301 Nas sociedades primitivas, o homem vivia mergulhado nas hierofanias, a tendência era predominantemente viver o mais próximo possível dos objetos consagrados, a natureza em si era sagrada, o tempo, o espaço, a moradia, o próprio corpo humano era algo consagrado, embora, ainda hoje, nas sociedades “modernas”, seja possível encontrar alguns povos com suas culturas, que vivem profundamente mergulhados no mundo da sacralidade. O homem moderno, ao entrar num shopping center, assume uma postura de reverência ao sagrado mercado, da mesma forma que o homem primitivo assumia postura de reverência quando se aproximava de uma árvore ou de outro referencial considerado como vinculado à adoração. As constantes mudanças, tanto do homem moderno quanto do primitivo, na busca de locais e tempos de reverência, provocam rupturas e quebras que se devem às manifestações do sagrado, portanto, às hierofanias. Assim, há espaços sagrados e espaços não sagrados. Para o homem não religioso, o espaço é homogêneo e neutro, uma vez que não diferencia seus espaços com experiências religiosas, que para o homem religioso tem “forte” e intensa dimensão do sagrado. Uma motivação para você que se aproxima desta reflexão sobre o mito, a diversidade cultural africana na diáspora, deve ter presente a dimensão do povo afro-americano na América Latina e Caribe. As culturas religiosas e expressivas de matriz banto participaram em processos de africanização do cristianismo de longa data, na América Latina e o Caribe, desenvolvidos em Confrarias e Irmandades de N. S. do Rosário, São Benedito (San Benito), São João, entre outros. Em La Havana, as crônicas históricas referem-se às Confrarias e aos Reinados Congos em procissão pelas ruas da cidade. Na Venezuela, a expressão desse tipo de irmandade se desenvolveu em múltiplas formas. Os Chimbángueles, no sul do Lago Maracaibo, são formados por uma hierarquia de capitães e vassalos de São Benedito, em torno de uma orquestra formada por sete tambores, realizando cortejos e procissões na rua~ no leste, na região do Barlovento, os três tambores culo e puya ou “redondos” se alternam nos cortejos das festas de São João, com o mina e o curbeta. Na costa do Caribe, de Puerto Cabello à La Sabana, as festas religiosas são animadas pelos cumacos, grandes tambores de tronco sobre o chão, e as pipas, construídas de grandes tonéis. Os tambores ngoma, que cronistas como Cavazzi reportaram no Congo no século dezesseis, encontram semelhanças nos tambores “redondos” do Barlovento; no “tambor de crioula” em São Luiz de Maranhão, no Brasil; nos tambores de yuka, em Cuba; e nos “atabales”, em Santo Domingo, tocados de pé e amarrados à cintura. Os grandes ngoma encontram semelhança nos “cumacos” do litoral venezuelano, assim como nos tambores dos cultos Cumina, na Jamaica e em outras ilhas do Caribe. As organizações para rituais e procissões festivas, como os Chimbángueles, Culturas e Div. Religiosa.P65 301 21/10/2010, 14:18 302 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) na Venezuela, encontram paralelos na América toda e, no Brasil, na forma de Congados, Catupés, Moçambiques e Reinados, tanto formas devocionais africanizadas como formas de organização política alternativas às dominantes. A história das populações africanas e afro-brasileiras, que é a de, aproximadamente, 60% das pessoas no território brasileiro, é reconhecida por muita luta, resistência e pela autodeterminação. Na diáspora africana, esse povo se afirma como cultura marcada pela pluralidade étnica e diversidade religiosa, numa sociedade neoliberal onde apenas consegue reconhecer-se na sua realidade multicultural. O desafio está em dar um passo adiante na afirmação da pluralidade étnica e na valorização da diversidade cultural, como parte integradora da identidade brasileira. Podemos compreender que, entre outras possibilidades, sobre uma reflexão teológica a partir e com a dimensão desse povo afro, a diáspora é um lugar onde logos e mythos podem se justapor. Isso pode encaixar-se no âmbito dos estudos acadêmicos através da categoria fundamental do “sentido”. Considerando, numa perspectiva de africanidade, que o mito surge como uma narrativa imagética e dramática de instauração de sentido, podemos também considerá-lo como fundamental para a compreensão de um modo de ser que nossa limitada capacidade de conceituação poderia chamar de “inefável”. Este “inefável” é algo que se manifesta sob aspectos que nossas também limitadas categorias tentam apreender – a de “sagrado”. O “sagrado”, no contexto de africanidade, na diáspora, pode ser compreendido como a totalidade da vida do homem e da mulher negra, e ainda, tudo que o envolve como ser em relação, contribuindo na interação da identidade deste povo. O mito pode ser uma ponte entre ambos, entre a experiência religiosa e as formulações teológicas a respeito: o mito pode ser entendido como fundamento das práticas religiosas e como expressão de sua religiosidade. O mito, nesse sentido, funciona como uma espécie de “condensador” de significado religioso, portador e verificador da verdade religiosa, como guardião da ação do sagrado e como expressão narrada desta ação. Uma abordagem da religiosidade no mito, a nosso ver, não pode prescindir da noção de “sagrado”. Esta noção, fundamental no campo de estudos das religiões, remete a uma especificidade inegável do fenômeno religioso. Ainda que, de um ponto de vista crítico, o conceito de “sagrado” possa ser relativizado, para o homo religiosus ocorre o que tão bem expressa Mircea Eliade: Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar esse fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela lingüística e pela arte, etc. é traí-lo, deixar escapar precisamente o que existe nele de único e irredutível, ou seja, seu caráter sagrado. (ELIADE, 1990, p. 16). Culturas e Div. Religiosa.P65 302 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 303 Chamamos aqui, a exemplo de Mircea Eliade (1960, p. 25), de “hierofania” essa manifestação do sagrado, que exprime uma modalidade e um momento de sua história. Temos, pois, para nosso efeito, que estabelecer uma distinção de duas ordens, ou seja, a do numinoso e a do sagrado, que é mais propriamente sua expressão e que se manifesta sempre numa certa situação histórica, através de suas modalidades. Uma modalidade é um modo de ser, e os modos de ser do sagrado são estrutural e historicamente diferenciados. O sagrado se manifesta na forma de mitos, ritos, formas divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias, homens, animais, plantas e lugares consagrados. Cabe, pois, ressaltar outros problemas terminológicos que envolvem a questão. Se enveredarmos pelo aspecto não racional, ou a-racional, do fenômeno religioso, qualquer aproximação ao numen escorrega e se perde nos labirintos da linguagem que a delimita, mas não a apreende em sua totalidade. Na África, o sagrado está na voz do griot, termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes, para as quais, em geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África ocidental, notadamente onde se desenvolveram os impérios medievais africanos (Gana, Mali e Songai), recebe denominações variadas: dyéli ou diali, entre os Bambaras e Mandingas; guésséré, entre os Saracolês, wambabé, entre os Peúles, auoloubé, entre os Uolofes (LOPES, 2004, p. 310). O griot responsável pela memória dos povos africanos permite que os mitos cheguem até nós. Mas como pensá-los na contemporaneidade? No passado, o espaço do mito foi as aldeias africanas e, para além do território africano, a àgora, o teatro grego, presente no canto dos aedos ou em conversas em torno de fogueiras, no ensinamento de pais para filhos, ou seja, o mito era parte do cotidiano de todos. Hoje é estudado, dissecado, analisado nas universidades, mas como eco distante no cotidiano do grande público. Se na academia o mito encontra o seu lugar, o mesmo não ocorre no espaço escolar. Ao pensar na possibilidade do uso dos mitos na prática pedagógica, percebe-se que o mesmo também pode ser um bom princípio para estudar e compreender a multiplicidade cultural. Neste artigo, em particular, pensamos os mitos africanos como meio de abordar essa cultura em sala de aula, ou seja, ir além do conteúdo continuamente abordado sobre a história africana e afro-americana no Brasil, que, por vezes, limita-se ao processo de escravidão, à submissão do negro ao trabalho escravo e ao processo de abolição, em que os brancos libertam esses escravos, ou seja, estuda-se a história africana e afro-americana a partir da perspectiva de uma sociedade em que os negros estão sujeitos às decisões de outros, em que os mesmos não são protagonistas da história. Culturas e Div. Religiosa.P65 303 21/10/2010, 14:18 304 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Assim, compreendemos que iniciar o estudo dessa cultura a partir de seus mitos torna-se uma possibilidade de entendê-la a partir da realidade africana, ou seja, contada por seus povos. Pretende-se, assim, refletir sobre a identidade atribuída ao povo africano, identidade esta naturalizada, cristalizada e essencializada (SILVA, 2000, p. 73) pelo modo como é conduzido o estudo de outras culturas em sala de aula. A distância com que as culturas são apresentadas destaca o curioso, o exótico reforçando a ideia de identidade em que o outro é aquele que não sou. Segundo Tomaz Tadeu: “Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos.” (SILVA, 2000, p. 76). Imbricado nessa afirmação da identidade e da enunciação da diferença está o desejo dos diferentes grupos sociais em garantir acesso privilegiado aos bens culturais e sociais (SILVA, 2000, p. 81), ou seja, estabelecer relações de poder e, por vezes, hierarquização das diversas culturas. Ao pensar as outras culturas pela perspectiva do exótico, busca-se afirmar a nossa cultura como normal, como referência, e, assim, inferiorizar as demais culturas. Fato que se percebe destacado ao estudarmos a relação das demais culturas com o sagrado, em que, por vezes, pretende-se reforçar a concepção de verdade, de normalidade em confronto com o exótico. É preciso refletir que “a normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença.” (SILVA, 2000, p. 81). Ao classificar culturas como normal e exótica se estabelece uma hierarquização, em que, para a cultura dita normal, é atribuído valores positivos, fazendo desta uma referência de positividade, desejável, e, por vezes, pensada como natural (SILVA, 2000, p. 83). Portanto, torna-se necessário repensar a prática pedagógica de forma que as identidades não sejam fixadas (nós x eles), hierarquizadas, naturalizadas, mas, sim, em que seja possível questionar a forma de perpetuação dessas representações. Em um ponto específico é preciso questionar a forma como as culturas africana e afro-americana vem sendo representada em sala de aula e nos livros didáticos. É preciso conceber uma prática pedagógica em que o aluno possa explorar novas possibilidades de pensar o outro como diferente, e mais ainda: possibilitar a ele esta diferença, sem querer conformar e entender a sua cultura a partir dos parâmetros da minha cultura, ou seja, compreender a outra cultura pela sua multiplicidade. Para tanto, é possível pensar a prática pedagógica a partir do mito e da literatura africana contemporânea, de forma que se possa conhecer a tradição oral mitológica dos povos africanos, presentes nas comunidades negras do Brasil, refletindo sobre estes povos africanos antes da diáspora. Provocar o impensado em nossos alunos, pensar os povos africanos para além da escravidão, para uma existência além da presença branca, ou seja, desconstruir a identidade naturalizada da cultura negra. Assim, pensar a África a partir dos mitos de seus povos é pensá-la antes da presença Culturas e Div. Religiosa.P65 304 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 305 europeia em seu território, é estimular a compreensão da vivência desses povos como livres em seus territórios, e não mais como povos escravizados, cuja existência é meneada pelo outro. Para melhor analisar essa prática, a partir de uma pedagogia da diferença (SILVA, 2000, p. 101), destacamos o mito: Ogum dá aos homens o segredo do ferro, reunido em livro por Reginaldo Prandi (2001): Na Terra criada por Obatalá, em Ifé, os orixás e os seres humanos trabalhavam e viviam em igualdade. Todos caçavam e plantavam, usando frágeis instrumentos feitos de madeira, pedra ou metal mole. Por isso o trabalho exigia grande esforço. Com o aumento da população em Ifé, a comida andava escassa. Era necessário plantar em uma área maior. Os orixás então se reuniram para decidir como fariam para remover as árvores do terreno e aumentar a área da lavoura. Ossaim, o orixá da medicina, dispôs-se a ir primeiro e limpar o terreno. Mas seu facão era de metal mole e ele não foi bem sucedido. Do mesmo modo que Ossaim, todos os outros orixás tentaram, um por um, e fracassaram na tarefa de limpar o terreno para o plantio. Ogum, que conhecia o segredo do ferro, não tinha dito nada até então. Quando todos os outros orixás já tinham fracassado, Ogum pegou o seu facão, de ferro, foi até a mata e limpou o terreno. Os orixás, admirados, perguntaram a Ogum de que material era feito tão resistente facão. Ogum respondeu que era o ferro, um segredo de Orunmilá. Os orixás invejavam Ogum pelos benefícios que o ferro trazia, não só à agricultura, como à caça e até mesmo à guerra. Por muito tempo, os orixás importunaram Ogum para saber o segredo do ferro, mas ele mantinha o segredo só para si. Os orixás decidiram oferecer-lhe o reinado em troca de que ele lhes ensinasse tudo sobre aquele metal tão resistente. Ogum aceitou a proposta. Os humanos também vieram a Ogum pedir-lhe o conhecimento do ferro. E Ogum lhes deu o conhecimento da forja, até o dia em que todo caçador e todo guerreiro tiveram sua lança de ferro. (PRANDI, 2001, p. 86-87). Esse mito nos permite questionar: que tempo foi esse? Qual o significado de viver em igualdade? A partir de qual momento esse tempo termina? Quem eram os orixás? Primeiramente, destacamos que o mito nos transporta para o continente africano, Ifé, num tempo em que viviam em igualdade, um tempo antes da diáspora, antes da colonização, ou seja, uma África pouco estudada em nossas escolas. Assim, primeiramente, é preciso entender o continente africano, sua história, geografia e a diversidade de povos que ali vivem. Ou seja, a compreensão dessa narrativa necessita de uma pesquisa deslocando o estudo comumente existente em sala de aula. Assim, por meio do estudo da arte e dos mitos desses povos é possível refletir este tempo de igualdade da vivência em tribos e, após, o surgimento dos reinos africanos. A pesquisa, bem-orientada e diversificada em termos de fontes, possibilita um novo olhar, para além do que os livros didáticos têm oferecido. Culturas e Div. Religiosa.P65 305 21/10/2010, 14:18 306 LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.) Ao deslocar o estudo para além dos livros e do mundo virtual, e trazer para a sala de aula pessoas que estejam vinculadas ao movimento negro, à música, à capoeira e às religiões de matriz africana, permite-se ao aluno o convívio e a troca de experiência com outras pessoas, estudando a história a partir da vivência, percebendo essa história africana e afro-americana na contemporaneidade, a partir de seu passado. Portanto, ao propor a leitura do mito, em que Ogum dá aos homens o segredo do ferro, pretende-se assinalar o momento de mudança em que diversos povos africanos abandonam o nomadismo e tornam-se sedentários, como outros povos nos demais continentes. Porém, remeter-nos ao tempo em que orixás e homens conviviam em Ifé e refletir sobre a origem mítica é pensar também num mundo muito remoto, em que o tempo não se nomeia em datas. Remeter o estudo do continente africano para seus primórdios é uma possibilidade de “estimular, em matéria de identidade, o impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em vez do consensual e do assegurado, do conhecido e do assentado. Favorecer, enfim, toda experimentação que torne difícil o retorno do eu e do nós ao idêntico.” (SILVA, 2000, p. 100). Na atualidade, as imagens do continente africano são de miséria, fome, doença e guerras, que perpetuam um preconceito, mas não explicam as causas da miséria africana, apenas reforçam um estigma. Um estudo a partir dos mitos e da literatura pode nos mostrar um continente africano anterior à miséria infligida à sua população. Estudar a história africana a partir da voz de africanos é estudar essa história a contrapelo (BENJAMIN, 1991), é romper com a identidade africana e afro-americana essencializada e naturalizada, para nos deslocar até uma pedagogia da diferença, em que a multiplicidade é valorizada e disseminada. Multiplicidade que é possível analisar em cada mito em que os “orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem.” (PRANDI, 2001, p. 24). Estudar a mitologia e a literatura africana também nos ajuda a compreender as relações humanas, compreender o outro com quem convivo, possibilita que o ‘outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse outro que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser um (outro) eu; significa deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto, diferença entre duas identidades, mas diferença da identidade.” (PARDO, 1996, p. 154). Assim, o aluno, ao perceber um mundo africano anterior à invasão europeia, pode compreender melhor a contemporaneidade, como Mia Couto inicia seu livro Terra Sonâmbula: “Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca.” (COUTO, 1995, p. 09). A escrita de Mia Couto relata a guerra recente no continente africano, iniciada durante a colonização, mostra o sofrimento, a tristeza desses povos. A literatura, de modo simples, para além dos estereótipos disseminados nos meios de Culturas e Div. Religiosa.P65 306 21/10/2010, 14:18 CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS 307 comunicação, permite-nos ler aqueles que vivem em solo africano. Explorar a literatura africana da contemporaneidade é importante para comparar à sua mitologia, perceber, por meio dessas duas narrativas, dois momentos distintos da história desse continente: um tempo anterior à invasão europeia, e um tempo posterior, em que: A guerra crescia e tirava dali a maior parte dos habitantes. Mesmo na vila, sede do distrito, as casas de cimento estavam agora vazias. As paredes, cheias de buracos de balas, semelhavam a pele de um leproso. Os bandos disparavam contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem sabe alvejassem não as casas mas o tempo, esse tempo que trouxera o cimento e as residências que duravam mais que a vida dos homens (COUTO, 1995, p. 27). O mito e a literatura, portanto, mostram uma possibilidade de questionar as identidades que são impostas, e iniciar um trabalho a partir de uma pedagogia da diferença, que nos possibilita o impensado, e, acima de tudo, ouvir o outro, permitindo ir além das identidades naturalizadas. Notas 1 Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professora substituta do Departamento de História e Geografia da Universidade Regional de Blumenau – FURB. E-mail: [email protected]; 2 Mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção/SP – Professor do Departamento de História e Geografia da Universidade Regional de Blumenau – FURB. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD. E-mail: [email protected]; REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história. Org. Flávio Kohte. SP: Ática, 1991. CÉSAR, Chico. Respeitem meus cabelos, brancos. 2003. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. RJ: Nova Fronteira, 1995. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A Essência das Religiões. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, 1960. _______. Tratado de história das religiões. Lisboa: Ed. Cosmos, 1990. LOPES, Nei. Diáspora africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004. PARDO, José Luis. El sujeto inevitable, in CRUZ, Manuel (org.) Tiempo de subjetividad. Barcelona: Paidós, 1996. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. SP: Cia das Letras, 2001. SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. Culturas e Div. Religiosa.P65 307 21/10/2010, 14:18 Culturas e Div. Religiosa.P65 308 21/10/2010, 14:18