Revista JuRídica da Faculdade una de contagem
Transcrição
Revista JuRídica da Faculdade una de contagem
Revista Jurídica da Faculdade Una de Contagem Organização Alessandra Mara de Freitas Silva Flávio Alves Janones Revista Jurídica da Faculdade Una de Contagem Volume 1 • Número 1 • Jul/Dez 2014 Belo Horizonte • 2015 Copyright© 2015 by Una Contagem As opiniões emitidas em artigos ou notas assinadas são de responsabilidade dos respectivos autores. A Revista Jurídica da Faculdade UNA de Contagem é editada semestralmente sob os auspícios da Faculdade de Direito do Centro Universitário UNA de Contagem e da Editora Letramento. FACULDADE DE DIREITO UNA DE CONTAGEM Reitor: Átila Simões da Cunha Direitor Geral: Flávio Alves Janones Coordenação do curso de Direito: Alessandra Mara de Freitas Silva Diretor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas: Evander Luis de Moura Coordenadora da Pós Graduação de Direito UNA: Cynthia Goursand Macedo Mendonça R454 Revista Jurídica da Faculdade Una de Contagem / Organização Alessandra Mara de Freitas da Silva ; Flávio Alves Janones v.1 n.1 (jul /dez 2014). -- Belo Horizonte, MG : Letramento : Faculdade de Direito do Centro Universitário UNA Contagem, 2014. 302 p. .; 16x23 cm. Periodicidade : Semestral ISSN: 2359-3504 1. 2. Professores - Contagem (MG) - Capacidade Jurídica, legislação, etc. 2. Direito - Brasil.I. Silva, Alessandra Mara de Freitas, org. II. Janones, Flávio Alves, org.III.Título. CDD 340 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7- 5880 Este livro foi editado respeitando as novas regras ortográficas. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Não é permitida a reprodução desta obra por qualquer meio, físico ou digital, sendo a violação dos referidos direitos crime punível com pena de multa e prisão na forma do artigo 184 do Código Penal. O mesmo se aplica às características gráficas e editoriais. A Editora Letramento não se responsabiliza pela originalidade do conteúdo desta obra, sendo que essa é de responsabilidade exclusiva do autor, assim como do que dela impingir aos seus leitores. www.editoraletramento.com.br Impresso no Brasil. Printed in Brazil. REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE UNA DE CONTAGEM Editor Prof. Dr. Lucas Moraes Martins Organização Alessandra Mara de Freitas Silva Flávio Alves Janones Revisão Técnica Cristian Kiefer da Silva Hassan Magid de Castro Souki Fabiano Eustáquio Zica Silva Conselho Editorial Adilson Xavier da Silva (UNA) Alexandre Bueno Cateb (Ibmec/MG) Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (UFMG e PUC/MG) Ana Flávia Arruda Lanna Barreto (UNA) Arthur Magno e Silva Guerra (Milton Campus) Daniel Moreira do Patrocínio (UNA) Fernando Herren Aguillar: USJT e da USP Fernando José Borges Correia de Araújo (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) Hugo Schayer Sabino (Faculdade Novos Horizontes) Jean Christhoper Merle (Universidade de Tours) Juraciara Vieira Cardoso (UFLA) Lucas Moraes Martins (UNA) Marcelo Sarsur Lucas da Silva (UNA) Oksandro Osdival Gonçalves (PUC/PR) Renata Mantovani de Lima (UNA) Pareceristas Iara Alves Etti Froes Ipojucan Coelho Ayala (PUC/MG) Fernando José Borges Correia de Araújo (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) Oksandro Osdival Gonçalves (PUC/PR) Álvaro Chagas castelo Branco (UniCEUB) Cristian Kiefer da Sila (UNA) Telder Andrade Lage (UNA) Fabiano Eustáquio Zica Silva (UNA) Lucas Moraes Martins (UNA) Hassan Magid de castro Souki (UNA) Alessandra Mara de Freitas Silva (UNA) Lucas Alexandre Barquette (UNA) Adriano Olinto Meirelles (UNA) Periodicidade: Semestral Editora Letramento Editor Responsável: Gustavo Abreu Projeto Gráfico, Diagramação e Capa: Bruno Oliveira Avenida Professor Mário Werneck, 2900 – Sala 110 30575-180 - Belo Horizonte/MG Tel: (31) 3912-6625 www.editoraletramento.com.br [email protected] Tiragem: 1000 unidades FACULDADE DE DIREITO UNA DE CONTAGEM Revista Jurídica da Faculdade UNA de Contagem - Volume 1, Número 1, Jul/Dez 2014, pp. 1 – 302. Prédio I: Avenida João César de Oliveira, 6620, Beatriz; Prédio II: Rua João de Deus Costa, 330 Contagem - MG (31) 3235-7300 CEP 32040-000 Sumário editorial: Uma nova etapa................................................................................................11 DILEMAS DE UM ESTADO (DEMOCRÁTICO) MULTICULTURAL: O direito como reconhecimento cultural nas sociedades democráticas contemporâneas..................................................13 1. Introdução..............................................................................................................14 2. Multiculturalismo e Pluralidade Cultural...............................................................15 2.1. Compreensão do termo multiculturalismo.................................................................15 2.2. Multiculturalismo e reconhecimento........................................................................20 2.2.1. Do reconhecimento social na contemporaneidade: diversidade cultural e democracia..........................................................................................20 3. CONCLUSÃO: O DIREITO E O RECONHECIMENTO...................................................................27 REFERÊNCIAS.................................................................................................................30 TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL, POLÍTICA URBANA E POLÍTICA CULTURAL.............................................................................................33 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................34 2. DEFINIÇÃO E UTILIDADE DO TOMBAMENTO.........................................................................35 3. CRITÉRIOS PARA O TOMBAMENTO.....................................................................................38 4. TOMBAMENTO E PLANEJAMENTO.....................................................................................40 5. PODER PÚBLICO E O PARTICULAR NA MANUTENÇÃO DO PATRIMÔNIO TOMBADO..........................44 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................46 REFERÊNCIAS.................................................................................................................46 AS LEIS DE ANISTIA E AS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS...............................................................48 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................48 2. AS TRÊS ONDAS DE TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA....................................................................49 3. VIOLAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTIAS E HUMANOS..........................................................51 4. PROCESSAR E PUNIR OU PERDOAR E ESQUECER?.................................................................52 5. CONCLUSÃO ...............................................................................................................56 REFERÊNCIAS.................................................................................................................61 ENFRENTAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA CIENTÍFICA “PROCESSO COMO TEORIA DA LEI DEMOCRÁTICA”, DE AUTORIA DE ROSEMIRO PEREIRA LEAL.........................................................63 1. Considerações iniciais..............................................................................................64 2. Proposição da pesquisa e seu marco teórico: embaraços à compreensão dos institutos do direito, lei e norma..........................................................................65 3. Metodologia: método crítico.....................................................................................66 4. Lógica......................................................................................................................67 4.1. Lógica geral (formal)............................................................................................69 4.2. Lógica modal......................................................................................................71 4.3. Lógica situacional................................................................................................72 5. Lei: da “Ideia” à Teoria..............................................................................................75 5.1. “Modelos” de Estado e o mito da “sociedade pressuposta”...........................................75 5.1.1. Estado Liberal de Direito...............................................................................75 5.1.2. Estado Social de Direito (Republicano).............................................................77 5.1.3. Estado Democrático de Direito........................................................................82 6. Processo como Teoria da Lei Democrática na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo.........................................................................87 7. Revisitação crítica da dogmática indiscernível do direito, lei e norma........................89 8. Considerações Finais................................................................................................91 Referências.................................................................................................................92 DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE: Memórias de histórias de violações de direitos humanos durantes as Ditaduras militares no Cone Sul e no Brasil.................................95 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................96 2. O FUNDO CLAMOR........................................................................................................98 3. OS ARQUIVOS DO TERROR..............................................................................................100 4. MEMÓRIAS RESGATADAS................................................................................................101 5. A REPRESSÃO NAS DITADURAS DO CONE SUL......................................................................105 5.1. A Ditadura Militar no Paraguai................................................................................107 5.2. O Regime Militar Brasileiro....................................................................................108 5.3. A Ditadura Argentina............................................................................................111 5.4. A Ditadura Chilena...............................................................................................113 5.5. A Ditadura Civil e Militar no Uruguai........................................................................115 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................117 REFERÊNCIAS ................................................................................................................118 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DISCURSOS DE AUTO-ENTENDIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NO PROCESSO LEGISLATIVO DEMOCRÁTICO..................................................................................................121 1. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................122 2. TIPOS DE ARGUMENTOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO DEMOCRÁTICO DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO E DA VONTADE..................................................................................................................123 3. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO LIBERAL ........................................................125 4. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO REPUBLICANA.......................................... 128 5. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TEORIA DO DISCURSO.............................................................131 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................136 REFERÊNCIAS ................................................................................................................137 A NOVA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL: A BOA FÉ OBJETIVA E OUTROS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS......139 INTRODUÇÃO..................................................................................................................140 1. O QUE É PRINCÍPIO?.....................................................................................................141 2. DIRIGISMO CONTRATUAL...............................................................................................143 3. BOA FÉ OBJETIVA E BOA FÉ SUBJETIVA..............................................................................145 3.1. Histórico da Boa-Fé Objetiva..................................................................................146 3.2. Histórico da Boa-Fé Objetiva no Brasil.....................................................................147 3.3. Funções da Boa-Fé Objetiva...................................................................................148 3.3.1. Função Interpretativa........................................................................................148 3.3.2. FUNÇÃO INTERATIVA...........................................................................................149 3.3.3. Função Limitadora............................................................................................150 3.4. Venire Contra Factum Proprium................................................................................150 3.5. Surrectio e Suppressio...........................................................................................150 3.5.1. Requisitos .......................................................................................................151 3.6. Tu Quoque..........................................................................................................152 3.7. Diferenças Entre Venire Contra Factum Proprium, Surrectio, Suprecccio e Tu Quoque.............152 4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS..................................................................152 5. PRINCÍPIO DA REVISÃO OU EQUILÍBRIO CONTRATUAL...........................................................153 CONCLUSÃO...................................................................................................................154 REFERÊNCIAS.................................................................................................................155 DESAFIOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL............157 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................159 2. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO....160 3. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E A LEI Nº 10.216/2001.........................................................162 3.1. Os Destinatários da Lei..........................................................................................162 3.2. Os Tipos de Internação Previstos e seus Requisitos Legais............................................163 3.3. A Finalidade da Internação Compulsória...................................................................166 4. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL..........................167 4.1. A Dignidade da Pessoa Humana ..............................................................................168 4.2. O Princípio da Legalidade......................................................................................170 4.3. O Direito Deambulatorial.......................................................................................172 5. ASPECTOS RELACIONADOS À CRIMINALIZAÇÃO DAS CONDUTAS...............................................174 5.1. Vedação da Analogia In Malam Partem......................................................................174 6. A EFICÁCIA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE TOXICÔMANOS................................................176 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................178 REFERÊNCIAS.................................................................................................................180 A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL: ANÁLISE DO REGIME JURÍDICO E IMPORTÂNCIA DE TAIS ENTIDADES À LUZ DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE.........................................................................................................183 1. ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS DO ESTADO PÓS-MODERNO E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE......184 2. DIFERENÇAS ENTRE SERVIÇO PÚBLICO E ATIVIDADE ECONÔMICA.............................................190 3. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA...........................................................................195 4. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA POR SERVIÇOS – A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA...............198 5. O PAPEL DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL..............................................................203 6. DIFERENÇAS ENTRE O REGIME JURÍDICO DE DIREITO PÚBLICO E O REGIME DE DIREITO PRIVADO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA ADMINISTRATIVA INDIRETA NO BRASIL..............204 REFERÊNCIAS ................................................................................................................207 DA POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO DE ATOS TERRORISTAS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL......209 1. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................209 2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS...........................................................................................211 2.1. A Instituição dos Tribunais Militares Internacionais....................................................213 2.2. A Instituição Dos Tribunais Ad Hoc Pelo Conselho De Segurança Das Nações Unidas..................218 3. Possibilidade Do Julgamento De Atos Terroristas Pelo Tribunal Penal Internacional........221 3.1. Terrorismo Como Crime De Guerra...........................................................................225 3.2. Terrorismo Como Crime Contra A Humanidade...........................................................228 4. CONCLUSÃO................................................................................................................230 REFERÊNCIAS.................................................................................................................231 POR UMA BIOÉTICA DIALÓGICA E INTERDISCIPLINAR A PARTIR DO HISTÓRICO DE DESENVOLVIMENTO DA DISCIPLINA........................................................................................233 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................234 2. DESENVOLVIMENTO......................................................................................................235 A) Contexto Social, Político e Científico para o Surgimento da Bioética.................................235 B) Histórico da Bioética..............................................................................................243 3. CONCLUSÃO................................................................................................................249 REFERÊNCIAS.................................................................................................................249 A PROPOSTA DE REFORMA DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS E O ESTADO BRASILEIRO............................................................................................................252 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................253 2. A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS..............................................................................254 2.1. O Conselho de Segurança da Onu............................................................................255 3. A PROPOSTA DE REFORMA DA ESTRUTUTA DO CSNU, A “DANÇA DAS CADEIRAS” E O BRASIL...........258 4. PONTOS DE DISCUSSÃO.................................................................................................261 5. CONCLUSÃO................................................................................................................263 REFERÊNCIAS.................................................................................................................264 HÁ ALGO REALMENTE IMPERDOÁVEL?.....................................................................................266 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................267 2. A VÍTIMA REALMENTE OCUPA A FUNÇÃO ESSENCIAL? ...........................................................267 3. RAZÕES PARA A IMPERDOABILIDADE SUBJETIVA.................................................................270 4. O INTERESSE EM AFIRMAR A IMPERDOABILIDADE................................................................274 5. REFERÊNCIAS..............................................................................................................277 INSIDER TRADING: O alcance subjetivo da proibição do uso indevido de informação privilegiada....................................................................................................................280 1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................281 1.1. O Insider Trading..................................................................................................281 2. O INSIDER TRADING NO DIREITO BRASILEIRO......................................................................284 2.1. Considerações Iniciais...........................................................................................284 2.2. O Alcance da Proibição à Prática do Insider Trading.....................................................293 3. CONCLUSÃO................................................................................................................299 REFERÊNCIAS ................................................................................................................299 editorial Uma nova etapa Há tempos gesta-se, nas mentes e nos corações dos docentes e discentes do Curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem, o pensamento de uma revista jurídica, cuja preocupação central fosse a de fornecer à comunidade acadêmica um espaço amplo e irrestrito para o debate de temas jurídicos, políticos e filosóficos. A concretização desse ideal se deve a múltiplos esforços, coordenados de forma harmoniosa pela Professora Alessandra Mara de Freitas Silva e pelo Professor Flávio Alves Janones. Para além de louros e títulos, o curso de direito da Faculdade UNA de Contagem tem ultrapassado o árido solo das promessas para se fazer mostrar através de realizações concretas e palpáveis. Com passos serenos e firmes, o surgimento da primeira edição da revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem abre uma nova época para o curso de direito, ou melhor, trata-se, sobretudo, de uma renovação: a de empreender a experimentação de uma vida acadêmica plena. Nesta primeira edição, contamos com quatorze artigos de fina reflexão jurídica, cuja contribuição democrática nos põe diante de novos motivos de investigação. O leitor encontrará nesta edição desde problematizações práticas que buscam refletir o cotidiano jurídico até meditações sobre questões político-filosóficas. Buscando inventar novas formas de estudar o direito, a linha editorial se mostra, assim, intencionalmente aberta às mais variadas reflexões, pautada sempre pela ética da alteridade, como ressaltado por Emmanuel Lévinas – a alteridade pressupõe o respeito pelo Rosto do Outro. Convidamos o leitor que passeie despreocupadamente em nossas páginas, que ponha o olhar aqui e ali, em um gesto parecido com o do flâneur de Walter Benjamin, e, quem sabe, encontrar-se-á o fragmento necessário para se repensar o papel do direito e da justiça. Professor Doutor Lucas Moraes Martins Editor-chefe DILEMAS DE UM ESTADO (DEMOCRÁTICO) MULTICULTURAL: O direito como reconhecimento cultural nas sociedades democráticas contemporâneas ADRIANO OLINTO MEIRELLES1 RESUMO A sociedade do século XXI apresenta-se paradoxal, complexa e disforme, formada por inúmeros grupos identitários que possuem diferenças únicas e ao mesmo tempo similaridades consistentes, tudo isso dentro de um espaço territorial delimitado na forma de Estados; os estabelecidos sob uma democracia de direito. O presente artigo tem por objetivo ressaltar a importância do multiculturalismo na defesa e reconhecimento da diversidade cultural e o papel do direito, inclusive mediante o incentivo na criação de direitos culturais. Num primeiro momento, busca-se fornecer noções sobre multiculturalismo, para em seguida, ressaltar a importância do reconhecimento da diversidade cultural enquanto objetivo das teorias multiculturais. Numa terceira etapa, trata-se de demonstrar a importância do reconhecimento da diferença para a concretização de Estados democráticos e, por fim, a importância do Direito como instrumento para efetivar o reconhecimento cultural nas sociedades democráticas contemporâneas. Ressalta-se que não será analisada nenhuma abordagem multicultural específica, mas serão levantadas apenas questões gerais importantes para incentivar o debate multicultural e o direito. Palavra-chaves: Multiculturalismo; direito; reconhecimento. 1 Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas. Especialista em Filosofia Política pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e em Ensino pela Universidade Católica de Brasília. Bacharelado em DIREITO pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Licenciatura em FILOSOFIA pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor Assistente e Pesquisador do Centro Universitário UNA. Professor Assistente e Pesquisador do Centro Universitário Unibh. Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante dos Grupos de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”. 13 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ABSTRACT The XXI century society presents itself paradoxical, complex and formless, formed by numerous identity groups that have unique differences and similarities while consistent, all within a delimited territorial space as states; those established under a law of democracy . This article aims to highlight the importance of multiculturalism in the defense and recognition of cultural diversity and the role of law, including by encouraging the creation of cultural rights. At first, we seek to provide notions of multiculturalism, to then highlight the importance of recognizing cultural diversity as a goal of multicultural theories. In a third step, it is to demonstrate the importance of recognizing the difference to the achievement of democratic states and, finally, the importance of law as an instrument to effect cultural recognition in contemporary democratic societies. It is noteworthy that not be considered any specific multicultural approach, but will be raised only general issues important to encourage the multicultural debate and the right. Keywords: Multiculturalism; right; recognition. 1. INTRODUÇÃO A sociedade do século XXI apresenta-se paradoxal, complexa e disforme, formada por inúmeros grupos identitários que possuem diferenças únicas e ao mesmo tempo similaridades consistentes, tudo isso dentro de um espaço territorial delimitado na forma de Estados; os estabelecidos sob uma democracia de direito. A práxis cidadã do Estado (pós) moderno influencia o todo do Estado democrático através da forma como ele se expressa nas escolhas individuais e coletivas. A cidadania já não se vislumbra como sendo apenas condição de uma comunidade que tenha a mesma origem, no sentido de nacionalidade ou o pertencer a uma determinada comunidade no sentido Aristotélico2 do 2 Para Aristóteles o meio mais adequado de definir o cidadão para os regimes democráticos é defini-lo como aquele que pertence a um Estado, considerando membro àquele que participa da vida política e pode ser eleito, “... logo que um homem seja considerado apto para participar nas magistraturas deliberativas ou judiciais pode ser considerado um cidadão daquele Estado e sempre que haja um número de tais pessoas, suficientemente grande para assegurar a auto suficiência política, temos um Estado”. Considera-se, ainda como forma de adquirir a cidadania o nascer sob o solo de determinado Estado, com genitores daquele mesmo lócus, trazendo assim o fator sanguíneo, sem excluir outras formas aquisitivas derivadas de cidadania. (ver: ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) 14 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem termo, mas sim como sendo uma forma de exercício, dentro da sociedade democrática, de direitos e deveres na construção de um ambiente que já ultrapassa os limites do Estado tomando como globalizado. A essa maneira como se juntam a nova sistemática podemos denominar sociedade ou quem sabe arriscar e chamá-lo de Estado multicultural, baseando na diversidade das demandas e na multiplicidade cultural dentro de um espaço que se estende além da concepção territorial do Estado Moderno, mas que ainda cabe uma análise interna como forma de melhor organizarmos as idéias referentes aos problemas de realização da cidadania dentro desse ambiente diferenciado. 2. MULTICULTURALISMO E PLURALIDADE CULTURAL 2.1. Compreensão do termo multiculturalismo Stuart Hall (2003) faz uma distinção entre os termos multiculturalismo e multicultural. Este último conceito, essencialmente qualificativo, compreende no contexto da sociedade a existência de diversas comunidades culturais que apresentam características e problemas de governabilidade, as quais pressupõem uma convivência e uma tentativa de construção de uma vida em comum. O multiculturalismo, por sua vez, é um substantivo, englobando um conjunto de estratégias e políticas elaboradas e aplicadas em sociedades multiculturais, que procuram regular e administrar os problemas que estão afetos às questões vinculadas, à diversidade e multiplicidade. O termo Multiculturalismo é empregado no singular e se traduz numa filosofia ou doutrina que fundamenta as estratégias multiculturais. Por outro lado, a definição do vocábulo “multicultural”, aplica-se ao que é plural, a exemplo do que ocorre com os diversos tipos de sociedade multicultural. As sociedades que são culturalmente heterogêneas, por definição são multiculturais. Os Estados Unidos da América e a França são exemplos de sociedade multiculturais, às quais se distinguem do Estadonação moderno, que é tipicamente constitucional e liberal, que no contexto Ocidental apresentam como pressuposto básico a homogeneidade cultural, que estrutura-se a partir de valores universais, individualistas e seculares. O multiculturalismo não é fenômeno recente. Dentro da sociedade e do Estado, vem ocorrendo de forma lenta e gradual, com aceleramento crescente nas ultimas décadas. Hall (2003) aponta alguns fatores ou mudanças 15 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem históricas decisivas que fizeram diferença para a formação da sociedade em que hoje vivemos: primeiro, o fim do velho sistema imperial europeu, sendo a questão multicultural uma questão pós-colonial; segundo, o fim da Guerra Fria, o fim do comunismo e a tentativa de instalação de uma nova ordem mundial; terceira a globalização, aqui destacada a globalização contemporânea com a compreensão do espaço/tempo, com tendência cultural homogeneizante e que traz consigo um sistema de conformação da diferença, como forma de resistência implicando numa concepção de poder mais discursivo do que normalmente vinha sendo encontrado até então. A noção de multiculturalismo é hoje cada vez mais utilizada, não somente nos meios acadêmicos e políticos, como no cotidiano, por uma gama variada de pessoas, estando seu significado associado a diversos sentido, o que faz com que essa proliferação do termo não contribua para estabilizar ou esclarecer seu significado. O termo multiculturalismo pode ter diversas leituras associadas a contextos específicos e diferenciadas dos Estados, o que vem acarretando a criação de diferentes interpretações explicativas do termo. Do mesmo modo como ocorre com as abordagens teóricas da política, da moral, das instituições democráticas, das normas jurídicas, dentre outras, ou seja, em termos conceptuais, importa notar que o multiculturalismo é um termo polissêmico e existem, pelo menos, dois sentidos diferentes em que este pode ser utilizado. Uma teoria do multiculturalismo pode tanto privilegiar uma perspectiva descritiva como também prescritiva3. No primeiro caso, uma teoria multicultural descritiva reporta a um fato da vida humana e social, que é a diversidade cultural étnica, religiosa, ou seja, um certo cosmopolitismo que atualmente é fácil de ver em qualquer grande cidade da Europa e da América do Norte, ao passo que no segundo caso, o objetivo da teoria multicultural é prescrever, determinar formas concretas ou mais razoáveis, legítimas, associadas às chamadas políticas de reconhecimento da identidade e/ou da diferença que os poderes públicos prosseguem, ou deveriam prosseguir em nome dos grupos 3 Jean-Claude Forquin (1993; 2000), afirma que o termo multiculturalismo apresenta dois sentidos: um sentido descritivo e um normativo ou prescritivo. Para ele, o multiculturalismo, no sentido descritivo, designa a situação objetiva de um país onde existem grupos de origem étnica ou geográfica diversa, falando línguas diversas, que não compartilham nem os mesmos modos de vida nem os mesmos valores. O sentido descritivo reflete a realidade multicultural, multiracial, multi-étnica, multireligiosa de uma determinada sociedade. Quanto ao segundo sentido do multiculturalismo de caráter normativo, ou prescritivo, diz respeito às propostas, às políticas utilizadas relacionadas a se trabalhar a realidade multicultural. 16 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem minoritários e/ou “subalternos”, ficando claro que as abordagens teóricas podem conjugar as duas perspectivas. Nas seções que seguem neste capítulo, privilegia-se a abordagem teórico-prescritiva do multiculturalismo, mas antes de adentrar neste viés, é necessário descrever o multiculturalismo como um fato social para melhor compreender os motivos que irão justificar a necessidade do enfoque teórico. O multiculturalismo, entendido como a situação de convivência de grupos diferenciados culturalmente sob um mesmo território, não é um fato novo, mas vem ganhando expressão diante dos processos de deslocamentos humanos, principalmente nestes tempos globais, o que se pode denotar numa serie de acontecimentos que ocorrem nas sociedades contemporâneas como reflexo desta situação multicultural, tais como a existência de uma pluralidade de culturas criadas pelos movimentos migratórios que modificam os quadros demográficos culturais dos países, como exemplo, dos Estados Unidos, Canadá; os movimentos de grupos nacionalistas que reivindicam maior autonomia ou até mesmo secessão frente a seus Estados como os kurdos, Chechenos4; a existência de novos movimentos racismos de cunho sociocultural; o crescimento do movimento fundamentalistas que não aceitam diversidade cultural; a atuação dos novos movimentos sociais em busca de acesso a cultura, política e ao direito tais como os movimentos feministas, dos homossexuais etc. Em menor ou maior grau, a questão do multiculturalismo está presente em todos os países caracterizados por instituições democráticas, por uma população heterogênea e por uma economia pós-industrial em vias de globalização. Os grupos (baseados na multiplicidade cultural) que formam o conjunto social apresentam necessidades diversas, que diante de um Estado enfraquecido (seja por sua crise econômica, moral, política...) e insuficiente na respostas 4 A divisão territorial ou a secessão podem resolver conflitos étnicos, entre povos que não queiram mais viver juntas, por meio da repartição do espaço nacional. Nem sempre essa divisão territorial e/ou secessão, com a criação de novos Estados, é uma política de coersão, já que ela pode se basear no direito à autodeterminação dos povos. É comum, no entanto, que uma divisão territorial ou uma secessão, ao invés de acalmar a região, acabe por criar conflitos ou originar migrações de populações, especialmente quando os recursos naturais se tornam escassos em um dos territórios formados. É exemplo dessa ação a formação do Bangladesh, que era parte do Paquistão, por imposição britânica durante o domínio colonial da Ásia Meridional, e a URSS, que era formada desde o começo do século XX por 15 repúblicas, sob hegemonia da Rússia, que se esfacelou a partir de 1990. São também citados como exemplos modernos de possibilidade de secessão: o Québec, no Canadá, onde predomina a população de origem francesa; os bascos do norte da Espanha; os corsos, na ilha da Córsega, possessão francesa; os escoceses e galeses da Grã-Bretanha; e o Tibete, na China, dentre outros. 17 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem por demandas mínimas que garantam a dignidade, o que se tem encontrado em maior quantidade é a exclusão social, a marginalização, o abandono, a discriminação, vê-se o cidadão cada dia mais distante do Estado e vice-versa. Em contraposição ao ambiente crítico buscam-se possibilidades não utópicas de um Estado Democrático que privilegie a participação diversificada e igualitária no dia a dia da comunidade, e que garantam o acesso à realização dos direitos humanos e fundamentais, e todas as demais nuanças que envolvem a cidadania ativa e completa. É diante do fato do multiculturalismo e de suas conseqüências no interior dos Estados nacionais que se realça a importância das soluções, em termos normativos, para suas questões, justificando assim, a realização de uma gama de medidas políticas e estudos acadêmicos frente à proliferação de reivindicações de caráter étnico-cultural resultantes deste convívio sócio-cultural. Nesse sentido é que o multiculturalismo pode ser compreendido sob um enfoque teórico de caráter normativo que tem por objetivo prescrever maneiras de solucionar os problemas provenientes da convivência entre as pessoas e os diferentes grupos culturais existentes nas sociedades plurais que buscam, na coexistência conjunta, manter suas pautas culturais e sociais. Entretanto, apesar das diferentes propostas teóricas multiculturais existentes, enfatizam-se apenas as propostas que apresentam como resposta ao gerenciamento das demandas culturais, caminhos contrários as práticas assimilacionistas,5 segregadoras e até mesmo genocidas postas em práticas pelos Estados nacionais (SILVA, 2006). A respeito do sentido do termo multiculturalismo, afirma Touraine (1997) que muitas vezes este é entendido como um nacionalismo agressivo, mas, para o autor, não há nada mais distante do multiculturalismo que a fragmentação do mundo em espaços culturais que idealizam a homogeneidade e a pureza e onde um poder comunitário toma o lugar da unidade de uma cultura. Segundo Touraine (1997), cultura e comunidade não devem ser confundidas porque as sociedades modernas, constantemente abertas a mudanças, não possuem uma unidade cultural total e também porque as culturas são constantemente renovadas a partir de novos acontecimentos e de novas 5 Entendendo como processo de absorção de uma cultura por outra, recebendo metaforicamente a designação de cadinho de raças. Já o conceito de mosaico étnico (integração de diferentes peças da sociedade reunidas em um arranjo) é utilizado para designar formas menos arbitrarias de integração. CASHMORE, Ellis. Verbet: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, tradução de Dinah Klevej. São Paulo: Summuns, 2000, p. 271-273. 18 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem experiências. Assim, “o multiculturalismo não é nem uma fragmentação sem limites do espaço cultural, nem um melting pot6 cultural mundial: procura combinar a diversidade das experiências culturais com a produção e a difusão de massa dos bens culturais” (TOURAINE, 1997, p. 224-225). Em sua concepção original, a expressão multiculturalismo designa “a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 26). Considerando as dificuldades de precisão do termo, no entanto, pode-se afirmar que multiculturalismo se tornou rapidamente um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. O termo multiculturalismo, porém, pode continuar a ser associado a projetos e conteúdos emancipatórios e contra-hegemônicos, baseados em lutas pelo reconhecimento da diferença (SANTOS; NUNES, 2003). Assim, A ideia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência de configurações culturais baseadas em contribuições de experiências e de 6 O caldeirão é uma metáfora para uma heterogênea sociedade cada vez mais homogênea, os diferentes elementos “derretendo juntos” em um todo harmonioso, com uma cultura comum. É particularmente utilizado para descrever a assimilação de imigrantes para os Estados Unidos; a metáfora de ponto de fusão juntos foi em uso por década de 1780. No século XVIII e XIX, a metáfora de um “cadinho “ou” melting pot (s)” foi usado para descrever a fusão de diferentes nacionalidades, etnias e culturas. Foi utilizado em conjunto com os conceitos dos Estados Unidos como uma república ideal e uma “cidade sobre uma colina” ou nova terra prometida. Era uma metáfora para o processo idealizado de imigração e colonização pela qual diferentes nacionalidades, culturas e “raças” (um termo que pode englobar nacionalidade, etnia e raça) foram a mistura em uma comunidade nova e virtuosa, e era ligado a utópica visões do surgimento de um “novo homem americano”. Enquanto o “derretimento” era de uso comum o termo exato “melting pot” entrou em uso geral em 1908, após a estréia da peça The Melting Pot por Israel Zangwill. Judeu inglês cuja história tem sido esquecido, mas cujo tema central não tem. Sua produção foi intitulada “The Melting Pot” e sua mensagem ainda detém um poder tremendo no imaginário nacional - a promessa de que todos os imigrantes podem ser transformados em americanos, uma nova liga forjado em um cadinho de democracia, liberdade e responsabilidade cívica. Em 1908, quando a peça estreou em Washington, nos Estados Unidos estava no meio de absorver o maior fluxo de imigrantes na sua história - irlandeses e alemães, seguidos pelos italianos e europeus do Leste, católicos e judeus -cerca de 18 milhões de novos cidadãos entre 1890 e 1920. Hoje, os Estados Unidos está passando por sua segunda grande vaga de imigração, um movimento de pessoas que tem profundas implicações para uma sociedade que por tradição é uma homenagem às suas raízes de imigrantes, ao mesmo tempo em que confronta de forma complexo e profundamente enraizado divisões étnicas e raciais. Os imigrantes de hoje não vêm da Europa, mas predominantemente a partir do mundo ainda em desenvolvimento da Ásia e América Latina. Esta mudança, de acordo com os historiadores sociais, demógrafos e outros estudiosos, vão testar severamente a premissa do melting pot fabuloso, a idéia, tão central para a identidade nacional, que este país pode transformar as pessoas de todas as cores e fundo em “uma América.” By William Booth. Washington Post Staff Writer. Sunday, February 22, 1998; Page A1. 19 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem historias distintas tem levado a explorar as possibilidades emancipatórias do multiculturalismo, alimentando os debates e iniciativas sobre novas definições de direitos, de identidades, de justiça e de cidadania. (SANTOS; NUNES, 2003, p. 33). Como lembra Touraine (2004) o reconhecimento do multiculturalismo ou, mais simplesmente, das minorias e da diversidade cultural só pode ser intelectualmente fundado se houver o reconhecimento de que o principio de igualdade não é separável do principio de diferenciação, para tanto, devemos reconhecer que vivemos numa sociedade multifacetada, que abriga inúmeras culturas, costumes, formas de vida, e, reconhecê-las com igual peso no momento da tomada de decisões, bem como atribuir igual força a todos pode ser o primeiro caminho para superar esse déficit, mas o que percebemos é a tomada de um caminho exatamente inverso, qual seja, a tentativa de massificar a pluralidade, ignorando a diferença. 2.2. Multiculturalismo e reconhecimento 2.2.1. Do reconhecimento social na contemporaneidade: diversidade cultural e democracia O multiculturalismo, como ressalta Costa e Werle, visa ao reconhecimento institucional mediante direitos dos diferentes valores e aspectos culturais presentes numa sociedade, ou seja, O multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço institucional do Estado democrático de direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o ‘reconhecimento das necessidades particulares’ dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos. Trata de afirmar, como direito básico e universal que os cidadãos tem necessidade de um contexto cultural seguro para dar significado e orientação a seus modos de conduzir a vida; que a pertença a uma comunidade cultural é fundamental para autonomia individual; que a cultura com seus valores e suas vinculações normativas, representa um importante campo de reconhecimento para os indivíduos e que, portanto, a proteção e respeito às diferenças 20 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem culturais apresenta-se como ampliação do leque de oportunidades de reconhecimento. (COSTA and WERLE, 2000, p.82) O pensamento moderno não buscou a negociação de espaços com o diferente, tornou-se mais fácil ignorá-la, e isso ocorreu não somente nas relações privadas, a venda nos olhos foi mais eficaz na relação horizontal entre sujeito e Estado e isso pode ser facilmente visto na exemplificação da positivação das normas, que com o projeto de igualdade perante a lei, ignorou a diferença, e foi lançada na sociedade como se pudesse alcançar a justiça e a regulação das relações como se todos estivessem em uma situação idêntica o que, ao fim e ao cabo, impede o exercício dos direitos/deveres não passando da formalidade estrita. Uma teoria de direitos corretamente entendida exige uma política de reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos de vida nos quais sua identidade se forma. Isto não exige um modelo alternativo que corrija o projeto individualista do sistema de direitos através de outras perspectivas normativas. Tudo o que é exigido é a atualização consistente do sistema de direitos (HABERMAS, 1994, p. 113) A ideia de reconhecimento está voltada à busca pela satisfação e valorização das necessidades particulares dos indivíduos, enquanto membros de grupos culturais específicos (GUTMANN, 1993), ou seja, de seus valores e diferenças culturais. Ressalta-se que esse tratamento diferenciado somente ocorre em virtude de serem tais indivíduos parte de uma sociedade maior, da qual necessitam serem tratados como iguais para poderem participar de maneira integral e paritária da vida social. Nesse sentido, é estabelecido uma ideia de reconhecimento que percebe o individuo enquanto membro de uma comunidade nacional e enquanto membro de um grupo cultural especifico. É justamente para realização destes preceitos que o termo reconhecimento deve ser vinculado à noção de respeito à diferença indo além da mera Tolerância. Isto porque a tolerância reflete a aceitação da mais vasta gama de opiniões e diferenças culturais, enquanto não ameacem e causem danos às pessoas de forma direta. Já o respeito é muito mais seletivo, embora as pessoas não tenham que estar de acordo com uma posição para respeitar, deve-se compreender que suas opiniões e diferenças refletem um ponto de vista moral defensável, que as pessoas podem ou não compartilhar, mas devem por isso 21 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem respeitar, desde que sejam desacordos morais respeitáveis, não incluindo o ódio racial e étnico. Uma sociedade multicultural vinculada à inclusão de uma vasta gama de respeitáveis desacordos morais oferece a oportunidade aos indivíduos de defender suas opiniões perante as demais pessoas com seriedade moral, mesmo frente àquelas que estão em desacordo e assim ter a oportunidade de apreender com as diferenças. (GUTMANN, 1993, p.40). Assim, a questão do reconhecimento está ligada (além da questão da identidade7) a igualdade e a liberdade, e essa igualdade passa pela diversidade, pelo respeito recíproco da diversidade, que por si só garante a liberdade de ação. Esse é pressuposto de um ambiente democrático. Como leciona Habermas: A lei é formal, individualista, coercitiva, positiva e aprovada processualmente, mas uma ordem legal somente será legítima quando salvaguardar a autonomia dos cidadãos a um nível igual, onde os cidadãos somente serão autônomos quando os dirigentes da lei também se vislumbrarem como seus autores, por consequência, seus autores são livres apenas enquanto participantes em processos legislativos que são regulados de tal maneira e tomam lugar em formas de comunicação tais que todas as pessoas presumirem que os regulamentos aprovados dessa maneira merecem uma aprovação motivada geral e racionalmente, como também o próprio processo democrático tem de ser legalmente institucionalizado, o princípio da soberania popular exige os direitos fundamentais antes de tudo, o direito à liberdade de escolha e de ação individual iguais (HABERMAS, 1994, p. 121-122). O multiculturalismo prima pela “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência de várias etnias e/ou raças que edificaram e constituem o espaço público de uma sociedade multirracial.” (SILVERIO, 1999, p.47). No entanto, o tipo de diversidades culturais reconhecidas e defendidas pelas teorias multiculturais são de diferentes formas, o que inclusive acarreta 7 A questão acerca da identidade e reconhecimento será desenvolvida no próximo capítulo deste trabalho. 22 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem o estabelecimento de diferentes concepções de multiculturalismo8. Dessa maneira, estas teorias podem tanto abarcar reivindicações das minorias nacionais e grupos étnicos, ou ainda, um segundo tipo de reivindicações de grupos sociais desfavorecidos, que não possuem uma base étnica, política e nacional, sendo provenientes de movimentos sociais (SEMPRINI, 1999), tais como os homossexuais e mulheres9. As minorias, caracterizadas por uma propriedade particular (raça, cor da pele, orientação sexual etc.) transformam sua fraqueza em força pela atuação de seus movimentos sociais (negros, mulheres, gays). Questões tradicionalmente consideradas da esfera privada – economia doméstica, relação homem-mulher – ingressam na esfera pública, tornando-se questões púbicas. A relevância moral leva à fonte positiva de identificação e, daí, à representação pública, nos casos de eleição de mulheres, negros ou gays para o parlamento (VIEIRA, 2001, p. 235). Enquanto elemento central para a temática do multiculturalismo e à justificação da necessidade de reconhecimento, a cultura apresenta um importante papel na vida dos grupos e indivíduos presentes nas sociedades, pois, ela é entendida como significados interpretativos de um contexto, ou seja, como teias de significado que o homem tece em seu meio, não sendo vista como “uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1989, p. 4). De um modo geral, a cultura é entendida como uma maneira de um grupo social compreender a vida. Cultura é tudo aquilo que um determinado grupo social “cultua”, isto é, inclui seus valores e suas tradições. Cada grupo social detém uma determinada cultura, com diferentes características; entretanto, essa questão também diz respeito à cultura dominante dentro de um grupo. (MACHADO, 2002, p. 25) 8 Para Adela Cortina, os autênticos problemas multiculturais são estabelecidos quando há o enfrentamento entre distintas cosmovisões, formas de conceber o sentido da vida e da morte, diversas formas de organização moral e social. CORTINA, Adela. Ciudadano del mundo, p. 190. 9 Embora haja significantes diferenças entre os tipos de reivindicações realizadas pelas duas categorias de diversidade cultural, ambas possuem em comum a luta pelo acesso à política de reconhecimentos de defesa das diferenças que as constituem. 23 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A cultura deve ser concebida desvinculada do mito da cultura pura, “autêntica” (grifo nosso), que crea sus propios valores, incomunicables para quienes pertenecen a otro grupo, de forma que a quienes tratan de sali de su grupo social y vivi en otro, no les queda más remedio que abandonar su visión del mundo y abrazar la del grupo de destino. Al contrario: no hay cultura sino como diversidad ( DE LUCAS, 1999, p. 65). Assim sendo, o enfoque dado pelo multiculturalismo não deve se associar somente a uma cultura dominante e culta, no sentido estrito do termo, como entende uma acepção douta da palavra, mediante a qual proporciona a identidade social e estabelece o ordenamento político, jurídico. Como também não, no significado antropológico do conceito, de acordo com o qual todo o ser humano, enquanto animal falante e simbólico vive num ambiente determinado de uma cultura. Enfim, o enfoque multiculturalista valoriza outros vários tipos de culturas, ou pelo menos, os aspectos positivos existentes nas diversas culturas existentes dentro de uma sociedade. (SARTORI, 2001, p. 69). Evidentemente, que não é suficiente permanecer numa linha de exclusão do que não pode ser considerado cultura do ponto de vista multicultural. Também, não há mais o que considerar nessa perspectiva, uma vez que o próprio prefixo “multi”, do multiculturalismo refere-se a uma multiplicidade de culturas do ponto de vista qualitativo, bem como a afirmação de que estas culturas são diversas e de modalidades diferentes. No âmbito do multiculturalismo, a cultura pode ser compreendida como uma identidade lingüística, religiosa, étnica, sexual, etc. Há, assim, num âmbito do multiculturalismo, uma heterogeneidade de concepções, sendo que, também, deve-se distinguir, por exemplo, entre diversidade cultural e diversidade étnica. (SARTORI, 2001, p. 70) A questão da diversidade cultural enquanto elemento principal de constituição do multiculturalismo acaba por se vincular ao debate sobre a transformação da democracia (ROSALES, 2001), constituindo-se num desafio à própria democracia, já que “como valor universal a ser defendido e garantido” (PINTO, 1999, p. 56), deve dar respostas ao reconhecimento das diferenças culturais. O que se pretende alcançar com o desenvolvimento da prática democrática é a inclusão da diferença que, mediante o viés multicultural, passa a ser vista de forma positiva, contrariamente à defesa da diferença realizada 24 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pelos grupos fundamentalistas, que buscam o fechamento de seus grupos em si mesmo, utilizando para isto de atos violentos. Desta forma devem somente ser asseguradas pelo Direito as diferenças culturais que auxiliem no estabelecimento da igualdade em face das desigualdades. É justamente o “reconhecimento da condição de diferença que permite uma profícua reflexão sobre a democracia, através da busca de modelos capazes de manter o princípio de igualdade entre todos e, ao mesmo tempo, de acolher as diferenças e necessidades especificas de cada um” (PINTO, 1999, p. 58). Assim, enfatiza-se que é a partir deste questionamento da democracia pelo multiculturalismo que desponta a “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência das várias etnias e/ou raças que edificam e constituem o espaço público de uma sociedade” (SILVÉRIO, 1999, p. 47). Ou seja, a necessidade de reconhecimento da diversidade cultural pelas instituições públicas das sociedades contemporâneas. No tocante ao reconhecimento da diversidade nas sociedades atuais, Gutmann (1993) argumenta que é difícil encontrar una sociedad democrática o democratizadora que no sea la sede de alguna controvérsia importante sobre si las instituciones públicas debieran reconocer – y cómo – la identidad de las minorias culturales y en desventaja. ¿ que significa para los ciudadanos con diferente identidad cultural, a menudo basada en la tenicidad, la raza, el sexo o la religión, reconocernos como iguales en la forma en que se nos trata en política? e (...) Reconocer y tratar como iguales a los miembros de ciertos grupos es algo que hoy parece requerir unas instituciones públicas que reconozcan, y no que pasen por alto, las particularidades culturales, al menos por lo que se refiere a aquellos cuja comprensión de si mismos depende de la vitalidad de su cultura. Este requisito de reconocimiento político de la particularidad cultural – que se extiende a todos – es compatible con una forma de universalismo que considera entre sus intereses básicos la cultura y el contexto cultural que valoran los indivíduos (GUTMANN, 1993, p. 13 e 16) A necessidade de políticas de reconhecimento não pode ser relegada apenas à esfera da cultura, mas coadunada na esfera política, havendo assim, possibilidades diversas de tratamento político dessas demandas por diversidade cultural, alem de possibilitar a abertura para a crítica às 25 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem instituições políticas e mecanismos econômicos que reproduzem desvantagens (COSTA, 2001). Neste sentido, o multiculturalismo sugere que o momento da ‘diferença’ é essencial à definição de democracia como um espaço genuinamente heterogêneo. Para tanto, Deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas nas quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar dentro de um horizonte mais amplo. É essencial que esse espaço permaneça heterogêneo e pluralístico e que os elementos de negociação dentro do mesmo retenham sua différance. Eles devem resistir ao ímpeto de serem integrados por um processo de equivalência formal, como dita a concepção liberal de cidadania, o que significa recuperar a estratégia assimilacionista do iluminismo através de um longo desvio (HALL, 2003, p. 87). Diante disso, podemos concluir que o multiculturalismo é um conceito que compreende a diversidade de grupos sociais, respeitando suas diferenças e particularidades. Que existe, por assim dizer, uma distinção sócio-cultural entre os grupos, que lutam pelo reconhecimento social e que se afirmam através de uma oposição ao modelo de organização social universalista e igualitário da cidadania no Estado democrático de direito. A pluralidade de valores e a diversidade cultural são manifestações próprias do multiculturalismo, que revela a necessidade e a expressão da luta pelo reconhecimento no contexto institucional da sociedade. Os indivíduos assumem a condição de membros integrantes dos grupos culturais determinados. Os sujeitos individuais pertencentes aos Novos Sujeitos Coletivos10 participam do processo de afirmação e luta pelo reconhecimento de seus direitos básicos e das suas necessidades particulares. Em principio, os cidadãos devem integrar um contexto cultural estável, que proporciona as significações e a orientação necessária para conduzirem seus modos de encaminhar a vida. 10 Os Novos Sujeitos Coletivos constituem-se em uma categoria que inclui os grupos sociais ou voluntários que possuem interesses em comum. 26 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 3. CONCLUSÃO: O DIREITO E O RECONHECIMENTO É interessante ressaltar que as lutas pelo reconhecimento em países democráticos trazem em seu bojo a questão da acomodação dos diversos interesses e grupos dentro dos Estados constitucionais, principalmente mediante concretização de direitos. Como explicita Rosales (2001, p. 89) “o que está em jogo no debate multicultural não é somente a tolerância e o respeito da diferença cultural, mas sim sua defesa como direito.” Assim sendo, “as demandas por reconhecimento da diferença terminam por se converter em uma poderosa exigência de reconhecimento da diferença cultural como direito de grupo” (ROSALES, 2001, p. 81) é neste sentido que “a experiência do multiculturalismo pode assim, caracterizar-se como resultado de um reequilíbrio constante entre as demandas de reconhecimento que estabelecem as minorias e a capacidade integradora do sistema político, e em última instância, do sistema constitucional” (ROSALES, 2001, p. 83). O que se percebe é que as demandas multiculturais vêm proporcionar uma crescente ampliação nos direitos constitucionais na maioria dos países ocidentais.11 Entretanto, não bastam somente as lutas pelo reconhecimento serem traduzidas em termos normativos constitucionais, mas também em termos de ações políticas no campo institucional mediante a realização de políticas públicas que buscam afirmar e administrar as diferenças culturais, e identitárias utilizando estratégias que contemplem componentes lingüísticos, sociais, econômicos, educativos, entre outros.12 Fica claro que a democracia contemporânea, diante do já mencionado 11 Podemos verificar tal situação, no caso brasileiro, com a inserção na Constituição de 1988 dos direitos dos indígenas e dos negros. 12 No Brasil, estas políticas públicas começam a ser visualizadas por exemplo, nas administrações de poderes executivos, que buscam conciliar democracia e diversidade cultural, mediante institucionalização de políticas de cotas para acesso a universidades, tal como ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, após a criação de uma lei estadual do ano de 2001; a instalação de mecanismos de maior participação popular e de redistribuição de riquezas como a instalação do orçamento participativo na gestão do ex-prefeito Olívio Dutra em Porto Alegre (1989-1992), ou ainda como no exemplo da Prefeitura de São Paulo, que no ano de 1992 realizou duas exposições que pretenderam desmistificar a questão indígena e a homogeneidade cultural presente no discurso da nação: Índio no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo cultura e Pátria Amada Esquartejada, sob o comando da Prefeita Luiza Erundina e da Secretária da Cultura Municipal Marilena Chauí.Cf. MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São Paulo, n. 44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e de redistribuição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Disponível em: < http//www. cfh.ufsc.Br/~dich/Textocaderno47.pdf> Acesso em 13 agosto. 2011. 27 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem fato do multiculturalismo, tem utilizado o Direito como meio de integração social, de pacificação de conflitos, de efetivação das muitas reivindicações por demandas ético-culturais, de respeito às diferenças, do reconhecimento das identidades etc., ocorrendo assim um deslocamento do eixo político para o jurídico. Nesse sentido, a centralidade do Direito quando relacionada às pautas multiculturais é vista não somente com um mecanismo de regulação social, mas também de simetrização das relações interpessoais, apontando para seu potencial transformador do contexto social. Como explica Semprini (1999, p. 164 e 165) “os multiculturalistas não ignoram a real dimensão da independência entre jurídico e político e à efetiva equidade da justiça”, denotando, porém, que o direito cumpre um papel ativo, pois ele viabiliza a coalização entre as esferas privada e pública, melhor dizendo, o Direito é chamado a formalizar e a regulamentar a incapacidade da esfera privada de acomodar-se à mudança sociocultural. Entretanto, é de destacar que as políticas de reconhecimento, sendo em termos normativos constitucionais ou em termos de políticas públicas apresentam certos dilemas. As demandas particulares que transformam direitos em diferenças culturais, muitas vezes podem sobrecarregar o Estado com uma pressão social cuja legitimidade ele não tenha os instrumentos políticos para aferir (SEMPRINI, 1999). Para Rosales (2001), existem condições materiais que limitam a modulação dos princípios que regulam no constitucionalismo liberal o reconhecimento dos direitos, tais como, a falta de recursos para exercício dos direitos, tanto materiais quanto cognitivo; a má distribuição dos direitos no mundo real, além do problema de sua sustentação, já que requerem custos monetários para práticas políticas. Outra questão é o fato de que a integração via normativa pode acabar por minimizar a diferença, transformando-a num pressuposto abstrato que não valora a diferença por ela mesma, o que faz com que a diferença seja tolerada neste sistema democrático liberal e não valorizada mediante a concretização de direitos, ou ainda receba uma valorização num sentido superficial e comercial ou de caráter folclórico e pitoresco. O diferente passa a ser visto como aquele que não tem direito, fazendo com que a cultura seja dissolvida em propostas abstratas e identificações universalizantes, o que faz perder a dimensão da diferença. Assim, não basta resolver os problemas somente na base da igualdade de direito, faltando solução no plano de valoração das diferenças culturais (MONTEIRO, 1996). 28 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Por fim, como lembra Celi (1999), é necessária para uma real inclusão uma mudança de poder para que de fato haja maior possibilidade de inclusão social das minorias desfavorecidas. Apesar destes dilemas, não se pode olvidar a necessidade de conceber políticas de reconhecimento dentro de uma teoria crítica do reconhecimento, que albergue a um só tempo reconhecimento e redistribuição, ou seja, uma teoria que identifique e defenda políticas culturais da diferença que possam ser combinadas com a política social de igualdade (FRASER, 2001). Isto porque “no mundo real, cultura e economia política estão sempre imbricadas e virtualmente toda luta contra a injustiça, quando corretamente entendida, implica demandas por redistribuição e reconhecimento” (FRASER, 2001, p. 248). Ademais as lutas pelas identidades estão presentes em contextos de crescentes desigualdades sociais, sendo que nas sociedades contemporâneas se encontram presentes tanto injustiças sócio-econômicas como injustiças culturais, estando ambas enraizadas em processos e práticas que prejudicam alguns grupos, devendo por isto serem remediadas (FRASER, 2001). Para fazer frente a esta situação, Nancy Fraser coloca como necessária uma noção de justiça social, que por um lado não se restrinja ao eixo da classe, pois “a contestação abarca agora outros eixos de subordinação, incluindo a diferença sexual, a raça, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade” (FRASER, 2002, p. 9) e por outro, “não se cinge só a questões de distribuição, abrangendo agora também questões de representação, identidade e diferença” (FRASER, 2002, p.9). Ou seja, a nova noção de justiça social deve abarcar as preocupações da teoria da justiça distributiva e teoria cultural da justiça, que são difíceis de se relacionar. Como princípio coadunador entre redistribuição e reconhecimento, a citada autora propõe o princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros da sociedade interagir entre si como pares. Para isso é necessário tanto uma distribuição de recursos materiais que garantam a independência e voz dos participantes como também padrões institucionalizados de valor cultural que exprimam igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração social (FRASER, 2002). Assim, tem-se uma visão de reconhecimento que promove a interação social respeitosa entre as diferenças e não estimula os enclaves de grupo e a limpeza étnica (FRASER, 2004). Nessa perspectiva, o que se deve reconhecer (FRASER 2004) é o status de membro individual de um indivíduo pertencente a um grupo específico, 29 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem enquanto parceiro integral na interação social, sendo a política de reconhecimento voltada à superação da subordinação por meio do estabelecimento da parte não reconhecida como membro integral da sociedade, capaz de participar como igual da vida social. Diante do que foi dito, percebe-se que a questão do multiculturalismo, contemporaneamente, constitui como um dos maiores desafios ao Estado –Nação no sentido de como gerenciar a diversidade cultural e seus conflitos dentro de um país em busca de uma unidade social, colocando à vista a necessidade da incorporação dessas diferenças pelos sistemas democráticos atuais, inclusive em seus ordenamentos jurídico-políticos, bem como de desmistificar uma pretensa homogeneidade cultural construída a partir do mito da nação, incentivando e respeitando assim, a heterogeneidade. É na seara deste contexto que surge a necessidade do debate do presente tema e o Direito servir de instrumento na luta multicultural. REFERÊNCIAS 1. CORTINA, Adela. Ciudadano Del Mundo: hacia uma teoria de la ciudadania. Madrid: Alianza Editorial, 2001. 2. CASHMORE, Ellis. Verbete: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais. Tradução de Dinah Klevej. São Paulo: Summus, 2000, p. 271-273. 3. COSTA, Sérgio. Complexidade, diversidade e democracia: alguns apontamentos conceituais e uma alusão à singularidade brasileira. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasilia, 2001, p. 461-476. 4. COSTA, Sérgio; WERLE, Denílson Luís. Reconhecer as diferenças: liberais, comunitários e as relações raciais no Brasil. In: SCHERER WARREN, Ilse et al. Cidadania e multiculturalismo: a teoria social no Brasil contemporâneo. Lisboa: Editora da UFSC e Socius, 2000, p. 82-116. 5. DE LUCAS, Javier. El futuro de la ciudadanía em la EU: ¿ Es posible hablar de ciudadanía multicultural? In: DÍAZ, E. M. T.; SIERRAS, S. O. (Edits). Repensando la ciudadanía. Sevilha: El Monte, 1999, p. 48-75. 6. FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre/RS: Artes Médicas, 1993. 7. FORQUIN, Jean-Claude. O currículo entre o relativismo e o universalismo. In: Revista Educação & Sociedade, n.73. Campinas, dezembro/2000. p. 47-70. 8. FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política cultural. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direito humanos na 30 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 601-621. 9. F RASE, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, out. 2002, p. 7-20. 10.FRASE, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p.245- 282. 11.GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 12.GUTMANN, Amy. Introducción. In: TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del reconocimiento. Tradução de Mónica Utrilla de Neira. Méxio: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 13-42. 13.HABERMAS, Jurgen. Struggles for recognition in the Democratic Constitucional State. Translated: Shierry Weber Nicholsen (et al) TAYLOR, Charles. Multiculturalism: Examining the politics of recongnition. USA: Princenton, 1994. 14.HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaide La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, Brasília: representação da UNESCO no Brasil, 2003, p.55-59. 15.MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da diferença. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 16.MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São Paulo, n. 44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e de redistribuição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Disponível em: < http//www.cfh.ufsc.Br/~dich/Textocaderno47. pdf> Acesso em 13 agosto 2011. 17.PINTO, Céli Regina. J. A democracia desafiada: presença dos direitos multiculturais. Revista da Usp (Pós-modernidade e multiculturalismo), n. 42, 1999, p. 56-69. 18.ROSALES, José Maria. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades: un ensayo sobre el coste de los derechos. Revista Anthropo: huellas del conocimiento. Barcelona, n. 191, 2001, p. 79-92. 19.SANTOS, Boaventura de Sousa. NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Série Reiventar a Emancipação Social: para novos manifestos, v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 20.SARTORI, Giovanni. La sociedad multiétnica: Pluralismo, Multiculturalismo y Extranjeros. Trad. Miguel Ángel Ruiz de Azúa. 2. Ed. Buenos Aires: Taurus, 2001. 21.SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Tradução: Laureano Pelegrini. Bauru, SP: Edusc, 1999. 22.SILVA, Larisssa Tenfen. O multiculturismo e a política de reconhecimento de Charles Taylor. Novos Estudos Jurídicos, v. 11, Universidade do Vale do Itajaí/SC: Brasil, n. 2, jul/dez. 2006, p. 313/322. 31 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 23. TOURAINE, Alain. Iguais e diferentes: poderemos viver juntos? Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 24.TOURAINE, Alain; KHOSROKHAVAR, Farhad. A busca de si: diálogo sobre o sujeito. Tradução Cáio Meira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p.177-1778. 25.VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001. Recebido em: 17/09/2014 Aprovado em: 20/10/2014 32 TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL, POLÍTICA URBANA E POLÍTICA CULTURAL TIPPING AS A MEANS OF PRESERVING THE HERITAGE, URBAN POLICY AND CULTURAL POLICY ALESSANDRA MARA DE FREITAS SILVA1 JESMAR CÉSAR DA SILVA2 RESUMO O presente artigo busca analisar o instituto do tombamento a partir do texto constitucional, que o define como um dos instrumentos que deve ser utilizado para promover e proteger o patrimônio cultural. Será analisada a questão da promoção do patrimônio cultural a partir do tombamento, no sentido de se utilizar o patrimônio tombado para melhorar e promover o meio ambiente urbano e cultural e, por consequência, a educação e o implemento de uma efetiva política cultural. Apontaremos algumas diretrizes para que o Tombamento atenda seu fim através de três vertentes, bem como sua definição, sua utilização como política pública e sua relação com os particulares. Por fim, o texto busca mostrar a relação do tombamento como planejamento urbano e sua importância ressaltada no texto constitucional através das emenda nº 48 de 2005 e nº 71 de 2012, que trazem a previsão do planejamento cultural através do Plano Nacional de Cultura. 1 Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade FUMEC. Graduada em Direito pela Faculdade Milton Campos. MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e LLM em Direito pela Fundação Getúlio Vargas. Professora de Direito Administrativo, Deontologia Jurídica, Ética e Prática Jurídica. Coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitário UNA Belo Horizonte/Contagem. Professora de Direito Administrativo do Curso MERITUS ON LINE. Professora de Pós Graduação na Estácio de Sá, IUNIB e diversos cursos para Concursos Públicos. Professora da Escola de Formação de Soldados da Polícia Militar de Minas Gerais. Advogada Associada no Escritório de Advocacia Ananias Junqueira Ferraz e Relatora da Comissão de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Direito Constitucional e Direito Administrativo. 2 Advogado militante, mestrando em Direito Público PUC MG, Pesquisador do NUJUP e Secretário Geral da OAB Contagem. 33 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Palavras-chave: meio ambiente; proteção; cultura. ABSTRACT This article seeks to analyze the institution of tipping from the Constitution, which defines it as an instrument that should be used to promote and protect cultural heritage. The question of the promotion of cultural heritage will be analyzed from tipping in the direction of using the equity tumbled to enhance and promote urban and cultural environment and, consequently, education and implement an effective cultural policy. Consider some guidelines for the Tipping meets its end through three strands, as well as its definition, its use as a public policy and its relationship with the individual. Finally, it attempts to show the relationship of tipping as urban planning and its importance emphasized in the constitution through the 48th amendment No. 2005 and No. 71 of 2012, bringing the prediction of cultural planning through the National Culture Plan. Keywords: environment; protection; culture. 1. INTRODUÇÃO O presente artigo busca analisar o instituto do tombamento a partir do texto constitucional, que traz expresso que o tombamento é um dos instrumentos que deve ser utilizado para promover e proteger o patrimônio cultural. Primeiramente serão expostas a definição e utilidade do Tombamento tendo por base a legislação brasileira. Em seguida, serão analisados os critérios para o Tombamento. Não será objeto do nosso estudo os procedimentos para que o mesmo seja constituído. Ainda, será explicitada a questão da promoção do patrimônio cultural a partir do tombamento, no sentido de se utilizar o patrimônio tombado para melhorar e promover o meio ambiente urbano e cultural e, por consequência, a educação e o implemento de uma efetiva política cultural. Abordaremos a acepção do Tombamento como Política Pública bem como sua relação com o particular. Por fim, o texto buscará mostrar a relação do tombamento como planejamento urbano e sua importância ressaltada no texto constitucional através da emenda nº 48 de 2005 e emenda nº 71 de 2012, que trazem a previsão do planejamento cultural através do Plano Nacional de Cultura. 34 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 2. DEFINIÇÃO E UTILIDADE DO TOMBAMENTO O artigo 216 da Constituição Federal Brasileira define expressamente o que é patrimônio cultural brasileiro: Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 2014). As formas de proteção à cultura estão divididas entre os particulares e o poder público que deverá, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação, podendo ser acrescentados todos os meios possíveis de proteção e preservação da Cultura, desde que em harmonia com o texto constitucional. O Decreto-lei 25 de 30 de novembro de 1937 prevê que o patrimônio histórico e artístico nacional é constituído de bens móveis e imóveis, particulares ou públicos, vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil e bens de excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico, sendo de interesse nacional sua conservação. Destaca-se ainda que os monumentos naturais de feição notável que tenham sido dotados pela natureza ou gerados pela indústria humana devem ser lançados nos livros tombos e em nenhum caso, podem ser destruídos, demolidos ou mutilados, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Considerando que a norma constitucional recepcionou o decreto 25/37, fica claro que o respeito à diversidade, aos meios de vida dos povos representa valor para sociedade que o rodeia; o que se produz e se produziu e teve impacto na vivência histórica de cada indivíduo com relevância emocional ou técnica artística, valorizando a coletividade o saber e o sentir coletivo; é classificado como Patrimônio Cultural. 35 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Nos dizeres de Carlos Magno de Souza Paiva: [...] a tutela jurídica de um bem cultural deve atender a um biônimo fundamental que deve ser considerado ao se adotar quaisquer das medidas públicas de salvaguarda: relevância e reciprocidade coletiva. Justamente por que o papel que o Patrimônio Cultural deveria exercer, enquanto elemento reflexivo de um povo, hoje, não pode estar subjugado pela importância tecnocentrista. (PAIVA, 2011, p. 5). Fica claro que o Patrimônio Cultural não se limita ao listado através de caráter técnico pelos historiadores, antropólogos, arqueólogos ou críticos de arte, mas também decorre da vontade do povo em querer protegê-lo. O tombamento é procedimento administrativo conduzido pelo executivo na esfera da administração pública (Municipal, Estadual ou Federal), possibilitando a manifestação do proprietário do bem tombado, a avaliação técnica do órgão competente, seguida da participação da sociedade por meio de seus representantes no conselho deliberativo específico do local do bem tombado. O texto constitucional traz expresso que o tombamento é um dos instrumentos que devem ser utilizados para promover e proteger o patrimônio cultural. Ao interpretar e aplicar a lei no que tange ao tombamento deve-se observar o decreto 25/37 no que não for contrário a Constituição Federal. Ressalta-se que proteger não é parar o bem no tempo, muito embora o decreto mencione que em nenhum caso o bem poderá ser destruído, demolido ou mutilado, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A Constituição Federal de 1988 traz clara a questão da promoção do patrimônio cultural, que não tem apenas o caráter de monumentalidade e de excepcionalidade trazido no decreto. O procedimento do tombamento pode ser via judicial ou legislativa, ou ainda através do MP ou da sociedade civil. Porém tais procedimentos não terão aprofundamentos no presente artigo, o que se ressaltará é que patrimônio cultural deve ser promovido, no sentido utilizá-lo para melhorar e promover o meio ambiente urbano e cultural e por consequência a educação e o bem estar da população. Merece destaque que o Estatuto da Cidade, no seu art.4°, lista os instrumentos jurídicos do planejamento urbano e refere-se expressamente ao “tombamento de bens imóveis ou de mobiliário urbano” (inc. V, alínea d). O 36 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem tombamento é aí referido junto com outros institutos jurídicos, listados nas várias alíneas dos seis incisos do referido art.4°, objetivando, simplesmente, exemplificar os vários instrumentos que podem ser usados na gestão do planejamento urbano³. Se não bastasse o tombamento ter sido incluído no Estatuto da Cidade como instrumento de planejamento urbano, o texto constitucional através da emenda nº 48 de 2005 traz a previsão do planejamento cultural através do Plano Nacional de Cultura. O referido instrumento foi fortalecido com a emenda 71 de 2012, com o objetivo de incentivar o desenvolvimento cultural do País e a integração do poder público. Busca-se através do expresso no texto Constitucional articular uma Política Pública financeira para a defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; produção, promoção e difusão de bens culturais, formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões e; por fim, a democratização do acesso aos bens de cultura. O texto constitucional traz todas as normas estruturantes do sistema de implementação das políticas culturais, devendo as políticas culturais observarem tais premissas para serem efetivamente implementadas nos termos do texto constitucional. Assim, fica claro que o tombamento por ser instrumento de promoção de cultura e por estar integrado através do texto constitucional ao sistema Nacional de cultural, é instrumento também de política cultural. Assim, definindo tombamento, entendemos que temos que romper a visão do tombamento como limitação de direito de propriedade; trata-se de instrumento de proteção e promoção ao patrimônio cultural, urbanização das cidades e dinamização de políticas³. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida com Estatuto da Cidade, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências culturais, que busca tornar o patrimônio ambiental urbano tombado um instrumento que pode ser utilizado nas esferas estaduais, municipais e federais para desenvolvimento social. Merece destaque que a municipalidade origem do tombamento deve ser valorizada e dada um especial importância face a regionalidade dos valores culturais. Outrossim, nos casos em que a norma ativa federal ou estadual for compatível com as normas municipais, ambas devem ser aplicadas, por exemplo, se a norma municipal for mais restritiva do que a federal (ou estadual), no sentido de trazer maiores cuidados ao bem tombado, aquela será aplicável. 37 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 3. CRITÉRIOS PARA O TOMBAMENTO Conforme exposto, o Tombamento é instituto de preservação ao patrimônio cultural, política urbana e política cultural, assim, quando este instituto for utilizado é devemos ter em mente a viabilidade do atendimento dessas três vertentes. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, traçaremos aqui algumas diretrizes para que o Tombamento atenda seu fim. O diálogo na produção do tombamento é importantíssimo, de nada adianta a Administração Pública vir através de ato unilateral determinar o tombamento do bem. É necessário que os cidadãos locais sejam atores principais nesse processo e reconheçam o bem como passível de tombamento. Conforme dito, o caráter de monumentalidade e excepcionalidade do bem, não significa o sucesso do tombamento no sentido da promoção do patrimônio cultural. O bem pode ter monumentalidade, mas sem o envolvimento da sociedade, isso pode significar seu definhamento e não promover políticas urbanas e culturais. Quanto mais o bem tombado encontrar-se inserido em uma política cultural e urbana, mais ele será valorizado, visto, respeitado e poderá inclusive dar retorno financeiro a população do entorno, sendo que no caso de bem particular o retorno financeiro é direito do seu proprietário. Núcleos urbanos são organismos dinâmicos e complexos, o acervo cultural preservado pode abrir possibilidades econômicas de desenvolvimento e indicar alternativas de sustentabilidade local. Assim, se o bem tiver apenas o caráter de monumentalidade ou excepcionalidade não será suficiente para o sucesso do tombamento, tem que haver em conjunto ações públicas e privadas que valorizem o planejamento urbano do entorno e ainda políticas culturais que valorizem o uso e apropriação do bem pela população, incluindo trabalho educacional com a população para a valorização do bem. Embora o bem possa ser particular, o seu destaque é coletivo e deve ser valorizado por todos, pois seu tombamento se deu por questões que interessam a toda a sociedade. Surge assim mais um viés do tombamento que é o educativo, na medida em que a população a partir do tombamento pode se enriquecer culturalmente e fortalecer sua identidade com o lugar resgatando vivências importantes. É recomendável um trabalho educacional e promocional sobre o bem, informador e formador da população do entorno, pois o poder público corre 38 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem o risco de entregar para a população algo que a população não está preparada para receber e que por consequência, pode não ser valorizado, pois como já exposto, deve haver o reconhecimento do bem tombado. Assim, o tombamento realmente atenderia a “função social da propriedade” A identificação do bem objeto de tombamento deve ser criteriosa. Nesse sentido observemos que numa época na qual a universalidade das técnicas de construção e das formas arquitetônicas ameaça provocar uma uniformidade nos assentamentos humanos, a salvaguarda dos complexos históricos tradicionais pode contribuir para o aprofundamento dos valores culturais e sociais próprios de cada nação, e favorecer o enriquecimento do patrimônio cultural mundial do ponto de vista. Seguimos o entendimento da Professora Marinella Machado Araújo sobre a função social da propriedade exposto no texto abaixo: [...] a expressão função social da propriedade empregada com sentido de qualquer limitação ao direito de propriedade tendo em vista um fim de natureza pública e que em nossa ordem jurídica, em razão do modelo de Estado Democrático por ela adotado-democrático participativo. E que o interesse público que justifica a persecução deste fim é compreendido como todo o interesse privado que se projeta na esfera pública em razão de racionalidade de seus fundamentos e da necessidade de coerência da atuação do Poder Público com o princípio a solidariedade característicos desses modelos arquitetônicos. (FERNANDES, 2010, p. 193) A preservação não pode ser dissociada da modernização das cidades, dinâmicas por excelência. Sobre o direito à cidade destacamos: O direito à cidade é composto por feixe de direitos que incluem o direito a moradia (implícita a regularização fundiária), à educação, ao trabalho, à saúde, aos serviços públicos (implícito o saneamento), ao lazer, à segurança, ao transporte público, à preservação do Patrimônio Cultural, histórico e paisagístico, ao meio ambiente construído equilibrado (implícita a garantia do direito a cidades sustentáveis). (CAVALLAZZI, p. 130). Se não bastasse o critério técnico (urbanístico, histórico e cultural), a participação da sociedade civil é imprescindível na elaboração de normas, principalmente em se tratando da nossa Constituição Federal, que traz como 39 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio democrático e a soberania popular (art. 1º e art. 14 da CR/88). A necessidade dessa participação é melhor compreendida na medida em que reconhecemos os cidadãos como destinatário e coautores das normas. Essa co-originariedade normativa, traduzida e aplicada à cooperação interinstitucional pode dimensionada em maior responsabilidade e eficiência das instituições à medida que cada um reconhece a responsabilidade que lhe cabe e dela se apropria como coator da norma. Principalmente, as normas sobre planejamento, ordenação e desenvolvimento do solo urbano, uma vez que, em verdade, cerca de 80% dos brasileiros, segundo o IBGE, vivem em cidades. Assim, o indivíduo cidadão, além de destinatário da prestação do Estado, é também corresponsável juntamente com ele pela construção do que é interesse público informador das ações desenvolvidas pelo Governo/ Administração Pública como políticas públicas, por exemplo. O interesse público é, então, visto como todo o interesse privado na esfera pública por força da racionalidade do discurso decorrente de relações dialógicas. Essa concepção de construção de interesse público implica mudança de postura tanto do gestor público, quanto do cidadão. O gestor deve buscar uma mudança de postura de modo a chamar pra si a responsabilidade pela eficiência da gestão, e o cidadão deve buscar mecanismos de participação ao invés de responsabilizar o Estado. A iniciativa de transformação individual repercute sobre o coletivo (ARAUJO, 2010, p 144). O Tombamento, dado seu viés cultural, educacional, urbanizador desempenha papel de saneamento social na organização das cidades. 4. TOMBAMENTO E PLANEJAMENTO Já vimos que o Tombamento é ato administrativo e que pode ter sua origem no âmbito municipal, estadual ou federal seguindo políticas culturais, protegendo o patrimônio e privilegiando a evolução das cidades; assim, é imprescindível que o tombamento seja objeto de planejamento. O tombamento isolado não é suficiente, pois planejamento não é o fim e sim o meio. É dever formular e executar as políticas culturais. A eficiência do planejamento administrativo, financeiro e orçamentário depende da adequação à realidade social, econômica, administrativa da unidade federativa e da legitimidade das ações propostas. Quanto maior o consenso sobre as ações, 40 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem maior a força vinculante da decisão, que só é possível obter por meio da participação popular na gestão pública (ARAUJO, 2010, p. 145). Considerando que o tombamento é um ato administrativo dentro do planejamento do poder público é: O direito que condiciona a criação e execução de soluções, políticas e programas pela administração Pública. O dever básico do administrativista é trabalhar na ampliação do leque de alternativas para a ação administrativa encontrar no direito sua base e seus limites, mas sem comprometer a extensão da função criadora que a administração tiver recebido da legislação, nos termos constitucionais. A grande missão do administrativista contemporâneo não é tolher a criação administrativista para defender o espaço do legislador; é assegurar que o direito, em suas múltiplas formas, influa o espaço de deliberação administrativa, mas sem monopolizá-lo. (SUNDFELD, 2012, p. 136). A questão do planejamento nas áreas onde se dará o tombamento deve ser verificada, o entorno deve garantir que as novas edificações se harmonizem ou complementem as edificações tombadas, deve haver melhorias no meio ambiente, integração da sinalização, garantia que o trânsito se harmonize com a passagem, instituir benefícios fiscais e estímulos financeiros para a recuperação das edificações do entorno, educação patrimonial e conscientização histórica, projetos para viabilizar a exposição do bem tombado e sua exploração econômica no sentido de gerar renda não só para o proprietário, mas para o entorno. Enfim, o tombamento deve vir acompanhado de uma série de benefícios para a população e não isolado. A Professora Marinella Machado Araújo bem destaca a função executiva para implementar o planejamento e efetivação das ações pelo poder público: A função executiva, que se desdobra na função política e na função administrativa, deve ser concebida de forma integrada. Um dos fundamentos da administração pública dialógica é a integração dessas duas funções: uma não vai abduzir a outra. É preciso pensar a função administrativa de forma articulada com a função política e vice-versa. Como formulador ou como governante, é preciso pensar naquele que vai aplicar aquela legislação. Esse movimento de integração coloca o governante na condição de administrador público e vice-versa, criando condições para uma maior colaboração (ARAUJO, 2010, p. 149). 41 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Sobre o planejamento especificamente no tocante ao tombamento importante mencionar que, no seio desse debate, vem sendo redefinida a importância do planejamento territorial para a efetividade das políticas de proteção ao patrimônio cultural, bem como o reconhecimento crescente da necessidade de integração entre órgãos de planejamento urbano, tutela ambiental e órgãos culturais, que gradualmente tem ganhado uma grande importância para a garantia da gestão de políticas eficientes na tutela do patrimônio cultural brasileiro (SUNDFELD, 2012, p. 136). A Secretaria de Cultura ou o órgão responsável pela cultura na Administração Pública deve ter uma interface planejada com o urbanismo. Merece atenção o tombamento de conjunto, tombamento de áreas que não se restringem a apenas um bem. Tais tombamentos não podem ter o condão de restringir a evolução e a qualidade de vida da área. As possibilidades de desenvolvimento do conjunto tombado, implicações culturais, sociais, econômicas e políticas devem ser consideradas nestes tombamentos. É necessário um diálogo permanente entre conservadores urbanistas e gestores culturais, possibilitando requalificação dos espaços urbanos tombados. Políticas participativas são necessárias, não envolvendo apenas os moradores das áreas afetadas, mas também associações locais, câmaras de comércio e demais agentes com interesse nas áreas a serem protegidas devem fazer parte da ação planejadora do tombamento. A inserção de jovens neste processo através da educação e da capacitação profissional é indispensável para os objetivos do tombamento. O morador não pode crescer distanciado de seu próprio ambiente, não pode ser afastado aquele que melhor pode conservar e valorizar o bem tombado. A Administração Pública deve ser voltada para o futuro. No Estado contemporâneo, extremamente complexo, seria impensável que a lei sempre determinasse, até os últimos pormenores, qual deveria ser o comportamento e a atuação dos diferentes agentes administrativos. A noção que a Administração pública é meramente aplicadora das leis e tão anacrônica e ultrapassada quanto à de que o Direito, seria apenas um limite para o administrador. Por certo, não prescinde a Administração Pública de uma base ou de uma autorização legal para agir, mas, no exercício da competência legalmente definida, têm os agentes públicos, se visualizado no estado globalmente, um dilatado campo de liberdade para desempenhar a função formadora que é hoje universalmente reconhecida ao poder público. (SUNDFELD, 2012, p. 136). 42 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A lei fria não garante nada, tem que haver um conjunto de ações e envolvimento no que tange ao tombamento. Não é difícil comprovar essa ideia. A lei nacional de tombamento (Decreto 25/37) especifica exatamente quais são as restrições que a administração pode impor ao direito de propriedade. Segundo a lei, em seu art. 17, as coisas tombadas não poderão, “em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas”. A solução normativa parece perfeita pela lógica. Tem quem considera que o importante é a própria lei quem deve definir as restrições possíveis. De fato, as restrições estão legalmente definidas, porém não basta apenas a restrição legal. Na experiência com o tombamento em todo o Brasil, o que conteve a arbitrariedade administrativa nesses anos todos não foi a densidade substantiva do art. 17 da lei, mas os aspectos institucionais de que a legislação cuidou: o tombamento tem de ser feito por processo administrativo, a competência é de um colegiado de especialistas, as competências tem limitações finalísticas etc. (SUNDFELD, 2012, p. 136). O planejamento do tombamento deve ser ainda combinado com aspectos de zoneamento e preservação, posturas municipais, isenções fiscais, entre outros, numa tentativa de se integrar a preservação e planejamento urbano. A administração pública deve buscar resultados concretos, conforme lição do prof. Carlos Ari: O que os administrativistas têm que fazer é trabalhar no aperfeiçoamento tanto teórico como normativo dos outros mecanismos jurídicos que não a vinculação da administração ao legislador. Precisam contribuir mais na discussão sobre quais são arranjos institucionais administrativos capazes de garantir os valores democráticos e os direitos, quando da tomada de decisões. Precisam investir suas energias nos debates sobre as várias classes de processo administrativo, especialmente as audiências e consultas públicas de projetos de regulamento. (SUNDFELD, 2012, p. 136). Deve haver a visão global, não se deve ficar restrito a apenas a um órgão da administração pública. “Muitas ações de planejamento ficam concentradas no universo do órgão que as concebe em razão da falta de visão global do planejamento”. (ARAUJO, 2010, p. 148). 43 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem O tombamento como instrumento isolado tem gerado efeitos perversos, tem congelado a realidade, a história, a dinâmica da vida, tem realizado um pacto com a fotografia: ao capturar a vida, inviabiliza a continua transformação da paisagem urbana. (CAVALAZZI, 2010, p. 139) É dever através do tombamento implementar políticas culturais, urbanas, educacionais e inclusive desenvolvimento econômico. 5. PODER PÚBLICO E O PARTICULAR NA MANUTENÇÃO DO PATRIMÔNIO TOMBADO Conforme já exposto é importante que ultrapassemos a visão do tombamento como limitação de propriedade, através de incentivos tais quais a adoção de medidas compensatórias como isenção de IPTU para o bem que esteja e bom estado de conservação e com suas características arquitetônicas e decorativas relevantes respeitadas; isenção de ISS dos serviços de reforma, reestruturação ou conservação de imóveis de interesse histórico ou cultural ou de interesse para preservação ambiental, desde que visando a recolocá-los ou a mantê-los em suas características originais relevantes; isenção da Taxa de Obras em Áreas Particulares reconhecidas como de interesse histórico, cultural ou ecológico, desde que visando a recolocá-las ou a mantê-las em suas características originais relevantes Além de políticas públicas, são instrumentos para que o particular se interesse pela proteção e manutenção do bem tombado. Ademais, também existe uma possibilidade de garantir verbas para a manutenção dos prédios históricos por meio da Lei 8.392, de 2008. Em seu artigo 5º, a Lei prevê o financiamento de projetos que envolvam os patrimônios históricos e culturais, como as obras de manutenção e restauro dos mesmos. O proprietário pode apresentar um projeto da obra que vai fazer e submetê-lo à aprovação como qualquer outro empreendedor que entre com um projeto na Linc. Ele tem todas as possibilidades de conseguir, desde que a comissão entenda pela viabilidade da obra. E ainda a Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), conhecida também por Lei Rouanet. trás possibilidades de captação de recursos para investimento em bem tombado. Outro instrumento de incentivo é a transferência do direito de construir. A partir do momento em que um imóvel é classificado como digno de 44 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem preservação, a possibilidade de eventual construção é eliminada. O proprietário não poderá destruir o bem que se pretende preservar para fazer no empreendimento, porém poderá utilizar-se do potencial construtivo permitido para a zona em que se situa. O proprietário não é impedido de exercer seus direitos sobre o bem, sendo que a restrição imposta é parcial, o que, em regra não garante ao proprietário direito a indenização, salvo se demonstrar que o prejuízo adveio do tombamento. Não entraremos no mérito se essas compensações, isenções ou incentivos, são suficientes, porém é importante manter o diálogo e estimular a participação propositiva para dar contornos mais viáveis para o desenvolvimento econômico e social através do Tombamento. Transferir unilateralmente a responsabilidade do cidadão para os agentes públicos mascara o problema e dificulta sua solução. Tratar o Estado como oponente do cidadão indivíduo é um equívoco e leva a cisão entre os papéis desempenhados pelo gestor público e pelo particular. Sobre a transferência do Direito de Construir é muito esclarecedor artigo: “Tombamento e transferência do Direito de Construir: Dois institutos que se complementam”. Cap. 9. GASPARINI, Audrey. FERNANDES, Edésio; AFONSIN, Betânia (coord.). Revisitando o instituto do tombamento . Belo Horizonte: Fórum, 2010. Cidadão na construção de uma sociedade mais justa e a concorrência entre o interesse público e privado ( ARAUJO, 2010,p 145). E continua a Professora Marinella: A superposição de papéis sociais e políticos leva ao conflito de interesses e de posturas. Somos cidadãos e gestores, propositores e destinatários de leis. Como indivíduos, reivindicamos políticas públicas, direitos fundamentais que correspondam cada vez mais às nossas demandas pessoais. Como gestores, sabemos que limitações econômico-financeiras impõem barreiras à satisfação desse direitos. Essa percepção de público e privado vicia processos políticos e contribui para que LUHMANN denomina acoplamento estrutural dos sistemas político e jurídico e NEVES considera ser das razões para a força simbólica de direitos no Brasil (ARAUJO, 2010, p. 146). O tombamento deve ser visto como uma oportunidade principalmente para o estímulo ao consumo cultural pela sociedade. A sociedade tem que consumir mais cultura, gerando renda e ficando mais culta. No caso do 45 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem tombamento, valorizando sua história local, criando maior sensação de pertencimento ao local e um o ambiente urbano sustentável. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Num país tão diverso como o Brasil a regionalidade deve ser respeitada. O Tombamento isolado não é suficiente par seu fim constitucional, devendo ser fruto de uma ação planejada promovendo a cultura, o urbanismo, a educação, protegendo realmente o patrimônio cultural como um todo e não apenas o bem. Ações educacionais conjuntas ao tombamento são um ganho para a sociedade ao aumentar a sensação de pertencimento dos cidadãos valorizando o meio ambiente urbano. O Tombamento não pode ser visto pelo particular como uma punição ou como um instrumento que para seu bem no tempo. O tombamento deve ser visto como uma oportunidade para desenvolvimento social na medida em que for implementado com base no que dispõe o texto constitucional. Mecanismos de incentivo ao particular para proteger o bem tombado são fundamentais para a visualização de retorno rápido no que tange ao tombamento. O particular mais pragmático, dono do bem tombado, não enxerga as políticas públicas como um ganho. A esse particular devem ser dados mais incentivos, evitando inclusive que o bem perca valor em razão do tombamento, o que geraria indenização e significaria mais ônus para os cofres públicos. O planejamento por parte do poder público e a efetiva participação da população é essencial para que o tombamento alcance seu fim constitucional de ser instrumento de preservação ao patrimônio cultural, política urbana e política cultural. REFERÊNCIAS 1. ARAUJO, Marinella Machado. Fundamentação jurídico-legal e financiamento da cooperação Interinstitucional: construindo administrações dialógicas. In: CASTRO, Erika de et al. (Org.). Inclusão, colaboração e governança urbana: perspectivas brasileiras. Rio de Janeiro; Observatório das Metrópoles, 2010. 2. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva 1998. 46 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 3. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br> Acesso em: 21 out. 2014. 4. COSTA, Rodrigo Vieira. Cultura e Patrimônio Cultural na Constituição da República de 1988: a autonomia dos direitos Culturais. São Paulo: Revista CPC USP nº 6, p. 21-46, maio 2008/out. 2008. 5. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília Jurídica, 2000 Cultura e democracia na Constituição Federal de 1988: a representação de interesses e sua aplicação Programa Nacional de Apoio à Cultura. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. 6. FERNANDES, Edésio; AFONSIN, Betânia (coord.). Revisitando o instituto do tombamento. Belo Horizonte: Fórum, 2010. 7. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 8. PAIVA, Carlos Magno de Souza. A tutela Jurídica do Patrimônio Cultural. Contagem. Revista por dentro da História, ISSN 2177471-4, 2011. 9. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. Editora Malheiros, 2012. Recebido em: 20/10/2014 Aprovado em: 28/10/2014 47 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem AS LEIS DE ANISTIA E AS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO1 RESUMO O presente artigo busca analisar se, na transição de um regime ditatorial para outro democrático ou para a consolidação democrática, deverão os responsáveis pelas violações de direitos fundamentais serem julgados, ou não. Para esta análise serão consideradas as três ondas de transição democrática de Samuel Phillips Huntington bem como a necessidade de serem criadas regras para se legitimar “a justiça nos processos de transição”. Palavras-chave: anistia, transições democráticas, justiça de transição. ABSTRACT This study aims to examine if in the transition from a dictatorial regime to a democratic regime or to democratic consolidation, should those responsible for violations of fundamental rights being judged or not. For this analysis are considered the three waves of democratic transition Samuel Phillips Huntington as well as the need to create rules to legitimize “ justice in the process of transition.” Keywords: amnesty, democratic transitions, transitional justice. 1. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, foi crescente a prática, por parte de alguns Estados, de outorgar a Anistia a acusados da prática de crimes políticos. O vocábulo “anistia” vem da palavra grega “amnestia”, que significa esquecimento. No ordenamento jurídico brasileiro Anistia “significa o esquecimento de certas infrações penais” (DELMANTO, 2010, p. 165). Ao longo dos últimos 25 anos, muitos países têm recorrido à legislação 1 Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado da União. Professor do UniCEUB - Centro Universitário de Brasília. 48 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem nacional, de alguma forma, para atenuar a transição de regimes ditatoriais para governos democráticos. Nos anos 70, devem ser mencionadas anistias concedidas pelo governo de transição da Espanha, Grécia e Portugal, mas também a concedida pelo Presidente Ford para beneficiar o seu antecessor Nixon, o que alguns autores consideram a origem de uma prática indulgente com a impunidade. Nos anos 80 seguiram anistias concedidas pela Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai, além de mais de uma dúzia de países Africanos. Nos 90 foram acrescentadas a esta lista anistias emitidas por El Salvador, Haiti, África do Sul e a Ex-União Soviética. Costuma-se afirmar, com certa frequência, que a rejeição à anistia se dá em razão de que supostas violações dos direitos humanos acabam por se tornar impunes. Em muitos casos no ordenamento jurídico mundial, essa foi justamente uma exceção. Há vários exemplos de procedimento de anistia que foram consideradas pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), como anistias legítimas, por exemplo, no Haiti, Camboja, El Salvador e África do Sul. 2. AS TRÊS ONDAS DE TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA Samuel Phillips Huntington, idealizador da chamada teoria das “Três Ondas”, sustenta a existência de três períodos distintos de transição democrática. Huntington (1991, p.15) define uma “onda de democratização” como “um conjunto de transições não-democráticas para regimes democráticos que ocorrem dentro de um período específico de tempo, e que suplantam significativamente transições no sentido inverso ao longo desse tempo.” A primeira onda de democratização, um longo e lento processo, que durou quase um século (1828 a 1926), assistiu à transição de regimes não democráticos em trinta e três países, todos eles situados na Europa, nas Américas, além dos domínios ultramarinos da Inglaterra. A segunda fase abrange o período compreendido entre 1943 e 1962, onde se assistiu ao estabelecimento ou restabelecimento dos regimes democráticos em quarenta países, incluindo, dentre outros, os recém independentes Estados pós-coloniais. Agora, estar-se-ia durante a terceira onda, que teve início em 1974 com o recuo dos governos autoritários no sul da Europa (Portugal, Espanha e Grécia) 49 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem e da América Latina, seguidas da recuperação e restauração de democracias que culminaram com a abertura democrática no leste europeu e nos estados sucessores da União Soviética, após o seu colapso. Nesse contexto, pode-se verificar que a maioria das transições na América Latina, África e Leste europeu ocorreram em uma fase de maior desenvolvimento do sistema de proteção internacional de direitos humanos, diante da existência de organismos institucionais efetivos, também na ordem interna, de proteção aos direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, verificou-se um crescimento no número de denúncias de violações a tais direitos. O peso da opinião pública, as campanhas públicas de informação e ações desenvolvidas, sensibilizavam cada vez mais a opinião pública internacional. Defensores dos direitos humanos, adquiram grande projeção midiática com a atribuição de prêmios internacionais. Com a derrocada dos regimes do centro e leste europeu e o fim de uma série de ditaduras “tradicionais” na África, Ásia e América Latina, muitos regimes viram-se “obrigados” a revelar algumas vulnerabilidades, e a dar pelo menos uma imagem de transparência e de prestação pública de contas, patrocinando a apresentação de relatórios e inquéritos sobre as mais diversas matérias de discussão pública. A análise da informação acima permite concluir algo que já se sabia: nos países com passado e tradições democráticas, como são os casos, do Uruguai e Chile, da República Tcheca, ou da Polônia, os processos de transição foram muito mais fáceis. De fato, com a existência de ONGs, imprensa livre, uma opinião pública avisada e relatórios (concluídos e esclarecedores), viabilizou-se a progressão do processo político democrático. Nos países com menor tradição democrática, os relatórios não foram concluídos, ou não foram tornados públicos, revelando-se a fragilidade das opiniões públicas, a força dos detentores do poder, ou das forças responsáveis por grandes abusos. Nesses países pré-democráticos a revelação da verdade é um elemento fulcral para qualquer transição. Todo processo de transição é complexo, doloroso, provoca expectativas, e, frequentemente, também desencantos e frustrações. Há um elemento até agora novo, associado a todas estas transições democráticas: a importância atribuída ao conceito de “direitos fundamentais”. E um reforço nos mecanismos de proteção internacional de direitos humanos por parte de novas entidades. Direitos humanos e democracia passaram a constituir termos fundamentais na terminologia política e filosófica contemporânea, base significativa 50 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem das referências, discursos e das agendas políticas, adotados de forma cada vez mais ampla por mais atores sociais e políticos. 3. VIOLAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTIAS E HUMANOS Será que a “impunidade” das violações de direitos fundamentais pode limitar os processos de transição e consolidação democráticos, em um quadro crescentemente transnacionalizado? Em vários ordenamentos jurídicos, há candentes discussões a respeito da concessão de anistia a vários agentes públicos, supostamente responsáveis, entre outras violências, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, tortura e abusos sexuais contra opositores políticos, sob o argumento de que tal “perdão” violaria diversos preceitos fundamentais. Haveria algum padrão diferenciador na aplicação da justiça nas transições da “Terceira Onda” de Democratização relativamente ao ocorrido anteriormente? O que se pretende com o presente trabalho é abordar estas questões, naturalmente nos limites de um estudo desta natureza. Nessa linha de ideias, pode-se afirmar que a transição democrática é o processo que divide a dissolução de um regime autoritário e a instalação de um regime democrático. A consolidação democrática corresponde ao período pós-transitório, ou seja a fase da estruturação do regime democrático através de mecanismos institucionais estáveis, seguros, reconhecidos e regularmente exercidos pelos cidadãos. Ou seja, quando, para vencedores e vencidos não há outra possibilidade de resolução dos seus diferendos, a não ser a democrática. A questão do que fazer com os violadores de direitos, num sistema de transição democrática constitui um elemento crucial nesta problemática por ser um dos elementos mais distintivos da transição entre o “antigo” e o “novo” regime, e também um elemento estruturador da consolidação democrática. O questionamento sobre a justiça na transição pode permitir, reduzir, ou estancar a violência política ou social, valorizar a intervenção da sociedade civil na denúncia de violação de direitos, definir as relações e as responsabilidades com as instituições políticas (exército, polícias, serviços secretos) responsáveis pelo regime autoritário etc. A justiça em processos de transição pode ser, e frequentemente é, um acontecimento tão excepcional que pode justificar medidas imediatas menos aceitáveis numa democracia consolidada. A ausência de medidas pode até desacreditar um governo ou frustrar 51 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem expectativas. Francisco Panizza (1995, 170) já afirmava que “nos novos regimes democráticos, ou a Justiça vem rapidamente, ou ela não vem”. Mas também há quem considere, sobretudo em transições “suaves”, que sendo a imagem da aplicação da justiça um elemento importante para a consolidação democrática é necessário que a justiça nesta fase deva ser coerente e utilize, desde logo, as regras próprias de uma democracia consolidada: visando o desenvolvimento da sociedade civil, a afirmação da sociedade política, a dignidade do estado de direito, a credibilidade dos órgãos do Estado, a proteção de interesses econômicos. 4. PROCESSAR E PUNIR OU PERDOAR E ESQUECER? Na transição, ou para a consolidação democrática, deverão responsáveis pelas violações de direitos fundamentais ser julgados, ou não? Nesta questão central há quem coloque o dilema entre “processar e punir” versus “perdoar e esquecer”. Os puristas são, em princípio pela realização de julgamentos, contra a impunidade que desculpa os violadores e abandona as vítimas ao desespero, vingança ou à violência; traindo a confiança das pessoas na mudança e na democracia. Os pragmáticos preferem uma anistia, que reconcilie as divisões existentes, restaure a esperança e não levante receios de novas perseguições. Uma sociedade consolidada e estável assegurará a confiança nas instituições e trará consigo a reconciliação. Os dirigentes devem pensar a longo prazo e não patrocinar novas injustiças, instabilidade e vinganças. Os pragmáticos invocam ser melhor explorar as possibilidades de qualquer abertura, os puristas tenderão a desconfiar da ausência de mudanças. Os puristas considerarão essencial o combate aos anti-democratas; os pragmáticos dirão que eles seriam pré-democratas. Os puristas consideram a obtenção da democracia uma vitória política, que embora se celebre, tem derrotados, e que estes devem perceber isso; os pragmáticos acham que se trata de uma evolução, em que todos ganharão; para os puristas a estabilidade e a reconciliação são uma conseqüência do estabelecimento da justiça e do primado da lei, para os pragmáticos a estabilidade e a reconciliação são uma condição da restauração do primado da lei (FEHER, 327). Também podem ser apresentados outros argumentos a favor ou contra. A favor de julgamentos: o novo governo tem o dever moral de o fazer, porque a verdade e a justiça o exigem; é uma obrigação devida às vítimas; deve ser 52 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem feita para prevenir futuras violações; é essencial para estabelecer a viabilidade da democracia, ou a sua superioridade moral, restabelecendo normas, valores e confiança; porque se trata de uma pedagógica prestação pública de contas, que constitui um elemento-chave das sociedades democráticas. Contra os julgamentos: as divisões do passado devem acabar, a compreensão entre grupos diferentes é importante para a democracia; sendo possível, ou frequente que haja abusos do governo e da oposição, é melhor que as duas partes se encontrem socialmente reconciliados; os crimes do anterior “Poder” tinham apoio público, ou foram realizados por razões superiores para limitar males maiores. As experiências da “Verdade e Reconciliação” foram iniciadas no Chile, e aplicadas com sucesso em diversos Estados, como, por exemplo, na África do Sul, nada obstante esteja a atravessar, atualmente, numerosos processos de transição traumática. Para José Zalaquett (ROHT-ARRIAZA, p. 206), “punishment is of lesser importance. It is important, but ackowledgement is more important […] if they ackowledge what happened and their role in it, then you are ready to forgive. In this context, punishment is an instrument, an important one”. Naomi Roht-Arriaza (p. 206), explicando que os objetivos da justiça devem ser reparar as violações cometidas e prevenir futuras, refere-se que a necessária reconstrução moral da sociedade tem que incluir “elements of shaming, truth telling, institution building, punishment, but also of forgiveness, to the extent that forgiveness is legitimate”. Nesta perspectiva, o perdão não constituiria um ato gratuito e isolado, mas antes parte de um processo de restauração de uma ordem moral, em que o acusado admitiria os seus atos, que a verdade fosse revelada, que foi errado o que fez, que não voltará a fazê-lo, compensando os prejuízos que provocou. Os processos de realização de justiça nas transições democráticas do pós-Guerra caracterizaram-se normalmente pela opção de julgar, acusar e punir, tendo sido geralmente aplicados processos relativamente expeditos de execução da justiça, sem excesso de preocupações com os padrões de justiça, apesar de se ter verificado em sociedades democraticamente consolidadas. Adotou-se o princípio da excepcionalidade da justiça na transição. Isso fica patente, por exemplo, nos procedimentos excepcionais que foram adotados nestes processos. Adoção de prisões ilegais, de processos de culpa coletiva, adoção de processos com presunção de culpa (em vez de presunção de inocência), escolha selecionada de certos juízes, ausência de direitos de recurso, negociação de pena, legislação retroativa etc. 53 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem As transições posteriores fizeram-se num quadro de maior respeito pelas regras de justiça, muito dependentes do modo de transição e das circunstâncias políticas (na Grécia com julgamento dos responsáveis militares, na Espanha anistia sem julgamentos, em Portugal ausência de política nesta questão). Houve o reconhecimento, em qualquer destes casos, dos princípios de uma justiça característica de uma sociedade democrática consolidada, ou um peso relativamente forte de elementos do “antigo regime” na transição. O conceito de justiça em geral, talvez seja o ponto decisivo para uma aproximação adequada entre a política e o direito. A idéia do justo fornece legitimidade para o exercício do poder político e a compreensão do direito como meio para alcançá-la torna possível o liame entre os âmbitos. Coincidência ou não, é exatamente sobre a noção de justiça que tanto Hobbes quanto Kelsen mais debruçam seus esforços teóricos. Consoante Norberto Bobbio (1991) na introdução ao seu livro Thomas Hobbes, consagrada ao filósofo homônimo: entre jusnaturalismo e positivismo jurídico, meu Hobbes situa-se mais do lado do segundo do que do primeiro. (...) A multiplicidade das interpretações – nas quais decerto, não pretendemos desconhecer a contribuição dada a um melhor conhecimento do pensamento hobbesiano – terminou freqüentemente por obscurecer o núcleo forte desse pensamento, fazendo esquecer que, se há um autor que perseguiu por toda a vida uma idéia, esse autor foi Hobbes, e que, se há uma obra na qual o tema dominante é exposto com insistência, quase obstinação, essa é a obra política do autor do Leviatã, livro que conclui a trilogia dos escritos políticos. Essa idéia é a seguinte: o único caminho que tem o homem para sair da anarquia natural, que depende de sua natureza, e para estabelecer a paz, prescrita pela primeira lei natural, é a instituição artificial de um poder comum, ou seja, do Estado. Sobre o conceito de justiça em Hobbes como o principal ponto de conexão entre direito e política, Celso Lafer (1991, p. 246) observa que “não há direitos do indivíduo a não ser o direito à vida, que deriva da própria lógica do sistema por ele construído, pois o critério do justo e do injusto resulta das leis promulgadas pelo soberano”. Thomas Hobbes (2003, p. 225), com objetivos políticos evidentes, concede ao direito um papel de grande relevo. Hobbes pretende evitar com sua 54 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem teoria uma guerra de todos os homens contra todos os homens a qual teria conseqüências funestas para a humanidade. Para isso, atribui ao direito positivo a função de estabelecer o que é certo e o que é errado de maneira válida para todos os seus destinatários. Segundo o filósofo, “o conhecimento da lei civil é de caráter geral e compete a todos os homens”. A sujeição do homem é unicamente para com o Estado e “ninguém pode fazer leis a não ser o Estado”. Para subsistir e alcançar seu escopo, o Estado deve criar meios para que a justiça se efetive e estes são as leis civis que “são as regras do justo e do injusto”. (HOBBES, 2003, 226). As regras formadoras do direito positivo, por serem criadas pelo poder soberano – para Hobbes, o poder soberano pode ser exercido tanto por um monarca quanto uma assembléia –, são dotadas de coerção. Com isso, controlam a conduta dos súditos que, independentemente de concordarem ou não com seu teor, devem respeitá-las sob o risco da sanção. E o filósofo vai mais além ao afirmar que “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei, não há injustiça”. Para Hobbes, antes que dos conceitos de “justo” e “injusto”, é necessária a existência do Estado que, por sua vez, cria as leis que obrigam os homens a cumprirem seus pactos sob pena de sofrerem sanções por parte do Deus mortal, o temido, respeitado e, sobretudo, desejado Leviatã. Chaïm Perelman (2002, p. 364) nos ensina que “o papel tradicional do direito é organizar, efetivamente e de diversas formas, a dialética entre vontades e razões humanas, logo imperfeitas” e, talvez justamente por tal característica é que a filosofia hobbesiana outorgue tamanha importância à esfera jurídica. Para Kelsen (2003, p. 67), “na medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito”. Para ele (1998, p.3), a justiça é uma característica até possível, mas não necessária de uma ordem social. O princípio basilar de sua teoria é o de que as normas jurídicas são completamente independentes das normas de justiça. Explica que “[...] como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral.” Especificamente no que tange à justiça, Hobbes (2003, p. 32) acaba por encontrar uma definição que, como veremos, é decisiva para sua teoria: por um nome nem sempre se entende, como na gramática, uma só palavra, mas às vezes, por circunlocução, muitas palavras juntas, pois todas estas palavras – quem nas suas ações observa as leis de seu país – constituem um só nome, equivalente a esta simples palavra: justo. 55 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Segundo Norberto Bobbio (1991, p. 49), cabe ao soberano, e somente ao soberano, estabelecer – através da emanação das leis civis – o que é torto e o que é direito; disto deriva que, uma vez constituído o Estado, não existe para os súditos outros critérios do justo e do injusto além das leis civis. Há inúmeras passagens onde Hobbes reafirma esse conceito, que faz de sua moral uma das expressões mais radicais do legalismo ético, ou seja, daquela teoria segundo a qual o soberano (...) não ordena o que é justo, mas é justo o que o soberano ordena. A partir de tais definições é que se deve prosseguir na investigação da função das leis e da justiça. Cabe ao poder soberano, primeiramente, preservar o Estado e, posteriormente, fazer com que o Estado cumpra seus fins. Para o alcance da primeira meta, o poder soberano deve respeitar e fazer respeitar o rol das leis de natureza – mantendo os pactos – e, a partir disso, buscar a meta mediata de manutenção da paz e da segurança, essências de sua criação e seu fim último. Para alcançar os objetivos do Estado, o poder soberano deve utilizar-se de instrumentos controladores das paixões humanas, tornando efetivamente obrigatória a observância das leis de natureza. 5. CONCLUSÃO Alguns autores formularam regras para se legitimar “a justiça nos processos de transição”. Afirma Yasmin Naqvi (2003, pp. 616-617), em seu trabalho intitulado “Anistia para os crimes de guerra: A definição dos limites do reconhecimento internacional”, que devem ser observados os seguintes critérios cumulativos para uma legitimação da anistia: (1) a anistia deve ser considerada prescritível e limitar-se a atingir determinados objetivos, notadamente os objetivos dirigidos à garantia das paz e àqueles voltados a seu aprofundamento ou a uma reconciliação; (2) a anistia deve sempre vir acompanhada de outras medidas, como a criação de comissões e organismos de investigação; (3) a anistia não deve ser auto-proclamada, ou seja, deve ser resultado de negociação entre os regimes de entrada e saída, ou de um acordo intermediado por outros Estados neutros, ou pelas Nações Unidas; e (4) a anistia só se aplicaria a militares de baixa patente, ou integrantes de baixa hierarquia de grupos armados, considerados como aqueles menos 56 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem responsáveis pela perpetração de violação de direitos humanos. No Chile o Decreto Lei n.º 2.191, de 1978, cuidou da anistia política. No entanto, o Decreto Lei n.º 2.191/1978 foi duramente criticado pela doutrina e pelos tribunais chilenos. Humberto Nogueira Alcalá (2005, p. 130), assim discorre sobre o tema no artigo “Decreto Ley de Amnistía 2.191 de 1978 y su Armonización Con El Derecho Internacional de Los Derechos Humanos”: 1. El Decreto Ley 2191 de 10 de marzo de 1978 de amnistía debe ser interpretado conforme al bloque constitucional de derechos y en armonía con el derecho internacional, por tanto, su interpretación debe realizarse excluyendo los delitos de lesa humanidad y las graves violaciones del derecho internacional imperativo, ya que es dable presumir que el legislador no ha intentado derogar el derecho internacional consuetudinario y soslayar el derecho internacional imperativo. En situación de eventual conflicto entre dicho decreto ley y las normas de ius cogens y derecho consuetudinario internacional y derecho convencional de los derechos humanos, deben aplicarse preferentemente estas últimas; por tanto, el decreto ley no es aplicable a los casos de tortura (apremios ilegítimos), desapariciones forzadas (secuestro), ejecuciones sumarias u otros delitos de lesa humanidad o crímenes contra la humanidad. Todo ello en el entendido que el legislador de la época dictó una legislación conforme a sus obligaciones internacionales, de buena fe y con la voluntad efectiva de cumplir los compromisos internacionales del Estado. Ello permite salvar la norma cuestionada y hacerla aplicable sólo a los casos que no correspondan a crímenes de lesa humanidad o delitos contra la humanidad y que no vulneren gravemente derechos humanos. Na Argentina, as “Ley de Autoamnistía n.º 22.924/1983”, “Ley de Punto Final n.º 23.492/1986” e “Ley da Obediencia Debida n.º 23.521/1987”, foram devidamente revogadas pela “Ley 25.779/2003”. No Peru, as Leis n.º 26.479 e 26.492, ambas de 1995, proporcionaram à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) o julgamento do famoso caso conhecido como “Barrio Altos”. Nessa sentença de 14 de março de 2001, sustentou a Corte que as auto-anistias, excludentes de responsabilidade por violações graves dos direitos humanos (como a tortura, as execuções sumárias e extralegais, o desaparecimento forçado de pessoas), são inadmissíveis e, ao 57 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem impedir o acesso das vítimas e seus familiares à verdade e à Justiça, são violadoras dos artigos 1(1), 2, 8 e 25 da Convenção (parágrafos. 41 e 43). Em seu Voto Concordante nessa Sentença, o Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade ponderou que a pretendida legalidade no plano do direito interno dessas auto-anistias, ao levarem à impunidade e à injustiça, encontravam-se em flagrante incompatibilidade com a normativa de proteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, acarretando violações de jure dos direitos da pessoa humana, em uma afronta inadmissível à consciência jurídica da humanidade (parágrafos. 5-6 e 26). Ou seja, as leis de auto-anistia estariam viciadas de nulidade ex tunc, de nulidade ab initio, carecendo, portanto, de todo e qualquer efeito jurídico. Verifica-se, portanto, que últimos anos, Argentina e Chile optaram por revogar suas leis de anistia e darem andamento à punição de alguns dos responsáveis pelos crimes de suas ditaduras. São situações distintas da do Brasil, onde a magnitude da repressão foi bastante inferior, ainda que não se possa subestimar a dor das chagas individuais. Nesses países vizinhos, o trauma dos períodos de exceção foi tão profundo que o clamor por um acerto de contas se manteve constante. Em relação à Argentina, as leis de anistia vieram depois do fim da ditadura, como uma maneira de evitar o risco de novos levantes militares. Não houve, como no Brasil, uma transição negociada para a democracia. No entanto, no caso do Brasil, a Lei n.º 6.683, de 28 de agosto de 1979, sujeitou-se a questionamento, jurídico e popular, haja vista os debates sobre a “abertura política”, retomados agora sob a égide do Estado Democrático de Direito, que culminaram com a propositura da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, que questionava justamente a sua constitucionalidade. O artigo 1º da Lei n.º 6.683/1979, declara que “é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crime políticos ou conexos com estes”. O parágrafo primeiro desse mesmo artigo esclarece: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Fábio Konder Comparato, subscritor da petição inicial da ADPF n.º 130, assim deixou consignado: Ressalte-se, em primeiro lugar, que a citada lei foi votada pelo Congresso Nacional, na época em que seus membros eram eleitos sob o placet dos 58 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem comandantes militares. Sua carência de legitimidade democrática é acentuada quando se recorda que, por força da Emenda “Constitucional” n.º 08, de 14 de abril de 1977, que ficou conhecida como “Pacote de Abril”, 1/3 dos Senadores passaram a ser escolhidos por via de eleição indireta (“Senadores biônicos”), tendo participado do processo legislativo do qual redundou a aprovação congressual, em 1979, da lei de referência. Ela foi sancionada por um Chefe de Estado que era General do Exército e fora guinado a essa posição, não pelo povo, mas pelos seus companheiros de farda. Em conseqüência, o mencionado diploma legal, para produzir o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram crimes contra o povo, deveria ser legitimado, após a entrada em vigor da atual Constituição, pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres, ou então diretamente pelo povo soberano, mediante referendo. O que não ocorreu. Assinale-se, em segundo lugar, que num regime autenticamente republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar criminalmente, que eles próprios, quer os funcionários que, ao delinqüirem, executaram suas ordens. Tal seria, obviamente, agir não a serviço do bem comum do povo, mas em seu próprio interesse e benefício. Vale registrar que a Corte Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Brasil no Decreto Legislativo n.º 89, de dezembro de 1998, já decidiu, em pelo menos 5 (cinco) casos, que é nula e de nenhum efeito a auto-anistia criminal decretada por governantes”.2 Tem-se, portanto, diversos fundamentos teóricos que sustentam o problema. Direitos fundamentais e democracia representam fenômenos distintos na esfera política, mesmo se os seus caminhos sempre se cruzaram. Nada obstante, o entendimento do STF no julgamento da referida ADPF foi o seguinte: A Lei 6.683/79 (Lei da Anistia) é compatível com a Constituição Federal de 1988 e a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os 2 Petição inicial da ADPF n.º 130, pp. 23-24. 59 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem crimes de qualquer natureza praticados pelos agentes da repressão no período compreendido entre 2.9.61 e 15.8.79. Com base nesse entendimento, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em que se pretendia fosse declarada a não recepção pela Constituição Federal de 1988 da Lei 6.683/79 ou conferido ao § 1º do seu art. 1º interpretação conforme a Constituição, “de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”. Inicialmente, o Tribunal, por maioria, conheceu da ação, rejeitando todas as preliminares suscitadas. Vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio que assentava a inadequação da ação. ADPF 153/DF, rel. Min. Eros Grau, 28.4.2010. No mérito, afastou-se, primeiro, a alegação de que a Lei 6.683/79 não teria sido recebida pela CF/88 porque a conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar ofenderia diversos preceitos fundamentais. Quanto à apontada afronta ao art. 5º, caput, da CF (isonomia em matéria de segurança) — em razão de ter sido estendida a anistia a classes absolutamente indefinidas de crimes —, afirmou-se, salientando a desigualdade entre a prática de crimes políticos e crimes conexos com eles, que a lei poderia, sem violar a isonomia, que consiste também em tratar desigualmente os desiguais, anistiá-los, ou não, desigualmente. No que se refere à ofensa ao art. 5º, XXXIII, da CF — em virtude de ter sido concedida anistia a pessoas indeterminadas, o que não permitira o conhecimento da identidade dos responsáveis pelos crimes perpetrados contra as vítimas de torturas —, asseverou-se que a anistia teria como característica a objetividade, porque ligada a fatos, devendo ser mesmo concedida a pessoas indeterminadas. Ressaltou-se, no ponto, que a Lei da Anistia não impediria o acesso a informações relativas à atuação dos agentes da repressão no período compreendido entre 2.9.61 e 15.8.79, e que romper com a boa-fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 70 que pugnaram por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita implicaria prejudicar o acesso à verdade histórica. Acrescentou-se estar pendente de julgamento na Corte 60 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem a ADI 4077/DF, que questiona a constitucionalidade das Leis 8.159/91 e 11.111/2005, sensível para resolver a controvérsia político-jurídica sobre o acesso a documentos do regime anterior. No que respeita à citada agressão aos princípios democrático e republicano — ao fundamento de que para produzir o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram crimes contra o povo, o diploma legal deveria ser legitimado, depois da entrada em vigor da CF/88, pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres ou diretamente pelo povo soberano, mediante referendo —, enfatizou-se que o argumento adotado levaria não só ao afastamento do fenômeno da recepção do direito anterior à Constituição, mas ao reconhecimento de que toda a legislação anterior à ela seria, exclusivamente por força dela, formalmente inconstitucional. No que tange à assertiva de desrespeito à dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro que não poderia ser negociada, e que, no suposto acordo político, a anistia aos responsáveis por delitos de opinião servira para encobrir a concessão de impunidade aos criminosos oficiais, tendo sido usada a dignidade das pessoas e do povo como moeda de troca para permitir a transição do regime militar ao Estado de Direito, reputou-se que se estaria a ignorar o momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia. Frisou-se que toda gente que conhece a história do Brasil saberia da existência desse acordo político que resultara no texto da Lei 6.683/79. Concluiu-se que, não obstante a dignidade não tenha preço, a indignidade que o cometimento de qualquer crime expressa não poderia ser retribuída com a proclamação de que o instituto da anistia violaria a dignidade humana. ADPF 153/DF, rel. Min. Eros Grau, 28.4.2010. (ADPF-153). Dessa forma, embora aparentemente encerrada a discussão no âmbito jurídico interno, o Brasil poderá sofrer consequências e repercussões no âmbito do direito internacional, notadamente no sistema regional de proteção dos direitos humanos do qual faz parte. REFERÊNCIAS 1. ALCALÁ, Humberto Nogueira. Decreto Ley de Amnistía 2.191 de 1978 y su Armonización Con El Derecho Internacional de Los Derechos Humanos. Rev. derecho (Valdivia), dic. 2005, vol.18, no.2, ISSN 0718-0950. 61 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 2. BOBBIO, Norbeto “Premissa” Thomas Hobbes, 1991, p. iv. 3. DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 8 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 4. FEHER, Michel, “Terms of Reconciliation” , Zone Books, p 327. 5. HOBBES, Thomas. Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003. 6. KELSEN, Hans. O problema da justiça. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 7. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 8. LAFER, Celso. Hobbes visto por Bobbio. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v.34, 9. n.164, p.243-247, 1991. 10. HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century. Norman: University of Oklahoma Press, 1991. 11. NAQVI, Yasmin. Amnesty for war crimes: Defining the limits of international recognition. 12. International Review of the Red Cross, Vol. 85 nº 851, setembro de 2003. 13. ROHT-ARRIAZA, Naomi, The Need for Moral Reconstruction in the Wake of Past Human Rights Violations: An Interview with José Zalaquett, Zone Books, p 206. 14. PANIZZA, Francisco, Human Rights in the Process of Transition and Consolidation of Democracy in Latin America. Political Studies. Volume 43, Issue Supplement 1, pages 168–188, August 1995 p. 170 15. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Recebido em: 20/10/2014 Aprovado em: 28/10/2014 62 ENFRENTAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA CIENTÍFICA “PROCESSO COMO TEORIA DA LEI DEMOCRÁTICA”, DE AUTORIA DE ROSEMIRO PEREIRA LEAL ANA FLÁVIA SALES1 RESUMO Em linhas gerais, a proposição da pesquisa científica Processo como Teoria da Lei Democrática, de autoria de Rosemiro Pereira Leal, é enunciar um marco teórico para a produção de um direito legítimo e fiscalizável nas democracias contemporâneas. Para realizar tal intento, o autor testifica a ciência dogmática do direito, tendo como método crítico o falibilismo popperiano e a Teoria Neoinstitucionalista do Processo. A partir dos enunciados epistemológicos (Técnica-Ciência-Teoria-Crítica), conjectura-se a criação de um direito pelos princípios autocríticos (contraditório-vida, ampla defesa-liberdade e isonomia-dignidade). O devido processo, na concepção da Teoria Neoinstitucionalista do Processo, enquanto marco teórico escolhido (teoria bem testada), é que caracteriza a produção de um direito democrático; isso porque os institutos jurídicos (contraditório, ampla defesa e isonomia) que deram origem à lei são os mesmos que serão utilizados para interpretá-la, aplicá-la, modificá-la ou extingui-la. Palavras-chave: Devido processo; marco teórico; direito democrático. ABSTRACT In broad lines, the proposition of the scientific research Lawsuit as Theory of Democratic Law, by Rosemiro Pereira Leal, aims at expressing a theoretical framework for the production of a legitimate and enforceable right in 1 Mestra em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada – IEC/PUC Minas. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Direito Processual Civil. Atualmente, leciona na Faculdade Minas Gerais – FAMIG, no Centro Universitário UNA e na Academia da Polícia Militar de Minas Gerais. Advogada militante. [email protected] 63 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem contemporary democracies. To accomplish such intention, the actor testifies the dogmatic science of law, having as critical method the Popperian fallibilism and the Neo-institutionalist Theory of Process. From the epistemological statements (Technique-Science-Theory-Critique), one conjectured the creation of a law through auto critic principles (contradictory-life, wide defense- freedom and equality-dignity). The due process in the Neo-institutionalist Theory of Process conception was chosen as theoretical framework (well-tested theory) and characterizes the production of a democratic right, because the legal institutes (contradictory, wide defense and equality) that gave rise to law are the same that will be used to interpret, apply, change or abolish it. Key words: Due process; theoretical framework; democratic right. 1. Considerações iniciais O presente estudo tem por escopo realizar um apanhado geral da obra Processo como Teoria da Lei Democrática (LEAL, 2010b), de autoria de Rosemiro Pereira Leal. Contudo, é imperioso esclarecer que os apontamentos formalizados neste artigo não têm o condão de resumir o conteúdo do livro, e mesmo que se quisesse fazê-lo, suplicar-se-iam várias leituras, dada a complexidade da pesquisa científica. Portanto, tem como propósito, tão somente, ministrar primeiras noções da obra ao leitor, principalmente para aquele que está iniciando seus estudos jurídicos na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo. O intuito da publicação surgiu após a seminarização da pesquisa para a disciplina de Mestrado em Direito Processual (PUC Minas), “Elementos de Técnica do Processo de Conhecimento”, lecionada pelo Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, que recomendou a publicação de uma resenha da obra apresentada. Desse modo, atendendo ao pedido do Professor, bem como dos meus dedicados colegas de Mestrado, aceitei o desafio em escrever este texto, externando algumas (vale ressaltar, poucas) compreensões da pesquisa científica. Saliente-se que o faço com o consentimento e a aprovação do Professor Rosemiro Pereira Leal, tendo em vista que toda reflexão constante neste artigo advém dos meus insistentes estudos de suas tantas pesquisas científicas (livros e artigos), bem como de seus elucidativos ensinamentos, generosamente ofertados nas aulas para os cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Processual (PUC Minas). Confesso que, sem essa base, seria impossível o empreendimento de tal esforço. 64 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Após essas considerações, importante enunciar o percurso utilizado para elaboração do presente artigo. Inicialmente, far-se-á uma explanação geral da obra analisada (Processo como Teoria da Lei Democrática), a fim de expor o objetivo central da pesquisa (Item 2). Posteriormente, buscar-se-á esclarecer a metodologia empregada por Rosemiro Pereira Leal, que o guiará na criação de um novo marco teórico para a produção do direito (Item 3). Antes de se adentrar no tema central da pesquisa, realizar-se-ão incursões sobre a lógica clássica (geral e modal), explicitando por que o autor entende que ela desserve à compreensão de um direito democrático, o que o conduz a acolher uma nova lógica, a situacional (Item 4). Adentrando o cerne da pesquisa, far-se-á uma abordagem dos três “modelos” de Estado, com o intuito de demonstrar por que o autor descarta a teoria habermasiana, principalmente a concepção proceduralista do Estado Democrático de Direito, o que o leva a criar um novo paradigma: o co-institucionalista (Item 5). Seguindo-se esse raciocínio, far-se-á uma explicitação da “teoria da lei”, proposta pelo autor, para a criação de um direito legítimo e fiscalizável nas democracias contemporâneas (Item 6). Por fim, far-se-á uma revisitação crítica da dogmática indiscernível do direito, lei e norma (Item 7). Realizadas essas relevantes ponderações, convida-se o leitor a ingressar na leitura do presente estudo, aguardando-se, sempre, as críticas, tendo-se em vista serem relevantes para o progresso do conhecimento científico. 2. Proposição da pesquisa e seu marco teórico: embaraços à compreensão dos institutos do direito, lei e norma O cerne da proposição da obra é enunciar um marco teórico para a produção do direito no Estado Democrático de Direito. Na apresentação da pesquisa, o autor enfatiza que a ciência do direito sempre esteve atrelada a dois blocos: jusnaturalismo e positivismo. Não havendo uma terceira via para escapar dessa rotulação, tragédias e incompreensões continuam a entravar a produção de um direito democrático2. Desse modo e para se esquivar dessa enrascada, o autor se propõe a enfrentar em sua pesquisa o seguinte problema: “o que é a lei jurídica na atual concepção linguístico-auto-crítico-construtiva que informa 2 “A confusão entre Direito e Lei atravessa séculos sem inquietar os juristas, tornando-se até mesmo um tema perigoso, porque o ímpeto de esclarecimento poderia acarretar a radicalização de uma dicotomia a segregar os estudiosos em duas grandes facções: jusnaturalistas e positivistas (normativistas), nada mais restando aos que quisessem escapar dessa rotulação” (LEAL, 2010b, p. 15). 65 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem a existência de um direito democraticamente aceitável e fiscalizável?” (LEAL, 2010b p, 69-70). Para enunciação de uma nova teoria, que atenda aos enunciados de uma epistemologia jurídica contemporânea, que contemple a produção de um direito legítimo, democrático e fiscalizável, Rosemiro Pereira Leal testifica as teorias da ciência dogmática do direito. Para tanto, escolhe um marco teórico para direcionar e embasar sua pesquisa: o falibilismo popperiano e a Teoria Neoinstitucionalista do Processo (teoria de sua própria autoria). Dos estudos realizados nas principais obras do autor3, além da presente, infere-se que o marco teórico perfilhado é autocrítico, na medida em que testifica as teorias da ciência dogmática e, ao mesmo tempo, abre oportunidade para testificar-se a si próprio. Por isso, não é à toa que o autor compreende que método autocrítico da teoria da lei (conjecturado pelo autor) produz o direito pelos mesmos princípios em que ele (direito) deve ser interpretado, aplicado, modificado ou extinto (isto é, pela principiologia de contraditório, ampla defesa e isonomia). Contudo, antes de se atingir o eixo central da obra Processo como Teoria da Lei Democrática, imperioso compreender o percurso investigativo da pesquisa científica. 3. Metodologia: método crítico No introito, é necessário entender o que vem a ser “método crítico” para a Teoria Neoinstitucionalista do Processo. Sem olvidar seu marco teórico (Popper), apreende-se que crítica é a “suspensão da crença na razão”. (LEAL, 2010b, p. 170). É por isso que Rosemiro Pereira Leal ataca a ciência jurídica moderna (dogmática) que trabalha a crença na “busca de verdades absolutas”4. A metodologia popperiana consiste em “superar teorias menos satisfatórias”, propondo uma mais resistente (bem testada) para a produção de um conhecimento, que nunca será peremptório (imutável). (LEAL, 2010b, p. 172). Na contramão de direção, de acordo com o autor, a ciência dogmática jurídica sempre se vinculou à “busca compulsiva de infalibilidade” (LEAL, 2010b, 3 LEAL, 2002; LEAL, 2009b; LEAL, 2005c. 4 “O que Popper deixa explícito é que não existe o ‘método científico’ em termos de critério seguro e absoluto de descoberta de verdades, mas métodos que, ao significarem teorias explanativas, assumem o caráter de conjunto de enunciados lógico-informativos (asserções), suscetíveis à refutabilidade, para o aumento de clareza e precisão do conhecimento em face de situações problemáticas”. (LEAL, 2010b, p. 176). 66 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem p. 177-80), sem possibilitar qualquer abertura para perquirição desse “núcleo irredutível”. (LEAL, 2010b, p. 58). Essa denúncia apresenta-se pertinente ao citarmos como exemplo a dinâmica dos direitos naturais e do positivismo jurídico. Na primeira categoria, os direitos são concebidos como válidos e legítimos por si mesmos. E, por advirem de um recinto sagrado (LEAL, 2004), devem ser observados (respeitados) por todos os indivíduos, sendo esta equação “poder x dever” repassada pela tradição: isto é, no presente acolhe-se a regra como válida porque fora transferida do avô para o pai e deste para o filho e assim sucessivamente. Num segundo momento, o direito adquire validade e legitimidade simplesmente por estar escrito (positivado). Como se depreende, não há uma fiscalidade sobre os fundamentos que deram origem a esses direitos. É por isso que, como demarcação para o conhecimento e para a produção da lei no Direito Democrático, o autor recepciona a “regra suprema” (LEAL, 2010b, p. 183-6): “regra de proibição (proíbe-se para permitir) de vedação de liberdade de tentativa de refutação”. (LEAL, 2009a). Ou seja, todo conhecimento (teoria) é suscetível de problematização e, por conseguinte, de refutação. Nessa vertente epistemológica, o devido processo assume as características da regra suprema (LEAL, 2010b, p. 195) por isso compreende-se que o direito é produzido pelos princípios autocríticos (contraditório, ampla defesa e isonomia), sendo sempre entregue normativamente à revisitação pelos mesmos princípios que lhe deram causa. É, nesse aspecto, portanto, conjecturado que o processo é teoria lingüístico-jurídica e auto-ilustrativa. Portanto, o método (metodologia) escolhido é o crítico: critério proposicional para decidir sobre a resistência teórica entre enunciados (LEAL, 2009a), postos por uma epistemologia quadripartite (LEAL, 2009b, p. 41-75), aqui considerada “como grandes narrativas (técnica-ciência-teoria-crítica) em constantes cargas e retrocargas de sentidos a partir do mundo objetivo na visão de Popper”. (LEAL, 2010b, p. 37). 4. Lógica Antes, ainda, de realizar incursões sobre o tema central da pesquisa, é necessário compreender “o que é lógica”. Após realizar inferências críticas sobre as lógicas adotadas pela ciência dogmática do direito, o autor vai compreendê-la, numa perspectiva contemporânea como epistemologia. (LEAL, 2010b, p. 162). 5 Para o aprofundamento desses estudos, conferir Capítulo VI da obra analisada: p. 169-89. 67 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Mas, antes de apontar para essa noção, faz abordagem da lógica clássica. De acordo com Rosemiro Pereira Leal6, a ciência dogmática do direito fora construída pela fusão entre lógica e método, o que é uma agressão conceitual, pois proporciona a produção de um direito de dominação: “direito do déspota”. Nesse sentido, esclarece que se não discernirmos lógica de método, não há o ingresso na pós-modernidade, permanecendo, a ciência jurídica, num “saber moderno e estratificado”, abonando-se mitos, crenças e tecnologias de dominação (ideologia). (LEAL, 2009a)7. A Teoria Neoinstitucionalista do Processo, pelo método crítico, realiza tal distinção metodológica e proporciona a falsificação das lógicas adotadas pela ciência dogmática do direito e, por demonstrar que desservem para a compreensão de um direito democrático, uma vez que insuscetíveis de crítica, refuta-as. Nesse tom, avalizada pelas inferências críticas e conjecturando a produção de um direito compatível com a Constituição brasileira de 1988, teoriza o estudo da lógica numa perspectiva contemporânea que, nessa vertente hermenêutica, é concebida como epistemologia8. Contudo, antes de adentrar numa perspectiva pós-moderna de lógica, a obra faz incursões nas concepções da lógica clássica, a fim de explicitar porque é descartada pela Teoria Neoinstitucionalista do Processo, já assinalando que a ciência dogmática do direito tem seus fundamentos no âmbito da lógica clássica9, que se subdivide em lógica geral (também denominada formal) e lógica modal. 6 Aula expositiva, lecionada por Rosemiro Pereira Leal, em 14 de agosto de 2009, para disciplina de Teoria Processual das Decisões Jurídicas, do curso de Mestrado em Direito Processual da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 7 Remete o leitor às p. 161-2, da obra em análise, momento em que Rosemiro Pereira Leal realiza incursões no positivismo jurídico de Bobbio, que, para o autor, estuda o método no âmbito da lógica. Esclarece que, para o positivista, o ordenamento jurídico não apresenta lacunas, pois é suprido pela interpretação sistemática (o juiz colmata as lacunas da lei). Por isso, essa teoria atua no âmbito da lógica jurídica (isto é, do julgador). Como se depreende, essa lógica não permite ao destinatário normativo (povo: todo aquele “legitimado ao processo” (LEAL, 2010b, p. 59)) a fiscalização da lei no âmbito de sua criação, aplicação, interpretação, modificação ou extinção, permanecendo tais critérios nas mãos da autoridade do julgador, afastando, portanto, a “legitimidade jurídica (direito fundamental ao exercício irrestrito à refutabiliade argumentativa) que identifica uma sociedade aberta em que as leis podem ser colocadas em debate, modificadas ou extintas, no lugar dos homens que as fizeram”. (LEAL, 2010b, p. 214). 8 Vide: LEAL, 2010b, p. 162. 9 “A lógica clássica é, em seu percurso histórico, também herdeira da metafísica epistêmica que veda a pesquisa dos fundamentos (elementos) da causalidade dessa reta razão como inerência ao pensamento humano dos predestinados a julgar, legislar, administrar, aconselhar, mediar, arbitrar”. (LEAL, 2010b, p. 154. 68 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 4.1. Lógica geral (formal) A lógica geral (LEAL, 2010b, p. 152-7) firma-se em argumentos autoritários; suas “verdades” são construídas por repetições. Essa lógica é acolhida pela ciência dogmática do direito e rege a praxis dos Tribunais. E isso é perceptível nas expressões “jurisprudência unânime”, “entendimento uníssono”, “jurisprudência majoritária”, “entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça”. Sob os enunciados críticos e epistemológicos da Teoria Neoinstitucionalista do Processo, elucida-se que essas repetições são veneradas como balizadoras de “verdades absolutas” (nomologia), uma vez que baseadas nessas doxas, permite-se que os tribunais impeçam o direito-de-ação, através dos entraves jurisprudenciais impostos por entendimentos solipsistas e verticalizados10. Infere-se, portanto, que os conteúdos dogmáticos da lógica geral não comprometem com as conquistas históricas adquiridas pelo Estado de Direito Democrático (locus de criação, modificação, extinção de direitos no recinto discursivo problemático, em que há possibilidade de instalação de contraditório, ampla defesa e isonomia). (LEAL, 2009a). Com base nos ensinamentos de Rosemiro Pereira Leal (LEAL, 2009a)11, apreende-se que a lógica geral assenta seus fundamentos nos princípios aristotélicos, verbi gratia: a) Identidade (expressa-se na relação homóloga pensamento-objeto: “A” é “A”. Pode ser vislumbrada, também, como ideia de igualdade absoluta: “A” é igual a “A”); b) Contradição (em Aristóteles, “dois juízos que se contrapõem não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo”, ou seja, a conduta jurídica ou é permitida ou proibida: “justo ou injusto”. Esse saber é 10 É muito comum encontrar doutrinas de direito constitucional que acolhem a prerrogativa privativa do judiciário no controle de constitucionalidade das leis; seja pela via difusa, que permite “a todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição”; seja pelo controle concentrado, em que se atribui ao Supremo Tribunal Federal a “exclusividade para o exercício do controle judicial de constitucionalidade”. (MORAES, 2004, p. 608 e 626). Contudo, após a Constituição brasileira de 1988, a decisão não é soberana pelo motivo de ser imposta por autoridades, mas por ser uma construção compartilhada com o destinatário normativo do procedimento instaurado pelo direito-de-ação, que é garantia constitucionalizada e incondicionada de toda comunidade jurídica (povo), que tem o direito de realizar escolhas e decidir o seu próprio destino. Conferir: (LEAL, 2002, p. 13-6). Seguindo esse raciocínio, in verbis: “O que se propõe é que a questão do controle jurisdicional de constitucionalidade e de regularidade do processo de produção da lei, passe por um redimensionamento no sentido de ser praticado, à efetividade democrática, a partir do devido processo legal no espaço de produção das leis”. (DEL NEGRI, 2003, p. 100). 11 Vide, também, LEAL, 2010b, p. 153. 69 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem perquirido por Protágoras, que afirma justamente o contrário: “tudo o que é pode ser dito por dois enunciados contrapostos”, isto é, “mais justo, menos justo, mais ou menos (in)justo”); c) Terceiro excluído (consolida o princípio da não contradição: “ser ou não ser”. A terceira hipótese não existe, é excluída12); d) Princípio da razão suficiente (“toda proposição só é verdadeira por suficientes fundamentos)”; preconiza um saber nomológico (isto é, um saber baseado em verdades absolutas já contidas nas leis da razão natural). Esclarece o autor que toda a construção do direito embasou-se nesse princípio, que fundamentou a “raiz quádrupla da razão suficiente de Arthur Schopenhauer”. Para essa teoria, o direito apresenta quatro causas: 1ª) Material (isto é, o direito material, que assegura vida, liberdade, igualdade, propriedade aos cidadãos patrimonializados13); 2ª) Formal (é o direito processual (adjetivo ou procedimental), utilizado como instrumento de manejo para a concretização do direito material); 3ª) Eficiente (refere-se à eficiência do judiciário em assegurar (proteger) os direitos de forma célere, rápida e concreta14); 4ª) Final (o direito é extraído de uma “razão suficiente”, isto é, traz consigo seus próprios e inerentes fundamentos teleológicos). Como se depreende, esses princípios contemplam verdades absolutas, que não podem ser investigadas (são imunes à crítica). É por isso que Kelsen, ao criar sua “Norma Fundamental”15, encaminhou tal concepção pela teoria pura, isto é, despojada de conteúdos axiológicos e culturais: a norma é válida por si e em si mesma. Não se indaga de seus fundamentos de origem, existência ou validade; a norma deve ser cumprida, tão somente. De acordo com o autor, Kelsen tinha horror às pesquisas das causalidades, por isso toda sua teoria é criada sem tal perquirição (LEAL, 2010a): “tudo tem uma razão de ser”, ou seja, o ordenamento jurídico nunca é obscuro, antinômico ou lacunoso, 12 A lógica apofântica, que é um desdobramento da lógica geral, se enuncia pelos silogismos do verdadeiro e do falso: “ser ou não ser”, o terceiro é excluído (LEAL, 2009a). 13 Sobre esses estudos, conferir: LEAL, 2005b. 14 Para a escola instrumentalista (ciência dogmática do direito), o processo deve entregar ao jurisdicionado, tempestivamente, “tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (MARINONI, 2008, p. 28). Chiovenda já assinalava que o Estado, na “atuação da lei no caso concreto”, deveria fazê-lo de forma eficiente, isto é, o manejo do processo pela atividade jurisdicional “urge impedir que aquele, que se viu na necessidade de servir-se do processo para obter razão, tenha prejuízo do tempo e da despesa exigidos: a necessidade de servir-se do processo para obter razão não deve reverter em dano a quem tem razão” (CHIOVENDA, 2000. p. 199). 15 “[...] ponto absurdo de decolagem de validação de um ordenamento jurídico a partir de uma busca de justificação exteriorizante (esfera público-histórico-cultural) para uma teoria da constituição.” (LEAL, 2010b, p. 45). 70 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pois essa “razão de ser” sempre será encontrada pelo legislador (locador da lei [LEAL, 2010b, p. 273]) ou pelo julgador (sublocador do sentido da lei [LEAL, 2010b, p. 273]). Contudo, conforme enunciados da Teoria Neoinstitucionalista do Processo (LEAL, 2010b, p. 191), é imperioso testificar esses “princípios (saberes) estratificantes”, isto é, escapar das afirmações peremptórias de verdades ou negações (não investigáveis), que tanto têm banalizado o estudo do direito na contemporaneidade (LEAL, 2010b, p. 191). É por isso, como antítese aos princípios aristotélicos, que se tornou sedutor o Trilema do Barão de Münchhausen (LEAL, 2010b, p. 191). Nessa perspectiva, a verdade é impossível de ser obtida, pois pela Petitio-principii não é possível obter um primeiro fundamento da fundamentação, isto é, uma premissa irretorquível (tudo tem um “por quê?”). Desse modo, ingressa-se numa “Circularidade”, na medida em que toda a conclusiva há de ser, também, fundamentada, ocasionando um “Regresso ad infinitum” que, para um dogmático (aristotélico), o faz a desistir da fundamentação. De acordo com o autor, isso não acontece com um popperiano, pois “tudo começa e termina com problemas”: não procura uma fundamentação dogmática, primeira ou última, com o estacionamento do conhecimento (LEAL, 2009a), por isso o marco teórico de Popper adota a “visão protagórica”, que nega as verdades absolutas de Aristóteles. (LEAL, 2010b, p. 37). Forte nesses argumentos é bem fácil assimilar por que a Teoria Neoinstitucionalista do Processo enuncia que um direito qualquer, que não permita o ingresso processual fiscalizatório nos planos instituinte, constituinte e constituído da norma16, desserve à compreensão do direito nas democracias contemporâneas (LEAL, 2009a). 4.2. Lógica modal As inferências críticas formalizadas pela Teoria Neoinstitucionalista do Processo esclarecem que a lógica modal LEAL, 2009a17) informa a ciência dogmática do direito como tecnologia (ideologia), daí ser concebida, pela tradição, como deôntica, na medida em que se enuncia pelos juízos silogísticos 16 Sobre o estudo do direito nesses 03 (três) planos, remete-se o leitor ao “Item 6” do presente artigo. 17 Remete-se o leitor às p. 154-5 da obra em análise. 71 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem do válido e inválido, trabalhando o dever-ser18. Ao testificar aludidas lógicas, o Rosemiro Pereira Leal discorre e as problematiza da seguinte forma: ao preconizarem “pretensões de validade universais”, homologam formas de vida já assentadas na pragmática jurídica. Isto é, a “lógica jurídica” atua no âmbito da mens legislatoris (sentido da lei no momento de sua criação pela livre vontade do legislador) e da mens legis (sentido da lei, solitariamente achado pelo decisor, no momento de sua aplicação). De acordo com o autor, a ciência dogmática do direito sustenta uma “lei pronta e acabada”, isto é, não se investigam os critérios enunciativos de sua elaboração; aqui há uma prevalência de um esquema de “necessidade e conveniência”, que é sempre vislumbrado pelo julgador. Com apoio nessas abordagens críticas, infere-se que a falseabilidade da ciência jurídica moderna demonstra que o “saber estético” está superado pelo modelo de sociedade aberta, que atua sob os enunciados da epistemologia quadripartite, onde há perquirição continuada dos fundamentos de criação, modificação, interpretação (aplicação) e extinção do direito. 4.3. Lógica situacional Após a testificação da ciência jurídica dogmática, vislumbra-se que ao submeter a lógica clássica ao exame crítico da epistemologia quadripartite, é possível, num primeiro momento, demonstrar a fusão indiscernível entre lógica e método. Nesse raciocínio, conjectura-se a necessidade de distinguir um instituto do outro, com a finalidade de se criar um direito despojado de conteúdos ideológicos (“formas pura de dominação”) e desvinculado de fundamentos míticos de um Estado totalizador. Posteriormente, ao testificar a lógica tradicional, verificou-se, outrossim, que seus postulados abonam a crença na razão como verdade irretorquível. Nesse sentido, por entender (após a problematização de seus conteúdos) que os argumentos da tradição desservem para a compreensão de uma ciência 18 “A lógica jurídica, apropriando-se, assim, do discurso proposicional para, pelo dever-ser, prover e manejar à sua livre escolha os conteúdos (sentidos) da ‘normatividade’ clássica (acrescendo-se aqui a vertente clássica da lógica modal pela imposição do necessário, o contingente e o possível), ampliou, numa expansão considerável, a taxionomia das normas em permissivas, facultativas, prescritivas e até descritivas (princípios gerais de direito não legislativamente tipificados e modalizados em denotações subjetivas do decisor por proposições modais do apodítico, assertórico e do problemático) pelas quais livremente se decide em juízos do verdadeiro ou do falso, do válido ou não válido, do possível ou não possível.” (LEAL, 2010b, p.154). 72 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem jurídica aos moldes da Constituição brasileira de 1988, Rosemiro Pereira Leal conjectura, a partir dos ensinos de Popper19, a proposição de uma nova epistemologia do direito, apta a construção de uma sociedade aberta. Assim, para escapar da ciência dogmática do direito, a Teoria Neoinstitucionalista do Processo opta pela conjecturação da “lógica situacional”20. Sob seus postulados enunciativos, a lógica situacional é compreendida como epistemologia que, formalizada pelas quatro narrativas (“Técnica-Ciência-Teoria-Crítica”), é método de testificação de teorias. A problematização do conhecimento jurídico objetivo21 se realiza para testar as teorias concorrentes e verificar qual delas apresenta compatibilidade com o paradigma de Estado de Direito Democrático que, na concepção teórica ventilada, é o co-institucionalista22. Nesse tom, enuncia-se a instituição de um direito que se desvincula do sincretismo (forma de dominação) para recepcionar uma lei como resultante da escolha teórica, realizada pela comunidade jurídica. A opção por uma teoria se faz no confronto de teorias rivais, no plano instituinte da normatividade. O Estado brasileiro, através do constituinte originário, realizou sua preferência e elegeu seu marco teórico: o devido processo, “cujos conteúdos normativos (...) integram e identificam a lei como obra democrática”. (LEAL, 2010b, p. 84). No viés epistemológico formalizado, não há falar em direito homologador 19 Conforme Popper, “a lógica pode ser considerada como sistema de investigação científica”. (POPPER, 1999, p. 122). 20 “Essa ‘lógica situacional’ de um direito a instituir ou instituído é que permitiria afastar a polissemia de se aceitar o sincretismo normativo de um sistema jurídico como ideologia inevitável de técnicas de dominação a entravarem fatalmente a implementação de direitos fundamentais nos Estados de Direito Democrático”. (LEAL, 2010b, p. 162). 21 De acordo com Popper, somente o “conhecimento objetivo é criticável”, sendo que por “objetivo” deve ser compreendido como o pensamento formalizado (escrito). Ou seja, é o “mundo 3”, o mundo das proposições teóricas (“conteúdos lógicos de livros, bibliotecas, memórias de computador”), que são submetidas à testes para que haja a eliminação ou refutação de erros. (POPPER, 1999, p. 34-5 e 78). 22 Sobre o estudo do paradigma co-institucionalista, remete-se o leitor ao “Item 5.1.3.2” da presente pesquisa. 73 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem de uma nua realidade23, mas construtor de existências jurídicas, nas quais todos estão incluídos, inclusive os despatrimonializados, os fora-da-lei. O devido processo, na concepção da Teoria Neoinstitucionalista, preconiza o “devir a ser” do direito pela biunivocidade contraditório-vida, ampla defesa-liberdade, isonomia-dignidade24 e não pelo “due process” da “law of the land” dos Estados Liberal e Social de Direito25. O processo é, portanto, teoria linguística (discurso autocrítico), que se explicita por submeter o conhecimento objetivo (teorias) a cargas e retrocargas (“Técnica-Ciência-Teoria-Crítica”) de uma epistemologia quadripartite, que não é técnico-científica (ciência jurídica dogmática), exclusivamente. A partir desses contornos epistemológicos é possível investigar se a lei produzida possui o atributo da legitimidade democrática, aos moldes da Constituição 23 Eros Roberto Grau, desenvolvendo uma ciência do direito com apoio no “mito do contexto”, sustenta a existência de direitos postos e pressupostos. De acordo com o autor, o direito pressuposto é imanente e cultural. É forma jurídica existente no interior da sociedade civil que, no processo legislativo, “condiciona a elaboração do direito posto”. Como se depreende, trabalha-se com uma sociedade pressuposta à existência do direito, que se “pós-ativa” pela articulação ideológico-instrumental da “sociedade civil”, em detrimento dos excluídos da “Sociedade-Jurídico-Político-Econômica”. (GRAU, 2003, p. 137-8). Vide, também: (LEAL, 2009b, p. 125). 24 “O Estado Democrático, ao se desligar da paidéia grega e do decurso jusnaturalista, neopositivista, histórico-historicista, e se tipificando pelo paradigma do PROCESSO, despoja-se da mítica reificante do Estado hegeliano (dotado de uma ética imanente) para assumir o status (lugar topológico) de estruturas legais da constitucionalidade processualmente construídas como projeto de vida advinda do direito fundamental do contraditório (inclusão de todos numa fala teórico-construtiva de integração social), de liberdade relacionada ao exercício da ampla defesa a permitir a plenitude dis-cursiva (proposicional) de auto-ilustração sobre os fundamentos da fala defensiva de direitos e da dignidade a significar a isonomia de igualdade de tempo de fala e simétrica paridade na fundamentalidade de direitos iguais de vida e liberdade a ensejar transações jurídicas autocompositivas não suscetíveis à transigência em direitos por premências vitais”. (LEAL, 2010b, p. 41-2). 25 Conforme ensino de Rosemiro Pereira Leal, a origem da expressão “due process” em nada se compara ao instituto do devido processo das democracias contemporâneas, pois sua conceituação histórica está fundamentada em critérios de julgamento coletados na cultura. O “due process” somente servia a aqueles que estavam em simétrica paridade “sócio-econômico-política”, não sendo conferida a toda comunidade jurídica, como contempla a Constituição brasileira, que iguala todo o povo pelos conteúdos isotópicos, isocríticos e isomórficos da isonomia processual. A extensão a qualquer do povo, no “due process”, somente assegurava que os excluídos da paridade (pessoas desprovidas de fortunas, títulos, nobrezas – os “despatrimonializados”) seriam julgadas pelos juízes, cidadãos patrimonializados, sujeitos de direito, que estavam em nível de igualdade, liberdade e de bens hierarquicamente superior aos desafortunados. “Na origem histórica dessa expressão (due process of law), a concretização do direito pelo ‘devido processo’ (modo de julgamento colegiado) haver-se-ia de fazer por pessoas (juízes) que estivessem em nível de igualdade em liberdades, costumes e bens com o ameaçado (acusado) ou lesado em direitos. O pressuposto do exercício e garantia do due process of law era o acusado ou lesado ser homem livre como seus pares que viessem a proferir o julgamento”. (LEAL, 2009b, p. 51). 74 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem brasileira de 1988. Ou seja, se os institutos jurídicos do contraditório, ampla defesa e isonomia são linguisticamente articulados nos planos instituinte, constituinte e instituído da normatividade; cumprida respectiva exigência epistemológico-constitucional é possível compreender, conforme pesquisas científicas de Rosemiro Pereira Leal, o “Processo como Teoria da Lei Democrática”. 5. Lei: da “Ideia” à Teoria Realizadas tais considerações, é importante, neste momento, compreender o tema central da pesquisa: Processo como Teoria da Lei Democrática. Inicialmente, o Rosemiro Pereira Leal faz uma abordagem esclarecedora da lei nos “três ‘modelos’ de Estado”. Problematiza que esses “modelos”, comumente abordados pelos constitucionalistas e, principalmente, por Habermas, se enunciam por uma sociedade pressuposta (LEAL, 2010b, p. 27). Isto é, antes da existência do Estado e, por conseguinte, da lei (que nessa vertente decorre do Estado), há uma sociedade pré-existente (comunhão de pessoas) que se movimenta à instalação de algo que lhe dará “corpo” e “proteção”, ou seja, o Estado mítico. 5.1. “Modelos” de Estado e o mito da “sociedade pressuposta” 5.1.1. Estado Liberal de Direito Como primeiro paradigma constitucional, apresenta-se o Estado Liberal de Direito, que surge “a partir de um pano de fundo historicista de comunhão prévia de sentido” (LEAL, 2010b, p. 32), tendo como antecedente histórico uma sociedade civil em que se privilegiam as minorias patrimonializadas, bem como um sistema estatal reprodutor do modelo de livre mercado, em que se homologa essa “realidade pressuposta” por um Estado que cria a Lei (Constituição Liberal) para normatizar a práxis social26. 26 “O Estado, como lugar do MERCADO, atualmente já torna legítima a malha negocial que o constitui, pouco importando os níveis de aceitação ou repulsa às novas formas de vida que as mercadorias e serviços possam impor aos seus consumidores, uma vez que são estes que, despojados da condição de decisores-originários, serão os geradores dos créditos tributários estrategicamente apropriados pelos governantes. Criam-se direitos protetivos desses consumidores para lhes preservar a condição de alienados ao comando de forças anônimas advindas da mítica estratégica do MERCADO-ESTADO”. (LEAL, 2010b, p. 26). 75 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A Lei, portanto, tem por objetivo assegurar (de forma impositiva: “dever-ser”27) ideais (axiológicos e culturais) já retoricamente assentados, a saber: igualdade, liberdade e propriedade. Esses direitos são garantidos somente à elite burguesa, pois é a única capaz de movimentar o sistema “Mercado-Estado”, por possuir patrimônio. Como se depreende, os direitos somente são assegurados para aqueles que estão em simétrica paridade sócio-histórico-cultural, sendo excluídos dessa procedimentalidade os despatrimonializados, a quem deve ser dado (pelos patrimonializados) tratamento desigual na medida de suas desigualdades28. Nessa tonalidade, a legalidade (codificação) estabelece a igualdade, que representa um sistema de livre mercado, onde a liberdade econômica é princípio regente da normatividade. Igualdade, portanto, é o direito assegurado ao cidadão de, livremente, formalizar contratos, de reger sua vida privada, sem qualquer tipo de intervenção externa, independentemente se, de um lado, apresentar um sujeito hipossuficiente e, de outro, uma multinacional. Assim, caso verificasse uma desigualdade sócio-econômica, ao Estado era vedado compensá-la como, por exemplo, a impossibilidade de uma das partes, por insuficiência financeira, de atuar jurisdicionalmente, devidamente representada por um advogado, o que asseguraria a ampla defesa29 e a “simétrica paridade de armas”30. A ausência de defesa técnica, por um dos 27 Lógica modal – vide Item 4.2. 28 “Essa RAZOABILIDADE na fundamentalidade de direitos vai atuar um esdrúxulo conceito de isonomia a ser perenizado pelos adeptos dos paradigmas de Estado Liberal e Estado Social de Direito, como forma de dominação pela pureza noemática da lex-intima (legítima) dos alocutários privilegiados da juris dictio.” (LEAL, 2010b, p. 69). 29 Conforme Dierle José Coelho Nunes, no Estado Liberal não há “estratégias corretivas” das desigualdades, seja “pela atividade judicial ou pela assistência de advogados subsidiados pelo Estado”. (NUNES, 2010, p.75). 30 Importante esclarecer que a Lei 9.099/95, em seu artigo 9º, recepcionando um processo aos moldes liberais, abona a atuação das partes sem a devida representação por um advogado, o que é inconstitucional, de vez que o artigo 133 da Constituição brasileira de 1988 concebe o advogado como instituto indispensável à administração da justiça. Assim, para conferir efetividade ao respectivo dispositivo, o artigo 5º, LXXIV, da Lei Constitucional, prescreve que, diante da incapacidade econômica da parte em arcar com o advogado, o Estado deverá garantir a defesa técnica dos jurisdicionados, o que assegura a plenitude de defesa, o exaurimento do contraditório e a atuação isonômico-processual pelos princípios institutivos do processo democrático, conforme postulados epistemológicos da Teoria Neoinstitucionalista do Processo. Como se depreende, a ciência jurídica dogmática, produtora do direito contemporâneo, ainda vivencia pré-compreensões de paradigmas despóticos, não contemplados pela constitucionalidade brasileira. Está faltando estudo científico no Brasil, a fim de que se modifique a concepção de uma legislação liberal para recepcionar um efetivo processo democrático, que é instituto lógico-jurídico de implementação de direitos fundamentais de toda comunidade jurídica. 76 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem sujeitos procedimentais (desprovido de patrimônio), garante vantagem ao patrimonializado em face do “fora-da-lei”, pois está interditado de atuar na lei pelos conteúdos isotópicos, isomênicos e isocríticos da isonomia processual. Verifica-se, portanto, que o processo preconiza, ao contrário do sustentado pelo liberalismo, desigualdade perante a lei, desigualdade para interpretar a lei e desigualdade para elaborar, alterar ou extinguir a lei, respectivamente31. Nesse tom, a processualidade liberal propicia um “duelo judiciário”32, onde vence quem apresentar o melhor argumento, capaz de convencer o julgador. As partes conduzem o procedimento utilizando, na medida de seu patrimônio, todos os instrumentos necessários para persuadir o juiz. Desta forma, a igualdade, um dos pilares do paradigma de Estado vigente, suplicou revisitação, a fim de conferir “proteção ao mais fraco”, necessitando de um “consenso ético-político” para garantir a igualdade no campo econômico, jurídico, político e social (HABERMAS, 1995, p. 107-21). Essa nova perspectiva teórico-paradigmática, que preconizou o descarte do liberalismo, se estruturou a partir de movimentos sociais que impulsionaram a elaboração de novas técnicas legislativas (...) a enfraquecer o papel das partes e a reforçar o papel dos magistrados, de forma que a tensão jurídica interna, idealizada com a criação de um novo modelo processual (socialização processual), surge na busca de um novo horizonte interpretativo, de modo a suplantar as deficiências do anterior, mas conduzindo a novos equívocos. (NUNES, 2010, p.77). 5.1.2. Estado Social de Direito (Republicano) Não diferente do Estado anterior, o Estado Social de Direito também aparece antecedido por uma fictícia sociedade que, em contraponto ao paradigma liberal, funda a chamada “esfera pública”33 ao debate e implantação de direitos. Nesse tom, sustenta-se, ideologicamente, que os “fora-da-lei” (os fora da fruição dos direitos fundamentais) possam reunir-se em “espaços públicos” 31 Sobre “os conteúdos processuais dialógicos da isonomia”, conferir: LEAL, 2009, p. 61. 32 Barbosa Moreira expõe o sistema da common law que, para o autor, preconiza um procedimento duelar entre as partes. O juiz é expectador e as partes são protagonistas ativas, devendo “tomar todas as providências destinadas a influir no convencimento do julgador”, que somente pode atuar se impulsionado pelos jurisdicionados. (BARBOSA MOREIRA, 2003, p. 41-51). 33 De acordo com Rosemiro Pereira Leal, a esfera pública é o “lugar criativo de contextos linguísticos singulares ou corretivos das formas de vida sociais ou jurídicas”. (LEAL, 2010b, p. 133). 77 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem (ágora (LEAL, 2004)) a fim de se entenderem, com igualdade de fala, sobre os melhores rumos da comunidade jurídica. O republicanismo habermasiano, ao privilegiar essa “esfera pública”, vale-se da crença numa linguagem cultural (contextual) como “comunhão prévia de sentidos” (LEAL, 2010b, p. 27), dentro da qual todos nascem e pela qual todos podem igualmente alcançar consensos na formação de direitos, sustentando que o Estado (produtor da Lei) é o garantidor de uma igualdade material aos sujeitos de direitos. Ou seja, nesse viés, é necessária a implantação de um Estado que assegure aos indivíduos, com apoio na autoridade, os ideários de vida, liberdade e propriedade de forma igualitária. O Estado Social de Direito surge, então, para homologar essa nova “realidade” ideal, dita de todos, e institui a chamada Constituição Social. Entrementes, infere-se que a ciência do direito, implantadora da Lei Constitucional, na perspectiva do Estado Social de Direito, não constrói uma existência jurídica processual inclusiva de “todos”. Ora, os despatrimonializados continuam excluídos da simétrica paridade procedimental, de vez que o direito apenas ratifica a praxis político-social34. Assim, os “fora-da-lei”, que no Estado Liberal estavam excluídos, continuam, no Estado Social, a sê-los. O que modifica, nesse novo paradigma, é que direitos sociais, antes interditados pelos interesses da burguesia dominante, agora são consensualmente estabelecidos num diálogo (espaço mitificado) de “autolegislação cívica” (HABERMAS, 1995, p. 110), sendo que, a implementação dos direitos fundamentais não é garantida pela lei, como conjectura a instituição de um direito processual democrático, mas pela dosagem discricionária do soberano, que assume o Estado em suas três formas míticas de poder35: legislativo, executivo e judiciário. 34 “O direito, de seus primórdios até os anos 1970, carente de reflexões crítico-científicas e coerente com os paradigmas de Estado Liberal e Estado Social, naturalmente se moldou por uma dogmática radical, mimetizando os saberes disciplinares das ciências e artes que mais reforçaram a conservação do corpo social que era tido como prolongamento do corpo do soberano”. (LEAL, 2010b, p. 109-10). 35 Em suas elucidativas lições, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, apresentando as teorias de incontáveis autores estrangeiros, esclarece que a ideia de poder, nas democracias contemporâneas, vincula-se ao devido cumprimento à legalidade, por isso não há falar em “poder discricionário” ou em “autoritarismo”, uma vez que incompatível com a principiologia do Estado de Direito Democrático. Nesse sentido, ensina que o poder é uno, exercido em nome do povo, por meio das “três fundamentais funções jurídicas, a executiva, a legislativa e a jurisdicional”. Como se depreende, o autor reenuncia a concepção dogmática de poder, visto que a desvincula da compreensão rígida e inflexível da mítica “repartição de poderes”; interpretação errônea conferida à teoria de Montesquieu. Sobre esses esclarecimentos, conferir: BRÊTAS, 2010, p. 07-22. 78 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Assim, ainda que os direitos (sociais) estejam previamente estabelecidos na pragmática, é do Estado, detentor de todo poder, a decisão de concedê-los ou interditá-los, podendo, inclusive, ditar como devem ser usufruídos, verbi gratia: em prol da coletividade, no interesse de todos, em atendimento às políticas estatais ou de acordo com a vontade do soberano36. Como se vê, os conteúdos da isonomia não são estabilizados no espaço de tempo procedimental (devido processo), mas nas aspirações ideológicas de um paradigma despótico. Nesse sentido, abre-se uma perspectiva teórica em que o estado aparece como tutor dos excluídos da paridade procedimental para garantir-lhes direitos fundamentais. Para tanto, imperioso intervir nas esferas privadas e estar presente em todos os setores da “vida humana” (excluindo da comunidade jurídica a possibilidade de “fala teórico-construtiva de integração social” (LEAL, 2010b, p. 41-2), transformando-se no centro da vida política, jurídica, social e econômica (BARACHO, 1984, p. 362) de toda a sociedade. Vislumbra-se, portanto, que o paradigma de Estado Social de Direito funda um Estado forte e impositivo que, atento aos pleitos da sociedade civil, se institucionaliza como “um Estado mais dirigista e redistribuidor, ou seja, um estado do bem-estar social” (HABERMAS, 1997, p. 143). Assim, em decorrência de uma nova sociedade que se estabelece com outras pré-compreensões para o direito, necessário reestruturar a legislação, conferindo maiores poderes ao Estado que, agora, há de interferir, incisivamente, na vida privada dos seus cidadãos para conferir-lhes direitos antes denegados pelo capitalismo liberalizante. Nesse tom, no procedimento jurisdicional, o juiz deve assumir o papel de defensor dos pobres, hipossuficientes, revogando-se o princípio dispositivo para instaurar o princípio inquisitivo podendo, assim, atuar ex officio para representação da classe débil, desafortunada. Na pragmática social, o julgador 36 De acordo com Mário Lúcio Quintão Soares, as Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919) foram pioneiras em recepcionar as pré-compreensões socialistas em seus textos para permitir a intervenção estatal na esfera econômica e individual, ampliar a participação dos cidadãos no poder e constitucionalizar direitos materiais. O autor esclarece, ainda, que em 1918, em virtude da Revolução de Bolchevique, fora aprovada a “Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da União Soviética” para reconhecer direitos dos trabalhadores, operários e camponeses. Além disso, a lei previa a extinção da propriedade privada, a obrigatoriedade do trabalho para todos os indivíduos, a impossibilidade de exploração do trabalho alheio e o Estado como detentor exclusivo da exploração dos meios de produção. Em 1936, a Constituição Soviética ratificou respectivos direitos, além de ampliar o rol de direitos fundamentais para, inclusive, declará-los como “derivados da vontade estatal”, por isso deveriam ser exercidos nos limites ditados pelo poder político estatal e em prol dos interesses coletivos. (SOARES, 2008, p. 200-5). 79 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem avoca para si o dever de educar a sociedade acerca de seus direitos, instruindo os cidadãos para melhor defesa de seus interesses (NUNES, 2010, p.80), eis que o Estado Social de Direito sustenta-se na ideologia de proteção dos pobres e desvalidos, das mulheres, dos trabalhadores, dos menores, ou seja, dos sujeitos, até então, excluídos da fruição de direitos fundamentais. Como se apreende, o Estado é o dador de direitos fundamentais, de vez que atua em esfera hierarquicamente superior às demais instituições jurídicas. É por isso que o processo é instrumento da jurisdição que, uma vez instaurada, se desenvolve através de um vínculo de subordinação das partes em face dos juízes, que controlam a relação jurídica processual. Nesse tom, são ampliados os poderes instrutórios dos magistrados, que os exercem, autoritariamente, em todo o procedimento, já que o processo é instituição de direito público, isto é, de propriedade exclusiva do mítico Estado-Juiz. Assim, o julgador pode apreciar livremente as provas, indeferir diligências que considerar inúteis ou protelatórias, determinar produção de provas necessária à instrução do seu processo, pois é ele, juiz, quem deverá ser convencido, conforme disposição expressa na lei37. Verifica-se, portanto, que essa postura revela o abandono das perspectivas teóricas e privatísticas de processo, de características específicas do Estado Liberal de Direito. Nessa vertente paradigmática, o pleito de igualdade não é efetivado pela reserva da lei, devidamente acertado no recinto dialógico-procedimental de fruição de direitos fundamentais pelos princípios autocríticos do contraditório, ampla defesa e isonomia, como propugna os postulados epistemológicos do direito processual democrático, mas pelo reforço dos poderes do magistrado, que deverá conduzir o processo, influindo no reconhecimento de fatos38 37 Artigos 130 e 131 do Código de Processo Civil – legislação elaborada em 1973, no ápice do Estado Social de Direito que, conquanto não tenham sido recepcionados pela Constituição brasileira, são, cotidianamente, aplicados na praxis dos tribunais do país, configurando uma prática (interpretação) em colisão com a Lei Constitucional, o que demonstra o despreparo técnico-científico dos juristas, que não se comprometem com o esclarecimento jurídico-epistemológico, compatível com a compreensão de um direito processual democrático, até mesmo porque o NCPC repete concepções de um paradigma despótico, diga-se de passagem, revogado pela Constituição de 1988 – vide artigos 377 e 378. Sobre estudos críticos nesse sentido, conferir: MADEIRA, 2008, p. 107. 38 De acordo com Dierle José Coelho Nunes, o processo, no Estado Social de Direito, “estrutura um modelo técnico de procedimento oral em que se atribui um reforço dos poderes do juiz, que deverá participar mais intensamente da direção do processo e, especificamente, influir mais ativamente no acertamento dos fatos”. (NUNES, 2010, p. 85). 80 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem e, encontrando a “verdade real”39, cominará os direitos aos esperançosos clientes do Estado. Assim, pode justificar seu convencimento em experiências individuais, em convicções políticas, partidárias e religiosas, nas apreensões solipsistas daquilo que, na sua ótica, realmente ocorreu na realidade sensível. À época, não havia dúvida de que o Processo era uma panacéia e, como tal, possuía a finalidade de promover a “paridade de armas” entre as Partes processuais, e, dessa forma, parafraseando Rodrigo Rigamonte Fonseca, todos os problemas (sociais, econômicos, políticos, culturais...) eram remetidos para o interior do Processo com a finalidade de solução. Afinal, o Judiciário era a função central do Estado. Foi aí que nasceu a Teoria da Instrumentalidade do Processo com os seus escopos metajurídicos de pacificação social. Apesar das engenhosas metodologias produtoras de armadilhas ideológicas para entender o direito à igualdade, com poucas variantes de gênero e também de grau, o discurso infelizmente ainda é praticamente o mesmo na contemporaneidade (Cf. Cândido Rangel Dinamarco). (DEL NEGRI, 2009, p. 343). Nesse tom, as reformas legislativas processuais, comprometidas com o paradigma eleito, operacionalizam-se no sentido de “ofertar um processo rápido” à sociedade. Para tanto, institui-se o “discurso do protagonismo judicial” (NUNES, 2010, p.85-6), a fim de assegurar aos cidadãos uma jurisdição rápida, justa e efetiva, através de dispositivos de lei abertos e retóricos, além de cláusula expressa de vedação do non-liquet. Assim, permite-se o ingresso hermenêutico em recinto extrassistêmico, de livre manejo do solitário intérprete-decidor, que conduz o procedimento perante uma ordem 39 “(...) denomina-se verdade material aquela a que chega o julgador, reveladora dos fatos tal como ocorreram historicamente, e não como querem as partes que apreçam realizados”. (SOUZA, 2001p. 256). Contudo, importante esclarecer que, na perspectiva do Estado de Direito Democrático, o processo não é locus de reconhecimento de “verdades ‘supostamente’ reais”, que devem ser encontradas pelo julgador, que não pode eximir-se de sentenciar (artigo 126 do CPC e 119 do NCPC). Ora, no direito processual democrático, os autos são os limites hermenêuticos para a fixação da verdade formal, que se estabelece pelos resultados dos argumentos fático-jurídicos, elaborados em contraditório, e pelas provas produzidas, em ampla defesa, pelas partes. Nesse tom, não há falar em esclarecimento real ou absoluto dos fatos, de vez que o procedimento não é recinto mágico, onde se externa os dons clarividentes do decisor-solipsista. O procedimento é técnica normativa de construção de provimentos, regida pelo devido processo, por isso o instituto da prova é tão importante para a concepção de um direito democrático, pois somente o que é demonstrado, representado nos autos do procedimento pode servir de justificativa legítima para embasar a decisão. Sobre o estudo da prova, no Estado de Direito Democrático, conferir: (LEAL, 2005c, p. 49-56). 81 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem praxista-pragmática, apresentando-se, numa perspectiva contemporânea, totalmente antidemocrática. É o judiciário, portanto, quem “diz o direito”, por isso o papel do advogado no procedimento é secundário e, até mesmo, desnecessário, eis que o julgador é o sujeito ativo do procedimento, o único, diga-se de passagem. É o juiz quem atua na defesa das partes, na aplicação justa da lei, na valoração e valorização das provas40, conforme seu entendimento e convicção, devendo os destinatários do provimento assumir “uma postura passiva e espectadora”41. Porém, esse modelo de processo gerou grandes preocupações nas décadas que o sucedeu, uma vez que o paradigma tirânico mandou a conta e quem pagou foi o cidadão despatrimonializado que, por ser “fora-da-lei”, só poderia usufruir dos conteúdos da legalidade se autorizado e aos moldes ditados pelo soberano. Assim, por ser carente de direitos fundamentais, a comunidade jurídica se viu entregue a “um governo jurisdicional pelas decisões ou votos majoritários populares” (LEAL, 2002, p. 179), o que não lhe assegurou ser co-autora do provimento final, mas espectadora de decisões proferidas em nome do povo que, na maioria das vezes, escondem o interesse da classe dominante, ou seja, o interesse de poucos. Ora, o pleito de fruição de direitos fundamentais, de forma igualitária, por todos não pôde ser implementado pelo Estado Social de Direito, pois a efetivação de políticas públicas fica a cargo do solipsismo jurisdicional, legislativo ou administrativo, que pode se equivocar ou agir na consecução de interesses pessoais. Verificou-se, portanto, que a “sobrecarga ética” (HABERMAS, 1997) é um risco, que muito custou a aqueles que eram obrigados a se submeter à tirania estatal, por isso as concepções teóricas do paradigma socialista necessitou revisitação. Assim, é num contexto histórico de movimentos contrários ao despotismo do Estado – constitucionalismo – que se projeta a construção de um novo paradigma de estado, o de direito democrático. 5.1.3. Estado Democrático de Direito Num ambiente hostil, de entraves à fruição de direitos fundamentais pela 40 “No Estado Social da primeira metade do século XX, a cognição jurisdicional era uma atividade que pertencia exclusivamente ao juiz, que poderia livremente valorar e valorizar as provas, ainda que em prejuízo das partes, bastando apenas que se apoiasse na mítica idéia de interesse público”. (MADEIRA, 2008, p. 95). 41 82 Estudos elaborados com base na obra: NUNES, 2010, p. 107-12. revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem violência normativa, erigem-se concepções teóricas a testificar os paradigmas anteriores para conjecturar a criação de um novo marco teórico para a construção do direito, que agora há de ser assegurado a toda comunidade jurídica pela lei, construída por todo aquele que é legitimado ao processo. Nesse tom, a concepção de Estado de Direito Democrático é vislumbrada, na perspectiva da ciência jurídica dogmática, como “proceduralista”, conforme Habermas e, no viés epistemológico contemporâneo, como co-institucionalista, de conceituação jurídico-científica de Rosemiro Pereira Leal, que formaliza a compreensão paradigmática afinada aos conteúdos principiológico-hermenêuticos do processo, que é, na Teoria Neoinstitucionalista, instituição jurídica e autocrítica, cujos enunciados se encaminham pelos direitos fundamentais do contraditório, ampla defesa e isonomia, expressos no texto normativo da Constituição brasileira de 1988. 5.1.3.1. Proceduralismo habermasiano Em Habermas, o Estado Democrático de Direito, enquanto paradigma, emerge da insuficiência dos dois estados que o antecedeu. E, aproveitando os benefícios de um “horizonte histórico de sentido” de ambos (liberal e republicano), implanta-se uma terceira via, denominada proceduralista. Infere-se, portanto, que esse novo “gênero” é produto da interação dos paradigmas liberal e social, isto é, das sociedades já pressupostamente existentes42. Seguindo uma linha de raciocínio, que romperá com a ideia de que o direito é juridicizante, ou seja, a mimese da realidade43, Rosemiro Pereira Leal critica o paradigma proceduralista habermasiano. Inicialmente, esclarece que ao realizar o “giro linguístico” (da filosofia 42 “O que se deduz, nas leituras de vários autores, é que estes estão empenhados em encontrar de forma límpida, o paradigma do Estado Democrático de Direito como se este, por imanência ou atributo, já trouxesse, em si mesmo, uma característica (‘horizonte histórico de sentido’) a ser decifrada pelos estudiosos e juristas designativa do paradigma estatal da democracia”. (LEAL, 2010b, p. 28). 43 “O fator da ‘convenção social’ como algo fundado e praticado por uma ‘sociedade’ já pactuada por todos é que cria a mitificação (mistificação) que enseja a sempre alegada e historicamente assentida (ideologizada) opinião de que todos teriam ‘clara intuição’ (Nélson Hungria) de ser membro de uma ‘comunhão civil’ como o ‘clima ético circundante’ e que a lei expressa apenas ‘o que já existe ou deve existir na consciência jurídica de cada indivíduo’ (Otto Von Gierke). Aliás, tal fetiche de um fato social pressuposto e benévolo a criar uma sociedade secularizada para todos é expresso na ideologia da inocência das forças sociais e da factualidade (faticidade) que, segundo a teoria da antijuridicidade concreta (Miguel Reale e Miguel Reale Júnior), devem ser ratificadas pelo direito escrito no itinerário enunciativo e tridimensional do fato-valor-norma”. (LEAL, 2010b, p. 147-8). 83 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem da consciência para a filosofia da linguagem), Habermas estaciona sua teoria no positivismo sociológico, na medida em que compreende ser a realidade encaminhadora da existência jurídica (historicismo44). Elucida, outrossim, que teoria habermasiana contempla a chamada “ação comunicativa”, que, por se situar num espaço nu, onde não há demarcação jurídico-procedimental-crítica-científica, não consegue sustentar tal “giro linguístico”, o que o faz cair no denominado “mito do contexto” (LEAL, 2010b, p. 36-9). De acordo com Rosemiro Pereira Leal, quando Habermas acolhe essa “sociedade pressuposta” e assim também o faz Rosa Maria Cardoso da Cunha, o princípio da legalidade, “que deveria ser congênito à própria normatividade legal como conteúdo teórico-construtivo da lei” (LEAL, 2010b, p. 136), é mera indicação dessa “sociedade” (costumes, jurisprudências, princípios éticos-morais). A lei, assim, passa a ser um acessório metabólico dessa sociedade, espelhando a ideologia necessária à sua existência (LEAL, 2010b, p. 135-8). Isso ocorre porque, antes de ser legalizado (positivado: homologatório da realidade), o princípio já existe na extralegalidade (isto é, no pacto de sentidos comungado pela sociedade pressuposta), o que o torna retórico: ora, se decidir é compulsório e é proibido o non liquet, a lacuna da lei, para o dogmatismo jurídico, é preenchida por equidade, costumes, princípios gerais, jurisprudências (LEAL, 2010b, p. 136-7). Ou seja, o ordenamento jurídico é compreendido a partir de uma pauta de valores éticos, culturais e morais (extralegalidade), já assentada nas bases da comunidade a que se submete o decisor solipsista; o que torna o princípio da legalidade retórico e, na perspectiva da Constituição brasileira de 1988 (artigo 5°, II), implantador da “extralegalidade” que, nessa vertente interpretativa e normativa, é inconstitucional (LEAL, 2010b, p. 137). Em virtude desses apontamentos críticos, o autor entende que a teoria testada (habermasiana) desserve à compreensão de um direito nas democracias contemporâneas. Desse modo, a partir dos contornos teóricos da Teoria Neoinstitucionalista do Processo, propõe a construção de um marco teórico (paradigma) para a produção de um direito democrático. 44 Nesse momento é importante esclarecer que o historicismo é o mimetismo, o observacionismo, isto é, significa que pela observação é possível criar teorias. Ou seja, entende que a realidade pode conduzir o homem à paz eterna (ou à criação de uma existência jurídica). Noutro vértice, o historista não descarta a história, contudo, ela não é condutora do destino dos homens – aceita-se a história para criticá-la. Popper é historista (LEAL, 2009a). Vide, também: LEAL, 2010b, p. 169-70. 84 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 5.1.3.2. Paradigma co-institucionalista (Rosemiro Pereira Leal) Como se depreende da análise crítica dos 03 (três) “modelos” de Estado, vislumbra-se que Rosemiro Pereira Leal se propõe a testificar a ciência jurídica dogmática, mormente, a visão habermasiana de “paradigmas do direito”45. Ao verificar a inadequação da “razão comunicativa”, de Habermas, aos conteúdos teóricos (institutos e instituições jurídicas) do Estado Democrático de Direito contemporâneo, principalmente a partir da Constituição brasileira de 1988, conjectura a criação de um novo marco teórico (paradigma) para a construção de um direito que, para o autor, faz-se, inicialmente, a partir do contraponto: “Democracia contemporânea” versus “Paideia grega” (LEAL, 2010b, p. 200). Conforme se infere dos estudos do autor (LEAL, 2004, p. 02-3), a concepção de democracia na atualidade não se vislumbra a partir dos contornos míticos da ágora grega46, que contempla a legitimidade democrática através da presença de pessoas que, associadas uma ao lado da outra, concorrem para a formação de um entendimento por meio da fala e do convencimento (persuasão) de cada um47. Esclarece que esse “espaço público” não possibilita um exercício de “paridade argumentativa no discurso processual” (MADEIRA, 2010, p. 424) (isonomia), como é exigido pela Constituição brasileira de 1988, na medida em que os critérios de discursividade se fazem por uma práxis. Isto é, a democracia paideica não possui demarcação teórico-jurídico-procedimental (e constitucional); seu exercício se realiza no “espaço nu”, onde a comunicação livre (pauta de valores ético, cultural e moral, previamente assentados na comunidade) entre as pessoas proporciona o entendimento: trata-se, portanto, do agir comunicativo habermasiano, incisivamente criticado pelo 45 Sobre a compreensão habermasiana de “paradigma”, sugere a leitura das obras: HABERMAS, 1995; HABERMAS, 1997, p. 123-90. 46 Em nota de esclarecimento, oportuna a lição de Dhenis Cruz Madeira, que define ágora como “um espaço público de deliberação de Assembléia [...] era a praça pública em que se reuniam os cidadãos gregos que estivessem de posse de seus direitos políticos e tivessem idade superior a vinte anos”. (MADEIRA, 2008, p. 52). 47 De acordo com Rosemiro Pereira Leal, essa “versão” de democracia é repetida e reafirmada ao longo dos séculos, sem qualquer esclarecimento crítico-científico. Além disso, apresenta-se totalmente descomprometida com o Texto Constitucional brasileiro (LEAL, 2004). 85 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem autor48, de vez que o senso comum não é portador de estoques teóricos para a construção de um novo direito, como quer fazer crer Habermas. Em face do contraponto estabelecido, Rosemiro Pereira Leal conjectura a formalização de um paradigma adequado à constitucionalidade democrática contemporânea: o co-institucionalista. Nesse tom, acolhe a regra suprema, compreendendo-a como o devido processo49 que, segundo a Teoria Neoinstitucionalista, permite a criação, recriação e extinção de direitos a partir dos institutos jurídicos autocríticos (contraditório, ampla defesa e isonomia), rompendo, assim, com os “núcleos duros” (LEAL, 2010b, p. 203) paradigmáticos dos Estados Liberal, Social e Proceduralístico habermasiano, que impõem uma práxis continuada, vedando a fiscalidade. O paradigma co-institucionalista desvincula-se da praxis social, na qual consensos já estão previamente estabelecidos antes da instalação do devido processo, por isso o direito, nesse paradigma, deixa de ser homologador de realidade para assumir status de construtor de existências jurídicas. Nesse viés, a concepção de “vida humana” é identificada através do exercício do contraditório, que permite ao destinatário normativo a liberdade jurídico-argumentativa de escolher (entre teorias bem testadas) as condições para se viver (humanamente) (LEAL, 2010b, p. 202). A ampla defesa assegura ao legitimado ao processo (povo) liberdade no discurso jurídico-procedimental “sobre os fundamentos da fala defensiva de direitos” (LEAL, 2010b, p. 42). E, por fim, a isonomia se identifica com a dignidade, na medida em que significa paridade de tempo jurídico-argumentativo no espaço-tempo processual e igualdade na “fundamentalidade de direitos iguais de vida e liberdade” (LEAL, 2010b, p. 42). Forte nesses argumentos, entende-se por que o contraditório, a ampla defesa e a isonomia são isomorfos à vida, liberdade e dignidade, respectivamente, para Rosemiro Pereira Leal. 48 “[...] essa pragmática linguística habermasiana não é pragmático-teórica nem linguístico-teórica, mas se utiliza da ‘processualização contextual’ (estar os homens livremente falando no espaço-tempo dos embates (falas-nuas) de suas convicções de senso comum) para decidir sobre quais normas jurídicas devem adotar, sem pré-deliberarem sobre o marco jurídico-discursivo que deva assegurar a problematização argumentativa e incessante dos fundamentos dos direitos a serem constituídos e a caracterizarem uma democracia.” (LEAL, 2010b, p. 209). 49 “O devido processo, assim colocado, é isomorfo à regra suprema do teorométodo crítico de Popper pela proibição de vedação de liberdade para todos indistintamente (comunidade jurídica) ao exercício processual da ampla defesa, como direito fundamental co-institucionalizado (constitucionalizado), de fruir, praticar, estabilizar, fiscalizar ou reconstruir, preventiva ou comissivamente, os direitos fundantes de um sistema jurídico perenemente aberto à construção continuada de uma sociedade democrática (no sentido de Popper).” (LEAL, 2010b, p. 204). 86 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Infere-se, portanto, que o paradigma co-institucionalista não contempla somente os patrimonializados (homologando suas realidades), mas, ao contrário, garante, através da instalação do devido processo, direitos aos que estão excluídos da paridade procedimental (os “fora-da-lei”), assegurando-lhes direitos de vida, liberdade e dignidade. Nesse raciocínio, esse novo paradigma rompe com a ideia de inercialidade paradigmática kuhniana (“núcleo duro”), que desenvolve uma ciência do direito estabilizadora de sentidos, em que não se permite a processual testificação continuada de seus fundamentos: aqui se trabalha um paradigma científico em colisão com a Constituição brasileira de 1988 (LEAL, 2009a). O paradigma co-institucionalista desvincula-se de um sistema estático (“verdades absolutas”) para “co-instituir uma SOCIEDADE ABERTA” (LEAL, 2010b, p. 200), suscetível de refutabilidade sempre, tendo em vista seu marco teórico (devido processo) que, por não crer em absolutismo do saber e no pragmatismo histórico estacionário, atua pela fiscalização continuada do direito, na fruição dos princípios autocríticos do contraditório, ampla defesa e isonomia50. 6. Processo como Teoria da Lei Democrática na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo Fundamentado nos argumentos teóricos, alhures consignados, o Rosemiro Pereira Leal formaliza o problema central da obra em análise, verbi gratia: qual teoria (marco teórico) é escolhida para a produção de um direito democrático? (LEAL, 2010b, p. 69-70) A resposta é o devido processo, que permite a abordagem do direito nos três níveis (LEAL, 2009a): a) Instituinte: é o plano anterior à produção da lei – momento em que se escolhe a melhor teoria (bem testada), afastando-se as menos resistentes para encaminhar o processo legiferativo, contudo, para realizar tal escolha, o intérprete deve ser portador de teorias. Para o autor, a melhor teoria que se apresenta, na atualidade, é o devido processo, na perspectiva de sua Teoria Neoinstitucionalista; b) Constituinte: é o constitucionalizar (co-institucionalizar), criar e articular instituições (pelo contraditório, ampla defesa e isonomia). Balizado pela teoria escolhida, o devido processo, produzir-se-á a lei pelos seus princípios autocríticos; c) Constituído: é o direito publicado, que presta obediência aos planos instituinte e constituinte da norma, por isso os direitos fundamentais 50 Sobre a noção de paradigma co-institucionalista, teoria de autoria de Rosemiro Pereira Leal, sugere-se a leitura das páginas 198-211 da obra em análise. 87 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem são líquidos e certos (LEAL, 2005a, p. 23-32). Como se dessume, os mesmos princípios que embasam a produção da lei devem ser aplicados para interpretá-la, modificá-la e extingui-la. Avalizado nessa teoria, é possível inferir por que o devido processo é compreendido como teoria autocrítica. Com base nesses estudos, infere-se que para a ciência dogmática positivar (“pós-ativar”) é homologar uma realidade; é ratificar situações fáticas, existentes antes do plano instituinte da norma. Nesse viés, a positivação assegura aos pertencentes da sociedade civil (os patrimonializados) a confirmação legal (legitimidade formal) para fruição de direitos, já, supostamente, conferidos aos sujeitos pela razão natural. Entrementes, a crítica formalizada por Rosemiro Pereira Leal, em obra analisada, testifica a legitimidade normativa do direito positivado, pois, na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo e da Constituição brasileira de 1988, o simples passar pelo processo legiferativo não confere legitimidade normativa democrática ao direito, pois em Estados autocráticos também se verifica a existência de uma função legislativa, e, por conseguinte, um “processo” (leia-se “procedimento”) legislativo. Contudo, o direito produzido não é democrático, tendo em vista que o paradigma (teoria) escolhido para produção do direito, no plano instituinte da norma, não é o instituto do processo constitucional democrático. Nesse tom, o autor problematiza que a história não é condutora da produção do direito (da “paz eterna” e do “destino dos homens”). Ao contrário, as condições históricas devem ser problematizáveis, testificáveis por teorias rivais, ágeis à criação de existências jurídicas que incluem todos, inclusive os despatrimonializados. Nesse viés, o paradigma instituinte da democracia constitucional contemporânea suplica um desafio: ou ingressar na pós-modernidade ou permanecer nesse saber estratificado e continuar a vivenciar as catástrofes pela violência normativa (LEAL, 2010b, p. 97-108), que não permite o ingresso crítico nos níveis de construção-reconstrução da lei, de vez que o paradigma implantado é despótico. Com base nos ensinos de Popper e fundamentado na Teoria Neoinstitucionalista de Processo, escolhe-se a primeira opção. Isto é, acolhe-se a epistemologia quadripartite para a produção do conhecimento (“Técnica-Ciência-Teoria-Crítica”) para, em oposição à dogmática (“sociedade tribal” (POPPER, 1987, p. 187)), construir uma sociedade aberta. A partir de então, a refutabilidade não pode ser negada, senão trabalhar-se-á com uma ciência em colisão com paradigma teórico-jurídico adotado: o devido processo. Nesse locus, o único instituto que se impõe é a regra suprema (“princípio de demarcação do conhecimento” (LEAL, 2009a)), que é instância 88 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem de argumentação cognitiva, pela oferta de falseabilidade no procedimento científico de construção do provimento final, segundo uma epistemologia contemporânea, que não acolhe a episteme grega, mas perquire a ideia de certeza contemplada pela modernidade (LEAL, 2009b, p. 42). Assim, os saberes doutrinários e jurisprudenciais são submetidos à refutação, pois, o devido processo abre oportunidade para o apontamento de aporias na estrutura do conhecimento pelo discurso interenunciativo e autocrítico. O direito, portanto, não se legitima pela mimese, que o adéqua à realidade fático-social, por um saber jurisprudencial preponderante que se firma no reforço da “Técnica-Ciência”, que veda as tentativas de refutação. Na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo (LEAL, 2009a), “a refutabilidade é concebida como direito fundamental”, pois é recepcionada pelo devido processo para estabilizar o sentido da lei e legitimar uma decisão como democrática, por ser construída sob o viés da regra suprema. É por isso que a reabertura da “decisão judicial transitada em julgado” somente pode se realizar pela instalação do devido processo e não pela flexibilização autoritária por uma teoria de processo como instrumento da jurisdição. (LEAL, 2005c, p. 03-22). Com base nessas inferências, apreende-se que é somente após os ensinos de Popper e de Rosemiro Pereira Leal que se admite perquirir, pelo destinatário normativo, as motivações pelas quais a lei foi construída, pois é a contrariedade dialógica dos princípios autoilustrativos que se encaminha a compreensão de um direito processual democrático, compatível com os postulados jurídico-principiológicos da Constituição brasileira de 1988. 7. Revisitação crítica da dogmática indiscernível do direito, lei e norma Com apoio no enfrentamento crítico dos estudos apresentados nos tópicos antecedentes, é possível distinguir os institutos do direito, lei e norma. Hodiernamente, para enunciar a concepção de direito, é imperioso demarcar qual teoria embasa a construção da lei. No caso brasileiro, o devido processo foi a escolha do constituinte originário, fundamentado nos conteúdos do Estado de Direito Democrático, que inaugura um espaço procedimental aberto, assecuratório de “autoincludência, legitimado a todos”, com ampla “possibilidade cognitiva (...) de produção, recriação, afirmação ou destruição 89 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem da lei” (LEAL, 2003, p. 337-8). Infere-se, portanto, que lei é resultante do embate teórico, ocorrido no plano instituinte da normatividade; é o instrumento gráfico-cartular (LEAL, 2009b, p. 133) de onde se abstrai a escolha teórica, formalizadora do discurso normativo, criador do direito. Direito, portanto, pode ser compreendido como instituto lógico-jurídico, inferente crítico do discurso normativo (lei), criador de existências jurídicas includentes de toda comunidade jurídica. Explica-se: é “instituto” por ser construído-reconstruído pelos conteúdos principiológicos do contraditório, ampla defesa e isonomia51. “Lógico”, da lógica situacional, é a demarcação teórico-epistemológica para a criação-recriação do direito. “Jurídico”, dada suas características institutivas, principiológicas e procedimental. “Inferente crítico”, tendo em vista ser objeto extraído do discurso normativo, produzido pela lei democrática. “Criador de existências jurídicas”, pois pelos seus fundamentos institui, altera ou extingue situações jurídicas de um pós-mundo que está sendo construído e incessantemente testificado. “Includentes de toda comunidade jurídica”, de vez que esse direito acolhe todo o povo, tanto no âmbito da produção da normatividade, como no plano isonômico-procedimental de fruição de direitos. Norma, por sua vez, é produto intelectivo, resultante da interpretação do texto normativo (direito)52, indicativo do “padrão de licitude adotado pelo Estado na criação e disciplinação de direitos”53. Essa atividade vincula-se, hermeneuticamente, ao plano instituinte, pois é nesse nível que se estabiliza o sentido teórico-normativo enunciativo dos conteúdos processuais para elaboração, interpretação, modificação e extinção da lei. Ou seja, se a comunidade jurídica, no plano instituinte da normatividade, opta pela escolha teórica 51 Conforme esclarecimentos de Rosemiro Pereira Leal, institutos jurídicos “recebe, em nossa teoria, a acepção de conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a denominação jurídica de processo, cuja característica é assegurar, pelos princípios do contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infra-constitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados”. (LEAL, 2009b, p. 86). 52 Conforme Roberto Eros Grau, “o que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo”. (GRAU, 2003, p. 23). 53 Esclarece Rosemiro Pereira Leal que norma, enquanto gênero, distingue-se em duas espécies: norma jurídica e norma legal. A primeira é “entendida pelo padrão lógico de licitude adotado no Ordenamento Jurídico de um Estado-Nação ou Estado-Região (Comunidade de Povos)” e a derradeira, “cujo sentido seria o estrito ao texto específico de um artigo, frase ou trecho oracional de uma lei”. (LEAL, 2009b, p. 124-5). 90 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem “ditadura” ou “autocracia”, por exemplo, o direito solipsistamente imposto ou deposto pelo soberano, nos planos constituinte e constituído é legítimo. O exercício do poder está legitimado, uma vez que se conforma com a preferência teórica eleita pelo povo. Por outro viés, se a comunidade jurídica, como é o caso do Brasil, faz opção teórica pelo devido processo e o modo de produção da lei é procedimento meramente formal (processo legiferativo sem participação popular), o provimento final se revestirá de “uma legitimidade enganosa” (DEL NEGRI, 2003, p. 87), explicitando o caráter retórico da legalidade. (CUNHA, 1979). Oportuno transcrever as lições de Rosemiro Pereira Leal, que esclarece a confusão dogmática dos institutos do direito, lei e norma: Em poucas palavras, resumindo a longa digressão que fizemos, em direito democrático não paideico, na perspectiva da minha teoria neoinstitucionalista, a lei é criadora do texto normativo que é o direito. Com efeito, nessa concepção, a lei há de ter origem, em nível instituinte, numa teoria linguístico-jurídico-normativa pré-definida (entre teorias do processo) a co-institucionalizar (constitucionalizar), em nível constituinte, direitos, deveres, faculdades, vedações, permissões e suas estruturas (proposições) lógico-fundantes e respectivas instrumentalidades operacionais e organizacionais (procedimentos e funções) a se explicitarem, no nível constituído, com a publicação do provimento legislativo (LEI). Extingue-se, assim, a secular confusão entre lei, direito e norma, não se sabendo onde teria começo a existência jurídica: se no “direito”, se na “lei”, se na “norma”, em acepções stricto e lato sensu, a gerarem a polissemia de sentidos normativos só estabilizáveis pela inteligência solitária e supostamente iluminada do intérprete-aplicador do direito. (LEAL, 2010b, p. 167). 8. Considerações Finais Das inferências expostas no presente artigo, apreende-se da obra apresentada que, para Rosemiro Pereira Leal, o processo, hodiernamente, é uma linguisticidade (discurso autocrítico) que se explicita por teorias submetidas a cargas e retrocargas (Técnica-Ciência-Teoria-Crítica) de uma epistemologia não técnico-científica, exclusivamente. 91 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Nesse tom, segundo o autor, a escolha de uma teoria processual (bem testada) é o devido processo na concepção de sua Teoria Neoinstitucionalista que preconiza o “devir” (vir-a-ser54) do direito (lei) pela biunivocidade contraditório-vida, ampla defesa-liberdade, isonomia-dignidade; não pelo “due process” da “law of the land” dos Estados Liberal e Social de Direito55. Dessume-se, portanto, que somente a partir dos novos contornos epistemológicos, conferidos ao devido processo, é possível, para o autor, atribuir legitimidade democrática ao direito. Isso porque, na concepção da Teoria Neoinstitucionalista do Processo, os institutos jurídicos (contraditório, ampla defesa e isonomia) que dão origem à lei são os mesmos que serão utilizados para interpretar, aplicar, modificar ou extinguir a lei. De conseguinte, o Processo é compreendido pelo autor como Teoria da Lei Democrática. Referências 1. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 2. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Duelo e processo. In: Revista brasileira de direito comparado. Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, 2003. 3. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 4. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 2000. Vol. I. 5. CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979. 6. DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2003. 7. DEL NEGRI, André. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009. 8. GRAU, Roberto Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 9. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Tradução de Anderson Fortes Almeida e Acir Pimenta Madeira. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 3. p. 107-121, jan./jun. 1995. 54 “Construtivo, aplicativo, modificativo ou extintivo do direito”. 55 Explicação ofertada por Rosemiro Pereira Leal, em esclarecimentos críticos realizados no presente artigo. 92 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 10.HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Vol. II. 11.LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. São Paulo: Landy, 2002. 12. LEAL, Rosemiro Pereira. O garantismo processual e direitos fundamentais líquidos e certos. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. (Orgs.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. 13. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e Democracia: a ação jurídica como exercício da democracia. In: Virtuajus: Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano 3, n. 1, julho de 2004. Disponível em: <www.fmd.pucminas.br>. 14. LEAL, Rosemiro Pereira. O garantismo processual e direitos fundamentais líquidos e certos. In: ______. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005a. 15. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo Civil e Sociedade Civil. In: Virtuajus: revista eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano 4, n. 2, dezembro de 2005b. Disponível em: <www.fmd. pucminas.br>. 16.LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005c. 17.LEAL, Rosemiro Pereira. Aulas expositivas, lecionadas pelo Professor Rosemiro Pereira Leal, no segundo semestre de 2009a, para a disciplina de Teoria Processual das Decisões Jurídicas, do curso de Mestrado em Direito Processual da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 18.LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009b. 19.LEAL, Rosemiro Pereira. Aulas expositivas, lecionadas pelo Professor Rosemiro Pereira Leal, no segundo semestre de 2010a, para a disciplina de Cátedra Lopes da Costa de Direito Processual, do curso de Doutorado em Direito Processual da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 20.LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2010b. 21.MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição: uma inserção no Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2008. 22.MADEIRA, Dhenis Cruz. Igualdade e isonomia processual. In: THEODORO JÚNIOR, Humberto; CALMON, Petrônio; NUNES, Dierle José Coelho (Coord.). Processo e Constituição: os dilemas do processo constitucional e dos princípios processuais constitucionais. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010. 23.MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da Tutela. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 24.MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 93 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 25. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. 1. ed. (ano 2008), 2ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010. 26.POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo: uma abordagem revolucionária. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999. 27.SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: nos paradigmas em face da globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. 28.SOUZA, Carlos Antônio de. Autos como limite hermenêutico de verdade formal e real no processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos Continuados de Teoria do Processo. Porto Alegre: Síntese, 2001, v. 2. Recebido em: 17/09/2014 Aprovado em: 28/10/2014 94 DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE: Memórias de histórias de violações de direitos humanos durantes as ditaduras militares no Cone Sul e no Brasil ANNA FLÁVIA ARRUDA LANNA BARRETO1 RESUMO O objetivo desta pesquisa é analisar o conteúdo do Fundo Clamor, localizado no Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes, durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. A metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor serão selecionados documentos cujas informações remetam ao desaparecimento de crianças, à prisão e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da apreensão e encarceramento, contexto histórico, forças repressoras envolvidas na operação de prisão, sequestro e/ou tortura das militantes e das crianças e adolescentes. Além desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental dos Arquivos do Terror, no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de Alfredo Stroessner no Paraguai. O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul, disponíveis no Fundo Clamor, contribuem, de forma significativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a conquista da cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da implantação da Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul. Palavras-chaves: Ditadura Cone Sul – Direitos Humanos – Fundo Clamor 1 Professora Adjunta do Curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem. Pós-Doutoranda em História (UFMG). Doutora e Mestre (UFMG). Email: [email protected]. 95 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ABSTRACT This research aims to analyse the contents of Fundo Clamor, located at the Documentation and Scientific Information Centre – CEDIC, from the Pontifical Catholic University of São Paulo—SP, between the years of 1970 and 1992, as well as its contribution to the process of rescuing historical memory of child and teenager abduction, imprisonment, and torture in the course of military dictatorships in Brazil, Argentina, Uruguay, and Paraguay. The methodology used is a bibliographical and a descriptive analytic documental research. Through the consultation and analysis of documents from Fundo Clamor, a compilation will be made with information regarding the disappearance of children and the imprisonment and/or abduction of pregnant militants in an attempt to describe the situation of apprehension and incarceration, the historical context, and the repression forces involved in the operation of arrest, kidnapping and/or torture of militants, children, and teenagers. Besides this heritage, a documental research will be made at Terror Archives, the Centre for Documentation and Archives for the Defence of Human Rights (CDyA) of Paraguay Supreme Justice Court, which contains a register of Alfredo Stroessner’s thirty-five-year-long military dictatorship in Paraguay. The main argument in this research states that the archives from the Committee for the Defence of Refugees Human Rights from the Southern Cone, available at Fundo Clamor, contribute significantly to the rescue of historical memory from the dictatorial period and to the achievement of complete citizenship in these countries, considering that Brazil was the protagonist of the National Security Doctrine implantation process in South America. Keywords: Southern Cone Dictatorship, Human Rights, Fundo Clamor 1. INTRODUÇÃO Y unas de los golpes eran los que me marco que no se ni donde ni cuando me llevan a arriba con la niña en brazo y también me hacen preguntas, y la niña se pone mal porque me empiezan a pegar estando la niña en mis brazos. Entonces yo para calmarla a niña le doy el pecho. Es más me dolió porque para mi más le torturaron a la niña delante de mí.2 2 Depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Arquivo da Comision de Verdad y Justicia do Paraguai. 96 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem O texto acima se refere ao depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Ela foi presa e torturada durante a ditadura do general Strossner, junto com sua filha. Ações como essas eram utilizadas em técnicas de interrogatório para obtenção de informações consideradas essenciais para o Estado de Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no Brasil. O avanço de denúncias e pesquisas nessa área apontou para a prática dessa modalidade de “terrorismo de estado” em outros países do Cone Sul. Dados do relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Brasil apontam como saldos das ditaduras do Cone Sul os seguintes números. No Brasil foram 50 mil pessoas presas, 20 mil torturados, 356 mortos e desaparecidos, 4 crianças provavelmente sequestradas. No Uruguai foram 166 desaparecidos, 131 mortos, 12 bebês sequestrados, 55 mil detidos. No Paraguai foram de 1 mil a 2 mil mortos e desaparecidos, 1 milhão de exilados. No Chile foram 1.185 desaparecidos, 2.011 mortos (embora estatísticas extraoficiais falem em até 10 mil assassinados), 42.486 presos políticos apenas em 1976. Na Argentina foram 30 mil mortos e desaparecidos e 230 crianças sequestradas (BRASIL, 2009, p.101). No final dos anos de 1970, quando a ditadura militar brasileira anunciava as primeiras medidas de distensão democrática, os regimes militares dos países do Cone Sul praticavam medidas de recrudescimento do autoritarismo e de intensificação do aparato repressivo. Prisões arbitrárias, eliminação sumária de militantes políticos, cassações, exílio, banimentos políticos, invasões de domicílios, sequestros e desaparecimento de crianças filhas de militantes políticos ou opositores do regime eram práticas que endossavam a repressão política nos países do Cone Sul e usurparam os direitos humanos de milhares de brasileiros, chilenos, argentinos, paraguaios e uruguaios. Essas práticas foram denunciadas por sobreviventes, refugiados e familiares de presos políticos durante os anos de 1970 e 1990, ao Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor), com sede na cidade de São Paulo, Brasil. O objetivo deste artigo é apresentar uma análise dos casos de sequestro, tortura e desaparecimento de crianças e adolescentes, filhas de militantes políticos durante as ditaduras militares no Cone Sul e Brasil, registrados no Fundo Clamor, localizado no Centro de Documentação e Informação Científica 97 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem – CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes, durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. A metodologia empregada na realização desta pesquisa3 é composta de pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor foram selecionados documentos cujas informações remetem ao desaparecimento, sequestro e tortura de crianças e adolescentes; à prisão e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da apreensão e encarceramento, forças repressoras envolvidas na operação de prisão. Além desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental do Arquivo do Terror, no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de Alfredo Stroessner no Paraguai. O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul (CLAMOR), disponíveis no Fundo Clamor e nos Arquivos do Terror, contribuem, de forma significativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a conquista da cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da implantação da Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul. 2. O FUNDO CLAMOR O fundo Clamor encontra-se distribuído em 106 caixas arquivo, 28 pastas para periódicos e 1 pasta para arquiteto. Reúne documentos textuais, orais e iconográficos. Os documentos foram adquiridos através de doação do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEP), em 1993. Esta documentação foi reunida durante a atuação do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul4 (CLAMOR), fundado em 3 Esta pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Minas Gerais, em nível de Pós-Doutorado, com a supervisão da professora doutora Heloísa Maria Murgel Starling. 4 Organização civil, informal e clandestina, fundada na cidade de São Paulo em 1978 e encerrada em 1991. 98 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 1978 por três pessoas ligadas a defesa dos direitos humanos: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh e Jaime Wright. Os três se reuniram em São Paulo para verificar a possibilidade de divulgação das atrocidades cometidas contra os direitos humanos dos argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos e brasileiros durante o regime militar desses países. Procuraram o Cardeal Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns para comunicar a presença no Brasil de refugiados políticos que relatavam histórias de desrespeito aos direitos humanos. Dom Paulo acolheu a ideia e solicitou que o Comitê, por motivos de segurança, permanecesse vinculado a Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, da Arquidiocese de São Paulo. O nome “Clamor” foi o nome dado ao boletim do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para países do Cone Sul, cujo primeiro volume foi publicado em junho de 1978. O nome foi inspirado no Salmo 88,2 – “Ó Senhor, deus da minha salvação, diante de ti clamo, de dia e de noite. Chegue a minha oração perante a tua face; inclina teu ouvido a meu clamor”. A intenção dos fundadores do Comitê era denunciar as contínuas violações dos direitos humanos ocorridas na América Latina. A imagem que marcava o símbolo do Clamor era um desenho de uma chama que brilha através das grades de uma prisão, criado pelo ex-preso político Manoel Cirilo de Oliveira Neto, que foi libertado em 1979. Além do símbolo, o Comitê também possuía um slogan “Direitos Humanos não tem fronteiras”. Com esse slogan o Comitê percorreu todos os países do Cone Sul e buscou auxílio financeiro e político junto a organismos internacionais como o Conselho Mundial das Igrejas, a Anistia Internacional, Nações Unidas e Banco Mundial. Segundo correspondências e testemunhos que chegavam ao Clamor, as principais violências cometidas pelos órgãos da repressão eram assassinatos, torturas, desaparecimentos e sequestros de familiares de militantes políticos, sobretudo, de crianças, filhas de militantes grávidas que eram presas pela polícia destes países ou através da ação conjunta das forças repressoras dos países do Cone Sul, normalmente gerenciada por integrantes da Operação Condor5. Havia listas de adoções nos presídios para os bebês que viessem a nascer de mulheres que foram presas grávidas. As mulheres eram torturadas e, após o 5 Ação conjunta das forças repressoras dos países Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai, criada em 1975. A função principal dessa operação era neutralizar e reprimir os grupos que se opunham aos regimes militares montados na América do Sul. O nome da operação faz referência a uma ave andina, símbolo de astúcia na caça às suas presas. 99 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem parto, eram mortas e suas crianças eram entregues para a adoção, muitas delas para famílias de militares. Ao todo, o Comitê ajudou a localizar vinte e sete crianças desaparecidas. Segundo denúncias realizadas por militantes políticos e pelos integrantes do grupo Clamor, o Brasil não só exportou conhecimento de violência policial e militar como também fazia parte de uma conexão com outros órgãos de repressão situados nos países do Cone Sul. Uma prova disso seria a existência de computadores com terminais ligados nos principais aeroportos do continente para seguir a movimentação daqueles que eram considerados subversivos ou inimigos da Pátria.6 3. OS ARQUIVOS DO TERROR A base de dados do Arquivo do Terror contém cerca de 60.000 registros dos documentos localizados no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) do Supremo Tribunal de Justiça do Paraguai . Esta base de Base de dados foi desenvolvida através do Projeto Memória Histórica, Democracia e Direitos Humanos (MHDDH), acordo firmado entre o Supremo Tribunal de Justiça, da Universidade Católica de Assunção e da ONG The National Security Archive . Cada registro inclui o código para imagens de microfilme, data do documento, tipo de documento, linha e nome; e se for o caso, a origem, as organizações e localização geográfica. São fichas policiais, listas de entradas e saídas de presos, notas do chefe de investigações, informes confidenciais, controle de partidos políticos, publicações periódicas, listas de suspeitos, informações sobre agremiações e grupos considerados subversivos, controle de sindicatos e objetos como livros e cédulas de identidade. Durante a Ditadura Militar do general Alfredo Stroessner, milhares de paraguaios foram detidos, torturados, exilados e muitos desaparecidos. A ditadura paraguaia (1954-1989) gerou traumas e ressentimentos ainda presentes na população. Como todas as ditaduras latino-americanas, ela violou os direitos humanos, cerceou liberdades e promoveu mortes e desaparecimentos de cidadãos em nome da Segurança Nacional. 6 Estas informações foram retiradas de documentos encontrados no Fundo Clamor, Arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP. 100 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Uma das vítimas da ditadura paraguaia durante o governo do general Stroessner foi o advogado Martín Almada que, desejoso de conhecer detalhes das acusações que o colocara preso entre 1974 a 1977 e da morte de sua esposa, solicitou um habeas data às autoridades judiciais paraguaias. Em 1992, atendendo ao pedido de habeas data7 do advogado, as autoridades encontraram em Lambaré, cidade que fica a vinte quilômetros de Assunção, um acervo composto de cerca de 60.000 registros de documentos contendo informações sobre a ditadura do general Stroessner. Entre os documentos encontrados ressaltam-se os documentos relativos ao funcionamento da Operação Condor com a ação conjunta dos países Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina. Segundo López (2010), antes de assumir a presidência, Stroessner se reuniu secretamente com membros do Comando Sul dos Estados Unidos. Nesta reunião foi assinado um pacto com altos oficiais americanos e brasileiros, como parte do plano dos aliados anticomunistas durante a Guerra Fria e a Doutrina de Segurança Nacional, implantada na década de 1960, por meio da ditadura militar brasileira. 4. MEMÓRIAS RESGATADAS Dos ninos, (1) Anatole Boris Julien Grisona, nacido em El Uruguay el 22/09/72, y (2) Eva Lucía Julien Grisona, nacida en la Argentina el 07/05/75, secuestradas el 26/09/76 en Buenos Aires, em una operación conjunta de las fuerzas policiales uruguayas y argentinas, fueron encontradas en la ciudad de Valparaíso, Chile. Los ninos están bien. Sus padres, Roger Julien Cáceres (uruguayo) y Victoria Grisona (argentina), secuestrados en esa misma operación, continúan desaparecidos. La familia entera fue secuestrada de su residencia em Partido de San Martín, Provincia de Buenos Aires8. 7O habeas data assegura o direito de toda pessoa ter acesso a informação e aos dados sobre si mesma. 8 Boletín de Prensa del 31/07/1979. Fundo Clamor, pasta 1, plástico 60. Arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP. 101 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem O texto acima se refere a uma denúncia feita pelo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul - CLAMOR9, em 1979, a respeito do desaparecimento das crianças uruguaias Anatole Boris Julien Grisona (4 anos) e Eva Lucía Victoria Julien Grisona (1 ano e 4 meses) que foram sequestradas no dia 26 de setembro de 1976 junto com seus pais na Argentina e deportadas ilegalmente para o Chile. Durante a operação de sequestro, os pais dessas crianças foram mortos e seus filhos foram levados para centros de interrogatórios. Posteriormente foram abandonados numa praça, na cidade de Valparaíso (Chile) e entregues a um orfanato por uma assistente social que passava no local (LIMA, 2003). A partir de setembro de 1976 os familiares de Anatole e Eva Lucía iniciaram uma busca desesperada para reencontrar as crianças. Segundo a historiadora Ananda Simões Fernandes, esta prática se trata de uma “modalidade de Terrorismo de Estado das ditaduras de Segurança Nacional” (FERNANDES, 2011, p. 48), sobretudo na Argentina, que durante a vigência do regime militar (1976-1983) contou com o alarmante número de 230 crianças sequestradas (BRASIL, 2009). No caso argentino, a maioria das crianças sequestradas tinha suas identidades omitidas e eram posteriormente adotadas ilegalmente por famílias ligadas direta ou indiretamente à repressão. Muitas crianças sequestradas junto com seus pais foram adotadas por oficiais da repressão. Exemplo dessa situação é o caso da criança Mariana Zaffaroni, sequestrada quando tinha dezoito meses de idade, junto com seus pais Jorge Roberto Zaffaroni Castilla e María Emilia Islas de Zaffaroni em Buenos Aires, no dia 27 de setembro de 1976, por forças da repressão argentina e uruguaia. A partir dessa data os familiares de Mariana iniciaram uma busca para encontrá-la. No dia 20 de maio de 1983 o jornal argentino “Clarin” de Buenos Aires publicou um apelo, com a foto da menina, solicitando a quem tivesse qualquer informação de Mariana, que entrasse em contato com as Abuelas da Plaza de Mayo10 ou com o grupo Clamor em São Paulo. Vinte dias após o apelo chegou uma carta anônima da Argentina enviada ao grupo Clamor. A carta informava que 9 Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul criado em 1977, apoiado pelo Arcebispo de São Paulo - Cardeal Paulo Evaristo Arns e vinculado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados. Seu objetivo era prestar proteção e assistência aos refugiados dos países do Cone Sul - Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. 10 Organização de direitos humanos argentina, fundada em 1977, que tem como finalidade localizar e restituir às suas famílias legítimas todos os filhos sequestrados e desaparecidos durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). 102 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Miguel Angel Furci, membro do Serviço de Inteligência do Estado (SIDE), estaria com Mariana em um subúrbio de Buenos Aires. A menina havia sido registrada como filha legítima do casal Furci, sendo registrada dois anos após o seu nascimento (LIMA, 2003). Casos como esses se tornaram uma política de estado na Argentina e foram praticados nos demais países do Cone Sul e no Brasil com a cooperação das forças repressoras desses países. Geralmente as crianças e adolescentes eram sequestradas junto com seus pais, quando da prisão e/ou sequestro dos mesmos. Posteriormente eram encaminhadas para centros de detenção e presas juntos com seus pais (QUADRAT, 2003). Exemplo dessa situação é o caso da brasileira Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, que foi sequestrada em sua residência no dia 13 de dezembro de 1968, dia da promulgação do Ato Institucional Nº 5 em Pariconha, interior de Alagoas, junto com seus filhos André (3 anos) e Priscila (2 anos). Ela e seus filhos ficaram presos durante quatro meses (BRASIL, 2009, p.30). Assim como o caso de Maria Auxiliadora, várias outras crianças e adolescentes foram presos e, algumas vezes, torturados junto com seus pais, como é o caso do adolescente Ivan Seixas (16 anos) filho do operário paranaense Joaquim Alencar de Seixas. Ambos foram presos em 16 de abril de 1971 e levados para as dependências da 37ª Delegacia de Polícia e posteriormente para o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP). Ambos militavam no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) quando foram presos. Pai e filho foram torturados juntos e após o assassinato de Joaquim Alencar de Seixas, sua residência foi invadida, sua mulher e filhas foram presas. Ivan passou seis anos preso sem responder a um julgamento (BRASIL, 2009, p. 44). No dia 30 de setembro de 1969, Virgílio Gomes da Silva Filho foi preso junto com sua mãe e mais dois irmãos. No dia anterior seu pai Virgílio havia caído nas mãos dos agentes da repressão e foi assassinado. Sua mãe e irmãos foram presos quando estavam hospedados em uma casa praiana em São Sebastião / SP. Na época, seu irmão mais velho Vlademir tinha oito anos, Virgílio seis anos e Isabel, sua irmã mais nova, tinha somente quatro meses. Todos foram detidos na sede da Operação Bandeirantes (OBAN). As três crianças foram arrancadas de sua mãe Ilda e levadas para o Juizado de Menores, onde permaneceram por dois meses. Antes disso passaram por vários interrogatórios. Ilda permaneceu presa até o ano de 1979, permanecendo incomunicável a maior parte do tempo. As crianças foram separadas e cada 103 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem uma delas foi morar com um tio. Às vezes elas se reuniam e ficavam paradas em frente a um poste onde sua mãe, ainda presa, poderia avistá-los. Após ser libertada e reunir sua família, Ilda e seus filhos foram morar em Cuba onde permaneceram até concluírem o curso universitário (PIMENTA, 2009). A história da prisão de Criméia Schimit de Almeida, mãe de João Carlos Gradois, revela mais um episódio dessa história de prisão, sequestro, tortura de crianças nos cárceres militares brasileiros. Presa nas dependências da Operação Bandeirantes em São Paulo quando estava grávida de oito meses de João Carlos, Criméia foi submetida a espancamentos e choques elétricos. Após o parto, permaneceu presa com o bebê durante cinquenta e dois dias (BRASIL, 2009, p. 66). Em 19 de fevereiro de 2013 morreu em São Paulo Carlos Alexandre Azevedo, torturado quando tinha apenas um ano e oito meses de vida no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), em 1974. Carlos era filho do jornalista Dermi Azevedo, militante e um dos fundadores do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MDNH). No dia 14 de janeiro de 1974, Carlos Alexandre e sua mãe foram levados à sede do Deops paulista, onde seu pai estava preso. Durante o interrogatório de Dermi, os policiais jogaram Carlos Alexandre no chão e machucaram sua cabeça. A tortura deixou sequelas em Carlos que viveu toda a sua vida submetida a tratamentos com antidepressivos e antipsicóticos. No dia 19 de fevereiro de 2013, Carlos Alexandre pôs fim à sua vida com uma overdose de medicamentos (BECKER, 2013). Ações como essas eram utilizadas em técnicas de interrogatório para obtenção de informações consideradas essenciais para o Estado de Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no Brasil. Conforme denúncia do relatório Nunca Mais da Argentina: … Por eu responder de forma negativa, começaram a bater na minha companheira com um cinto, puxavam seus cabelos e davam chutes nos pequenos Celia Lucía, de 13 anos, Juan Fabián, de oito anos, Verónica Daniela, de três anos, e Silvina, de somente vinte dias… As crianças eram empurradas de um lado ao outro e perguntadas se iam amigos à casa. Depois de maltratar minha companheira, pegaram a neném de somente vinte dias; pegaram-na pelos pés, de cabeça para baixo, e começaram a bater nela, gritando à mãe: “… se você não falar, vamos matá-la”. As crianças choravam e o terror era imenso. A mãe suplicava, gritando, que não mexessem com a neném. Então decidiram fazer o “submarino” na 104 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem minha companheira na frente das crianças, enquanto me levavam para outro quarto. Até o dia de hoje não soube nada de minha companheira... (CONADEP, 1986, p. 230). Nenhuma das crianças que tiveram os pais assassinados, clandestinos ou encarcerados teve o direito de desfrutar da convivência familiar, escolar ou comunitária. Seus relacionamentos eram marcados por restrições e segredos. Os finais de semana eram passados em cadeias, únicas ocasiões que podiam visitar seus pais. Há ainda casos em que militantes grávidas eram sequestradas e após a ocorrência dos partos, geralmente em centros clandestinos, as crianças eram retiradas das mães com a falsa informação de que seriam entregues aos avós. Após a separação, as mães, geralmente, eram executadas (QUADRAT, 2003). Várias das crianças nascidas em cativeiro continuam desaparecidas. Essa metodologia repressiva foi adotada nos países do Cone Sul da América Latina como estratégia para dissimular uma cultura do medo e da incerteza, como recurso para intimidar os opositores dos regimes ditatoriais nos países do Cone Sul. O sequestro de crianças filhos de presos políticos e a apropriação de suas identidades configura-se como crimes de lesa-humanidade e, portanto são imprescritíveis. Sendo assim, pesquisar essa temática é garantir que arbitrariedades como estas não passem despercebidas pelas sociedades vitimadas pelos governos ditatoriais, sobretudo onde esses desaparecimentos, prisões e torturas se fizeram mais frequentes. Estudar esse assunto é garantir aos familiares dos desaparecidos políticos e a sociedade civil desses países o direito do conhecimento e da memória dos fatos que, de forma, inóspita e brutal, retiraram do convívio familiar milhares de crianças e adolescentes, vítimas inocentes desse “terrorismo de estado”. 5. A REPRESSÃO NAS DITADURAS DO CONE SUL Após anos de desrespeito sumário aos direitos humanos dos povos sul-americanos, sobretudo nos períodos das ditaduras civis e militares, que contaram com diversos golpes de estado e a tomada pela força do poder, com a prática hedionda da tortura, do desaparecimento, sequestro e ocultação de identidades de milhares de militantes políticos contrários aos regimes 105 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem instalados, vários cidadãos, familiares de desaparecidos políticos, ainda aguardam a efetiva igualdade de direitos à memória, ao conhecimento dos fatos, a identificação dos entes queridos. Naquele contexto, o desrespeito aos direitos humanos tinha um alvo específico: opositores políticos e ideológicos das ditaduras instaladas nos países do Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai) e no Brasil. A ação das forças repressoras desses países procurou, por meio da manipulação dos meios de comunicação e educação, silenciar qualquer manifestação contrária aos interesses econômicos, políticos e ideológicos dos partidários das ditaduras instaladas após a segunda metade do século XX. Baseado na ideologia de cunho geopolítico expressa na Doutrina de Segurança Nacional11, o inimigo era caçado e eliminado. O aparato militar repressivo se voltou para a população, em especial para os subversivos e a guerrilha urbana. O discurso progressista e revolucionário da sociedade civil foi progressivamente substituído, ou melhor, “emudecido pelo alarido conservador, pela voz da Ordem, da Moralidade, da Pátria, da Família” (HOLLANDA, 1985, p. 14). Os golpes civis e militares nos países do Cone Sul, na segunda metade do século XX, romperam com as perspectivas revolucionárias dos setores oposicionistas da sociedade civil que sonhavam com a construção de uma nova sociedade. Os ânimos socialistas foram silenciados pelo discurso da Ordem e da Segurança Nacional, da tradição, família e propriedade. Movimentos populares, estudantis e segmentos progressistas da sociedade civil, estupefatos, passaram da euforia à dúvida, da ofensiva ao recuo12. Vale ressaltar que o crescente descontentamento da sociedade civil nos países do Cone Sul e no Brasil estava inserido no contexto da Guerra Fria, em um mundo marcado pela bipolaridade ideológica entre os blocos liderados pelos Estados Unidos da América (EUA) que patrocinavam o capitalismo e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que defendiam o socialismo. Neste contexto é importante destacar o impacto causado nos EUA pela Revolução Cubana, em 1959, com a implantação de um regime socialista em um país próximo geograficamente dos EUA. Com a instalação do socialismo em Cuba, os interesses dos dirigentes dos EUA e dos demais países do Cone Sul são ameaçados por uma ideologia contrária aos interesses 11 A respeito da Doutrina de Segurança Nacional e seu papel no golpe de 64, ver: TOLEDO, 1977; DREIFUSS, 1981; STARLING, 1986; SODRÉ, 1992. 12 A respeito do grau de radicalização do Regime Militar Brasileiro, entre os anos de 1964 a 1968, consultar: FON, 1979; ARQUIDIOCESE, 1987; ALVES,1989. 106 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem norte-americanos e militares, cujos princípios socialistas e revolucionários questionavam os pilares que sustentavam o desenvolvimento econômico desses setores. Os interesses dos EUA na América Latina haviam sido abalados desde a Revolução Cubana, o que levou a “superpotência considerar a política interna de cada país da região como extensão de sua própria política externa” (PADRÓS, 2005, p. 47). A Guerra Fria entre URSS e EUA que dominou o cenário internacional na segunda metade do século XX fez com que gerações inteiras se criassem à sombra de batalhas nucleares globais, que acreditavam que podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade. O medo da destruição mútua inevitável impediria um lado ou outro de dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial. Para a América Latina, o grande impacto da Guerra Fria não foi às armas nucleares e nem a corrida armamentista, mas sim a “guerra de contrainsurgência”, baseada na Doutrina de Segurança Nacional, que tinha como objetivo eliminar possíveis revoluções sociais nas áreas de influência ideológica dos EUA. De acordo com o Secretário do governo Kennedy, Robert Mc Namara, três tipos de guerras eram consideradas naquele contexto de Guerra Fria: a guerra atômica, a guerra convencional, a guerra não convencional. O último tipo de guerra foi interpretado como uma estratégia do Movimento Comunista Internacional na conquista de adeptos para o socialismo. Nesse sentido, o novo desafio para o EUA era conter a guerra não convencional ou guerra revolucionária através da instalação da Doutrina de Segurança Nacional e dos regimes ditatoriais na América do Sul (REIS, 2012, p. 34). 5.1. A DITADURA MILITAR NO PARAGUAI A instituição de ditaduras nos países do Cone Sul teve início em maio de 1954, no Paraguai, com o golpe de estado do general Alfredo Stroessner, apoiado pela Junta de Governo do Partido Colorado e por grande parte da população, que depôs o presidente Frederico Chávez e nomeou como presidente interino Toman Romero Pereira, para depois convocar eleições. No mesmo ano, no dia 11 de julho, o general Alberto Stroessner, candidato único do Partido Colorado, que apoiou o golpe, ganhou as eleições presidenciais. Em 15 de agosto de 1954, Stroessner tornou-se Presidente do Paraguai. A partir de então, tem-se início, um regime ditatorial unipessoal, que contou com 107 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem práticas de torturas aos seus opositores e com a criação de um sistema de delação que levou milhares de paraguaios aos cárceres e ao desaparecimento. Além do Partido Colorado, o general Stroessner contou com o apoio da oligarquia agropecuária e dos Estados Unidos. A instalação da ditadura militar no Paraguai fazia parte da “guerra de contrainsurgência”, desencadeada pelos EUA na América Latina e era baseada na Doutrina de Segurança Nacional. Segundo Miguel López (2010), pouco após Stroessner assumir a presidência, ele assinou um acordo com os altos oficiais americanos e brasileiros, onde se comprometia a barrar qualquer ameaça ou crescimento de partidários do comunismo. Para barrar o avanço do comunismo no Paraguai a ditadura do general Stroessner impôs a filiação partidária ao Partido Colorado como condição primordial para se conseguir acesso aos cargos públicos e ingressar nas Universidades. Além disso, a exigência de filiação ao Partido Colorado se fez também por parte das empresas privadas na contratação de pessoal, cujos proprietários eram aliados do governo. Assim, o Partido Colorado se tornou a base social da ditadura paraguaia e os partidos, sindicatos e movimentos estudantis eram formados basicamente por colorados. Esta estratégia deixou a oposição ao regime cada vez mais debilitada (VERA, 2010). Com a desaceleração econômica nos anos de 1980, a ditadura militar paraguaia começou a perder força e apoio. Nos dias 2 e 3 de fevereiro de 1989 um novo golpe, planejado por alguns setores do Partido Colorado, destituiu Stroessner da presidência. 5.2. O REGIME MILITAR BRASILEIRO Na sequência de instituição de regimes ditatoriais na América do Sul, o Brasil foi o próximo país a sofrer um golpe militar que derrubou um presidente civil eleito democraticamente. Em 31 de março de 1964 o regime militar implantando no Brasil depôs o governo constitucional do presidente João Goulart e emitiu diversos Atos Institucionais que aumentaram o poder da Presidência da República e limitaram os direitos individuais dos cidadãos. A imprensa, os sindicatos e as organizações estudantis ficaram sobre forte censura do Estado. O período do Regime Militar Brasileiro foi marcado pela influência da Doutrina de Segurança Nacional e explicitou um conjunto de políticas que, sob a máxima “desenvolvimento com segurança”, articulou medidas de efetivo controle social com estratégias econômicas de maior inserção do Brasil na 108 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ordem capitalista internacional. A realização da lógica “estabilidade e crescimento econômico” só foi possível devido à eliminação pela via da coerção do conflito no interior da sociedade. Gradativamente, o ciclo de repressão estendeu-se aos indivíduos considerados suspeitos no interior da esfera do Estado e, com as manifestações estudantis de 1968, à classe média. Em todo o Brasil, a repressão aos grupos “subversivos” se fez presente. As primeiras medidas do regime militar, durante o governo do general Castelo Branco, apresentaram uma clara intenção de eliminar a oposição ao regime militar. O governo Castelo fez uso intenso de práticas policiais e militares de detenção em massa com bloqueio de ruas, busca de casa em casa e checagem individual; de prisões de massa; da prática da tortura como forma de interrogatório em diversas guarnições militares. Entre os anos de 1964 a 1967 o governo interveio nos sindicatos e nas entidades estudantis, proibiu a realização de greves, instaurou a censura nos meios de comunicação, criou o Sistema Nacional de Informações, cassou mandatos e suspendeu por dez anos os direitos políticos dos parlamentares oposicionistas (ALVES, 1989). O ano de 1968 foi um marco de ambivalência no regime militar. Neste ano verificou-se tanto a efervescência dos movimentos oposicionistas como a intensificação da repressão do Estado13. Em 1968, o governo do general Costa e Silva, em resposta a eclosão de um amplo movimento social de protesto e de oposição à ditadura, decretou o Ato Institucional nº 5, considerado, por muitos autores, como um “golpe dentro do golpe” (ALVES, 1989, p. 51). O Ato Institucional Nº 5 proibiu as greves, ampliou o poder do executivo para efetuação de prisões sem mandatos judiciais e promoveu novas cassações. O fator conjuntural que mais contribuiu para a edição do AI-5 foi a intensificação da contestação ao regime pelos sindicatos e movimento estudantil como também por alguns segmentos do MDB. Os três fatores utilizados como pretextos pelas Forças Armadas para desencadearem nova escalada repressiva com o Ato Institucional nº 5, foram: as denúncias sustentadas dentro do próprio partido de oposição criado pelo regime, o crescimento das manifestações de rua e o surgimento de grupos de oposição armada, que justificavam sua decisão com o argumento de que os canais institucionais seriam incapazes de fazer frente ao poder ditatorial (ARQUIDIOCESE, 1987, p.62). 13 A respeito dos movimentos de oposição ao Regime Militar, consultar: MARTINS, 1987; GORENDER, 1987; PERRONE, 1988; VENTURA, 1988; REIS E MORAIS, 1988. 109 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Entre os anos de 1969 a 1973, observou-se a ocorrência das guerrilhas rural e urbana que acirraram ainda mais a ação repressiva das forças armadas. Inúmeros militantes das organizações de esquerda foram presos e muitas vezes, torturados. Muitos morreram, desapareceram e foram banidos do país. Grupos da sociedade civil e, principalmente pessoas que lutavam pela liberdade, pela restauração das garantias constitucionais e por melhorias nas condições de vida, foram excluídas do cenário político, social e familiar da sociedade brasileira. Este período marcou a fase de endurecimento do regime militar brasileiro. Além da repressão física, os grupos de oposição ao Regime Militar conviviam com uma constante intimidação ideológica e psicológica, promovida pela campanha de repressão (ALVES, 1989). Para Ana Vasquez e Ana Araújo (1988), o objetivo da tortura não era apenas a obtenção de informações, mas, sobretudo, a anulação daquelas pessoas, de forma permanente e definitiva. O principal alvo da repressão eram os movimentos operários, camponeses, estudantil e organizações de esquerda. De abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura no Brasil passou, com o Regime Militar, à condição de “método científico”, incluído em currículos de formação de militares. O ensino deste método de arrancar confissões e informações não era meramente teórico. Era prático, com pessoas realmente torturadas, servindo de cobaias neste macabro aprendizado (ARQUIDIOCESE, 1987, p. 24). Em 1974, o desgaste da legitimidade do regime ficou visível na vitória eleitoral do MDB sobre a ARENA para o Senado Federal, refletindo uma mudança de estratégia dos setores oposicionistas, que passaram a apoiar os partidos de oposição oficial (ALVES, 1989). Mas, o regime militar foi solapado quando a sociedade civil encontrou condições de manifestar. Nas décadas de 1970 e 1980 as ruas das cidades foram progressivamente tomadas pelos mais diversos movimentos por liberdades e direitos: sindicais, estudantis, das mulheres, das igrejas, dos negros. Em 1985, através da realização de eleições indiretas para presidência e a vitória do civil Tancredo Neves deu-se o fim de vinte e um anos de ditadura militar no Brasil. Vítima de uma enfermidade aguda, Tancredo faleceu antes de assumir a presidência do Brasil. Seu vice, José Sarney, um ex-arenista, assume o comando da Presidência da República do Brasil. Segundo Padrós (2009, p, 17), o Brasil se tornou laboratório de práticas 110 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem repressivas e foco disseminador das mesmas (torturas, esquadrões da morte, sequestro, desaparecimento de pessoas). Nos países do Cone Sul, depois do Brasil e do Paraguai de Stroessner, foi a vez da Argentina (1966), Uruguai e Chile (1973) e novamente a Argentina. 5.3. A DITADURA ARGENTINA Na Argentina, a repressão foi extremamente violenta. A ditadura teve duas etapas. A primeira, de 1966 a 1973, que durou sete anos. A segunda, iniciada em 1976, foi o período que a violência de estado atingiu uma escala sem precedentes na América Latina. Somente em 1983 o país recuperou a democracia. No dia 28 de junho de 1966, o presidente eleito legalmente na Argentina, Arturo Illia é deposto e o general Juan Carlos Onganía assume a Presidência da República. Assim como no Brasil, os mentores do golpe denominaram esse período de tomada de poder como Revolução Argentina. Em seguida, entrou em vigor no país o Estatuto da Revolução Argentina que procurou legalizar as atividades dos militares. O objetivo era garantir a permanência dos militares no poder por tempo indeterminado. Segundo Anthony W. Pereira, a ditadura argentina expressa uma “quebra radical com a legalidade anteriormente vigente e num ataque em grande medida extrajudicial aos oponentes do regime” (PEREIRA, 2010, p. 44). A nova “constituição” proibia a atividade dos partidos políticos e cancelava quase todos os direitos civis, sociais e políticos dos cidadãos, em função de um constante Estado de Sítio. No final dos anos de 1960 ações armadas dirigidas contra os militares, através de guerrilhas como os Motoneros e o Ejército Revolucionário Del Pueblo (ERP), tornaram-se alvo de preocupação do governo. Em 1973, com a saída dos militares do poder e a restauração de um governo peronista, houve a intensificação da repressão. Primeiro sem Peron, depois com o líder no poder e posteriormente, após sua morte, no governo de sua terceira esposa, Maria Estela Martinez de Perón, a violência política continuou através dos grupos paramilitares. Sob o comando do general José Lopez Rega, teve início uma guerra suja contra a esquerda armada. Segundo Pereira “o golpe de 1976 foi em parte provocado pelo desejo dos militares de expandir a guerra suja para abranger todo o país” (PEREIRA, 2010, p. 61). Sendo assim, diferente do Brasil e do Chile, a repressão militar na Argentina começou antes da instituição do regime militar. 111 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A repressão argentina concentrou-se em Buenos Aires, responsável por quase metade dos desaparecimentos políticos. Contudo, outras cidades como Córdoba, La Plata e Mendoza tiveram intensa atuação das forças armadas argentinas nas práticas repressivas. Os principais alvos da repressão eram os sindicalistas, membros do partido peronista, intelectuais, estudantes e jornalistas. Segundo Samantha Quadrat (2002), a repressão na Argentina se estruturava no modelo de sequestro, desaparecimento e tortura. As pessoas suspeitas de subversão, inimigos internos ou simpatizantes de governos nacionalistas eram sequestradas em suas residências ou na saída do trabalho, por grupos fortemente armados conforme atestam a maior parte dos casos de registros de desaparecimentos na Argentina, denunciados pelas Madres e Abuelas de Praza de Mayo. Após sequestrada, a pessoa era conduzida aos centros clandestinos de detenção e tortura que sempre tiveram sua existência negada pelo governo militar argentino. Segundo informações do Nunca Mais argentino, da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) na Argentina, existiam cerca de 340 centros espalhados em todo o território argentino (CONADEP, 1986). Esses locais constituíram na base material indispensável para o desaparecimento em massa de opositores do regime militar argentino. Um dos mais famosos era a Oficina Orletti, uma antiga oficina mecânica que foi convertida em centro clandestino de detenção e tortura, servindo de cárcere principalmente para prisioneiros argentinos, uruguaios e chilenos. Oficiais uruguaios e chilenos também frequentavam a Oficina Orletti e participavam das sessões de interrogatórios e tortura contra prisioneiros. Umas das formas mais brutais da repressão argentina foi o sequestro de crianças, nascidas geralmente em cativeiros, filhas de mulheres mortas ou presas pela repressão. Em muitos dos casos, as crianças sequestradas eram adotadas por oficiais das forças de repressão. O sequestro dos filhos e o desaparecimento dos opositores ao regime tinham um claro propósito, desarticular a família dos militantes políticos – avos, mães, filhos – instalando um castigo exemplar para aqueles acusados de implantar o caos na Argentina, castigo que deveria servir de advertência para as gerações futuras. A intensidade da repressão na Argentina revela que o terrorismo de Estado lá aplicado não foi proporcional a ação da subversão. O número de vítimas desse regime reflete a amplitude do genocídio produzido e demonstra que os objetivos dos militares iam além de reprimir. Segundo Marcelo Fabián Sain (2000, p. 23) “a derrota político-militar das Malvinas marcou o início da ruptura do regime militar inaugurado em 1976. 112 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A crise na qual mergulharam as Forças Armadas e, em particular, o governo militar converteu-se rapidamente numa crise do regime”. A derrota militar das forças armada somada a sua fragmentação política colocaram em xeque os pressupostos doutrinários do regime militar argentino e impediu a saída das forças armadas através das esferas governamentais em parâmetros determinados por elas ou canalizados a partir de pactos com os dirigentes civis. Sobre esse aspecto o processo de transição política na Argentina não ocorreu de forma pactuada como no Brasil, que se desenrolou a partir de uma conciliação entre civis e militares, tendo como produto final a eleição indireta para presidente da República. Diferente do Brasil, a transição argentina tratou-se de uma transição por colapso, determinada pela ruptura do regime militar que teve como golpe final a derrota da Argentina na Guerra das Malvinas (SAIN, 2000, p. 24). 5.4. A DITADURA CHILENA Nove anos após o início da ditadura militar brasileira, em 1973 o Chile sofreu um golpe de estado que culminou na execução do presidente de tendência socialista Salvador Allende, democraticamente eleito, dentro do próprio palácio presidencial de La Moneda. O golpe militar chileno foi orquestrado pela justa militar comandada por Augusto Pinochet. Assim como as demais ditaduras do Cone Sul, o regime militar chileno se caracterizou pela extrema violência contra seus opositores. Do ponto de vista da legalidade, os militares chilenos aboliram a Constituição, estabeleceram um estado de sítio em todo o território e executaram centenas de pessoas sem prévio julgamento. O Exército chileno assumiu o controle da maior parte do território. A prática da tortura era comum nos interrogatórios e os acusados eram julgados por tribunais militares “de tempos de guerra”, onde as sentenças eram rapidamente cumpridas, sobretudo nos casos de pena de morte. Os principais alvos eram as pessoas suspeitas de apoiar Salvador Allende e membros dos partidos socialistas e comunistas. A cidade de Santiago foi o principal foco das ações repressivas, mas as mortes e desaparecimentos ocorreram em todo o território chileno. Segundo Pereira (2010) o regime militar chileno, se comparado ao caso brasileiro, estava pouco preocupado com a atuação das forças armadas dentro dos limites da legalidade, sobretudo nos cinco primeiros anos após o golpe militar. “Nos primeiros meses após o golpe, o número das pessoas 113 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem sumariamente executadas pelo Exército ou pela política (carabineros) parece ter sido muito superior ao das que receberam algum tratamento judicial” (PEREIRA, 2010, p. 60). Os julgamentos eram rápidos e as sentenças, embora severas, eram sumariamente aplicadas. Não havia direito de recurso para os réus, pois a Suprema Corte se recusava a rever os vereditos dos julgamentos realizados em tribunais militares. Após a instituição do golpe militar chileno, foram criados órgãos de inteligência que tinham como objetivo assegurar a permanência do novo regime e reprimir os grupos opositores ou que poderiam apresentar alguma resistência ao regime. É nesse contexto que foi criada a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), em junho de 1974, que funcionou sob o comando do coronel Manuel Contreras. Tratava-se de um órgão autônomo, centralizado e subordinado diretamente ao governo. O decreto que criou a DINA permitia a Junta Militar convocar os demais serviços de segurança para participarem das ações do DINA e dava-lhe poderes, para realizar prisões e buscas de prisioneiros em todo o país. Vale ressaltar que a CIA, agência de inteligência dos EUA, foi responsável pelo treinamento de muitos membros da DINA, além da destinação de recursos financeiros para o órgão (ANTUNES, 2008, p. 227). A DINA mantinha centros de reclusão clandestinos, onde a prática de tortura contra os prisioneiros era comum. Em 1975 a DINA sediou o sistema da Operação Condor, cooperação entre os regimes militares do Cone Sul inicialmente integrada pela Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile. Uma delegação brasileira compareceu ao encontro, mas a integração do Brasil só aconteceu em 1976. Durante sua existência, a Operação Condor foi marcada por três fases. A primeira era dedicada à formação de um banco de dados com informações sobre pessoas envolvidas com a subversão em todos os países do Cone Sul que participavam da cooperação. Além disso, na primeira reunião foi prevista a criação de uma central de comunicações com mensagens criptografadas e telefones com inversores de voz, além da realização de reuniões regulares entre os chefes de inteligência dos países membros (PRIMERA, 1975). A segunda fase foi marcada por ações conjuntas realizadas dentro dos países membros. Tais ações possibilitaram a troca de prisioneiros sem qualquer registro oficial de entrada ou saída do país, bem como a localização de refugiados no exterior. Após vigiar e capturar os alvos, estes eram presos e submetidos a interrogatórios, muito vezes com o uso da prática da tortura. Os interrogatórios eram compartilhados entre os países membros e 114 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem os prisioneiros eram deportados para seus países, onde provavelmente eram executados (DINGES, 2005, p. 36). A terceira fase da Operação Condor envolvia a formação de equipes especiais dos países membros que viajavam a qualquer parte do mundo para assassinar “terroristas” ou aqueles que, segundo os órgãos da repressão, apoiassem organizações “terroristas”. A operação consistia em localizar um terrorista ou simpatizante no exterior, encaminhar uma equipe especial para vigiar o alvo e posteriormente, seria enviada uma segunda equipe para executar a “sanção” contra o mesmo. A ditadura chilena de Pinochet realizou as principais ações dessa terceira fase da Operação Condor, planejando e executando assassinatos na Europa e nos Estados Unidos (CHILBOM, 1976). Além do Chile, outros países realizaram operações de busca e apreensão de subversivos na Europa e EUA. Um exemplo disso é o Plano Piloto Paris, orquestrado pela Argentina em cooperação com França em 1977. O plano era uma combinação de ações repressivas entre os governos argentino e francês. Os objetivos do plano eram melhorar a imagem da Argentina na Europa, abrir um espaço político dentro dos meios de comunicação para favorecer o projeto político de Massera, detectar militantes e dirigentes populares que estivessem no exterior. O plano era de caráter clandestino e realizava um trabalho paralelo ao do Centro de Difusion Argentino, criado mediante decreto do Ministério de Relações Exteriores, comandado pelo Vice Almirante Montes. A marinha controlava a Chancelaria Argentina. Na produção do plano para o Centro de Difusão de Paris participaram: Vice-Almirante Montes (Ministro de Relações Exteriores), Capitão Gualter Allara (subsecretário de relações exteriores, Capitão Perez Froio (Sub-Secretário de Imprensa do Ministro de Relações Exteriores), Capitão Jorge Acosta (Chefe da GT 3.3/9), Capitão Jorge Perren (Chefe de Operações da GT 3.3/2), Tenente Pernía (Oficial da Inteligência da GT 3.3/2)14. 5.5. A DITADURA CIVIL E MILITAR NO URUGUAI No mesmo ano que se instalou a ditadura militar no Chile, o Uruguai também sofreu um golpe militar. Assim como as anteriores, a ideologia dominante era a Doutrina de Segurança Nacional que norteou o golpe militar em 27 de junho de 1973 e depôs o presidente civil Juan Maria Bordaberry. 14 FUNDO CLAMOR – CEDIC – PUC/ SP, caixa 13, plástico 7. 115 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Diferente das demais ditaduras, a ditadura uruguaia teve um aspecto civil e militar, tendo em vista a proximidade política do presidente civil Bordaberry com as forças armadas. Naquele ano, com o apoio das forças armadas, o presidente uruguaio fecha o Senado, a Câmara dos Deputados e anuncia a criação de Conselho de Estado, substituindo o parlamento. O pretexto para a aplicação dessas ações era a necessidade de realizar uma reforma constitucional que enfatizasse os princípios republicanos e democráticos no Uruguai. Em função dessa estratégia, a Convenção Nacional dos Trabalhadores foi colocada na ilegalidade e seus dirigentes foram presos. A ditadura uruguaia se estendeu até 28 de fevereiro de 1985, após um lento processo de abertura política. Durante os anos de ditadura civil e militar o Uruguai foi marcado pela proibição dos partidos políticos, a ilegalidade dos sindicatos, a censura à imprensa, a destruição das organizações sociais e a perseguição, prisão, sequestro, desaparecimento e eliminação dos opositores ao regime. Um dos casos mais famosos de desaparecimento é o sequestro dos uruguaios em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Em novembro de 1978, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de Porto Alegre ajudaram oficiais da Companhia de Contra-Informações do Exército do Uruguai a sequestrarem Universindo Diaz, Lilian Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca. Lilian e Universindo, que eram integrantes de organização de esquerda no Uruguai, estavam exilados no Brasil, preparando um dossiê de denúncia sobre violações dos direitos humanos no Uruguai. Os quatros foram detidos em seu apartamento pela força policial uruguaia, para aguardar a chegada de outros “supostos” subversivos. A operação de sequestro fracassou quando dois jornalistas brasileiros chegaram ao apartamento das vítimas e defrontaram com os policiais e os uruguaios. Os jornalistas denunciaram o sequestro e com a divulgação do caso na imprensa, o fato ganhou repercussão nacional e internacional15. As experiências ditatoriais nos ensinaram a lutar pela aplicação das leis e regulamentos universais, capazes de proteger os direitos humanos de todos os cidadãos, de forma indistinta, e de garantir-lhes sua vida, liberdade e propriedade. Como no Brasil, a existência de regimes autoritários no Cone Sul provocou a existência de repressão, exílios e prisões. Tais acontecimentos levaram à reação das sociedades civis que exprimiram seu descontentamento de 15 116 Sobre esse assunto consultar: PADRÓS, 2005; REIS, 2012. revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem diversas formas, dentre elas: as manifestações de rua, os movimentos estudantis, a luta armada, as organizações de esquerda, os movimentos pela anistia, os movimentos de familiares e desaparecidos políticos, os movimentos em defesa dos direitos humanos, as Madres e Abuelas de Praza de Mayo, os integrantes do grupo Clamor. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O motivo que nos leva a realização deste estudo surgiu da constatação de que, apesar do incentivo do governo federal brasileiro no processo de resgate da memória histórica, sobretudo do período do Regime Militar Brasileiro, ainda são muitos os obstáculos e preconceitos que integram o cotidiano de investigações e pesquisas acadêmicas na área. Acreditamos que o resgate do conteúdo deste Fundo e de outros semelhantes é crucial para percebermos a política de cooperação adotada entre os países do Cone Sul e Brasil, bem como o protagonismo brasileiro nas ações de repressão, troca de prisioneiros e treinamento em áreas de inteligência e técnicas de interrogatórios. A repressão militar no Brasil e nos países do Cone Sul consistia na institucionalização da tortura e das técnicas de interrogatório, bem como no desenvolvimento de ações e propagandas que tornavam visível a existência do aparato repressivo no país. Neste sentido, além da repressão física, os grupos de oposição aos regimes militares conviviam com uma constante intimidação ideológica e psicológica, promovida pelas campanhas de repressão. Na lógica dos regimes ditatoriais implantados no Brasil e nos países do Cone Sul, ser delator a serviço da ditadura significava ser patriota e defender a nação. A assimilação da Doutrina de Segurança Nacional pelos militares chegou a adotar o nacionalismo como sinônimo de anticomunismo, como parte integrante da ideologia capitalista da Guerra Fria promovida pelos Estados Unidos. A Aliança para o Progresso, firmada nos anos de 1960, pelo presidente John F. Kennedy e os demais países da América do Sul, deu um impulso econômico para os governos militares desses países, tornando seus governos aliados imponderáveis dos Estados Unidos. A originalidade da pesquisa encontra-se na produção de um trabalho acadêmico que busque analisar as informações contidas no Fundo Clamor e no Arquivo do Terror como contribuição para o resgate da memória histórica do período de autoritarismo político e militar nos países do Cone Sul e no Brasil, sobretudo no diz respeito ao sequestro, desaparecimento e apropriação de 117 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem identidades de centenas de crianças e adolescentes, filhas e filhos de opositores políticos dos regimes ditatoriais instalados nos países do Cone Sul e no Brasil. Acreditamos que a reconstituição da memória deste período (1970199), permitirá uma pesquisa fundamental para a recuperação de uma história emudecida pelos discursos autoritários dos órgãos da repressão política e militar. Portanto, se trata de uma pesquisa sobre as razões, paixões e desejos implícitos na luta de pessoas em defesa dos direitos humanos de refugiados que, devido as suas convicções políticas, foram usurpados de seus direitos humanos e de cidadãos, em um período de autoritarismo político. Relatar essa história é contar casos de lutas em defesa dos direitos humanos, mas também de casos de usurpação desses direitos, com a utilização clandestina, mas explícita, de métodos de barbárie, de violência física, psicológica e cultural, capaz de gerar uma cultura do medo alimentada pelo terrorismo de Estado vigente nesses países. Contar essa história é oferecer às gerações presentes e futuras a chance de conhecer seu passado, seus dirigentes, sua força armada, cuja função máxima é a defesa da pátria. Conhecer essa história é garantir o não esquecimento de fatos que desonraram a humanidade, que alimentaram o silêncio e a inação política e social. Recordar esses fatos é oferecer à sociedade a chance de conhecer seu passado, aprender com ele e, a partir disso, desenhar o seu futuro. Afinal, segundo a psicóloga Eclea Bosi “um dos mais cruéis exercícios da opressão é a espoliação das lembranças” (BOSI, 1979, 362). REFERÊNCIAS 1. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1989. 2. ANTUNES, Priscila. Ditaduras militares e institucionalização dos serviços de informações na Argentina, no Brasil e no Chile. In: FICO, Carlos et al. (Orgs.). Ditadura e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p.201 – 244. 3. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil, Nunca Mais. 11 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987. 4. AUTÓPSIA da Sombra. Revista Veja, 18 de nov. 1992. p. 20-32. 5. BECKER, Marcelo Miranda. Morre em São Paulo homem torturado pela ditadura quando tinha um ano. Terra online. 18 fev. 2013. Disponível em: <http://noticias.terra. com.br/brasil/,ead367d062fec310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html>. Acesso em 01 mar. 2014. 118 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 6. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Queiroz TA, 1979. 7. BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito à Memória e à Verdade: histórias de meninas e meninos marcados pela ditadura. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009. 8. CHILBOM/CONDOR, 28/09/1976. Disponível em: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/ NSAEBB/NSAEBB8/ch23-01.htm. Acesso em 16 fev. 2013. 9. CONADEP. Nunca Mais: Informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, 1986. 10.DINGERS, John. Os anos do Condor: uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo: Cia das Letras, 2005. 11.DREIFUSS, René A. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981. 12.FERNANDES, Ananda Simões. “Esta guerra nos es contra los niños”: o sequestro de crianças durante as ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. In: PADRÓS, Enrique Serra; NUNES, Cármen Lúcia da Silveira; LOPES, Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda Simões (Orgs.). Memória, Verdade e Justiça: as marcas das ditaduras do Cone Sul. Porto Alegre: ALRS, 2011. p. 47-66. 13.FON, Antônio Carlos. Tortura: A História da Repressão Política no Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora, 1979. 14.LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. 15.LÓPEZ, Miguel H. Stroessner e Eu: a cumplicidade social com a ditadura (1954-1989). In: In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samanta (Orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX – Brasil e América Latina. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010. v. 1. P. 437-470. 16.PADRÓS, Enrique Serra. A Operação Condor e a Conexão Repressiva no Cone Sul: a luta pela Verdade e pela Justiça. Organon. Porto Alegre, n. 47, jul./dez. 2009, p. 15-38. 17.PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2005. 434 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: UFRGS, 2005. 18.PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 19.PIMENTA, Edileuza; TEIXEIRA, Edson. Virgílio Gomes da Silva: de retirante a guerrilheiro. São Paulo: Plena Editorial, 2009. 20. PRIMERA Reunion de Trabajo de Inteligência Nacional, 29/10/1975. Disponível em: http:// www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB239b/PDF/19751000%20Primera%20reunion%20de%20Trabajo%20de%20Inteligencia%20Nacional.pdf. Acesso em 16 fev. 2013. 21.QUADRAT, Samantha Viz. O direito à identidade: a restituição de crianças apropriadas nos porões das ditaduras militares do Cone Sul. História, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 167181, 2003. 119 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 22. QUADRAT, Sandra Viz. Memória, direitos humanos e política na Argentina Contemporânea. X Encontro Regional de História – ANPUH-RJ . História e Biografias, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.p. 31- 55. 23. REIS, Ramiro José dos. Operação Condor e o Sequestro dos Uruguaios nas ruas de um Porto não muito Alegre. 2012. 184 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 24. SAIN, Marcelo Fabián. Democracia e Forças Armadas: entre a subordinação militar e os “defeitos” civis. In: D’ARAÚJO, Maria Célina; CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: FGV, 2000. p. 21-55. 25. SODRÉ, Nelson Werneck. A ofensiva reacionária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. 26. STARLING, Heloísa. Os senhores das Gerais: Os Novos Inconfidentes e o Golpe de 64. Petrópolis: Vozes, 1986. 27. TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977. 28. VASQUEZ, Ana; ARAUJO, Ana Maria, Exils latino-américains: la malédiction d’Ulysse. Paris: L’Harmattan/CEMI, 1988. 29. VERA, Myrian González. “Data Feliz” no Paraguai. Festejos de 3 de novembro, aniversário de Alfredo Stroessener. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samanta (Orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX – Brasil e América Latina. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010. v. 1. p.393-436. Recebido em: 17/09/2014 Aprovado em: 28/10/2014 120 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DISCURSOS DE AUTO-ENTENDIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NO PROCESSO LEGISLATIVO DEMOCRÁTICO CAMILA CARDOSO DE ANDRADE1 RESUMO O artigo estabelece algumas considerações sobre os discursos de auto-entendimento ético-político no processo legislativo democrático e se desenvolve no marco da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habemas. Para tanto, reconstrói argumentos da tradição liberal, que preconiza a autonomia privada, através da ênfase aos direitos humanos. Apresenta a concepção da tradição republicana que coloca a ênfase na soberania popular, que através dos direitos de participação política é entendida como a práxis de auto-determinação dos cidadãos, voltada ao entendimento mútuo e à cooperação social. A Teoria do Discurso pretende superar as teorias liberal e republicana utilizando elementos de ambas, e combinando-os de tal maneira que a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos se pressuponham mutuamente, isto é, que a institucionalização jurídica do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida através dos direitos humanos. Palavras chave: Jürgen Habermas; discursos ético-políticos; processo legislativo; liberalismo; republicanismo. ABSTRACT This paper establishes some considerations on the discourses of ethical-political self understanding in the democratic legislative process. It is developed under Jurgen Habermas’ Discourse Theory of Law and Democracy. For that, the paper reconstructs arguments from the liberal tradition which argues in favor of private autonomy by means of emphasizing human rights. It presents the conception of the republican tradition which puts emphasis on popular sovereignty 1 Mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG (2008). Professora no curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem. e-mail: [email protected] 121 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem which, through the rights of political participation, is understood as the citizen’s self-determination praxis geared towards mutual understanding and social cooperation. The Discourse Theory aims at overcoming the liberal and republican theories using elements from both and combining them in such a way that the private autonomy and the citizens’ public autonomy mutually presupposed each other. That is to say that the legal institutionalization of the public use of the communicative freedoms be fulfilled through human rights. Keywords: Jürgen Habermas; ethical-political discourses; legislative process; liberalism; republicanism. 1. INTRODUÇÃO As ordens jurídico-políticas modernas não são mais legitimadas pela religião ou pela tradição, como na pré-modernidade; não existe mais um ethos herdado e comum a todos os membros da sociedade política que a direciona a um bem comum compartilhado. O Direito assume, na modernidade, o lugar anteriormente ocupado pela tradição e pela religião como medium regulador de comportamentos e promotor de integração social, estabelecendo as condições institucionais para o processo democrático de formação da opinião e da vontade, no qual os próprios cidadãos atribuem-se reciprocamente as normas que irão reger seu agir em conjunto. No entanto, as sociedades democráticas contemporâneas têm como característica o pluralismo das formas de vida e tradições culturais. Os indivíduos dessas sociedades possuem diferentes concepções de mundo (ou acerca do que consideram uma vida boa), muitas vezes incompatíveis entre si. As formas de vida e tradições culturais a que os indivíduos pertencem são constitutivas de sua identidade, de sua auto-compreensão como pessoa. Se essas pessoas estão inseridas em uma mesma sociedade política, são consideradas livres e iguais e devem ter seu comportamento regido por normas que sejam estabelecidas por um legislador democrático, no simétrico interesse de todos. As reivindicações pela igualdade de direitos, que ocorrem nas arenas políticas, constituem uma luta pelo reconhecimento da dignidade e da integridade das diferentes formas de vida. Assim, no contexto de sociedades democráticas pluralistas, como compatibilizar as diferentes formas de 122 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem vida de diversos grupos em uma legislação imparcial, que garanta a igualdade de direitos a todos os cidadãos? Cabe considerar, de início, que duas tradições modernas do pensamento político ocidental vieram a adotar enfoques diferentes e por vezes concorrentes quanto à compreensão dos direitos humanos e da democracia, e nesse sentido, adotam perspectivas diferentes no que respeita ao papel que as diversas compreensões ético-políticas dos membros da sociedade devam representar na ordem jurídica: a tradição liberal e a tradição republicana. O presente artigo apresenta, a partir da perspectiva desenvolvida pela Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habermas, de que forma as tradições liberal e republicana compreendem o papel dos discursos de auto-entendimento no processo democrático e de que maneira a teoria desenvolvida por Habermas pretende superar o excessivo peso conferido pela tradição republicana aos discursos ético-políticos. A fim de desenvolver tal empreitada, inicialmente, cumpre apresentar quais os tipos de argumentos que figuram no processo público político de formação da opinião e da vontade. Desde já adianta-se que tratam-se de argumentos pragmáticos, éticos e morais, os quais são facilmente distinguidos em termos analíticos, mas encontram-se imbricados quando se trata da discussão de questões políticas complexas. Em seguida, serão explicitadas as concepções das tradições de pensamento liberal e republicana acerca do papel que os discursos relativos ao auto-entendimento ético político dos cidadãos de uma democracia possuem nesse processo. Após a apresentação dessas concepções, representando uma tentativa de superação do excessivo peso conferido pela tradição republicana aos discursos de auto-entendimento ético dos cidadãos, o artigo põe em foco a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habermas. 2. TIPOS DE ARGUMENTOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO DEMOCRÁTICO DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO E DA VONTADE Interessa aos fins deste trabalho, apresentar os tipos de argumentos que entram em jogo dos debates públicos de formação da opinião e da vontade. Para tanto, será utilizado como referencial teórico o texto de Jürgen Habermas “Para o Uso Pragmático, Ético e Moral da Razão Prática” (1989), no qual o autor desenvolve os tipos de argumentação que fundamentam os 123 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem diferentes usos que pode-se dar à razão prática. Note-se que, aqui, entende-se razão prática a capacidade de fundamentar imperativos onde se modifique, conforme a referência à ação ou o tipo de decisões a serem tomadas, não apenas o sentido ilocutório do ‘ter de’ ou do ‘dever’ mas também o conceito de vontade, que deve poder ser determinado a cada momento por imperativos fundamentados racionalmente. (HABERMAS, 1989, p.12) Assim, argumentos pragmáticos estão relacionados com questões empíricas e questões de escolha racional, ou seja, com o que se deve fazer tendo em vista determinadas metas ou objetivos, de acordo com os valores e preferências de quem age. Habermas, explica que “a reflexão prática transcorre aqui no horizonte da racionalidade de fins, com a meta de encontrar técnicas, estratégias ou programas adequados” (1989, p.6). Essa forma argumentação está relacionada ao que Habermas chama de “agir estratégico”, em que os agentes assumem uma perspectiva egocêntrica visando à satisfação de seus próprios interesses. Argumentos éticos entram em jogo nos questionamentos referentes a quem determinada pessoa é e quem gostaria de ser. Tal argumentação se refere a valorações que dizem respeito à compreensão de si de uma pessoa, ao seu caráter, ao tipo de vida que leva, ao que considera ser bom para si ou sua comunidade. De acordo com Habermas (1989), questões éticas (...) referem-se ao télos de minha vida. Deste ponto de vista, outras pessoas, outras histórias de vida e esferas de interesse ganham significado apenas na medida em que estejam unidos ou entrelaçados à minha identidade, à minha história de vida e à minha esfera de interesse no âmbito de nossa forma de vida partilhada intersubjetivamente. Meu processo de formação completa-se num contexto de tradições que partilho com outras pessoas: minha identidade também é marcada pelas identidades coletivas, e a minha história de vida está inserida em contextos de histórias de vida que se entremeiam. Nessa medida, a vida que é boa para mim toca também as formas de vida que nos são comuns. (p. 9) A identidade do sujeito é construída, então, a partir da apropriação crítica de sua própria história de vida, bem como da forma de vida compartilhada com outros, em que o sujeito adquire consciência de seu esforço por levar 124 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem uma vida autêntica. A argumentação moral, por sua vez, reclama a imparcialidade na regulamentação de uma vida em comum. Ela é desenvolvida visando estabelecer o que é justo no simétrico interesse de todos. Essa forma de argumentação remonta a Kant e sua fórmula do imperativo categórico, segundo a qual deve-se agir de acordo com máximas que possam ser observadas como lei universal para todos2. Nesse sentido, segundo Habermas (1989), uma máxima é justa apenas se todos podem querer que ela seja seguida por cada um em situações comparáveis (...). Apenas uma máxima capaz de universalização a partir da perspectiva de todos os envolvidos vale como uma norma que pode encontrar assentimento universal, e nessa medida, merece reconhecimento, ou seja, é moralmente impositiva.” (p.11) Habermas, no entanto, dá uma interpretação intersubjetiva ao imperativo categórico kantiano, concebido por Kant, inicialmente, a partir do ponto de vista monológico do sujeito que age racionalmente. De acordo com a teoria do discurso, a construção de uma perspectiva que leve em consideração as perspectivas de todos só pode ser construída sob os pressupostos comunicativos de um discurso ampliado universalmente, no qual todos os possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos numa postura hipotética em vista das pretensões à validade de normas e modos de ação. (HABERMAS, 1989, p.15) Com isso, os próximos tópicos exporão de forma esquemática, a maneira pela qual as principais tradições do pensamento político ocidental compreendem o processo político democrático e o papel que os discursos acerca da auto-compreensão ético-política dos cidadãos representa nesse processo. 3. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO LIBERAL Os liberais, em linhas gerais, entendem que a função do processo democrático é a de programar o Estado, entendido como aparato administrativo, 2 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2002. Veja-se especialmente 2ª seção, pp. 39-91. 125 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem para que aja voltado à satisfação dos interesses da sociedade, sendo esta compreendida como uma rede de interações entre sujeitos privados, organizada sob a forma de mercados. A formação política da vontade dos cidadãos legitima o exercício do poder político reunindo os interesses privados e encaminhando-os à Administração Pública, “cuja finalidade é utilizar-se do poder político para atingir os objetivos coletivos majoritários” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 62). Nessa tradição, os direitos fundamentais, incluídos os direitos civis e os direitos de participação política, objetivam garantir aos indivíduos um espaço em que possam realizar seus interesses privados, livres de coações externas. Esses direitos garantem que os indivíduos exerçam sua autonomia privada, sob o domínio anônimo das leis, ou seja, garantem aos indivíduos esferas de liberdade individuais intocáveis. A ordem jurídica é responsável por estabelecer quais direitos cabem a cada um. Para a tradição liberal, no processo político de formação da opinião e da vontade, os agentes atuam estrategicamente, visando manter ou conquistar o poder administrativo. Ao eleger seus representantes, os eleitores estão manifestando sua preferência por determinada pessoa ou programa. (HABERMAS, 2002, pp. 278-284). Os adeptos do liberalismo “propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra, que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-se por uma concepção própria do que seja bom” (HABERMAS, 2002, p.241). Ou seja, questões relativas ao que é considerado justo, têm primazia sobre questões relativas às concepções de vida boa. Haveria aqui, entretanto, uma distinção estanque entre quais assuntos são considerados públicos ou privados, sendo que questões sobre a vida boa estariam relegadas à esfera privada e excluídas dos debates e da regulamentação pública estatal, uma vez que, por se referirem à identidade de determinada pessoa ou grupo, não seriam passíveis de uma regulamentação imparcial. Assim, nessa perspectiva, de acordo com Habermas (2002), “não se deve permitir ao Estado (...) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser garantir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus cidadãos” (p.252). Dentro da tradição liberal, interessa apresentar, de maneira sucinta, a perspectiva desenvolvida por John Rawls, que se afasta de uma concepção de sociedade dirigida ao modelo de mercado, e procura discutir o problema de como ordenar as sociedades democráticas contemporâneas de forma justa e 126 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem imparcial, levando a sério a existência de um pluralismo razoável de concepções de mundo e modos de vida. Nos termos expressos por Rawls (2000), como é possível existir uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis? Como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? (p.24) Rawls pretende apresentar uma concepção política de justiça que se aplicaria à estrutura básica de uma sociedade democrática moderna, a qual seria independente de qualquer doutrina compreensiva abrangente e cujo conteúdo estaria expresso em idéias fundamentais de uma cultura política pública democrática. Essas idéias consistem em considerar a sociedade um sistema eqüitativo de cooperação de social que se desenvolve de uma geração para outra, a qual rege-se efetivamente por uma concepção política de justiça, ou seja é uma sociedade bem-ordenada, que é composta por cidadãos considerados livres e iguais. De acordo com Cattoni de Oliveira (2005), o conteúdo de tal concepção política de justiça se caracteriza primeiro, [pel]o fato de especificar certos direitos, liberdades e oportunidades fundamentais; segundo, [pel]a prioridade especial que atribui a esses direitos, liberdades e oportunidades, especialmente frente a pretensões do bem geral e a valores perfeccionistas; e terceiro, por estabelecer meios que assegurem a todos os cidadãos as condições adequadas para o uso efetivo desses direitos liberdades e oportunidades. ( p. 103) Rawls vale-se de um procedimento de representação, um experimento mental, chamado de posição original, através do qual os cidadãos livres e iguais de uma sociedade democrática bem ordenada estabelecem em comum acordo, quais serão os termos eqüitativos da cooperação social, ou seja, com quais princípios de justiça política as partes concordariam, a fim de regular de forma neutra a estrutura básica da sociedade. Esse acordo deve ser estabelecido sob certas condições que impossibilitem a qualquer cidadão situar-se em posição mais vantajosa na negociação em relação aos outros. Na posição 127 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem original, as partes ignoram a concepção de bem e a posição social e cultural que as pessoas que elas representam endossam ou possuem, bem como sua raça, etnia ou sexo. As partes encontram-se, assim, sob as restrições de um “véu da ignorância”. (RAWLS, 2003, pp. 20-25) No entanto, a fim de que as partes possam, na posição original, escolher os princípios de justiça que regularão sua convivência eqüitativa, elas devem estar sujeitas às limitações impostas à sua racionalidade (ou à sua capacidade para ter determinada concepção de vida boa) pelo véu da ignorância. Assim, elas “abstraem” de suas concepções de mundo, de seu auto-entendimento ético-político para conseguir estabelecer quais os princípios que regularão de forma imparcial a convivência de todos. Com esse entendimento, Rawls permanece liberal, pois faz a regulamentação justa e imparcial da convivência de pessoas diferentes em sociedades democráticas depender de um procedimento que seja livre das questões acerca de concepções ético-políticas. Nesse sentido, Cattoni de Oliveira (2000) adverte acerca da concepção de “uso público da razão” (public reason), conforme desenvolvida por Rawls: ela remete a política e a esfera pública ao Estado e aos seus fóruns oficiais, excluindo de um “uso público da razão” os debates empreendidos pela sociedade civil, bem como constrange as questões públicas e políticas a uma agenda fechada e pré-definida de temas, que exclui qualquer questão que esteja relacionada às diversas formas de vida ou modos de vida presentes na sociedade. (p. 72) 4. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO REPUBLICANA Já para a tradição republicana, em linhas gerais, o processo político é entendido como constitutivo dos processos de socialização, consistindo no meio pelo qual os integrantes de comunidades solidárias surgidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e iguais. (HABERMAS, 2002, p. 278) 128 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Na tradição republicana, aparece a solidariedade, ao lado do mercado e do poder administrativo como fonte de integração social. Ela constitui uma base social independente que permite ao poder comunicativo decorrente do processo político de formação da opinião e da vontade, em meio à esfera pública de caráter político e à sociedade civil, ser integrado à práxis de entendimento mútuo dos cidadãos. Os republicanos compreendem que os direitos fundamentais são liberdades positivas, que possibilitam a construção de uma identidade3 ético-política comum através da participação dos indivíduos na formação da vontade política. Os direitos de comunicação e participação política expressam a capacidade de autodeterminação de uma coletividade política, que caracteriza a soberania popular, e dá corpo à autonomia pública dos cidadãos. O Estado existe para garantir esse processo, no qual cidadãos livres e iguais chegam a acordos e compromissos mútuos acerca de quais normas correspondem ao interesse comum. O direito, para essa tradição, deve garantir e possibilitar aos cidadãos de uma ordem jurídica objetiva terem “um convívio eqüitativo, autônomo e fundamentado sobre o respeito mútuo” (HABERMAS, 2002, p.281). A comunidade deve definir, através do procedimento democrático de sua formação, qual conjunto de leis ou de direitos é mais adequado aos costumes dessa comunidade. Embora o republicanismo compreenda o processo político de formação da opinião e da vontade, como uma práxis de autodeterminação dos cidadãos orientada para o entendimento mútuo por comunicativa, ele se desenvolve, como: um processo de auto-esclarecimento coletivo acerca de um modo ou projeto de vida que se pressupõe comum, com base num forte consenso ético. Assim, embora autores republicanos comunitaristas como Michael Walzer (1993;1997) e Charles Taylor (1997) se considerem defensores do pluralismo social e cultural, é preciso lembrar que, para eles, as decisões políticas só se justificam de forma relativa e à luz de valores comunitários prevalecentes, e nunca de forma imparcial. A justiça é, assim, 3 De acordo com Taylor (2000, p. 241), “’identidade’ designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos. A tese é de que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência, frequentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros, de modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais danos, uma real distorção, se as pessoas ou sociedades ao redor deles lhes devolverem um quadro de si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível”. 129 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem considerada tão somente como um bem coletivo dentre outros, comunitariamente interpretado. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2005, p.104). que: É esse tipo de raciocínio que leva, Walzer (2003), por exemplo, a afirmar os princípios de justiça são pluralistas na forma; que os diversos bens sociais devem ser distribuídos por motivos, segundo normas e por agentes diversos; e que toda diversidade provém das interpretações variadas dos próprios bens sociais – o inevitável produto do particularismo histórico e cultural. (p.5) Assim, na tradição republicana, a política democrática, para ser feita da maneira correta, depende das virtudes cívicas dos cidadãos orientados para o bem comum. Ou seja, os republicanos supõem que há um ethos democrático, compartilhado por todos, que orienta os cidadãos no processo político a deliberarem e decidirem de acordo com a vontade geral. Os republicanos supõem que as normas que regem a convivência conjunta desses cidadãos derivam da reflexão e buscam a realização da identidade de uma comunidade jurídica concreta. A vertente comunitarista republicana entende que uma pessoa não poderia tornar-se consciente de sua co-participação em uma forma de vida específica e, com isso, de seu vínculo social anterior, senão em virtude de uma prática política, ou seja, por meio do intercâmbio público com outros que devem suas identidades às mesmas tradições e a processos formativos semelhantes. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2005, p.106) Dessa forma, não seria possível a neutralidade ética do processo político, uma vez que não haveria um critério neutro, ou imparcial com o qual se avaliasse as questões práticas. Qualquer critério refletiria, em qualquer caso, uma determinada concepção de vida boa. Isso porque, como pessoas inseridas em determinada tradição ou cultura, como pessoas situadas no tempo e no espaço, como pessoas que efetivamente endossam determinada concepção de vida boa, não seríamos capazes de abstrair, de colocar entre parênteses esses dados ao realizamos nosso auto-governo, ao decidirmos quais as normas que 130 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem regerão nossa convivência em comum. 5. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TEORIA DO DISCURSO A Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, desenvolvida por Jürgen Habermas, é apresentada como uma teoria procedimentalista que pretende superar os modelos de democracia construídos pelas tradições liberal e republicana, baseando-se nas condições de comunicação presentes no processo político, as quais dão sustentação à pretensão de racionalidade dos resultados obtidos nesse processo. Nesse sentido, Habermas (2002) afirma que em lugar de uma disputa sobre a melhor forma de assegurar a autonomia das pessoas do direito – ora por meio das liberdades subjetivas em prol da concorrência entre as pessoas em particular, ora mediante reivindicações de benefícios garantidas para clientes de burocracias de Estados de bem-estar social -, o que se apresenta é uma concepção procedimental do direito, segundo a qual o processo democrático pode assegurar a um só tempo a autonomia privada e a pública: direitos subjetivos, cuja função é garantir (...) uma organização particular e autônoma da própria vida, não podem ser formulados de maneira adequada sem que antes os próprios atingidos possam articular e fundamentar, em discussões públicas, os aspectos relevantes para o tratamento igualitário ou desigual de casos típicos. (p.245). A Teoria do Discurso utiliza-se de elementos das teorias liberal e republicana. Da tradição republicana, permanece a centralidade do processo de formação da opinião de da vontade política, como constitutivo da autonomia pública dos cidadãos, e da tradição liberal, permanece a separação entre Estado e sociedade e a consideração dos direitos humanos universais como garantia da autonomia privada dos indivíduos. No entanto, ela entende que a racionalidade dos resultados obtidos no processo político de formação da opinião e da vontade não decorre de um auto-entendimento ético de uma comunidade concreta, como supõe a tradição republicana, nem do arranjo de interesses de indivíduos voltados para si próprios, como supõe a tradição liberal. Dessa forma, a teoria do discurso possui conotação normativa mais forte que o modelo liberal, porém mais fraca que o modelo republicano. 131 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A política deliberativa se desenvolve, para a Teoria do Discurso, a partir dos procedimentos comunicativos institucionalizados em corporações parlamentares e do fluxo comunicativo formado pela opinião pública de cunho político. Essas comunicações destituídas de sujeito – que acontecem dentro e fora do complexo parlamentar e de suas corporações – formam arenas nas quais pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de matérias relevantes para toda a sociedade e necessitadas de regulamentação. O fluxo comunicacional que serpenteia entre formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações legislativas, garante a transformação do poder produzido comunicativamente e da influência adquirida através da publicidade, em poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação. (HABERMAS, 1997, p.22) Os debates ocorridos em fóruns oficiais e na sociedade civil, que formam uma esfera pública política mais ampla, são capazes de influenciar e, de certa forma programar o exercício do poder político, uma vez que neles ocorre a percepção, a identificação e o tratamento de problemas que dizem respeito a toda a sociedade. A idéia da soberania do povo, ou de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma é absorvida por essas formas de comunicação que são institucionalizadas por meio dos princípios do Estado Democrático de Direito. Os procedimentos comunicativos institucionalizados asseguram, através dos canais de eleições gerais e de outras formas de participação específicas, que os resultados obtidos no processo político de formação da opinião e da vontade tenham a seu favor uma pretensão de racionalidade. Isso ocorre porque, nesse processo, o Direito é responsável pelo estabelecimento dos procedimentos que possibilitam a formação de consensos ou ao menos de compromissos sob condições equânimes, na medida em que suas normas tanto podem ser cumpridas por medo da sanção quanto por respeito à lei produzida no processo democrático. É bem verdade que o direito positivo só exige comportamentos legais; no entanto, ele precisa ser legítimo: embora dê margem aos motivos da obediência jurídica, deve ser constituído de maneira que também possa ser cumprido a qualquer momento por seus destinatários, pelo simples 132 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem respeito à lei. Uma ordem jurídica é legítima quando assegura por igual a autonomia de todos os cidadãos. E os cidadãos só são autônomos quando os destinatários do direito podem ao mesmo tempo entender-se a si mesmos como autores do direito. E tais autores só são livres como participantes de processos legislativos regrados de tal maneira e cumpridos sob tais formas de comunicação quando todos possam supor que regras firmadas desse modo mereçam concordância geral e motivada pela razão. (HABERMAS, 2002, p. 250-51) A pretensão de racionalidade dos resultados obtidos no processo político democrático fundamenta-se na suposição de que tais resultados fornecem uma regulamentação imparcial, justa e honesta das questões práticas. Assim, a imparcialidade dos resultados decorre da exigência de que estes sejam produzidos sob condições que garantam a coexistência em igualdade de direitos para todos, mantendo-se a integridade das diversas formas de vida; portanto, devem ser elaborados sob o ponto de vista moral do que é igualmente bom para todos ou do que é justo, levando-se em consideração o interesse de todos. Além disso, o procedimento democrático deve garantir que a regulamentação imparcial da coexistência de todos seja resultado de um acordo mútuo motivado pela razão, ou seja, que ela resulte da força do melhor argumento, e não da imposição de algum interesse mais forte. Ao julgar essas questões de justiça, procuramos uma solução imparcial, em relação à qual todos os participantes (e atingidos) não tivessem saída senão manifestar sua concordância, depois de muito ponderar sobre ela, no contexto de um diálogo isento de coerção e mantido sob condições simétricas de reconhecimento recíproco. (HABERMAS, 2002, p. 315) Em sociedades democráticas complexas e pluralistas, nas quais diversas concepções acerca da vida boa coexistem, em que os cidadãos constatam em sua vida cotidiana diferenças fundamentais entre si, como levar a diante a exigência de um sistema jurídico igualitário? De acordo com Habermas, nessas sociedades, não se poderia regrar uma situação em que haja controvérsias éticas, como no caso da eutanásia ou do aborto, através uma visão eticamente marcada por uma auto-compreensão particular, ainda que se trate da auto-compreensão da cultura majoritária. Mas deve-se procurar uma regulamentação que seja igualmente boa para 133 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem todos, de um ponto de vista moral. A solução moralmente justa, pode, no entanto, a partir da perspectiva de determinada auto-compreensão ética, ser considerada condenável. “A ‘nós’ continua se permitindo recriminar eticamente a práxis de outras pessoas, mesmo que a ela se tenha garantido o aval jurídico” (HABERMAS, 2002, p.322). Entretanto, exige-se dos cidadãos de sociedades democráticas que sejam tolerantes, a fim de garantir o respeito recíproco entre as pessoas do direito e a manutenção da integridade da identidade das diversas formas de vida coexistentes. Os participantes de discursos políticos devem ser capazes de assumir, também, a perspectiva de observadores se desejam chegar a uma solução “correta” para a regulamentação de sua convivência conjunta. As decisões acerca de como regulamentar o convívio comum são legitimadas pela regra da maioria, institucionalizada juridicamente, de tal forma que as decisões tomadas pela maioria formem a base de uma prática obrigatória. A minoria derrotada pode aceitar por certo tempo a opinião da maioria como orientação obrigatória para sua ação, desde que o processo democrático lhe reserve a possibilidade de dar continuidade à discussão interrompida, ou então retomá-la, bem como a possibilidade de dar continuidade de mudar a situação da maioria em virtude de argumentos (supostamente) melhores. (Habermas, 2002, p.327) Ademais, faz-se necessário distinguir, com Habermas, entre diferentes planos de integração ética. No plano intra-estatal, os conflitos de valor decorrem da existência de diversas formas de vida e subculturas no interior de um Estado, que embora integradas eticamente em um plano subpolítico, são dominadas por uma cultura majoritária que impede um tratamento igualitário aos membros dessas coletividades. Noutro plano, vinculando todos os cidadãos do Estado, independentemente de sua auto-compreensão ética, situa-se o que Habermas chama de “patriotismo constitucional”, que baseia-se na interpretação das reconhecidas proposições fundamentais da constituição, que são universalistas, segundo seu teor, e provém do contexto da respectiva história e tradição nacional. Pois dos cidadãos só se pode esperar uma lealdade constitucional não coagida juridicamente e assentada em motivos e estados de consciência moral, se esses mesmos cidadãos forem capazes de conceber, a partir dos próprios contextos 134 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem históricos, o Estado democrático de direito como uma conquista sua. Tal patriotismo constitucional só está livre de laivos ideológicos quando os dois planos da integração ética – a omniestatal e a intra-estatal – puderem ser mantidas separadas. Normalmente é preciso lutar em favor desse desacoplamento e opor-se com isso à cultura majoritária. Só então surge um fundamento motivacional propício às exigências de tolerância resultantes das diferenças sustentadas por via jurídica entre as comunidades eticamente integradas no interior de uma mesma nação. (HABERMAS, 2002,p.329) O patriotismo constitucional visa à construção de uma identidade política coletiva, que assegura a dignidade de uma pluralidade de formas de vida, assentando-se sob os princípios do Estado Democrático de Direito, que garantem a autonomia pública e privada dos cidadãos. Ele busca formar uma cultura política pluralista através de um processo crítico reflexivo que se apropria do passado, assumindo a responsabilidade histórica em relação a ele e assume o compromisso com a construção de um futuro renovado que se fundamenta no exercício ativo da cidadania, consubstanciada na titularidade de direitos de participação política garantidos constitucionalmente. A defesa habermasiana do patriotismo constitucional diz respeito à própria construção, ao longo do tempo, de uma identidade coletiva advinda de um processo democrático autônomo e deliberativamente constituído internamente por princípios universalistas, cujas pretensões de validade vão além, pois, de contextos culturais específicos. Em outras palavras, trata-se de uma adesão racionalmente justificável, e não somente emotiva, por parte dos cidadãos, às instituições político-constitucionais - uma lealdade política ativa e consciente à Constituição democrática (...) O patriotismo constitucional, que para Habermas envolve justamente a construção de uma cultura política pluralista com base na Constituição democrática de uma república de cidadãos livres e iguais, é expressão de uma forma de integração social, que se dá, pois, através da construção dessa identidade política pluralista e aberta, que pode ser sustentada por formas de vida e identidades ético-culturais diversas e mesmo divergentes, que convivem entre si, desde que assumam uma postura 135 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem não-fundamentalista de respeito recíproco, umas com as outras. O que, do ponto de vista particular de cada uma dessas formas de vida, significa que se pode ter os mais diversos motivos para se aderir ao universalismo subjacente ao projeto constituinte do Estado Democrático de Direito, em cada situação histórica concreta. (CATTONI DE OLIVEIRA In BARRETO, 2006, p.625) Dessa forma, embora a teoria do discurso compreenda que a legitimação da regulamentação da convivência em comum dos cidadãos de um estado democrático de direito deva se dar sob a base de princípios universalistas estabelecidos por acordo mútuo no interesse simétrico de todos, ou seja, que essa regulamentação só é legitima se assentada sob uma fundamentação moral, ela reconhece uma dimensão ética, constituída de forma aberta e plural, no Estado democrático de direito, cujo centro é formado pelo patriotismo constitucional. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na modernidade as idéias que podem fornecer uma justificação pós-convencional ao direito moderno são os direitos humanos e a soberania popular, nas quais se reflete a autonomia dos sujeitos de direito, diferenciada, por sua vez, em auto-determinação moral e em auto-realização ética. A tradição liberal coloca ênfase nos direitos humanos e sustenta que a ordem jurídica deve assegurar iguais direitos a todos, possibilitando-lhes perseguir cada um sua própria concepção de bem, sendo o processo político compreendido como o espaço onde agente privados agem pela busca ou manutenção de posições de poder. O Estado deve restringir-se a assegurar que o livre arbítrio dos indivíduos seja exercido sob o domínio impessoal das leis e, nesse sentido, não deve adotar nenhuma concepção de bem, isto é, não deve perseguir quaisquer fins coletivos, mas deve manter-se neutro face às diversas visões de mundo. Assim, como a ordem jurídica deve ser eticamente neutra, a pauta de questões públicas exclui qualquer questão relacionada à vida boa, pois como as visões de mundo são particulares, essas questões não seriam passíveis de uma regulamentação imparcial. A tradição republicana coloca a ênfase na soberania popular, que através dos direitos de participação política é entendida como a práxis de 136 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem auto-determinação dos cidadãos, voltada ao entendimento mútuo e à cooperação social. O processo político deve possibilitar a formação de um auto-entendimento coletivo acerca de uma forma de vida que se pressupõe que seja compartilhada por todos. Os republicanos supõem a existência de um ethos democrático que orienta os cidadãos a, no processo democrático, deliberarem e decidirem de acordo com uma vontade geral já existente. A Teoria do Discurso pretende superar as teorias liberal e republicana, utilizando elementos de ambas (respectivamente, a consideração por direitos humanos universais e a centralidade do processo de formação da vontade política) e combinando-os de tal maneira que a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos se pressuponham mutuamente, isto é, que a institucionalização jurídica do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida através dos direitos humanos. A Teoria do Discurso desenvolve um modelo procedimental de democracia no qual a auto-organização da comunidade jurídica esteja apoiada não no ethos de uma comunidade concreta nem no arranjo de interesses entre indivíduos voltados para si próprios, mas sim em procedimentos comunicativos institucionalizados que permitam a participação de todos os envolvidos em igualdade de direitos no processo de formação da vontade política. Do fluxo comunicativo proveniente da opinião pública e das comunicações institucionalizadas em corpos parlamentares forma-se o poder comunicativo de uma esfera pública ampla que é capaz de articular e fundamentar em discussões públicas os aspectos relevantes de problemas que dizem respeito a toda a sociedade. Os procedimentos jurídicos asseguram que nos debates políticos seja possível a formação de consensos ou, ao menos, compromissos sob condições equânimes, de forma que os resultados obtidos no processo político tenham a seu favor uma pretensão de que merecem a concordância geral racionalmente motivada. REFERÊNCIAS 1. CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000 2. CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do 137 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pensamento político moderno à luz da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v.8, n. 16, pp.87-121, 2º. sem. 2005. 3. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo Constitucional In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo e Rio de Janeiro: Unisinos e Renovar, 2006, p.623-625. 4. HABERMAS, Jürgen. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Estudos Avançados, v. 3, n. 7, pp. 4-19, set./ dez. 1989. 5. HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1997. 2v. 6. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. 7. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2002. 8. RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2000. 9. RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 10.TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. 11.WALZER, Michael. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Recebido em: 18/09/2014 Aprovado em: 28/10/2014 138 A NOVA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL: A BOA FÉ OBJETIVA E OUTROS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS CÁSSIO AUGUSTO BARROS BRANT1 RESUMO Este artigo trata da importância dos princípios que regem as relações contratuais em decorrência do dirigismo contratual. A ruptura do modelo de Estado Liberal focado na autonomia da vontade em que o Estado não intervinha nas relações privadas mostra-se superado em decorrência da quebra de paradigmas. Houve necessidade de promoção da pessoa humana e valores de cunho social são aplicados na nova sistemática jurídica. Desta forma, a interferência do poder estatal seja no âmbito legislativo, judiciário ou administrativo demonstra ser fundamental, sobretudo, nas questões patrimoniais oriundas de obrigações decorrentes de contratos. A nova diretriz em que consagra princípios como a boa-fé objetiva, a função social dos contratos e a possibilidade de revisão contratual são vistas como de fundamental importância na efetivação da busca da paridade ou equilíbrio das partes nas relações negociais. Percebe-se, portanto, o aparecimento destes princípios no ordenamento jurídico por meio de criações doutrinárias e jurisprudenciais, mas ganha o reforço explícito com o advento do Código Civil de 2002. Palavras-chaves: Dignidade da Pessoa Humana, Negócio Jurídico, Boa-fé, Contratos, Dirigismo Contratual. ABSTRACT This article deals with the importance of the principles that govern the contractual relationship due to contractual dirigisme. The breakdown of the liberal state model focused on the autonomy of the will in which the state did not intervene in private affairs is shown to overcome due to the shift in paradigm. There was need 1 Doutorando e Mestre em Direito Privado Pela PUC-MG, especialista em Direito da Empresa e da Economia pela Fundação Getúlio Vargas. Professor de Direito Civil do Centro Universitário UNA e do Instituto de Ensino Superior João Alfredo de Andrade. 139 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem for promotion of the human person and values of a social nature are applied to the new legal systematics. Thus, the interference of state power is the legislative, judicial or administrative framework proves to be essential, especially coming from the obligations arising from contracts property issues. The new guideline that establishes principles as objective good faith, the social function of contracts and the possibility of contractual review are seen as crucial in the effective pursuit of parity or balance of parties in business relationships. It is clear, therefore, the appearance of these principles in the legal system through doctrinal and jurisprudential creations, but gains the explicit reinforcement with the advent of the Civil Code of 2002. KEY WORDS: Dignity of the Human Person, Business Law, Good faith, Contracts, Contract Dirigisme. INTRODUÇÃO O negócio jurídico é a extrema manifestação da vontade de uma ou mais pessoas que desejam criar, modificar ou extinguir relações jurídicas de cunho patrimonial. De um modo geral ocorre por meio do contrato. Este é o instrumento que atravessa séculos desde as mais antigas civilizações. É por meio deste que há circulação de riquezas. A legislação brasileira não define o conceito de contrato, sendo este praticamente sendo uma definição doutrinária e, obviamente, sofre conotações e sentidos diferentes em dada época. Com uma principiologia nova a qual são preeminentes o princípio da boa fé objetiva, o princípio da função social e o princípio da revisão contratual percebe que o intuito é criar condições de equilíbrio contratual. Verifica-se que o traço marcado pela máxima contratual decorrente do Estado Liberal em que a clausula pacta sunt servanda era regra absoluta, ou seja, as partes eram obrigadas a cumprir o que estava no contrato, torna-se hoje superada. O homem passa a ser o elemento mais importante do ordenamento e associado ao princípio da dignidade da pessoa humana verifica-se que a relação contratual não implica somente o que foi estabelecido entre as partes, mas a sociedade como um todo. A carga patrimonial contida no contrato não é mais o único enfoque obrigacional, pois qualquer negócio jurídico deve estar associado à ideia de promoção da pessoa humana. A intervenção estatal nos negócios jurídicos foi de suma importância para evitar abusos nas relações contratuais, principalmente, após a primeira guerra mundial. Neste período os ideais sociais começavam a surgir como é 140 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem verificado na constituição mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919 na Alemanha que foram depois consideradas como normas de cunho social inspiradoras para outros países. A partir da intervenção estatal e o surgimento de novos princípios há uma nova diretriz contratual, baseada na promoção da dignidade humana e que conduz as relações jurídicas em limitações decorrentes do dirigismo contratual efetivado pelo Estado. Neste sentido é necessário fazer uma análise detalhada sobre os principais atributos deste novo modelo contratual e a busca da aplicação coerente dos princípios que direciona as relações jurídicas decorrentes deste acordo de vontades. 1. O QUE É PRINCÍPIO? O cenário atual em que as teorias de Dworkin e Alexy são revistas nas escolas de Direito em todo país é importante invocar as origens dos princípios, visto a necessidade de compreender o que realmente são e seu funcionamento no ordenamento jurídico. Os princípios em termos genéricos são estruturas normativas que fornecem sustentação para determinado ramo do direito ou mesmo do ordenamento jurídico. Estes podem ser positivados no ordenamento jurídico ou não. A partir dos princípios diversas normas são criadas, em decorrência de um processo lógico racional por meio do poder legislativo. Infelizmente, se vê hoje uma sistemática diversa, uma vez que o nosso poder judiciário vem editando normas, sem nenhuma atribuição legislativa para tal com base no sistema americano, entretanto, verifica-se que tal situação decorre de uma inobservância de origem de sistemas. O Brasil adota o sistema Civil Law baseado na escrita e fundamentado nas bases do direito romano, germânico e canônico, enquanto o americano deriva do Common Law que permite ao judiciário esta atribuição também. De fato há uma incongruência jurídica atribuída pelo Poder Judiciário brasileiro neste sentido. Para alguns autores não há diferença entre regras e princípios como Álvaro Ricardo Souza Cruz que entendem isso ser apenas uma formalidade cujo efeito prático seria o mesmo entre as duas: Essa dicotomia permanece nos dias atuais essencialmente pela força da autoridade de autores como Dworkin, Habermas e Alexy, dentre tantos outros. Com isso, a doutrina parte do pressuposto que existem regras e 141 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem princípios e que, portanto, é preciso buscar uma solução entre tais espécies. Assim, desde as teorias mais simplistas até a concepção mais sofisticada que procura pela distinção na cisão ontológica entre ser e ente, a doutrina procura separar regras e princípios. Eis justamente aquilo que pretendemos opor! E o fazemos lembrando nossa origem franciscana: “não se multiplicam os entes se não for necessário!”, já dizia Guilherme de Ockham. Logo, buscamos denunciar que, em nossa opinião, tal distinção se presta na atualidade tão-somente para justificar a técnica de ponderação de valores (CRUZ, 2007, p. 322) César Fiuza (2013) não tem o mesmo entendimento. Entende serem os princípios mais genéricos, assim como, não há prescrição para estes. Além disso, compreende que os princípios estão no campo abstrato enquanto as regras no fático. Não bastante, quando há antinomias entre regras, somente, se aplica uma regra possível, enquanto, há possibilidades nos princípios de atuarem mais de um. Por fim, define a distinção de regra e princípios de forma precisa: Os princípios são, portanto, normas com elevado grau de abstração, enquanto as regras têm abstração reduzida, de maneira que, tendo em vista os princípios serem extremamente indeterminados e vagos, precisam de intervenções para que possam ser interpretados e concretizados. As regras por seu turno, podem ser aplicadas diretamente ao fato, pois incontestavelmente mais precisas e objetivas (FIUZA, 2013, pág. 106) Lúcio Chalmon (2008) entende que os princípios surgem da prática reinterada constantemente e o direito tem origem nos princípios: De onde vem o Direito? Do próprio Direito, do desenrolar dessa práxis argumentativa capaz de seriamente assumir seu projeto moderno. Os princípios, pois, nada mais são que sentidos normativos interpretáveis em consonância com essa prática social em movimento constante (CHAMON JÚNIOR, 2008, p. 245). Como se percebe a praxe da sociedade acarreta na formação de princípios que devem servir de fontes norteadoras nas relações jurídicas, inclusive, nas que tangem obrigações contratuais, sendo indispensáveis para a formação do ordenamento jurídico e a base da sistemática contratual moderna. 142 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 2. DIRIGISMO CONTRATUAL O liberalismo econômico marca uma total ruptura do Estado com o seu intervencionismo na esfera privada. Os ideais dos contratos eram baseados na autonomia da vontade em que as cláusulas eram baseadas no pacta sunt servanda. Ocorre que com o crescimento do comércio e da indústria, principalmente com a Revolução Industrial no século XVIII começam a surgir contratos de massa, ou seja, de adesão em que as partes não podiam se quer questionar as cláusulas. Desta forma, pela busca de um acúmulo de riquezas pela classe dominante começam a surgir uma população miserável e oprimida. Desta forma, os abusos cometidos necessitam ser combatidos e houve necessidade de o Estado intervir para minimar os contrates causados pelo Estado Liberal. Desta forma, há um dirigismo contratual por parte do Estado que começa a moldar as formas de contratar para inibir os abusos entre os hipossuficientes da relação contratual. Há, portanto, uma ruptura de paradigmas de Estado e os ideais preconizados por Marx começam a ser difundidos e alguns países que percebem a necessidade de adotar medidas para promover o bem estar social. Nasce, nesta época, a teoria preceptiva em que os contratos não têm um fim em si mesmo e, portanto, há refletidos na sociedade. Passam a exercer uma função social. Desta forma, apresentam-se com caráter econômico e social. Assim o primeiro entende-se como atribuição de circulação de riqueza enquanto o segundo na promoção da sociedade, como forma reflexa. O contrato não está restrito somente as partes, mas toda sociedade. A autonomia da vontade preconizada pelo Estado Liberal é minimizada, portanto, e há uma nova roupagem a qual denominam de autonomia privada, sendo que a liberdade de contratar sofre algumas limitações. Há doutrinadores, como Paulo Lôbo, que entende que o modelo de dirigismo contratual possui 3 modos de ser exercido: dirigismo por meio da função legislativa, dirigismo judicial e dirigismo administrativo. O dirigismo legislativo é decorrente do Estado que consegue através da edição de normas restrições à liberdade do contrato, inclusive de construção de modelos de contratos pré-estabelecidos, haja vista, a edição do Código de Defesa do Consumidor que sofre limitações no que tange a forma de contratar. O dirigismo judicial é a forma que o estado intervém buscando a justiça contratual, por meio do Estado-Juiz, inclusive verifica-se na teoria da imprevisão em que há a clausula rebus sic stantibus em cabe ao juiz no caso de 143 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem onerosidade excessiva alterar o contrato para estabelecer o equilíbrio. O dirigismo administrativo sucede no momento que o agente público para minimizar abusos decorrentes dos contratos edita portarias, resoluções que podem adotam medidas de tabelamento de preços ou mesmo exercer uma função fiscalizadora de controle como sucede no Código de Defesa do Consumidor. Há também o dirigismo contratual privado. Este ocorre não pelo Estado, mas pelo próprio capitalismo. As empresas nacionais ou internacionais são capazes de organizar um sistema com normas próprias condizentes o ordenamento jurídico estatal a fim de promover o equilíbrio contratual. A intervenção do estado na esfera do contrato é de grande importância para restabelecer o equilíbrio e minimar os danos sofridos pela parte hipossuficiente no contrato. A partir do modelo de Estado Social percebe-se a promoção da dignidade da pessoa humana como eixo motivador do ordenamento jurídico, o que traz uma nova principiologia contratual em que a boa-fé objetiva, a função social e a revisão contratual passam a ser norteadores das relações jurídicas que versam sobre as obrigações decorrente dos contratos. Fiuza (2013) aponta bem a importância do dirigismo contratual: Toda essa revolução mexe com a principiologia do Direito Contratual, os fundamentos da vinculatividade dos contratos não podem mais se centrar exclusivamente na vontade, segundo o paradigma liberal individualista. Os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos e sociais. Nasce a teoria preceptiva. Segundo essa teoria, as obrigações oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por suas consequências econômicas e sociais. É como se a situação se desvinculasse dos sujeitos, nos dizeres de Gino Gorla (FIUZA, 2013, p. 108). Neste período, surgem as teorias revisionais dos contratos, sendo estas na verdade bem antigas oriundas do período romano como a cláusula de revisão rebus sic stantibus que confere o poder judiciário de modificar os contratos, no caso de onerosidade excessiva em razão de causas supervenientes, admitindo inclusive a possibilidade de resolução do contrato, caso não esteja este equilibrado entre as partes ou mantendo-o com a modificação ou anulação de uma de suas cláusulas que for incompatível com a boa-fé. 144 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 3. BOA FÉ OBJETIVA E BOA FÉ SUBJETIVA A boa fé subjetiva está ligada ao estado psicológico da pessoa, ou seja, se está agindo com boa intenção perante a outra pessoa de forma a não prejudicá-la. É vista num sentido interior da pessoa e, portanto, imperceptível para os outros. É a crença de algo, mas por convicções internas. Há normas no ordenamento jurídico que permitem o uso da boa-fé subjetiva como a usucapião ou anulação do negócio jurídico por erro, todavia, nos contratos tal situação não é possível. A boa fé objetiva é de ação externa. A pessoa deve demonstrar estar agindo com lealdade, honestidade e transparência com a outra parte contratante. Deve despertar a confiança no outro. É uma situação fática de demonstração de confiança mútua entre as partes que tem por fim um dever de agir das partes envolvidas. É conhecida como boa-fé conduta. Marcelo Dickstein (2010) afirma a importância disso: Relevante para este estudo é a boa-fé que se traduz na imposição de um dever de agir de acordo com os padrões socialmente recomendados de correção, lisura, lealdade, probidade, sempre com o objetivo de se evitar a frustração da confiança alheia. Também é chamada de cláusula de boa-fé lealdade e boa-fé confiança, a boa-fé objetiva impõe aos contratantes a obrigatoriedade de observar determinadas condutas, aferidas diante do caso concreto no interesse da parte contrária, visando ao adimplemento satisfatório da obrigação (Dickstein, 2010, p.19). A boa fé é um conceito é um tanto amplo e há certa dificuldade em afirmar o que seria lealdade, honestidade e transparência. Acaba forçando uma interpretação jurídica no caso concreto pelo juiz. Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas (2012) aponta esta questão na sua obra: De fato, pode ser uma dificuldade determinar com absoluta exatidão o que vem a ser um comportamento leal, honesto, correto, cabendo ao interprete estabelecer o seu sentido e conteúdo, mas o que vale é verificar o padrão objetivo da conduta, em determinado momento histórico e meio social. E é exatamente por isso, que a boa-fé objetiva é considerada uma cláusula padrão de conduta ou determina o que seja boa-fé. O seu conteúdo haverá de ser completado e definido casuisticamente pelo juiz, exigindo-lhe um trabalho a ser cumprido por meio da hermenêutica, da 145 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem interpretação (VIEGAS, 2012, p. 68). A lei não tratou de definir o que seria boa-fé, ficando a cargo da doutrina a criação de seu conceito que há dividiu em duas: subjetiva e objetiva. Ambas estão contidas no ordenamento jurídico, embora, a denominada objetiva é aplicada nos contratos previsto no Código Civil como nas relações de consumo contidas no Código de Defesa do Consumidor. Na relação contratual a boa-fé deve ser mantida na fase pré-contratual, na execução do contrato e na fase pós-contratual. A boa-fé tem papel importante na efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana porque propicia as partes, dando-lhes limites e impondo condutas a serem tomadas na busca do equilíbrio contratual. 3.1. HISTÓRICO DA BOA-FÉ OBJETIVA A origem da boa-fé remonta no direito romano em que havia a figura de Fides que era uma deusa cuja mão direita representava o símbolo da entrega da lealdade. Desta forma, a Fides provocava confiança entre os cidadãos romanos. Ocorre que com o aperfeiçoamento do comércio principalmente de romanos e estrangeiros tal situação foi sendo valorizada progressivamente no campo dos contratos. Desta forma, os contratos eram considerados de boa-fé (bona fides) quando empenhados pela palavra de tal forma que exterioriza a forma de confiança. Havia ações judiciais e os julgadores levavam em conta a vontade expressa das partes e suas expectativas tácitas e obrigava o demandado a fazer ou não fazer determinada conduta no princípio da boa-fé. Posteriormente, verifica o princípio da boa-fé no Corpus Iuris Civilis, entretanto, como estado psicológico para a usucapião, portanto, como boa-fé subjetiva. Assim também é percebido no Direito Canônico. Claramente, verifica-se que são marcadas pelo contexto da boa-fé subjetiva. O Código Napoleônico de 1804 faz referência à boa-fé objetiva, entretanto, por apresentar necessidade para sua concretização de uma poder discricionário do julgador. Isso acabou tornando-o ineficaz, visto que na época utilizava-se o método da escola da exegese que não permitia interpretações. Mas o Código Napoleônico serviu de influência para outros ordenamentos como o italiano por exemplo. Outra situação também que tornava impraticável era que os contratos eram vistos dentro da clausula de pacta sunt servada, ou seja, era só aquilo que estivesse previsto no contrato e não competia fazer 146 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem interpretações diversas. O modelo era altamente de cunho liberal focado no patrimonialismo, portanto, inviável a aplicação da boa-fé objetiva. A jurisprudência comercial da Alemanha começou a aplicar a boa-fé objetiva como regra de conduta, embora o BGB, o Código Civil alemão, não fazia nenhuma referência em relação à boa-fé objetiva. Tal situação só foi possível após a Primeira Guerra Mundial que acarretou em uma instabilidade social e houve o surgimento da Constituição de Weimar em 1919. A jurisprudência começou a interpretar a boa fé objetiva em determinado aspecto do BGB. O § 242 dizia que “o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como exija a boa-fé, consideração pelos costumes e tráfego” Alguns autores entendem que isso foi de extrema importância porque o poder judiciário da Alemanha, através destas decisões, pôde influenciar a difusão do princípio da boa-fé em outros sistemas em que havia o direito codificado. Isso sucedeu no século XX nos países como Itália, Portugal e Espanha que aderiam ao princípio da boa-fé objetiva no seu processo de recodificação da legislação civil. 3.2. Histórico da boa-fé objetiva no Brasil No Brasil, a primeira menção sobre boa-fé objetiva se deu no Código Comercial de 1850, no art. 131, I: Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras; (Brasil, Lei 556/1850) O Código Civil de 1916 não tratou do assunto. Na época, tal fato se explica pelo país passar por uma economia agrária, basicamente de lavoura. Este modelo econômico permaneceu até a Primeira Guerra Mundial. Com o aumento do comércio internacional e a abundância da mão de obra no país houve um processo de industrialização e o inchaço das cidades, o que acarretou em uma série de desigualdades e houve necessidade de aos poucos uma intervenção estatal. Neste ponto, percebe-se que o marco inicial foi por meio da criação das leis trabalhistas por Getúlio Vargas. A partir 147 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem daí, o Brasil foi paulatinamente buscando espaço para equilibrar as relações contratuais. A boa-fé até então era garantida pela jurisprudência em julgados principalmente do Estado do Rio Grande do Sul. Merece destaque o acórdão da empresa alimentícia Cica que havia confiado a compra da safra de tomates dos agricultores, o que fazia anualmente, inclusive distribuía sementes. Ocorre que negou a comprar a produção em determinado ano e houve grande prejuízo dos agricultores. O poder judiciário aplicou a boa-fé objetiva (acórdão nº 591017058 de 06 junho de 1991 da 5ª Câmara Civel do TJRS). Outra decisão importante foi do STJ que decidiu responsabilizar os estabelecimentos comerciais pelo furto de automóveis em seus estacionamentos, fundamentando na inobservância do dever de proteção que é baseado na boa-fé objetiva. O marco importante em que houve positivação do princípio da boa-fé objetiva está na Lei 8078 de 11 de setembro de 1990 que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. Na verdade, trata-se de um microssistema jurídico visto tratar em um mesmo texto jurídico normas de cunho civil, administrativo, processual, penal, etc. O art. 4º, III e o art. 51, IV são exemplos claros da boa-fé objetiva. Com o advento do Código Civil de 2002, surge o princípio da boa-fé objetiva os quais são mencionados nos art. 113, 187 e 422 que tratam do assunto. Na verdade, tal situação só veio a positivar o que a jurisprudência já considerava. Além disso, como se trata de um princípio não havia necessariamente de ter tal disposição expressa no direito brasileiro, visto que segundo Ronald Dworkin o direito é formado de princípios sendo estes expressos ou não. O que havia de dificuldade era a busca de um texto legal para apenas atender aqueles que se fixavam em uma aplicação literal de normas. A boa-fé se demonstra como princípio de grande importância nas relações contratuais, visto que os deveres de lealdade, transparência e honestidade são situações que ambas as partes devem demonstrar para a outra a fim da concretização do negócio jurídico. 3.3. FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA 3.3.1. FUNÇÃO INTERPRETATIVA A função interpretativa consiste no fato de não deixar incertezas no contrato no que tange à honestidade, lealdade e transparência. Desta forma, 148 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem havendo dúvidas sobre determinado contrato, o intérprete deve o conduzir de tal forma que não acarrete sua ilicitude ou a imoralidade, provocando um desequilíbrio na relação contratual. Desta forma, devem interpretar no sentido que fique mais próximo a boa-fé objetiva. A hermenêutica interpretativa deverá buscar um significado justo consoante à boa-fé de modo a preservar o máximo a continuidade do contrato. 3.3.2. FUNÇÃO INTERATIVA Um contrato não é formado somente de uma estrutura. Há sua estrutura primária e outra secundária que impões deveres assessórios ou anexos ao princípio da boa-fé objetiva. Estas obrigações assessórias não estão necessariamente explícitas no contrato. Entende-se que a boa-fé acaba possuindo deveres negativos e positivos. Sendo os negativos, o próprio dever de não lesar ou prejudicar a outra parte inerente da boa-fé objetiva e os positivos são as condutas ou deveres que devem ser cumpridos, independente da vontade das partes. Tem se o exemplo, do fabricante prestar informações claras sobre o produto na sua embalagem. Judith Martins Costa (1998) descreve alguns deveres anexos decorrente do princípio da boa-fé objetiva: a. Dever de cuidado, previdência e segurança; b. Dever de aviso e esclarecimento; c. Dever de informação d. Dever de prestar contas e. Dever de colaboração e cooperação f. Dever de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio do contraparte; g. Deveres de omissão e de segredo, como dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato. Sabe-se que o descumprimento destes deveres anexos acarreta uma inexecução contratual, em razão de deixar de fazer algo. Vale dizer que pelo disposto no art. 422 do Código Civil a boa-fé objetiva e os deveres anexos devem ser respeitados tanto na execução do contrato quanto na sua conclusão, inclusive na fase preliminar contratual. Os deveres anexos não se encontram em posição inferior ao princípio da boa-fé. Neste sentido, Marcelo Dickstein aponta precisamente: 149 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Os deveres anexos decorrentes da boa-fé como norma de conduta não ocupam posição de hierarquia inferior na relação contratual, de modo que sua violação poderá implicar descumprimento da própria prestação principal, ensejando a obrigação de indenizar eventuais danos causados ou até a dissolução do próprio negócio (DICKSTEIN, 2010, p. 77). 3.3.3. FUNÇÃO LIMITADORA O contrato deve se prevalecer na sua harmonia e equilíbrio, portanto, é necessária a imposição de limites para regular e estabelecer a boa-fé, servindo como um limitador da autonomia da vontade baseada no pacta sunt servanda, coibindo qualquer forma de abusos. Desta forma, alguns institutos como o venire contra factum proprium, a surrectio, a suppressio e o tu quoque são instrumentos de limitação ao desequilíbrio da função da boa-fé. 3.4. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM É de origem romana e inclusive estava no Corpus Iuris Civilis. É a teoria dos atos próprios em que há proibição de manter um comportamento contrário durante a execução do contrato. Ainda que este, a princípio, era ilegítimo, no momento que aderem as partes, ambas de boa-fé, não se pode aquele que abdicou tacitamente do direito por um comportamento continuo próprio (ato próprio), alegar prejuízo ou modificar sua postura retornando ao que foi preliminarmente combinado, mas que na prática não se efetivou. Agindo desta forma, estará frustrando terceiros, ou seja, consequentemente frustra a boa-fé e expectativa do outro. Isso fere nitidamente a confiança existente na relação contratual. Não há previsão legal no Brasil, mas a jurisprudência vem a utilizando nos tribunais. Na verdade, é utilizada em um caráter residual, quando há falta de normas especiais, capazes de resolver o caso concreto. Inclusive, é utilizada por outros institutos do direito, como o Direito Público. 3.5. SURRECTIO E SUPPRESSIO Alguns apontam que a surrectio e a suppressio seriam espécies do venire contra factum propium Surgiu na Alemanha no período de crise após a primeira guerra mundial. Havia nesta época a inflação e os tribunais acabavam 150 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem admitindo a correção monetária mesmo de contratos já cumpridos. Desta forma, chegava-se a valores exorbitantes. Inclusive os credores fingiam abandonar seus créditos para depois cobrarem, recebendo valores altíssimos devido a inflação. Os tribunais para coibir construíram na jurisprudência de que o credor não teria direito de cobrar o pagamento da correção monetária por ter demorado demais para comunicar ao devedor. Desta forma, a demora desleal no exercício de um direito violava princípio da boa-fé. Entendia que o silêncio dava entendimento que o direito não seria mais exercido. A suppressio pode ser definida como a impossibilidade do exercício de determinado direito, em razão do titular deixar de exercer durante o lapso do tempo, e, com isso, cria-se na outra parte uma expectativa de não mais se exigir. Tal fato entende ser boa-fé. Uma pessoa pactua um valor de R$ 100,00 como pagamento de aluguel, mas durante 3 (três) anos aceita receber R$ 70,00 pelos alugueis, não pode querer cobrar a diferença posteriormente. A surrectio veda o comportamento contraditório decorrente de um direito criado pela conduta constante de uma das partes conforme o estipulado e que com o decorrer do tempo consolida-se como sendo o verdadeiro pacto celebrado. Não pode depois o prejudicado alegar que deveria voltar ao estado anterior, inicialmente estipulado, mas que nunca foi cumprido. Isso fere a transparência e lealdade. É nítida violação da boa-fé. Uma operadora de cartões de crédito sempre aceitava o recebimento do pagamento atrasado sem cobrar juros, certo dia resolve não aceitar mais o atraso e cobra multa. No Brasil, no art. 330 há previsão da aplicação do instituto: “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor, relativamente previsto no contrato”. 3.5.1. REQUISITOS Os requisitos são praticamente os mesmos do venire contra factum proprium: a. Conduta inicial reiterada. Na suppressio será uma conduta omissiva e no surrectio será uma conduta comissiva. b. Confiança justificada pelo decurso do tempo c. Comportamento contraditório. É a conduta posterior que contraria a posição inicialmente adotada. d. Prejuízo causado. O fato deverá causar perdas e danos a uma das partes pelo comportamento contraditório que vinha sendo efetivado pelo decurso do tempo. 151 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem e. Identidade dos sujeitos. Podem ser pessoas naturais ou jurídicas, entretanto, devem ser as mesmas que configuram na relação jurídica originária. 3.6. TU QUOQUE A expressão significa “seria justo você”, ou “até tu Brutus”. É uma expressão de espanto diante de um comportamento jamais esperado. Proíbe que uma parte invoque em seu favor regra ou cláusula que a mesma tenha violado anteriormente. Veda que uma parte tire proveito da violação de uma norma que ela mesma violou. Não poderá invocar inadimplemento da outra parte ou colocar fim ao vínculo contratual para obter indenização. Este instituto difere do venire contra factum proprium, o surrectio e o suppreccio porque já há no agente a malícia e deslealdade. Um exemplo seria o credor que sucessivamente deixa de dar recibo do pagamento de aluguel ao locatário e numa eventual circunstância cobra deste os aluguéis não pagos porque não foram apresentados os recibos. 3.7. DIFERENÇAS ENTRE VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM, SURRECTIO, SUPRECCCIO E TU QUOQUE A surrectio e a suppreccio são espécies de venire contra factum proprium e diferem-se entre si no fato de existir uma conduta comissa ou omissiva, assim como, um prazo. No que tange ao tu quoque nesta modalidade desde o inicio já existe a malícia e má-fé da parte supostamente prejudicada para obter vantagem. 4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS A função social dos contratos decorre da quebra de paradigmas do Estado. Desta forma, não pode ser visto apenas no que se refere às partes contratantes tem reflexos na sociedade em geral. Os valores econômicos e sociais devem estar em equilíbrio. Para o professor César Fiuza, o elemento social latu sensu engloba o social propriamente dito, o caráter econômico e por fim o elemento pedagógico. O cunho social é de que o contrato não está ligado somente às partes contratantes, mas a toda a sociedade e todo contrato produz reflexos diretamente ou indiretamente na coletividade. O caráter econômico 152 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem está no sentido de que o contrato deve gerar e circular riquezas, isso é de grande importância porque traz benefícios a toda sociedade. Por fim, diz que tem o caráter pedagógico porque funciona como um mini-ordenamento jurídico e, desta forma, as partes na celebração do contrato acabam aprendendo determinadas noções de Direito. A função social nos contratos é apresentada no art. 421 do Código Civil. Entretanto, apesar de não expresso nas legislações anteriores não implica sua utilização nos diversos tribunais brasileiros. Já era consagrado pela jurisprudência. Ao ter dispositivo próprio no código dá o status e maior visibilidade. Neste sentido Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008) menciona: O princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o novo Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social (GAMA, 2008, p. 86). Desta forma, percebe-se na nova principiologia contratual a importância do princípio da função social do contrato porque busca o equilíbrio contratual e seus efeitos estão em observância à dignidade da pessoa humana, solidariedade e livre iniciativa. 5. PRINCÍPIO DA REVISÃO OU EQUILÍBRIO CONTRATUAL O princípio da revisão contratual é mais conhecido como cláusula rebus sic stantibus. Teve sua origem no Direito Canônico da idade média, por Santo Agostinho, como forma de equilíbrio contratual. Desta forma, os contratos de trato sucessivo e dependência futura deveriam ser interpretados de acordo com o que estava ocorrendo no momento de sua execução. É também conhecido como teoria da imprevisão, visto não saber o que poderia ocorrer no momento futuro da execução do contrato. É um princípio ou regra que não há necessidade de estar expresso no contrato para que haja sua aplicação. Neste sentido, Cláudia Mara de Almeida 153 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Rabelo Viegas (2012) explica melhor: Trata-se de uma regra que, não há, necessariamente, de estar prevista, expressamente, no contrato, sendo aplicável, portanto, de pleno direito, quando da ocorrência de modificações no estado de fato, em relação ao momento de formação do pacto. Que se dizer que se aplica tal regra quando, nos contratos diferidos no tempo, aqueles em que os momentos de celebração e de execução não coincidem, houver alteração superveniente das circunstâncias fáticas existentes, capazes de alterar, substancialmente, o cumprimento da obrigação (VIEGAS, 2012, p. 75). A cláusula rebus sic stantibus protege a parte do contrato que na hipótese de impossibilidade do cumprimento da obrigação assumida, em decorrência de uma mudança brusca da situação inicial, em que o contrato se formou. A revisão contratual obviamente só sucede por meio de ordem judicial nestes casos. A parte prejudicada, portanto, poderá pedir a revisão, mas se a outra parte se opor a esse pedido, caberá a extinção do contrato, por motivo alheio às partes, sem culpa e consequente indenização. Isso sucede porque ninguém pode sofrer intervenção revisional do contrato caso não queira. O poder judiciário não pode criar obrigações não pactuadas. Desta forma, caso uma das partes contratantes não concordar com a revisão judicial, deverá o juiz declarar resolvido o contrato. Sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro está no art. 478 do Código Civil. O princípio é de utilidade principalmente no contexto mundial em que há variações e fatos supervenientes que não podem ser previstos, portanto, surge como forma de equilíbrio contratual. A grande crítica é que o dispositivo legal, no momento, que uma das partes não tem interesse na revisão, só resta, portanto, a resolução do contrato, o que vai de certo modo contrário ao principio de manutenção dos contratos. Deveria o Código Civil promover alternativas que reequilibrassem o contrato, sem que houvesse só a possibilidade de resolução. CONCLUSÃO A nova principiologia contratual se deve a intervenção estatal ou dirigismo contratual em que há necessidade de equilíbrio das relações jurídicas 154 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem decorrentes do contrato. A ruptura para um modelo social em que o eixo motivador do ordenamento jurídico passa a ser a promoção da dignidade da pessoa humana faz com que os abusos cometidos pelo modelo de contrato oriundo do Estado Liberal seja rompido. O ordenamento jurídico brasileiro no que tange ao funcionamento das relações contratuais segue preceitos de ordem constitucional de solidariedade que acabam afetando na aplicação de novos princípios jurídicos como o da boa-fé objetiva, a função social dos contratos e o de revisão contratual. O Código Civil de 2002 acaba por trazer estes princípios como textos de cunho de direito privado, embora anteriormente verifica-se que todos estes princípios ainda não dispunham de textos normativos estavam sendo aplicados pela jurisprudência. De certa forma, o Código Civil atual só veio a reafirmar estes princípios norteadores das relações contratuais que simplesmente se direcionam para que haja a efetivação do equilíbrio nas relações obrigacionais em que as partes possam estar em pé de igualdade jurídica e econômica. REFERÊNCIAS 1. ALMEIDA, Gustavo Henrique de. Entre o princípio da boa-fé e o antigo princípio do neminem laedere. In:SOUZA, Adriano Stanley Rocha; ARAUJO, Marinella Machado de. Temas de Direito Civil. Belo Horizonte: D´Plácido, 2013. 2. AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo código civil brasileiro: tramitação; função social do contrato; boa-fé objetiva; teoria da imprevisão e, em especial onerosidade excessiva (laesio enormis). In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (coord). O Direito e o Tempo: embates e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 3. CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Teoria a argumentação jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes no direito moderno. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 4. COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 5. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) debate: o constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007. 6. DICKSTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: surrecio e suppressio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 7. FIUZA, César (org). Curso Avançado de Direito Civil. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 155 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 8. FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord). Direito Civil: atualidades I. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 9. FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord). Direito Civil: atualidades II: da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 10. FIUZA, César. A boa-fé como balisa hermenêutica do Direito Contratual. In: SOUZA, Adriano Stanley Rocha; ARAUJO, Marinella Machado de. Temas de Direito Civil. Belo Horizonte: D´Placido, 2013. 11. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Função Social no Direito Civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. 12. LEWICHI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. In TEPEDINO, Gustavo (coord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 13. LORENZETTI, Luiz Ricardo. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 14. NOVAIS, Alinne Arquette Leite Novais. Os novos paradigmas da teoria contratual: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da tutela do hipossuficiente. In TEPEDINO, Gustavo (coord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 15. TEPEDINO, Gustavo (coord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 16.TEPEDINO, Gustavo (coord). Temas de Direito Civil. 3ª ed.Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 17.TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (coord). O Direito e o Tempo: embates e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 18.SOUZA, Adriano Stanley Rocha; ARAUJO, Marinella Machado de. Temas de Direito Civil. Belo Horizonte: D´Placido, 2013. 19. SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Breves Reflexões sobre a eficácia atual da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. In TEPEDINO, Gustavo (coord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 20.VIEGAS, Claudia Mara de Almeida Rabelo. A revisão judicial dos contratos sob a ótica do Direito Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2012. Recebido em: 18/09/2014 Aprovado em: 28/10/2014 156 DESAFIOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL CHALLENGES TO THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC POLICY IN BRAZIL: A MANDATORY DETENTION OF CHEMICAL DEPENDENT UNDER THE PERSPECTIVE OF NEW CONSTITUTIONAL ORDER CRISTIAN KIEFER DA SILVA1 FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO 2 RESUMO O presente trabalho consiste em uma análise sistemática dos caracteres jurídicos, políticos e sociais que, na contemporaneidade, conformam um dos mecanismos centrais de atuação da Administração Pública brasileira voltada à efetivação dos Direitos Fundamentais, sobretudo, dos direitos sociais, 1 Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Processo Civil Aplicado pelo CEAJUFE/IEJA. Bacharel em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Professor Assistente e Pesquisador em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Auxiliar e Pesquisador em Direito da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor Assistente e Pesquisador em Direito do Centro Universitário UNA. Professor Adjunto e Pesquisador em Direito da Faculdade de Minas (FAMINAS-BH). Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante dos Grupos de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”. 2 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Pós-doutor pela Universidade da Califórnia-Berkeley (EUA). É professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e professor colaborador da Faculdade de Direito Milton Campos. Juiz Togado do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais e Presidente da Academia Mineira de Direito Militar. É Diretor-Adjunto da Escola Nacional da Magistratura da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). Tem atuação na área de Direito, com ênfase em Hermenêutica Jurídica, Direito Público e Filosofia do Direito. 157 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem econômicos e culturais: as políticas públicas. Nesse contexto, a internação compulsória de dependentes químicos tem sido promovida pelos estados brasileiros como uma aposta dos governos locais para a diminuição do índice de dependência química e, automaticamente, da criminalidade. A proposta visa acabar com os grandes centros de tráfico, consumo de drogas e meretrício, popularmente conhecidos como “cracolândias”, utilizando o método que consiste em internar os toxicômanos em centros de recuperação de dependência química sem sua anuência, sequer de seus familiares. A Administração Pública vem adotando o procedimento de internação compulsória, previsto na Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/2001, por analogia, já que na referida lei não há previsão expressa de aplicação para dependentes de tóxicos, mas, tão somente, para portadores de transtorno mental grave. Neste contexto, o presente trabalho irá abordar os aspectos controversos e as possíveis consequências jurídicas acerca do procedimento de internação compulsória, que utiliza a Lei nº 10.216/2001 por analogia in malam partem aos dependentes químicos, sob a ótica constitucional de proteção às liberdades dos indivíduos (Neoconstitucionalismo). Palavras-chave: internação compulsória; lei da reforma psiquiátrica; nova ordem constitucional. ABSTRACT This study consists of a systematic analysis of the legal, political and social characters that contemporarily, conform one of the central mechanisms of action of the Brazilian Public Administration focused on enforcement of Fundamental Rights, especially the social, economic and cultural rights: political public. In this context, compulsory hospitalization of drug addicts has been promoted by the Brazilian states as a bet of local governments to decrease the rate of chemical dependency and automatically crime. The proposal aimed at ending the great centers of trafficking, drug use and prostitution, popularly known as “cracolândias” using the method consisting in hospitalized drug addicts in rehabilitation centers, addiction without their consent, even their families. The government has adopted the procedure of compulsory hospitalization, under Law of Psychiatric Reform Law number 10.216/2001, by analogy, since in that law no express provision for applying for dependent toxic, but merely to carriers with severe mental illness. In this context, this paper will address the controversial aspects and about the possible legal consequences of the compulsory hospitalization procedure, 158 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem which uses the Law number 10.216/2001 by analogy in malam partem for drug addicts under the perspective of constitutional protection to the liberties of individuals (Neoconstitutionalism). Keywords: mandatory detention; law reform psychiatric; new constitutional order. 1. INTRODUÇÃO A partir do século XX, o consumo de drogas aumentou exponencialmente no Brasil, gerando para as entidades estatais um dever de intervenção efetivo. Em decorrência de tal primordialidade, em março de 2012 começou a ser implantada nos estados membros brasileiros a proposta de política pública de internação compulsória temporária de viciados em drogas ilícitas e cujo estado de dependência estivesse demasiado grave. A internação compulsória iniciou-se como uma aposta dos governos locais para a diminuição do índice de dependência química e, automaticamente, da criminalidade em determinadas regiões. Contudo, tal procedimento, como a própria denominação aponta, prescinde de consentimento do dependente químico e de seus familiares, sendo previsto no ordenamento pátrio somente na Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/01, que não prevê, expressamente, sua aplicação para casos que não sejam de pessoas portadoras de transtorno mental grave. Importante registrar que a administração pública, como fundamento legal para a prática da internação dos toxicômanos, vem aplicando a referida lei por analogia, o que é vedado tratando-se de leis restritivas de direitos, o que, pressupostamente, já aponta para a ilegalidade do procedimento. A prática é passível, também, de ser declarada inconstitucional quando analisada sob a ótica do Estado Democrático de Direito em que vivemos. A Nova Ordem Constitucional, ou Neoconstitucionalismo, prega a limitação até da aplicação de leis quando estas afrontam direitos fundamentais e axiomas de justiça (especialmente principiológicos). Destarte, considerando que sob a égide da Nova Ordem Constitucional já é possível relativizar até a aplicação de lei, o que se dirá de uma aplicação analógica em prejuízo à pessoa humana e que, ainda por cima, viola os direitos de primeira dimensão/geração (civis e políticos, como os direitos de liberdade)? 159 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem O estudo do tema proposto é, portanto, relevante, já que arbitrariedades podem estar sendo cometidas pelo Estado ao utilizar a Lei nº 10.216/01 como instrumento de promover política de saúde pública em detrimento dos preceitos e dispositivos constitucionais. 2. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O surgimento da ideia de pacto social e estado civil foi, prima facie, obra do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, em seu livro Du contrat social ou Principes du droit politique (1762). Nesta obra, o filósofo aponta que a necessidade de constituição de uma agregação social é inerente ao homem natural, que perde a capacidade de subsistência individual. Quando os homens passam a viver em forma coletiva torna-se imprescindível a figura de um “soberano”, responsável por defender e proteger os bens, direitos e interesses de todos os indivíduos na agregação. Diversas filosofias e doutrinas, no decorrer dos anos, aprimoraram a ideia inicial de Rousseau, mas não a alteraram em sua essência. A figura do “soberano” se concretizou na ficção do Estado, que se organiza a fim de exercer o seu poder sobre os “súditos”, a sociedade. Com a evolução política e jurídica verificou-se a necessidade de restrição do poder do Estado, sendo-lhe impostos limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de responsabilização. O Brasil, como República Federativa, é regido pela Constituição Federal, pilar do ordenamento jurídico brasileiro e que dispõe a cerca da estrutura do Estado, dos Poderes e dos direitos fundamentais. A não observância, por qualquer dos entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios), dos dispositivos constantes no texto constitucional torna possível a insurgência do prejudicado contra o ato, questionando sua constitucionalidade. A contextualização histórica supra foi tecida a fim de demonstrar que a ideia de que cabe ao Estado zelar pelo que convém ser o melhor aos seus súditos foi plantada no século XVI, pelo filósofo Rousseau, e enraizou-se desde então. Em decorrência disto, o Estado, muitas vezes, esquece-se de respeitar os limites impostos a sua atuação. São vários os princípios limitadores da atuação estatal, especialmente os denominados direitos de primeira dimensão, ou geração, que consiste no dever do Estado de respeitar os direitos individuais e políticos dos cidadãos. Por serem repressores do poder estatal, os direitos fundamentais de primeira geração são reconhecidos como direitos negativos, liberdades negativas 160 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ou direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado (ALEXANDRINO, 2012, p. 102). Em outras palavras, o Estado assume uma obrigação de “não fazer”, ou seja, não intervir na esfera individual de seu súdito. O direito da liberdade de ir e vir está abrangido nesta categoria de direitos fundamentais de primeira geração, cabendo ao Estado não restringi-lo, ressalvado os casos expressamente previstos (penas restritivas de liberdade, por exemplo). Verifica-se a correlação direta entre o breve histórico tecido com o objeto do presente trabalho, a saber, a discussão acerca dos estados brasileiros promoverem a chamada internação compulsória dos dependentes químicos. O estado de São Paulo, pioneiro da prática, desde a publicação da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que trouxe as figuras de internação voluntária, involuntária e compulsória, passou a discutir sobre a possibilidade de aplicação de tais internações também para toxicômanos. Os defensores da proposta argumentavam, segundo Luiz Loccoman, que um em cada dois dependentes químicos apresentava algum tipo de transtorno mental, como a depressão. Tais argumentos são inquestionavelmente de cunho político. A finalidade colimada dos defensores da utilização da Lei nº 10.216/01 por analogia era revestir de uma aparente legalidade o que algumas autoridades já queriam há muito tempo, mas que lhes é vedado pela Constituição: restringir, de uma vez, a liberdade das pessoas que se encontram em estado de extrema dependência química de drogas ilícitas, tirando-as das ruas e privando-as do convívio social. A medida, policialesca e simplista, é “vendida” pelas autoridades como uma forma de acabar com a dependência química. Pura ilusão. A mácula insanável é verificada no fato de que os governantes, agindo de tal forma, estão optando por um “caminho mais fácil”, mas sem efetividade a longo prazo. Ora, “varrer a poeira para debaixo do tapete”, passando para a sociedade uma imagem de “limpeza” do problema com as drogas, só manterá aparências, mas não trará solução. Em 2011 a internação compulsória teve vários adeptos. Em São Paulo, a prática surgiu com a parceria do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Ministério Público estadual e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio de uma Comissão Antidrogas. Há alguns estados que estão até apresentando projetos de lei estaduais para regular o procedimento. Em março de 2014, seguiu para sanção do governador de Goiás o projeto de lei estadual nº 549/12, que institui o Sistema 161 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Estadual de Internação Compulsória de Dependentes Químicos. No Rio de Janeiro, em 2013, foi aprovado projeto de lei mais tímido, prevendo a internação de dependentes químicos, desde que haja autorização da família. A Assembleia Legislativa excluiu do projeto o trecho que permitia os agentes de segurança pública também determinarem a internação de forma compulsória. No estado de Minas Gerais também já foi implantada a referida política de internação compulsória para usuários de drogas desde 2012. Conforme o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, as informações da Secretaria de Saúde do estado apontam uma média mensal de quinze internações compulsórias. Verifica-se que, inobstante a Lei nº 10.216 não ter sido publicada há mais que uma década, os estados brasileiros passaram a, efetivamente, implantar a prática da internação compulsória de 2011 em diante. Não é difícil imaginar o porquê da repentina aplicação da lei, por analogia, aos toxicômanos, afinal tais “cracolândias” mancham a imagem dos estados e, em vésperas de grandes eventos mundiais os “holofotes” estão direcionados para o Brasil. Até o presente momento o assunto não tomou alarmantes repercussões nos Tribunais. Possivelmente, por pressões políticas, aguarda-se a “poeira baixar” para que seja dado o primeiro alarde sobre o assunto, que é tão delicado. No mais, a reassunção do poder ilimitado do “Estado-soberano” em restringir a liberdade de ir e vir por meio da internação compulsória não atingiu a classe média e classe alta, mas, tão somente, a parte marginalizada da população. É possível que a arbitrariedade da prática perdure por vários anos. 3. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E A LEI Nº 10.216/2001 3.1. OS DESTINATÁRIOS DA LEI Em 06 de abril de 2001, após longo processo de discussão e tramitação no Congresso Nacional (que se estendeu por cerca de um ano), foi promulgada a Lei 10.216/01, a lei da Reforma Psiquiátrica. Pelo texto da lei, é possível verificar que os legisladores objetivavam garantir a cidadania, o respeito e individualidade dos acometidos por transtorno mental, dispondo sobre as peculiaridades de cada caso de acordo com a gravidade do transtorno. O doutrinador e magistrado Antônio Carlos Santoro Filho, ao promover uma síntese da evolução histórica do Direito brasileiro em relação aos 162 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem transtornos mentais e seus portadores, afirma que: O novo diploma legal inverteu o sistema até então vigente, pois estabeleceu a excepcionalidade da internação, somente quando os recursos extra-hospitalares não se mostrassem suficientes; a proteção dos direitos do portador de transtorno mental contra abusos no tratamento; o reconhecimento do paciente como sujeito e titular de direitos; a preocupação com o melhor tratamento , e não apenas com a “segurança” social; a reinserção gradual do usuário do sistema de saúde mental. (FILHO, 2012, p. 13). O artigo 1º da Lei da Reforma Psiquiátrica não deixa dúvidas sobre quem são os destinatários da lei: Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. (BRASIL, 2001). Pela leitura do dispositivo legal conclui-se que a lei se aplica a pessoas acometidas por doença mental, não tendo o legislador aberto margem para interpretação extensiva capaz de abranger dependentes químicos 3.2. OS TIPOS DE INTERNAÇÃO PREVISTOS E SEUS REQUISITOS LEGAIS A Lei nº 10.216/01 prevê três espécies de internação: Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; 163 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. (BRASIL, 2001). A internação voluntária, também chamada de consentida, se dá com o consentimento do usuário que, para tanto, deverá assinar uma declaração de que optou por esse regime de tratamento (artigo 7º, caput), sob pena se ser considerada involuntária. “O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do próprio paciente ou por determinação do médico assistente, quando constatada a desnecessidade de sua continuidade” (SANTORO FILHO, 2012, p. 41). A internação involuntária se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de familiar ou responsável legal. Suas peculiaridades estão dispostas no artigo 8º da Lei: Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento. § 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta. § 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento. (BRASIL, 2001). Por fim, a internação compulsória, objeto do presente artigo, é aquela determinada pela Justiça, o que pressupõe a existência de um processo, de natureza civil ou criminal já em andamento, considerando que “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988). A internação compulsória está prevista no artigo 9º da Lei, cujo teor é bem mais sucinto do que o da internação involuntária: Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos 164 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem demais internados e funcionários. (BRASIL, 2001). Nota-se que o artigo é omisso quanto aos legitimados para a propositura, apontando, somente, que cabe ao juiz determiná-la. Segundo Santoro Filho (2012, p. 42) “pode ser postulada dos poderes públicos - Estado e Município - em demanda judicial, detendo legitimidade, para tanto, independentemente de decretação de interdição do internado [...] ou mesmo Ministério Público”. Inobstante a imprescindibilidade de laudo médico para a promoção de internação, no caso de internação compulsória de dependentes químicos o Tribunal de Justiça de São Paulo tem sido tão extremo que sequer anula o ato pela falta do requisito: AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA Insurgência contra o indeferimento do pedido de antecipação dos efeitos da tutela requerida a fim de determinar a internação compulsória de pessoa portadora de perturbação mental decorrente de dependência química - Decisão fundamentada - Ausência dos requisitos autorizadores da medida -Ato de livre convicção do Magistrado - Não constatado caso de ilegalidade ou de abuso de poder - Internação compulsória é medida extrema, devendo a necessidade de seu deferimento estar amparado por provas concretas de risco à saúde do dependente químico e da segurança da família - Decisão mantida - Negado provimento ao recurso. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo nº 202129137.2014.8.26.0000. Agravante: José Carlos Oliveira. Agravados: Sheila Cristina Marcelino, Município De Limeira E Fazenda Pública Do Estado De São Paulo. Relator: Rubens Rihl. São Paulo, 03 de abril de 2014). O entendimento do citado doutrinador vem sendo aplicado não só nos casos de internação compulsória de deficientes mentais mas também tratando-se dos viciados. Como supramencionado, São Paulo, pioneiro da aplicação da lei para dependentes químicos, já tem jurisprudência sedimentada no sentido de que o Ministério Público tem legitimidade ativa para solicitar a internação compulsória de toxicômanos: AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Internação de paciente dependente de substâncias químicas - Afastadas preliminares de ilegitimidade ativa do Ministério Público e ilegitimidade passiva ad causam do Município de 165 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Morro - Agudo Direito à saúde; dever do Estado, direito do povo - Art. 196 da Constituição da República, norma programática que não constitui promessa constitucional inconsequente (STF, 2ª T., AgRE 2738344-RS, Rel. Min. Celso de Mello) - Ação julgada procedente - Sentença mantida - Recurso voluntário desprovido. A necessidade de internação compulsória em clínica especializada para tratamento de drogadição é imprescindível para a recuperação do autor, conforme documento médico e estudo social. A pretensão encontra fundamento em dispositivos constitucionais, já que a internação do dependente de substâncias químicas é medida protetiva, que busca o adequado tratamento médico, para salvaguardar à saúde e à integridade física e mental, tendo como alicerce a dignidade da pessoa humana. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação cível nº 000232459.2010.8.26.0374. Apelante: Prefeitura Municipal De Morro Agudo. Apelado: Ministério Público Do Estado De São Paulo. Relator: Ribeiro de Paula. São Paulo, 31 de agosto de 2011). Importante salientar que o caput do artigo 6º da Lei 10.216/01 prevê a indispensabilidade de laudo médico circunstanciado, que caracteriza seus motivos. Santoro Filho aponta, também, como requisito “[...] de qualquer internação a sua absoluta necessidade, ou seja, apenas será admissível quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (SANTORO FILHO, 2012, p. 36). 3.3. A FINALIDADE DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA A internação deve ser enxergada como medida excepcional, sendo indicada somente em hipóteses de perigo concreto, isto é, quando houver risco à integridade física, à vida, à saúde do próprio paciente ou terceiros (artigo 4º, Lei 10.216/01). Explica Santoro Filho que “[...] verificada a necessidade de internação, contudo, esta terá como finalidade permanente a cessação daquele estado de perigo e, em consequência, a reinserção social do paciente em seu meio”. (SANTORO FILHO, 2012, p. 35). Em suma, a internação prevista na Lei de Reforma da Psiquiatria, como medida excepcional, é necessária somente até cessar as causas de perigo 166 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem concreto, onde prevaleça a absoluta necessidade e quando as hipóteses dos demais recursos sejam insuficientes. Nota-se que, no caso de internação compulsória de toxicômanos, a internação é feita inclusive em casos de pessoas que não representam perigo algum a sociedade. O Poder Público, nestes casos, utiliza o argumento de que há “iminente risco à vida ou a saúde do próprio dependente”. Observa-se, portanto, uma deturpação do instituto da internação, prevista na lei utilizada analogicamente. 4. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL A nova dogmática constitucional, inaugurada no Brasil com a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, pós-ditadura militar, passou a centralizar a dignidade da pessoa humana como valor jurídico supremo. Em outras palavras, foi inaugurado um novo período de hermenêutica constitucional. A principal característica do novo modelo de Estado de Direito, o Democrático, foi a exacerbada tutela de direitos fundamentais, ideia advinda do constitucionalismo francês. Além disso, a nova constituição trouxe mais efetividade aos instrumentos limitadores da atuação do Estado (habeas corpus, mandado de segurança etc.), dando mais efetividade à proteção dos novos axiomas da justiça. Uadi Lammêgo Bulos define as principais características do neoconstitucionalismo como modelo axiológico de constituição normativa: [...] a constituição é marcada pela presença de princípios e de normas definidoras de direitos fundamentais; as normas e princípios constitucionais têm caráter material, positivando valores arraigados na comunidade, a exemplo da moral, dos costumes e dos hábitos (conteúdo axiológico); e as constituições também possuem denso conteúdo normativo, influenciando toda ordem jurídica e vinculando a atividade dos Poderes Públicos e dos particulares (eficácia horizontal dos direitos humanos). (BULOS, 2010, p. 81). Esta rematerialização da constituição passou a consagrar um extenso rol de direitos fundamentais. Dentre os tópicos constitucionais pertinentes ao 167 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem tema destacam-se o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, o princípio da legalidade e o da liberdade de ir e vir. 4.1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988) não é definida no texto constitucional e, por ser um conceito amplo, a doutrina diverge em defini-la. A exigência enunciada por Immanuel Kant (1724-1804), em sua obra sobre o imperativo categórico, é utilizada pelos doutrinadores como ponto de partida em conceituá-la. “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio.” (SANTORO FILHO, 2012, p. 23). Extrai-se, portanto, o conceito de dignidade humana da própria Constituição, observada como um todo. O respeito aos direitos e garantias fundamentas, por si só, sintetizam a condição de ser humano, exigindo do Poder Público e de terceiros uma respeitabilidade mínima. Quando a análise do princípio fundamental em questão se mescla com a discussão acerca da internação compulsória dos dependentes químicos, os favoráveis à prática afirmam que os toxicômanos precisam ser internados justamente porque carecem de qualquer dignidade vivendo como vivem. Dentre os simpatizantes da internação compulsória, encontra-se o criminalista e deputado estadual de São Paulo, Fernando Capez, que manifestou sua opinião em artigo na Folha de São Paulo: [...] Triunfantes em sua batalha na mente do jovem, os entorpecentes têm dragado vidas ainda incipientes ao abismo da dependência sem volta. Antecedidas, em regra, por um histórico de desprezo, maus-tratos, abandono, abuso sexual, comportamento omisso ou inadequado dos pais ou responsáveis, ou mesmo pela falta de perspectiva de projetos positivos, crianças e adolescentes perambulam pelas cracolândias da vida em busca de drogas baratas e mortais. Há uma dupla vitimização: do viciado, impelido pelo incontrolável desejo de consumo, que acaba por se tornar um delinquente, e dos inocentes, que por uma infelicidade cruzam seu caminho durante a ação criminosa. Nessa perspectiva, o uso indevido de drogas deve ser reconhecido como fator de interferência na qualidade de vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade (lei nº 11.343/2006, art. 19, inciso I). A internação involuntária do dependente que perdeu 168 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem sua capacidade de autodeterminação está autorizada pelo art. 6º, inciso II, da lei nº 10.216/2001 como meio de afastá-lo do ambiente nocivo e deletério em que convive. Tal internação é importante instrumento para sua reabilitação. Na rua, jamais se libertará da escravidão do vício. As alterações nos elementos cognitivo e volitivo retiram o livre-arbítrio. O dependente necessita de socorro, não de uma consulta à sua opinião. A internação compulsória por ordem judicial pressupõe uma ação efetiva e decidida do Estado no sentido de aumentar as vagas em clínicas públicas criadas para esse fim, sob pena de o comando legal inserto na lei nº 10.216/2001 tornar-se letra morta. Espera-se que o poder público não se porte como um mero espectador, sob o cômodo argumento do respeito ao direito de ir e vir dos dependentes químicos, mas, antes, faça prevalecer seu direito à vida. (CAPEZ, 2011). Já os doutrinadores e instituições que se posicionam contra a internação compulsória de dependentes químicos alegam que utilizar-se de uma lei inespecífica para toxicômanos, por analogia, para interná-los é que constituiria violação à dignidade da pessoa humana, posto que restaria configurado desrespeito aos direitos individuais e a liberdade daqueles cidadãos. Dentre as instituições contrárias à prática, está o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo: A internação compulsória é uma política governamental que não se configura como cuidado, mas como uma violência do Estado á população; A internação compulsória apenas contribui para a exclusão e o isolamento social sem trazer benefícios para o (a) usuário (a) de crack, álcool e outras drogas; A internação compulsória como medida única e sensacionalista, é uma clara violação dos direitos e princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Posicionamo-nos CONTRÁRIOS à Política de Internação Compulsória de usuários (as) de crack, álcool e outras drogas e reiteramos as razões para defender um tratamento COM LIBERDADE e DIGNIDADE: [...] Todos tem direitos a informações claras sobre as diferentes possibilidades terapêuticas, a escolher outras formas de tratamento e liberdade de aceitar ou recusar a proposta oferecida; 169 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem [...] As chamadas “crackolândias” são efeitos da negligência pública e hipocrisia social. A população moradora destes locais não tem casa, não tem família, está numa situação dramática nas ruas. Precisamos contribuir para buscar uma solução, que não é a de recolhimento e isolamento por meio das corporações policiais; A Internação Compulsória representa uma falsa ideia de solução mágica, que leva a sociedade a aceitas medidas sem a reflexão necessária [...]. (CONSELHO, 2014). Com propriedade, os internados em tais circunstâncias ainda são “cidadãos”, afinal, mesmo sendo dependentes e vivendo de forma precária, por conta de seu vício, não sofreram qualquer processo prévio apto a restringir-lhes a capacidade civil plena (uma interdição, por exemplo). 4.2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE A Constituição Federal de 1988 prevê o princípio da legalidade no artigo 5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Outrossim, é previsto no inciso XXXIX, do mesmo artigo, o princípio da legalidade no âmbito penal, mais relevante para a discussão sob comento. Prevê o dispositivo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Referido dispositivo é responsável pela segurança jurídica em matéria criminal e consagra a regra do nullum crimen nulla poena sine praevia lege. De uma só vez, assegura tanto o princípio da legalidade (ou reserva legal), na medida em que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, como o princípio da anterioridade, visto que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. (LENZA, 2010, p. 784). Como reiteradamente apontado, a Lei 10.216/01, em seu artigo 1º, aponta como destinatário do estatuto os portadores de transtorno mental. O vício em drogas não é transtorno mental. O viciado em crack, cocaína, maconha difere-se de um fumante por serem estas drogas ilícitas e o cigarro não mais. Poder-se-ia restringir a liberdade de um fumante sob o argumento de que põe 170 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem em risco sua própria saúde e, por isso, deve ser considerado maluco? A Lei específica sobre drogas ilícitas, usuários, traficantes etc., cujo bem jurídico tutelado também é a saúde pública, é a Lei nº 11.343/06. Nesta lei deixou de ser prevista a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário e portador para consumo próprio (artigo 28 da Lei nº 11.343/06). Vigora, na doutrina, o posicionamento de que o artigo 28 da Lei de Drogas despenalizou a conduta de porte para consumo, mas manteve seu status de crime. Passou a ser previsto, como pena para o porte de drogas para consumo pessoal, a advertência, a prestação de serviços à comunidade e o comparecimento em programa ou curso educativo. Preleciona Renato Brasileiro de Lima: Sem dúvida alguma, uma das principais novidades introduzidas pela Lei, nº 11.343/06 diz respeito à mudança da política criminal em relação ao usuário de drogas. Se, à época da vigência do art. 16 da Lei nº 6.368/76, o usuário de drogas estava sujeito a uma pena de detenção, de 6 meses a 2 anos, e pagamento de 20 a 50 dias-multa, com o advento da Lei nº 11.343/06, o preceito secundário do art. 28 passo a cominas as seguintes penas: advertência sobre os efeitos da droga, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Em substituição à linha repressiva adotada anteriormente, a nova Lei de Drogas afasta a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade ao crime de porte de drogas para consumo pessoal. Trabalha-se, em síntese, com a premissa de que o melhor caminho é o da educação, e não o da prisão, que, nesse caso, traz poucos senão nenhum benefício à saúde do indivíduo. De mais a mais, é fato que a prisão de usuários não traz nenhum benefício à sociedade. A uma porque impede que a eles seja dispensada a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz para eventual dependência química. A duas porque a imposição de pena de prisão ao usuário faz com que este passe a conviver com agentes de crimes muito mais graves, o que pode funcionar como fator de profissionalização de criminosos. (BRASILEIRO, 2014, p. 686). Se a Lei nº 11.343/06, lei específica de drogas, não previu pena de restrição de liberdade aos dependentes químicos que consomem/portam para 171 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem consumo, cabe interpretar a Lei da Reforma Psiquiátrica extensivamente para abrangê-los? Nesses termos, convém transcrever as lições de Mirabete obre o princípio nullum crimen, nulla sine praevia lege: [...] [o princípio da legalidade] assegura que não pode ser considerado crime o fato que não estiver previsto na lei e que não pode ser aplicada sanção penal que não aquela cominada abstratamente nessa regra jurídica. Ainda que o fato seja imoral, antissocial ou danoso, não há possibilidade de se imputar ao autor a prática de um crime ou aplicar-lhe uma sanção penal pela conduta praticada. (MIRABETE, 2008, p. 103). Inegavelmente tal prática afronta o princípio da legalidade, pois a internação compulsória de toxicômanos representaria uma “nova pena”, atípica e mais severa do que as previstas na própria Lei de Drogas, já que restringe a liberdade de usuários que frequentam as “crackolândias”. 4.3. O DIREITO DEAMBULATORIAL A liberdade é prevista constitucionalmente e não pode ser restringida, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas em lei, além de ser imprescindível a prévia instauração de um devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), garantindo à pessoa o contraditório e a ampla defesa. O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, assevera que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Também há previsão do direito à liberdade no artigo 7º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário. “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.” A aplicação do procedimento estipulado na Lei 10.216/01, sob o fundamento de promover uma política de saúde pública, progride como afronta ao dispositivo constitucional citado, já que a lei só menciona, como destinatários da internação contra a vontade, os doentes mentais. Igualmente, como há restrição de liberdade do cidadão, conclui-se ser passível de impetração de habeas corpus como instrumento assecuratório da 172 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem tutela da liberdade ora restringida (HC repressivo) ou em iminência de acontecer (HC preventivo). Prevê o texto constitucional, no seu artigo 5º, inciso LXVIII, que “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Pelas razões que apontam para a inconstitucionalidade do procedimento de internação compulsória utilizando-se da nº Lei 10.216/01 por analogia in malam partem, inegavelmente o mandamus poderá ser impetrado. O Superior Tribunal de Justiça já julgou habeas corpus sobre internações compulsórias de portadores de transtornos mentais, questionando o procedimento de internação da Lei 10.216/01. Na maioria dos resultados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou não conhecia o writ, por verificar supressão de instância, ou denegava a ordem, relativizando a imprescindibilidade de prévios recursos extra-hospitalares: HABEAS CORPUS - AÇÃO CIVIL DE INTERDIÇÃO CUMULADA COM INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO – VERIFICAÇÃO - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - POSSIBILIDADE NECESSIDADE DE PARECER MÉDICO E FUNDAMENTAÇÃO NA LEI 10.216/2001 - EXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE EXIGÊNCIA DE SUBMETER O PACIENTE A RECURSOS EXTRA-HOSPITALARES ANTES DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO - DISPENSA EM HIPÓTESES EXCEPCIONAIS – EXAME DE PERICULOSIDADE E INEXISTÊNCIA DE CRIME IMPLICAM DILAÇÃO PROBATÓRIA - VEDAÇÃO PELA VIA DO PRESENTE REMÉDIO HEROICO - HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO PARA DENEGAR A ORDEM. I - A questão jurídica relativa à possibilidade de internação compulsória, no âmbito da Ação Civil de Interdição, submete-se a julgamento perante os órgãos fracionários da Segunda Seção desta a Corte; II - A internação compulsória, qualquer que seja o estabelecimento escolhido ou indicado, deve ser, sempre que possível, evitada e somente empregada como último recurso, na defesa do internado e, secundariamente, da própria sociedade. III - São modalidades de internação psiquiátrica: a voluntária, que é aquela que se dá a pedido ou com o consentimento do paciente (mediante declaração assinada no momento da internação); a involuntária, que é a que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e, por fim, a 173 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem internação compulsória, determinada por ordem judicial. IV - Não há constrangimento ilegal na imposição de internação compulsória, no âmbito da Ação de Interdição, desde que baseada em parecer médico e fundamentada na Lei 10.216/2001. Observância, na espécie. V - O art. 4º da Lei nº 10.216/2001, fruto de uma concepção humanística, traduz modificação na forma de tratamento daqueles que são acometidos de transtornos mentais, evitando-se que se entregue, de plano, aquele, já doente, ao sistema de saúde mental. VI - Todavia, a ressalva da parte final do art. 4º da Lei nº 10.216/2001, dispensa a aplicação dos recursos extra-hospitalares se houver demonstração efetiva da insuficiência de tais medidas. Hipótese dos autos, ocorrência de agressividade excessiva do paciente. VII - A via estreita do habeas corpus não comporta dilação probatória, exame aprofundado de matéria fática ou nova valoração dos elementos de prova. VIII - Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário conhecido para denegar a ordem. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 130155 / SP. Impetrante: Maria Fernanda Dos Santos Elias Maglio - Defensora Pública E Outro. Impetrado: Tribunal De Justiça Do Estado De São Paulo. Relator: Ministro Massami Uyeda. Brasília: 14 de maio de 2010). Sobre o cabimento do writ, Eugênio Pacelli (2012, p. 935) é categórico ao afirmar que “dirige-se contra ato atentatório de liberdade. Para que se configure um ato atentatório ao direito de locomoção não é necessário que haja já uma ordem de prisão determinada [...]”. 5. ASPECTOS RELACIONADOS À CRIMINALIZAÇÃO DAS CONDUTAS 5.1. VEDAÇÃO DA ANALOGIA IN MALAM PARTEM No Direito Penal vigora a inadmissibilidade de interpretações ampliativas, já que o princípio da reserva legal exige que os textos legais sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogia, salvo quando in bonam parte, ou seja, quando trazem benefícios ao réu. Ainda, vige o aforismo 174 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem poenalia sunt restringenda, ou seja, interpretam-se estritamente as disposições cominadoras de pena. É vedada, também, em decorrência do princípio da reserva legal, a aplicação da analogia in malam partem no direito penal incriminador, bem como a interpretação integrativa ou ampliativa. Ao contrário, devem ser interpretadas estritamente as disposições incriminadoras e cominadoras de pena. Exige o princípio da legalidade que a lei defina abstratamente um fato, ou seja, uma conduta determinada, de modo que se possa reconhecer qual o comportamento considerado ilícito [...] É vedado o uso dos costumes e analogia para punir alguém por um fato não previsto em lei, embora seja ele semelhante a outro por ela definido. Diga-se, também, que a lei penal somente é revogada por outra lei, não sendo idôneos para tal medida os costumes, as medidas provisórias, ou decretos etc. (MIRABETE, 2008, p. 104). A restrição da liberdade de um cidadão é assunto sério e não se justifica para a promoção de políticas de saúde pública, por mais que o vício em drogas ilícitas estejam fazendo-os viver de forma imoral, antissocial e danosa a sua saúde. É princípio básico do direito penal a vedação da analogia para prejudicar o réu e utilizando a Lei da Reforma Psiquiátrica desta forma estar-se-ia criando um novo tipo penal, não previsto na Lei de Drogas, cuja sanção seria a restrição da liberdade do sujeito. A própria Lei nº 10.216/01 é clara em afirmar que a internação dos transtornados mentais é medida excepcional, que deve cessar quando o internado deixar de representar perigo a si e a terceiros. No caso de comparar da dependência química a transtornos mentais, em que momento o internado seria liberado? No momento em que seu anseio por tóxicos ilícitos acabassem? Quem determinaria o momento daquele ser solto? A interpretação analógica é processo integrativo, que consiste em fazer aplicável a norma a um caso semelhante, mas não compreendido na letra nem no pensamento da lei (NAVARRETE, 1996, p. 416). Pela literalidade da Lei nº 10.216/01 percebe-se que o legislador não intentava destiná-la, também, aos usuários de drogas. Caso o fosse, seria expresso e as respostas às indagações acima estariam abarcadas. Em suma, a analogia afronta o princípio da reserva legal (BITENCOURT, 175 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 2011, p. 176). Partindo da máxima de que a obediência às normas deve ser ampla, não há justificativa para o Estado sopesar as disposições constitucionais quando o achar conveniente. Por mais deplorável que seja o estado de alguns toxicômanos que vagam pelas ruas e por mais que representem perigo, não cabe ao poder público dizer que a internação compulsória, procedimento sério de restrição de liberdade, cabe à pessoas não abarcadas na lei. Todos tem o direito a um procedimento prévio, seja de interdição ou outro específico, contando que previsto em lei e dotado das garantias constitucionais do contraditório, ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, Constituição Federal de 1988), ampla instrução, etc. 6. A EFICÁCIA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE TOXICÔMANOS Alguns doutrinadores são veementes em duvidar da eficácia da internação compulsória de dependentes químicos. “O sistema penal é absolutamente incapaz de qualquer intervenção positiva sobre o viciado” (NILO apud LIMA, 2014); “O modelo coercitivo não dá certo. O dependente necessariamente tem que estar disposto a se tratar” (SILVEIRA FILHO apud LIMA, 2014); “A tudo, cabe acrescentar a mais que equivocada visão unidimensional, segundo a qual todo usuário de drogas é um doente, escravo da droga ou desviado. [...] para o usuário eventual, que se utiliza do entorpecente de forma módica, nada há de ‘curar’” (TORON apud LIMA, 2014). A mesma linha de pensamento, como supracitado, foi adotada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, que é contra a prática, sob o argumento de que: [...] Sem um tratamento que inclua o apoio da família e a atenção psicossocial, o isolamento promovido pela internação compulsória é violento com a pessoa que já está debilitada pelo uso abusivo. Além disso, é uma medida que não tem efeito: dados de pesquisas comprovam que 98% dos (as) que são internados contra a sua vontade voltam ao uso e, consequentemente, são reinternados (as); [...] A pesquisa mencionada pelo Conselho de Psicologia foi realizada pelo professor e psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de 176 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Orientação e Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Dartiu Silveira, convocado para parlar em audiência pública da Comissão de Constituição de Justiça do Senado sobre o tema de drogas, apontou uma série de evidências médicas contrárias ao Projeto de Lei (37/2013), que intenta promover alterações na Lei de Drogas. Contra as estatísticas, o Dr. Dráuzio Varella posiciona-se a favor da prática embasado em sua experiência empírica no tratamento de jovens dependentes em penitenciárias brasileiras: Tenho alguma experiência com internações compulsórias de usuários de crack. Infelizmente, não são internações preventivas em clínicas especializadas, mas em presídios, onde trancamos os que roubam para conseguir acesso à droga que os escravizou. Na Penitenciária Feminina, atendo meninas presas na cracolândia. Por interferência da facção que impõe suas leis na maior parte das cadeias paulistas, é proibido fumar crack. Emagrecidas e exaustas, ao chegar, elas passam dois ou três dias dormindo, as companheiras precisam acordá-las para as refeições. Depois desse período, ficam agitadas por alguns dias, e voltam à normalidade. Desde que o usuário não entre em contato com a droga, com alguém sob o efeito dela ou com os ambientes em que a consumia, é muito mais fácil ficar livre do crack do que do cigarro. A crise de abstinência insuportável que a cocaína provocaria é um mito. Perdi a conta de quantas vezes as vi dar graças a Deus por ter vindo para a cadeia, porque se continuassem na vida que levavam estariam mortas. Jamais ouvi delas os argumentos usados pelos defensores do direito de fumar pedra até morrer, em nome do livre arbítrio. Todas as experiências mundiais com a liberação de espaços públicos para o uso de drogas foram abandonadas, porque houve aumento da mortalidade. A verdade é que ninguém conhece o melhor método para tratar a dependência de crack. Muito menos eu, apesar da convivência com dependentes dessa praga há mais de 20 anos. A internação compulsória acabará com o problema? É evidente que não. 177 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Especialmente, se vier sem a criação de serviços ambulatoriais que ofereçam suporte psicológico e social para reintegrar o ex-usuário. Se esperarmos avaliar a eficácia das internações pelo número dos que ficaram livres da droga para sempre, ficaremos frustrados: é preciso entender que as recaídas fazem parte intrínseca da enfermidade. Segundo as estatísticas colhidas da pesquisa realizada pela UNIFESP, onde 170 usuários de crack foram entrevistados, 62,3% gostariam de parar de usar a droga. Cerca de 47% revelaram que se submeteriam a um tratamento de dependência química, sendo que 18,8% destes gostariam de se submeter a um tratamento que permitisse apenas diminuir o consumo. O dado mais importante é que 34% manifestaram que aceitariam que o tratamento da dependência da droga envolvesse, ocasionalmente, uma internação involuntária. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A utilização da Lei nº 10.216/01, de forma analógica, para promover a internação compulsória de dependentes químicos, afronta o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, FC/88) e a liberdade do indivíduo. Trata-se, pois, de uma pena restritiva de liberdade não prevista na Lei de Drogas, nº 11.343/06, afinal, o fato de utilizarem substâncias entorpecentes de forma mais assídua e nas regiões chamadas “crackolândias” não os enquadram na hipótese do artigo 28 da citada lei? Seria uma punição aos que consomem mais. O que o Poder Público visa, utilizando a Lei da Reforma Psiquiátrica analogicamente, é ter uma forma de restringir a liberdade daqueles toxicômanos, com uma falsa “roupagem de licitude”. A regra para se internar uma pessoa com transtorno mental é a prévia instauração de um procedimento de interdição, onde restará demonstrado a perda de sua capacidade civil. Mas a Lei nº 10.216/01 prevê, excepcionalmente, a modalidade de internação compulsória quando houver risco concreto à vida do doente mental ou de terceiros. Como visto, os Tribunais de Justiça, especialmente o TJSP, tem promovido a internação compulsória dos toxicômanos sob o argumento de que 178 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pessoas em nível extremo de dependência química, por corolário de seu vício, tem alguma doença mental, como depressão. Abre-se, portanto, o precedente de internação de qualquer pessoa acometida com depressão (que, no século XXI são várias). A simples dedução de que “por serem drogados são doentes mentais” é inaceitável e não é argumento hábil para restringir a liberdade de alguém no atual Estado Democrático de Direito. Inegavelmente as autoridades públicas e os governantes precisam unir esforços para combater o problema do consumo de drogas, que tem crescido exponencialmente no Brasil, especialmente nas grandes metrópoles. Inobstante tal necessidade, o ato deve ter respaldo legal. Não são admissíveis arbitrariedades do “Estado-soberano”. Afinal, hoje o Estado relativiza direitos fundamentais da sociedade marginalizada, amanhã poderá fazê-lo com os direitos de qualquer um. De fato, há uma multiplicidade de causas que dão ensejo à alteração dos modelos estatais vigentes. No entanto, a principal razão que leva o Estado de Direito a se transformar no Estado Constitucional é a necessidade de uma atuação substancial do Estado na sociedade, com vistas a assegurar um mínimo de direitos para que cada indivíduo possa se tornar sujeito e, a partir da garantia de sua dignidade, exercer a sua cidadania. Todavia, a própria carta Constitucional brasileira estabelece uma série de limites jurídicos, que funcionam como balizas para a atuação da Administração Pública, no sentido de evitar a omissão do administrador público para o atendimento dos escopos delineados pela Constituição. Pois bem, sem embargo disso, a partir da principiologia Constitucional, é possível o estabelecimento de outros mecanismos, tais como a vedação do retrocesso, que pode ser aplicada às ações políticas destinadas à concretização de Direitos Fundamentais, no sentido de que não pode o Estado reduzir os seus investimentos para o alcance dos seus fins constitucionais, assim como a proibição da insuficiência, a qual determina que, embora os direitos sociais sejam objeto de uma eficácia progressiva no tempo, o Estado não pode deixar de realizar políticas públicas necessárias a assegurar a promoção mínima desses direitos, consoante os parâmetros estabelecidos constitucionalmente. Cabe aqui salientar que se as autoridades enxergam a abstinência compulsória como umas das formas possíveis de política de saúde pública (inobstante as pesquisas universitárias mostrarem que não é meio eficaz de “livrar” 179 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem o indivíduo do vício), é imprescindível a criação de um procedimento específico, por lei que EXPRESSAMENTE preveja serem seus destinatários aqueles usuários em nível avançado de dependência química. A forma que, atualmente, vem sendo promovidas as internações compulsórias é inconstitucional e arbitrária. Não há legitimidade na atuação do ente estatal em restringir o direito ambulatorial dos dependentes utilizando a Lei nº 10.216/01. Por fim, para a eficácia da internação compulsória, o Poder Público deve garantir que os toxicômanos sejam internados em casas de reabilitação específicas, que ofereçam todo o suporte psicológico e social para reintegrar o indivíduo, sem fazê-los se sentirem em uma prisão. REFERÊNCIAS 1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2011. 2. BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1998. Diário Oficial da União, 05 de out. de 1998. 3. BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, 09 de abr. de 2001. 4. BRASIL. Lei nº 11.434, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Diário Oficial da União, Brasília, 24 de ago. de 2006. 5. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação cível nº 0002324-59.2010.8.26.0374. Apelante: Prefeitura Municipal De Morro Agudo. Apelado: Ministério Público Do Estado De São Paulo. Relator: Ribeiro de Paula. São Paulo, 31 de ago. de 2011. 6. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo nº 2021291-37.2014.8.26.0000. Agravante: José Carlos Oliveira. Agravados: Sheila Cristina Marcelino, Município De Limeira E Fazenda Pública Do Estado De São Paulo. Relator: Rubens Rihl. São Paulo, 03 de abr. de 2014. 7. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 130155 / SP. Impetrante: Maria Fernanda Dos Santos Elias Maglio - Defensora Pública E Outro. Impetrado: Tribunal De Justiça Do Estado De São Paulo. Relator: Ministro Massami Uyeda. Brasília: 14 de maio de 2010. 8. BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: a problemática da concretização dos direitos fundamentais sociais pela administração pública brasileira contemporânea. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/ 180 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 9. sites/default/files/anexos/31063-34052-1-PB.pdf>. Acesso em: 04 jul. 2014. 10.BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. 11.CAPEZ, Fernando. Drogas: internação compulsória e educação. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1907201108.htm>. Acesso em: 18 de abr. de 2014. 12. CONSELHOREGIONALDEPSICOLOGIADEMINASGERAIS.InternaçãoCompulsória. Disponível em: <http://www.crpmg.org.br/GeraConteudo.asp?materiaID=2948>. Acesso em: 18 de abr. de 2014. 13.CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO. Internação Compulsória. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/PORTAL/comunicacao/artes-graficas/internacao_compulsoria/internacao_compulsoria_verso.pdf>. Acesso em: 18 de abr. de 2014. 14.LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 3 ed. São Paulo: Atlas. 15.LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2010. 16.LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 2 ed. Salvador: Editora Juspodium, 2014. 17.LIMA, Flávio Augusto Fontes de. Justiça Terapêutica. In: SEMINÁRIO DROGAS: UMA PROBLEMÁTICA MULTIDISCIPLINAR. 2014, Aracajú. Disponível em: <http:// www.intranet.mp.se.gov.br/gec/userfiles/file/Apresenta%C3%A7%C3%A3o%20-%20 Dr.%20Fl%C3%A1vio%20A.%20Fontes%20de%20Lima.pdf>. Acesso em: 19 de abril de 2014. 18. LOCCOMAN, Luiz. A polêmica da internação compulsória. Disponível em: <http:// www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_polemica_da_internacao_compulsoria. html.> Acesso em: 18 de abr. de 2014. 19. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. 20. MOSSIN, Heráclito Antônio. Habeas Corpus: antecedentes históricos, hipóteses de impetração, processo, competência e recursos, modelos de petição, jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2000. 21. NAVARRETE, Miguel Polaino. Derecho Penal: fundamentos científicos Del Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1996. 22.OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2012. 23.PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 8 ed. São Paulo: Editora Método, 2012. 24. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social ou Principes du droit politique. Disponível em: <http://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/o-contrato-social.pdf>. Acesso em: 18 de abr. de 2014. 25.SANTORO FILHO, Antônio Carlos. Direito e Saúde Mental: à luz da Lei 10.216 de 06 de abril de 2001. São Paulo: Verlu Editora, 2012. 181 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 26. SILVEIRA, Dartiu Xavier da. Debate sobre o sistema nacional de políticas públicas sobre drogas e as condições de atenção aos usuários. 2013, Brasília. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=8_zUTGgL0vY>. Acesso em: 18 de abr. de 2014. 27. VARELLA, Dráuzio. Internação Compulsória. Disponível em: <http://drauziovarella. com.br/dependencia-quimica/internacao-compulsoria-2/>. Acesso em: 19 de abr. de 2014. Recebido em: 01/09/2014 Aprovado em: 20/10/2014 182 A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL: ANÁLISE DO REGIME JURÍDICO E IMPORTÂNCIA DE TAIS ENTIDADES À LUZ DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE FELIPE ALEXANDRE SANTA ANNA MUCCI DANIEL1 RESUMO O presente artigo tem como objetivo realizar breve análise do regime jurídico e do papel da Administração Indireta no Brasil, em especial no que se refere à prestação de serviços públicos. Para isso, inicia-se pela diferenciação das diversas atividades desempenhadas pelo Estado atualmente, dedicando especial atenção à distinção entre prestação de serviços públicos e exploração de atividade. Para contextualização da distinção, parte-se da análise histórica do papel do Estado, para demonstrar que o modelo de pós-modernidade não significa o afastamento do Estado nem da prestação de serviços públicos e nem da exploração de atividade econômica. Em seguida, estudam-se as formas de prestação de serviços públicos de forma descentralizada pelo Estado, com destaque para a descentralização por serviços (Administração Indireta). Busca-se, de forma breve, demonstrar as diferenças entre o regime jurídico aplicável às entidades criadas com personalidade jurídica de direito público das entidades com personalidade jurídica de direito privado, e a importância destas entidades na sociedade atual. Palavras Chave: Administração Indireta – Serviços Públicos – Regime Jurídico ABSTRACT This paper aims to conduct a brief analysis of the legal system and the role of indirect administration in Brazil particularly in regard to delivery of 1 Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Professor de Direito Administrativo e Constitucional do Centro Universitário UNA e das Faculdades FEAD. Professor da pós-graduação em Direito Público do Centro Universitário UNA, do Instituo para o Desenvolvimento Democrático – IDDE e do Centro de Atualização em Direito – CAD/FUMEC. Membro da Diretoria do Instituto Mineiro de Direito Administrativo. Advogado. 183 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem public services. To accomplish this proposal, will be made a differentiation of the various activities performed by the state today, with special attention to the distinction between public service and exploration activity . To contextualize the distinction will be made a historical analysis of the role of the state to demonstrate that the model of post- modernity does not mean lack of State or the provision of public services nor the exploitation of economic activity. Then will be analized forms of delivering public services in a decentralized manner by the state, with emphasis on decentralization by services (Indirect Administration). Will be briefly demonstrate the differences between the legal regime applicable to entities with legal personality created by public law legal entities of private law, and the importance of these organizations in today’s society . Key words: indirect public administration - public services - legal regime 1. ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS DO ESTADO PÓS-MODERNO E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE Durante muito tempo pensou-se o Estado exclusivamente como prestador de serviço público. Esta noção foi defendida pelos teóricos da Escola do Serviço Público francesa, representada por Léon Duguit, um de seus fundadores. A Escola do serviço público julgava ser possível estabelecer todas as particularidades do Direito Administrativo pelas necessidades do serviço público. (MELLO, 2005, p. 635). Todavia, logo se percebeu a necessidade de distinguir ao menos duas formas de atuação do Estado: uma, em que ele se colocava em patamar superior ao dos particulares, para exercer determinadas atividades próprias dele (serviços públicos); e outra, em que se igualava aos particulares, na prestação de atividades que não eram e não deveriam ser exclusivas dele (atividade econômica). Durante o período do Estado Liberal, o Estado afastou-se tanto da atividade de prestação de serviços públicos quanto da intervenção na economia, reduzindo sua função ao exercício do poder de polícia. Com o declínio do Estado Liberal e o surgimento do Estado Social, em especial após o final da segunda guerra mundial, o Estado ampliou seu o rol de atividades. Abandonou o papel de mero fiscalizador e regulador da sociedade, passando a intervir para garantir a prestação de serviços com vistas à promoção dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana (DI PIETRO, 2006, p. 27). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, podem ser destacadas diferentes 184 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem atividades assumidas pelo Estado a partir do surgimento do Estado Social: a. Algumas atribuições foram assumidas pelo Estado como serviços públicos, entrando na categoria de serviços públicos comerciais, industriais e sociais; para desempenhar esses serviços, o Estado passou a criar maior número de empresas estatais e fundações; b. Outras atividades, também de natureza econômica, o Estado deixou na iniciativa privada, mas passou a exercê-las a título de intervenção no domínio econômico, por meio de sociedades de economia mista, empresas públicas e outras empresas sob controle acionário do Estado; c. Finalmente, outras atividades, o Estado nem definiu como serviço público nem passou a exercer a título de intervenção no domínio econômico; ele as deixou na iniciativa privada e limitou-se a fomentá-las, por considerá-las de interesse para a coletividade. Desenvolve-se, então, o fomento como uma atividade administrativa de incentivo à iniciativa privada de interesse público. (DI PIETRO, 2006, P. 27) Em razão do expressivo aumento do rol de direitos fundamentais, especialmente os sociais, a partir do Estado Social, percebeu-se crescimento da máquina administrativa com o objetivo de atender às novas exigências da sociedade. Se antes os indivíduos não queriam a participação do Estado, a partir do Estado Social eles passam a exigir dele a prestação de atividades antes não desempenhadas. Paralelamente, o Estado se atenta também para a necessidade de intervenção em determinados setores da economia. Para Cristiana Fortini, as Constituições do México (1917 e da Alemanha (1919), buscaram reformular o modelo liberal, atribuindo ao Estado a missão de intervir no domínio econômico. Com a Constituição de Weimar insere-se o controle estatal da economia privada no quadro de uma Constituição Política, inaugurando-se a atuação estatal no mercado (FORTINI, 2008, p. 3). O agigantamento do Estado a partir do modelo de Estado Social, no entanto, não se sustentou por muito tempo. O crescimento desmesurado da máquina administrativa não foi acompanhado pelo incremento da eficiência esperada na prestação de serviços públicos (DI PIETRO, 2006, p. 32). Segundo Jacques Chevallier, a crise do Estado Social, sentida de forma mais expressiva a partir dos anos 70, ocorre no momento em que se percebe que o intervencionismo econômico do Estado criaria amarras insuportáveis 185 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ao mercado, dificultando ou até mesmo impedindo ações rápidas e intervenções necessárias. (CHEVALIER, 2009, p. 30). A partir da crítica ao “EstadoProvidência”, assiste-se na década de 1980 à implantação de política visando obstaculizar o aumento indiscriminado do Estado e o crescimento de sua intervenção na economia. Importa destacar, no entanto, que a crise do Estado Social não representa retorno ao Estado Liberal, com o afastamento do Estado da prestação de serviços públicos, como pretendem alguns. O que se percebe é uma tentativa de diminuição do aparato Estatal, sem, no entanto, reduzi-lo a mero EstadoPolícia. O modelo de Estado que visa a promoção do bem estar social e da dignidade da pessoa humana é irreversível, de modo que a sociedade continuará necessitando de políticas públicas estatais em busca de justiça social (CHEVALIER, 2009, p. 30). Neste sentido, concordamos com Paulo Roberto Ferreira Motta ao afirmar que não assiste razão àqueles que propagam a morte do serviço público a partir do declínio do Estado Social. Na verdade, esta mudança de paradigmas não significa o afastamento do Estado de suas funções precípuas. Pelo contrário, os direitos e garantias constitucionais somente podem ser alcançados a partir de atuação efetiva do Estado em prol dos cidadãos: É induvidoso, apesar disso, que o capitalismo sempre teve, para sair das crises sucessivas em que mergulhava, um poderoso aliado: o serviço público. Para comprovar a correção da assertiva, vou buscar um considerável aporte num dos mais fidalgais inimigos do serviço público que aduz ser o mesmo “merecedor de um grande elogio, já que foi um instrumento de progresso e também de socialização, especialmente nos Estados pobres aos quais permitiu melhorar a situação de todos”. Tal melhora, por certo absolutamente verdadeira, teve com ponto de partida a “técnica do serviço público” que “representou a grande revolução econômica e social dos últimos 150 anos, que deu lugar a um desenvolvimento sem precedentes da humanidade: sucessivas revoluções industriais e tecnológicas, processos de igualdade social, educação generalizada, atenção sanitária praticamente universalizada e um progresso sustentado de liberdade”. As palavras reproduzidas pertencem ao professor espanhol Gaspar Ariño Ortiz. Ao declarar morto tão nobre, poderoso e revolucionário instituto jurídico, a vontade manifesta não pode ser outra do que tentar impedir a educação generalizada, a atenção sanitária praticamente universalizada 186 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem e um progresso sustentado de liberdade, tornando, assim, ainda mais real e escancarado o caráter excludente do neoliberalismo. (MOTTA, 2009, p. 93). Assim, o modelo de Estado que surge a partir da crise do Estado Social não abandona os ideais de promoção da dignidade humana e do bem estar social. O que haverá, na verdade, é o estabelecimento de limites ao crescimento indiscriminado do Estado e da intervenção dele na esfera privada e a criação de parcerias com a sociedade para o atendimento às necessidades públicas (DI PIETRO, 2006, p. 32). No que tange ao papel do Estado na economia ganha relevo a partir de então a discussão quanto ao princípio da subsidiariedade. No âmbito de um Estado Federal, tal como o nosso, este princípio ganha duas importantes acepções. Na primeira delas, a subsidiariedade é utilizada para organização interna do aparelho do Estado, visando deixar a cargo do ente federado local (no caso do Brasil, o Município) as atribuições que ele poderá desempenhar, intervindo o ente central ou regional somente em situações indispensáveis. Ficam a cargo do ente nacional (União) e Regional (Estados-membros) as competências que não puderem ser exercidas pelo ente local (Município). Por outro lado, o princípio da subsidiariedade também deve ser utilizado para definir o papel do Estado na sociedade. Segundo este princípio, o Estado somente deverá intervir na ordem social e econômica nas hipóteses em que a iniciativa privada não puder atender aos anseios da coletividade. Não se trata de afastamento de suas funções primordiais. Trata-se de reduzi-lo ao essencial, reservando à iniciativa privada a possibilidade de encontrar alternativas de atendimento aos anseios públicos. Conforme já dissemos, há um núcleo básico inafastável de atuação do Estado, que é o único ente capaz de promover a implantação dos direitos fundamentais, sociais e difusos. No entanto, as formas como deverá ocorrer o atendimento às necessidades públicas podem e devem se ligar às parcerias com a iniciativa privada e, especialmente, deixando a cargo da sociedade o que puder ser por ela desenvolvido. Neste sentido, leciona José Alfredo de Oliveira Baracho: O princípio da subsidiariedade aplica-se em numerosos domínios, seja no administrativo ou no econômico. Apesar de sugerir uma função de suplência, convém ressaltar que compreende, também, a limitação da 187 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem intervenção de órgão ou coletividade superior. Pode ser interpretado ou utilizado como argumento para conter ou restringir a intervenção do Estado. Postula-se, necessariamente, o respeito das liberdades, dos indivíduos e dos grupos, desde que não implica determinada concepção das funções do Estado na sociedade.(BARACHO, 1995, p. 21-54). Ainda segundo o citado autor, o princípio da subsidiariedade não representa o afastamento total do Estado do domínio econômico. O intervencionismo, “ainda que nefasto”, muitas vezes se impõe. Importa, no entanto, que esta intervenção somente ocorra quando necessária, e apenas na medida certa para suprir a demanda (BARACHO, 1995, p. 21-54). Com a crise econômica vivida pelo capitalismo no ano de 2008, o Estado foi novamente chamado a intervir de forma direta na economia. Na ocasião, muitos anunciaram o retorno do Estado interventor, regulador do mercado econômico (CHEVALIER, 2009, p. 279). Jacques Chevallier, no entanto, combate tal argumento. Na verdade, a crise ocorrida, que demandou a intervenção do Estado na regulação da economia, só vem confirmar que o Estado liberal de antes, totalmente afastado da economia e que cuidava tão só da regulação social, já não existe mais. A utopia do mercado independente e autônomo está superada. É necessário um Estado atuante, presente na vida econômica e atento às necessidades públicas. Jacques Chevallier ressalta que esta participação do Estado na atividade econômica se dá com fincas no princípio da subsidiariedade. O Estado somente deve atuar na atividade econômica quando for necessário, e apenas na medida certa para restabelecer a normalidade econômica. Tão logo o fato seja solucionado, afastar-se-á novamente: Essas intervenções, presentes sob formas diversas em todos os países independentemente de seu nível de desenvolvimento e do contexto político, marcam sem nenhuma dúvida um retorno da forte presença do Estado na via econômica; no entanto, a sua dimensão deve ser mensurada com exatidão. Para começar, a intervenção maciça do Estado é sempre apresentada como provisória; trata-se de salvar os bancos da falência, de restabelecer o funcionamento do sistema de crédito, de evitar a desagregação da Economia; mas o Estado é chamado a se afastar assim que a crise tiver sido superada. Por outro lado, essa intervenção é modelada segundo as novas figuras do Estado “regulador” e do Estado “estrategista”, que foram anteriormente evocadas: ao intervir para salvar o sistema 188 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem bancário e alguns setores industriais (“Estado maqueiro”), o Estado assume precisamente uma função de regulação; e, do mesmo modo, as medidas de proteção e de suporte à Economia (tal como a criação na França em novembro de 2008 de um “fundo de investimento estratégico de interesse nacional”) inscreve-se na lógica do Estado estrategista. Sem dúvida, o contexto ideológico mudou: o apelo generalizado dirigido ao Estado evidencia bem que ele permanece investido de responsabilidades essenciais na vida social; e a vontade de definir um “novo equilíbrio entre o Estado e o mercado” (N. Sarkozy, 25 de setembro de 2008) traduz o refluxo da concepção de um mercado dotado de todas as virtudes e considerado como apto a atingir por si próprio o equilíbrio. Apesar disso, a concepção em si mesma das funções do Estado na Economia não foi substancialmente modificada. Essa constatação se impõe ainda mais porque a crise envolveu paralelamente o reforço dos vínculos de interdependência entre os Estados. (BARACHO, 2003, p. 48). A interpretação dada pelo autor nada mais é do que a expressão maior do princípio da subsidiariedade aqui exposto. O Estado, ao atuar na economia, deve limitar-se ao estritamente necessário. Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, não se deve confundir Estado subsidiário com Estado Mínimo. Neste último, o Estado tratava apenas das necessidades essenciais, e tudo o mais era relegado à iniciativa privada. Com base no princípio da subsidiariedade, no entanto, o Estado deve exercer atividades essenciais, consideradas típicas do poder público, e as que não puderem ser desempenhadas a contento pela iniciativa privada (BARACHO, 2003, p. 48). No mesmo sentido, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Devem ficar a cargo do Estado as atividades que lhes são próprias como ente soberano, consideradas indelegáveis ao particular (segurança, defesa, justiça, relações exteriores, legislação, polícia); e devem ser regidas pelo princípio da subsidiariedade as atividades sociais (educação, saúde, pesquisa, cultura, assistência) e econômicas (industriais, comerciais, financeiras), as quais o Estado só deve exercer em caráter supletivo da iniciativa privada, quando ela for deficiente. (...) No caso dos serviços públicos típicos do Estado, prevalecem os procedimentos e princípios próprios do regime jurídico administrativo ou de 189 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem direito público; no caso das atividades sociais e das atividades econômicas exercidas subsidiariamente, o Estado deve procurar formas mais flexíveis de atuação, somente possíveis pela aplicação predominante do direito privado, derrogado parcialmente pelo direito público apenas no que seja essencial para assegurar o cumprimento dos fins estatais. (DI PIETRO, 2006, p. 38). Assim, o Estado pós-moderno, embora tenha reforçado seu caráter subsidiário em relação ao mercado econômico, não se presta a afastá-lo de sua atividade principal, o serviço público. Ao contrário do que sustentam alguns, a obrigação do Estado de prestar serviços públicos não se extingue e nem pode se extinguir com o fim do Estado Social, já que ela é a única forma possível de alcançar os preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, especialmente a promoção da dignidade humana. 2. DIFERENÇAS ENTRE SERVIÇO PÚBLICO E ATIVIDADE ECONÔMICA Uma das distinções conceituais mais tormentosa os com que trabalha o Direito Administrativo é a definição de serviço público e atividade econômica. Tal como assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, a distinção não é de fácil percepção: A noção de “atividade econômica” certamente não é rigorosa; não se inclui entre os conceitos chamados teoréticos, determinados. Antes, encarta-se entre os que são denominados conceitos práticos, fluidos, elásticos, imprecisos ou indeterminados. Sem embargo, como apropriadamente observam os especialistas no tema do Direito e Linguagem, embora tais conceitos comportem uma faixa de incerteza, é certo, entretanto, que existe uma zona de certeza negativa quanto à aplicabilidade deles e uma zona de certeza negativa quanto à não aplicabilidade deles. Vale dizer, em inúmeros casos ter-se-á certeza de que induvidosamente se estará perante “atividade econômica”, tanto como, em inúmeros outros, induvidosamente, não se estará perante “atividade econômica” (MELLO, 2005, p. 656). Não obstante as dificuldades da definição de conceitos rígidos, já não 190 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pairam mais dúvidas de que nem tudo que o Estado faz é serviço público. Há, na verdade, uma plêiade de atividades desempenhadas pelo Estado, dentre as quais se encontra o serviço público. A existência de regimes jurídicos diferentes para atividades desempenhadas por uma mesma pessoa (o Estado) decorre do fato de que ao intervir na economia o Estado atua em igualdade de condições com os particulares. No entanto, ao exercer suas atribuições típicas, o faz munido das prerrogativas e privilégios próprios da Administração Pública (MEIRELLES, 1982, p. 1 a 6). Daí a necessidade de se distinguir as diversas atividades do Estado (públicas e privadas). Alguns autores, notadamente Eros Roberto Grau (GRAU, 2000, p. 252) e Luciano Ferraz (FERRAZ, 2008, p. 271-280) entendem que há no texto constitucional uma atividade econômica em sentido amplo (gênero), da qual decorrem duas espécies: o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. O serviço público atividade econômica em sentido amplo, que o Estado retirou das mãos da iniciativa privada, elegendo como um valor tão importante para a sociedade brasileira que deve ser regido pelo regime jurídico administrativo, sendo prestado diretamente pelo Estado ou por quem receber dele delegação específica. Há países que escolhem muitas atividades econômicas como serviços públicos e outros que escolhem poucas. Tudo dependerá da escolha constitucional e legal, já que não há um conceito universal de serviço público. A doutrina pátria majoritária opta por conceituar serviços públicos e atividade econômica distinguindo os serviços públicos de três outras atividades estatais: obra pública, poder de polícia e exploração da atividade econômica. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, conceitua-se serviço público: (...) toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo. (MELLO, 2006, p. 634) É por meio da prestação de serviços públicos à população que o Estado buscará alcançar os princípios estabelecidos pela Constituição à qual ele se 191 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem vincula. Portanto, é o sistema normativo que estabelecerá quais as atividades que deverão ser prestadas pelo Estado como serviço público, já que somente a legislação poderá outorgar caráter público a determinado serviço prestado à coletividade. É a legislação, especialmente pela via constitucional, que estabelece quais serviços são essenciais para a população daquele local. Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello adverte que os serviços públicos são estabelecidos por força normativa, respeitando-se sempre os limites constitucionais (MELLO, 2005, p. 654). No Brasil, o princípio da livre iniciativa impede que algumas atividades, constitucionalmente outorgadas ao mercado, sejam qualificadas como serviços públicos. É esta a expressão maior do princípio da subsidiariedade que, conforme exposto, estabelece a interferência do Estado apenas quando a sociedade não puder atender às demandas sociais por seus próprios meios. Não obstante o conceito utilizado por Celso Antônio Bandeira de Mello, a doutrina brasileira diferencia duas formas de conceituar o serviço público: ampla ou restrita. O conceito empregado pelo citado autor é restrito, na medida em que, além de separá-lo da atividade econômica prestada pelo Estado, também o distingue daquelas atividades exercidas pelo Estado sob o regime de direito público: poder de polícia, fomento e intervenção. De outro modo, Hely Lopes Meirelles emprega conceituação mais ampla, definindo serviço público como “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado.” (MEIRELLES, 2010, p. 351). Ao conceituar serviço público, Hely Lopes Meirelles também reconhece a impossibilidade de se elencar um rol taxativo do que vem a ser serviço público, já que este varia conforme as necessidades de dada sociedade. É a legislação que definirá o que vem a ser ou não serviço público. Também José Cretella Júnior adota conceito amplo de serviço público, sendo “toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para a satisfação das necessidades públicas mediante procedimento típico do direito público.” (CRETELLA JÚNIOR, 1980, p. 55). Ao analisar a dupla forma de conceituação do serviço público, Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que não há como dizer se um conceito está mais correto que outro. Cada qual possui gradação específica, incluindo mais ou menos atividades do Estado. Para ela, serviço público é “Toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio 192 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem dos seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.” (DI PIETRO, 2007, p. 90). Importa ressaltar que há diversas hipóteses em que a legislação e a Constituição da República de 1988 tratam o conceito de serviço público de forma ampla, não se enquadrando nas estreitas vias do conceito empregado pelo citado autor. Segundo o conceito restrito de serviço público utilizado por Celso Antõnio Bandeira de Mello, além do serviço público há outras atividades que dele se diferenciam: obra pública, poder de polícia e fomento. Ao realizar a comparação entre obra pública e serviço público, Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que a obra tem concretude e, “uma vez realizada, independe de uma prestação, é captada diretamente”, enquanto o serviço “é a própria operação ensejadora do desfrute”. No que tange ao poder de polícia, a diferença é ainda mais nítida. Se o Estado, quando presta serviço público, pretende oferecer uma comodidade à sociedade, com o poder de polícia, ao contrário, ele tem o dever de limitar “o exercício da liberdade e da propriedade dos administrados, a fim de compatibilizá-las com o bem estar-social.” Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello: Enquanto o serviço público visa a ofertar ao administrado uma utilidade, ampliando, assim, o seu desfrute de comodidades, mediante prestações feitas em prol de cada qual, o poder de polícia, inversamente (conquanto para a proteção do interesse de todos), visa a restringir, limitar, condicionar, as possibilidades de sua atuação livre, exatamente para que seja possível um bom convívio social. Então, a polícia administrativa constitui-se em uma atividade orientada para a contenção dos comportamentos dos administrados, ao passo que o serviço público, muito ao contrário, orienta-se para a atribuição aos administrados de comodidades e utilidades materiais. (MELLO, 2005, p. 647). Conforme já ressaltamos, em determinados momentos a legislação não adota a conceituação restrita de serviços públicos, outorgando ao Estado, sob a roupagem de serviço público, matérias que melhor se enquadrariam como poder de polícia, se considerarmos o conceito restrito de Celso Antônio Bandeira de Mello. É o caso específico do Decreto-Lei n.º 6.017, de 2007, que regulamentou a Lei n.º 11.107/2005. Ao tratar dos objetivos dos Consórcios 193 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Públicos e convênios de cooperação, estabelece, em seu art. 2.º, determinadas atividades que não se enquadram no conceito restrito de serviço público, tal como estabelecido pelo citado autor. É o caso dos objetivos consorciais ou conveniais de proteção ao meio ambiente (inciso VI), proteção ao patrimônio urbanístico, paisagístico ou turístico comum (inciso IX), entre outros. Adotando-se o conceito restrito de serviços público, ambas as hipóteses se enquadram como poder de polícia. Ocorre que o art. 241 da Constituição da República, cuja regulamentação é feita pelos citados instrumentos normativos, ao tratar dos Consórcios e convênios estabelece como objetivo a “gestão associada de serviços públicos”. Adotando-se interpretação sistemática, pode-se dizer que o legislador utilizou o conceito amplo de serviço público, no qual estão abarcados os conceitos de obra pública e poder de polícia, tratados de forma apartada pelo citado jurista. Portanto, voltamos a afirmar que a definição do que vem a ser ou não serviço público é conforme estabelecido pelo ordenamento jurídico. No entanto, ainda que se adote o conceito amplo de serviço público, pelo menos duas atividades estatais podem ser claramente diferenciadas, já que enquadradas em regimes jurídicos diferentes: os serviços públicos, acima conceituados, regidos pelo Direito Público (regime jurídico administrativo) e a atividade econômica, subsidiária, regida pelo Direito Privado (com normas derrogadoras de Direito Público). Portanto, não se confundem serviço público e atuação do Estado na atividade econômica. As atividades que, por força constitucional, foram outorgadas à iniciativa privada, e às quais o Estado se dedicará apenas em caráter subsidiário (princípio da subsidiariedade), são consideradas atividades econômicas, ao passo que aquelas às quais a Constituição outorgou caráter público serão consideradas serviços públicos. (MEIRELLES, 1982, p. 1-6). Tal como já explicitamos no início do presente capítulo, o princípio da subsidiariedade rege a atuação do Estado na atividade econômica. O Estado deve se dedicar àquelas atividades que são precipuamente destinadas a ele, especialmente as voltadas à promoção da dignidade humana e do bem estar social. As atividades econômicas, quando necessárias, serão assumidas supletivamente, e apenas na medida certa para atender às expectativas sociais, sem retirar da iniciativa privada a livre concorrência que lhe foi outorgada por norma constitucional. No momento em que atua na esfera econômica, o Estado perde parte de suas prerrogativas (e também de algumas sujeições), adotando regime 194 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem jurídico diferenciado para que não esteja em desigualdade com os demais agentes do mercado. Objetiva-se, com isso, admitir a interferência do Estado na economia, sem, contudo, ferir princípios a ela aplicáveis, especialmente o da livre concorrência. 3. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA A Constituição de 1988 estabeleceu, em seu art. 1.º, como um dos objetivos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Também seu art. 3.º, ao tratar dos objetivos fundamentais, elevou a tal categoria a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), bem como a promoção do bem de todos (inciso IV). Para que esses objetivos fundamentais da República sejam alcançados, é necessária a atuação direta do Estado na vida dos cidadãos, prestando serviços públicos e lhes garantindo vida digna. Por isso, a Constituição delegou ao Estado o dever da prestação de serviços públicos por meio do art. 175, inserido no Título que trata da ordem econômica e financeira. Não o fez sem antes deixar claro que no caso das atividades econômicas, a atuação do Estado será subsidiária ao mercado (art. 173). Adotou, portanto, expressamente o princípio da subsidiariedade em matéria de atuação do Estado na ordem econômica. A partir dos referidos dispositivos legais, é possível perceber que a Constituição adotou a distinção entre serviço público e atividade econômica. O primeiro é dever do Estado, e sua prestação à população é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, que necessita da prestação dos serviços públicos para sua plena eficácia. A exploração de atividade econômica pelo Estado, por outro lado, é subsidiária. A Constituição não estabeleceu, de forma taxativa, quais são os serviços por ela considerados públicos. Como já dissemos, também não há um conceito universal de serviço público. Há atividades que ela própria coloca como sendo competência da Administração Pública, elevando-as à condição de serviço público, e outras que a legislação ordinária o fará. Neste mister, como não há uma clara distinção entre o que é serviço público e o que é atividade econômica, deve-se ter como referência o grau de imprescindibilidade daquela determinada atividade para a população ao qualificá-la como pública (HARGER, 2007, p. 49). 195 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Assim, foi a legislação ordinária, precipuamente, que ficou encarregada de estabelecer o rol de serviços públicos dos quais o Estado deterá a titularidade. No entanto, esta titularidade não significa exclusividade na prestação direta destes serviços. O Estado poderá, nos termos do art. 175, prestar tais serviços públicos diretamente (seja pela própria Administração Direta ou mediante criação de nova pessoa jurídica), ou mediante delegação a outrem (concessão ou permissão de serviços). Na verdade, embora o art. 175 permita a prestação indireta de serviços públicos por delegação, a Constituição estabelece, em outros dispositivos, um núcleo básico de serviços públicos que obrigatoriamente devem ser prestados pelo Estado. É que diferentemente da atividade econômica, em que o Estado obedece ao princípio da subsidiariedade, no caso dos serviços públicos o Estado está obrigado a agir. Conforme já ressaltamos, com o declínio do Estado Social, não houve regresso ao Estado Mínimo. O Estado Social Democrático de Direito tem como um de seus requisitos a garantia da dignidade humana, e os arts. 1º e 3º da Constituição estabeleceram esta regra de forma clara para o Estado Brasileiro. Assim, ele não pode se eximir totalmente da prestação de serviços públicos, entregando tal atividade para a iniciativa privada. Ele está obrigado, por força constitucional, a intervir diretamente na sociedade, prestando serviços de modo a garantir vida digna aos cidadãos. É neste sentido que Celso Antônio Bandeira de Mello divide a prestação de serviços públicos em quatro categorias (MELLO, 2006, p. 651). No primeiro caso, os serviços públicos sequer podem ser compartilhados com a iniciativa privada, que são os que o autor denomina de prestação obrigatória e exclusiva, identificando entre eles os de serviço postal e correio aéreo nacional (art. 21, X da Constituição da República de 1988). Já os serviços de radiofusão sonora ou de sons e imagens, conforme previsto no art. 223 da Constituição, o Estado deverá prestar diretamente (dever constitucional), e ainda, deverá concedê-los ou permiti-los, nos termos de regulamentação legal. Estes são os chamados serviços de prestação obrigatória do Estado, em que ele é também obrigado a outorgar em concessão a terceiros. Na terceira categoria está a prestação de serviços públicos que são livres à iniciativa privada, mas cuja regulação não poderá ser totalmente delegada ao mercado. Nesta categoria, estão os serviços públicos que mais se aproximam da implantação dos direitos individuais e sociais, razão pela qual a Constituição decidiu incrementá-los com duas frentes de atuação: delegá-los à livre iniciativa privada e obrigar o Estado, paralelamente, a prestá-los. São 196 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem eles os serviços públicos ligados à educação (art. 205 e 209), saúde (art. 196 e 199), previdência social (art. 201 e 202), assistência social (art. 203 e 204) e de radiofusão sonora e de sons e imagens (art. 223). Conforme se pode observar, a Constituição estipula direitos sociais como categorias de serviços públicos a serem prestados pelo Estado, confirmando a constatação de que o fim do Estado Social não representou retorno ao Estado Mínimo. Trata-se, isto sim, de um Estado subsidiário, que atua nas esferas fundamentais de promoção da dignidade da pessoa humana. Os direitos fundamentais e sociais representam área de atuação da qual o Estado não pode se eximir, sob pena de ferir os objetivos estabelecidos pela Constituição (arts. 1º e 3º). Por fim, encontram-se os serviços qualificados como públicos que são entregues à iniciativa privada, mas que, não sendo por ela prestados, ficará o Estado obrigado a atuar. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, são todos aqueles serviços que a Constituição não tenha estipulado como obrigação intransferível do Estado, podendo ser prestados de forma indireta. São também denominados por alguns autores como serviços públicos não privativos. A prestação de serviço público poderá, portanto, ser prestada diretamente pelo Estado ou mediante delegação (art. 175 da CR/88). Nesta última hipótese, denomina-se descentralização por colaboração e reger-se-á pelo direito privado, parcialmente derrogado por normas de direito público. Na verdade, a prestação de serviços públicos nunca poderá deixar de sofrer influência ao menos regulatória do Estado, já que ao decidir delegar o serviço público ainda assim ele mantém consigo o dever de regulação e fiscalização (HARGER, 2007, p. 50). É por esse motivo que a Constituição da República de 1988, no art. 175, parágrafo único estabelece as diretrizes que deverão ser observadas pela Lei reguladora das delegações de serviços públicos. A propósito, a Constituição determina que a Lei reguladora da delegação de serviços públicos deverá estabelecer “o direito dos usuários” (art. 175, parágrafo único, inciso II) e a “obrigação de manter serviço adequado” (art. 175, parágrafo único, inciso IV). É por meio dos serviços públicos que se buscará alcançar os objetivos da República Federativa, a saber, a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais (art. 3.º, III). Assim, a prestação do serviço público deverá ter sempre o cidadão-usuário como foco, garantindo-se técnicas de controle da correta prestação destes serviços, reservando-se ao Estado o direito de reaver a prestação do serviço (haja vista que ele detém a titularidade) 197 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem caso a empresa prestadora não obedeça aos ditames constitucionais e legais aplicáveis. A Lei n.º 8.987, de 1995 foi responsável por regular, atendendo determinação constitucional, a delegação de serviços públicos aos particulares. Estabelece, em seu artigo 7º, diversos direitos dos usuários dos serviços públicos. Na verdade, entregar serviço público à iniciativa privada não significa transferir sua titularidade, que continua em poder do Estado. Transfere-se tão somente a prestação do serviço, podendo a delegação ser revogada a qualquer tempo caso constatado o não atendimento dos seus fins precípuos, ou seja, o oferecimento de comodidade fruível pelos cidadãos-usuários. Outrossim, poderá o Estado, ao invés de transferir a prestação do serviço público para a iniciativa privada, decidir prestá-los diretamente, seja por meio da Administração Direta ou mediante criação de pessoa jurídica a quem delegará a prestação daquele determinado serviço público. Trata-se esta última hipótese da descentralização administrativa, a ser detalhada a seguir. 4. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA POR SERVIÇOS – A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA O Estado, durante algum tempo, manteve a centralização da prestação dos serviços públicos vinculada ao seu quadro hierárquico de órgãos públicos. Com o surgimento do Estado Social, em que a Administração Pública assumiu expressivos encargos para cumprir o seu papel de promotora do bem estar social, a máquina administrativa, antes enxuta e reduzida às finalidades mais restritas do Estado liberal, começou a demonstrar sinais de saturação. (DI PIETRO, 2006, p. 68). Assim, o Estado percebeu a necessidade de adotar o caminho da descentralização dos serviços públicos com o objetivo de melhor atendimento aos usuários. Importa destacar que descentralização não se confunde com desconcentração. Esta última já era fórmula conhecida da Administração Pública, mesmo quando prestadora direta dos serviços públicos. A desconcentração mantém os serviços no âmbito da prestação direta pela Administração Pública, havendo apenas a delegação deles a órgãos vinculados à escala hierárquica do Poder Público, sem criação de outra pessoa jurídica e nem mesmo o repasse da tarefa à iniciativa privada. 198 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A teoria do órgão nos dá subsidio para diferenciá-lo das pessoas jurídicas (CAETANO, 1977, p. 63-65). O órgão compõe a estrutura da Administração Pública, e sem ela não tem vida própria. A pessoa jurídica, criada pelo Estado, por outro lado, passa a ter vida própria, autônoma em suas decisões e responsabilidades assumidas. Portanto, a desconcentração refere-se à distribuição de tarefas entre os órgãos que compõe a Administração. Já a descentralização implica na retirada do serviço público das mãos da Administração Pública Direta, repassando-o para outra pessoa jurídica, seja esta criada pelo Estado com fins de desempenhar aquele serviço público específico, seja para pessoa jurídica já existente, da iniciativa privada. Também é importante que não se confunda a descentralização administrativa com a descentralização política. A descentralização política significa conferir a entidades estatais autonomia política, administrativa e financeira, o que significa outorgar-lhe inclusive autonomia para legislar, inovando no ordenamento jurídico. Com a descentralização política, têm-se a criação de entes federados no Estado Federal. Já a descentralização administrativa não implica na transferência de poderes políticos a entidade descentralizada. A propósito, esta modalidade de descentralização convive perfeitamente com o modelo de Estado Unitário, no qual o poder político está totalmente concentrado nas mãos do Poder Central. A criação de nova pessoa jurídica por descentralização administrativa significa conferir-lhe autonomia administrativa e financeira, mas jamais política (FORTINI, 2007, p. 10). No Brasil, o Estado adotou o modelo Federal, com divisão tripartite do poder político (União, Estados e Municípios). Cada uma das esferas da Federação, além de prestarem serviços públicos diretamente, também pode se utilizar da prestação indireta destes serviços, por meio da descentralização administrativa, seja com a criação de pessoas jurídicas especializadas para prestar públicos; seja com a colaboração dos particulares na prestação destes serviços públicos; ou por meio da gestão associada de serviços públicos (também chamada associação público-público ou consórcios públicos). Por deter a titularidade de determinado serviço público, conforme a distribuição constitucional de competências, cabe ao ente federado optar por prestar por ele próprio o serviço ou pela descentralização. Neste último caso, abrem-se três possibilidades: a criação de pessoa jurídica para a prestação dos serviços de forma especializada (descentralização técnica ou por serviços); 199 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem a delegação da atribuição à iniciativa privada (descentralização por colaboração), por meio da concessão ou permissão de serviço público ou a gestão associada de serviços públicos. A descentralização por colaboração, conforme já expusemos, está autorizada no art. 175 da Constituição da República de 1988, que estabelece a possibilidade da prestação de serviço público diretamente “ou sob regime de concessão ou permissão”. Neste caso, a titularidade do serviço público é mantida nas mãos do Estado, transferindo-se aos particulares, por meio de contrato ou ato unilateral, a mera execução dos serviços. Assim, o Poder Público exercerá um amplo controle sobre a atividade delegada, conforme exige a Constituição, no art. 175, ao determinar a necessidade de previsão legal das hipóteses de caducidade, fiscalização e rescisão do contrato administrativo celebrado. A delegação por colaboração encontra-se regulada pela Lei n.º 8.987, de 1995 (Lei das Concessões e Permissões de Serviços Públicos) e pela Lei n.º 11.079, de 2004 (Lei das Parcerias Público-Privadas), que estabelecem todo o regime jurídico da prestação de serviços pela iniciativa privada mediante concessão e permissão. Ao lado da delegação por colaboração, encontra-se como alternativa para o ente que detém a titularidade dos serviços públicos a descentralização administrativa por serviços. Neste caso, o ente criará uma nova pessoa jurídica para a prestação do serviço, vinculada à estrutura da Administração Indireta. José Cretella Júnior, ao tratar do conceito de Administração Indireta, entende que ela é composta por toda entidade pública ou privada que presta serviço público em nome do Estado de forma descentralizada, incluindo-se neste conceito autarquias, fundações (públicas e privadas, prestadoras de serviços públicos), empresas públicas, sociedades de economia mista, bem como as permissionárias e concessionárias de serviços públicos, e até mesmo as pessoas físicas que exerçam serviço público outorgando pela União (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 20). Reconhece, no entanto, que se trata de conceito que não encontra amparo no direito positivo, já que o Decreto-Lei n.º 200, de 25 de fevereiro de 1967, em seu art. 4º, inclui como entidades da Administração Indireta apenas as autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista. No entanto, insiste o autor que, pela “natureza das coisas”, Administração Indireta é toda entidade, pública ou privada, prestadora de serviços públicos. Celso Antônio Bandeira de Mello explica essa divergência constatada 200 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem por José Cretella Júnior entre a “natureza das coisas” e o direito positivo na caracterização da Administração Indireta a partir do critério utilizado pelo legislador. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 200 não se valeu de critério quanto à natureza da atividade, conforme pretende José Cretella Júnior (prestação de serviços públicos) e nem mesmo quanto ao regime jurídico dos sujeitos (de direito público ou privado), mas utilizou-se do critério orgânico ou subjetivo. Assim, a partir do Decreto-Lei n.º 200, integram a Administração Indireta brasileira as pessoas jurídicas criadas pelo Estado para comporem o aparelho estatal, não se incluindo neste caso as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos que não tenham sido criadas pelo Estado. Por isso, Administração descentralizada, no Direito Brasileiro, não é sinônimo de Administração Indireta, conforme pretende José Cretella Júnior, já que dentro daquele primeiro conceito também deverão ser incluídas estas entidades que, embora não façam parte do aparelho estatal (e não integrem portanto o conceito de Administração Indireta), prestam serviços públicos de forma descentralizada (MELLO, 2006, p. 143). A autorização constitucional para que União, Estados e Municípios constituam entidades descentralizadas que formam, portanto, a Administração Pública Indireta, encontra-se no art. 37, XIX da Constituição de 1988. Segundo o dispositivo, será necessária lei específica para criação da autarquia, e para autorização da criação de empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações, Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, este processo de descentralização envolve as seguintes características: 1. Reconhecimento de personalidade jurídica ao ente descentralizado; 2. Existência de órgãos próprios, com capacidade de auto-administração exercida com certa independência em relação ao poder central; 3. Patrimônio próprio, necessário à consecução de seus fins; 4. Capacidade específica, ou seja, limitada à execução do serviço público determinado que lhe foi transferido, o que implica sujeição ao princípio da especialização, que impede o ente descentralizado de desviar-se dos fins que justificaram sua criação; 5. Sujeição a controle ou tutela, exercido nos limites da lei, pelo ente instituidor; esse controle tem que ser limitado pela lei precisamente para 201 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem assegurar certa margem de independência ao ente descentralizado, sem o que não se justificaria sua instituição. (DI PIETRO, 2006, p. 64). A partir da descentralização por serviços, cria-se uma série de pessoas jurídicas responsáveis pela prestação de serviços públicos em nome do Estado. A reunião destas pessoas jurídicas criadas pelo Estado para prestar serviços públicos ao lado daquelas criadas para exercer atividade econômica (obedecidas as condições estabelecidas pelo art. 173 da Constituição da República) representa a chamada Administração Indireta Brasileira. O Decreto-Lei n.º 200, de 25/02/1967, alterado pelo Decreto-Lei n.º 900, de 29/09/1969, pelo Decreto-lei n.º 2.299, de 21/11/1986 e pela Lei n.º 7.596, de 10/04/1987, é o instrumento regulador da Administração Pública Indireta no Brasil. Embora aplicável apenas no âmbito da União, reconhece a doutrina que os conceitos por ele estabelecidos são típicos das entidades da Administração Indireta, razão pela qual são aplicados de forma genérica. Além das citadas formas de prestação de serviços públicos no Brasil (descentralização por colaboração e descentralização por serviços), a Constituição da República de 1988, a partir da Emenda Constitucional n.º 19, de 1998, também denominada emenda da Reforma Administrativa, passou a prever a possibilidade de os entes federados se associarem para a gestão de serviços públicos (art. 241). A Constituição adotou o modelo de federalismo cooperativo democrático, por meio do qual as entidades federadas devem, sem abrir mão de sua autonomia política, administrativa e financeira, estabelecer políticas de cooperação visando atender ao bem estar da população. Muitas vezes a ação coordenada surge como a alternativa mais indicada, especialmente pela necessidade de buscar economia de escala quanto aos gastos públicos, considerando que a prestação de alguns serviços públicos demanda altos investimentos, mais bem aproveitados se destinados a um maior número de pessoas. No Direito Brasileiro, a previsão legal de adoção das entidades de consórcios públicos e convênios de cooperação veio regular prática que já se fazia presente na realidade de grande parte dos Estados e Municípios do País. Tais entidades são consideradas instrumentos que viabilizam a prestação associada de serviços públicos, dando vida ao federalismo cooperativo democrático almejado pela Constituição da República de 1988. Segundo Luciano de Araújo Ferraz, a descentralização administrativa por colaboração, com delegação de serviços públicos à iniciativa privada, 202 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem embora seja, numa sociedade de mercado, a primeira alternativa que se apresenta, não deve ser a única. A prestação de serviços públicos de forma associada entre entes federados é alternativa que se demonstra eficaz e atenta ao princípio da economicidade, sendo inclusive recomendada pela Comissão da União Europeia, em seu Guia sobre diretrizes para as parcerias Públicoprivadas (FERRAZ, 2007). 5. O PAPEL DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL Conforme já destacamos, a descentralização administrativa pode ter duplo objetivo: a prestação de serviços públicos e o exercício de atividade econômica. Ao criar entidade para exercer atividade econômica, desde que respeitados os limites constitucionais previstos no art. 173 da Constituição (atuação em caráter subsidiário), o Estado garantirá a estas entidades regime jurídico diferenciado, para que elas possam concorrer com a iniciativa privada em igualdade de condições, conforme estabelece o § 1.º do citado dispositivo constitucional. A Lei a que faz alusão o citado dispositivo constitucional ainda não foi editada, o que é lamentável, já que no plano legislativo as entidades criadas pelo Estado para exercer atividade econômica acabam por possuir tratamento praticamente idêntico às pessoas jurídicas criadas pelo Estado para prestar serviços públicos, em franco paradoxo com o que determina o texto constitucional. Ao lado das pessoas jurídicas criadas para exploração de atividade econômica, compõem também a Administração Indireta Brasileira as pessoas jurídicas criadas para prestação de serviço público (descentralização administrativa por serviços). Tais pessoas jurídicas poderão deter personalidade de direito público ou de direito privado. As pessoas jurídicas com personalidade de direito público são basicamente as autarquias e fundações públicas. A Lei n.º 11.107, de 2005, que regulamenta o art. 241 da Constituição da República possibilitou também a criação de Consórcios Públicos com personalidade jurídica de Direito Público. As pessoas jurídicas que poderão ser criadas com personalidade jurídica de Direito Privado são as chamadas Empresas Estatais e as Fundações de Direito Privado. As Empresas Estatais se subdividem em Empresas Públicas e 203 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Sociedades de Economia Mista. Também a Lei n.º 11.107, de 2005 estabeleceu a possibilidade de Consórcios Públicos serem criados com personalidade jurídica de direito privado. Às pessoas de direito público aplica-se o regime jurídico de direito público, muito próximo ao aplicável à Administração Direta, e às pessoas jurídicas de direito privado, o regime de direito privado, parcialmente derrogado por normas de direito público. Importa ressaltar que, ao contrário do que possa parecer, as pessoas de direito privado não se afastam totalmente do regime jurídico de Direito Público. Ao tratar da distinção entre o regime jurídico das pessoas de direito público e das pessoas de direito privado instituídas pelo Estado, Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera que a diferença primordial entre uma e outra está no fato de que as pessoas de direito público têm todas as prerrogativas e sujeições do regime jurídico administrativo dos órgãos da Administração Indireta, enquanto as de direito privado só possuirão aquelas expressamente previstas em Lei (DI PIETRO, 2007, p. 395). Importante destacar que as pessoas jurídicas de direito privado, seja qual for a roupagem que utilizem, ao prestarem serviços públicos sujeitam-se à derrogação parcial do direito privado por normas de direito público. Isto porque a tarefa de prestar serviços públicos tem o condão de colocar a entidade (seja pública ou privada) em posição de desequilíbrio em relação aos particulares em prol do bom desempenho do mister público, possuindo sujeições e atributos especiais para tanto. 6. DIFERENÇAS ENTRE O REGIME JURÍDICO DE DIREITO PÚBLICO E O REGIME DE DIREITO PRIVADO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA ADMINISTRATIVA INDIRETA NO BRASIL As entidades de direito público que prestam serviço público são as autarquias e fundações públicas, enquanto as de direito privado são as empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) e as fundações de direito privado. Em qualquer caso, estamos a falar de entidades que prestam serviços públicos e que possuem, portanto, uma série de prerrogativas e sujeições comuns, típicas do regime jurídico de direito administrativo: a) A obrigatoriedade de realizar licitações e celebrar contratos administrativos, de acordo com as normas gerais de licitações e contratos 204 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem aplicáveis à Administração Direta; b) A proteção especial dos bens destinados à prestação de serviços públicos, sendo insuscetíveis de usucapião e direitos reais, inalienáveis e imprescritíveis; c) Controle Estatal, abrangendo o controle interno pelo Poder Executivo, e o controle externo pelo Poder Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de Contas (art. 49, X, 70 e 71); d) Responsabilidade civil objetiva por danos causados a terceiros, nos termos do art. 37, § 6.º da Constituição da República; e) Necessidade de realização de concurso público para contratação de pessoal; f) Não estão sujeitas à falência. No entanto, algumas diferenças são possíveis de serem detectadas quanto ao regime jurídico aplicável às empresas estatais constituídas com personalidade jurídica de direito privado, ainda que prestadoras de serviços públicos, a saber: a) Regime de pessoal trabalhista, seguindo as normas da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT; b) Regime tributário equiparado às empresas da iniciativa privada, não detendo a prerrogativa da imunidade tributária recíproca estabelecida pelo art. 150, VI, a, ao contrário das autarquias e fundações públicas; c) São consideradas concessionárias de serviços públicos, nas hipóteses em que não possuírem capital totalmente público (sociedade de economia mista) ou na hipótese de prestarem serviços a outro ente federativo que não o que a criou, hipótese em que deverá celebrar contrato de programa, nos termos do art. 13 da Lei n.º 11.107, de 2005. Conforme se pode observar, são muitas as semelhanças entre Empresas Estatais prestadoras de serviços públicos e as demais entidades da Administração Indireta prestadoras de serviços públicos (autarquias e fundações públicas). Isto ocorre porque o regime jurídico estabelecido pela Constituição para estas empresas, comumente chamado regime jurídico híbrido, possui várias regras de direito público que derrogam o direito privado. Assim, o regime a elas aplicável muito se aproxima do regime jurídico 205 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem administrativo/de direito público. E de outra forma não poderia ser. Se até as empresas privadas, quando prestam serviços públicos, sujeitam-se a regime jurídico diferenciado, com várias normas de direito público que derrogam o direito privado, dando ao serviço público tratamento diferenciado, quanto mais as empresas criadas pelo Estado para prestação de serviço público. As principais diferenças do regime jurídico de direito público e de direito privado na prestação de serviços públicos pela Administração Indireta está exatamente no regime de trabalho e tributário aplicável a cada qual. Nas empresas estatais, o regime tributário não recebe as prerrogativas estabelecidas pelo art. 150, VI, a (imunidade recíproca) e, portanto, rege-se de acordo com as mesmas normas estabelecidas para a iniciativa privada. No que tange ao regime de trabalho, as empresas estatais, por se constituírem como pessoas jurídicas de direito privado, são regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Já no caso das pessoas jurídicas de direito público aplica-se o chamado regime jurídico único. 2 O serviço público é o grande instrumento de ação do Estado. É por meio dele que o Estado concretiza os anseios dos cidadãos, realizando os objetivos da República Federativa do Brasil insculpidos no art. 1º e 3º da Constituição. Conforme já ressaltamos, não se pode prescindir da existência do Estado, especialmente em matéria de implantação de direitos humanos. Sem serviços públicos estruturados, pautados por normas públicas cogentes e um regime jurídico que lhes garanta a prestação contínua, tempestiva e eficiente, não é possível falarmos em “dignidade da pessoa humana”, “sociedade livre, justa e solidária”, e nem mesmo em erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, valores estes tão caros ao texto constitucional. Assim, o Direito Administrativo, ciência voltada para o estudo dos instrumentos que viabilizam a ação estatal, não pode fechar os olhos à realidade do serviço público e às demandas advindas da sociedade. O Estado não pode mais enclausurar-se em um mundo diferente da sociedade, vivendo apenas das respostas que a velha máquina administrativa lentamente tenta apresentar 2 Embora a Constituição tenha sido alterada pela Emenda Constitucional n.º 19, de 1998, em seu art. 39, com a tentativa de acabar com o regime jurídico único (admitindo-se, portanto, a convivência de regime de emprego público e estatutário no âmbito de um mesmo ente da federação), tal alteração foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal (ADI 2135-4), razão pela qual permanece a adoção ao regime jurídico único. 206 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem à população. É preciso partir em busca de novos mecanismos, que certamente passam pelas novas parcerias e arranjos interfederativos. Vivemos a época da Administração Pública concertada, que convida a sociedade e o mercado para colaborar na implantação dos direitos fundamentais, sociais, econômicos, difusos e coletivos. É preciso que os modelos já prontos se adaptem às novas realidades. Descentralizar, na sociedade atual, é palavra de ordem. O Estado já demonstrou não suportar sozinho o peso das demandas sociais de uma nova sociedade que já não espera mais passivamente pelos seus direitos, mas está diuturnamente a bater às portas do Estado em busca deles. Por isso, seja por meio da descentralização por colaboração (parcerias com a iniciativa privada), seja por meio da descentralização por serviços (parcerias público-público), é preciso que o Estado responda com eficiência às demandas sociais através de serviços públicos que efetivamente atendam aos anseios da coletividade. REFERÊNCIAS 4. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 200, p. 21-54, abr./jun. 1995. 5. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade. Conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 6. CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do Direito Administrativo. 1.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1977. 7. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução: Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009. 8. CRETELLA JÚNIOR, José. Administração Pública Indireta Brasileira. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 9. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2006. 10.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20.ª edição. São Paulo: Atlas, 2007. 11.FERRAZ, Luciano. Parcerias público-privadas: sistemática legal e dinâmica de efetivação. In MOTTA, Fabrício. Direito Público Atual. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 271-280. 12.FERRAZ, Luciano de Araújo. Parceria Público-Público: contrato de programa e execução de serviços públicos municipais por entidade da Administração Indireta Estadual. In Revista Eletrônica de Direito Administrativo econômico (REDAE), Salvador, 207 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 10, maio/junho/julho, 2007. Disponível na internet: HTTP://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em 15/03/2010. 13.FORTINI, Cristiana. Contratos Administrativos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. 14.GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na Constituição de 1988. 5ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000, 15.HARGER, Marcelo. Consórcios Públicos na Lei n.º 11.107/05. Belo Horizonte: Fórum, 2007. 16.MEIRELLES, Hely Lopes. O Estado e suas empresas. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 147, p. 1-6, jan./mar. 1982. 17.MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36.ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010. P. 351. 18.MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005. 19.MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. A Regulação e universalização dos serviços públicos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009. Recebido em: 18/09/2014 Aprovado em: 20/10/2014 208 DA POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO DE ATOS TERRORISTAS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL HASSAN MAGID C. SOUKI1 RESUMO Diante do recrudescimento do terrorismo internacional neste início de século e da resposta, muitas vezes, à margem do Direito Internacional, dada por alguns Estados a tal flagelo, pretende-se, no presente artigo, analisar a possibilidade do Tribunal Penal Internacional se manifestar acerca de atos que podem ser qualificados como terroristas, ainda que não haja definição acordada de tal conduta em um instrumento internacional. Palavras-chave: Terrorismo. Jurisdição Internacional. Tribunal Penal Internacional. Direito Internacional. ABSTRACT In face of escalating international terrorism in the beginning of the century and the response many times contrary international law by some states to this crime, it is intended, in this article, examine the possibility of the International Criminal Court manifest with respect to acts which may be classified as terrorists, even without a concept of such conduct in an international instrument. Keywords: Terrorism. International Jurisdiction. United. International Criminal Court. International Law. 1. INTRODUÇÃO Antes de se adentrar na discussão central do presente artigo, necessário salientar que uma das maiores dificuldades ao se debater questões relativas ao 1 Mestre em Direito Internacional e Comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do Centro Universitário UNA e da Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogado. 209 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem terrorismo se assenta justamente na ausência de uma definição inequívoca e amplamente aceita desse fenômeno. A variedade de atos que podem ser englobados em tal conceito e a heterogeneidade da própria sociedade internacional – da qual resultam diferentes percepções existentes sobre o que constitui o terrorismo-fazem com que a tipificação de tal delito em um instrumento geral seja tida pelos estudiosos do Direito Internacional como praticamente impossível. De fato, verifica-se que o termo “terrorismo” não é neutro, sendo abordado, geralmente, a partir de perspectivas com um alto conteúdo político e ideológico. Neste sentido, adverte GUILLAUME (2004) que: [...] o termo ‘terrorismo’ evoca, em linguagem corrente, uma violência extrema, vítimas inocentes, um clima de angústia. Ele remete ao fanatismo e à barbárie. Desde então, ele é freqüentemente utilizado para desqualificar o adversário e mobilizar a opinião pública a seu encontro. Devido a este fato, torna-se difícil defini-lo sem condenar ou absolver, como testemunham os debates concernentes à ação dos movimentos de libertação nacional e de secessão ou as discussões sobre o terrorismo de Estado. Em virtude da já referida falta de consenso na sociedade internacional acerca de uma definição do terrorismo, tanto no âmbito das Nações Unidas quanto em âmbito regional, tem-se utilizado a prática de incriminar de forma setorial, ou seja, em tratados específicos, certos atos que podem ser qualificados como terroristas. Em tais instrumentos internacionais, em vista das dificuldades apontadas, não são encontradas definições do termo, sendo o terrorismo, dessa forma, abordado em função da ação praticada, seus objetivos e consequências. Não obstante as dificuldades decorrentes da ausência de uma tipificação adequada, o recurso às jurisdições internacionais, especificamente o Tribunal Penal Internacional, pode se revelar um importante instrumento de combate ao terrorismo internacional, evitando a impunidade dos autores de tais atos e a adoção pelos Estados de procedimentos unilaterais de represália, garantindo, assim, o respeito aos direitos humanos mais básicos e assegurando a manutenção da paz e da segurança internacionais. É este o tema que se pretende desenvolver. Todavia, as dificuldades enfrentadas para a instituição do Tribunal Penal Internacional e o papel que ele pode desempenhar no combate ao fenômeno 210 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem terrorista, não serão devidamente compreendidos sem um indispensável estudo das precedentes etapas evolucionárias da jurisdição penal internacional, notadamente no tocante às contribuições decorrentes da criação e dos julgamentos realizados pelos tribunais militares de Nuremberg e Tóquio e pelos tribunais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e Ruanda. 2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS Verifica-se que a instituição de uma instância penal internacional foi pela primeira vez sugerida pelo suíço Gustave Moynier, que, horrorizado ante as atrocidades cometidas durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, propôs a criação de um tribunal para impedir violações da Convenção de Genebra de 1864 e julgar os responsáveis por elas. (MELLO, 2004) Constava em tal proposta, apresentada em 03 de janeiro de 1872 durante uma reunião do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, dentre outros pontos, que (i) o tribunal seria uma instituição permanente que se ativaria automaticamente em caso de guerra, (ii) o Presidente da Confederação Suíça, por sorteio, indicaria três julgadores procedentes de Estados signatários neutros, e os beligerantes elegeriam outros dois, sendo que, na existência de mais de dois beligerantes, os que fossem aliados escolheriam um só julgador, (iii) se um dos Estados signatários neutros que tivesse designado um julgador se tornasse beligerante durante a guerra, seria procedida nova eleição, mediante sorteio para substituir tal juiz, (iv) o tribunal não disporia de uma sede permanente, a não ser que os cinco julgadores de reunissem o quanto antes possível em uma localidade eleita provisoriamente pelo presidente da Confederação Suíça, (v) os juízes decidiriam entre si o lugar em que se reuniriam (o que permitiria que o tribunal pudesse reunir-se onde fosse mais conveniente aos acusadores e testemunhas), bem como os detalhes da organização do tribunal e do procedimento pertinente, (vi) o Estado demandante desempenharia o papel de acusador, sendo admitidas, todavia, a apresentação de denúncias pelos governos interessados, (vii) deveriam ser definidas as infrações e as correspondentes punições em um documento separado. (viii) todos os Estados signatários, particularmente os beligerantes, deveriam cooperar para a solução do conflito (ix) cada caso particular deveria ser julgado separadamente (vedando, dessa forma, julgamentos e sanções coletivas) (x) poderia o tribunal fixar uma indenização a ser paga pelos danos causados com a conduta dos beligerantes. (HALL, 1998). 211 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Apesar de tal proposta não ter despertado interesse dos Estados nacionais e ter sido qualificada de pouco realista (caindo, inclusive, no esquecimento, posto que sequer o Comitê Internacional da Cruz Vermelha fez referência a ela em suas declarações ante o Comitê preparatório das Nações Unidas para a instituição de um Tribunal Penal Internacional), sua importância é patente, uma vez que se constituiu na primeira manifestação séria de redação de estatuto de um tribunal penal internacional permanente. A idéia da criação de um Tribunal Penal Internacional somente ressurgiu após o término da Primeira Guerra Mundial, tendo nascido do repúdio às atrocidades cometidas durante tal conflito. De fato, contrariando o otimismo inicial na Europa, a guerra se revelou uma grande catástrofe, com um número de mortos jamais visto, ataques sistemáticos que envolviam até mesmo a população civil e a utilização de armamentos novos e altamente destrutivos. Em 1919, foi constituída, por iniciativa dos Estados Aliados, uma comissão para apreciar a “responsabilidade dos autores da guerra”, que recomendou a punição das pessoas acusadas de crimes de guerra e a constituição de um tribunal para julgar tais indivíduos. O Tratado concluído em Versalhes pelas potências aliadas e a Alemanha no dia 28 de junho do mesmo ano2 previa, em seu artigo 227,3 a criação de um tribunal internacional4 para julgar o Kaiser Guilherme II por “ofensas contra a moralidade internacional e a santidade dos tratados”. (MELLO, 2004). Em 16 de janeiro de 1920, os Aliados encaminharam uma petição à Holanda, onde o ex-imperador havia se refugiado, sustentando a solicitação de extradição, dentre outros motivos, na “cínica violação da neutralidade da Bélgica e de Luxemburgo, o bárbaro e impiedoso sistema de reféns, as deportações em massa, o rapto das moças de Lille arrancadas de suas famílias e 2 Ratificado pela França em 10 de janeiro de 1920. 3 “As potências aliadas e associadas acusam Guilherme II de Hohenzollern, ex-imperador da Alemanha, por ofensa suprema contra a moral internacional e a autoridade sagrada dos tratados. Um tribunal especial será formado para julgar o acusado, assegurando-lhe garantias essenciais do direito de defesa. Ele será composto por cinco juízes, nomeados por cada uma das potências, a saber: Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão. O tribunal julgará com motivos inspirados nos princípios mais elevados da política entre as nações, com a preocupação de assegurar o respeito das obrigações solenes e dos engajamentos internacionais, assim como da moral internacional. Caberá a ele determinar a pena que estimar que deva ser aplicada. As potências aliadas e associadas encaminharão ao governo dos Países Baixos uma petição solicitando a entrega do antigo imperador em suas mãos para que seja julgado”. (BAZELAIRE e CRETIN, 2004). 4 212 Composto por cinco juízes dos EUA, França, Inglaterra, Itália e Japão. revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem entregues sem defesa às piores promiscuidades, a responsabilidade pela morte de 10 milhões de homens na flor da idade”. (BAZELAIRE, CRETIN, 2004) Todavia, com a recusa da Holanda em entregar o Kaiser, o artigo 227 do Tratado de Versalhes nunca foi aplicado, o que levou os Aliados a abandonar a idéia de uma Corte Internacional para julgá-lo. Na verdade, havia uma preocupação maior em salvaguardar a paz na Europa, tendo em vista todas as tensões do pós-guerra e suas querelas mal resolvidas que, fatalmente, acabaram por levar à eclosão de uma Segunda Grande Guerra. (SILVA, 2005) Não obstante, apesar de nunca ter saído do papel, a afirmação de uma concepção jurídica nova, segundo a qual os autores de crimes de guerra devem responder na justiça por seus atos, apresentou um enorme progresso para o Direito Internacional. De fato, pode-se afirmar que, apesar de não trazer nenhum efeito concreto, a proposta constante no Tratado de Versalhes representou a primeira pedra assentada na construção de uma justiça internacional penal (BAZELAIRE, CRETIN, 2004). O fracasso do Tratado de Versalhes, entretanto, não sepultou a idéia do estabelecimento de um sistema internacional de justiça penal. Ao contrário, vários estudos foram feitos acerca de tal tema, principalmente no período entre as duas grandes guerras mundiais. Entre os partidários da criação de uma jurisdição penal internacional a grande discussão que se desenvolvia era sobre se esta deveria ser uma corte autônoma criada por uma convenção internacional ou uma câmara especial dentro da Corte Permanente de Justiça Internacional, órgão judiciário da Liga das Nações então existente. Todavia, os textos produzidos no período entre-guerras não foram suficientes para impedir o início da Segunda Guerra Mundial. Não obstante, verifica-se que permitiram a elaboração de uma base jurídica mais elaborada acerca do julgamento de criminosos de guerra, o que culminou na instalação dos Tribunais Militares Internacionais em Nuremberg e Tóquio (ASCENCIO, 2004). 2.1. A INSTITUIÇÃO DOS TRIBUNAIS MILITARES INTERNACIONAIS A discussão acerca do destino que seria dado aos líderes nazistas após o fim da Segunda Guerra Mundial foi travada durante todo o conflito, tendo os Aliados e os representantes dos governos da Europa no exílio se encontrado por diversas vezes para deliberar quais providências adotar contra aqueles. A idéia de submeter à justiça os atos dos chefes nazistas, embora em um primeiro momento não se revelasse evidente, foi apresentada em várias oportunidades, 213 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem constando na Declaração dos Aliados, firmada em Londres no dia 12 de julho de 1941 por representantes de 14 países; na Declaração Conjunta de Roosevelt e Churchill de 14 de agosto de 1941 e na Declaração de St. James Palace de 13 de janeiro de 1942, tendo se desenvolvido nas conferências de Moscou e de Teerã em 1943, de Yalta e de Potsdam em 1945. A declaração de Moscou, firmada em 30 de outubro de 1943 pelo Premier soviético Josef Stalin, pelo Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt e pelo Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill, estabeleceu os princípios que seriam adotados pelas Nações Unidas para julgar os criminosos de guerra a partir de 1945, sendo marco preparatório para a formação do Tribunal de Nuremberg. Foi publicada em 1º de novembro de 1943, tendo nela sido propalado o repúdio às atrocidades nazistas, bem como a intenção de levar seus perpetradores a julgamento. Dois modos de repressão são apresentados nitidamente na Declaração de Moscou. Em primeiro lugar, tem-se a repressão local, para os crimes individualizados, cometidos em um território específico, sendo que os acusados seriam julgados pelas autoridades do lugar onde os delitos tivessem sido praticados e com base no direito local. O segundo modelo de repressão diz respeito aos chamados grandes criminosos de guerra, cujos delitos não tinham definição geográfica específica. Foi este o modelo utilizado nos julgamentos de Nuremberg. (GOLÇALVES, 2001) Na Conferência de Yalta, realizada entre 04 e 11 de fevereiro de 1945, os chefes de governo da Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética manifestaram sua intenção de submeter todos os criminosos de guerra a justo e rápido castigo, sendo que, na prática, aguardavam para tanto apenas o término do conflito, que então já se anunciava. (FERRO, 2002). Com o término da 2ª Guerra Mundial e a derrota do regime nazista, representantes das quatro grandes potências que se sagraram vencedoras (Estados Unidos, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Grã-Bretanha e França), reuniram-se em 08 de agosto de 1945, na Conferência de Londres, onde celebraram acordo destinado a estabelecer as regras destinadas a orientar o processo e julgamento dos “maiores criminosos de guerra das potências Européias do Eixo”. O artigo 1º de tal acordo, denominado de “Carta de Londres,” previa a criação de um Tribunal Militar Internacional, que acabou por ser conhecido como “Tribunal de Nuremberg”, em virtude de seus julgamentos terem sido realizados na cidade alemã de Nuremberg. (JAPIASSÚ, 2004). 214 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Segundo o Estatuto anexo ao Acordo de Londres,5 o tribunal seria composto por quatro juízes e quatro suplentes de nacionalidade de cada um dos países signatários (art. 2º), tendo sido indicados: Geoffrey Lawrence e Normam Birkett – suplente (Reino Unido), Francis Biddle e John Parker – suplente (Estados Unidos), Henri Donnedieu de Vabres e Robert Falco – suplente (França) e Iona T. Nikitcehnko e Alexander F. Volchkov - suplente (União Soviética). Tais juízes eram incontestáveis (art. 3º) e deveriam decidir por maioria de votos, prevalecendo, no caso de empate, o voto do presidente (art. 4). Ainda, ao decidir, deveriam os juízes externar as razões pelas quais estavam condenando ou absolvendo um acusado (art. 26), podendo aplicar aos condenados, ainda que não houvesse previsão da sanção cabível a cada delito, pena de morte (art. 27). O Estatuto estabeleceu a competência do Tribunal para o julgamento dos crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, cometidos por pessoas que agiram por conta dos países europeus do Eixo, definindo-os em seu artigo 6º. Cabe ressaltar que precisamente neste ponto recai uma das mais contundentes críticas feitas ao Tribunal de Nuremberg: o desrespeito ao princípio do nullum crime sine lege, vez que os crimes tipificados em seu estatuto e pelos quais se pretendia julgar os nazistas não eram previstos como tal durante o seu cometimento. Assim, de 20 de novembro de 1945 a 1ª de outubro de 1946 o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg julgou os 22 principais dirigentes do III Reich sobreviventes do conflito. Ao final do julgamento, doze acusados foram condenados à morte, sete à prisão perpétua ou temporária e três restaram absolvidos (JAPIASSÚ, 2004). É interessante observar ainda que foram julgadas também sete organizações acusadas de atividades criminosas,6 ou seja, pessoas jurídicas, sendo ao final três absolvidas7 e as demais banidas. O objetivo de se colocar pessoas jurídicas na condição de criminosas foi o de, com tal atitude, demonstrar a condenação do Estado alemão. 5 O texto do Estatuto pode ser consultado em http://dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/ nuremberg/anexo. html>. Acesso em 15 de setembro de 2014. 6 As sete organizações são os órgãos dirigentes do NSDAP – Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, a SS (Unidade especial de proteção aos líderes do Partido), a SA (Força de assalto do Partido), a SD (Serviço de segurança) o Gabinete do Reich, o Alto Comando da Wehrmacht e a Gestapo (Polícia secreta do Estado). 7 Foram absolvidos o Gabinete do Reich, o Alto Comando da Wehrmacht e a SA. 215 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Apesar de ter sido considerado a maior conquista a favor da repressão dos crimes internacionais, o Tribunal de Nuremberg foi alvo de inúmeras críticas, que, de acordo com MELLO (2004), podem ser resumidas nas seguintes: 1) a violação do princípio nullum crimen nulla poena sine lege; 2) ser um verdadeiro “tribunal de exceção” constituído apenas pelos vencedores; 3) que a responsabilidade do Direito Internacional é apenas do Estado e não atinge o indivíduo; 4) que os aliados também tinham cometido crimes de guerra; 5) que os atos praticados pelos alemães eram simples atos ilícitos, mas não criminosos, 6) que não houve instrução criminal. Por sua vez, a idéia da criação de um Tribunal Militar Internacional para julgar os atos praticados durante a 2ª Guerra Mundial pelos japoneses foi sedimentada em 1º de dezembro de 1943 na Conferência do Cairo, quando representantes chineses, britânicos e norte-americanos firmaram uma declaração, manifestando seu objetivo de por um fim à agressão japonesa e seu desejo de levar a julgamento os criminosos de guerra nipônicos. Na Conferência de Potsdam, de 1º de agosto de 1945, tais objetivos foram ratificados, tendo as três potências aliadas declarado que uma estrita justiça deveria sancionar todos os criminosos de guerra, especialmente aqueles que tivessem cometido crueldades contra prisioneiros. Pouco tempo depois, em 02 de setembro de 1945, no ato de rendição japonesa, foram definidas todas as questões relativas à prisão e ao tratamento que seriam impostos aos criminosos de guerra. Concomitantemente, a Comissão de Crimes das Nações Unidas recomendou o estabelecimento de um tribunal militar internacional para julgar os crimes e atrocidades praticados pelos japoneses. Nestas bases, foi adotado pelo Departamento de Estado Norte-americano um instrumento visando à prisão e à sanção dos criminosos de guerra no Extremo Oriente, sendo notificados o Comandante Supremo das Forças Aliadas, General Douglas MacArthur e oito Estados (Austrália, Canadá, China, França, Reino Unido, Nova Zelândia, Países Baixos e União Soviética) para a organização do tribunal militar (BAZELAIRE, CRETIN, 2004). Na Conferência de Moscou, da qual participaram os Ministros das Relações Exteriores da China, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, restou decidido que o tribunal teria sua sede em Tóquio. O Estatuto do Tribunal foi aprovado em 19 de janeiro de 1946 e regulamentado pelo General MacArthur em 25 de abril de 1946, tendo iniciado suas atividades em 29 de abril do mesmo ano e as encerrado mais de dois anos e meio depois, em 12 de novembro de 1948. 216 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem De acordo com JAPIASSÚ (2004), o Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente teve composição mais ampla do que o de Nuremberg, sendo integrado por onze juízes provenientes das seguintes nações: Austrália (Willian F. Webb – juiz presidente), Canadá (E. Stuart Macdougal), China (Juao Mei), Estados Unidos (John P. Higgins), Filipinas (Delfin Jaranilla), França (Henri Bernard), Reino Unido (Lord Patrick), Países Baixos (Bernard Victor A. Roling), Nova Zelândia (Erima Harvey Northeroft), URSS (I. M. Zaryanov) e Índia (Rahabinod M. Pal). Ressalte-se que este último Estado, apesar de não ter participado da Segunda Guerra Mundial, indicou um juiz na condição de país neutro. Tais juízes deveriam decidir por maioria de votos, prevalecendo, no caso de empate, o voto do presidente (art. 4). Ainda, deveriam externar as razões pelas quais estavam condenando ou absolvendo um acusado (art. 17), podendo aplicar aos condenados, mesmo sem qualquer previsão acerca da sanção cabível a cada delito, pena de morte ou outra que considerassem justa (art. 16). O Estatuto estabeleceu a competência do Tribunal para o julgamento dos crimes contra a paz, crimes contra as convenções de guerra e crimes contra a humanidade, definindo-os, quase com as mesmas palavras constantes no Estatuto de Nuremberg, em seu artigo 5º. Evitou-se a previsão do complô como crime autônomo, tendo em vista as controvérsias enfrentadas por tal tipificação no tribunal europeu. Assim, de 03 de maio de 1946 a 12 de novembro de 1948 o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente julgou 25 criminosos de guerra. Ao final do julgamento, diferentemente do ocorrido em Nuremberg, nenhum acusado foi absolvido. Por outro lado, também de forma diferente do acontecido no tribunal europeu, as decisões prolatadas não foram unânimes, revelando o desacordo dos componentes do tribunal quanto à sorte dos acusados (JAPIASSÚ, 2004). As sentenças foram prolatadas em 12 de novembro de 1948, tendo sido proferidas sete condenações à morte e dezoito à prisão perpétua ou temporária. As penas capitais foram executadas em 23 de dezembro do mesmo ano, sendo os condenados enforcados na prisão de Sugamo, em Tóquio. Os condenados à pena de prisão foram libertados entre 1954 e 1955, fato que pode ser atribuído ao contexto político internacional da época, a saber: a chegada de Mao Tse-Tung ao poder na China em 1949 e o início da Guerra Fria. Cabe ressaltar que todos os prisioneiros eram notadamente anticomunistas. Além de críticas semelhantes àquelas feitas contra seu equivalente europeu, o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente recebeu outras 217 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem igualmente severas: (i) o principal e primeiro dos criminosos de guerra, o imperador Hirohito, não foi julgado, (ii) vários criminosos de guerra japoneses foram libertados pelos norte-americanos sem a realização de qualquer processo e (iii) os médicos da unidade 731 (que realizaram experiências em seres humanos, causando a morte de cerca de 9.000 pessoas) não foram levados a julgamento e continuaram a exercer a medicina livremente no Japão ou se aposentaram sem nenhum problema (BAZELAIRE, CRETIN, 2004). 2.2. A INSTITUIÇÃO DOS TRIBUNAIS AD HOC PELO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS Somente depois de transcorridos quase cinqüenta anos da instituição dos tribunais militares pelas potências vencedoras do segundo conflito mundial, veio a sociedade internacional testemunhar uma nova etapa evolutiva da jurisdição penal internacional: a criação de dois Tribunais Penais Internacionais ad hoc pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. 8 O primeiro de tais tribunais foi o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, instituído com a finalidade de levar a julgamento pessoas acusadas do cometimento de crimes de extrema gravidade no território da antiga República Socialista Federal da Iugoslávia. Para que se possa compreender a origem dos conflitos e massacres cometidos a partir de 1991 na antiga Iugoslávia, importante destacar que tal Estado era organizado em uma federação de seis repúblicas (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Hezergovna, Montenegro e Macedônia) que conviveram em relativa harmonia até a morte do Marechal Tito, ocorrida em 1980. A partir de tal data os antigos ódios raciais decorrentes da composição multiétnica do país ressurgiram intensamente, agravando-se em 1987 em virtude da crise econômica decorrente do colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu (JAPIASSÚ, 2004). Com a declaração de independência da Eslovênia e a Croácia, seguidas pela Macedônia e pela proclamação de autonomia da Bósnia, iniciou-se a guerra civil. Neste período, começaram a ser divulgadas informações acerca das seguidas violações ao direito internacional humanitário cometidas pelos 8 O hiato de quase cinqüenta anos entre tais jurisdições internacionais pode ser explicado pelas circunstâncias políticas que envolveram o mundo durante o período da Guerra Fria. De fato, a divisão dos Estados em dois blocos antagônicos, o recuo profundo da noção de interesse comum e o equilíbrio de poder entre os dois campos impediram qualquer atuação neste sentido. Foi preciso a queda do Muro de Berlim em 1989 para que as condições políticas permitissem a evocação de novos projetos de jurisdições penais internacionais (ASCENCIO, 2004). 218 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem sérvios (massacres, execuções sumárias, torturas, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, estupros etc.), caracterizadoras de uma evidente “limpeza étnica” levada a efeito contra as demais etnias (MAIA, 2001). O conflito somente teve seu fim em 1999 depois da intervenção da OTAN e com Resolução 1244 (1999) que fez de Kosovo uma “província da Iugoslávia” sobre protetorado da ONU (MAIA, 2001). Estima-se que de cerca de duzentas mil pessoas morreram no decorrer conflito, sendo este considerado o mais grave ocorrido em solo europeu após a Segunda Guerra Mundial. Em virtude da verdadeira carnificina ocorrida no território da ex-Iugoslávia a partir de 1991, o Conselho de Segurança das Nações Unidas veio a instituir, através da Resolução 827, datada de 25 de maio de 1993, o Tribunal Penal Internacional, ad hoc, para a antiga Iugoslávia, estabelecendo sua sede em Haia, na Holanda. De acordo com o Estatuto do Tribunal, tem ele competência para processar e julgar as pessoas responsáveis por violações graves às Convenções de Genebra de 1949 (art. 2), violações das leis ou dos costumes de guerra (art. 3º) e pelo cometimento dos crimes de genocídio (art. 4º) ou contra a humanidade (art. 5º), no território da antiga República Federativa Socialista da Iugoslávia, incluindo seu espaço terrestre e aéreo e suas águas territoriais, no período iniciado em 1ª de janeiro de 1991 (art. 8º). Um traço característico do Tribunal Penal Internacional para a ExIugoslávia é que ele apresenta competência concorrente com as das cortes nacionais sobre os ilícitos previstos em seu Estatuto, podendo afirmar sua primazia sobre estas e assumir qualquer investigação nacional ou qualquer procedimento em qualquer fase processual, desde que seja demonstrado o interesse da justiça internacional. Embora passível de críticas, como no que tange a sua criação pelo Conselho de Segurança, em detrimento da Assembléia Geral, percebe-se que o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia constitui uma evolução no que tange ao estabelecimento da jurisdição penal internacional. Com efeito, fato que merece ser destacado é a indubitável imparcialidade de tal jurisdição, posto que ao ser instituída pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, não pode ser tida, evidentemente, como um “tribunal de vencedores”, o que garante a legitimidade de suas decisões. Podem ser ainda apontados como avanços alcançados pelo Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia: (i) o desenvolvimento dogmático da doutrina da responsabilidade por atos de comando; (ii) a impossibilidade de julgamentos in absentia, importante 219 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem garantia do devido processo legal; (iii) a previsão das violações sexuais como crime contra a humanidade; e (iv) a previsão de recurso contra as decisões proferidas pelas Câmaras de Primeira Instância. A segunda jurisdição internacional ad hoc criada pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas foi o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, instituído para julgar pessoas acusadas de atos extremamente graves cometidos em tal país no ano de 1994, após um atentado que resultou na morte do presidente Juvenal Habyarimana. Tomando tal atentado como pretexto, a guarda presidencial e as milícias extremistas hutus, denominadas de interahamwe, imediatamente instalaram barricadas nas ruas da capital e começaram a responsabilizar os tutsis e a minoria hutu moderada. Logo o massacre evoluiu para toda Ruanda, sendo que, em poucas semanas, o exército, as milícias hutus e até a população civil exterminaram pelo menos quinhentas mil pessoas, provocando o êxodo em massa de refugiados para os países vizinhos (BAZELAIRE, CRETIN, 2004). Tais acontecimentos desencadearam a reação da RPF, que partiu para o contra-ataque, lançando ofensiva contra as tropas do Governo, milícias e população hutu. Seu avanço em direção a Kigali resultou em outro meio milhão de mortes e em novo êxodo, dessa vez de hutus, em direção ao Zaire, Burundi e Tanzânia. Na região leste do Zaire, a ONU organizou campos de refugiados, que chegaram a abrigar cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas. Em 23 de junho de 1994 foram enviados a Ruanda, em virtude de uma Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois mil e quinhentos soldados franceses, apesar da oposição da FPR e da Organização da Unidade Africana. Em 4 de julho, a FPR retomou a capital Kigali e, pouco depois, a última cidade que estava nas mãos da tropas governamentais, Gisenyi. Um governo de união foi estabelecido, tendo Pasteur Bizimungu assumido a presidência (BAZELAIRE, CRETIN, 2004). Com base em um relatório da Comissão de Direitos Humanos, que testificou o genocídio cometido em Ruanda tanto por hutus quanto tutsis, bem como em virtude de uma solicitação do próprio governo ruandense, o Conselho de Segurança das Nações Unidas acabou por deliberar pela criação de uma nova instância penal internacional ad hoc, para que os perpetradores das atrocidades cometidas em tal Estado fossem levados á justiça e responsabilizados por seus atos. Assim, através da Resolução 955, de 08 de novembro de 1994 foi instituído o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, sendo estabelecido que 220 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem este teria sua sede em Arusha, na Tanzânia.9 De acordo com o Estatuto do Tribunal, tem ele competência para processar e julgar as pessoas responsáveis por genocídio (art. 2), crimes contra a humanidade (art. 3º) e por violações das Convenções de Genebra e de seu Segundo Protocolo Adicional (art. 4º), perpetrados no território de Ruanda, incluindo seu espaço terrestre e aéreo e suas águas territoriais, bem como por cidadãos ruandenses no território de Estados vizinhos, no período compreendido entre 1º de Janeiro e 31 de dezembro de 1994 (art. 7º).10 Da mesma forma que seu equivalente europeu, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda apresenta competência concorrente com as das cortes nacionais sobre os ilícitos previstos em seu Estatuto, podendo afirmar sua primazia sobre estas e assumir qualquer investigação nacional ou qualquer procedimento em qualquer fase processual, desde que seja demonstrado o interesse da justiça internacional (art. 8º do Estatuto). Por fim, cabe ressaltar que, se por um lado o Tribunal Penal Internacional para Ruanda recebeu críticas semelhantes àquelas formuladas contra o Tribunal para a Ex-Iugoslávia (o que se explica em virtude de ambos possuírem uma estrutura organizacional bastante semelhante), por outro, sua contribuição para o desenvolvimento da jurisdição penal internacional, especialmente no que diz respeito aos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e nas questões pertinentes à obediência hierárquica, não pode ser olvidada (JAPIASSÚ, 2004) 3. POSSIBILIDADE DO JULGAMENTO DE ATOS TERRORISTAS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL Como última e mais importante etapa da evolução da jurisdição penal internacional, o Tribunal Penal Internacional começou a ser esboçado em 1989, quando a Assembléia Geral da ONU, após solicitação de Trinidad e Tobago, solicitou à Comissão de Direito Internacional a elaboração de um projeto de 9 O estabelecimento da sede do Tribunal na Tanzânia decorreu da falta de infra-estrutura em Ruanda e, principalmente, da necessidade de se evitar eventuais pressões e influência política do governo ruandês. 10 Importa salientar que o Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi a primeira e ainda única instância internacional autorizada a processar e julgar criminosos envolvidos em um conflito armado doméstico, ou seja, não-internacional. 221 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem estatuto para o estabelecimento de uma corte penal permanente. Todavia, os trabalhos não avançaram, tendo em vista divergências ideológicas decorrentes da Guerra Fria. Em 1993, as Resoluções 47/33 e 48/31 da Assembléia Geral das Nações Unidas retomaram o assunto, sendo novamente solicitado à CDI a feitura de um projeto de estatuto, que foi apresentado em 1994 no Sexto Comitê da 49ª Sessão da Assembléia Geral. Esta, através da Resolução 49/53, determinou a criação de um comitê ad hoc para revisar o projeto do estatuto, aberto a todos os Estados membros. O Comitê ad hoc se reuniu em 1995 em duas seções de duas semanas cada uma na sede das Nações Unidas, tendo surgido muitas controvérsias nas discussões travadas, o que gerou a divisão dos Estados, que começaram a se reunir separadamente e a constituir blocos de interesse (MAIA, 2001). Com a conclusão do mandato do Comitê ad hoc, a Assembléia Geral convocou em dezembro de 1995 um Comitê Preparatório (Prep. Com.) para a criação do TPI. Tal Comitê reuniu-se em seis períodos de sessões no espaço de três anos. Nas reuniões levou-se em conta o trabalho desenvolvido pela Comissão de Direito Internacional, bem como a experiência dos tribunais ad hoc, sendo realizados vários estudos e discutidos vários temas. Ao final das reuniões chegou-se ao anteprojeto final que seria submetido à Conferência de Roma. No período compreendido entre 15 e 17 de junho de 1998, nas dependências da FAO (Food and Agriculture Organization of United Nations), em Roma, deu-se a Conferência Diplomática de Plenipotenciários para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional,11 convocada pela Resolução 52/160 da Assembléia Geral das Nações Unidas. O Estatuto foi aprovado em 17 de julho de 1998 com 120 votos a favor e 7 contrários (Estados Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia), tendo havido 21 abstenções. Em 08 de dezembro, a Assembléia Geral, através da Resolução 53/105, convocou novamente um Comitê preparatório para a elaboração dos documentos adicionais previstos no Estatuto. Com a superação do número exigido de 60 ratificações, o que ocorreu no dia 11 de abril de 2002 durante 11 Participaram da Conferência 160 Estados, 17 Organizações Intergovernamentais, 14 Agências das Nações Unidas e 124 Organizações Não-Governamentais. 222 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem uma cerimônia especial na sede das Nações Unidas,12 o Estatuto de Roma entrou em vigor, tendo o Tribunal Penal Internacional começado a funcionar no dia 1º de junho de 2002. Uma das discussões centrais ocorridas durante os trabalhos do Comitê Preparatório e da Conferência de Roma foi relativa à definição de quais crimes deveriam ser incluídos na jurisdição do Tribunal Penal Internacional, como estes seriam definidos e quais as regras a serem aplicadas em relação a eles. Ao final dos trabalhos restou previsto que a competência material do tribunal se restringiria aos crimes contra a humanidade, guerra, agressão e genocídio, tendo ficado de fora uma série de delitos previstos na legislação internacional, como, por exemplo, o terrorismo internacional.13 Tal circunstância pode ser atribuída à intenção de que somente os crimes mais amplamente reconhecidos pela sociedade internacional fossem abarcados pela jurisdição do Tribunal, para que, assim, se atraísse o maior número de signatários possível. De fato, conforme SUNGA (2000): A hesitação de governos em conferir ao Tribunal Penal Internacional jurisdição para crimes definidos em termos ambíguos explica porque a ‘ameaça de agressão’, ‘intervenção’, ‘dominação colonial’ e terrorismo não foram incluídos no art. 5. A excessiva vagueza de definição incrementaria por demais os abusos do Ministério Público. Segundo CASSESE (2001), com relação ao terrorismo, sua não inclusão no Estatuto do TPI decorreu de várias questões levantadas durante a Conferência de Roma, como, por exemplo, (i) a ausência de consenso acerca do fenômeno terrorista e, notadamente, as implicações de tal noção com relação aos movimentos de libertação nacional, (ii) o desacordo acerca da noção de terrorismo de Estado, (iii) a desnecessidade da integração 12 Os países que aderiram ao estatuto em tal cerimônia foram: Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Camboja, República Democrática do Congo, Irlanda, Jordânia, Mongólia, Nigéria, Romênia e Eslováquia. O Brasil assinou o tratado em 07 de fevereiro de 2000 e depositou o instrumento de ratificação em 20 de junho de 2002. 13 Importa ressaltar, contudo, que o projeto inicial proposto pela CDI previa a jurisdição do Tribunal Penal Internacional no tocante ao terrorismo. A inclusão de tal delito no Estatuto do TPI permaneceu em discussão até a última semana da Conferência de Roma, tendo sido excluído da competência do Tribunal em virtude da já analisada ausência de uma definição clara e amplamente aceita do fenômeno terrorista. 223 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem do crime de terrorismo no Estatuto,14 (iv) a falta de gravidade suficiente de alguns atos terroristas, o que não justificaria sua inclusão na competência do Tribunal, (v) a eventual politização do Tribunal, (vi) a maior eficácia dos mecanismos nacionais no combate do terrorismo do que a jurisdição internacional etc. Contudo, em que pese tal circunstância, pode-se vislumbar a possibilidade de que certos atos terroristas sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional dentro de uma diferente roupagem, ou seja, sob outra nomenclatura. Com efeito, segundo BRANT (2005): [...] de uma forma geral, embora se reconheça a aplicação do principio da reserva legal na sua vertente do nullun crimem nulla pena sine lege, nada impede que estes crimes possam encontrar uma tipificação no que veio a ser esboçado como crimes de guerra ou crimes contra a humanidade. Assim, desde que a conduta praticada se amoldasse a uma das tipificações constantes no Estatuto de Roma não haveria óbice, no campo jurídico, de que o responsável fosse levado a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional,15 sem que, com isso, fosse desrespeitado o princípio da legalidade, reconhecido no próprio corpo do Estatuto de maneira bastante detalhada: uma pessoa somente pode ser punida por um ato que era codificado ao tempo de seu cometimento (lex scripta), de forma suficientemente clara (lex certa) e que não pode ser estendido por analogia (lex stricta) (AMBOS, 2000). Cabe ressaltar, contudo, que o próprio Estatuto de Roma prevê que o reconhecimento deste princípio não afetará a tipificação de uma conduta como crime nos termos do direito internacional, independentemente das disposições nele constantes, reconhecendo a validade do direito costumeiro e dos princípios gerais de direito. Importa esclarecer, por fim, que ao descrever, de forma pormenorizada os delitos de competência do Tribunal Penal Internacional, os Estados 14 Para um grupo de Estados, a utilização da força militar seria freqüentemente preferível à resposta oferecida pela justiça criminal, para outro, a criminização do terrorismo e sua adequação jurisdicional deveriam ser precedidas de uma ação contrária as suas distintas causas. 15 De acordo com CASSESE (2003), o terrorismo é um fenômeno que pode tomar diversas formas e manifestações. Assim, não surpreendentemente, pode o mesmo se amoldar a várias categorias de crimes, dependendo das circunstâncias nas quais o ato terrorista for perpetrado. 224 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem participantes da Convenção de Roma nada mais fizeram do que formular modelos abstratos de comportamentos proibidos.16 Neste sentido, limitaram e individualizaram condutas gravemente lesivas aos direitos reconhecidos pela comunidade internacional com o fito de possibilitar a punição dos responsáveis e a prevenção de novos crimes. Tem-se então que, uma vez se amoldando o fato praticado pelo agente à descrição abstrata dos delitos constante no Estatuto de Roma17 poderá aquele ser julgado pelo Tribunal, pouco importando o nome que se possa dar ao delito por ele perpetrado. 3.1. TERRORISMO COMO CRIME DE GUERRA Conforme JAPIASSÚ (2004), a idéia de se reprimir crimes de guerra não é recente, todavia, a efetiva internacionalização do tratamento de tais crimes somente ocorreu após os julgamentos de Nuremberg, ganhando foros de juridicidade com as quatro Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949. O Estatuto de Roma define os crimes de guerra em seu artigo 8º, em previsões que podem ser divididas em quatro grupos: (i) infrações graves às Convenções de Genebra de 1949 em conflitos internacionais, (ii) outras violações graves das leis e usos aplicáveis nos conflitos armados internacionais dentro do marco do Direito Internacional, (iii) infrações graves às Convenções de Genebra de 1949 em conflitos não-internacionais e (iv) outras violações graves das leis e usos aplicáveis dentro do marco do Direito Internacional nos 16 A descrição abstrata de comportamentos proibidos, de forma pormenorizada, individualizando suas características e elementos próprios, distinguindo-os uns dos outros, no sentido de torná-los inconfundíveis é denominada de tipo penal. 17 A adequação do fato praticado pelo agente ao tipo penal é denominada de tipicidade. 225 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem conflitos armados não-internacionais.18 Percebe-se, dessa feita, que o elemento comum a todos os crimes de guerra é a necessária existência de um conflito armado, seja de caráter internacional ou não-internacional. Ainda, ao tipificar condutas praticadas em conflitos armados internos, o Estatuto de Roma ampliou o conteúdo dos referidos delitos, adotando, todavia, salvaguardas com o intuito de defender o direito dos Estados de manter sua ordem interna, sua soberania e unidade, e evitar que a prática isolada de crimes de guerra viesse a ser objeto de julgamento pelo TPI (MAIA, 2000). Feitas tais observações, pode-se considerar que certos crimes de guerra tipificados no Estatuto de Roma podem vir a ser identificados também como atos terroristas, desde que preenchidas certas condições, a saber: (i) sejam cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte 18 “Artigo 8o Crimes de Guerra 1. O Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes. 2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”: a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente: i) Homicídio doloso; ii) Tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas; [...] b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja bens que não sejam objetivos militares; [...] c) Em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, as violações graves do artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos atos que a seguir se indicam, cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo: i) Atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura; ii) Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; iii) A tomada de reféns; iv) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como indispensáveis. [...] e) As outras violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm caráter internacional, no quadro do direito internacional, a saber qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional; [...]”. Disponível em < http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm >. Acesso em 04 de setembro de 2014. 226 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem de uma prática em larga escala desse tipo de crimes, (ii) sejam praticados no âmbito de um conflito armado internacional ou não internacional e (iii) possuam a finalidade de semear o terror, ou seja, devem ser cometidos com o objetivo de intimidação e com a intenção e espalhar o medo e a violência.19 Quanto a este último requisito, assevera CASSESE (2003) que: O actus reus é um ataque ou uma ameaça de ataque a civis (ou objetos civis), ou a adoção de outras medidas intimidatórias destinadas a espalhar o medo e a angústia entre civis. O elemento subjetivo deve ser a intenção de executar atos ilegais ou ameaças ou violência contra civis. Todavia, tal intento deve sempre vir acompanhado de uma especial intenção, qual seja, causar terror (medo, ansiedade) entre civis. É evidente nas previsões relevantes que espalhar ameaça ou medo entre civis deve ser o ‘objetivo primordial’ dos atos ilegais ou ameaças de violência. Interessantemente, em um caso recente (Galic) trazido perante o Tribunal Internacional para a antiga Iugoslávia, o Promotor sustentou a responsabilidade do acusado por ilegalmente infligir terror contra civis como um crime de guerra. Assim, de acordo com BRANT (2005), desde que preenchidas as condições anteriormente referidas a prática de atos terroristas pode ser julgada pelo Tribunal Penal Internacional sob o nomem juris de crime de guerra. Neste sentido, pode-se fazer referência às seguintes disposições contidas no artigo 8º do Estatuto de Roma: (i) homicídio doloso; (ii) o ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde; (iii) destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; (iv) dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; (v) dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares; (vi) atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam 19 Com relação à prática de atos terroristas no decorrer de um conflito armado tem-se que o art. 33 da Quarta Convenção de Genebra de 1949 proíbe expressamente a utilização de medidas de terrorismo contra as pessoas protegidas. Neste mesmo sentido, o art. 4 (d) (d) do Segundo Protocolo Adicional de 1977 prevê que são proibidos, em qualquer momento ou lugar, a prática de atos de terrorismo contra pessoas que não participem nas hostilidades. Tais disposições legais tiveram seu alcance estendido pelo artigo 51 (2) do Primeiro Protocolo Adicional de 1977 e pelo artigo 13 (2) do Segundo Protocolo Adicional de 1977 que proíbem “atos ou ameaças de violência cujo objetivo principal seja espalhar o terror na população civil”. 227 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem defendidos e que não sejam objetivos militares; (vii) destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que tais destruições ou apreensões sejam imperativamente determinadas pelas necessidades da guerra; (viii) atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura; (ix) ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; (x) tomada de reféns; (xi) dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; (xii) dirigir intencionalmente ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional e (xiii) destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam. 3.2. TERRORISMO COMO CRIME CONTRA A HUMANIDADE Importa salientar que, de acordo com MAZZUOLI (2005): Os crimes contra a humanidade têm sua origem histórica no massacre provocado pelos turcos contra os armênios, na Primeira Guerra Mundial, qualificado pela Declaração do Império Otomano (feita pelos governos russo, francês e britânico, em maio de 1915, em Petrogrado) como um crime da Turquia contra a humanidade e a civilização. Ao longo de sua história relativamente recente, a expressão “crimes contra a humanidade” tem evoluído de maneira pouco ordenada, sendo que, segundo MAIA (2001) a primeira definição de modo articulado, muito embora a noção do delito já existisse como parte do direito consuetudinário internacional, foi delineada somente na Carta do Tribunal de Nuremberg e posteriormente incorporada na Carta de Tóquio e na Allied Contril Council Law n. 10. Após o Tribunal de Nuremberg, os crimes contra a humanidade não foram definidos de maneira uniforme em nenhum documento internacional, sendo que, nos dizeres de JAPIASSÚ (2004): [...] tal fato se deu pela falta de uma convenção internacional dedicada à matéria, como ocorreu com o genocídio, apesar de haver referência a crimes contra a humanidade em 11 documentos internacionais referentes à matéria, entre 1948 e 1998, além de outros 41 instrumentos, que vão de 1943 a 1993, e que tratam de matéria correlata, como tortura e apartheid. 228 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Dessa forma, muito embora considerado um dos delitos centrais, a definição dos crimes contra a humanidade foi tema de diversas discussões na Conferência de Roma, tendo sido estas geradas principalmente em virtude dos inúmeros problemas da noção constante na Carta de Nuremberg, dentre os quais seu atrelamento forçado a seu “irmão siamês,” os “crimes de guerra” (SUNGA, 2000). Contudo, não obstante as referidas dificuldades, os crimes contra a humanidade foram definidos de forma bastante clara e detalhada no artigo 7º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que elenca condutas cometidas no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque20. A leitura de tal artigo demonstra que neste foram enumerados certos atos caracterizadores de crime contra a humanidade (homicídio, extermínio, escravidão, tortura, violações sexuais, perseguição por motivos políticos ou em função de raça, cultura, religião, etnia etc.), que, de forma geral, podem ser perpetrados por um indivíduo ou por um grupo de indivíduos no decorrer de uma empreitada levada a efeito para causar terror em uma determinada população civil. Com efeito, de acordo com BAZELAIRE e CRETIN (2004), a atividade desempenhada pelos grupos terroristas corresponde frequentemente à definição dos crimes contra a humanidade, pelo que questionam: [...] não se poderia considerar, por exemplo, que a colocação reiterada de bombas ou o lançamento de gases mortais em locais públicos constituem 20 Para os fins do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade” qualquer um dos seguintes atos quando praticados como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque: Homicídio; Extermínio; Escravidão; Deportação ou transferência forçada de populações; Encarceramento ou outra privação grave da liberdade física, em violação às normas fundamentais do direito internacional; Tortura; Estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou outros abusos sexuais de gravidade comparável; Perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, fundada em motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gênero, como definido no parágrafo 3º, ou outros motivos universalmente reconhecidos como inaceitáveis conforme o direito internacional, em conexão com qualquer ato mencionado no presente parágrafo ou com qualquer crime da jurisdição deste Tribunal; Desaparecimento forçado de pessoas; O crime de “apartheid”; Outros atos desumanos de caráter similar que causem intencionalmente grande sofrimento ou atentem gravemente contra a integridade física ou a saúde mental ou física; (...). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm >. Acesso em 04 de setembro de 2014. 229 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem perseguição de um grupo ou de uma coletividade identificável por motivos políticos, raciais ou religiosos? Não é a mesma situação conhecida há tanto tempo pelo País Basco espanhol e pela Irlanda do Norte?” Acrescente-se, todavia que, de acordo com CASSESE (2003): Atos de terrorismo podem se configurar em crimes contra a humanidade quando satisfizerem as exigências específicas destes crimes, ou seja, quando: (i) forem parte de um ataque difundido ou sistemático contra civis, e (ii) os perpetradores estejam cientes do fato de que seus atos criminosos são parte de uma conduta geral ou sistemática. Tem-se então que, uma vez demonstrado que o ato terrorista preenche certas condições, a saber: (i) for dirigido contra a população civil, (ii) assumir grandes proporções, circunstância na qual poderá ser considerado como sendo um ataque “generalizado”, (iii) apresentar gravidade, seja por causar a morte de um número elevado de pessoas, seja pelos meios empregados, (iv) se amoldar a um dos crimes previstos no art. 7º do Estatuto de Roma (elementos objetivos) e, finalmente, (v) seus autores tiverem consciência de que seus atos fazem parte de uma conduta generalizada ou sistemática (elemento subjetivo), pode o Tribunal Penal Internacional conhecer da demanda sem que com isso seja violado qualquer princípio reconhecido pelo Direito Internacional. Importa ressaltar por fim que, mesmo que atualmente pareça pouco provável, uma vez superadas as divergências acerca do conceito de terrorismo, nada impede seja este incluído no rol dos crimes referidos no art. 5º do Estatuto de Roma em sede de revisão, podendo ser ampliada a lista das infrações constantes no referido artigo. Ademais, nada impede também que o Tribunal Penal Internacional exerça sua jurisdição com relação a atos terroristas no caso de outros instrumentos internacionais lhe delegarem competência para processar e julgar tal delito (treated-based crimes). 4. CONCLUSÃO Pode-se concluir que, muito embora não exista uma definição de terrorismo em um instrumento internacional geral, o recurso às jurisdições internacionais se revelaria um mecanismo eficiente e legítimo de repressão aos atos 230 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem terroristas e de salvaguarda dos direitos humanos, posto que potencialmente apto a garantir, ao mesmo tempo, a devida punição dos autores de tais condutas, o respeito aos direitos inerentes a toda a humanidade e a manutenção da paz e da segurança internacionais. De fato, mesmo que não se venha lograr êxito na definição do terrorismo, percebe-se a possibilidade de que o Tribunal Penal Internacional venha a se manifestar acerca de atos que podem ser qualificados como terroristas, muito embora sua competência restrita faça com que os Estados olvidem o relevante papel que tal tribunal pode desempenhar na repressão do fenômeno terrorista, preferindo adotar medidas menos eficazes para tal mister. Dessa forma, muito embora não esteja o terrorismo internacional previsto no Estatuto de Roma dentre os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional, o julgamento de atos terroristas por tal órgão é uma hipótese que se revela possível, bastando, para tanto, que a conduta perpetrada se amolde a uma das tipificações constantes no referido instrumento internacional. Com efeito, uma vez havendo a subsunção do fato praticado à figura típica descrita no Estatuto do TPI, nada obsta de que o ato terrorista seja levado a julgamento perante este, ainda que sob outra nomenclatura (crimes de guerra e crimes contra a humanidade), sem que com isso seja violado o princípio nullun crimen sine lege (uma vez que a infração a qual a conduta terrorista irá se amoldar se encontra definida anteriormente na legislação) ou qualquer outro princípio reconhecido pelo Direito Internacional. Verifica-se, ademais que, com a tipificação do terrorismo em uma convenção internacional, tal delito poderia vir a ser incluído expressamente dentre os crimes de competência do TPI, circunstância que viria proporcionar um combate mais amplo e eficaz à ameaça terrorista, tendo em vista a substituição da atuação deficitária das jurisdições estatais estabelecida pelo princípio aut dedere aut judicare previsto na maioria dos instrumentos internacionais que tratam de atos que podem ser considerados como terroristas, por uma jurisdição internacional, menos suscetível a pressões políticas, e, portanto, com maior capacidade de decidir a questão de forma justa e isenta. REFERÊNCIAS 1. AMBOS, Kai. Os princípios gerais de direito penal no Estatuto de Roma, In AMBOS, Kai e CHOUKR, Fauzi Hassan (Org). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 25-62 231 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 2. ASCENCIO, Hervé. O Desenvolvimento do Direito Internacional Penal. In BRANT, Leonardo Caldeira (Coord.). O Brasil e os novos desafios do direito internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 268-285. 3. BAZELAIRE, Jean Paul; CRETIN, Thierry. A Justiça Penal Internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. Barueri: Manole, 2004. 260 p. 4. BRANT, Leonardo Nemer Caldeira. O Tribunal Penal Internacional como agente jurisdicional no combate ao Terrorismo. In AMBOS, Kai. JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano(Org.). Tribunal Penal Internacional. Possibilidades e Desafios. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 149-161. 5. BRANT, Leonardo Nemer Caldeira. O Terrorismo Internacional e os Impasses do Direito Internacional. MERCADANTE, Araminta de Azevedo e MAGALHÃES, José Carlos de (Org). Reflexões sobre os 60 anos da ONU. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. p. 250-290. 6. CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, inc, 2003, 528 p. 7. FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: mandamentos, 2002, 165 p. 8. GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, 418 p. 9. GUILLAUME, Gilbert. Terrorismo e Justiça Internacional. In: BRANT, Leonardo Nemer (Coord.) O Brasil e os Novos Desafios do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 27-37. 10.HALL, Christopher Keith. La primera propuesta de creación de un tribunal penal internacional permanente. Disponível em <https://www.icrc.org/spa/resources/documents/misc/5tdlkq.htm>. Acesso em 12 de setembro de 2014. 11.JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. 389 p. 12.MAIA, Marielle. Tribunal Penal Internacional: aspectos internacionais, jurisdição e o princípio da complementaridade. Belo Horizonte. Del Rey, 2001. 262 p. 13. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional e as Perspectivas para a Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Século XXI. In AMBOS, Kai. JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano (Org.). Tribunal Penal Internacional. Possibilidades e Desafios. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 139. 14.MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 925 p. 15. SOUZA, Fernanda Nepomuceno. Tribunais de Guerra. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, 146 p. 16.SUNGA, Lyal S. A competência ratione materiae da Corte Internacional Criminal: arts. 5 a 10 do Estatuto de Roma In AMBOS, Kai e CHOUKR, Fauzi Hassan (Org). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 191-219. Recebido em: 16/09/2014 Aprovado em: 20/10/2014 232 POR UMA BIOÉTICA DIALÓGICA E INTERDISCIPLINAR A PARTIR DO HISTÓRICO DE DESENVOLVIMENTO DA DISCIPLINA JURACIARA VIEIRA CARDOSO1 RESUMO Os avanços experimentados pela ciência nos últimos setenta anos fizeram emergir questionamentos profundos sobre os limites das intervenções humanas na saúde e na vida humana. A partir principalmente da década de sessenta, com o relato de abusos em pesquisas científicas envolvendo seres humanos e com o apoderamento dos direitos civis por parte da população, as chamadas biociências tiveram seu papel duramente criticado em face aos avanços tecnológicos. Nesse contexto, a bioética acabou surgindo como resposta a uma possível ameaça representada por estes avanços, mostrando que a ciência havia deixado de ser concebida apenas como caminho para o florescimento humano, uma vez que podia também conduzir a desvarios. O presente artigo faz um estudo analítico dos antecedentes históricos e da criação da bioética, com a finalidade de buscar demonstrar que a disciplina só terá condições de cumprir os objetivos que se propôs desde sua origem, se não se furtar ao compromisso interdisciplinar e dialógico, que hodiernamente deve também ser entendido como a necessidade de buscar instrumentos capazes de garantir a racionalidade e a correção material das deliberações ocorridas no interior da disciplina. Palavras-chave: Bioética. Histórico. Interdisciplinaridade. Dialógica. ABSTRACT Progress experienced by science in the last seventy years have emerged questions about the limits of human interventions in health and human life. Starting mainly from the sixties, with reporting abuse on scientific research involving 1 Mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio de Janeiro. Doutora em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Autora de estudos na área da Bioética. Professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras e membro do Laboratório de Bioética da mesma Universidade. 233 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem human subjects and the empowerment of civil rights by the population, the biosciences had harshly criticized in the face of technological advances. In this context, bioethics just emerging as a possible response, showing that science was no longer conceived only to benefit the human race, it could also lead them to madness. This article is an analytical study of the history and creation of bioethics, in order to demonstrate that this discipline only will be able to do their objectives if being interdisciplinary and dialogical, that mean that need to follow instruments to ensure the rationality and correctness of resolutions that are made of. Keywords: Bioethics. History. Interdisciplinary. Dialogical. 1. INTRODUÇÃO Em época de grandes incertezas morais, na qual as sociedades já não contam com um único fundamento tradicional para encontrarem as respostas mais corretas sobre o melhor caminho a ser seguido e em que, ao mesmo tempo, há uma oferta cada vez maior de avanços técnicos e científicos para a manipulação da vida, da saúde, da doença e da morte, surgem inúmeros discursos teóricos e práticos, buscando substituir as incertezas por verdades dignas de consideração. Nesta esteira, o discurso bioético surgiu, no início da década de 1970, como um meio de conciliar a falta de orientação moral, de um lado, e a excessiva possibilidade de manipulação da vida e da saúde, de outro. A disciplina pretendeu unir aos avanços tecnológicos uma reflexão ética profunda, capaz de evitar que os excessos oriundos da ciência interferissem de modo injustificado na autocompreensão normativa dos seres humanos. O desenvolvimento da disciplina foi rápido e, na atualidade, ela já conta com considerável material teórico e dispõe de diferentes métodos para análise de questões práticas envolvendo a vida e a saúde e as tecnologias a elas associadas. Entretanto, não são raras as vezes em que os pesquisadores da bioética ofertam soluções diametralmente opostas para os difíceis dilemas que a disciplina se propõe a ajudar solucionar. Um estudo sobre os antecedentes sociais, políticos e científicos para o surgimento de um clamor social pela criação de uma nova disciplina, capaz de unir conhecimentos humanísticos e éticos aos avanços tecnológicos sobre a vida e a saúde humana, bem como uma pesquisa sobre o surgimento da disciplina, mostram quão imperiosa é a necessidade de que se fixem meios racionais para 234 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem os debates bioéticos, que são em sua essência dialógicos e interdisciplinares. Não se tem dúvida da complexidade que as questões bioéticas representam em contextos complexos e plurais, todavia, por si só, isto não é razão para imaginar que suas respostas não possam ter pretensão de correção. Na sociedade pós-tradicional, a bioética deve representar um locus capaz de unir diversos saberes em uma perspectiva abrangente e crítica. Conforme lembra Habermas (2006, p. 70), ao se referir aos limites das intervenções humanas advindas das técnicas genéticas e da medicina reprodutiva, as respostas corretas ainda não podem ser dadas, todavia, a biologia, por si mesma, não tem capacidade para dá-las. Portanto, necessariamente, precisará de auxiliares externos à própria ciência, para encontrar respostas para questões que a todos envolvem. 2. DESENVOLVIMENTO A) CONTEXTO SOCIAL, POLÍTICO E CIENTÍFICO PARA O SURGIMENTO DA BIOÉTICA O surgimento de uma nova área do saber é sempre lastreado por uma necessidade contingencial, que se mostra ao ser humano como busca de soluções para novas perguntas que se apresentam. Como não poderia deixar de ser, com a bioética acontece o mesmo. Seu surgimento coincide com profundas modificações sociais ocorridas a partir da metade do século XX. De um lado estão o reconhecimento do pluralismo, o desenvolvimento das tecnociências, o clamor pela efetivação dos direitos individuais e as diferenças nas relações entre médicos e pacientes ocasionadas por estas transformações; de outro, a exposição dos abusos em pesquisas biomédicas, principalmente nos Estados Unidos da América e as limitações na alocação de verbas públicas para a assistência à saúde. A compreensão da razão do surgimento da bioética encontra forte vinculação com os eventos que antecederam o surgimento da disciplina. Aqui se buscará apresentar os fatos de modo linear, todavia, que fique consignado que a história não se apresenta de modo tão lógico. O esforço tem apenas fins didáticos. É possível afirmar que um marco inicial para o surgimento da bioética pode ser representado pelo julgamento de Nuremberg, em 1947, instituído pelo Tribunal Militar Americano para julgar os crimes de guerra e que desvelou os 235 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem abusos em pesquisas com seres humanos2, levadas a cabo por médicos nazistas nos campos de concentração alemães. A fim de julgar a questão, o Tribunal elaborou dez regras que se tornariam parâmetros para análise dos casos envolvendo uso de seres humanos em pesquisa (CASCAIS, 2002, p, 57). Tais regras, inicialmente concebidas apenas para aquele julgamento, acabaram por se tornar o que hoje é conhecido como Código de Nuremberg, primeiro instrumento internacional relacionado ao consentimento dos envolvidos em pesquisas que, segundo Drane (2002, p. 71), foi uma das bases da nova bioética, ao fazer constar a necessidade de consentimento informado para os participantes de pesquisas. Todavia, o código encontrou pouca aplicação prática, uma vez que os profissionais de saúde eram unânimes em afirmar que tais experimentos nazistas não haviam sido conduzidos por pessoas legalmente habilitadas, portanto, não diziam respeito às suas conduções na prática da medicina. Outro antecedente histórico que pode ser aqui afirmado como preponderante para o desenvolvimento futuro da bioética foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Todavia, em um primeiro momento, afirma Gracia (2004, p. 7), ela não representou grande avanço para disciplinar as práticas biomédicas, pois as relações entre médicos e pacientes ainda se baseavam na assimetria entre as partes, o que só começou a mudar a partir do apoderamento dos novos conceitos trazidos pelas declarações, o que só ocorreu a partir das décadas de 1960 e 1970. O primeiro grande salto da ciência rumo ao que hoje comumente é chamado de ciência biomédica começou a se desenvolver a partir da década de 1950, com a descoberta da dupla hélice do deoxyribonucleic acid (DNA) (NEVES, 2002, p. 109) que, mais tarde, conduziria aos avanços e aos questionamentos sobre a engenharia genética. Naquele momento histórico, os esforços da ciência ainda eram vistos como necessariamente vinculados ao florescimento humano, portanto, incapazes de causar algum mal. Especificamente no campo da medicina prática, em 1952, a Dinamarca 2 Os abusos em pesquisa envolvendo seres humanos sofreu significativa redução com a regulamentação do setor, mas ainda persistem, segundo Lousana (2007, p. 131-134) as fraudes em tais experimentos. Entre as fraudes mais comuns ainda existentes é possível destacar aquelas que (a) fabricam dados; (b) modificam dados; (c) violam normas regulatórias. Sobre tais abusos em pesquisa, Shah (2008, p. 16) escreveu um livro de título sugestivo, Cobaias Humanas, e conteúdo preocupante, no qual mostra como pesquisas clínicas para o desenvolvimento de fármacos, notadamente destinados à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, foram feitos em populações do continente africano, sem que se tomassem as devidas precauções. A autora conclui que, desde o estudo da sífilis em Tuskegee até os dias atuais, o que se pode notar é que os abusos ocorrem sempre sobre os mais pobres e vulneráveis. 236 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem apresentou, pela primeira vez, as técnicas de reanimação e respiração artificial, o que conduziria, mais tarde, aos questionamentos sobre o limite de seu uso e a busca por meios para se evitar o abuso. A partir do apoderamento dos novos conceitos apresentados pela Declaração Universal de Direitos Humanos, na década de 1960, floresceram os movimentos que colocavam em cheque o poder das grandes instituições, dando ênfase a mais autonomia e igualdade, isto em todos os níveis institucionais. Com o questionamento das grandes instituições sociais, tais como a família, a igreja e o estado, o pluralismo se apresentou de modo irreversível. Foi neste momento que as políticas públicas do presidente norte americano John F. Kennedy abriram-se no combate à pobreza, o que aumentou os gastos sociais do governo, bem como propiciou, a um grande número de norte-americanos, o acesso ao Seguro Social de Saúde, refletindo uma preocupação com a justiça e com a igualdade. Do mesmo modo, lutas contra a discriminação racial, políticas de discriminação positiva e integração racial nas escolas faziam parte do cenário estadunidense. Em Cuba, ocorreu a Revolução Cubana e, na América Latina e na África, cresceram os movimentos a favor de liberdade e os movimentos feministas e de minorias (FERRER; ÁLVAREZ, 2005, p. 67-74). Os questionamentos sobre a legitimidade das ações institucionais da década de 1960 não deixaram de fora a medicina que, após alguns implementos tecnológicos iniciais, deixou de ser vista como paliativa e de diagnóstico, para se tornar um poderoso instrumento de controle das enfermidades e da morte (CALLAHAN, 2002a, p. 32). A clássica ética médica não conseguia mais responder aos desafios das modernas sociedades tecnológicas. O juramento hipocrático tinha seu fundamento no respeito devido aos deuses e a maior parte dos professores de ética médica no contexto norte-americano, berço para o surgimento da disciplina, era formada por teólogos (DURAND, 2007, p. 9), o que dificultava uma crítica abrangente do modelo vigente na medicina, que depositava grande poder de decisão nas mãos dos médicos e profissionais de saúde, deixando de fora o sistema de valores daqueles submetidos a seus tratamentos. Segundo Mainetti (2011, p. 30), tais questionamentos sobre a ética médica tradicional farão surgir, no final dos anos 1960, uma nova forma de praticar a medicina. O cultivo do campo bioético, por filósofos, teólogos e juristas, deu um giro na posição tradicional da medicina, passando a refletir a influência da filosofia analítica, o sistema jurídico consuetudinário e a teologia protestante, o que possibilitaria, no futuro, a busca por uma medicina ilustrada, não confessional e desprofissionalizada, nesse último caso, querendo refletir um 237 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem menor controle por parte da elite deontológica disciplinar. Assim, neste momento, com os aportes de capital para o desenvolvimento das ciências, a medicina experimentou os primeiros questionamentos sociais sobre os limites de intervenção médica frente aos direitos civis recentemente incorporados nos discursos sociais. Callahan (2002, p. 31), um dos precursores da bioética de origem norte-americana, afirma que, na década de 1960, houve um extraordinário progresso tecnológico na biomedicina, não acompanhado de uma necessária reflexão ética. E foi exatamente na década de 1960 que surgiram os primeiros relatos de pessoas estranhas à medicina fazendo parte de processos de deliberação para a eleição de destinatários de tratamento de saúde e de abusos em decisão médica e em pesquisa, agora não mais na Alemanha nazista, mas sim praticados por médicos americanos, legalmente habilitados para a arte médica. Um desses casos ocorreu em 1961, quando já se havia desenvolvido a técnica de diálise para tratamento de doentes renais crônicos e, com ela, um dos primeiros questionamentos bioéticos se apresentou. Este caso, amplamente mencionado na doutrina bioética, se refere a um artigo de Shana Alexander, publicado na Revista Life que informava sobre a existência de um Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle, formado por nove pessoas, das quais apenas duas eram médicos. O Comitê era responsável pela eleição de critérios não médicos para o tratamento dos doentes renais naquele centro de saúde, a fim de priorizar a alocação de recursos públicos. Aqui, pela primeira vez, a medicina rompeu com o saber médico tradicional, admitindo que “estranhos” tomassem parte na decisão (DINIZ; GUILHEM, 2005, p. 19), certamente por compreender que a avaliação que ali se levava a cabo não era um ato médico em seu sentido genuíno, senão uma escolha que exigia valoração moral. Em 1962, o escândalo sobre o uso da Talidomida® por mulheres grávidas, medicamento ainda não aprovado pelo Food And Drug Administration (FDA)¸ órgão americano responsável pela liberação de medicamentos para serem comercializados, causou inúmeros debates públicos. O uso do remédio por parte de mulheres em fase de gestação acabou ocasionando o nascimento de crianças com má-formação congênita. Tal situação foi o estopim para que, em 1964, a Associação Médica Mundial produzisse a “Declaração de Helsinque”, que foi o primeiro instrumento a trazer claramente uma regulação normativa para as pesquisas envolvendo seres humanos. Todavia, tal declaração, assim como o “Código de Nuremberg”, também não representou avanço bastante, pois, em 1966, um artigo publicado por 238 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Henry Beecher, citado por Diniz e Guilhem (2005, p. 19), trouxe à tona uma realidade diversa daquela esperada: dos 22 relatos que o pesquisador havia compulsado para a confecção de seu artigo, ele havia vislumbrado possíveis violações éticas em pesquisas envolvendo seres humanos em cerca de um quarto deles. Dos casos pesquisados por Beecher, alguns têm destaque na bibliografia bioética. No primeiro deles, conhecido como caso Brooklyn, houve a injeção de células cancerosas em idosos senis, com a finalidade de que fossem observadas suas respostas imunológicas. Outro caso emblemático pesquisado por Beecher foi o Willowbrook, no qual houve a injeção de vírus da hepatite em cerca de oitocentas crianças abrigadas na Escola Estadual de Willowbrook, responsável pelo tratamento de crianças com retardo mental, a fim de se determinar o período da infecciosidade da doença (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2011, p. 553-554). Para fechar a década de 1960, especificamente no ano de 1967, outro avanço na área médica causou profundo mal-estar social e acadêmico. O cirurgião sul-africano Christian Barnard fez a primeira cirurgia de transplante cardíaco, trazendo à tona questionamentos sobre o estado de saúde (ou de vida) do doador do órgão. Tal acontecimento fez com que, em 1968, a Escola de Medicina da Universidade de Havard definisse critérios para a aferição de morte cerebral (STEPKE, 2005, p. 21-23). Em razão dessa série de abusos, surgiram, na década de 1960, os primeiros movimentos sociais, acadêmicos e políticos que buscavam compreender os problemas sociais advindos da tecnologia, sob uma perspectiva interdisciplinar de estudos, envolvendo a ciência, a tecnologia e a sociedade (MUÑOZ, 2003, p. 57), que passou a compreender que quanto mais a ciência e a tecnologia avançassem, mais seria preciso um profundo questionamento ético, que não podia ser feito apenas por seus pesquisadores. A década de 1970 avançou e deu outra mostra dos abusos em pesquisa e também buscou meios de regulamentar as práticas biomédicas. Em 1972, foi levado a público aquele que é considerado um marco do abuso em pesquisa envolvendo seres humanos, principalmente porque já havia regulações sobre tais práticas, as quais foram sumariamente ignoradas. Nesse caso, conhecido como Tuskegee, descobriu-se que quatrocentos negros foram submetidos a uma pesquisa clínica que, em alguns casos, chegou a durar quarenta anos, da qual não sabiam ser parte, cujo objetivo era a avaliação da evolução da sífilis, doença para a qual já havia medicação disponível (penicilina) e que foi propositalmente 239 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem não administrada nos sujeitos da pesquisa (STEPKE, 2005, p. 23-24). A fim de responder aos abusos, o congresso norte-americano, em 1974, promulgou a lei National Research Act, criando uma comissão, formada por integrantes de diversos segmentos sociais, que tinha a finalidade de estudar as questões éticas relacionadas com as pesquisas envolvendo seres humanos. Após quatro anos de trabalho, em 1978, a Comissão Nacional para Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental publicou o Relatório Belmont (Ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research), que trouxe os três princípios éticos fundamentais para se levar a cabo tais pesquisas. Eram eles: respeito à autonomia das pessoas, justiça e beneficência, os quais, mais tarde, se tornariam os elementos básicos da clássica obra de Beauchamp e Childress, Princípios de Ética Biomédica (2011), um marco para o desenvolvimento da disciplina. Ainda na década de 1970, as desorientações morais trazidas pelos implementos tecnológicos na vida e na saúde humanas fizeram com que desaguasse no sistema judiciário o primeiro caso emblemático envolvendo manutenção artificial da vida. Karen Ann Quilan, em 1975, então com 22 anos, deu entrada no hospital em estado de coma irreversível. Os pais da jovem solicitaram ao médico responsável que desligasse o respirador artificial, e ele se recusou. Ingressaram, então, na justiça e tiveram sua pretensão recusada em primeira instância. Apelaram da decisão e a Suprema Corte de New Jersey autorizou o desligamento da respiração artificial, desde que houvesse uma manifestação do Comitê de Bioética do hospital sobre o quadro da jovem, que optou favoravelmente. Após a decisão, o suporte foi desligado, todavia, a jovem manteve-se viva por quase dez anos, sem apresentar qualquer melhora no quadro, à custa de antibióticos, hidratação e nutrição por um tubo nasogástrico (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2011, p. 224-225). Este é apenas um dos exemplos fornecidos pelos autores que têm seu livro permeado por controvérsias em saúde que foram levadas aos tribunais e, consequentemente, ao debate público, demonstrando que, sozinhas, a medicina e a ciência não estavam aptas a buscar soluções para questões complexas que as novas tecnologias traziam. Durand (2012, p. 28-46) afirma que o desenvolvimento tecnocientífico, ao mesmo tempo em que trouxe grandes esperanças, foi também fonte de incertezas e de novos questionamentos sobre os limites das intervenções, trazendo à tona a realidade de que muitos dos temas a eles relacionados ultrapassavam a mera decisão médica tecnicamente fundada. Temas como engenharia genética, critérios para aferição de morte para possibilitar a realização 240 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem de transplantes, a possibilidade de uso de respirador artificial e as técnicas de reanimação, inseminação artificial, dentre outros, trouxeram dúvidas sobre o papel da medicina de sempre buscar o bem dos envolvidos em suas práticas. Assim, desde a década de 1960, já havia se pacificado a opinião pública sobre a transformação do caráter da medicina que, de ciência natural descritiva e curativa, se mostrava como um poderoso instrumento de manipulação da vida humana, dando uma nova dimensão aos problemas éticos tradicionais (ABEL, 2002, p. 23). Junto aos avanços científicos, inegáveis para o desenvolvimento humano, houve também um movimento reflexivo sobre os limites das intervenções do homem sobre a vida do próprio homem. Na década de 1980, a inseminação de três jovens com esperma de ganhadores de prêmio Nobel fez surgir novo debate sobre a possibilidade de eugenia a partir da engenharia genética3. Do mesmo modo, os limites sobre a inseminação artificial foram duramente criticados quando se tomou conhecimento do primeiro caso de barriga de aluguel4. Aqui, pela primeira vez, falou-se publicamente - e não apenas em ambientes acadêmicos - dos riscos que a manipulação da vida e da saúde humana poderiam ocasionar para a sobrevivência do próprio planeta Terra e da espécie humana, mas ainda de maneira muito tímida. Os problemas da década de 1990 foram outros, relativos aos limites para a alocação de recurso na área da saúde, levando a questionamentos sobre quais pacientes deveriam ou não ser socorridos pelo sistema público. De acordo com Asnariz (2002, p. 49), com a globalização, se passou de um estado paternalista, que buscava suprir todas as necessidades, a um estado neoliberal que, ao contrário, delegava funções, em uma economia de mercado, nos moldes do “salve-se quem puder”. Tal situação ocasionou uma nova forma de reflexão bioética, não assentada apenas na autonomia dos sujeitos, mas também trazendo à tona questões sobre a justiça e a beneficência. Segundo Gracia (2004, p. 4-15), a bioética, apesar de contar com pouco mais de quarenta anos de existência, já experimentou três fases. A primeira fase, ou problemas bioéticos de primeira geração, teria ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970 e se concentrou nas questões relativas à autogestão do corpo e ao princípio da autonomia. A segunda fase, ou problemas bioéticos de segunda geração, ocorrida entre as décadas de 1980 e 1990, centrou-se em questões relacionadas à distribuição de recursos e ao princípio da justiça. A terceira, ou 3 Para saber mais sobre o tema ver WESTPHAL (2006, p. 71); DURAND (2012, p. 31) e PRODI (1993, p. 58). 4 Para maiores detalhes acerca das críticas, ver SILVA (2004, p. 25). 241 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem problemas bioéticos de terceira geração, que estaria atualmente em andamento, não encontra vozes uníssonas na doutrina e seria expressa pelas questões bioéticas envolvendo a proteção do meio ambiente e os direitos das gerações futuras5. Admitindo ou não estas fases propostas por Gracia (2004), é certo que, para a bioética, os direitos humanos representaram um grande avanço. A Declaração Universal de Direitos Humanos passou a ser largamente utilizada como fonte de inspiração para as decisões bioéticas e outras regulamentações internacionais específicas para o campo bioético começaram a surgir, tais como a Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos, de 1997; a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003 e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005. Em âmbito regional, houve aprovação de regulamentações sobre bioética em vários locais, tais como a Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina, do Conselho da Europa, aprovada em 1999 e as inúmeras legislações nacionais envolvendo o tema. As declarações passaram a conceber a dignidade humana como o centro da reflexão bioética, para a qual todas as decisões envolvendo a saúde e a vida deveriam convergir; buscaram proteger os sujeitos humanos nas pesquisas, ao mesmo tempo em que reconheceram o importante papel da ciência para o desenvolvimento humano; trataram de estabelecer princípios consensualmente construídos para a condução das questões bioéticas, de modo a regulamentar as práticas e as políticas públicas de saúde e declararam a importância da preservação do meio ambiente para o florescimento da geração atual e das gerações futuras. Enfim, buscaram ser um marco regulatório, de índole moral e jurídica, a fim de orientar as ações que envolvessem a vida e a saúde humana, após os implementos tecnológicos. Assim somadas, todas estas questões propiciaram um ambiente favorável para o surgimento da bioética6. Para Goig (2005, p. 94), a biotecnologia apresenta um futuro surpreendente, todavia, obriga que se enfrentem problemas 5 Guy Durand (2012, p. 114-118) faz veemente crítica à inserção de temas relativos à ecologia no campo da bioética. Sobre um pretenso problema de justiça entre as gerações, Dworkin (2003, p. 107-108) afirma que, do modo como vem sendo apresentada a questão, ela é falaciosa e afirma que “Nossa preocupação com as gerações futuras não é, em absoluto, uma questão de justiça, mas sim de nosso sentimento instintivo de que tanto o florescimento quanto a sobrevivência têm uma importância sagrada.” 6 Nas palavras de Hans Jonas (1994, p. 37), “Ora, as antigas prescrições da ética do ‘semelhante’ – de justiça, de caridade, honestidade, e por aí afora – ainda são válidas na sua íntima contiguidade com a esfera mais próxima e cotidiana da interação humana. Todavia, essa esfera é assombrada por um crescente domínio de ação coletiva em que agente, ação e efeito já não são o que eram na esfera próxima e que, pela desmesura dos seus poderes, impõe à ética uma nova dimensão de responsabilidade nunca antes imaginada.” 242 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem novos, até então desconhecidos. Ela cria um contexto prático em que os dilemas morais mostram-se evidentes e rotineiros. É possível, deste modo, afirmar que o contexto trazido pela: (a) implementação tecnológica e seus usos e abusos, (b) pela dúvida quanto à possibilidade de as ciências da natureza responderem aos desafios por elas mesmas criados, (c) aliados a um forte imperativo ético e jurídico, que evitasse que as experiências antiéticas envolvendo seres humanos do passado se repetissem, fez com que surgisse, segundo Callahan (2002, p. 31), um renascimento da ética normativa, em virtude da insatisfação das análises puramente acadêmicas e teóricas, incapazes de responder às novas questões. Hoje em dia, em assuntos bioéticos, é possível fazer coro com a advertência de Habermas (2006, p. 68), que afirma que, se a biologia não pode dispensar as considerações morais dos envolvidos e se a bioética não deve conduzir a extravios biológicos, ela deve, necessariamente, convergir para a interlocução racional entre os envolvidos. Segundo Escobar (2007, p. 17), a bioética nasce em um contexto científico e secular, no intento de humanizar as tecnologias crescentes no meio social, dando aos sujeitos sociais a possibilidade de se manifestarem de modo efetivo quando as soluções práticas envolverem questões que a todos afetam. Nesse sentido, ela deve buscar ser um local privilegiado para que as difíceis questões morais envolvidas em seu objeto tenham a pretensão de correção, de modo que nenhuma das ciências que compõem o debate bioético pode pretender responder às suas complexas questões de modo isolado. O contexto para o surgimento da disciplina oferta um bom panorama sobre como pode ser compreendida a bioética na pós-modernidade, ou seja, ela nasce como fruto da necessidade de um crescente debate entre todos os sujeitos envolvidos, ou seja, todos os seres humanos: que devem pretender fazer dos dilemas bioéticos um lugar de encontro dialógico, a fim de juntos buscarem as melhores respostas para as questões complexas trazidas pelo implemento tecnológico na vida e na saúde humana. B) HISTÓRICO DA BIOÉTICA A bioética surge, então, como uma necessidade de reflexão abrangente sobre os limites da intervenção tecnológica na vida e na saúde humana e, nesse sentido, desde seu surgimento busca ser o produto de considerações diversas. Atualmente, a palavra parece estar em moda, o que pode acabar ocasionando certa dúvida sobre suas efetivas possibilidades para buscar resolver as questões 243 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem que se propõem, fazendo real o temor de Callahan que, em uma correspondência trocada e citada por Reich (2003, p. 13), afirmava que a popularização do termo, utilizado pelos meios de comunicação como produto para consumo público, poderia prejudicar o desenvolvimento da disciplina. Portanto, é preciso que se esclareça melhor o termo desde suas raízes históricas. Como bem lembra Stepke (2007, p. 46), a palavra não é a coisa. Todavia, é recomendável que se pesquise inicialmente a construção etimológica do termo para iniciar a investigação. Assim, bioética seria a junção das palavras gregas bios, referente à vida humana e ethos, referente ao conhecimento dos sistemas de valores humanos. A etimologia diz pouco e para alguns pode até mesmo soar vazia, pois, como assevera Andorno (2012, p. 11), a palavra bioética, por si só, permite reunir muitas reflexões. Portanto, é preciso investigar mais a fundo o que se pretendeu propor quando foi cunhado o termo e quando os primeiros institutos de bioética foram formados. A doutrina bioética admite que a disciplina surgiu a partir das reflexões levadas a cabo por duas instituições norte-americanas, quase que ao mesmo tempo. De um lado, a Universidade de Wisconsin, em Madison e, de outro, a Universidade de Georgetown, em Washington7. Na primeira, sob o comando de Van Rensselaer Potter, pesquisador ligado à área de oncologia e, na segunda, de André Hellegers, obstetra holandês e pertencente ao quadro daquela Instituição. De ambos os lados, segundo Reich (2003, p. 5), a bioética visou influenciar o surgimento de um novo campo do conhecimento, interdisciplinar 7 Não se desconhecem os trabalhos do teólogo Fritz Jahr (2012), encontrados pelo bioticista alemão Hans-Martin Sass, pesquisador do Instituto Kennedy de Bioética de Washington, escritos entre 1927 e 1947, nos quais defende um conceito de bioética amplo, em que estariam inseridas todas as relações morais dos seres humanos com as demais formas de vida, humanas e não humanas. O autor propõe uma substituição do imperativo categórico formal kantiano por um imperativo bioético abrangente. Em suas palavras: “O 5º mandamento adverte: ‘não matarás’. O termo ‘matar’ sempre significa matar algo vivo. Os entes vivos são, no entanto, seres humanos, animais e plantas. Visto que o 5º mandamento não proíbe matar exclusivamente seres humanos, não deveria ser aplicado aos animais e plantas de forma análoga? [...] Quanto à realização potencial de tais deveres morais com todos os seres vivos, isso pareceria utópico. Porém, não podemos ignorar que as obrigações morais com um ser vivo se relacionam às suas necessidades (Herder), e respectivamente ao seu destino (Krause). Assim, as necessidades dos animais parecem ser menores, em termos de quantidade e menos complicada, em termos de conteúdo, do que as dos seres humanos e isso se aplica às plantas, a fim de que as obrigações morais com elas devam proporcionar menos complicações do que as dos animais, pois são menores (se não forem em termos conceituais, são em termos práticos). Aqui entra em jogo o princípio da luta pela vida que também modifica nossas obrigações morais com os irmãos em escala superior. Dentro desses limites, sempre haverá possibilidades suficientes para ações bioéticas.” (JAHR, 2012, p. 462-464). Não se adota neste trabalho uma perspectiva tão abrangente para o termo bioética e nem tampouco o autor é considerado aqui como o precursor da moderna disciplina, por compreender que sua visão não conseguiu antecipar o que viria a ser concebido como bioética. 244 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem e dialógico, que buscasse refletir criticamente sobre os impactos da ciência na vida e na saúde. Durante muitos anos, permaneceu na doutrina a discussão acerca de quem havia sido o criador do neologismo. No entanto, hoje em dia, há unanimidade em torno do fato de que o primeiro pesquisador a fazer referência ao termo bioética em uma publicação acadêmica foi Potter, no ano de 1970, em um artigo denominado Bioethics: The Science of Survival e, posteriormente, em 1971, em seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the Future. Entretanto, foi Hellegers o responsável pela disseminação do termo na academia a partir da implantação do primeiro centro universitário dedicado ao tema, chamado The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics, graças a generosos donativos da família Kennedy, disposta a financiar pesquisas sobre a prevenção da doença mental congênita. De acordo com Reich (2003, p. 13), não seria absurdo conceber que o termo tenha sido cunhado ao mesmo tempo pelos dois pesquisadores, todavia, é preciso admitir que foi Potter quem primeiro o utilizou em uma publicação científica, querendo, com ele, defender a necessidade de uma nova disciplina chamada bioética, oferecendo a ela um esboço metodológico interdisciplinar. De outro lado, defende o autor, também é preciso admitir que foi Hellegers o responsável pelo desenvolvimento da disciplina, por meio da criação do primeiro instituto de bioética. No entanto, a paternidade do termo ou seu posterior desenvolvimento não são de todo importante como é a diferença abissal que havia entre as duas aspirações primárias. De um lado, Potter (2001, p. 338) pensou em um campo de saber interdisciplinar capaz de garantir que o desenvolvimento tecnológico fosse também acompanhado de conhecimentos ligados aos sistemas de valores, capazes de influenciar criticamente o desenvolvimento das incipientes descobertas científicas e que, acima de tudo, não colocassem em risco a própria sobrevivência do planeta Terra. Por isso mesmo ficou conhecida como “bioética ecológica”. Em suas palavras, “o que agora devemos enfrentar é que a ética humana não pode ser separada de um entendimento realista da ecologia, no sentido mais amplo da palavra. Os valores éticos não podem se separar dos fatos biológicos” (POTTER, 2002, p.122, tradução nossa).8 8 Lo que ahora debemos enfrentar és que la ética humana no puede ser separada de un entendimiento realista de la ecologia en el sentido más amplio da palavra. Lós valores éticos no puedem separarse de lós hechos biológicos. 245 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Segundo o autor, a proposição do termo bioética advinha da necessidade de se pensar uma disciplina completamente nova, capaz de colocar em diálogo todos os interlocutores envolvidos nas ciências biológicas e humanas, pois não haveria nenhum sujeito capaz de conseguir, isoladamente em sua área, responder aos questionamentos que os novos avanços científicos apresentavam ao homem. Esta nova disciplina, comunicativa por excelência, seria a responsável pela promoção da interlocução responsável entre os diversos campos do saber, a fim de buscar explicações e propor políticas públicas capazes de garantir o futuro da humanidade, combinando biologia básica, ciências sociais e humanidades (POTTER, 2002, p. 123). Sua preocupação baseava-se no fato de que o progresso humano não estaria garantido e que ele não seria uma consequência natural da evolução “darwiniana”. Para Potter (2002, p. 139), o mundo natural não poderia ser objeto de manipulação desmedida, sendo a bioética o caminho para o equilíbrio entre os apetites culturais e as necessidades biológicas, em termos de políticas públicas. A bioética seria, como proposta pelo autor, um campo reflexivo capaz de gerar “conhecimento” sobre o modo pelo qual o “conhecimento” deveria ser práticado e utilizado pelos seres humanos, para que, a partir da análise da natureza biológica do homem e do mundo que o cerca, pudesse se buscar o bem social e a preservação ambiental. Assim, para Potter (2002, p. 124-125), a bioética seria a “ponte” responsável por unir as ciências e as humanidades, ponte esta que reconheceria que os valores éticos não deveriam ser separados dos fatos biológicos e que, apesar de difícil, o diálogo entre ambas seria imperioso para a nova sociedade tecnológica que se apresentava. Em sua opinião, a união entre ambas traria a “sabedoria”, que teria como finalidade a conservação da vida, globalmente considerada. Defendia o autor que as pessoas sábias necessariamente usariam seus conhecimentos para a melhora da qualidade de vida humana, desde que, para tanto, fizessem esta ponte entre ciências e humanidades. Em um artigo no qual Potter (2001) analisa seu percurso acadêmico e a construção do neologismo, ele assim resume seu trabalho e os desdobramentos da disciplina: O que me preocupava então, 36 anos atrás, quando tinha 51 anos, era questionar o progresso e para onde o avanço materialista da ciência e tecnologia estava levando a cultura ocidental. [...] Em minha visão, entendo a bioética como ciência da sobrevivência humana, esta deve estabelecer 246 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pontes com as ideias da ética social existente hoje. [...] O conceito de bioética ponte foi o primeiro estágio do pensamento bioético. O segundo estágio foi a ideia de bioética global, entendida como uma moralidade que resultaria na construção de uma ponte entre a ética médica e a ética ambiental. Nos anos 90, o reconhecimento de uma série de dilemas éticos levou à conclusão de que uma ponte entre a ética médica e a ética ambiental não era suficiente. Todas as especialidades éticas precisam ir além de seus dilemas imediatos e avançar para suas obrigações a longo prazo. (POTTER, 2001, p. 339-344). Uma primeira crítica possível à teoria potteriana é que sua definição de bioética seria ampla demais e poderia justificar que qualquer tema ligado à vida fosse seu objeto de pesquisa, o que tornaria a disciplina praticamente impossível de ser trabalhada, ainda que interdisciplinarmente. Stepke (2007) afirma que, apesar de cunhar o neologismo, Potter não conseguiu antecipar o que viria a ser a bioética. Ao contrário, ele se apresentou como um “[...] profeta da catástrofe ecológica que ameaçava a sobrevivência humana” (STEPKE, 2007, p.46, tradução nossa).9 Para Asnariz (2002, p. 47), seria possível criticar o termo do modo como foi cunhado por Potter, pois, em grego, o termo bios só pode se referir à vida humana, e, portanto, seria redundante falar de uma ética da vida, pois não há ética sem vida humana. No entanto, segundo a autora, é preciso considerar em Potter não propriamente a extensão que pretendeu dar ao termo, mas sim o fato de cunhá-lo e ligá-lo a uma preocupação com os avanços da técnica sobre a vida humana e chamar a atenção para uma possível desumanização dos sujeitos frente aos excessos tecnológicos. Ferrer e Santory (2008, p. 21) criticam Potter em razão de o autor ter simplificado demasiadamente as coisas, quando se referiu à capacidade da “sabedoria” para o florescimento humano, bastando, para tanto, que se estabelecesse uma ponte entre ciência e humanidades. Para os autores, esta é a razão pela qual a bioética de Potter é frequentemente reconhecida como uma “bioética ecológica”, muito mais preocupada com os impactos ambientais que poderiam ser ocasionados pelos excessos da tecnologia, do que com os limites da intervenção na vida e na saúde humanas no contexto biomédico, conforme é concebida a disciplina hodiernamente. 9 [...] profeta de la catástrofe ecológica que amenazaba la supervivencia humana. 247 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem De outro lado, a bioética de Hellegers centrou-se em uma disciplina mais voltada para a área biomédica e buscou aplicar no novo campo interdisciplinar do saber, a metodologia da tradição filosófica e teológica do ocidente, fazendo desta um campo da ética geral aplicada à biomedicina. Segundo Reich (2003, p. 5), as pesquisas de Hellegers encontraram predomínio nos meios científicos e na mente do público em geral, enquanto as de Potter foram marginalizadas em virtude de sua abrangência. As pesquisas de Hellegers estavam muito mais ligadas às questões práticas advindas das novas tecnologias e, portanto, havia interesse tanto social quanto institucional para o desenvolvimento das pesquisas apresentadas por este autor. Os questionamentos sobre os limites de intervenção do homem na natureza não estavam ainda postos, em meio à euforia dos avanços tecnológicos e às possibilidades apresentadas por sua implementação para o florescimento humano. Passados os tempos e aumentados os questionamentos sobre a vida humana pessoal e comunitária, bem como os possíveis malefícios que a excessiva intervenção na natureza poderia causar, tanto para as gerações presentes quanto para as futuras, assiste-se, hoje, a um ainda modesto resgate da teoria potteriana abrangente. Segundo Sariego (2009, p. 83), a bioética potteriana é confusa, todavia, holística e, portanto, pode se mostrar mais compatível com uma visão própria do pensamento pós-tradicional complexo, no qual conhecimento e valor são tomados como condições necessárias e iniciais para a compreensão da vida e do destino humano. Para saber até que ponto tal resgate se mostrará benéfico, será preciso aguardar o desenvolvimento da disciplina. É preciso que fique consignado que defendemos que a abrangência da disciplina deve ser limitada àquelas questões que diretamente se relacionam com o emprego da tecnologia para a manipulação da vida e da saúde humana, conforme proposto pela Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos. Por tudo o que foi apresentado, é possível concluir que a bioética, em ambos os casos, surgiu como busca de respostas racionais e reflexivas às questões colocadas a partir do emprego da tecnologia para a manipulação da vida e da saúde humana, em uma perspectiva capaz de unir diferentes campos do saber, para a promoção de um diálogo responsável e interdisciplinar, voltados para a criação de consensos argumentativamente orientados. Assim, para que a bioética possa cumprir os compromissos que ela mesma propõe desde seu surgimento é imperioso que se busquem meios para fundar decisões racionalmente justificados, de modo a garantir um diálogo respeitoso e comprometido 248 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem entre as partes. Sem dúvida este é atualmente o maior desafio da bioética, para o qual não podemos nos furtar. 3. CONCLUSÃO Algumas razões para o surgimento da bioética foram a necessidade de ofertar respostas aos desafios trazidos pelo desenvolvimento das tecnociências, ao apoderamento de novos conceitos e a exposição dos abusos de pesquisas com seres humanos. A partir da década de 40 é possível vislumbrar movimentos sociais, políticos e jurídicos que iriam conduzir mais tarde ao clamor por uma disciplina capaz de unir em uma estrutura interdisciplinar os diversos campos do saber para a construção de respostas compartilhadas para suas difíceis questões dilemáticas. Em 1970 surge a bioética como um lócus refletivo sobre os limites da tecnologia para manipulação da vida e da saúde humana em contextos complexos e plurais. A disciplina teve duas vertentes, todavia, para qualquer das duas que se mire o que se vê é a necessidade de que a bioética seja interdisciplinar e dialógica. Que seja um campo capaz de promover um diálogo racionalmente construído. A questão que se coloca para a bioética nos dias atuais é exatamente pensar em meios racionalmente justificáveis para suas decisões, de modo que não fique parecendo aos membros da sociedade civil – diretamente afetados – que há uma considerável falta de orientação na disciplina. REFERÊNCIAS 1. ABEL, Francesc. Bioética: um nuevo concepto y uma nueva responsabilidad. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 1, p. 22-35, 2002. 2. ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona. 2ª ed. Madrid: Tecnos, 2012. 3. ASNARIZ, Teresa. ?De qué hablamos cuando hablamos de bioética? Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 1, p. 37-57, 2002. 4. BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. 2ª ed. Trad. Luciana Prudenzi. São Paulo: Loyola, 2011. 5. CALLAHAN, Daniel. Bioética. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 2, p. 29-43, 2002. 6. CASCAIS, António Fernando. Genealogia, âmbito e objecto da bioética. In: BARBOSA, 249 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem J.R; SILVA, A.; VALE, F.M. (Org.). Contributos para a bioética em Portugal. Lisboa: Ed. Cosmos, 2002. p. 47-136. 7. DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2005. 8. DRANE, James E. Presente Y futuro de la bioética. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 1, p. 69-85, 2002. 9. DURAND, Guy. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. Trad. Nicolás Nymi Campanário. São Paulo: Loyola, 2012. 10.DURAND, Guy. Naturaleza de la bioética. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 12, p. 7-15, 2007. 11.DWORIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 12.ESCOBAR, Alfonso Llano. La bioética em America Latina Y el Caribe. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 12, p. 16-25, 2007. 13.GOIG, Ramón Llopis. La bioética como tercera cutura: un análisis desde la sociologia de la ciencia. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 7, p. 86-95, 2005. 14.GRACIA, Diego Guillén. De la bioética clínica a la bioética global: treinta años de evolución. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 6, p. 4-16, 2004. 15.FERRER, Jorge José; SANTORY, Anayra O. Hacia una bioética global: ecología e justicia. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 14, p. 19-33, 2008. 16.FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 17.HABERMAS, Jurgen. La biología no conoce ninguna moral: no és la naturaleza que prohíbe la clonación. Nosotros mismos tenemos que decidir. Respuesta a Dieter E. Zimmer. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 11, p. 68-70, 2006. 18.JAHR, Fritz. Três estudos sobre o quinto mandamento, 1934. In: PESSINI, Leo et al. (Org.). Ética e Bioética clínica no pluralismo e na diversidade. São Paulo: São Camilo, 2012b, p. 439-490. 19.JONAS, Hans. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Veja, 1994. 20.LOUSANA, Greyce. (Org.). Pesquisa clínica no Brasil. Rio de Janeiro: Revinter, 2007. 21.MAINETTI, José Alberto; MAINETTI, José Luis. Manual de bioética. La Plata: Artes Gráficas San Miguel, 2011. 22.MUÑOZ, Emílio. Percepción social de la biotecnologia: um nuevo instrumento para la toma de decisiones. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá n. 4, p. 56-66, 2003. 23.NEVES, María do Céu Patrão. Tendencias actuales de la bioética: de la normtividad de la acción a lãs exigencias de su fundamentación metafísica. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 1, p. 109-120, 2002. 24. POTTER, Van Rensselaer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 1, p. 121-139, 2002. 250 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 25.POTTER, Van Rensselaer. Bioética global e sobrevivência humana. In: PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. (Org.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2001. p.337-347. 26.PRODI, Giorgio. O indivíduo e sua marca: biologia e transformação antropológica. São Paulo: UNESP, 1993. 27.REICH, Warren Thomas. La palabra bioética: su nascimiento y el legado de quienes la invenraron. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 4, p. 4-16, 2003. 28.SARIEGO, José Ramón Acosta. La bioética de Potter a Potter. Revista Selecciones de Bioética, Bogotá, n. 15, p. 75-83, 2009. 29.SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 30.SHAH, Sonia. Cobaias humanas: os testes de medicamentos no terceiro mundo. Trad. Catarina Correia. Portugal: Caleidoscópio, 2008. 31.STEPKE, Fernando Lolas; DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Fundamentos de uma antropologia bioética: o apropriado, o bom e o justo. São Paulo: Loyola, 2007. 32.STEPKE, Fernando Lolas. Bioética: o que é, como se faz. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005. 33.WESTPHAL, Euler R. Para entender a bioética. São Leopoldo: Sinodal, 2006. Recebido em: 25/09/2014 Aprovado em: 28/10/2014 251 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A PROPOSTA DE REFORMA DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS E O ESTADO BRASILEIRO THE REFORM PROPOSAL SECURITY COUNCIL OF THE UNITED NATIONS AND THE BRAZILIAN STATE MÉRCIA CARDOSO DE SOUZA 1 RESUMO A Organização das Nações Unidas - ONU foi criada por meio da Carta das Nações Unidas em 1945, com o objetivo de promover a paz e a segurança internacionais, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A ONU conta com seis órgãos, sendo considerado o mais importante o Conselho de Segurança, onde são votados e deliberados os temas relativos à segurança, paz, etc. O presente trabalho objetiva analisar o papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas - CSNU, bem como a proposta de reforma do referido órgão e a repercussão desse processo no Estado brasileiro. Nesse sentido, tecer-se-ão comentários acerca da gênese da ONU, bem como de seus órgãos, em especial, do Conselho de Segurança, a proposta de reforma deste, bem como as repercussões no Estado brasileiro, de modo a suscitar aspectos relevantes para debates vindouros. Palavras-chave: Brasil. Conselho de Segurança. ONU. ABSTRACT The United Nations - UN was established by the UN Charter in 1945, with the aim of promoting international peace and security after the end of World War II. The UN has six bodies, being considered the most important Security Council, which are voted and resolved the issues relating to security, peace, etc. This paper aims to analyze the role of the Security Council of the United Nations - UNSC as well as the 1 Doutoranda em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora Colaboradora do Curso de Serviço Social das Faculdades Cearenses. E-mail: [email protected]. 252 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem proposed reform of that body and the impact of this process in the Brazilian state. In this sense, weaving shall be comments about the genesis of the UN and its organs, in particular the Security Council, the proposed renovation of this, as well as the impact in the Brazilian state, in order to raise issues relevant to coming debates. Keywords: Brazil. Security Council. United Nations. 1. INTRODUÇÃO A comunidade internacional não vai bater à nossa porta com um convite para ingressarmos como membros permanentes do Conselho de Segurança (...) Não há razão, como se fazia anteriormente, para postularmos nossa candidatura apenas quando a questão estiver “madura”. Aí será tarde, e se não procurarmos influenciar o debate, é sempre possível que se avance em um formato de reforma que não seja do nosso interesse. (Chanceler brasileiro Celso Amorim, Rio de Janeiro, 13/12/2004)2 A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial. Segundo a Carta das Nações Unidas, os propósitos da organização são: manter a paz e a segurança internacionais, desenvolver relações amistosas entre as nações, conseguir uma cooperação internacional para resolver problemas internacionais e promover e estimular o respeito aos direitos humanos, e ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns3. Atualmente, a ONU conta com 193 Estados Partes4. A ONU é constituída por seis5 órgãos principais: a Assembleia Geral, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Segurança, o Conselho de Tutela, o Secretariado, e a Corte Internacional de Justiça. Os cinco primeiros possuem sede em Nova Iorque, e o último na Haia, Holanda. Na estrutura organizacional desses órgãos, encontram-se os diversos programas, fundos, comissões e agências especializadas, dentre outros, que compõem o sistema ONU. (UNITED NATIONS, online) 2 Conferência do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, com sede no Rio de Janeiro. 3 Vide artigo 1° da Carta das Nações Unidas. 4 Desde 2011 a ONU conta com 193 Estados-membros. O último país admitido foi Sudão do Sul 5 Vide artigo 7° da Carta das Nações Unidas. 253 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Este trabalho científico tem por fim analisar uma possível reformulação na estrutura do Conselho de Segurança da ONU, bem como a posição do Brasil nessa conjuntura, na busca por um assento enquanto membro permanente. 2. A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS A ONU se constitui na segunda tentativa de parte da comunidade internacional em promover a paz entre as Nações e a segurança internacional, por meio de uma organização internacional, porquanto a primeira foi a Sociedade das Nações, também conhecida como Liga das Nações, que funcionou em Genebra, após a Primeira Guerra mundial, em 1919. Tal organização não obteve êxito, pois vira o Japão invadir a Manchúria, a Itália tomar a Etiópia e os exércitos nazistas realizarem suas primeiras conquistas. Nesse contexto, foi dissolvida em 1939, não tendo atingido o seu objetivo. Numerosas razões foram ventiladas a fim de documentar a incapacidade da Sociedade das Nações para sobreviver. Uma de suas maiores debilidades foi a não participação das grandes potências em seu seio, situação que prejudicou o princípio da segurança coletiva. A não participação dos Estados Unidos desde o início dos trabalhos da instituição e, um pouco depois, da União Soviética, Itália, Japão e Alemanha, constituiu impedimento incontornável para o desenvolvimento de ações combinadas. Do mesmo modo, o Conselho da Sociedade das Nações claramente carecia das capacidades que teriam sido necessárias para prover a ideia de segurança coletiva de mecanismos realistas de execução.A ineficiência do Conselho diante da agressão perpetrada pelas grandes potências foi fatídica para o prestígio da instituição e serviu para que outros países se dessem conta de que a vontade para aplicar as sanções era escassa de parte dos membros mais poderosos da Sociedade das Nações. A capacidade de resposta perante o advento da guerra civil era nula. (GILL apud ROSAS, 2005, p. 30-31) No contexto da segunda grande guerra, os principais países Aliados já idealizavam a criação de uma nova organização internacional que apresentassem por fim a cooperação e manutenção da paz mundial, o que se realizou em 1945. Assim, a ONU tem como norte a Carta das Nações Unidas, a qual fora assinada em São Francisco em 26 de junho de 1945, por cinquenta e um países 254 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem que participaram da Conferência de São Francisco. A ONU é constituída de seis órgãos especiais, a saber: a. Assembleia Geral, que é formada pelos 193 Estados Membros, na qual cada componente é representado de maneira igualitária; b. Conselho de Segurança, instância executiva da ONU, formado por quinze Estados Membros, sendo cinco permanentes, que possuem o direito ao veto e dez temporários, que são eleitos para um mandato de dois anos, sem direito a veto. É importante mencionar os Membros permanentes, que são: França, Reino Unido, Estados Unidos, Rússia, China; c. Conselho Econômico e Social (ECOSOC), responsável por assuntos de naturezas econômica, social, cultural; d. Conselho de Tutela, que possuía por função administrar os territórios; e. Corte Internacional de Justiça (CIJ), instância responsável por julgamentos internacionais, constituído por quinze juízes, eleitos para um mandato de nove anos; e Secretariado, com um secretário-geral eleito para um período de cinco anos, podendo ser reconduzido, além de outros órgãos subsidiários. (LASMAR; CASARÕES, 2006) Quanto ao exercício de competências, “les fonctions des organes compétents de l’ONU sont identiques à celles des organes de la SdN. Les uns comme les autres exercent leur mission par voie d’enquête, de médiation et de conciliation”. (PELLET et al, 2008, p. 940) A ONU é considerada organização de fins gerais ou fins políticos, seu objeto, engloba os membros e a resolução de conflitos internacionais. O presente trabalho tratará a questão da gênese da ONU e a reforma do seu Conselho de Segurança, abordando a posição do Brasil. Como direção, utilizar-se-á a Carta da ONU. 2.1. O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU A gênese do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) remonta à criação do Conselho da Sociedade das Nações6. Como se sabe, a Sociedade das 6 O Conselho compor-se-á de Representantes das Principais Potências aliadas e associadas, assim como de Representantes de quatro outros Membros da Sociedade. Esses quatro membros da Sociedade serão designados livremente pela Assembleia e nas épocas que lhe agradar escolher. Até a primeira designação pela Assembleia, os Representantes da Bélgica, do Brasil, da Espanha e da Grécia serão Membros do Conselho. (Artigo 4° do Pacto da Sociedade das Nações) 255 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Nações ou Liga das Nações fracassou. Isso foi ocasionado por essa organização internacional reproduzir, por meio do CS, o jogo de forças presente à época da Segunda Guerra Mundial. Os ensinamentos nos vinte anos de vida do Conselho da Sociedade das Nações prepararam um cenário propício para que fosse criado o Conselho de Segurança da ONU. Dessa maneira, ocorreu o fortalecimento do CSNU, constituindo-se no núcleo do poder político da ONU. (ROSAS, 2005) O CSNU está previsto na Carta das Nações Unidas, em seus artigos 23-32 (Capítulo V). Já as atribuições específicas estão previstas nos Capítulos VI, VII, VIII e XII, do mencionado documento. A Carta de São Francisco (Carta da ONU) foi assinada em 31 de agosto de 1946, tendo sofrido apenas três alterações. A mudança mais importante deu-se em 1963, por ocasião da admissão de países recém-independentes dos continentes asiático e africano como membros da ONU, a composição do CSNU sofreu mudanças, tendo aumentado para dez o número de membros não permanentes. (JORNADA; VIZENTINI, 2008, p. 410) A reforma demonstrou que a ordem estabelecida em 1945 se modificara e que se fazia necessária uma adaptação da ONU e, consequentemente, de seu documento constituinte, a uma nova realidade. Desde então, a Carta da ONU permanece inalterada, apesar das significativas modificações que ocorreram no Sistema Internacional nos últimos 40 anos. É evidente que o conteúdo original da Carta deve ser adaptado, ainda que os princípios da Organização e seus objetivos finais continuem aqueles mencionados no Artigo 1º do documento. (JORNADA; VIZENTINI, 2008, p. 411) O CSNU é o órgão mais importante da ONU. De acordo com o artigo 24 da Carta da ONU, cabe a ele “a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais”. O órgão é composto por quinze membros, sendo cinco permanentes, que possuem poder de veto (China, França, Federação Russa, Reino Unido e Estados Unidos) e dez não permanentes7, que não possuem poder de veto, países estes que são eleitos pela Assembleia Geral para um mandato de dois anos. (UNITED NATIONS, online) A presidência do CSNU é representada por um Estado, seja ele 7 Atualmente os membros não permanentes são: Azerbaijão, Colômbia, Alemanha, Guatemala, Índia, Marrocos, Paquistão, Portugal, África do Sul e Togo. 256 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem permanente ou não, durante um mês em caráter rotativo. As propostas de resoluções podem ser apresentadas por um ou vários membros, que secretamente repassam para os demais integrantes. Após, várias discussões acerca do seu teor, a proposta finalmente é levada ao conselho, onde cada participante possui direito a um voto. Nesse linha de reflexão, existem as questões essenciais, que só poderão ser aprovadas, com uma maioria de nove votos. (UNITED NATIONS, online) Nesse momento é que pode ser identificado o grande poder de ser um membro permanente e, por conseguinte, titular do poder de veto, porquanto se um dos cinco países membros não votarem a favor de determinada proposta, imediatamente ela não poderá ser aprovada. Assim, o fato dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia e China possuírem assento permanente e direito de veto fez com que estes mesmos Estados se sentissem mais à vontade para entrar em uma Organização que, devido a este tipo de processo decisório, jamais permitiria que uma decisão fosse concretizada sem o aval consensual das cinco potências. Esse mecanismo de veto, responsável pela paralisia da ONU durante o período da guerra fria, acabou tornando-se ultrapassado no sentido de não mais refletir o jogo de forças que encontramos atualmente entre os Estados que compõem a Organização. Assim, cada vez mais, a ONU recebe pressões de determinados países para que a proporcionalidade da representação seja atualizada, que o número dos Estados que participam do Conselho de Segurança (tanto os permanentes, quanto os não-permanentes) seja ampliado e, até mesmo, propostas pedem para que o direito a veto seja revisto ou ampliado a outros membros. (MENDES, 2006, p. 28) A proposta de reforma do sistema de segurança coletiva não é algo novo, visto que, desde 1946, quando foi constituída essa estrutura até os dias atuais, ocorreram diversas mudanças histórias e econômicas nos Estados interessados em ocuparem assentos enquanto membros permanentes do CSNU. A posteriori, surge um grupo denominado G-4, constituído pelo Brasil, Alemanha, Índia, e Japão que, juntamente com a União Africana, buscam não mais, permanecerem temporariamente, mas permanentemente, mesmo sem o direito de veto. Dentre vários Estados interessados nessas mudanças, podemos citar: Japão, Alemanha, Índia e, até mesmo, Brasil. No caso dos dois primeiros países citados, segundo e terceiro maiores contribuintes financeiros da 257 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ONU, respectivamente, o interesse é reflexo de uma maior participação deles no jogo de forças internacional. No caso do Brasil, apesar da luta pela ampliação no Conselho não significar garantias de vaga para os demandantes, é notório o papel de liderança que o país vem assumindo na América do Sul, o que aumentaria as chances do nosso país ser o principal beneficiado de possíveis ampliações do Conselho. (MENDES, 2006, p. 28) Embora o CSNU seja o órgão considerado mais importante do sistema onusiano, apresenta pontos positivos e negativos. Constatam-se vários problemas com relação ao CSNU, quais sejam: problemas de representação e representatividade; falta de democracia; falta de transparência no processo de tomada de decisões; paralisia institucional; respostas lentas às ameaças à paz e à segurança internacionais; exerce-se a coerção de modo arbitrário. (ROSAS, 2005, p. 43-44) Com relação aos pontos fortes da atuação do CSNU. São estes: manutenção da participação das grandes potências, acelerado processo de tomada de decisões. (ROSAS, 2005, p. 45). 3. A PROPOSTA DE REFORMA DA ESTRUTUTA DO CSNU, A “DANÇA DAS CADEIRAS” E O BRASIL Desde os fins do século XIX, o Estado brasileiro tem se feito presente e atuante em fóruns multilaterais. Essa tem sido uma das marcas da política exterior brasileira. Em 1919, o Estado brasileiro participou da Conferência de Paz, na condição de país beligerante e única nação sul-americana a lutar por ocasião da Primeira Guerra mundial. Na esteira dessa compreensão, o Brasil também participou de todas as outras conferências que estruturam a governança de ordem global no período pós Segunda Guerra. (LIMA, 2009) Por outro lado, nos anos 60 e 70 do século XX, a agenda do Brasil concentrou-se em temas como desenvolvimento e autonomia política. (LIMA, 2009) O Brasil sempre criticou a cegueira do sistema de segurança coletiva ao tratar os conflitos internacionais sob o manto da visão clássica do equilíbrio de poder em detrimento das dimensões econômica e social. (LIMA, 2009) 258 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem O Brasil, apesar de articulado com a Índia, advogou medidas de desarmamento. Esses dois países, por coincidência, ambos em desenvolvimento, são os que desempenharam mais tempo na condição de membros não permanentes do CSNU. (LIMA, 2009) Assevere-se que o Brasil, entre janeiro de 1946 e dezembro de 1967, participou por cinco vezes enquanto membro não permanente, tendo permanecido fora do CSNU pelo período de vinte anos (1968-1988). (UNITED NATIONS, online) Entre 1988 e 2005 o Brasil voltou a participar do CSNU, na condição de membro não permanente por mais quatro vezes, totalizando nove participações desde sua fundação. (UNITED NATIONS, online) O Estado brasileiro, enquanto nação extremamente participativa no cenário internacional, deixou sua marca nas operações de paz, embora mínima nos tempos de outrora. Desde os anos 40 do século XX, Argentina, Brasil e Índia estão presentes nessas operações, e essa participação aumentou juntamente com o crescimento dessas operações de paz no período pós-Guerra Fria. (LIMA, 2009) As preocupações brasileiras com relação à reforma na estrutura da ONU centram-se em três temas: a defesa dos princípios e normas multilaterais; as soluções inovadoras que estabeleçam a manutenção da paz e as de imposição da paz; reformulação da estrutura de tomada de decisão do CSNU, objetivando maior representatividade e legitimidade. (LIMA, 2009) O Brasil está interessado em discutir esses temas desde o governo de José Sarney. Após esse governo, esteve presente em todos os sucessores numa busca incessante em ganhar um assento na “dança das cadeiras” em torno do CSNU. Nessa linha de pensamento, o Brasil tem defendido a tese da maior representatividade, bem como a expansão do número de vagas de membros não permanentes. (LIMA, 2009) Destaca-se que essa tese do aumento da representatividade ocasionaria uma maior legitimidade e efetividade às decisões do CSNU. (LIMA, 2009) Outro ponto a ser destacado é relativo aos Estados que mais contribuem financeiramente para com a ONU: Estados Unidos, Japão e Alemanha. Simultaneamente à retomada do debate com a apresentação dos dois modelos de reforma do Conselho, vão emergindo do debate alguns parâmetros para uma eventual ampliação. Estes dizem respeito ao poder econômico de alguns dos maiores contribuintes ao orçamento regular 259 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem das Nações Unidas, como Japão e Alemanha, segundo e terceiro lugares, logo abaixo dos EUA. Também é mencionada a inexistência da representação de países do Sul global, em especial pelo critério do tamanho das populações de países com Brasil e Índia, bem como a relevância na contribuição às operações de paz cuja multiplicação gerou um sério problema de financiamento. (LIMA, 2009, p. 289) A partir do ano 2000 com o tema da reforma da estrutura do CSNU ganhando destaque no discurso da diplomacia, o Brasil torna-se mais enfático e, em 2004, Brasil, Alemanha, Japão e Índia, constituem o G-4, porquanto a existência de posições comuns na seara da ampliação do CSNU. Em 2005, o governo brasileiro apresentou à Assembleia-Geral da ONU uma proposta de reforma do Conselho, que incluía a ampliação do número de membros permanentes e a extinção do direito de veto, com a justificativa de aumentar sua representatividade e capacidade de resposta aos conflitos. A proposta contou com apoio dos outros integrantes do G-4 (Brasil, Índia, Alemanha e Japão), grupo de grandes potências que aspiravam a integrar o Conselho na condição de membros permanentes. (CERVO; BUENO, 2008, p. 505) Veja o discurso na seara da diplomacia, proferido pelo Chanceler Celso Amorim, destacando a importância de uma possível reforma na estrutura do Conselho de Segurança da ONU: A diplomacia brasileira vive momento de grande dinamismo, que reflete as prioridades do governo do Presidente Lula nas áreas interna e externa: combater a fome e a pobreza, contribuir para a criação de uma nova geografia comercial, e adotar uma postura firme e ativa nas negociações multilaterais, inclusive regionais, com vistas a assegurar um espaço regulatório multilateral justo e equilibrado. No plano da Paz e da Segurança, além do apoio ao multilateralismo e de ações concretas, como a que estamos empreendendo no Haiti, buscamos, na medida do possível, contribuir para um equilíbrio multipolar, que evite tentações hegemônicas, prejudiciais a todos. É neste quadro que se insere o esforço – que acaba de receber novo e decisivo impulso – para reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Subjacente a essas 260 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem prioridades, está o imperativo de preservar nossa capacidade soberana de definir o modelo de desenvolvimento que desejamos para nosso país. (DISCURSOS, PALESTRAS E ARTIGOS DO CHANCELER CELSO AMORIM – 2003/2010, 2011, p. 181-182) A política exterior do Brasil tem procurado desempenhar um papel de destaque no campo da segurança. Alguns fatos que constatam o interesse do Brasil são: o país ter se associado em 2004 aos Estados do Cone Sul, Argentina e Chile; o país ter obtido a cooperação do Uruguai, do Peru e da Bolívia; ter assumido o comando das tropas de paz da ONU no Haiti, tendo se proposto a levar a paz, desenvolvimento e a redemocratização àquele Estado, enfim, este último foi o “mais importante envolvimento” do Estado brasileiro em missões de paz desde 1946. (CERVO; BUENO, 2008, p. 504) Constata-se, pois que o Estado brasileiro e sua retórica demonstram essa preocupação em torno da reforma do CSNU, bem como a busca por um assento permanente. 4. PONTOS DE DISCUSSÃO O G-4 possui como proposta primordial aumentar o número de vagas atuais, que é quinze para vinte e cinco, que se dividiriam em: cinco vagas para os membros permanentes com direito de veto, quatorze vagas para os membros não permanentes sem direito de veto e seis vagas para membros permanentes sem direito de veto, onde quatro assentos pertenceriam aos membros do G-4, e dois para a União Africana. Essa proposta, apesar de ser apoiada por 23 Estados, incluindo a França, que é um dos Estados com direito de veto, não é aceita pelos Estados Unidos e a China, o que afasta totalmente a possibilidade de que estes “novos membros” possam lutar para que apresentem direito a veto. O interesse principal volta-se primeiramente para inclusão como membros permanentes, ficando outras questões como discussões futuras. Ademais, nessa linha de reflexão, as posições encontram fundamentos diferentes. Para a China, um aumento radical no número de membros do Conselho poderia provocar uma estabilidade mundial, além do que, a participação do Japão como um novo membro não é aceita pelo Estado chinês, 261 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem seja por questões políticas como históricas. Por outro lado, os Estados Unidos atualmente só apoiam a candidatura do Japão, deixando todos os outros integrantes do G-4 fora dessa expansão. Não bastasse a oposição dessas duas potências, existe ainda a chamada “União pelo Consenso”, formada pelo Paquistão, Argentina, Canadá, México e Itália, que são contrários à criação de novos assentos permanentes e que apoiam a criação de mais dez novos assentos não permanentes. Observa-se que diante de tantas divergências, há um interesse comum em reformar o CSNU para que o número de assentos seja ampliado. O núcleo da polêmica atual centra-se justamente no caráter de permanência ou não de seus novos membros. A reforma do CSNU é polêmica. O Brasil, apesar de ser um país em desenvolvimento, ainda não possui condições de se tornar um membro permanente do mencionado Conselho. A realidade teórica que abrange seu âmbito legislativo possui uma visão bem mais desenvolvida do que a realidade fática. O país, muitas vezes é omisso quanto à violação de direitos humanos, de tratados internacionais, não respeitando sequer a sua própria Constituição Federal de 1988 – CF/88. Claro que diante da nova realidade, não se pode admitir que o CSNU possua a mesma estrutura de outrora, porquanto o número de Estados Membros da ONU aumentou gradativamente, envolvendo muito mais Estados, que passaram a revelar um papel importante na conjuntura histórica internacional, demonstrando que uma reforma é necessária, mas que se deve ter cautela em sua realização. O CSNU não pode cometer o equívoco de continuar como um grupo fechado e não aumentar o número de membros, que deveria ser proporcional à quantidade dos Estados que integram a ONU. A proposta do G-4, sem dúvida é um passo ousado nessa mudança, mas que após quinze anos de discussão ainda não teve a sua aprovação definida. A intenção do Brasil em participar como membro do CSNU, apesar de ser uma grande demonstração de interesse na busca pela paz mundial, levanta uma grande dúvida, visto que o país deve primeiro preocupar-se com a realidade interna, antes da realidade internacional. O país tem se mostrado um exemplo de democracia e estabilidade política, porém muitas vezes, ainda se apresenta como um Estado hobbesiano, na medida em que viola, por muitas vezes, as suas próprias leis. Somente quando, a realidade deontológica de suas normas estiver alcançada, o Estado brasileiro terá condições de propagá-la pelo mundo. 262 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem No governo Dilma Rousseff, seguindo gestões anteriores, o discurso sobre a necessidade de reforma do CSNU tem sido o mesmo, incluindo o interesse de o Brasil tornar-se um membro permanente daquele Conselho. 5. CONCLUSÃO Sabe-se que a ideia de reforma do CSNU ressurgiu após o fim da Guerra Fria e, com o fim da Guerra do Golfo, em 1991, o tema passou a ser levantado em distintos fóruns e por diversas lideranças internacionais. Nesse contexto, pode-se afirmar que o Brasil possui vantagens e desvantagens, ao obter uma consolidação como uma grande potência num futuro bem próximo, ocupando lugar de membro permanente no CSNU. O aumento do status e do poder seriam benefícios (almejados por qualquer Estado) acarretados ao Brasil, vez que ocupasse a posição de membro permanente. Isso lhe proporcionaria um ressonante discurso frente à comunidade internacional. No entanto, vários são os óbices existentes para que essa ideia de novo posicionamento no sistema internacional se concretize. Fazer parte do CSNU implicaria, ao Brasil, tomar complicadas decisões políticas, adotando sanções e autorizando intervenções militares. Porém, já é bastante conhecida a tradição não-intervencionalista e low-profile do Brasil. Ademais, essa participação no CSNU também implicaria em muitos gastos, que apresentariam melhor serventia se utilizados em prol de causas sociais, vez que já são reduzidos os recursos disponíveis para necessidades urgentes da população brasileira, destacando saúde, educação, por fim, questões sociais. Além disso, ocupar a posição de membro permanente levaria a assumir uma liderança latino-americana, o que não possui a aceitação imediata de diversos países latinos. Argentina e México são a desdúvidas contra a inserção do Brasil no CSNU. A reforma do CSNU é uma prioridade na seara da política internacional das últimas décadas, além de ser um dos temas principais da agenda de política externa brasileira. A participação do Brasil na MINUSTAH8 demonstra o compromisso do referido Estado com uma eventual inclusão em mandato para o sistema onusiano no tocante à segurança coletiva – CSNU. 8 Missão da ONU para a estabilização do Haiti. (http://minustah.org/) 263 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Embora esses fatos sejam de suma importância, constata-se que o Brasil deve priorizar a consolidação de alianças com outros Estados Membros das Nações Unidas, buscando a resolução de problemas relativos ao seu território, porquanto questões urgentes que atingem a vida de seus nacionais. Por fim, parafraseando George Orwell, “Todos estados são iguais. Porém, alguns são mais iguais do que os outros”. O Brasil tem procurado ser mais igual que os outros Estados. REFERÊNCIAS 1. AMORIM, Celso. Discursos, palestras e artigos do Chanceler Celso Amorim: 2003-2010 Celso Amorim. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, Departamento de Comunicações e Documentação: Coordenação-Geral de Documentação Diplomática, 2011. 2. ARRAES, Vírgilio Caixeta. O Brasil e o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas: dos anos 1990 a 2002. Revista Brasileira de Política Internacional. v. 28, n. 2, 2005, pp.152-168. 3. Brasil. Presidente (2003 - 2012: Lula). Discursos selecionados do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2008. 4. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. 5. HILL, Martin. The United Nations System. London: Cambridge, 2008. 6. LASMAR, Jorge Mascarenhas; CASARÕES, Guilherme Stolle Paixão e. A Organização das Nações Unidas. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 7. LIMA, Maria Regina Soares de. Notas sobre a reforma da ONU e o Brasil. IV Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional – IVCNPEPI – “O Brasil no mundo que vem aí” (Reforma da ONU). Brasília: FUNAG, 2010. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. v. 1. 8. MENDES, Cristiano Garcia. A Organização das Nações Unidas – ONU. In: Política internacional contemporânea: mundo em transformação. OLIVEIRA, Henrique Altemani de; LESSA, Antônio Carlos. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 16-30. 9. Na Índia, Lula defende reforma do Conselho de Segurança da ONU. Portal Vermelho. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=19 9629&id_secao=9> Acesso em: 28 nov.2012. 10.ONU: Brasil, Alemanha, Japão e Índia pedem reforma do Conselho de Segurança. (Renata Giraldi, 26/9/2012). Rede Brasil atual. Disponível em: <http:// www.redebrasilatual.com.br/temas/internacional/2012/09/brasil-alemanhajapao-e-india-pedem-ampliacao-do-conselho-de-seguranca-da-onu> Acesso em: 29 nov.2012. 264 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 11.PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; FORTEAU, Mathias. Droit international public. 8. Ed. Paris: Lextenso Éditions, 2008. 12.ROSAS, Maria Cristina. O Conselho de Segurança das Nações Unidas: 60 anos não é nada. Reformas na ONU. MELLO, Valerie de Campos et al.(Org.). São Paulo: Konrad Adenauer. Ano VI, junho/2005, v. 1. p. 29-72. 13.SOARES, João Clemente Baena. Breves considerações sobre a reforma da ONU. IV Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional – IVCNPEPI – “O Brasil no mundo que vem aí” (Reforma da ONU). Brasília: FUNAG, 2010. p. 7-26. 14.TARRAGO, Piragibe dos Santos. A reforma da ONU e a Comissão de Construção da Paz e a ampliação do Conselho de Segurança. IV Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional – IVCNPEPI – “O Brasil no mundo que vem aí” (Reforma da ONU). Brasília: FUNAG, 2010. p. 27-42. 15.UNITED NATIONS. CHARTER OF THE UNITED NATIONS. Disponível em: <http://www.un.org/en/documents/charter/index.shtml> Acesso em: 28 nov.2012. 16.UNITED NATIONS. STRUCTURE AND ORGANIZATION. Disponível em: <http:// www.un.org/en/aboutun/structure/index.shtml> Acesso em: 28 nov.2012. 17. UNITED NATIONS. MEMBER STATES OF THE UNITED NATIONS. Disponível em: <http://www.un.org/en/members/index.shtml> Acesso em: 28 nov.2012. 18. UNITED NATIONS. THE UNITED NATIONS SYSTEM. Disponível em: <http:// www.un.org/en/sc/inc/pages/pdf/unsystem.pdf> Acesso em: 28 nov.2012. 19. UNITED NATIONS. SECURITY COUNCIL. CURRENT MEMBERS. PERMANENT AND NON-PERMANENT MEMBERS. Disponível em: <www.un.org/en/sc.members/> Acesso em: 28 nov.2012. 20. UNITED NATIONS. SECURITY COUNCIL. Letter dated 9 November 2011 from the Permanent Representative of Brazil to the United Nations addressed to the SecretaryGeneral. Disponível em: <http://www.un.int/brazil/speech/Concept-Paper-%20RwP. pdf> Acesso em: 28 nov.2012. 21. UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. Agenda items 14 and 117. Disponível em: <http://www.un.int/brazil/speech/Concept-Paper-%20RwP.pdf> Acesso em: 28 nov.2012. 22. UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. Resolution 1973. http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/268/39/PDF/N1126839.pdf?OpenElement Acesso em: 28 nov.2012. 23.VALLE, Valéria Marina. A reforma do Conselho de Segurança da ONU: uma análise sobre a posição brasileira e suas repercussões. Reformas na ONU. MELLO, Valerie de Campos et al.(Org.). São Paulo: Konrad Adenauer. Ano VI, junho/2005, v. 1. p. 95-126. 24.VIOTTI, Maria Luiza. A reforma das Nações Unidas. IV Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional – IVCNPEPI – “O Brasil no mundo que vem aí” (Reforma da ONU). Brasília: FUNAG, 2010. p. 81-98. Recebido em: 21/10/2014 Aprovado em: 28/10/2014 265 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem HÁ ALGO REALMENTE IMPERDOÁVEL?1 JEAN-CHRISTOPHE MERLE2· Tradução: Lívia Rosa Franco3 Revisão Técnica e da tradução: Alexandre Trivisonno4 Resumo De acordo com a visão prevalecente sobre o perdão, há ofensas graves que não podem ser perdoadas. Essa visão é baseada na suposição que o perdão é um ato super-rogatório sobre o qual somente a pessoa ofendida pode decidir. Ao contrário disso, este ensaio pretende mostrar que o perdão está submetido a condições normativas e regras da ética social. Seguir essas regras e condições de forma consistente leva à conclusão que não há nada que é realmente imperdoável, ou seja, nada que uma pessoa não possa perdoar outra pessoa ou a si própria. Palavras-chave: perdão; condições do perdão; atos imperdoáveis. Abstract According to the prevailing view about forgiveness, there are serious offenses that cannot be forgiven. This view is mostly based on the assumption that forgiveness is a supererogatory act decided by the offended person alone. On the contrary, this paper intends to show that forgiveness is submitted to normative conditions and rules of social ethics. Following these rules and conditions in a consistent way leads to the conclusion that there is nothing that is fundamentally unforgivable; that is to say, nothing that one cannot forgive either another person or oneself. Key-words: forgiveness; conditions of forgiveness; unforgivable acts. 1 Traduzido a partir do original em Inglês Is there anything that is fundamentally unforgivable? 2 Doutor em Philosophie - University of Freiburg (1992) e “Habilitação” (correspondente à livre-docência no Brasil) pela Universidade de Tübingen. Atualmente é Professor Titular na Universidade de Tours (França) e Professor Honorário na Universidade de Saarland (Alemanha). 3 Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Professora da Faculdade de Direito da Unipac – Itabirito-MG. 4 Professor da Faculdade de Direito da UFMG, do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Minas e da UNIPAC 266 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 1. INTRODUÇÃO Vamos supor que um homem assassinou várias vezes, que ele torturou e matou crianças pequenas, ou que essa pessoa ordenou assassinato em massa ou mesmo genocídio. Muitas pessoas achariam que esses atos são imperdoáveis, mas, pergunto, eles estão abordando a questão corretamente? Para a vítima, o perdão consiste o desaparecimento justificado tanto do ressentimento quanto do desejo de vingança. Para o autor do delito, ele consiste o desaparecimento justificado tanto do sentimento negativo contra ele mesmo, quanto do sentimento de que há um dever de expiar. Idealmente, o perdão ocorre tanto na vítima quanto no agressor de uma forma coordenada. No entanto, ele também pode ocorrer como um fenômeno unilateral. Ora, o perdão e a sua ausência não são apenas emoções subjetivas, mas também objetos das intuições objetivas e dos princípios da ética social. Eu vou investigar essa última questão, ou seja, o perdão como objeto das intuições objetivas; em alguns pontos minha análise vai divergir substancialmente da consideração do perdão como um mero sentimento subjetivo. No que diz respeito à questão de saber se há algo imperdoável como uma questão de princípio, freqüentemente se pensa que a vítima não quer perdoar. A seguir, tento mostrar que esta perspectiva constitui o componente central de uma concepção de perdão que é eticamente errada. 2. A VÍTIMA REALMENTE OCUPA A FUNÇÃO ESSENCIAL? Na concepção tradicional de perdão – representada por autores como Vladimir Jankélévitch (1957) e Robert Spaemann (1989: 252) – o ofensor só pode pedir perdão para sua vítima.5 A vítima é considerada moralmente superior ao agressor, e a vítima não tem necessariamente que perdoar. Essa concepção diz respeito ao ato de perdoar como uma decisão voluntária e generosa feita pela vítima. Essa posição é insustentável por pelo menos cinco razões. 1. Há uma intuição moral – enfatizada, por exemplo, por Paul Ricœur (1995 e 1998: 45)6 – que à vítima não é permitido perdoar muito rápido, recusar-se a conceder perdão por tempo excessivo ou colocar requisitos que são 5 Cf. ainda Richards: 1988, 96, Allais: 2008 e Ci: 2006, Cap. 10. 6 Cf. ainda Hieronymi: 2001, 552. 267 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem muito pesados para os malfeitores carregarem. Essa intuição moral é bastante prevalente na prática quotidiana. 2. Psicólogos opõem a visão tradicional (que origina na própria superioridade moral da vítima) a uma visão mais simétrica do perdão. O perdão corresponde aos interesses da vítima, como demonstrou o teórico dos jogos Robert Axelrod, através de um experimento tit for tat7 que ele chama de “perdão” e que se mostrou como a estratégia mais bem sucedida (cf. Axelrod: 1934, 36). Não só os agressores, como também as vítimas, podem ter a necessidade do perdão e de sentir a carga psíquica de uma falta de perdão. Em Sobre a Genealogia da Moral e em Vigiar e Punir, Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, respectivamente, destacam o papel do gozo da vingança, ou, na terminologia de Nietzsche, do ato de “Fazer alguém sofrer” (Leiden-lassen), como uma compensação para a vítima. De uma perspectiva psicológica, no entanto, esse benefício vale pouco comparado às conseqüências e aos riscos para a pessoa que exerce a vingança. Comparado com as vantagens que a cooperação traz, as energias gastas no exercício da vingança são energias desperdiçadas. 3. O perdão não é uma decisão que é tomada repentinamente e de uma só vez. O perdão é uma decisão que resulta de um processo. Psicólogos consideraram o perdão como um processo constituído por três etapas.8 Na primeira etapa, a vítima reúne os detalhes sobre o trauma a ser perdoado. Ao fazê-lo, a vítima cai nas garras do medo ou da raiva, e ela se comporta de uma forma que não é comum para si, muitas vezes de forma incoerente e vingativa. Joseph Butler refere-se a esse fenômeno em Sermons, em que de ele o considera contrário ao perdão, denominando-o como “ressentimento” e “vingança”. Na segunda etapa do processo, uma forma de empatia entra em jogo: a vítima tenta entender o trauma sofrido, olhar para a causa, para a motivação e para seu contexto dentro do contexto maior do meio do agressor, bem como aprender e tornar-se mais sensata a partir dessa experiência. É finalmente na terceira etapa que o perdão no seu sentido estrito entra em jogo. Psicólogos caracterizam esse resultado como uma 7 Tit for tat é uma estratégia que aparece em um experimento criado por Axelrod, que consiste, resumidamente, no seguinte: em um jogo, se você é o primeiro a agir, você coopera com o outro; se o outro coopera, você continua cooperando; se o outro não coopera você não coopera. Porém, se o outro volta a cooperar você deve cooperar novamente. Portanto, é uma estratégia que considera apenas o último movimento do outro e o fato de você cooperar após um ato cooperativo do outro, desconsiderando assim que ele não cooperou no passado é considerado perdão. 8 Cf. Coop Gordon, Baucom e Snyder: 2005, 408 s., bem como Wade, Worthington e Meyer: 2005. 268 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem combinação das seguintes alterações: a vítima torna-se capaz de limitar suas emoções negativas e julgamentos; há uma diminuição ou desaparecimento da inclinação para a retaliação ou para simplesmente se manter afastada do ofensor, e a vítima pode também restaurar a benevolência para com o criminoso. Em alguns casos, a benevolência com o criminoso pode ser totalmente restabelecida e pode haver lugar para reconciliação. Obviamente, tal resultado pressupõe uma interação adequada entre o malfeitor e a sua vítima; isso significa que ele deve se abster de futuras ofensas e demonstrar arrependimento ativo. Calhoun introduz o perdão desejável (aspirational forgiveness) como “uma opção de não exigir que [o agressor] melhore” (1992:95). Contudo, é duvidoso se um perdão desejável pode ser moralmente correto. Pelo menos, é preciso observar que “o que devemos desejar para essa mudança dentro do coração parece de fato pertencer à essência do perdão” (Kolnai: 1974, 104). 4. No processo de perdão, o autor do delito é colocado no mesmo nível da vítima. Mesmo nas concepções tradicionais de perdão, a superioridade moral da vítima inocente não é o único elemento fundamental. Desde o início da era cristã, todos os seres humanos são considerados pecadores. De acordo com Kant, é um dever de virtude não só abster-se de retribuir a inimizade do outro com o ódio da mera vingança, mas também não apelar para o juízo do mundo por vingança, em parte porque um ser humano tem culpa suficiente para si próprio para ter muita necessidade de perdão (1996: 578). Os psicólogos contemporâneos Malcolm, Warwar e Greenberg afirmam que a empatia pelo infrator envolve a capacidade de ver a outra pessoa agindo de uma forma tipicamente humana, que pode decorrer do contexto das suas próprias necessidades e percepções. Isso inclui (mas não obriga) a possibilidade de reconhecimento de que o que o infrator fez era semelhante a algo que o outro fez ou poderia fazer nas mesmas circunstâncias (2005: 385). Sabidamente, ver o ofensor desse modo não significa tê-lo desculpado ou perdoado. 5. O perdão fornece à vítima uma utilidade que não está ligada ao prazer de fazer sofrer o culpado. Por isso, é errado supor que o perdão se origina da generosidade. De acordo com Axelrod, a mais bem sucedida estratégia dos jogos, tit for tat, reage contra uma única jogada não cooperativa de outro jogador com uma e somente uma resposta não cooperativa. Se o outro jogador responder com um jogo cooperativo, o estrategista tit for tat 269 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem deve reagir com um jogo cooperativo. O perdão consiste em restabelecer a cooperação após a combinação entre uma única retaliação e uma modificação do comportamento do outro jogador. Portanto, ao contrário da concepção tradicional, esse modelo não exclui nem o ressentimento, tampouco a vingança, mas limita o papel deles. Mesmo autores como Jean Hampton e Jeffrey Murphy – que defendem o direito de “ressentimento” da vítima considerado como auto-defesa e como uma expressão de auto-respeito (1988: 24 s. e 49 s.) – não concebem o ressentimento em termos absolutos, mas, pelo contrário, consideram-no um meio: para eles, o ressentimento é um incentivo para o ofensor “não prejudicar” a vítima novamente (2005: 35). A Doutrina da Virtude de Kant origina-se a partir dessa mesma perspectiva de prevenção. Kant diferencia o perdão da “suave tolerância diante dos erros”, ou seja, da “renúncia dos meios rigorosos (rigorosa) para evitar que outros repitam os erros” (1996: 578). Nesse sentido, as mães das vítimas da ditadura militar Argentina da década de 1970 (Las Madres de Plaza de Mayo) estão totalmente corretas. Elas não estão satisfeitas com a afirmação de arrependimento por parte dos agressores, protestando contra a anistia a eles concedida e exigindo um julgamento penal para aqueles que torturaram seus filhos. Do mesmo modo, algumas das vítimas dos crimes praticados pelo governo do antigo apartheid, na África do Sul, legitimamente criticam a impunidade que varre esses crimes e que é feita para ser “perdão”, apesar de Desmond Tutu fazer referência a ela como uma “decisão de política real (Realpolitik)” (Tutu: 2007), que serve para evitar a guerra civil e promover a estabilidade. 3. RAZÕES PARA A IMPERDOABILIDADE SUBJETIVA O processo de coordenação através do qual um perdão eticamente correto é alcançado é de natureza cognitiva, uma vez que o autor do delito e a sua vítima sabem quais passos são necessários, primeiramente por parte do agressor e, em seguida, por parte da vítima. Em contrapartida, o processo de perdão meramente subjetivo depende dos movimentos emocionais que tornam a emoção do perdão que pode ser conceituada ou a recusa do perdão, que ocorre inicialmente por meio de um processo que integra a história do passado da vítima e de sua relação com o agressor, bem como seus projetos, práticas culturais, etc. 270 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem A maioria dos argumentos a favor da tese segundo a qual existem coisas que são imperdoáveis como uma questão de princípio se refere a algo subjetivamente imperdoável. Todos eles tornam a função da vítima absoluta. 1. Uma concepção tradicional de perdão considera-o como pagamento de uma dívida para com a vítima. Ora, tal pagamento pode ser entendido de duas formas. Ele significa ou uma transformação radical do comportamento do malfeitor ou alguma forma de compensação dada para a vítima do mal que ela sofreu por causa do malfeitor. Até aqui argumentei a favor da primeira; agora irei tecer alguns comentários sobre a segunda interpretação. A indenização por danos perpetrados pelo ofensor, na medida em que é possível, de fato conta como uma das condições prévias para o perdão. Se o perdão, no entanto, significasse apenas indenização pelos danos sofridos pela vítima, haveria então pelo menos três resultados que são incompatíveis com qualquer concepção de perdão. Em primeiro lugar, um terceiro seria autorizado a intervir em nome dos ofensores e proporcionaria uma compensação para a perda. Em segundo lugar, se um malfeitor cheio de remorso não estivesse apto a fornecer compensação, não seria permitido que ele fosse perdoado. Em terceiro lugar, o ato seria desfeito pelo reembolso, isto é, seria como se o ato jamais tivesse acontecido. Ora, na realidade, o perdão nunca exclui, mas sempre inclui a memória do delito (cf. Allais: 2008). Quem perdoa suprime a culpa interna do agressor, não a memória do delito. A opinião unânime é a de que o que é perdoado não é somente não esquecido, mas também imputado ao malfeitor. Como Nietzsche salienta, o perdão exige uma diferenciação entre a ação e o agente. A ação errada é imputada ao agente, mas o agente não é reduzido a sua ação errada. 2. Em alguns casos, o processo do perdão exige mais esforços por parte da vítima do que do criminoso.9 Isso não é motivo para considerar a infração imperdoável. Vamos examinar um exemplo. Alguns estudiosos, como Vladimir Jankélévitch (1957: 213), consideram o perdão como a exigência de que o autor do delito demonstre remorso com uma sinceridade que está além de qualquer dúvida. A partir disso, eles chegam à conclusão de que o perdão é impossível. Uma vez que uma pessoa nunca pode saber quais são realmente os verdadeiros motivos da outra pessoa (ou até mesmo os seus próprios motivos), tal perspectiva deve conduzir 9 Cf. por exemplo, Montmarquet: 2007, 285 s. 271 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem a uma desconfiança universal entre os seres humanos. Ora, tal desconfiança universal é contrariada pela existência de relações interpessoais, que devem, na melhor das hipóteses, invocar interpretações plausíveis de padrões comportamentais e sinais emocionais. 3. Alguns estudiosos, como o sociólogo Georg Simmel, identificam o perdão com a reconciliação. R. S. Downie considera que “uma lesão implica a ruptura da relação de admiração (ágape) e o perdão em sua restauração” (1965: 133). Contudo, a reconciliação é impossível sem perdão, embora este possa ocorrer sem a reconciliação. Por exemplo, psicólogos observaram que um importante aspecto da conceituação do perdão é o de que ele não prevê que os parceiros devam se reconciliar para que ele possa ocorrer. Os parceiros podem decidir encerrar o relacionamento e ainda cumprir as condições de perdão (Copp, Gordon, Baucom e Snyder: 2005, 407). Em casos como o de abuso sexual, especialmente nas circunstâncias em que envolvem o incesto, a terapia bem sucedida e o perdão são subordinados ao corte de todas as relações do agressor com a vítima; portanto, o perdão deve ser realizado sem reconciliação.10 4. De acordo com Georg Simmel, ressentimento e desejo de vingança são gradualmente suplantados aos olhos da vítima pelos traços positivos do culpado, que a vítima, eventualmente, descobre ou redescobre (1955, p. 122). Simmel descreve o caso de irreconciabilidade (irreconciability), como aquele em que o “conteúdo específico” do conflito torna-se o “grande centro da personalidade” ou a “precipitação psicológica do conflito” torna-se “isolada” no contexto psicológico global da vítima (1995: 122). O perdão ainda tem lugar no segundo caso, embora a relação deixe de existir ou seja reduzida em valor. Embora Simmel identifique o perdão com a reconciliação e considere o perdão irracional – o que, a meu ver, são afirmações incorretas – esse caso implica claramente poder o perdão ocorrer sem qualquer reconciliação. 5. Freqüentemente confunde-se a falta de perdão em casos individuais com imperdoabilidade como uma questão de princípio. Porém, mesmo no caso de um processo de perdão falho, não se pode excluir a possibilidade de que o processo possa ser retomado num momento posterior e que, então, possa ser bem sucedido pelo menos enquanto ele não tenha levado a novas ofensas. Como Martin Luther King disse, o perdão pode levar tempo. 10 Cf. Noll: 2005, 371. 272 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Ao contrário do que pensa Hannah Arendt, até mesmo a morte da vítima não impossibilita o perdão (1960: 233). É conhecido que Hans Jonas e Vladimir Jankélévitch sustentam que os genocídios da Segunda Guerra Mundial são imperdoáveis. No mesmo sentido, o prêmio Nobel Elie Wiesel escreveu A Prayer of Unforgiveness (Uma Oração da Imperdoabilidade). Os textos deles e a carência de qualquer expressão de ressentimento mostram claramente que esses autores não estão tomando uma posição que é contra o perdão, mas, em vez disso, eles estão apelando para a memória dessas atrocidades, para que eles nunca ocorram novamente. Note-se que se a tese da imperdoabilidade após a morte da vítima fosse aplicada inteiramente, ter-se-ia como resultado exatamente o oposto do que normalmente se busca com ela. Em vez de separar um tipo de crime particularmente grave de todos os outros, essa tese serve para tornar todas as violações, por menores que sejam, imperdoáveis após a morte da vítima. Ela confunde portanto o final contingente de um processo de perdão com a impossibilidade de perdão baseado em princípios. Em outras palavras, essa tese confunde privatio com contradictio. Na realidade, um malfeitor pode cumprir os requisitos para o perdão, demonstrando remorso após a morte da vítima e alterar o seu comportamento para fazer um esforço sincero para não causar mais danos a qualquer outra pessoa. Além disso, vice-versa: a vítima pode perdoar um agressor falecido que já tinha iniciado o processo de perdão antes de sua morte. Por último, mas não menos importante, pode-se refutar a tese da existência de ações em princípio imperdoáveis através de uma reductio ad absurdum. Vamos supor que houve uma violação tão grave e abominável que alguém poderia muito bem considerá-la como “imperdoável”. Então, por que os agressores, que supostamente seriam eternamente imperdoáveis, não só seriam punidos, como também se esperaria que exibissem um determinado comportamento moral? A história tem mostrado que se pode esperar diversos atos em relação ao criminoso: que ele seja exposto com o pelouro11 e que então as pessoas obtenham sua vingança; que o agressor sinta vergonha e se esconda na margem da sociedade ou viva no exílio; que ele continue se castigando para 11 Nota dos tradutores: no original aprece o termo pillory, cuja tradução literal em português seria pelourinho, mas que preferimos traduzir por pelouro (embora esta última possa significar também uma divisão administrativa), porque aqui o autor tem em mente a peça de metal ou madeira que era colocada no pescoço dos criminosos, na china antiga, que possibilitava que o povo pudesse agredi-lo, e com isso vingar-se do criminoso. 273 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem o resto de sua vida. Em todos esses casos, exige-se exatamente aquilo que é necessário para o perdão e o que necessariamente pertence ao processo do perdão: confissão de culpa, remorso e novas máximas que regem a atuação do infrator. Embora algumas pessoas possam sentir-se aliviadas se um ser humano que suporta uma culpa particular se suicida, a maioria das pessoas acharia muito melhor ouvir que pelo menos a pessoa mostrou remorso nos últimos momentos da sua vida. Isso prova que as pessoas envolvidas consideram o processo do perdão algo inacabado e não evidência de imperdoabilidade absoluta. Isso contradiz a concepção de perdão de Jacques Derrida: ele considera que o perdão é tão impossível – pois o remorso não tem valor moral – quanto necessário – pois isso é indispensável à preservação das relações interpessoais (2001). Na realidade, o perdão é possível por ser indispensável. 4. O INTERESSE EM AFIRMAR A IMPERDOABILIDADE Se uma reconstrução da ética do perdão não pode incluir qualquer imperdoabilidade absoluta, por qual razão é a crença em tal imperdoabilidade tão generalizada? Que interesse ou que interpretação equivocada de um interesse pode conduzir a essa crença? O interesse da vítima nesta crença é óbvio. A crença na imperdoabilidade leva a rejeitar a hipótese de que a vítima e o agressor estão fundamentalmente situados no mesmo nível moral, porque os dois são pecadores em potencial. Através da imperdoabilidade, a vítima obtém uma superioridade eterna sobre o ofensor. A opinião pública normalmente considera alguns delitos particularmente graves como imperdoáveis; por exemplo, a tortura em série e o assassinato de crianças ou o genocídio. Essa visão pode ser interpretada de duas maneiras. Pode acompanhar uma concepção preventiva, ameaçando potenciais infratores com um ostracismo eterno, mas pode também externar a maldade da ação, expressando a opinião de que tais crimes particularmente graves não poderiam realmente derivar da própria sociedade. Dessa forma, o crime e os maus subjacentes são deslocados para um “santuário” - utilizando o significado sociológico desta palavra de Durkheim. Nessa perspectiva, esses infratores particularmente graves não podem ser do mesmo tipo que os infratores que, de fato, demonstram remorso e melhoram o seu comportamento, e nunca poderiam ter sido pessoas normais. Em vista dessa situação, a pessoa comum 274 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem poderia se sentir imunizada contra o cometimento de tais delitos graves. Essa falácia poderá distrair a atenção moral do agente. Não só a vítima e as pessoas comuns, mas também o próprio delinqüente, podem se beneficiar da desigualdade fundamental do status moral baseado na tese da imperdoabilidade. Alguns infratores ainda acreditam que, depois da morte de sua vítima, mesmo se viverem um modo de vida não reprovável, e às vezes mesmo se a vítima o tiver perdoado expressamente, eles não podem perdoar a si próprios. Eu vejo três explicações possíveis para este fenômeno. Cada uma delas é devida a uma má interpretação do conceito de perdão. A primeira explicação é que os agressores não só lamentam a ofensa, mas também se sentem envergonhados por causa dela.12 Essa vergonha pressupõe uma separação do ser humano em duas partes: a parte da infração e a parte do julgamento. Nesse caso, a causa da vergonha não é a forma específica de culpa que o culpado está tentando corrigir (apresentando remorso, reformando a si próprio, etc.), mas, ao contrário, é a própria possibilidade de o agressor fazer algo que exigiria perdão (cf. Dillon: 1992, 128). Essas duas partes da mesma pessoa são fundamentais na relação de desigualdade moral: a parte do julgamento nunca poderia ser pecadora. Segundo a análise de Bernard Williams, a vergonha não conduz ao cumprimento do nosso dever, ou seja, a uma confissão da nossa culpa, ao remorso e à reforma, mas, em vez disso, ela leva à sua negação, à dissimulação, à mentira e às violações futuras. 13 A segunda explicação para a impossibilidade de se perdoar repousa sobre o status super-rogatório14 do perdão na concepção tradicional a qual me referi na introdução. Nessa perspectiva, o ofensor pode apenas pedir o perdão à sua vítima, uma vez que ele é fundamentalmente incapaz de perdoar a si próprio, e o cumprimento da condição prévia para o perdão (confissão de culpa, arrependimento, reforma, etc.) representa uma condição sine qua non, mas de forma alguma uma condição suficiente para o perdão. A concepção do perdão como algo super-rogatório não só fundamenta a imperdoabilidade por parte da vítima, mas também é subjacente à 12 Na verdade, o sentimento de culpa é freqüentemente combinado com vergonha. Dillon (2001: 83), por exemplo, considera que aquilo que deve ser perdoado por si mesmo como “um fardo de culpa e vergonha”. 13 Cf. Williams: 1994, Gibbard:1990, 138 s. e Deigh:1983. 14 Nota dos tradutores: no original, aparece o termo supererogatory, e que significa, como explica o próprio autor no parágrafo seguinte, o mérito demonstrado quando alguém faz mais do que seu dever. 275 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem imperdoabilidade por parte do autor do delito. Na perspectiva da super-rogação, a confissão de culpa, o arrependimento e a reforma das máximas que regem as ações de alguém podem ser sempre melhoradas. A super-rogação, isto é, demonstrar mérito fazendo mais do que um dever estrito, consiste em três componentes (cf. Wessels: 2002). O primeiro componente é que alguém pode fazer mais do que o seu dever moral, e que ganha mérito realizando esse excedente. O segundo componente é que o esforço exercido para esse excedente seja contado como um mérito, seja qual for o resultado possível. O terceiro componente funciona da seguinte forma: se alguém faz mais do que o seu dever, mas não faz tanto quanto poderia ter feito se tivesse feito um esforço maior, então, ele teria menos valor moral do que a pessoa que apenas cumpriu seu dever, porque ele parece ser menos coerente. Assim, há a possibilidade de um aumento potencialmente ilimitado sobre o caminho para merecer o perdão. Há, no entanto, um alvo não identificado para esse esforço acrescido, o qual trai a sua vacuidade. Essa concepção resulta na ilusão, desmascarada por Rüdiger Bittner (1992), que o sofrimento, por exemplo o sofrimento causado por lamentação assim como o sofrimento causado pela dor de imperdoabilidade, tem um valor moral. Esse sentimento é moralmente questionável, porque ele pode nos desviar do cumprimento das nossas funções na vida quotidiana. Enquanto a primeira e a segunda explicação tornam a negação do auto-perdão tão imoral quanto a negação do perdão como uma questão de princípio, a terceira explicação é eticamente correta, mas apóia a perdoabilidade em vez da imperdoabilidade. De acordo com essa explicação, a tese da imperdoabilidade pretende expressar a natureza pecaminosa do ser humano. Assim, mesmo se fossemos perdoados por qualquer culpa que suportamos, a memória de toda culpa ainda permaneceria em nós e com ela poderia restar na memória um mal radical que nunca poderá ser erradicado e que pode, a qualquer momento, nos induzir a ofender outros seres humanos. Nesse caso, é a nossa própria natureza humana que nunca pode nos perdoar. Mas, nesse caso, com quem pode o processo de coordenação que leva ao perdão ter sucesso ou fracasso? Quer tenha sucesso ou fracasso, ele não pode estar com os seres humanos, uma vez que partilham conosco conditio humana, nem com outros seres vivos. Faz pouco sentido se referir à imperdoabilidade perante Deus, porque não há qualquer indicação de tal imperdoabilidade eterna dos seres humanos por Deus na teologia (pelo menos na teologia cristã): a oração “O Pai nosso” 276 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem (Pater noster) formula o pedido de que Deus nos perdoe, da mesma forma que nós perdoamos os outros. Imperdoabilidade divina seria a passagem dos seres humanos para a categoria ocupada por Satanás, cujas ações só poderiam ser más e que, portanto, mereceria a imperdoabilidade eterna. No entanto, os seres humanos são sempre capazes de mudar, de uma perspectiva religiosa ou temporal. Portanto, uma suposta recusa da auto-perdoabilidade só pode significar um aviso que é dirigido aos seres humanos, a fim de lembrar-lhes que não esqueçam os seus malefícios e para dificultar tendências negativas que continuam tentando tomar o controle. Por isso mesmo, nós devemos ser perdoados. 5. REFERÊNCIAS 1. ALLAIS, Lucy. Wiping the Slate Clean: The Heart of Forgiveness. Philosophy & Public Affairs, vol. 36, no 1, 33-68, 2008. 2. ARENDT, Hannah. Vita Activa oder Vom tätigen Leben. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1960. 3. AXELROD, Robert. The Evolution of Cooperation, New York: Basic Books, 1984. 4. BITTNER, Rüdiger. Is It Reasonable to Regret Things One Did? The Journal of Philosophy vol. 89, 262-273, 1992. 5. CALHOUN, Cheshire. Changing One’s Heart. Ethics vol. 103, no. 1, 76-96, 1992. 6. CI, Jiwei. The Two Faces of Justice, Cambridge Mass.: Harvard University Press, 2006. 7. COOP GORDON, Kristina, BAUCOM, Donald H. e SNYDER, Douglas K. Forgiveness in Couples. Divorce, Infidelity and Couples Therapy. In Worthington, Handbook of Forgiveness, 407-422, 2005. 8. DEIGH, John. Shame and Self-Esteem: A Critique. Ethics, vol. 93, no. 2, 225-245, 1983. 9. DERRIDA, Jacques. Le Siècle et le Pardon. In Derrida, Jacques Foi et Savoir, Paris: Seuil, 2001. 10.DILLON, Robin S. How to Lose Your Self-Respect. American Philosophical Quarterly, vol. 29, no. 2, 125-139, 1992. 11.DILLON, Robin S. Self-Forgiveness and Self-Respect. Ethics, vol. 112, no. 1, 53-83, 2001. 12.DOWNIE, R.S. Forgiveness. The Philosophical Quarterly, vol. 15, no. 59, 128-134, 1965. 277 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 13. GIBBARD, Allan. Wise Choices, Apt Feelings. A Theory of Normative Judgment, Oxford: Clarendon Press, 1990. 14. HIERONYMI, Pamela. Articulating and Uncompromising Forgiveness. Philosophy and Phenomenological Research, vol. LXII, no. 3, 529-555, 2001. 15. JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Le Pardon, Paris: Aubier-Montaigne, 1957. 16. KANT, Immanuel. Metaphysical First Principles of the Doctrine of Virtue. In: Practical Philosophy, translated by Mary Gregor, Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 17. KOLNAI, Aurel. Forgiveness. Proceedings of the Aristotelian Society, vol. LXXIV, 91106, 1974. 18. MALCOLM, Wanda, WARWAR, Serine e GREENBERG, Leslie. Facilitating Forgiveness in Individual Therapy as an Approach to Resolving Interpersonal Injuries. In: Worthington, Handbook of Forgiveness, 379-391, 2005. 19. MONTMARQUET, James. Planned Forgiveness. American Philosophical Quarterly, vol. 44, no. 3, 285-296, 2007. 20. MURPHY, Jeffrey G., HAMPTON, Jean. Forgiveness and Mercy, Cambridge University Press, 1988. 21. MURPHY, Jeffrey G. Forgiveness, Self-Respect and the Value of Resentment. In: Worthington, Handbook of Forgiveness, 33-40, 2005. 22. NOLL, Jennie G. Forgiveness in People Experiencing Trauma. In: Worthington, Handbook of Forgiveness, 363-375, 2005. 23. RICHARDS, Norvin. Forgiveness. Ethics, vol. 99, no. 1, 77-97, 1988. 24. RICOUER, Paul. Sanction, Réhabilitation, Pardon. In: Ricoeur Le Juste, Paris: Editions Esprit, 193-208, 1995. 25. RICOUER, Paul. Das Verzeihen. In: Ricoeur Das Rätsel der Vergangenheit. Erinnern– Vergessen–Verzeihen, trad. por A. Breitling e H.R. Lesaar, Göttingen: Wallstein, 144156, 1988. 26. SIMMEL, Georg. Conflict. Trad. por Kurt H. Wolff, in: Conflict and the Web of GroupAffiliations, Glencoe, Ill.: Free Press, 11–124, 1955. 27. SPAEMANN, Robert. Verzeihung. In: Glück und Wohlwollen, Stuttgart: Klett-Cotta, 239-254, 1989. 28. TUTU, Desmond. The Spirituality of Reconciliation. Address at the Washington National Cathedral, November 13, 2007. http://www.cathedral.org/cathedral/programs/ TutuAddress071113.html. 29.WADE, Nathaniel G., WORTHINGTON, Everett L. Jr. e MEYER, Julia E. But Do They Work? A Meta-Analysis of Group Interventions to Promote Forgiveness. In: Worthington, Handbook of Forgiveness, 423-440, 2005. 278 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 30.WESSELS, Ursula. Die gute Samariterin, Berlin: Walter de Gruyter, 2002. 31.WILLIAMS, Bernard. Schame and Necessity. Berkeley CA: University of California Press, 1994. 32.WORTHINGTON, Everett L. Jr. (org.). Handbook of Forgiveness, London: Routledge, 2005. Recebido em: 21/10/2014 Aprovado em: 28/10/2014 279 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem INSIDER TRADING: O alcance subjetivo da proibição do uso indevido de informação privilegiada TELDER ANDRADE LAGE1 RESUMO O insider trading consiste no uso de informações relevantes e privilegiadas com o intuito de obter vantagem indevida, para si ou para outrem, no âmbito do mercado de capitais. Tal conduta acarreta uma séria insegurança ao mercado de capitais, pois sua conseqüência natural é uma ausência de correlação entre o preço real do valor mobiliário negociado com o efetivamente praticado na transação, tendo em vista que uma das partes não possuía todas as informações necessárias para mensurar o valor justo do título negociado. Com isso, tem-se que os mercados de capitais em que há maior incidência do insider trading são menos desenvolvidos do que aqueles que o combatem de maneira mais eficaz. No Brasil muito se tem discutido sobre o alcance subjetivo da vedação ao insider trading. Uma primeira corrente entende que apenas as pessoas que tenham acesso a informação privilegiada em virtude do exercício profissional poderiam praticar o insider trading, ao passo que uma segunda corrente entende que tal vedação abrange a qualquer pessoa, não existindo qualquer restrição em relação à origem da informação. O presente artigo visa solucionar este impasse. Palavras chave – Mercado de Capitais, Insider Trading, alcance subjetivo. ABSTRACT The insider trading consists in the use of relevant and privileged information for the purpose of obtaining not allowed advantaged, for yourself or 1 Mestre em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton Campos. Especialista em Direito Constitucional pela PUCMinas e em Direito Internacional pelas Faculdades Milton Campos. Professor do programa de Graduação do Centro Universitário UNA. Professor do programa de Pós-Graduação do Centro de Direito Internacional-CEDIN e do Instituto de Altos Estudos em Direito-IAED. 280 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem anyone, in the area of capital market. That action entails a serious insecurity in the capital market, because its natural consequence will be the lack of correlation between the real estate value that is negotiated and the one that is effectively observed in the transaction, because one of the traders does not have all the information needed to measure the fair price of the negotiated financial title. In conclusion, the capital market that has the higher incidence of insider trading is less developed than the ones that combat it in an efficient way. There are many discussions in Brazil about the subjective scope of the prohibition of insider trading. One of the points of view understands that only people that have access to the privileged information because of their job could practice the insider trading. On the other hand, it is understood that the insider trading action is prohibited to anyone, although it has no relation with the source of information. The present paper aims to solve this doubt. Key words: Capital Market – Insider Trading – Subjective scope. 1. INTRODUÇÃO 1.1. O INSIDER TRADING Conceito de Insider Trading Como bem preleciona FRANCISCO ANTUNES MACIEL MÜSSNICH (1979, pág. 31/32), para que se entenda o conceito da expressão insider trading é preciso acompanhar o desenvolvimento das sociedades empresárias que compõem o mercado de capitais. Importante enfatizar que este autor entende que “o desenvolvimento da empresa moderna como principal instrumento do capitalismo foi sem dúvida o resultado da sua enorme versatilidade como modelo jurídico apropriado de organização.” Mais adiante o autor subdivide a história das sociedades integrantes do mercado de valores mobiliários em dois grandes períodos, sendo que no primeiro “o empresário e a empresa confundiam-se, assim como confundiam-se as noções de administração e capital.” Ou seja, num primeiro momento o fundador ou os acionistas controladores eram os responsáveis diretos pela administração das companhias abertas. O segundo período caracterizou-se pelo surgimento dos administradores profissionais sendo que “nesta fase, as funções usualmente atribuídas 281 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem aos empresários, vão sendo gradativamente transferidas a esta nova ‘classe’, cuja única função era administrar a empresa, muito embora, na maioria das vezes, nunca tivessem participado da sua criação ou ainda investido capital de risco.” Tal fato se deveu à alteração do mercado que exigiu um maior conhecimento técnico especializado na administração das companhias, a fim de que alcançassem lucros mais significativos, por isso os poderes de decisão foram ao longo dos anos se transferindo dos acionistas para os administradores profissionais. A alteração na forma de administração das sociedades empresárias acarretou o crescimento das mesmas, o que atraiu mais investidores para este mercado. Referidos investidores, como já explanado, não praticam diretamente atos de administração da companhia2, possuindo como única preocupação a obtenção de lucro, que pode ser obtida por meio da distribuição de dividendos ou da negociação de títulos no mercado secundário. E com esta nova estrutura das Sociedades Anônimas surgiu a preocupação de que seus administradores utilizassem de maneira desleal fatos relevantes, ainda não divulgados ao público, o que fez transparecer a necessidade de se criarem institutos jurídicos que protegessem os demais investidores. Ficara evidente que a proximidade e conhecimento dos administradores, dos fatores e métodos de produção, possibilitavam a extração de informações privilegiadas, o que assim os colocava em uma situação de superioridade, em comparação com as demais pessoas que não possuíam o mesmo fácil acesso. Permitir a utilização desleal destas informações privilegiadas causaria sérios danos à eficiência do mercado e resultaria no enriquecimento ilícito de alguns às expensas dos outros. (MÜSSNICH, 1979, p. 32) Surgiram então os primeiros insiders, que são aquelas pessoa que possuem conhecimento de fato relevante de uma companhia integrante do mercado de capitais, e cuja divulgação necessariamente afetará a cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia a qual se refere. Assim, a divulgação desta, alteraria a conduta dos demais participantes, que na sua posse adotariam postura diferente nas transações envolvendo os títulos emitidos 2 Importante ressaltar que existem espécies de ações que atribuem ao seu titular poder de voto nas deliberações da assembléia geral, o que não se confunde com os atos de administração que são de competência de outros órgãos sociais (Diretoria e Conselho de Administração). 282 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem pela companhia. Por óbvio que o surgimento dos insiders levou à criação de mecanismos jurídicos que visam impedir o uso indevido de informação privilegiada: Mesmo conhecendo os perigos que a utilização desleal de informações privilegiadas poderia trazer para os negócios mobiliários, os sistemas legais, sensíveis a este problema, se viram diante de um impasse, pois os administradores eram os únicos e capazes de dirigirem as empresas. Era necessário assegurar-lhes uma certa liberdade para uma administração eficiente da empresa e para a elaboração de suas políticas de investimento. A curto prazo, o único meio de se atingir este objetivo, foi o de criar um instrumental jurídico tal, capaz de impedir que eles – os administradores – pudessem tirar proveito dessa situação privilegiada, tratando com rigor ainda maior as suas operações com os negócios da empresa. A longo prazo, pelos tribunais (principalmente nos Estados Unidos da América), com base em conceitos éticos, que originaram o dever de diligência e o dever de lealdade. (MÜSSNICH, 1979, p. 33) Realizada uma breve análise do contexto histórico que deu origem ao surgimento dos insiders, bem como do próprio insider trading, necessário analisar o conceito desta expressão. Tem-se que o insider pratica insider trading quando efetua transação envolvendo valores mobiliários da companhia da qual sabe de fato relevante ainda não divulgado aos demais investidores do mercado de capitais, e valendo-se desta, prevê o comportamento do mercado quando de sua divulgação, e negocia valores da sociedade empresária visando auferir vantagem indevida para si ou para outrem. Referida vantagem pode ser tanto o lucro oriundo da negociação de títulos no mercado de capitais (aquisição de valores mobiliários que irão valorizar após a divulgação do fato relevante), como também pode decorrer de negociações que visam evitar um prejuízo iminente. Essa segunda hipótese fica caracterizada quando o investidor, valendo-se de informação privilegiada, prevê que determinado título irá sofrer uma grande desvalorização e vende a outrem aqueles de sua propriedade, antes que a informação seja divulgada. Nesta linha são os ensinamentos de NEWTON DE LUCCA: Esta expressão (insider trading), originária do direito norte-americano, é hoje internacionalmente conhecida e consagrada para designar as 283 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem transações desleais, porque insidiosas, realizadas no âmbito do mercado de capitais. Consiste no aproveitamento de informações relevantes, ainda não divulgadas ao público e capazes de influir nas decisões tomadas no mercado, por parte de administradores, principais acionistas e outros que a elas têm acesso, para negociar com investidores ignaros dessas mesmas informações. Se estes últimos tivessem ciência, em tempo oportuno, daquelas informações privilegiadas, ou não teriam realizado aquelas operações, ou as teriam celebrado em condições diversas. (LUCCA, 2005, p. 41/42) A prática do insider trading além de violar diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, como se demonstrará adiante, fere frontalmente princípios basilares do sistema jurídico, como a isonomia, a equidade, o não-enriquecimento sem causa e a boa-fé objetiva. 2. O INSIDER TRADING NO DIREITO BRASILEIRO 2.1. Considerações iniciais Conforme já demonstrado, o insider trading é o uso desleal de informações privilegiadas no âmbito do mercado de capitais. Consiste, portanto na utilização de fatos relevantes, ainda não divulgados, que uma vez tornados públicos tendem a acarretar uma alteração no valor econômico de títulos emitidos por uma companhia, visando auferir vantagem indevida. No ordenamento jurídico brasileiro vários são os dispositivos legais que regem a matéria, existindo normas repressivas e preventivas à prática do insider trading. As normas preventivas são aquelas que estabelecem o sistema de transparência da informação, ao passo que as normas repressivas se caracterizam por estabelecer sanções de natureza civil, penal ou administrativa à utilização de informação privilegiada no âmbito do mercado de capitais. Tem-se, portanto, que normas preventivas dizem respeito ao dever dos administradores de informar ao público todas as informações relevantes das companhias, ao passo que as normas repressivas são aquelas que impõem sanções àqueles que praticam o Insider Trading. No ordenamento jurídico 284 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem brasileiro, o art. e 1573, da Lei nº 6.404/76, que prevê que os administradores devem informar os títulos de emissão da companhia de que seja titular, bem como as alterações em sua posição acionária, é exemplo claro de norma preventiva, ao passo que o art. 27-D da Lei nº 6.385/764 é exemplo expresso de norma repressiva, vez que trata do crime do uso indevido de informação 3 Confira a redação do artigo citado: “Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular. § 1º O administrador de companhia aberta é obrigado a revelar à assembléia-geral ordinária, a pedido de acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social: a) o número dos valores mobiliários de emissão da companhia ou de sociedades controladas, ou do mesmo grupo, que tiver adquirido ou alienado, diretamente ou através de outras pessoas, no exercício anterior; b) as opções de compra de ações que tiver contratado ou exercido no exercício anterior; c) os benefícios ou vantagens, indiretas ou complementares, que tenha recebido ou esteja recebendo da companhia e de sociedades coligadas, controladas ou do mesmo grupo; d) as condições dos contratos de trabalho que tenham sido firmados pela companhia com os diretores e empregados de alto nível; e) quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades da companhia. § 2º Os esclarecimentos prestados pelo administrador poderão, a pedido de qualquer acionista, ser reduzidos a escrito, autenticados pela mesa da assembléia, e fornecidos por cópia aos solicitantes. § 3º A revelação dos atos ou fatos de que trata este artigo só poderá ser utilizada no legítimo interesse da companhia ou do acionista, respondendo os solicitantes pelos abusos que praticarem. § 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia. § 5º Os administradores poderão recusar-se a prestar a informação (§ 1º, alínea e), ou deixar de divulgá-la (§ 4º), se entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia, cabendo à Comissão de Valores Mobiliários, a pedido dos administradores, de qualquer acionista, ou por iniciativa própria, decidir sobre a prestação de informação e responsabilizar os administradores, se for o caso. § 6o Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na forma determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)” 4 Confira a redação do artigo citado: “Uso Indevido de Informação Privilegiada (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001) Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários: (Artigo incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001) Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)” 285 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem privilegiada. Ressalta-se, contudo, que o estudo do aspecto criminal do insider trading não é objeto da presente análise. Ao analisar a regulamentação do uso indevido de informações privilegiadas no mercado de capitais, JOSÉ MARCELO MARTINS PROENÇA5 (2005, p. 271) ensina que este tema vem evoluindo bastante no ordenamento jurídico brasileiro, tendo a legislação nacional consagrado “os princípios inerentes aos deveres de diligência, de lealdade e de informar”, e o combate a tal conduta pode ser considerado como produto natural destes. Acerca do dever de informar, também conhecido como princípio da transparência, ou princípio do disclosure (como é denominado no direito norte-americano), tem-se que, para que o insider trading efetivamente seja evitado, faz-se necessária não só a divulgação dos fatos relevantes, mas a adoção das medidas necessárias para que todos os participantes do mercado de capitais tenham acesso simultâneo à nova informação divulgada: O princípio do disclosure não se esgota apenas com a prestação de informações: é preciso que paralelamente medidas sejam tomadas para que todos os investidores potenciais tenham, ao mesmo tempo, acesso às novas informações, impedindo-se assim que os administradores, altos empregados e acionistas controladores, utilizem-se em proveito próprio de informações colhidas em primeira mão por força da posição que ocupam. A repressão ao insider trading é, destarte, corolário natural da adoção do princípio do disclosure na regulação do mercado de valores. Ora, adotado o princípio em tela pela legislação de mercado brasileiro, natural que se excogitasse da proibição do insider trading. (LEÃES, 1982, p. 172/173). Após a análise do dever de informar, necessário examinar os deveres de lealdade e diligência. Sendo que o primeiro refere-se ao dever que os administradores possuem de exercer sua profissão sempre objetivando o bem da companhia, se furtando a usar em proveito próprio, oportunidades comerciais que surjam em virtude do cargo ocupado. Por outro lado, o dever de diligência está relacionado ao zelo que os administradores devem possuir no exercício profissional, devendo sempre agir de maneira cuidadosa, evitando possíveis falhas: 5 José Marcelo Martins. Insider Trading: Regime Jurídico do Uso de Informações Privilegiadas no Mercado de Capitais. São Paulo: Editora Quartier Latin. 2005, pág 271 286 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem O dever de diligência é basicamente uma obrigação de caráter geral imposto aos administradores e pode ser definido como sendo o cuidado que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios. No direito norte–americano, os tribunais julgam estes casos considerando as suas particularidades e prova de fraude, tem sido, invariavelmente, o fator determinante na solução destas lides. O dever de lealdade impede que os administradores usem em benefício próprio ou de outrem, as oportunidades comerciais que lhes são proporcionadas em decorrência do cargo que ocupam. O fundamento legal desta obrigação é que os administradores devem exercer suas funções no interesse da empresa tendo em vista a sua função social. (MÜSSNICH, 1979, p. 33). Ou seja, se o administrador de uma sociedade anônima deve se comportar como homem ativo e probo, se furtar a tirar proveito de oportunidades comerciais que lhe foram oportunizadas em virtude do cargo ocupado, bem como deve diligenciar para divulgar corretamente os fatos relevantes, nada mais natural do que impedir que este utilize informações não divulgadas para obter vantagem para si ou para outrem. Após o exame dos princípios supra, insta demonstrar a existência de razões de ordens éticas e econômicas para a proibição da prática do insider trading. As razões de cunho econômico decorrem do simples fato de que mercado de capitais eficiente é aquele em que os valores mobiliários possuem cotação que reflita exatamente as informações já divulgadas pela companhia. Além do que é necessário que os participantes possuam segurança de que não correm risco de negociar com outros integrantes detentores de informações relevantes ainda não divulgadas. Isso porque os investidores somente farão aporte de recursos em mercados cujos riscos existentes se limitem aos oriundos do próprio investimento. Importante frisar que, segundo ALEXANDRE ASSAF NETO (2006, p. 75), o mercado de capitais além de ser mecanismo fundamental para o desenvolvimento da economia, é um importante veículo de captação de investimentos internacionais, e que o ingresso de capital estrangeiro numa economia pode trazer vários benefícios, dentre os quais destacam-se a melhora na imagem internacional do país; o fato de que com a entrada de divisas o governo pode financiar seu déficit por prazos maiores, e com taxa de juros reduzida; 287 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem e o de que o aumento no fluxo de divisas propicia, às sociedades empresárias, uma maior facilidade para ampliação da produção e investimentos em imobilizado. JULIANO LIMA PINHEIRO (2009, p. 46/47) ressalta que o investidor internacional, peça importantíssima para o desenvolvimento econômico de um país, é extremamente sensível à conjuntura internacional e somente deixa de investir em seu próprio mercado em busca de uma maior segurança (riscos menores) e maiores lucros. Assim, não restam dúvidas de que para que haja um bom funcionamento do mercado de capitais é necessário conferir o máximo de segurança possível aos seus participantes. Destaca-se, ainda, que os mercados de capitais que asseguram maior proteção aos investidores são mais desenvolvidos, e que dentre as condições básicas para o seu desenvolvimento encontra-se a necessidade de uma ampla divulgação das informações, permitindo que os acionistas não controladores e demais investidores possuam informações adequadas sobre o valor da companhia, e, por conseguinte de seus fatos relevantes, esses são os ensinamentos de ANDREZO ANDREA FERNANDE ANDREZO (2003, p.161/162). Por outro lado, NELSON EIZIRIK et al (2005, p. 182) sustente que as razões éticas são patentes, à medida que é inegável a disparidade existente numa negociação em que um investidor tem acesso a mais informações do que aquele com quem negocia, sendo reprovável a obtenção de vantagens por meio do uso de informações privilegiadas, caracterizando, inclusive lesão ao princípio constitucional da isonomia. Importante destacar que o desenvolvimento do mercado de capitais influencia toda a economia de um país, razão pela qual sua regulação e proteção se tornam claro interesse público, fato este que leva à inarredável conclusão de que o Insider Trading deve ser combatido de maneira eficaz, assegurando, assim, uma maior confiabilidade aos investidores. Realizada esta prévia análise acerca dos fundamentos que dão azo ao combate à prática do insider trading, necessário esclarecer que no Brasil há uma clara tentativa de tornar o mercado de capitais cada vez mais eficiente naquilo que tange a divulgação de informações, tendo a CVM regulamentado a matéria em diversas instruções normativas, dentre as quais cita-se a mero título exemplificativo as instruções 480/09, 481/09, 488/10, dentre outras. Contudo, apesar da edição de recentes instruções que versam sobre a divulgação de informação no âmbito do mercado de capitais, tem-se que os principais dispositivos normativos de combate ao insider trading continuam 288 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem sendo os arts. 153, 155, 156 e 157 da LSA, bem como a instrução normativa 358/02 da CVM, que sofreu alterações pelas instruções normativas 369/02 e 449/07 e o artigo 27-D da Lei de Valores Mobiliários6 (Lei 6.385/76). A Lei de nº 6.404/76 (Lei de S.A.) é o principal diploma legal que trata da matéria em exame. Referida lei consagra em seu art. 153 o dever de diligência, ao estabelecer que “O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”, previsão esta que também encontra-se insculpida no artigo 1.011 do Código Civil Brasileiro. Comentando o art. 153 da Lei nº 6404/76, MODESTO CARVALHOSA (2003) ensina que para a responsabilização do administrador, em casos de possíveis equívocos na administração da sociedade empresária aberta, necessário analisar a presença da boa-fé, não sendo responsável por erros, caso tenha agido de boa-fé e de forma diligente. Mais adiante, referida Lei, em seus artigos 155, que será analisado em momento oportuno, e 157, consagrou, respectivamente, os deveres de lealdade e de informar. 6 Neste primeiro momento não será analisado o art. 27-D da LVM, tendo em vista que será objeto de estudo específico ao longo do presente artigo. 289 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Importante destacar que o art. 1577, caput, da Lei de S.A. estabelece que a necessidade do administrador de companhia aberta divulgar, ao firmar o termo de compromisso, os valores mobiliários de emissão da companhia, de sociedades controladas, ou pertencentes do mesmo grupo, dos quais seja titular. Acrescenta-se que o § 1º deste mesmo artigo estabelece que um grupo de acionistas que representem pelo menos 5% do capital social da companhia, poderá solicitar ao administrador informações acerca das transações que tiver realizado, envolvendo valores mobiliários de emissão da companhia, de sociedades controladas, ou pertencentes ao mesmo grupo, bem como questioná-lo acerca dos benefícios e vantagens que tenha recebido ou esteja recebendo de referidas sociedades. Tais acionistas, podem, ainda, requerer informações sobre as condições de contrato de trabalho dos diretores e empregados de alto 7 Confira, novamente, a redação atual do artigo 157 da Lei nº 6404/76: “Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular. § 1º O administrador de companhia aberta é obrigado a revelar à assembléia-geral ordinária, a pedido de acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social: a) o número dos valores mobiliários de emissão da companhia ou de sociedades controladas, ou do mesmo grupo, que tiver adquirido ou alienado, diretamente ou através de outras pessoas, no exercício anterior; b) as opções de compra de ações que tiver contratado ou exercido no exercício anterior; c) os benefícios ou vantagens, indiretas ou complementares, que tenha recebido ou esteja recebendo da companhia e de sociedades coligadas, controladas ou do mesmo grupo; d) as condições dos contratos de trabalho que tenham sido firmados pela companhia com os diretores e empregados de alto nível; e) quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades da companhia. § 2º Os esclarecimentos prestados pelo administrador poderão, a pedido de qualquer acionista, ser reduzidos a escrito, autenticados pela mesa da assembléia, e fornecidos por cópia aos solicitantes. § 3º A revelação dos atos ou fatos de que trata este artigo só poderá ser utilizada no legítimo interesse da companhia ou do acionista, respondendo os solicitantes pelos abusos que praticarem. § 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia. § 5º Os administradores poderão recusar-se a prestar a informação (§ 1º, alínea e), ou deixar de divulgá-la (§ 4º), se entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia, cabendo à Comissão de Valores Mobiliários, a pedido dos administradores, de qualquer acionista, ou por iniciativa própria, decidir sobre a prestação de informação e responsabilizar os administradores, se for o caso. § 6o Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na forma determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)” 290 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem nível da companhia, e sobre quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades da companhia. Por força do §3º do dispositivo legal em exame, a revelação dos fatos supra, só poderá ser utilizada em proveito de interesse legítimo da companhia ou do acionista, devendo os solicitantes serem responsabilizados por possíveis abusos que praticarem, o que pode ocorrer, dentre outras hipóteses, se utilizarem as informações obtidas para praticar o insider trading. Por força dos parágrafos 4º e 5º deste dispositivo legal, os administradores possuem o dever de comunicar imediatamente à bolsa de valores e divulgar ao público, qualquer fato que possa influir na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia, ou seja, devem divulgar qualquer informação que possa alterar a decisão dos investidores de negociar títulos emitidos pela sociedade. Contudo, caso sua divulgação coloque em risco interesse legítimo da companhia, os administradores poderão recusar-se a prestar a informação aos acionistas que solicitarem, bem como podem deixar de divulgá-la aos demais investidores. Todavia, conforme posicionamento de WALTER DOUGLAS STUBER (2002, p. 258) não pode o administrador deixar de informar à Comissão de Valores Mobiliários sobre os fatos ou atos relevantes, cabendo à esta autarquia, a pedido dos administradores, acionista, ou por iniciativa própria decidir sobre a prestação de informações, bem como, se for o caso, responsabilizar os administradores. Cumpre destacar que através da Lei n º 10.303/2001, foi inserido no artigo em comento, o §6º que determina que os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, à CVM e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia em que exercem atividade profissional. O §6º do art. 157 da Lei de S.A., introduzido pela Lei nº 10.303/01, que trata do dever dos administradores em informar alterações em sua posição acionária, é mais uma forma de prevenção à prática do insider trading. Apesar do §6º se referir expressamente às negociações de ações, uma análise conjunta do art. 157 da Lei em apreço, leva à inarredável conclusão de que o dever ali estampado se estende aos demais valores mobiliários previstos no caput de referido artigo, quais sejam: ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações. Após análise do artigo 157, que conforme demonstrado consagrou o 291 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem dever de informar, impõe-se uma análise precisa do artigo 1558 da Lei de S.A., que em seu caput estabelece que “o administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios”, vedando, ainda, em seus incisos que o administrado utilize em benefício próprio ou alheio, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais que surjam em virtude do cargo por ele ocupado; A omissão no exercício ou proteção dos direitos da companhia ou, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia, para obter vantagem indevida para si ou para outrem; bem como a aquisição, para revenda, com lucro de bem ou direito de que a companhia necessite ou pretenda adquirir. Os parágrafos 1º e 2º do artigo 155, da Lei nº 6.404/76, atribuem ao administrador o dever de guardar sigilo sobre qualquer informação, que tenha tomado conhecimento em função do cargo que ocupa, e que ainda não tenha sido divulgada e, cuja divulgação, possa causar uma variação na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia (informação privilegiada), vedando, também, a utilização, pelo administrador, de referida informação para a obtenção de lucro para si ou para outrem. Insta enfatizar que o administrador da companhia deve zelar para que seus subordinados e terceiros de sua confiança não violem referidas proibições. Por força da previsão contida no §3º deste mesmo artigo, aquele, que em violação ao disposto nos §§ 1º e 2º negociar valores mobiliários com terceiros, 8 Confira a redação atual do artigo 155, da Lei nº 6.404/76: Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo; II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia; III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir. § 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários. § 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança. § 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação. § 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) 292 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem que desconhecem a informação, deverá indenizar a pessoa prejudicada por perdas e danos. Sobre o tema, WALTER DOUGLAS STUBER ensina que: Outro importante dever que cumpre aos acionistas controladores, administradores e empregados da companhia é guardar sigilo das informações relativas a atos ou fatos relevantes às quais tenham acesso privilegiado (insider information), em razão do cargo ou profissão que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam. Em caso de descumprimento da obrigação de guardar sigilo por parte desses subordinados ou de terceiros, os acionistas controladores, administradores e empregados da companhia responderão solidariamente com estes pelos danos causados pelo referido descumprimento. (2002, p. 259) Por fim, acrescenta-se que a Lei nº 10.303/2001, acrescentou o §4º ao artigo em análise, que veda a utilização de informação relevante e privilegiada, com a finalidade de auferir vantagem indevida, para si ou para outrem, no mercado de capitais. Ao se realizar um breve exame sobre referidos dispositivos normativos, face às divergências doutrinárias sobre o alcance subjetivo da proibição da prática do insider trading, impõe-se uma análise mais detida de referida proibição. Todavia, antes de adentrar no debate acerca da extensão da vedação supra, necessário esclarecer que, aquele que pratica o insider trading, necessariamente estará obrigado a indenizar a pessoa que foi vítima do uso indevido de informações privilegiadas. Contudo, MODESTO CARVALHOSA (2003, p.308) esclarece que a legislação que rege a matéria, não prevê a hipótese de se anular o negócio jurídico realizado entre o insider e o investidor prejudicado, até porque previsão legislativa nesse sentido causaria grande dano ao mercado, tendo em vista a existência de transações em massa e consecutivas. 2.2. O alcance da proibição à prática do Insider Trading Apesar do art. 155, §6º, da Lei de S.A., estabelecer que “é vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários”, a doutrina diverge quanto ao alcance da expressão “qualquer pessoa”. Para parte da doutrina, a inclusão 293 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem de referida expressão teve o intuito de alargar a prática do insider trading, a qualquer pessoa que utilize informação privilegiada para negociar valores mobiliários com o intuito de auferir vantagem indevida. Ao passo que parte da doutrina, entende que a expressão supra deve ser interpretada de maneira restritiva, limitando-se às pessoas que, em virtude de exercício de profissão obtenham acesso às informações privilegiadas. Sobre o tema NELSON EIZIRIK et al (2008. P. 527) ensina que a lei 6.404/76, em sua redação original, considerava como insiders apenas os administradores das companhias abertas, conceito este que fora ampliado pela instrução CVM nº 31/1984. Posteriormente, a instrução CVM nº 358/2002, estabeleceu, em seu artigo 13, que podem se considerados insiders, a companhia; seus acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal, ou de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criadas por disposição estatutária, bem como quem quer que em virtude de seu cargo, função ou posição na companhia, sua controladora, controlada ou coligada, tenha acesso a informação relativa a fato relevante ainda não divulgado. Neste aspecto necessário transcrever o seguinte trecho da obra de NELSON EIZIRIK et al: O parágrafo primeiro do art. 13 da instrução CVM nº 358/2002 proíbe a negociação por quem quer que tenha conhecimento de informação confidencial, especialmente aqueles que tenham relação comercial, profissional ou de confiança com a companhia, tais como auditores independentes, analistas de valores mobiliários, consultores e instituições integrantes do sistema de distribuição. (2008, 527). Logo após o trecho acima colacionado, NELSON EIZIRIK et al(2008. P. 528), relata que a lei nº 10.303/2001 acrescentou o §4º ao art.155 da Lei de S.A., passando a vedar a utilização de informação privilegiada, utilizada por qualquer pessoa, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem. Contudo, referido autor entende que a expressão qualquer pessoa deve ser interpretada de maneira restritiva, devendo abranger apenas aqueles que tomem conhecimento da informação em virtude de sua atividade profissional. Nesta mesma linha, pede-se vênia para citar MODESTO CARVALHOSA, que analisando o §4º, do art. 155, da Lei de S.A. ensina que: Há no entanto um limite para o termo “qualquer pessoa” utilizado na norma em estudo (§4º). Com efeito, deve haver um nexo profissional entre o 294 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem vazamento das informações e os terceiros para que estes possam ser considerados tippees. Assim, apenas aqueles que em virtude do exercício de profissão tenham acesso a essas informações (advogados, auditores, operadores de mercado, peritos, etc.) é que serão responsabilizáveis pelo uso dessas informações. Deve haver, ainda, nexo pessoal entre administrador (tipper) e os terceiros (tippees) que com ele tenham algum contato de natureza profissional ou como controladores. Assim, o conhecimento ocasional da informação por razões outras que não a do exercício de alguma profissão ou função junto à empresa é de difícil configuração. E o terceiro souber em uma reunião social que haverá a incorporação de determinada companhia ou a venda de seu controle, não tendo essa mesma pessoa qualquer acesso de natureza profissional e permanente a tal informação, não poderá ser considerada como um tippee. Se, com efeito, a informação relevante vazou além do âmbito dos administradores e dos controladores e dos envolvidos profissionalmente com ela, os terceiros ocasionalmente informados não poderão ser considerados insiders. Caberá, nesse caso, diretamente ao administrador a responsabilidade por não ter mantido a reserva necessária sobre o fato relevante, a ponto de este ter vazado para o âmbito meramente social. (2009. Pág. 492/494) Infere-se, pois, que referidos autores entendem que, caso a informação privilegiada e ainda não divulgada aos investidores do mercado de capitais vaze, para uma terceira pessoa que não tenha tido acesso ao fato relevante em virtude de exercício de atividade profissional. E ainda que este terceiro utilize a informação para obter vantagem negociando valores mobiliários no mercado de capitais, não estará praticando insider trading, razão pela qual não poderá ser responsabilizado. Portanto, segundo esta corrente, o insider trading só pode ser praticado por aqueles que têm acesso às informações privilegiadas em virtude da profissão que exercem. Assim, caso uma pessoa, tivesse conhecimento, ocasional, ou seja, não relacionado à prática de atividade profissional, de fato relevante, ainda não divulgado, e utilizasse a informação obtida para obter vantagem indevida, através da negociação de valores mobiliários, não poderiam ser responsabilizadas pela conduta, devendo a responsabilidade pelo ocorrido, perante o prejudicado, ser imputada ao administrador que não cumpriu o dever de sigilo. Contudo, apesar do entendimento supra, existe uma corrente cujo entendimento é de que toda e qualquer pessoa que tenha acesso a informação 295 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem relevante de uma determinada sociedade empresária, ainda não divulgada ao público, e cuja divulgação afetará a cotação dos valores mobiliários emitidos por ela, e negocie no mercado de capitais visando auferir vantagem, estará praticando insider trading. Sobre a possibilidade de qualquer pessoa, independentemente da forma como teve conhecimento do fato relevante e sigiloso, praticar o insider trading PAULO F. C. SALLES DE TOLEDO: Faltava coibir de modo expresso o insider trading praticado diretamente pelas pessoas que, mesmo sem serem administradores da companhia, tivessem tido acesso a informações relevantes, capazes de repercutir na cotação dos valores mobiliários de emissão da sociedade anônima. (...) A nova lei sanou a omissão. Hoje o dever de sigilo estende-se a todos os que tenham tido acesso a informações relevantes para a companhia aberta. O objetivo é garantir a todos os investidores no mercado de capitais igualdade efetiva de acesso às informações necessárias à decisão de negociar valores imobiliários. Enquanto não divulgada a notícia, de modo que todos os interessados potenciais possam ponderar sobre seus efeitos, ninguém pode fazer uso dela para operar no mercado. (2002. p. 444). Nesse caso a ilicitude da conduta de um terceiro que utilize informação privilegiada para auferir vantagem através de negociação de valores mobiliários decorreria não só das disposições do art. 155 da LSA, como também da violação ao princípio da boa-fé objetiva, consagrado pelo Código Civil Brasileiro já que “a boa fé, em sua modalidade objetiva, como conduta ética entre as partes que negociam, impõe correlação e lealdade”(Pereira, 2004, p. 502). No caso em apreço, não se pode falar em lealdade na conduta da pessoa, detentora de informação privilegiada que negocia com outrem com visando a obtenção de vantagem. Tem-se, assim, que a conduta adotada viola o princípio da boa-fé objetiva, que exige uma conduta ética entre as partes contratantes, sendo imperativo que transacionem com lealdade. Conforme já explanado, não restam dúvidas que a falta desta está presente na conduta dos investidores que valem-se de fatos relevantes ainda não divulgados para obter benefícios econômicos. No atual contexto legislativo, bem como em virtude da necessidade econômica de se atribuir segurança aos investidores do mercado de capitais, 296 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem tem-se que a coibição ao uso indevido de informações privilegiadas, dentre outros motivos se justifica em fatores econômicos, pelo que deve prevalecer a segunda teoria. Ou seja, tal vedação pauta-se na necessidade de se conferir segurança ao mercado, para que desta forma sejam atraídos novos investidores. Certo é que para o investidor é indiferente se o uso de informação privilegiada ocorreu por pessoas ligadas diretamente à administração da companhia ou por terceiros que a elas tiveram acesso, o que realmente importa é se ele efetivamente está negociando com pessoas que detêm exatamente as mesmas informações. Os investidores que aportam grande quantidade de recursos no mercado de capital necessitam indubitavelmente de segurança para fazê-lo, ou seja, não investirão se desconfiarem da credibilidade do mercado. Isso porque os participantes aceitam os riscos do empreendimento, que por sua própria natureza são elevados, mas não querem se sujeitar a estabelecer relações de investimento na qual não possuem certeza quanto às condições que podem interferir na negociação. Assim, deve prosperar a tese de que qualquer que pessoa utilize informações privilegiadas na negociação de valores mobiliários pratica o insider trading. Isso porque, além da lesão ao princípio da boa fé objetiva, estaria realizando um negócio jurídico que fere a equidade, isonomia e gera um conseqüente enriquecimento ilícito por parte do detentor da informação, que ao contrário dos outros investidores, pode prever alteração na cotação de determinados valores mobiliários. Importante ressaltar que não se defende a ausência de responsabilidade do administrador, ou qualquer outra pessoa intimamente ligada à companhia e que deixou vazar a informação, mas tão somente que esta responsabilidade não se limita a estas pessoas, abarcando também aqueles que efetivamente alcançaram um benefício econômico em virtude da informação privilegiada. Sobre a necessidade de se dar segurança ao investidor, o próprio NELSON EIZIRK, que defende a primeira teoria exposta, entende que: As razões éticas são evidentes. Há um total desequilíbrio entre a posição ocupada pelo insider e aquela ocupada pelos demais participantes do mercado, sendo eticamente condenável a realização de lucros em função única e exclusiva do acesso e utilização privilegiada de informações por parte do insider. Trata-se, ademais, de manter um nível mínimo de confiabilidade no mercado. Com efeito, é absolutamente impossível o desenvolvimento de um mercado acionário no qual, sabidamente, podem 297 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem ganhar apenas aqueles poucos que têm acesso às informações confidenciais das empresas. Os investidores, particularmente os individuais, devem ter a certeza de que o sistema não está estruturado de que o sistema não está estruturado de molde a favorecer apenas aqueles que detêm as informações privilegiadas. Assim, as razões éticas e econômicas estão evidentemente interligadas. Com efeito, de nada adianta a estruturação de um complexo e sofisticado sistema de disclosure se aos investidores não for assegurado que o custo por eles incorrido na análise das informações não corresponder ao benefício da possível realização de lucros: tal possibilidade pode evidentemente ser elidida pela atuação do insider. (1983, pág. 44) Outro fato que reforça o caráter extensivo da proibição, não impondo limites à expressão “qualquer pessoa” é o fato de que um terceiro que tenha acesso à informação privilegiada e em virtude de tal informação negocie títulos com outra pessoa que não possua as mesmas informações, auferindo vantagem, celebrou com esta um negócio jurídico no qual não houve isonomia. CELSO RIBEIRO BASTOS (2002, p. 323/324) ensina que o princípio da isonomia, caracterizado pela igualdade, “não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feito da ordem jurídica.” Acrescenta, ainda, que a igualdade (isonomia) “é o mais vasto dos princípios constitucionais”. Por fim, exalta que a igualdade não é apenas um princípio informador de todo o sistema jurídico, mas um verdadeiro direito subjetivo dos cidadãos. Por isso, não restam dúvidas que o uso de informações privilegiadas, ainda que por pessoa que não possua qualquer vínculo com a companhia, acarreta uma lesão a este princípio. Isso porque uma das partes envolvidas na transação possui mais informações do que a outra, o que lhe possibilita prever uma alteração na cotação dos valores mobiliários, oportunidade esta que não é assegurada à outra parte. Pode-se dizer que aquele que é vítima do insider trading possuía, indubitavelmente, direito subjetivo de acesso às mesmas informações que o insider, para que diante delas, negociasse os títulos pelo seu real valor. Diante do exposto, há uma clara desigualdade na relação jurídica, razão pela qual a transação realizada não observou o princípio da isonomia. 298 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem 3. CONCLUSÃO Conclui-se, portanto, ser imprescindível uma ampla repressão ao insider trading para que o mercado de capitais possa se desenvolver de forma eficiente e cumpra com sua função essencial que é o financiamento dos projetos das sociedades que lhe integram. Um mercado de capitais que não seja dotado de mecanismos de prevenção e repressão a tal conduta está fadado ao insucesso tendo em vista a insegurança dela decorrente. Neste sentido o legislador brasileiro deu um grande passo ao acrescentar o §4º ao art. 155 da LSA, alargando a proibição do uso indevido de informação privilegiada a qualquer pessoa, devendo prevalecer o entendimento de que é indiferente se a informação privilegiada foi repassada ao investidor em virtude do exercício profissional ou por qualquer outro motivo. Assim o insider pode ser qualquer pessoa que utilize a insider information, ainda que a tenha obtido em reuniões sociais. REFERÊNCIAS 1. ANDREZO, Andrea Fernande. Alienação de Controle de Companhia Aberta e a Recente Reforma da Legislação Societária – Efetivo Avanço? In Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, Vol. 130. Malheiros Editores. abril-junho de 2003. 2. ASSAF NETO, Alexandre. Mercado Financeiro. São Paulo: Editora Atlas. 2006. 3. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora.2002. 4. BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz.(Coord.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 5. CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Reforma da Lei das S.A. Comentada. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2002. 6. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva. 2003. 7. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. 8. CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson; A Nova Lei das S/A. São Paulo: Editora saraiva. 2002. 9. EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais – Regime Jurídico. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2008. 10.EIZIRIK, Nelson. “Insider Trading” e Responsabilidade de Administrador de 299 revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem Companhia Aberta. In BULGARELLI, Waldírio (Coordenação). Revista de Direito Mercantil Industrial,Econômico e Financeiro nº 50. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1983. 11.LEÃES, Luis Gastão Paes de Barros. Mercado de Capitais & “Insider Trading”. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1982, pág. 175. 12.LUCCA, Newton De. Prefácio. in PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: Regime Jurídico do Uso de Informações Privilegiadas no Mercado de Capitais. São Paulo: Editora Quartier Latin. 2005. 13.LUCENA, José Waldecy. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Volume II. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. 14.LOBO, Carlos Augusto da Silveira. Os Valores Mobiliários. In WALD, Arnoldo (Coordenação). Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais nº 36. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. 15.MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel. A Utilização Desleal de Informações Privilegiadas – “Insider Trading” – no Brasil e nos Estados Unidos. In BULGARELLI, Waldírio (Coordenação). Revista de Direito Mercantil Industrial,Econômico e Financeiro nº 34. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1979. 16.PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2004. 17.PINHEIRO, Juliano Lima. Mercado de Capitais: Fundamentos e Técnicas. São Paulo: Editora Atlas. 2009. 18.PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007. 19.PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: Regime Jurídico do Uso de Informações Privilegiadas no Mercado de Capitais. São Paulo: Editora Quartier Latin. 2005. 20.STUBER, Walter Douglas. As Novas Regras Para a Divulgação e Uso de Informações Sobre Atos ou Fatos Relevantes Relativos às Companhias Abertas Brasileira. In WALD, Arnoldo (Coordenação). Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem nº 16. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2002. 21.TOLEDO, Paulo F. C. Salles de. Modificações Introduzidas na Lei das Sociedade por Ações, quanto à Disciplina da Administração das Companhias. In Jorge Lobo (Coordenação). Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2002. Recebido em: 18/10/2014 Aprovado em: 20/10/2014 300 NORMAS PARA A SUBMISSÃO DE ARTIGOS A Revista Jurídica da Faculdade UNA de Contagem é editada semestralmente e de fluxo contínuo. A linha editorial da revista busca reflexões dentro da temática “Direito e sociedade”. Artigos e resenhas podem ser submetidos para avaliação pelos pares (double blind review) através do e-mail: [email protected]. FORMATAÇÃO Título, Resumo, palavras-chave Título em inglês, Abstract, keywords Introdução Desenvolvimento Conclusão Listas de referências bibliográficas Editor de texto: Word. Folha: formato A4, posição vertical. Margens: superior e esquerda 3 cm; inferior e direita 2 cm. Entradas de parágrafo: 1,25 cm, a partir da margem. Espaçamento entrelinhas: 1,5 cm Fonte para texto de introdução, desenvolvimento e conclusão: Times New Roman, tamanho 12 Fonte para ilustrações, tabelas, notas e citações diretas em recuo: Times New Roman, tamanho 10. Justificação: Todo o texto deve ser justificado, exceto as referências bibliográficas ao final do artigo. As palavras em língua estrangeira: sempre em itálico e nunca sublinhadas ou em negrito. Identificação: A identificação do autor deve constar no artigo em nota de rodapé e deve conter, no mínimo, o nome do autor, a formação acadêmica e o nome da instituição que representa. www.editoraletramento.com.br facebook.com/editoraletramento