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Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Catalogação na fonte: Elaborado pelo Serviço de Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP R291 Rebento: revista de artes do espetáculo / Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. - n. 5 (julho 2015) - São Paulo: Instituto de Artes, 2015. Anual2010 (1-2); 2012 (3); 2013 (4); 2015 (5) ISSN: 2178-1206 1. Teatro – Periódicos. 2. Teatro – Estudo e ensino – Periódicos. 3. Representação teatral – Periódicos. 4. Criação (Literária, artística etc.) - Periódicos. I. Instituto de Artes. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. CDD 792.07 EXPEDIENTE Rebento – Revista de Artes do Espetáculo é uma publicação do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação (Dacefc) do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Os pontos de vista expressos nos textos assinados são de inteira responsabilidade dos/os autoras/es. Todo o material documental e as inserções fotográficas deste número foram publicados com a autorização de seus autores ou representantes. Coordenação editorial (2010-2015): Alexandre Mate (UNESP) e Mario Fernando Bolognesi (UNESP). Conselho editorial: Alberto Ikeda (ECA – USP), Lúcia Romano (UNESP), Luís Alberto de Abreu, Maria de Lourdes Rabetti (UNIRIO), Mariangela Alves de Lima, Milton de Andrade (UDESC), Neyde Veneziano (UNICAMP) e Sílvia Fernandes (USP). Conselho consultivo: Amir Haddad (Grupo Tá na Rua – RJ), Bob Sousa (UNESP), Carminda Mendes André (UNESP), Cássia Navas (UNICAMP), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo – SP), Eugenio Barba (Odin Teatret – Dinamarca), Fernando Villar (UnB), Fernando Yamamoto (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – RN), Francisco Cabral Alambert Junior (USP), Gilberto Figueiredo Martins (UNESP - Assis), Hugo Possolo (Grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões – SP), Iná Camargo Costa (USP), Iveta Maria Borges Ávila Fernandes (UNESP), Jaime Gómez Triana (Casa de las Américas – Cuba), José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez (UNESP), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Kathya Maria Ayres de Godoy (UNESP), Leslie Damasceno (Duke University – Carolina do Norte), Luciana Lyra (UNESP), Ludmila Ryba (ex-integrante da Companhia Cricot 2, Polônia), Luiz Eduardo Frin (INDAC - SP), Marcelo Bones (CEFARMG), Maria Silvia Betti (USP), Marianna Francisca Martins Monteiro (UNESP), Marvin Carlson (City University – New York), Milton Sogabe (UNESP), Paulo Eduardo Arantes (USP), Paulo Betti (Casa da Gávea – RJ), Paulo Castanha (UNESP), Peter Burke (University of Cambridge), Roberto Schwarz (UNICAMP), Robson Corrêa de Camargo (UFG), Rodrigo Morais Leite (Escola Livre de Teatro de Santo André), Rosangela Patriota Ramos (UFU), Rosyane Trotta (UNIRIO), Santiago Serrano (Dramaturgo – Argentina), Sérgio de Carvalho (USP), Simone Carleto (Escola Viva de Artes Cênicas de Guarulhos), Suely Master (UNESP), Valmir Santos (Jornalista), Wagner Cintra (UNESP) e Walter Lima Torres (UFPR). Projeto gráfico: Alexandre Mate e Maurício F. Santana. Revisão técnica, idealização da revista e responsável por esta edição: Alexandre Mate. Coordenação de produção do evento: Laura Salerno e Diego Nascimento. Revisão: Gissela Mate Sabino. Impressão: Instituto de Artes - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Capa e contracapa: peças gráficas das Semanas de Artes Cênicas (concernentes ao evento Teatro de Grupo). Fotos nesta edição: Acervo Coletivo do Mapa Xilográfico, Alécio Cezar, Alícia Pires, Annaline Picollo, Bob Sousa, Cacá Diniz, Eduardo Raimondi, Fábia Pierangili, João Caldas, Maringas Maciel, Rafael Telles. SUMÁRIO Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Apresentação: 10 V Semana de Estudos Teatrais: um evento desenvolvido em duas, e articuladas, ocasiões Alexandre Mate (acompanhado de ps. de Mario Fernando Bolognesi) 17 Realinhamentos na história do teatro: o sujeito histórico teatro de grupo como espaço para a criação partilhada, Alexandre Mate 33 Bloco I: O evento de 2013 • Impressões e expressões: as práxis de 13 de novembro Para contar as nossas histórias... Do nosso jeito, Luiz Eduardo Frin (Instituto de Artes da Unesp) 39 Encontro de divindades, Kiko Marques (Velha Companhia) Teatro de Grupo – Sujeito coletivo, Fernanda Azevedo (Cia. Kiwi de Teatro) 53 Apontamentos sobre os bons encontros, Rodrigo Mercadante (Cia. do Tijolo) 62 Intervenção Urbana e desespetacularização: a experiência do Coletivo Mapa Xilográfico, Diogo Rios e Milene Valentir (Mapa Xilográfico) • Impressões e expressões: as práxis de 14 de novembro 74 Teatro de grupo no novo cenário paulistano: das universidades para a ocupação de espaços urbanos ociosos, periferias e ruas da cidade, Anderson Zanetti (Grupo Teatral MATA!) 88 Homens e caranguejos: relato de uma experiência, Juliana Mado, Luciana Lyra, Camila Andrade, Beatriz Marsiglia e Letícia Leonardi (Cia. Ju Cata-histórias; Coletivo Quizumba; Coletivo Cênico Joanas Incendeiam) 99 Criação e resistência: possibilidades para um processo criativo horizontal, Amanda Cavalcante (II Trupe de Choque) 105 O nascimento de um teatro e o alvorecer de vários intérpretes, Fábia Pierangelli (Grupo de Teatro Girandolá) 111 Teatralidades do real presentificadas na cena e no mercado, Evill Rebouças e Edu Silva (Cia. Artehúmus de Teatro) 120 Grupo teatral, processos criativos e alienação, Adailtom Alves Teixeira (Grupo Teatral Buraco d’Oráculo; Universidade Federal de Rondônia) 138 Para celebrar a poesia da luta ou – “Mais à esquerda, por favor!”, Daniela Giampietro (Cia. Estável) 142 Relato de uma te-arteira, integrante de um coletivo (in)tenso, em processo de constante (de)formação, Natália Siufi (Grupo Teatral Parlendas) 150 Bloco II: O evento de 2014 • Impressões e expressões: as práxis de 05 de maio Em busca da arte da mediação como prática política e pública (e em processo de politização) nestes tempos sombrios ou Já que nem toda política é pública, como reinventar a luta?, Daniela Bafi (Coletivo Cafuzas) 159 Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo: a busca de um teatro para a cidade... E de uma cidade para as pessoas!, Maria Silvia do Nascimento (a partir de fala de Marisabel Mello) 168 Política cultural: provocações & contradições, Luiz Carlos Moreira (Engenho Teatral) 184 A Cultura no centro do debate, Rudifran Pompeu (Grupo Redimunho de Teatro e Cooperativa Paulista de Teatro) 187 Políticas públicas para as artes. Breve panorama do Projeto Ademar Guerra de Qualificação em Teatro, Aldo Valentim, André de Araújo e Douglas Novais (Secretaria de Estado da Cultura) 208 Ti-jo-lo/ en-con-tro: Cante lá que eu canto cá, Dinho Lima Flor, Aloísio Oliveira, Lílian Lima, Rodrigo Mercante, Thiago França (Cia. do Tijolo) 217 • Impressões e expressões: as práxis de 06 de maio A criação da intérprete nas fronteiras: onde (re)nasce a linguagem?, Lúcia Romano (Instituto de Artes da Unesp; Cia. Livre) 225 Notas sobre o processo de criação de Xapiri Xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos, Cibele Forjaz (Escola de Comunicações e Artes/USP; Cia. Livre) 233 Sobre a perspectiva do movimento em Xapiri – devir ser... corpo de passagem; Lu Favoreto (Cia. Oito Nova Dança) 236 245 • Impressões e expressões: as práxis de 07 de maio Mediador-Memória: um registro na linguagem escrita sobre relatos de experiências em dramaturgia de cena feitos oralmente, Fabiano Lodi (Instituto de Artes da Unesp) Dramaturgia para uma poética do ator, Lee Taylor (Instituto de Artes da Unesp; Núcleo de Artes Cênicas – NAC) Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 251 O Caminho do Feijão: expedientes e procedimentos da criação da dramaturgia da cena, Pedro Pires (Cia. do Feijão) 259 O corpo na construção da dramaturgia, por Renata Melo 263 Uma possível autoversão da malcriação artística do grupo Rosa dos Ventos, Tiago Munhoz (com “pitacos” dos integrantes do grupo) (Circo Teatro Rosa dos Ventos) 271 • Impressões e expressões: as práxis de 08 de maio Nekropolis: uma experiência por um fio da música no teatro, Gustavo Kurlat 274 O grupo narrador, Rosyane Trotta (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) 280 O eterno retorno ou em busca do tempo perdido. Sobre o teatro de grupo, a Revista e um Brasil cordial, Kleber Montanheiro (Companhia da Revista) 285 Máskara - uma aventura goiana, Robson Corrêa de Camargo (Grupo Kompanhia – Goiás; Universidade Federal de Goiás) 291 Ifigênia: os sons como elementos de composição cênica, Marcelo Lazzaratto e Rafael Zenorini (Cia. Elevador Panorâmico de Teatro) 298 O teatro hip-hop como linguagem, Roberta Estrela D’Alva (Núcleo Bartolomeu de Depoimentos) Bloco III: • Impressões e expressões de convidados 310 Bertolt Brecht nos EUA: um refugiado anticapitalista na pátria do capital, Agenor Bevilaqua Sobrinho (Universidade de São Paulo) 334 João das Neves e a crítica militante, Roberta Carbone (Universidade de São Paulo) 345 Dramaturgia de testimonio – o desvelamento de uma possibilidade, Luiz Carlos Checchia (Cia. Teatro dos Ventos) 351 Imagens do sertão na moderna dramaturgia brasileira: alguns apontamentos necessários para uma antologia inexistente, Rodrigo Morais Leite (Instituto de Artes da Unesp) 380 A prática do intercâmbio adotada pelo Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare e suas possíveis relações com a cultura popular, Diogo Spinelli (Instituto de Artes da Unesp) Fotografias desta edição • Maringas Maciel: Cais ou Da indiferença das embarcações (Velha Companhia/SP). Foto n° 1. • Bob Sousa: Morro como em um país (Cia. Kiwi de Teatro/SP). Foto n° 2. • Alécio Cezar: Cantata para um bastidor de utopias (Cia. do Tijolo/ SP). Foto n° 3. • Acervo Coletivo do Mapa Xilográfico: Cenas de intervenção urbana, (Mapa Xilográfico/SP). Fotos n° 4, 5 e 6. • Alícia Pires: Homens caranguejos (Coletivo Cênico Joanas Incendeiam/SP). Foto n° 7. • Fábia Pierangili: Ara Pyau - Liturgia para o povo invisível (Teatro Girandolá/SP). Foto n° 8. • Eduardo Raimondi: Evangelho para lei-gos (Cia. Artehúmus de Teatro/SP). Fotos n° 9 e 10. • Bob Sousa: Ser tão ser narrativas de outra margem (Grupo Teatral Buraco d’Oráculo/SP). Foto n° 11. Homem cavalo & sociedade anônima (Cia. Estável/SP). Foto n° 12. • Annaline Picollo: Marruá (Grupo Teatral Parlendas/SP). Foto n° 13. • Bob Sousa: Opereta de botequim (Engenho Teatral/SP). Foto n° 14. Marulho (Redimunho/SP). Foto n° 15. • Cacá Diniz: Xapiri Xapirepë – Lá onde a gente dançava sobre espelhos (Cia. Oito Nova Dança; Cia. Livre). Fotos n° 16 e 17. • Bob Sousa: Lilith S.A. (Núcleo de Artes Cênicas – NAC/SP). Foto n° 18. Enxurro (Cia. do Feijão/SP). Foto n° 19. Saltimbembe mambembancos (Circo Teatro Rosa dos Ventos/SP). Foto n° 20. Ópera do malandro (Cia. da Revista/SP). Foto n° 21. • João Caldas: Ifigênia (Cia. Elevador Panorâmico de Teatro/SP). Fotos n° 22, 23 e 24. • Bob Sousa: Antígona recortada – contos que cantam sobre pousopássaros (Núcleo Bartolomeu de Depoimentos/SP). Foto n° 25. • Rafael Telles: Muito barulho por quase nada (Grupo Clowns de Shakespeare/RN). Foto n° 26. Apresentação Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 V Semana de Estudos Teatrais: um evento desenvolvido em duas, e articuladas, ocasiões, por Alexandre Mate Falo assim sem saudade, Falo assim por saber Se muito vale o já feito, Mais vale o que será [bis] E o que foi feito é preciso Conhecer para melhor prosseguir [...] No canto que criei, Nem vá dormir como pedra e esquecer O que foi feito de nós Milton Nascimento e Fernando Brant (O que foi feito deverá). Sem dúvida, a produção teatral paulistana – decorrente de vários processos de conquista dos trabalhadores do teatro –, encontra-se entre aquelas de maior relevância e não apenas no Brasil. Desde fins da década de 1990, conscientes da importância que a linguagem teatral tem, sobretudo quanto à chamada disputa do simbólico, inúmeros sujeitos agrupados em coletivos teatrais, contrários à mercantilização do teatro e à reificação do artista, passaram a formar o sujeito histórico denominado teatro de grupo. Em tese, tais agrupamentos – politicamente conscientes do papel que lhes cabe e àquele concernente à práxis da linguagem teatral –, têm instituído conjunto de estratégias por intermédio das quais é possível aos artistas sobreviverem de seu ofício. Decorrente de tal proposição, não são poucos os coletivos que têm consciência de que, ao lado do estético, o teatro tem, também, relevância histórico-social. Dessa forma, e como diferentes outras ações humanas, a linguagem teatral pode, sim, intervir nas mais diferenciadas esferas da vida social acordando e potencializando os sentidos críticos, estéticos, imaginativos... Os números exatos de quantos seriam os grupos em atividades na cidade é difícil de ser apresentado, posto haver muitos deles que se formam, mas que, pelos mais diferenciados motivos, não têm a vida tão longa. De qualquer forma, e algumas reflexões serão desenvolvidas no próximo texto, trata-se de um fenômeno de significativo alcance social. É bastante significativo, também, o número de estudantes, formados nos cursos de licenciatura ou bacharelado em teatro, que se insere nesses grupos, seja para participar de estágios ou para atuar nas obras montadas. Muitos desses grupos funcionam como extensão das salas de aula dos cursos de formação em que o aprendizado se cola diretamente ao fenômeno artístico, que é o espetáculo. Além dos aspectos apresentados, outro destaque que é preciso fazer refere-se aos procedimentos coletivos de trabalho instaurados no sujeito teatro de grupo. O processo de criação e as tarefas demandadas pelo trabalho, ainda que possam contar com um responsável final, acabam sendo partilhadas por todos os sujeitos. Conscientes, portanto, da relevância do assunto – e depois de focalizar nas Semanas anteriores Persona & Personagem (2008); Dramaturgia: As Tessituras da Cena (2010); As formas Fora da Forma (2011); As Urdiduras da Performance (2012) –, em 2013 e em 2014, em dois momentos distintos e articulados, tomou-se como assunto, em seis dias de encontro, A Força do Teatro de Grupo na Cidade de São Paulo, em 2013 e A Força do Teatro de Grupo no Brasil, em 2014. Com abertura do professor Mario Fernando Bolognesi, nas duas edições, o encontro de 2013, foi desenvolvido nos dias 13 e 14 de novembro, contando com três mesas. A primeira delas, batizada “Na Horizontalização das Relações, o Fundamento Potencializador dos Procedimentos Colaborativos para a Criação da Cena e do Espetáculo”, contou com a participação de artistas de grupos da cidade de São Paulo: Adailton Alves (Grupo Buraco d’Oráculo); Fernanda Azevedo (Kiwi Companhia de Teatro); Kiko Marques (Velha Companhia), Lucia Romano (Companhia Livre e mundana.companhia); Luciano Carvalho (Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes) e Rodrigo Mercadante (Companhia do Tijolo), com mediação de Luiz Eduardo Frin (doutorando no programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes de UNESP). A segunda mesa – o que tem se reiterado “em tradição” -, foram convidados/as ex-estudantes do Instituto de Artes, que atuam em coletivos ligados ao teatro de grupo, com o objetivo de expor suas experiências, em mesa batizada: “Na Crença do Compromisso do Teatro como Experimento Estético-social a Força do Coletivo”, contando com a participação de: Amanda Cavalcante (II Trupe de Choque); Daniela Gianpietro (Companhia Estável); Evill Rebouças (Companhia Artehúmus de Teatro); Flávia Pierangeli (Grupo Teatral Girandolá); Juliana Mado (Coletivo Cênico Joanas Incendeiam) e Natália Siufi (Grupo Teatral Parlendas), com mediação de Anderson Zanetti (doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes). A terceira mesa foi 11 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 montada especialmente para o lançamento do Laboratório Portal Teatro sem Cortinas, do Instituto de Artes da UNESP, e contou com falas de Valery Albright (vice-diretora do Instituto de Artes), Bob Sousa (fotógrafo da cidade de São Paulo e mestrando do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes), Lissa Santi (bolsista da Fapesp e estudante da Licenciatura em Arte-Teatro, do Instituto de Artes) e de uma das mais importantes pesquisadoras de teatro da cidade de São Paulo Maria Thereza Vargas, que discorreu sobre a importância da documentação teatral e a criação do Centro de Pesquisas de Arte Brasileira Contemporânea do Departamento de Informação e Documentação Artística (IDART) e do Arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo, com mediação realizada por Alexandre Mate. Além das mesas, o evento contou, também, com uma demonstração de processo do Coletivo Mapa Xilográfico (SP), apresentado por Milene Valentir e Diogo Rios, batizada “Cartografização do Social em Perspectiva Estética”; duas oficinas: a primeira, batizada “Para Além do Estético no Corpo, o Corpo Épico-gestual”, desenvolvida por Fábio Resende da Brava Companhia (SP); e, a segunda, batizada “Na Deriva até a Estação Barra Funda do Metrô, a Construção das Cenas de Rua no Teatro de Caixa”, desenvolvida por Carminda Mendes André (professora do Instituto de Artes) e também por mim. Por último, a Semana terminou com a apresentação do espetáculo Movimento n°1: o silêncio de depois, apresentado pelo Coletivo Negro. Durante o período do evento e mais uma semana, foi apresentada uma exposição em homenagem a César Vieira e ao Teatro Popular União de Olho Vivo (TUOV), no Instituto de Artes, com coordenação de Laura Salerno (estudante do curso de Licenciatura em Arte-Teatro). O evento de 2014, desenvolvido de 05 a 08 de maio, já tradicional, trouxe como novidade a parceria e partilha das responsabilidades com o Sesc Consolação. Constaram da programação do evento, cujas ações foram desenvolvidas no Instituto de Artes e em vários espaços da unidade do Sesc, as seguintes atividades: mesa de abertura: “Políticas Públicas e o Teatro”, com a participação de André de Araújo (diretor de teatro, gestor cultural e assistente de curadoria do Projeto Ademar Guerra, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo); Marisabel Mello (Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo), Luiz Carlos Moreira (do Engenho Teatral – SP) e Rudifran Fernandes (presidente da Cooperativa Paulista de Teatro), com mediação de Daniela Landin (jornalista e estudante do Instituto de Artes da UNESP). À tarde desse primeiro dia, integrantes da Companhia do Tijolo e da Companhia Hiato (ambas de São Paulo) apresentaram duas demonstrações quanto ao processo de criação desenvolvido pelos integrantes das companhias, com mediação de Laura Salerno (estudante do curso de Licenciatura em Artes-Teatro, do Instituto de Artes da UNESP). No seguindo dia de evento, foi desenvolvida uma oficina, nomeada “Colaborativismos em Processos de Fronteira”, que conta e experimenta procedimentos adotados para criação do espetáculo Xapiri Xapirepë – Lá onde a gente dançava sobre espelhos, desenvolvida pelas multiartistas: Cibele Forjaz (USP e Companhia Livre), Lúcia Romano (UNESP e Companhia Livre) e Lu Favoreto (Companhia Oito Nova Dança – SP). À noite, as atrizes da Companhia Hiato, Fernanda [Bernardes] Stefanski e Milena [Moreira] Filócomo, apresentaram seus solos, que fazem parte do espetáculo Ficções. No terceiro dia, foi desenvolvida mesa com o tema: Expedientes e procedimentos de criação da dramaturgia de cena: relatos de experiências, com a participação de Lee Taylor (ator e diretor, coordenador do Núcleo de Artes Cênicas – SP); Pedro Pires (diretor da Companhia do Feijão – SP); Renata Melo (multiartista e uma das pioneiras no trabalho de teatro-dança de São Paulo) e Tiago Munhoz (ator e militante cultural da Companhia Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente – SP), com mediação de Fabiano Lodi (mestrando do Instituto de Artes). No último dia, à tarde, foi apresentada uma demonstração dos processos de criação desenvolvido pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, priorizando a montagem de Antígone recortada – contos que cantam sobre pousopássaros, sob a responsabilidade de Roberta Estrela Dalva. Para terminar o evento, “A inserção de assuntos históricos na cena teatral”, que contou com a participação de Gustavo Kurlat (multiartista criador de São Paulo); Kleber Montanheiro (multiartista da Companhia da Revista – SP); Robson Corrêa de Camargo (professor da Universidade Federal de Goiás e diretor do Grupo Kompanhia) e Rosyane Trotta (professora da Unirio RJ, dramaturga e pesquisadora teatral), com mediação de Alexandre Mate. Do ponto de vista quantitativo, mais de 2.000 pessoas, entre estudantes de graduação e da pós-graduação (e não apenas do Instituto de Artes), artistas e interessados nos temas, participaram das duas edições. Decorrentes das falas ou intervenções desenvolvidas durante os encontros, de 2013 e 2014, os textos que constam da Rebento – Revista de Artes do Espetáculo # 5 (e os interessados poderão ter acesso aos números anteriores no http://www.teatrosemcortinas.ia.unesp.br) – estão 13 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 na edição da revista de diversas formas, e atendendo às indicações das mesas ou das práticas apresentadas. Assim, as reflexões escritas apresentam-se a partir de diversos formatos: de teóricos a históricos, mas, com ênfase nos procedimentos verificados nas dinâmicas de montagem de espetáculos que, em boa parte dos casos, serve como referência. Alguns dos textos que constam deste número foram transcritos a partir das falas apresentadas durante o evento, em razão disso, algumas vezes, há passagens mais premidas por certa aproximação ao texto oral. Pelos mais diferenciados problemas, muitas companheiras e companheiros não puderam escrever seus textos para constar desta edição. Ligado a isso, e desde o primeiro número, caracteriza-se em expediente e como princípio editorial, não praticar qualquer tipo de corte ou intervenção nos textos enviados. Assim, no processo de leitura técnica, para ordenação ao formato da revista, promove-se apenas uma revisão ortográfica. Não são solicitados pareceres quanto à “pertinência” dos textos ou questões dessa natureza. Talvez por isso, e entendendo à realidade, que é sempre díspar, não se vislumbra uma abstrata unidade editorial, em razão de os pensares e as práticas serem premidas por infindas diferenças. Agregado a isso, a vida tem exigido cada vez mais que os profissionais aqui presentes (por intermédio de seus textos) trabalhem de modo sempre exagerado. Havia intenção de apresentar, pelo menos, uma foto de cada grupo convidado, por intermédio de um de seus integrantes a participar do encontro. Neste particular, a meta foi atingida, mas houve grupos que enviaram mais de uma foto ficando difícil a seleção. Então, nesse particular, houve representação de todos os grupos. A última parte da Rebento, como tem acontecido desde o primeiro número, apresenta textos que não fizeram parte dos encontros, mas, de modos mais e menos próximos, guardam alguma aproximação ao temareferência que alicerça a publicação. À luz do exposto, mais uma tarefa se cumpriu, com a consciência de o resultado, fundamentalmente histórico, vir acompanhado de “erros” e “acertos”. Resultado que explicita e documenta um coro polifônico de um conjunto que pensa e cria teatro, cuja legitimidade estética e militante têm promovido a dificílima, entretanto fundamental, vivência do teatro de grupo em plagas brasileiras. Por último, nos últimos cinco anos, como responsável pela publicação da Rebento, além do trabalho insano que a tarefa propõe, muitas alegrias e encontros ocorreram e, decorrente disso, uma sensação de compromisso, permanentemente trabalhado. ps.: A iniciativa de organizar simpósios para discussão de temas candentes e atuais do teatro paulistano e brasileiro, aliada à publicação das discussões geradas pelos debates, conferências e artigos nasceram como complemento à Licenciatura em Teatro e à então recém criada linha de pesquisa em artes cênicas, do Programa de Pós-graduação em Artes, do Instituto de Artes da Unesp. Essas atividades se configuram como elementos complementares à formação e à pesquisa, em constante diálogo com o fazer teatral consolidado pelo teatro de grupo. Novos desafios virão e deverão encontrar a receptividade dos professores de artes cênicas para a continuidade dos encontros, debates e publicações. Alexandre e eu (mais ele do que eu) cumprimos um ciclo. Alexandre, efetivamente, conduziu essas atividades com maestria e visão de futuro. Mas eu “palpitei” o quanto pude. As visões e projeções do passado apresentaram resultados concretos. Deles participaram professores, estudantes, pesquisadores, artistas de diversas áreas, atores, diretores, cenógrafos, jornalistas, críticos, administradores, frequentadores, enfim, todas as categorias que, de uma forma ou de outra, participam da concretização do teatro. Continuemos, pois! Mario Fernando Bolognesi 15 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Realinhamentos na história do teatro: o sujeito histórico teatro de grupo como espaço para a criação partilhada, por Alexandre Mate1 Resumo: Desde fins da década de 1990, na cidade de São Paulo, é possível referir-se à produção teatral, em sua totalidade, como fruto do trabalho coletivo e partilhado dos coletivos que formam o chamado teatro de grupo. De atividade expulsa da polis e restrita a número diminuto de sujeitos, a atividade teatral paulistana invade teatros, espaços híbridos e inusitados, ruas e logradouros públicos, intervindo em boa parte das relações sociais. O teatro invade o cotidiano por meio da prática de grupos de sujeitos da periferia, de mulheres, de negros, de pós-dramáticos, de épico-dialéticos, de performáticos... Convivem e constroem um teatro múltiplo, heteróclito, contraditório... Palavras-chave: teatro paulistano; história do teatro; teatro de grupo; teatro experimental Abstract: Since the late 1990s, the city of São Paulo, can refer to the theatrical production, in its entirety, as a fruit of collective work and shared collective forming called the group theater. Activity driven from the polis and restricted to small numbers of subjects, the city of São Paulo theater activity invades theaters, hybrids and unusual spaces, streets and public places, intervening in much of social relations. The theater pervades everyday life through the practice of groups of subjects from the periphery, women, black, post-dramatic, epic-dialectical, the performers ... coexist and build a multiple, heteroclite, adversarial theater... Keywords: São Paulo theater, theater history, theater group, experimental theater No alvorecer do mundo ocidental, a institucionalização do “dom de iludir” E se de repente, a gente não sentisse a dor que a gente finge, e sente Se, de repente a gente distraísse o ferro do suplício. Ao som de uma canção, então, eu te convidaria Pra uma fantasia do meu coração. [...] Chico Buarque de Hollanda (Fantasia). Homens e mulheres, pelas mais diversas necessidades, estão permanentemente a representar. Fingimentos bons e ruins são construídos Professor doutor em História Social (FFLCH-USP), ministra aulas na graduação e na pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita 1 Filho”, militante e pesquisador da área teatral. 17 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 e apresentados, socialmente, com díspares sentidos e necessidades de safar os humanos de problemas; para postergar atitudes e situações, tantas vezes, próximas do insuportável; para conseguir deixar de ser o alvo de gozações; para perpetrar vinganças; para estar no mundo sem ser tão percebido; para dissimular, confundir, convencer, reiterar... Enfim, e não apenas seres humanos (a metamorfose de certos animais também funciona como capacidade de camuflagem) fingem ser o que não são adotando estatuto de verdade absoluta. Fernando Pessoa, em Autopsicografia (1930), deixou legado antológico a esse respeito: “O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sempre”. Mulheres e homens sempre estiveram juntos, ainda que premidos hierarquicamente pelo quase eterno pátrio-poder deles sobre elas. Parafraseando Chico Buarque de Hollanda, sempre atento ao cotidiano dos “pares”, em letra genial de O casamento dos pequenos burgueses: “Vão viver sob o mesmo teto até que a casa caia, até que a casa caia. [...] Vão viver sob o mesmo teto até explodir o ninho, até explodir o ninho”, a família, e não apenas a burguesa, se caracteriza em uma espécie de laboratório disseminador do uso e posologia, sem abuso, das fantasias obrigatórias do viver. Até certa idade, sobretudo as mães, obrigam e mantém o hábito, o quanto podem, do uso de máscaras (tantas vezes danosas), mas confortadoras da imagem que legitima um modelo naturalizado e imposto de família, alicerçado na consanguinidade e nos direitos que garante a perpetuação da propriedade. Independentemente de tantas regras e imposições, nem sempre sutis e naturalizadas, homens e mulheres, de um modo e de outro, ao longo de suas existências, têm buscado formas de agrupamento e desenvolveram ações conjuntas. Quer dizer: quase sempre, mas não em todos os lugares. Mulheres, por exemplo, sempre estiveram ao lado de homens no teatro popular; entretanto, no teatro erudito as mulheres aparecem na cena apenas no século XVII. De outro modo, antes dessa data, especificamente na Europa, na forma erudita – e desde a Antiguidade clássica grega -, as personagens femininas eram apresentadas por homens. Estes transvestidos. Homens como simulacro de mulheres. Homens fingindo serem/ estarem em condição. Desde aquela data e até hoje, normalmente, quando um homem interpreta uma mulher, e com raras exceções, costuma-se ver reunidos, em um só corpo, diversos tipos de estereótipos. Decorrente ou não de certos preconceitos generalizados, ainda que dissimulados, divisa-se, por sob a fantasia, corpo/comportamento do homem cuja alma, e sem dissimulações, é feminina. De volta ao foco que aqui interessa, homens e mulheres, no teatro erudito, e até determinado momento histórico, foram concebidos de modos diferentes, legitimando, também nesse universo, as tantas distinções assemelhadas àquelas da vida social. Homens sempre puderam quase tudo no concernente ao tratamento social, e mulheres sempre foram refreadas em muitos de seus desejos. Por exemplo, mulheres, até determinado momento histórico, e como já apresentado, não podiam ser atrizes; eram obrigadas a assistir tragédias, mas impedidas de assistir às comédias (durante a Antiguidade clássica grega). No filme Shakespeare apaixonado (1998), a problemática é apresentada: a personagem Viola De Lesseps quer atuar, mas não pode, então, transveste-se de homem. Sem qualquer tipo de proteção, artistas populares, que viviam em agrupamentos e eram obrigados a deambular para sobreviver, deslocavam-se com suas famílias: pelas dificuldades, não haveria qualquer probabilidade de as mulheres não atuarem. Mulheres e homens fingem e fingem e fingem: representam, por diferenciadas imposições ou opções, diversos papéis. Mulheres e homens sempre representaram em ambientes privados (normalmente, com total e ampla aceitação social) e públicos (com algumas restrições, sobretudo de natureza moral). Grandes autores, ao longo da história do teatro, sobretudo com relação à dramaturgia de texto, criaram personagens cujo fingimento caracteriza-se em modelar: Nora em Casa de bonecas; Rosaura em A vida é sonho; Hamlet em Hamlet; Faustino em Judas em sábado de aleluia... Molière, oscilando em dois agrupamentos ou classes sociais, em momento de dissolvência hegemônica, foi cerceado por todo tipo de censura, então, claro, para sobreviver, como a totalidade dos artistas populares em sociedades vigiadas e cerceativas, dizia-se um farceur. Em razão da eficácia quanto ao alcance de certos fingimentos persuasivos na vida social, no século V, antes de Cristo, o Estado grego organiza uma linguagem simbólica, “ungida” pela representação. Fruto do desenvolvimento da literatura apologética aos detentores do poder e suas conquistas, do desenvolvimento de um sistema político no qual os cidadãos publicamente explicitavam seus pontos de vista sobre a polis e aprimoramento dos procedimentos rituais, o Estado institui e “aprisiona” em forma estética os procedimentos de natureza pública. O fingimento ganhou espaço oficial, por meio de linguagem cujo fenômeno acontecia ao vivo e cuja 19 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 relação, em tese, deveria compreender a identificação, preferencialmente emocional. A representação estetizada, de certo modo, passou a ter uma função profilática, de depuração do espírito e comportamento tendente ao desregramento. Instituído pelo Estado, o teatro virou sagrado (principalmente em sua forma dita superior: a tragédia); desamparada e condenada ao esquecimento, a forma popular de representação foi condenada à deambulação, por seu caráter profano (fora do templo). Expulsos da ágora, homens e mulheres, juntos e dividindo a cena, continuaram a espalhar sua irreverência pelo mundo. O desamparo ajudou a promover a existência e aproximação dos expulsos da polis em agrupamentos deambulantes Desamparados e sem qualquer tipo de ajuda, os artistas populares tiveram de “cumprir sua sina” e viver de seu trabalho. A necessidade, evidentemente, aproximou muito deles obrigando-os à formação de um grupo, senão coeso, pelo menos, ligado aos objetivos da sobrevivência e de necessidades a transitar e comunicar-se por meio da linguagem instituída por meio do uso de símbolos. E assim tem sido desde então. Se, ao longo da história, determinados agrupamentos de artistas do teatro tiveram diferentes tipos de incentivo econômico e proteção dos poderosos, o mesmo raramente ocorreu com os artistas populares. Desse modo, durante o Renascimento (cujo início, por diferentes e articuladas questões, pode ser encarado a partir do século XIII), surgem os primeiros agrupamentos de coletivos, formados por homens e mulheres que se registram em cartório, legitimando seu direito de receber por seu trabalho. Trata-se da commedia dell’arte que, de modo sucinto, se caracteriza na formação de grupos que adotam procedimentos e expedientes cômicopopulares, desde a Antiguidade clássica greco-romana. Apesar do registro legal, muitos desses grupos, como não poderia deixar de ser, dão início ao processo deambulante, no qual, vez ou outra, conseguem algum tipo de ajuda, evidentemente, sempre interessada. A organização de muitos desses coletivos “independentes” ocorre em rede, normalmente, a partir de lastro familiar, e, em tese, tem como um de seus pilares de existência o cooperativismo no processo do fazer. Portadores de tradição familiar e oral, os artistas desses grupos especializavam-se em determinadas máscaras da tipologia da commedia dell’arte, misturando virtuosismo pessoal e capacidade de relacionar-se com o público. Com a criação dos Estados Nacionais e a compreensão potencializada quanto à importância da linguagem para veiculação de ideologia interessante aos detentores do poder, o protecionismo ganha a figura do mecenato: não mais apenas o Estado ou instituições poderosas tutelariam o teatro, mas indivíduos e diversos tipos de grupos. Desse contexto histórico, as formas de protecionismo, mesmo com a vitória da burguesia, pautaram-se nos mesmos estratagemas e expedientes. Com o advento e hegemonia da burguesia, o teatro transformou-se em um (grande) negócio. As necessidades díspares e tantas vezes contraditórias dos artistas confluíram para a mercantilização, em processo crescente e quase irrestrito das artes. Arte, na condição de produto, precisaria submeter-se às leis do mercado. Em teatro, e de acordo com pressupostos alicerçantes do liberalismo, o cooperativismo, a autonomia, os processos de partilha... precisariam submeter-se às exigência e ideário (absolutamente disseminado), e cujo aforismo poderia ser encontrado na tese segundo a qual: era preciso estar no lugar certo, na hora certa para encontrar-se com a pessoa certa. O fermento potencializador desse perverso corolário, evidentemente, era a arte como mercadoria e o artista-mercadoria. Séculos se passaram e os pressupostos alimentantes de tal normatização permaneceram, com mais e menos esbarrões em seus alicerces. Entretanto, como a classe que depurou os pressupostos mercadológicos continuou na condição de hegemônica (mesmo com algumas revoluções dentre as quais a de Outubro de 1917), a partir de determinado momento histórico, em diversos países e por meio dos mais diversos estratagemas, homens e mulheres artista lutaram no sentido de se libertar das malhas e amarras do mercado. No Brasil, o chamado teatro empresarial sempre teve muita dificuldade de sobreviver, sobretudo pelos artistas – de modo quase absoluto - nunca terem sido inseridos no mercado de trabalho legalizado. Agravado pela “gana destruidora” do chamado neoliberalismo, tendo Margaret Thatcher como emblema e corifeia, a impossibilidade de o titubeante teatro empresarial existir, contaminado por todo tipo de interesse, foi enfrentado de diversos modos por processos de luta contra o Estado-mercadoria. Conscientes das inúmeras lutas a serem desenvolvidas, homens e mulheres, artistas ou não, principalmente a partir dos fins da década de 1970, saem em greve contra a violência, a carestia, a falta de liberdades democráticas. Nacionalmente, a primeira luta política nacional – depois daquela a favor da Anistia (1979) – capaz de levar imenso contingente 21 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 de pessoas às ruas foi conhecida pelo nome de Diretas já!, desenvolvida a partir de fins de 1983 a abril de 1984. Dentre outros aspectos, a luta é deflagrada contra o processo de eleição indireta para presidente do país. O processo das Diretas Já! – de alguma forma – foi derrotado, mas, de qualquer modo, ao saírem das salas de ensaio para os protestos das ruas, número significativo de artistas do teatro, tocado pelos acontecimentos, amplia seu processo de luta contra a ditadura (ou como sabiamente chamam os argentinos, contra o “terrorismo de Estado”) e a perda de direitos da classe trabalhadora, incorporando à sua produção assuntos decorrentes de tantas cenas de rua. Inegavelmente, a partir de tais processos, especificamente na cidade de São Paulo, o teatro se epiciza: a cena, paulatinamente, desinteressa-se dos assuntos individuais premidos pelos conflitos intersubjetivos. A década de 1980, aos poucos, realinha alguns e alinha outros artistas aos processos de luta e de reconquista de tantas experiências perdidas. Ações intergrupos, seminários, encontros, mostras... passam a ser propostos. Sujeitos aproximam-se para ações individuais e coletivas. De tantos processos de troca e de partilha, da politização das relações – e entendendo o teatro como um experimento de natureza histórico-estéticosocial –, novos agrupamentos e grupos de teatro surgem na cidade de São Paulo. Depois de expedientes de censura e de cerceamentos por parte do estado ditatorial, o teatro passa a ser assistido novamente. Especificamente, na década de 1980, uma das últimas empresas de teatro a levar mais público ao teatro foi o Centro Experimental de Repertório, sob o comando do ator Antônio Fagundes, que participou da montagem de Arte final (de Carlos Queiroz Teles), em 1980, inserido no Projeto Cacilda Becker, cujas atividades gerais previam: Parque da Dramaturgia, Teatro de Repertório, Mostra de Cenário e Indumentária, Ciclo de Leituras Dramáticas, Seminário de Informação Teatral e Assessoria Editorial, com coordenação geral de Antonio Abujamra, José A. Ferrara, Hugo Barreto, Helvécio A. Cardoso e Pedro D’Aléssio. Especificamente como ator (e, em alguns casos como produtor), Antônio Fagundes participou dos seguintes espetáculos: Carmem com filtro (1986); Cyrano de Bergerac (1985); Fragmentos de um discurso amoroso (1988); O homem elefante (1982); Morte acidental de um anarquista (de 1982 a 1988), segundo dados encontrados em fontes documentais, nas sete temporadas, a obra contou com um público de aproximadamente 700 mil espectadores. Trata-se da montagem com o maior número de espectadores na década; O senhor dos cachorros (1980); Sinal de vida (1980), Xandu Quaresma ou Farsa de um cangaceiro, truco e padre (1984-86). Evidentemente, outros espetáculos também obtiveram algum sucesso nesse sentido empresarial, mas Fagundes foi o melhor sucedido. Assim como tantos outros atores e atrizes de destaque pela televisão, sobretudo, Fagundes não participou de grupos. Até a atualidade existem atores e atrizes que parecem não se afinar ao espírito gregário e que preferem montar seus espetáculos sozinhos. Trata-se de uma experiência, na cidade de São Paulo, minoritária, e em razão de não existir mais, basicamente, produtores teatrais. À exceção do Centro de Pesquisa Teatral – CPT, mantido pelo Sesc, na unidade Consolação, com montagem de espetáculos antológicos dirigidos por Antunes Filho e sempre sucesso de público, mas não ligado ao conceito aqui buscado, na medida em que o Grupo Macunaíma foi institucionalizado pelo Sesc. O espetáculo que mais público levou, ligado a um trabalho de grupo, na cidade, durante a década de 1980, e cujos expedientes e repertório seguiam bastante as proposições épicos, mas não dialético-brechtianas, foi Ubu, Pholias Physicas, Pataphysicas e Musicaes (1985-1987), apresentado pelo Grupo de Teatro Ornitorrinco, com direção de Cacá Rosset. O grupo, com direção de Cacá Rosset, apresentou ainda na década: O belo indiferente (19831984), Doente imaginário (1989-1990), Happy end (1981), Mahagonny (1983-1984), Mahagonny songspiel (1982), Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill (1982), Teledeum (1987-1988), A velha dama indigna (1988). Da crítica ao sistema à busca de caminhos alternativos e estratégicos para a criação teatral não mercantilizada na cidade de São Paulo: surge um novo sujeito histórico Este texto [segundo manifesto] é expressão do compromisso e responsabilidade histórica de seus signatários com a idéia de uma prática artística e política que se contraponha às diversas faces da barbárie – oficial e não oficial – que forjaram e forjam um País que não corresponde aos ideais e ao potencial do povo brasileiro. Manifesto Arte Contra a Barbárie (1999). Decorrente de processos de luta em prol do reconhecimento da profissão, da criação da Cooperativa Paulista de Teatro e da Anistia aos presos e perseguidos políticos, pela liberação de textos proibidos pela censura, contra a censura, pelas Diretas Já!, pela promulgação da Constituinte, pela eleição 23 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 direta à presidência da República e, sobretudo, contra a mercantilização da cultura, surgem movimentos que vão se ampliando. Reiterando o já apresentado, teatro de grupo existe desde a criação da linguagem teatral. A autonomia dialética do coletivo nos diversos processos de produção, premido por militância e consciência política de seu fazer e do poder de sua intervenção, pelo entendimento e consciência de que o teatro não pode se caracterizar em especulação metafísicoidealista, mas processo de luta cravado e travado em processos históricos determinados, faz surgir na cidade de São Paulo, a partir de década de 1990, um novo sujeito histórico que será batizado de teatro de grupo. Com relação aos artistas-trabalhadores do teatro, e sob o nome de Arte Contra a Barbárie, um coletivo de sujeitos formado por grupos, criadores individuais, professores e intelectuais. Sua principal tarefa consistiu na criação de um fórum de discussão permanente para reflexão e encaminhamento de propostas que se contrapusessem à mercantilização da produção teatral. Inicialmente, dentre os participantes desse movimento, podem ser destacados nomes como: Aimar Labaki, Beto Andretta, Carlos Francisco Rodrigues, César Vieira, Eduardo Tolentino, Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Hugo Possolo, Luiz Carlos Moreira, Márcia de Barros, Marco Antonio Rodrigues, Reinaldo Maia, Sérgio de Carvalho, Tadeu de Sousa, Umberto Magnani. O movimento, que era desenvolvido sem caciquismos, um local ou cronograma fixos definiu – à semelhança dos movimentos de vanguarda espalhados pelo mundo no século XX –, algumas de suas linhas de ação e objetivos em alguns manifestos. Em tese, e de modo bastante sucinto, o primeiro manifesto foi lançado em 1999. Nele, batizado de “Manifesto Arte Contra a Barbárie”, ao apresentar a tese mais geral segundo a qual a cultura, em sendo elemento de união do povo, é tão fundamental quanto a educação, a saúde e os transportes, seus propositores, dentre outras questões, afirmam: ser “[...] inaceitável a mercantilização imposta à cultura no País, na qual predomina uma política de eventos.”; denunciam: “A atual política oficial, que transfere a responsabilidade do fomento da produção cultural para a iniciativa privada, mascara a omissão que transforma os órgãos públicos em meros intermediários de negócios.”; garantem: “A maior das ilusões é supor a existência de um mercado. Não há mecanismos regulares de circulação de espetáculos no Brasil. A produção teatral é descontínua e no máximo gera subemprego” (COSTA & CARVALHO, 2008, p.22-3). Evidentemente, as manifestações apresentadas no manifesto contrapõem-se à Lei Rouanet e à política de renúncia fiscal que não contemplava o teatro que os artistas ligados ao movimento faziam. Nessa medida, os profissionais de marketing das grandes e médias empresas, que investiam parte do imposto devido ao fisco para a cultura, não se interessavam pelo segmento que pensava a arte na condição de experimento estético-social. Assinaram esse primeiro manifesto: Aimar Labaki, Beto Andretta, Carlos Francisco Rodrigues, César Vieira, Eduardo Tolentino, Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Hugo Possolo, Márcia de Barros, Marco Antonio Rodrigues, Reinaldo Maia, Sérgio de Carvalho, Tadeu de Sousa, Umberto Magnani. Especificamente, na condição de grupos, cujos participantes se faziam presentes, podem ser citados os seguintes coletivos: Companhia do Latão; Grupo Engenho; Grupo Folias d’Arte, Grupo Tapa; Parlapatões, Patifes e Paspalhões; Teatro da Vertigem, Teatro Popular União e Olho Vivo. O segundo manifesto foi lançado em dezembro do mesmo ano do primeiro, e aprofundou as questões anteriormente apresentadas. Nesse manifesto, fazendo alusão ao primeiro, em seu segundo parágrafo, lê-se: O objetivo do manifesto era dar início a uma ampla discussão que, fugindo do âmbito dos partidos, dos sindicatos, das organizações existentes, fossem elas de produtores e/ou realizadores/ fazedores, envolvesse a sociedade civil evitando o círculo viciosos e viciado dos posicionamentos políticos que se amesquinham na postulação de cargos e de “soluções” imediatistas “solucionam” os efeitos mas não tocam as causas (Idem, ibidem, p.22-3). Depois de apresentar dados objetivos sobre a inexistente política cultural brasileira, e de deixar claro que os participantes do movimento “contra a barbárie” organizam-se, ampliando suas ações, os signatários do manifesto ratificam: Voltamos a reafirmar nosso diagnóstico da necessidade de uma “política cultural” estável, democrática e transparente para a atividade teatral. Voltamos a reafirmar a necessidade de se superar o estado de indigência, de guichê, de improviso, da visão economicista para se consolidar uma produção cultural diversa, múltipla e democrática que possa contribuir para a alimentação do imaginário e da sensibilidade do cidadão brasileiro. Uma política pública que tenha suas bases alicerçadas nos princípios igualitários de acesso aos mecanismos de produção e fruição do bem cultural, onde a ação eventual seja substituída pela ação sistemática e contínua que possibilita a qualidade e a excelência (Idem, p. 26). 25 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 O terceiro manifesto, de 2000, aprofundou ainda mais as questões apresentadas desde o primeiro, e, segundo Marco Antonio Rodrigues: O Arte Contra a Barbárie quer ser um movimento referencial no campo das idéias, que só pode ser reconhecido e vislumbrado na medida de sua radicalidade. Neste sentido, não há como dissociar a teoria da prática. Gerar conhecimento para socializá-lo, divulgando as idéias do espectro da sociedade é a única maneira de fortalecê-los, de maneira que, quando forem institucionalizadas, vinguem. Não estamos interessados em soluções imediatas e paliativas: a enorme ambição do Movimento é disputar o pensamento hegemônico de que a cultura é costume, portanto é mercadoria. Cultura aqui é construção do sonho coletivo de uma comunidade. Se não nos aparelharmos teoricamente, como venceremos um corpo de idéias dominantes que há 500 anos nos colonizam? (Idem, p.28). Paralelamente aos encontros, à escritura, leitura e divulgação dos manifestos, havia em curso um processo de pesquisa de diferentes projetos de fomento à atividade teatral, fora dos alvos do teatro comercial e mercantil, também, de modo mais genérico conhecido pelo nome de teatro experimental, mantida pelo Estado, em andamento pelo mundo. Desse modo, se desde sempre existiu grupo de teatro, e eles foram fundamentais a partir da década de 1970 no Brasil, tanto em razão de ser quase mito a existência de empresários quanto por ser uma estratégia de luta contra a ditadura civil-militar, a partir da década de 1990, grupos e sujeitos mais politizados tiveram clareza da necessidade da luta e do espaço político que tais coletivos poderiam significar. No programa do espetáculo Foi bom, meu bem (1980-81), montado pelo Grupo Mambembe, Luís Alberto de Abreu, então participante daquele coletivo, assim se manifesta no programa do espetáculo, cujo título é “Porque somos um grupo”. [...] porque gostamos. Todos nós aprendemos a fazer Teatro em grupo. Mesmo os que entre nós freqüentaram uma escola de Teatro começaram a aprender Teatro em grupo. E para nós é a melhor alternativa profissional e pessoal. Nada mais do que isso. Nós do Mambembe também temos consciência que Teatro importante não é só Teatro de grupo. Respeitamos, e muito, todas as formas honestas de se fazer Teatro. Desde o Teatro empresarial até o Teatro amador. [...] Aliás, todos nós somos um pouco magnatas da emoção (ABREU apud MATE, 2008, p. 142). Em 1980, Abreu já usa a expressão teatro de grupo, exatamente como aparece mais adiante no tempo; o que muda, segundo Mariangela Alves de Lima – em entrevista a mim concedida (2008) –, deve-se ao fato de o conceito teatro de grupo lastrear-se nos anos 1990. Afinal, foi a partir da mobilização do projeto Arte Contra a Barbárie que sujeitos e grupos se articulam com consciência em processo de discussão e partilha, ampliando a consciência de setor político e social. Essa consciência práxica é tão estrategicamente construída que, em 2001, fruto de muito trabalho e discussão, constrói-se um programa de fomento que ao ser apresentado pelo então vereador Vicente Cândido (PT), acaba por meio de acordo entre os líderes e é aprovado em assembleia. Aprovado, então, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, sob a Lei 13.279/2002, a cidade de São Paulo passa, a partir daquela data, a contar com um programa na área de teatro, que passará a repassar verbas ao sujeito histórico teatro de grupo, cujo escopo, na condição de objetivo principal, assim aparece no primeiro artigo da Lei: “Apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo”2. A partir da primeira edição do Programa de Fomento – cujos 178 projetos foram analisados por Antonio Januzelli, Gianni Ratto, Lélia Abramo (substituída por Luiz Fernando Ramos), indicados pela Secretaria de Cultura; Alexandre Mate, Clovis Garcia e Fernando Peixoto, foram eleitos por seus pares, e a presidência de Sebastião Milaré –, foram selecionados 23 projetos, tomando o espírito da Lei como caminho e critério3. Decorridos 10 anos e até o primeiro semestre de 2013, já passaram pelos processos de análise e foram selecionados 342 projetos (entre os 2.090 já inscritos). Atualmente, o teatro invadiu toda a cidade de São Paulo, em seus 1.525 km² de área. Nas cinco zonas da cidade, há grupos de teatro contemplados pelo Programa Municipal de Fomento, apresentando seus trabalhos; ministrando cursos e oficinas; promovendo mostras e encontros para a reflexão do teatro, articulado ao contexto e imbricado com outras linguagens; publicando livros, jornais, revistas e fanzines; documentando suas histórias e produções; sendo responsável pela criação de novos grupos, intervindo junto e com as populações nos espaços de ação ou http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/fomentos/teatro/. Acesso em outubro de 2010. 2 3 Clovis Garcia, Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Lélia Abramo e Sebastião Milaré: mestres-artistas, de conduta absolutamente escorreitas, e cuja saudade é infinda. 27 ocupação. Em levantamento desenvolvido em 2012, consegui chegar aos nomes dos grupos apresentados abaixo, em atividades pela cidade e inseridos na proposição teatro de grupo. Entre parênteses aparece o ano da primeira formação do grupo e F. corresponde aos grupos já fomentados. II Trupe de Choque (2000, F.); 3 de Sangue Cia. de Teatro (1994); [PH2]: estado de teatro (2010); A Brava Cia. (1998, F.); Ágora Teatro (1998, F.); A Jaca Est (1979); Algazarra Teatral (2002); Arlequins (década de 1986); Arte Ciência no Palco (1998, F.); As Meninas do Conto (1995, Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 F.); Autojabô’s Cia. das Belas Artes (1998); Buraco d‘Oráculo (1998, F.); Cemitério de Automóveis (em 1987, F.); Cia. Bonecos Urbanos (1994); Cia. A Cidade Muda (1983); Cia. Anjos Pornográficos (1999); Cia. Antro Exposto (2008); Cia. Arte Degenerada (1996); Cia. Antropofágica (2002, F); Cia. Teatral Arnesto Nos Convidou (1999); Cia. Artehúmus (1987, F.); Cia. Arte Tangível (2003); Cia. Articularte – Teatro de Bonecos (1999); Cia. Arthur-Arnaldo (1996); Cia. Ator Careca (2003); Cia. Auto-Retrato (2000); Cia. Bendita Trupe (2000); Cia. Casca de Arroz (1994); Cia. Cênica Nau de Ícaros (1992, F.); Cia. Circo de Trapo (2002); Cia. Circo do Silêncio (2007); Cia. Circo Navegador (1997, F.); Cia. Contraponto (2011); Cia. da Revista (1995, F.); Cia. de Teatro Abacirco (1996); Cia. Teatro Balagan (1997, F.); Cia. de Teatro em Quadrinhos (1990); Cia. de Teatro Encena (1997); Cia. de Teatro Heliópolis (1999); Cia. Teatro da Travessia (1999); Cia. Triptal (2004); Cia. do Feijão (1998, F.); Companhia do Latão (1997, F.); Cia. do Miolo (2000, F.); Cia. do Outro Eu Teatro (2006); Cia. do Quintal (2001); Cia. dos Inquietos (2009); Cia. dos Insigths (1992); Cia. dos Insurgentes (2008); Cia. d’Os Inventivos (2005, F.); Cia. dos Outros (2008); Cia. do Tijolo (2008, F.); Cia. Duas de Criação (2005); Cia. Elevador de Teatro Panorâmico (2000, F.); Cia. Empório de Teatro Sortido (2010); Cia. Estável de Teatro (2000, F.); Cia. Estudo de Cena (2005, F.); Cia. Filhos de Olorum – Os Crespos (2005); Cia. Filhos do Dr. Alfredo (2001); Cia. Hiato (2007, F.); Cia. Humbalada de Teatro (2003, F.); Cia. La Mínima (1995); Cia. Le Plat du Jour (1991); Cia. Letras em Cena (1996); Cia. Linhas Aéreas (1998); Cia. Livre (1999, F.); Cia. Lúdica (2003); Cia. Lúdicos de Teatro Popular (2000); Cia. Luis Louis (2003); Cia. Mamba de Artes (2009); Cia. Mungunzá de Teatro (2006); Cia. Nova de Teatro (2001); Cia. Ocamorana de Teatro (1986, F.); Cia. Os Itinerantes (2001); Cia. Os Satyros (1989, F.); Cia. Paidéia de Teatro (1997, F.); Cia. Patética (2000); Cia. Pessoal do Faroeste (1998, F.); Cia. Pic & Nic (1992); Cia. Pic & Nic Núcleo 2 (1999); Cia. Provisório-Definitivo (2001); Cia. Raso da Catarina (1997); Cia. Razões Inversas (1991); Cia. São Jorge de Variedades (1998, F.); Cia. Satélite (1996); Cia. Teatral As Graças (1995, F.); Cia. Tablado de Arruar (2001, F.); Cia. Teatral Olhos de Dentro (2004); Cia. Teatro da Gioconda (1999); Cia. Teatro Documentário (2006, F.); Cia. Teatro do Incêndio (2000, F.); Coletivo Teatro Dodecafônico (2007); Cia. Troada (1999); Cia. Truks (1990, F.); Clã Estúdio das Artes Cênicas (2001, F.); Capulanas Cia. de Arte Negra (2007); Casa Laboratório para as Artes do Teatro (2004, F.); Circo Grafitti (1989); Circo Mínimo (1988, F.); Circo Teatro Musical Furunfunfum (1992); Círculo dos Canastrões (em 1994); Club Noir (2006, F.); Coletivo Alma – Aliança Libertária Meio Ambiente (2003); Coletivo Bruto (2007); Coletivo Mapa Xilográfico (2006); Coletivo Negro (2011, F.); Coletivo Território B (2012); Coletivo Phoenix (em 1998, F.); Como Lá em Casa (2005); Confraria da Paixão (2001, F.); Digna Companhia de Teatro e Dança (2010); Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes (2000, F.); Engenho Teatral (1979, F.); Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes (1993, F.); Grupo 59 (2010); Grupo Arte Simples de Teatro (2006, F.); Grupo Bolinho (2008, F.); Grupo Caixa de Imagens (1994, F.); Grupo Caldeirão (1988); Grupo Cenas In Canto (1992); Grupo Chão de Teatro (2000); Grupo Folias d’Arte (1995, F.); Grupo dos Sete (2001, F.); Grupo Ivo 60 (2000, F.); Grupo Luz e Ribalta (1982); Grupo Mamulengo da Folia (2004); Grupo Más Caras (2010); Grupo Morpheus de Teatro (2002); Grupo Namakaca (2005); Grupo Pasárgada (1971); Grupo Pombas Urbanas (1989, F.); Grupo Pandora de Teatro (2004); Grupo Redimunho de Investigação Teatral (2003, F.), Grupo Sobrevento (1986, F.); Grupo Tapa de Teatro Amador Produções Artísticas (1986, F.); Grupo Teatral Bico de Lata (2008); Grupo Teatral Parlendas (2007, F.); Grupo Teatro do Óbvio (2005); Grupo XIX de Teatro (2000, F.); Ile Iya Tunde de Teatro (1983); Kiwi Companhia de Teatro (1996, F.); Kompanhia Teatro Multimídia de São Paulo (1989); Les Commediens Tropicales (2005, F.); Lux In Tenebris (1975); Núcleo de Pesquisa Teatral (2009); Núcleo Pessoal do Victor (em 1984); MiniCia Teatro (2004); Mundana Companhia (2007); Núcleo ESTEP - Estética de Teatro Popular (1985); Núcleo Argonautas de Teatro (1999, F.); Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (2000, F.); Núcleo Caixa Preta (1999); Núcleo Cênico Arion (1995, F.); Núcleo Cênico Projeto BaZar (2001); Núcleo Hana (2008); Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo (1999, F.); Núcleo Teatral Filhos da Dita (2005); Núcleo Vendaval (2001); O Casulo – BonecObjeto (1977); O Pequeno Teatro de Torneado (2006); OPovoemPé (2004, F.); Os Fofos Encenam (1992, F.); Parlapatões, Patifes e Paspalhões (1991, F.); Pia Fraus Teatro (1992, F.); Phila 7 (2005, 29 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 F.); Teatro de La Plaza (década de 1980, F.); Teatro do Ornitorrinco (1977); Teatro Móvel de São Paulo (1970); Teatro da Vertigem (1991, F.); Teatro de Narradores (1998, F.); Teatro dos Benditos Malditos (1991); Teatro Kaus Cia. Experimental (1998, F.); Teatro Kunyn (2010); Teatro Macunaíma (1977); Teatro Popular União e Olho Vivo (1966, F.); Teatro Promíscuo (1993); Casa da Tia Siré (2008); Trupe Arruacirco (2006); Trupe Artemanha de Investigação Urbana (1996, F.); Trupe Sinhá Zózima (2007, F.); Uzyna Uzona (1959, F.); Velha Cia. (2003); Teatro Ventoforte (1980, F.); XPTO (1984, F.). Dos cento e oitenta grupos elencados, se as fontes de informação estiverem corretas, mais de um terço (67) já teve projetos selecionados pelo Programa Municipal de Fomento. Em quase todas as atas de apresentação dos selecionados, as comissões apontaram a necessidade de ampliar o montante econômico direcionado aos grupos, tendo em vista a excelência e pertinência dos projetos. Atualmente, a atividade teatral atravessa a vida e a experiência de enorme contingente de moradores e visitantes da cidade. Em dados de pesquisa, tem-se acesso à informação segundo a qual aproximadamente 2.3 espetáculos de teatro estreiam na cidade de São Paulo por dia. Impossível assistir a todos eles, mesmo se se dispusesse de tempo integral para isso. No número apresentado acima, não se tem acesso a muitos espetáculos apresentados em lugares mais distantes ou em divulgação. Na quase totalidade dos espetáculos em cartaz, e à exceção de poucos deles que já vieram com planta baixa e critérios de montagem prontos, a cidade de São Paulo e sua gente têm servido de assunto, em perspectiva épica, premida por intensa e visceral teatralidade: ocupação de espaços, gente à margem do sistema, mulheres, negros, explorados, ditadura, tragédias da Antiguidade, religião e fanatismo, questão aborígene, outras e novas versões sobre a história do País, as histórias pessoais imbricadas a outras e tantas histórias... tudo tem se transformado em assunto, em estratégia, em devaneio, em diversão ou entretenimento. Usando uma expressão que, sobretudo nossas professoras dos primeiros quatro anos do processo de escolarização formal diziam, temos, na cidade de São Paulo, feito nossa lição de casa. “Cansados até os dentes”, é verdade, mas participando das atividades de teatro, das lutas sociais e as da polis. Repetindo expressão de minha primeira mestra Iná Camargo Costa (e a quem este texto é dedicado): tentou-se aqui não incorrer no “deixa que eu deixo!”. Referências bibliográficas COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (orgs.). Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Cooperativa Paulista de Cooperativa, 2012. LIMA, Mariangela Alves de. “A crítica teatral“, in: Revista Camarim. São Paulo, ano VIII, no 34, jan./fev./mar. 2005. MATE, Alexandre. A produção teatral paulistana dos anos 1980 – r(ab) iscando com faca o chão da história: tempo de contar os (pré)juízos em percursos de andança. Tese (de doutorado) apresentada ao Departamento de História Social – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2008. ________. O teatro adulto na cidade de São Paulo na década de 1980. São Paulo: Editora Unesp, 2011. ________. 1980: Uma década de lutas nas ruas e na cena teatral da cidade de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2014. Sítio sobre o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/fomentos/teatro/ 31 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 BLOCO I: O evento de 2013 Impressões e expressões: as práxis de 13 de novembro Para contar as nossas histórias... Do nosso jeito, por Luiz Eduardo Frin4 Resumo: Este artigo destaca e analisa pontos de concordância entre as reflexões apresentadas pelos participantes da mesa intitulada “Na horizontalização das relações o fundamento potencializador dos procedimentos colaborativos para a criação da cena e do espetáculo”, da V Semana de estudos teatrais do Instituto de Artes da UNESP. Pontos que ressaltam a relação entre a escolha da hierarquização horizontal por grupos teatrais com a utilização de expedientes épicos em cena e com a busca por meios de se viabilizar produções teatrais compostas, conteúdo e formalmente, por ditames que não se adequam aos do mercado empresarial. Palavras-chave: teatro de grupo, hierarquia horizontal, a narrativa, produção teatral. Abstract: This article highlights and analyzes points of agreement among the ideas presented by the panelists on the round table titled Horizontal relations as the potentiating element of collaborative procedures for setting the scene and the spectacle of the Fifth Week of theatre studies of the Art Institute of UNESP. Points that highlight the relationship between the choice of horizontal hierarchy by theatre groups with the use of epic arrangements on the scene and the search for ways to enable theatre productions arranged, thematically and formally, by dictates that do not conform to those of the corporate market. Keywords: group theatre, horizontal hierarchy, the narrative, theatrical production. Condizente com o seu caráter de metrópole mundial, a cidade de São Paulo tem uma cena teatral pungente e multifacetada. Dentre essas múltiplas facetas, ganha cada vez mais relevância a que é formada por obras produzidas por grupos de teatro que trabalham de maneira colaborativa na qual seus integrantes se estruturam em hierarquia horizontal. Como parte da programação da V Semana de Estudos Teatrais do Instituto de Artes da UNESP, reuniram-se, para discutir o tema da horizontalização das relações nos processos artísticos teatrais, em mesa de debates denominada “Na Horizontalização das Relações o Fundamento Ator formado pelo Indac – Escola de Atores, onde é professor. Cantor formado pela Escola Municipal de Música de São Paulo. Mestre e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da UNESP. Atua como ator e diretor de espetáculos teatrais, musicais e operísticos. 4 33 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Potencializador dos Procedimentos Colaborativos para a Criação da Cena e do Espetáculo”, representantes de grupos de teatro que de diferentes maneiras relacionaram-se com o tema em suas recentes produções. A mesa foi realizada no Teatro Reynuncio Lima, que é situado no campus da UNESP da capital, localizado no bairro da Barra Funda. Integraram a mesa os artistas: Adailton Alves do grupo Buraco d’Oráculo; Fernanda Azevedo da Kiwi Companhia de Teatro; Kiko Marques da Velha Companhia, Lucia Romano da Companhia Livre e Mundana Companhia; Luciano Carvalho da Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes e Rodrigo Mercadante da Companhia do Tijolo. O encontro contou, em sua abertura, com as palavras do diretor e professor do Instituto de Artes Mario Fernando Bolognesi e mediação realizada por Eduardo Frin. Durante toda a manhã os artistas relataram experiências que consideraram significativas para a apreensão do tema e, a despeito de cada participante ter vivenciado a questão a partir das diferentes singularidades dos grupos aos quais estão inseridos, reflexões concordantes emanaram das falas dos participantes do encontro. Ressalta-se, a seguir, aquelas consideradas mais significativas. O épico e a criação coletiva Uma dessas concordâncias diz respeito aos temas escolhidos para serem levados à cena. Escolha que deve refletir anseios comuns dos participantes dos coletivos teatrais. Pela fala dos debatedores pode-se perceber que a cena tornou-se o lugar “de se contar as histórias que eu gostaria de contar”; mas, para que possam ser, efetivamente, levadas à cena, essas histórias do “eu” particular, devem ser convertidas em histórias do sujeito coletivo, do grupo teatral. Assim, a primeira etapa do processo de produção de espetáculos é a de se encontrar esse anseio comum, que pode se dar de diferentes formas que se interseccionam. Pode haver temas latentes à realidade na qual o grupo está inserido, da mesma maneira que podem ocorrer processos de debates e convencimentos entre os participantes. Mas, o que ficou claro é que estar convencido sobre a relevância de um tema, ao ponto de considerá-lo como próprio, como “história que eu gostaria de contar”, é fator preponderante na faceta da produção teatral em questão, para que um artista coloque sua arte à disposição. Pensa-se, aqui, que a importância dada ao contar histórias representativas de um anseio compartilhado é elemento central do fato do épico, do elemento narrativo, encontrar-se significantemente imbricado na forma dos espetáculos produzidos pelos sujeitos coletivos representados no encontro. Como os espetáculos Concerto de ispinho e fulô da Cia. do Tijolo, a partir da obra de Patativa do Assaré; Cais – ou da indiferença das embarcações da Velha Companhia, a partir da recriação de histórias da que o autor Kiko Marques coletou na Ilha Grande, ilha do litoral de Angra dos Reis; Vem-vai – O caminho dos mortos texto de Newton Moreno, em processo colaborativo com a equipe da Cia. Livre, a partir de adaptações e recriações de cantos e narrativas de povos ameríndios; Ser tão ser: A narrativa de outra margem do Buraco d’Oráculo, constituído a partir de relatos de moradores do extremo leste da cidade de São Paulo, entre tantos outros. Inicialmente, dois célebres textos correlatos serão utilizados aqui para se refletir sobre essa característica: o de Walter Benjamim, “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov” (1994) e o texto “A restauração da narrativa” de Luís Alberto de Abreu (2000). Nos textos, os autores apresentam a narração de histórias como uma importante atividade de troca de experiências a partir do convívio social. Para ambos, essa partilha de informações é fundamental para que o ser rompa os limites de suas idiossincrasias e inverta um processo de definhamento do humano, resultado da apreciação exclusiva de componentes individuais. Para os autores, a substituição de uma concepção coletiva do ser por uma concepção individual verificada desde o Renascimento levou à perda da capacidade de contar histórias e à diminuição da troca de experiências entre os indivíduos. Sem troca de experiências individuais há diminuição do imaginário coletivo e, consequentemente, empobrecimento da concepção do humano. Segue-se a reflexão a partir dos apontamentos de Jean-François Lyotard em A condição pós-moderna (2009) e o seu conceito de “saber narrativo”. Para o autor, o remetente de uma narração adquire esse direito por já ter ocupado o posto de destinatário e, por ser integrante de uma comunidade, também o posto de objeto de um relato, ou seja, ser “[...] colocado em posição de referente diegético de outras ocorrências”. Nessa perspectiva, o saber narrativo abrange “[...] o que é preciso dizer para ser entendido, o que é preciso escutar para poder falar e o que é preciso representar (sobre a cena da realidade diegética) para poder se constituir no objeto de um relato” (LYOTARD, 2009: 39). 35 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Dessa maneira, na perspectiva de que o que se busca nos coletivos teatrais representados no encontro é o contar as próprias histórias, o saber narrativo – que inclui o saber dizer, saber ouvir e o saber fazer –, constitui um triângulo fundamental de habilidades requeridas para a convivência e participação ativa em grupos como os tais, do mesmo modo que influencia a forma dos trabalhos apresentados. Influencia devido ao fato de que há um grande percurso entre o objetivo de se contar uma história e a sua realização cênica. Nesse trajeto, que via de regra nos coletivos teatrais inclui procedimentos de pesquisa, de debates, de exposições de ideias, é produzido material tão rico e complexo que a redução desse material para ditames dramáticos (compressão das narrativas em falas de personagens que visam representar, por verossimilhança, indivíduos que agem segundo objetivos específicos), representaria uma perda irreparável. Dessa maneira, muito das pesquisas dos grupos representados no encontro ocorrem no sentido de encontrar formas que deem conta de teatralizar as histórias de modo que elas não deixem de ser histórias, que elas não percam seu caráter plural, justamente por dizerem respeito à coletividade. Livre associação Outro ponto que perpassou a fala dos participantes do encontro foi a de que a horizontalização das funções na criação coletiva foi a maneira de constituição encontrada para a produção artística em um contexto de livre associação de indivíduos para o trabalho. Em um contexto de dificuldades de se obter recursos para a produção teatral que não necessariamente concorda com os ditames do mercado - que tem na Lei Rouanet5 um importante instrumento para financiar as obras que lhes são convenientes mediante a contrapartida da renúncia fiscal –, outras formas de organização se fizeram necessárias, formas que não reproduzissem o modelo: patrão (quem paga e manda) e empregado (quem recebe e acata). É evidente que, como foi apresentado no encontro, houve e haverá zonas de tensões e conflitos e muitas vezes o jogo de interesses pode 5 Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991). Possibilita às pessoas jurídicas e físicas aplicarem uma parte do Imposto de Renda devido em projetos culturais. Os incentivadores que apoiarem um projeto, aprovado pelo Ministério da Cultura, poderão ter o total ou parte do valor desembolsado deduzido do imposto devido, dentro dos percentuais permitidos pela legislação tributária (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012; internet). transformar a horizontalização em apenas um ideal; mas a constituição de uma estrutura onde os integrantes se relacionam em um mesmo nível hierárquico, mesmo que exista a divisão de funções de acordo com os talentos individuais, foi apontada como a mais pertinente maneira de organização em um ambiente hostil à produção teatral que não corrobora com interesses empresariais. Em Cultura (2011), Raymond Williams apresenta alguns elementos para uma contextualização histórica dessa busca de diferentes maneiras de organização para a realização artística ao apontar a importância das associações independentes, como é o caso dos grupos teatrais nos processos de negociação das condições para a realização de suas obras. Parece ter havido acentuado aumento de todo tido de formação cultural independente a partir de meados do século XIX [...]. [...] Devemos registrar, em primeiro lugar, uma generalização e desenvolvimento crescentes da ideia de que a prática e os valores da arte são desprezados pelos valores dominantes da sociedade “moderna”, ou devem ser distinguidos deles, ou são superiores ou hostis a eles. [...] Problemas recorrentes da imposição ou privilegiamento de certos estilos e tendências, de vantagens tanto gerais quanto comerciais, podem em alguns casos ser individualmente negociados (comumente sem êxito). Porém, eles eram muito mais prontamente negociáveis mediante a associação, que já era uma tendência básica generalizada na maior parte das demais atividades sociais (WILLIAMS, 2011, p. 7174). A formação e a ação continuada de grupos teatrais na cidade de São Paulo e adjacências que se organizam e se associam (dialeticamente, sim, com conflitos e uma série de discordâncias), suas lutas e conquistas, como a instituição do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo no ano de 2002, conquistado por um movimento que incluiu coletivos artísticos e indivíduos6, refletem-se na prática da luta cotidiana de se produzir conteúdo artístico fora dos ditames que são convenientes ao mercado, e muito concernem aos enunciados teóricos de Williams. 6 Para mais informações acerca do movimento e alguns de seus desdobramentos cf. Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008 e Flávio Desgranges e Maysa Lepique (orgs.). Teatro e vida pública: o Fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Cooperativa Paulista de Teatro, 2012. 37 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Conclusão Ressaltou-se aqui alguns questões confluentes no discurso dos expositores da mesa “Na horizontalização das relações o fundamento potencializador dos procedimentos colaborativos para a criação da cena e do espetáculo”. Inferiu-se uma relação entre a busca de levar à cena histórias compartilhadas pelos integrantes dos coletivos teatrais com o caráter épico de muitos dos espetáculos produzidos por esses grupos, da mesma maneira que se apontou que a estruturação horizontal, mesmo com divisão clara de funções (mas sem uma hierarquização proveniente delas), tornou-se, praticamente, condição preponderante para a associação livre de artistas. Referências bibliográficas ABREU, Luís Alberto de. “A restauração da narrativa”, in: O percevejo. Rio de Janeiro: UNIRIO, ano 8, n. 9, p. 115-125, 2000. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política, 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (orgs.). Teatro e vida pública: o Fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Cooperativa Paulista de Teatro, 2012. FRIN, Luiz Eduardo. O Projeto Machadianas: Machado de Assis, o Ágora Teatro e a narrativa em cena. Dissertação (de mestrado em Artes) apresentada no Instituto de Artes, UNESP, São Paulo, 2012. COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna, 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. Encontro de divindades, por Kiko Marques7 Resumo: Investigo aqui os conceitos de horizontalidade e colaboração mútua nos processos de trabalho criativo através do exemplo prático de experiências pessoais e do trabalho com a companhia de que faço parte. Palavras-chave: sentido comunitário, autonomia, não-hierarquização, transgressão. Abstract: I investigate here the concepts of horizontality and mutual collaboration in the processes of creative work through the practical example of personal experiences and work with the company I belong. Keywords: sense of community, autonomy, non-hierarchical, transgression. 39 Foto de Maringas Maciel. Rose de Oliveira e Walter Portela em Cais ou Da indiferença das embarcações. 7 Kiko Marques é ator, dramaturgo, diretor e professor. Como ator participou de inúmeras peças no teatro, e também no cinema televisão e rádio. Sua produção dramatúrgica conta com oito textos, quatro deles encenados pelo grupo Velha Companhia. Há 14 anos ministra aulas de expressão vocal no curso profissionalizante para atores do colégio INDAC (São Paulo). Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Acho bom falar sobre a horizontalidade nas relações de grupo e sobre o processo colaborativo da criação. São temas que nos interessam profundamente, bem como – creio eu – a todos os grupos e companhias envolvidos com a investigação dos processos da criação teatral. Em nossa companhia, giramos em torno dessas questões sem conseguir, até agora, encontrar uma resposta satisfatória. A não ser enquanto exemplo de práticas específicas, ligadas a realidades e momentos particulares. Poderíamos falar de um ou mais métodos de abordagem e manufatura que desenvolvemos ao longo de nossa prática e que foram se estabelecendo como portos mais ou menos seguros, mas que deixavam de sê-lo no momento em que tentávamos transformá-los em conceito. A arte é por demais arisca e nos coloca constantemente frente a frente com o velho dilema: ou nos adaptamos a ela ou a adaptamos a nós. E uma das poucas certezas que nosso grupo se impõe é a de que se a arte coloca em cheque nossas certezas, pior para as certezas. Por isso, ao invés de conceitos, prefiro falar de fundamentos. Poderíamos dizer que a horizontalidade das relações e a colaboração nos processos são pontos fundamentais em nosso trabalho. Sempre foram e assim continuam. Mas estaria mentindo se dissesse que adotamos esse procedimento em todo o processo e sem ressalvas, como um método. Estaria negando uma parcela muito grande e determinante da nossa criação, que se fundamenta justamente na individualidade e na autonomia do criador. Pensando um pouco sobre o pequeno paradoxo de uma arte ao mesmo tempo comunitária e individualizada, reporto-me a três narrativas pessoais. Ao final delas, faço um apanhado de alguns dos pontos sobre os quais se fundamenta nossa companhia. A primeira narrativa nos leva à minha infância. Fui uma espécie de Quixote mirim. Tinha mais ou menos nove anos quando li meu primeiro romance. Chamava-se “O Gênio do Crime”. Era um livro policial para crianças e contava a história de meninos que colecionavam um determinado álbum de figurinhas de futebol. Esse álbum distribuía prêmios a quem o completasse. O protagonista da obra, um gordinho chamado, acho, Bolachão (importante e anti-heroico detalhe) consegue completá-lo, mas descobre, ao ir buscar seu prêmio, que as figurinhas raras foram clonadas e vendidas por cambistas de uma quadrilha genial. Bolachão e seus amigos passam então a investigar a tal quadrilha. Aquilo me fascinou. Não esperei o dia seguinte. Fui à rua procurar meus amigos de toda hora e, quando os encontrei, pus-me a expor, com paixão, minha ideia. Momentos depois estava fundada a “TS”, abreviatura de “Turma Secreta”, uma turma de detetives mirins comandados por mim, prontos a desvendar todos os mistérios que aconteciam na rua. Entre eles, em especial, o da casa abandonada, nossa principal obsessão que tinha por grande mistério o fato único de não estar habitada. Pois bem, fundada a “TS”, damos um pulo no tempo. Estamos agora naquela que seria sua derradeira reunião. Meus amigos estão diante de mim e formalmente me comunicam a dissolução da turma. Atônito, pergunto o porquê. A voz já me tremia de raiva e despeito. Eles então me mostram o carimbo da turma onde se lê: “TS - Turma Secreta” (também riquíssimo detalhe de um carimbo a burocratizar e divulgar a secreta turma) e, abaixo do nome da turma, o meu nome, completo, sem abreviaturas. Mostram-me em seguida a ata da última reunião onde só constam as minhas opiniões. Ata feita por mim. Mostram-me o distintivo que bolei sem sequer perguntar a opinião de ninguém. Em resumo, acusam-me de ser um perfeito ditador mirim, um déspota imberbe. Sem mais, entregam os distintivos e partem. Anos depois iria pensar a respeito. Naquele momento jurei vingança. Nossa segunda narrativa se dá cerca de quatro anos depois. Estava com treze e era uma criança difícil, brigava muito. Gostava da fama de bravo e transgressor. Olhando para os cachorros, noto que alguns são realmente bravos, mordedores por natureza. Outros, porém, o fazem por medo e vontade de pertencer à matilha. Eu era um desses. Estávamos no pátio do colégio na hora do recreio de um dia comum, quando descobri que haveria uma apresentação, para pais e alunos, de uma coisa chamada teatro. Um evento especial que, devido à escassez de lugares, apenas convidados também especiais poderiam assistir. Como cachorro que era, e para manter aceso o falso poder do meu latido, fui à secretaria. Num momento de descuido do coordenador, roubei um dos convites. Desci ao recreio exibindo o bilhete e esbravejando – para quem quisesse, ou não, ouvir – que, se vontade me desse, assistiria “àquela merda” (a fidelidade à lembrança exige a transcrição do palavrão). O efeito foi o pretendido e prorroguei por certo tempo minha fama de maluco (cachorros de latido ensaiado adoram ser chamados assim). Findo o dia, finda a aula, meus admiradores se vão e ficamos sós, meu bilhete e eu. De estalo e sem motivo aparente resolvo assistir. Não sei porquê, nem sei que “eu”, mas resolvo. Subo as escadas (o auditório era no 41 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 último andar) e me sento na plateia. A luz apaga. Estou só. Absolutamente só. Toca o terceiro sinal, a peça começa e minha vida, que levara treze anos a caminhar numa direção, leva somente uma hora e quarenta minutos para tomar outro rumo. Jamais senti algo parecido. No ônibus, de volta pra casa, uma coisa não me saía da cabeça: aquelas pessoas tinham se juntado pra me contar uma história. Linda e profunda. Haviam se reunido só para isso. Com algumas delas eu havia brigado, batido, mordido, e elas nem sequer se lembravam disso enquanto contavam-me a história. A história era maior do que todos. Que eu, inclusive. E era preciso estarmos juntos pra que ela existisse. A partir desse dia, como um Walt Whitman, estaria para sempre apaixonado pela fraternidade. Nosso terceiro relato começa na turnê do espetáculo “A Alma Boa de Setsuam”, em que atuo junto a dez outros atores. Tenho, agora, exatos vinte anos de profissão. Vamos nos apresentar no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Já havia passado por lá alguns anos antes com outra turnê e tinha levado pra casa, sem entender bem o porquê, a impressão de se tratar do melhor teatro onde eu já atuara. Antes de chegar à cidade, relembro a visita anterior: o teatro, as pessoas e, súbito, vem à mente a administradora do São Pedro, apresentada a mim como uma figura pitoresca, Dona Eva Sofher. Chegamos à cidade e, como sempre faço, vou ao teatro para me familiarizar com o espaço. Minha grande amiga e colega de profissão vem comigo e diz que seremos recebidos por dona Eva, que irá nos apresentar o Theatro. Prevejo a grande tarde que passarei. De fato, somos recebidos por uma dona Eva muito velhinha, mas dona de uma vitalidade invejável. Ela, ao mesmo tempo em que nos mostra todos os recantos da construção de meados do século XIX, conta como se tornou administradora. O teatro estava para ser demolido quando ela chegou de seu país acompanhando o marido que viera a trabalho. Como atuara na área da cultura, aqui chegando, procurou a Secretaria de Cultura em busca de trabalho. Descobriu, então, que o secular Theatro São Pedro estava para ser demolido, mesmo fim de uma construção vizinha, também secular, que hoje não passa de um suntuoso e negro edifício comercial. Dona Eva contou que, nesse momento, teve sua certeza (como a minha aos treze anos): iria se dedicar integralmente à reconstrução daquele teatro. E assim o fez. Lutou para aprovar junto a empresas e governos as obras da reforma; abriu licitações (uma delas junto às empresas de confecção para que refizessem o tecido original das poltronas a partir de um pedaço do pano encontrado nos escombros); conseguiu equipamentos modernos de som e luz etc. Reconstruiu o teatro com um conceito de preservação de sua história e modernização de seus equipamentos. E o fez – disse – para nós atores, para os espectadores, para si mesma e para os fantasmas. “Theatros como este têm seus fantasmas. Não se deve expulsá-los. Eu sei que, quando morrer, também serei um fantasma deste teatro”. Já me sentia ao lado de um imortal, um deus ou um poeta. Saímos e ela nos mostrou tudo o que estão construindo: uma concha acústica, várias salas de ensaio, teatros. Um verdadeiro complexo artístico acoplado ao São Pedro. Estupefato, e lembrando de uma frase do autor que íamos representar na cidade, perguntei-lhe: quem paga isso? Ela respondeu: “Todos. Peço a todos. Pedi esses terrenos. Eram terrenos sem uso. Pedi tanto que acabaram dando. Fui à Coca-Cola e consegui que patrocinassem uma sala. Dei o nome de Sala Coca-Cola. Fui à Pepsi e disse: a Coca-Cola está com uma sala com o nome dela. Vocês não vão fazer uma com o nome de vocês?”. Sorri, enquanto ela me apontava a Sala Pepsi. “E o governo?”, perguntei. Veio a resposta que faz com que este relato se encontre aqui neste momento: “Nesses mais de trinta anos, eu lutei contra absolutamente todos os governos por esse teatro.”. Tal conversa me remeteu a divulgadíssimo pensamento de Bertolt Brecht, segundo o qual: Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida estes são imprescindíveis8. Não contei essas histórias para entretê-los. Elas marcaram não só meu caráter, mas minha postura ética em relação à vida, à criação artística e, consequentemente, à minha companhia. Cada um de meus parceiros, com suas histórias e trajetórias pessoais, influencia também de forma decisiva a estrutura que vamos criando. Tive inúmeras experiências com companhias e grupos. Ajudei a fundar e vi muitos deles se dissolvendo. De cada um guardo uma suposição sobre as causas de seu fracasso. É provável até que veja parcialmente as coisas, mas sempre me pareceu que ora havia imposições por demais, ora uma necessidade infantil de um tipo de liberdade que se confundia com falta de ação, além da falta de talento ou vocação em alguns casos. 8 (http://www.escritas.org/pt/poema/1496/ha-homens-que-lutam-um-dia-e-sao-bons consulta em 07/12/2014). 43 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 A Velha Companhia, hoje, estrutura-se sobre alguns princípios: • Liberdade de ação – Não conseguimos criar, até hoje, uma forma de subsistência da companhia que dê conta de seus gastos e dos de seus integrantes. A sazonalidade da entrada de recursos – fruto de políticas culturais que, salvo poucas exceções, não valorizam a continuidade do trabalho, e fruto também de nosso compromisso com as necessidades da obra artística em detrimento de sua viabilidade comercial (nossa peça atual é feita para 40 espectadores e somos 14, apenas no palco) – faz com que necessitemos de uma outra ordem de ganhos. Em vista disso, temos uma compreensão para com os trabalhos extracompanhia que foi se estabelecendo com base em regras não impostas (mas exercidas por todos). Essas regras partem do amor ao que se faz; do cuidado com o outro e com a obra; e do bom senso. Exemplo: um ator pega um comercial para filmar na véspera da estreia. Dificilmente esse ator irá propor que não se ensaie em virtude desse ganho adicional. Ele recusará o comercial e nem nos avisará, pra que a não entrada desse dinheiro, tão bem vindo, não pese sobre nossas consciências. Por outro lado, em outras situações, jamais houve uma palavra de repreensão a qualquer um de nossos atores por ter, por exemplo, ido à televisão fazer o que quer que fosse. • Sedução - O contrário da imposição é a sedução, não a liberdade. O diretor que descobre isso tem em suas mãos o melhor de cada artista. Trabalhamos na ideia de obra comum. Como na peça que vi aos treze anos, cremos no comunitário como força maior da arte teatral. Por isso, não só discutimos muito como verdadeiramente participamos das criações. O processo dramatúrgico que desenvolvo, por exemplo, parte sempre de uma obsessão minha. Mas trata-se apenas de um ponto de partida, que logo é compartilhado por todos. E isto se dá por meio de conversas, pesquisas, improvisações, onde os outros artistas envolvidos entram com as suas histórias e suas próprias obsessões. O que vai comigo para o escritório onde escrevo é um material profundamente híbrido, tanto em relação ao original, quanto à própria realidade em que esteve inserido. E, uma vez concebida, a obra nunca é recebida como puramente individual. É sempre acolhida como um bem comum. Apesar de ser claramente minha. Talvez seja essa a grande força da companhia. • Não hierarquização das funções e ganhos – Quando se fala em horizontalidade na relação de trabalho, em contraponto à verticalização, penso logo na hierarquia capitalista que valora as funções em relação às demandas do mercado. Dentro do grupo, como forma de parceria, minimizamos ao máximo essas diferenças. Ganhamos quase todos o mesmo valor, em função do grau de comprometimento e quantidade de trabalho exercido. Como exemplo, hoje em dia, minha função como dramaturgo não é melhor remunerada que a do operador de luz. E, por fim: • Autonomia - Apesar da participação de todos, exercemos uma autonomia completa sobre nossas funções. Um ator cujo olho não brilha não tem a capacidade de tirar o espectador do lugar de torpor onde vive. E, para que os olhos brilhem, é preciso que ele esteja em contato consigo, com sua criação, com suas escolhas. Uso o ator como exemplo, mas isto se dá em todas as áreas. Podemos e devemos exercer nosso heroísmo. Cremos no poder redentor do herói enquanto dádiva ao crescimento do grupo. Como na iniciativa da Dona Eva. Pra fazer o que fez, teve de subir seus cornos acima da manada, e enxergar o que ninguém via. A partir dessa transgressão, pode fazer o que fez. A transgressão talvez seja o maior atributo do artista e passa pela coragem e pela sinceridade na relação que ele trava com o que há dentro e fora de si. A essa coragem, todos os dias, abrimos uma metafísica garrafa de vinho. 45 Teatro de Grupo – Sujeito coletivo, por Fernanda Azevedo9 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Resumo: O texto desenvolve reflexão sobre a opção pelo teatro de grupo a partir da experiência da Kiwi Companhia de Teatro, grupo sediado na cidade de São Paulo. O artigo destaca a influência de pensadores e realizadores como Erwin Piscator, Bertolt Brecht, Vsevolod Meyherhold, Augusto Boal e Edward Bond. São debatidas questões estéticas e políticas relacionadas ao trabalho da Companhia, em sintonia com indagações mais gerais sobre a criação teatral: como se relacionar com os problemas sociais e com nosso tempo histórico; que formas estéticas são necessárias diante dos conteúdos selecionados; quais são as consequências do trabalho coletivo e horizontal. Palavras-chave: teatro crítico, teatro político, teatro de grupo. Abstract: The text develops reflection on the option by theater group from the experience of Kiwi Theater Company, group based in the city of Sao Paulo. The article highlights the influence of thinkers and directors such as Erwin Piscator, Bertolt Brecht, Vsevolod Meyherhold, Augusto Boal and Edward Bond. Are discussed aesthetic and political issues related to the work of the Company, in line with questions more generally on the theatrical creation: as they relate to the social problems and with our historical time; that aesthetic forms are required before the selected contents; what are the consequences of collective and horizontal work. Keywords: critical theater, political theater, group theater. 9 Atriz e arte educadora graduada em teatro pela Universidade do Rio de Janeiro (Unirio) e Faculdade Paulista de Artes. Integrante da Kiwi Companhia de Teatro, desde 2006. 47 Foto de Bob Sousa. Kiwi Companhia de Teatro. Fernanda Azevedo em Morro como em um país. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 A arte não é um remédio, ela fornece modelos de razão e de tensão que organizam nossa experiência e dão sentido para a vida. A função da arte é levar a realidade sobre o terreno da imaginação, de utilizá-la para interpretar e assim transformar o mundo social objetivo, de onde ela tira o élan de sua transformação […] A imaginação é concreta, lógica, determinada, objetiva. Edward Bond (Auprès de la mer intérieur). Erwin Piscator, no início de seu livro Teatro político (1968), descreve uma situação que irá marcar sua vida e seu teatro daí para frente. Durante a Primeira Guerra Mundial, na primavera de 1915, o então jovem ator se encontrava, como soldado alemão, num campo de guerra. Atacados por uma chuva de granadas do exército inglês, em meio aos cadáveres de ambos os lados, os soldados alemães foram incumbidos por superiores de cavarem trincheiras de proteção. Enquanto seus colegas progrediam, Piscator não saía do lugar. O sargento, praguejando, se arrasta até ele e pergunta o que está acontecendo. Piscator está paralisado de pavor. O sargento então o questiona: qual é a sua profissão? Ao que ele responde: ator de teatro. Nunca lhe pareceu tão inútil aquela profissão diante da realidade avassaladora que enfrentava. Acabada a guerra, Piscator não desiste de fazer teatro, como sabemos. A partir de experiências como essa ele vai desenvolver uma arte que não deve recuar diante da realidade: “A arte, a real, a absoluta, deve mostrar-se à altura de qualquer situação e nela saber basear-se” (PISCATOR, 1968: 29). Nasce o teatro político de Piscator. Muito mais se poderia falar das histórias de Piscator ou Brecht, Meierhold, Augusto Boal, Edward Bond, Antoine e tantos outros que foram em busca de um teatro vivo, provocativo, coletivo, de ação direta, com potencial transformador e crítico da sociedade. Todo teatro é político e alguns escolheram estar ao lado dos explorados nessa história. Minha função aqui é mais modesta. Pretendo falar sobre a opção pelo teatro de grupo a partir da experiência de um coletivo de teatro, hoje, na cidade de São Paulo, atravessado por essas influências. Como construímos nossas trincheiras; como nos relacionamos com a realidade, com nosso tempo histórico; que formas estéticas são necessárias diante dos conteúdos escolhidos pelo grupo; porque a escolha pelo trabalho coletivo. Começando pelo começo, a Kiwi Companhia de Teatro, da qual faço parte, surgiu em 1996 e, ao longo destes anos, o grupo procura elaborar um pensamento crítico sobre o teatro, contribuir para a compreensão de temas contemporâneos e intervir artística e politicamente na vida social do País, em geral associado a movimentos sociais e organizações populares. Para dar conta dessa tarefa ultrapassamos as barreiras do coletivo artístico e abrimos o debate e a construção do pensamento com outros setores da sociedade. São atividades do grupo, além dos trabalhos cênicos, encontros, seminários, oficinas, publicações, intervenções públicas junto aos movimentos sociais e diversas formas que nos colocam em diálogo com a sociedade. Não nos basta fazer o chamado teatro de pesquisa, é necessário também debatê-lo antes, durante e depois dos processos de criação. Nos últimos anos a Companhia tem trabalhado em parceria com coletivos, organizações e movimentos como as Mães de Maio, Frente de Esculacho Popular, Coletivo Merlino, Marcha Mundial das Mulheres, MST, MAB (Movimento de Atingidos por Barragens), Aparecidos Políticos, Comissão de mortos e desaparecidos políticos, Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, União Popular de Mulheres de São Paulo, entre outros. A tentativa é sempre de estabelecer uma relação orgânica compartilhando as lutas e revendo conjuntamente os processos e formas de discurso. Calcados na realidade que se apresenta nas ruas, na urgência e necessidade de resposta aos temas sociais apresentados pela atualidade, construímos nosso trabalho artístico. No campo da política cultural, recusamos a relação de dependência ao mercado e às leis baseadas em renúncia fiscal. Por isso, também faz parte das nossas ações a luta por arte e cultura como direitos sociais. Com toda complexidade presente nesse assunto, acreditamos que o Estado deve se responsabilizar pelo que é público. Produzir e usufruir dos bens simbólicos deveria ser um direito. Queremos uma política cultural elaborada em diálogo permanente com a sociedade civil organizada. Queremos a criação de leis permanentes de fomento à arte em lugar do pires estendido às empresas que, usando dinheiro público através de renúncia fiscal, decidem boa parte do que pode ou não ser produzido culturalmente no país. Também não nos basta a política pequena dos editais que dependem da boa vontade dos governantes de plantão para serem realizados. Precisamos de uma política de Estado, perene e consequente. Essa luta é travada como um meio capaz de garantir a liberdade necessária para o aprofundamento político e artístico dos grupos e possibilitar a prática de um teatro crítico. Pois nosso horizonte está além das estruturas atuais. 49 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 A reorganização do teatro de grupo de São Paulo, a partir da década de 1990, vem reafirmar a escolha do trabalho coletivo como possibilidade de construção de uma cena consequente. Não existe teatro de grupo sem que seus componentes tenham consciência do processo de trabalho e domínio dos meios de produção. Ainda que existam diferentes formas de cooperação e colaboração dentro dos coletivos de teatro, o conhecimento e a participação no processo global deve ser compartilhado por todos os envolvidos no trabalho. Isso não é pouco importante. Já nesse princípio básico de funcionamento mora uma rebeldia em relação ao status quo. Não nos submetemos à sociedade estratificada, organizada por relações de poder, que impedem a emancipação e a criação de alternativas para a vida em comum. Na Kiwi Companhia de Teatro, um ator ou atriz, por exemplo, deve se implicar no trabalho cênico. Grande parte das nossas obras resulta de roteiros construídos ao longo do processo de pesquisa e ensaios, organizados, em geral, pelo diretor artístico da Companhia, onde os atores e atrizes frequentemente não aparecem em cena como personagens, mas como trabalhadores/as- artistas que apresentam um determinado tema, situação, conflito que, no diálogo com o público, pode servir como revelador de aspectos humanos e sociais. “O teatro pode nos ajudar a pensar o que ainda não foi pensado” (observação do diretor Fernando Kinas), e assim fornecer um estopim para processos de reflexão e mudança. Na opção pelo encontro entre teatro e realidade estão presentes: a escolha dos assuntos a serem tratados em cena (que contenham em si as urgências do nosso momento histórico), do público com quem queremos conversar (não nos interessa o teatro culinário, de distração, consumido por uma plateia ocupada em apaziguar seus corações e mentes) e da forma estética mais eficaz (de maior força poética, política e comunicativa). Produzir montagens teatrais que não correspondam aos desejos do mercado ou às expectativas do público, muitas vezes siderado pelo entretenimento vulgar, nos conduz a desenvolver e sustentar formas mais autônomas e críticas de atuação. Neste caso, o teatro documentário de Piscator e Weiss são fontes de inspiração para o grupo. Ao tratar da mercantilização dos bens simbólicos no espetáculo Teatro/mercadoria #1, do projeto civilizacional imposto aos países latinoamericanos baseado na intolerância às diferenças e xenofobia em “O Bom Selvagem”, da relação entre patriarcado e capitalismo no espetáculo Carne, ou da violência institucional e do conceito de estado de exceção em Morro como um país, a Kiwi Companhia de Teatro exercita a prática do teatro como uma espécie de canteiro de obras: Trata-se de um teatro que não abdica dos seus (possíveis) poderes, que investiga a natureza desses poderes e por isso anda na corda bamba, atualizando a relação dialética entre a insubmissão radical - que flerta com o vanguardismo ingênuo ou pretensioso - e a comunicação franca com o público. Ao evitar a mera administração dos elementos e os automatismos do prêt-à-porter, os artistas e artífices desse tipo de teatro são obrigados a inventá-lo incessantemente. A imagem deste teatro é a de um imenso canteiro de obras, cujo projeto inclui ideias como a renovação das utopias, a criação de um lugar onde se respira em comum, a explosão da língua domesticada, a implicação nos grandes temas sociais (mas também a admissão das confissões íntimas), o gosto pela colagem, a respiração regional, o cosmopolitismo, a multiplicação dos espaços de encenação, a provocação do escândalo, a calmaria como antídoto à velocidade pós-moderna, o choque tecnológico, o desrespeito às convenções, a recusa da forma-mercadoria e do modelo espetacular etc. Nesse canteiro a obra toma forma impulsionada tanto pelos acordos, quanto pelas contradições que se estabelecem entre seus produtores. E o resultado da obra parece ser a própria construção da obra, e não sua hipotética conclusão (KINAS, 2012). Muitas são as trincheiras a serem cavadas em nossa época. Trincheiras não só de proteção, mas de preparação para o ataque. Nossa luta passa pela não acomodação à sociedade de consumo e profundamente desigual em que vivemos, pela resistência em manter um pensamento crítico diante da quantidade de mentiras e desinformação gerada pela mídia conservadora, pela coragem de fazermos também a autocrítica e repensarmos nossas práticas diante das questões urgentes que se apresentam. Em 1968 Augusto Boal escreve um texto para a “Primeira Feira de Opinião” em que, além de fazer a análise das principais tendências teatrais de esquerda atuantes no país naquele momento, faz também um chamado para a construção de trincheiras coletivas contra o mal maior: a ditadura sangrenta instalada no Brasil depois do golpe de 1964. Boal faz um apelo aos coletivos artísticos em nome da [...] necessidade de transformar a atual sociedade; é necessário mostrar a possibilidade dessa mudança e os meios de mudá-la. E isso deve ser mostrado a quem 51 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 pode fazê-lo […] Necessário agora, é dizer a verdade como é. E como dizê-la? E mais: como fazê-la? Nenhum de nós, como artista, reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social. […] Isso nós não o conseguimos sozinhos, mas talvez possamos lográ-lo em conjunto (BOAL, 1970, p. 52). Em 1968 o foco de luta parecia claro. Hoje, nossa geração, ainda sob o impacto da ditadura civil-militar e do processo “lento, gradual e seguro” de transição para a democracia, muitas vezes tem dificuldades em acertar o alvo. O que significa um teatro combativo nos dias que correm? Onde devemos cavar nossas trincheiras? Estamos colocando tais perguntas em permanente debate público. Depois da sensacional derrota do projeto político de esquerda construído no final da ditadura, definido pela integração de amplos setores, antes socialistas, à gestão do capitalismo, a situação complicou-se muito. Para o filósofo Paulo Arantes, “[...] o movimento teatral é como se fosse uma espécie de arquipélago de pequenos grupos com capacidade de intervenção pública, que esperam um momento para se aglutinar, se aparecer um movimento que tenha envergadura política para propor uma alternativa” (ARANTES, 2007, p.175). Somente em conjunto teremos força e lucidez para escolher o caminho inverso ao do homo resignatus. Referências bibliográficas ARANTES, Paulo. “Paulo Arantes: um pensador na cena paulistana”, in: O Estado de S. Paulo, 16 de julho de 2007. BOAL, Augusto. “Que pensa você da arte de esquerda?”, in: Kansas: Latin American Theatre Review, Vol. 3, Nº 2, 1970. BOND, Edward. “Commentaire sur auprès de la mer intérieure”, in: Auprès de la mer intérieure. Paris: L’Arche, 1994. KINAS, Fernando. O teatro como canteiro de obras, 2012. Não publicado. PISCATOR, Erwin. Teatro político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Apontamentos sobre os bons encontros, por Rodrigo Mercadante10 Resumo: Tendo como ponto de partida a história de formação da Cia. do Tijolo, suas experiências criativas, de produção, experiências de gestão, organização interna e externa, o presente trabalho procura no conceito de amizade uma possível abordagem que explicite a especificidade com que o grupo exercita a horizontalidade como princípio que dá suporte e consistência a toda a sua experiência teatral. Palavras-Chave – Cia. do Tijolo, teatro de grupo, Amizade, Federico Garcia Lorca, Patativa do Assaré, Ilo Krugli, Teatro Ventoforte, Concerto de ispinho e fulô, Cantata para um bastidor de utopias, Cante lá que eu canto cá. Abstract: Starting by the history of the of the Cia. do Tijolo, their creative experiences, production, management experience, internal and external organization, this work seeks, in the concept of Friendship, an approach that explains the specificity in which the group it’s being exercising the principle of horizontality to support all its aesthetic experience. Keywords: Cia. do Tijolo, theater group, friendship, Federico Garcia Lorca, Patativa do Assaré, Ilo Krugli, Teatro Ventoforte, Concerto de ispinho e fulô, Cantata para um bastidor de utopias, Cante lá que eu canto cá. 53 Foto de Alécio Cezar. Cia do Tijolo. Elenco em Cantata para um bastidor de utopias. 10 Rodrigo Mercadante é ator, diretor e músico, cofundador da Cia. do Tijolo. Formado pela EAD- Escola de Arte Dramática, há 12 anos integra a equipe do Teatro Ventoforte. Participou de trabalhos em diversos coletivos de São Paulo: Grupo Macunaíma, Teatro da Gioconda, Cia. dos Inventivos, Teatro Oficina, Cia. São Jorge de Variedades. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Uma sinfonia inacabada em três movimentos: num primeiro momento, amigos que se reúnem, se divertem, comem e bebem juntos, falam sobre amor, política, sobre suas inquietações, sobre vida, morte e arte. Desses bons encontros nasce um projeto, mais uma nova espécie de “ação entre amigos”. Dessa ação, o trabalho em conjunto emerge, e aí é possível contemplá-lo, à medida mesmo em que o criamos, recriamos, recebemos reflexivamente as impressões por ele causadas, vindas de tantos sujeitos do mundo à nossa volta. Ao olhar para ele, surge a nova necessidade de nos perguntarmos: que é esse coletivo que somos nós, quem é esse que realiza essa obra? Lembro bem do dia em que, após termos já concluído dois trabalhos de nossa Companhia: Concerto de ispinho e fulô e Cante lá que eu canto cá, em uma conversa, surgiu a pergunta inadiável: somos mesmo um grupo? Desejamos mesmo nos configurar como tal? Havíamos chegado até aqueles dois trabalhos sem muitas dessas reflexões, mais por impulsos comuns de expressão, daqueles movimentos compartilhados que fazem com que amigos trafeguem pela mesma estrada. Tínhamos já, naquele momento, um nome, éramos cooperativados, começávamos a ter nossas trajetórias individuais vinculadas àquela trajetória maior que se anunciava. Não havia mais jeito: éramos sim um grupo, um coletivo de teatro. Mais um grupo de teatro como tantos outros dos quais nós, atores e músicos, já com uma trajetória razoável, havíamos participado, fundado ou integrado. Constatação evidente que, naquele momento, necessitava de verbalização para se fazer realidade e assim começar sua/nossa história, ou melhor, integrar-se a uma tradição que nos antecede e que nos continuará. Um pouco de nossa história A Cia. do Tijolo é um coletivo de artistas que determinou o ano de 2007 para o início das pesquisas sobre vida e obra do poeta Patativa do Assaré e sobre o pensamento do educador Paulo Freire. Dessa união surgiram dois espetáculos: Cante lá que eu canto cá e Concerto de ispinho e fulô, que vêm sendo apresentados desde suas respectivas estreias, em 2008 e 2009, até os dias de hoje. Nesses anos de trajetória conjunta e três trabalhos no repertório, algumas características se firmaram como constitutivas de uma linguagem que continuaríamos desenvolvendo: exploração das possíveis relações entre música, poesia e encenação; construção de uma dramaturgia coletiva a partir das experiências pessoais, questionamentos éticos e estéticos, posicionamento político dos integrantes do grupo; incorporação das experiências estéticas originadas das formas de luta e resistência social, assim como de formas simbólicas inspiradoras dessas lutas; desconstrução das fronteiras palco/plateia, erudito/popular; trânsito fluído entre diversas formas de manifestações artísticas na construção do espetáculo (animação de objetos, narrativa, show musical, saraus, brincadeiras populares, entre outras); utilização da improvisação como forma de pesquisa processual e de resultado estético; música ao vivo. É muito importante também salientar como, a partir de que e de quem demos nossos primeiros passos nessa aventura, pois, evidentemente, nossa linguagem não se inicia conosco e nem termina em nós. Nossos trabalhos vêm dos 40 anos de poesia do Ventoforte, dos 15 anos de trabalho vigoroso e transformador da Cia. São Jorge, das pesquisas atentas e rigorosas da Casa Laboratório, e poderíamos voltar mais ainda. Essa sensação de que podemos participar ativamente dessa história e continuar a transformá-la deixa a certeza de que junto e depois de nós, haverá grupos reinventando esse caminho. Batismo da Cia. do Tijolo - Patativa e Paulo Freire. A ideia de fundar a Cia. do Tijolo surgiu do desejo de Dinho Lima Flor de criar um trabalho sobre a vida e a obra do poeta Patativa do Assaré. Desse primeiro impulso criativo e de um primeiro contato com os poemas de Patativa nasceu o show Cante lá que eu canto cá, uma espécie de sarau literário e musical. Mas não era o bastante. Na medida em que nos aprofundávamos no universo do poeta, percebíamos que o show musical não seria o suficiente para abarcar a complexidade da obra e, principalmente, não revelava ao público a singularidade da trajetória de vida desse agricultor, poeta e cantador. Qual seria a melhor forma de levar Patativa aos palcos? Era preciso que se encontrasse um ponto de vista, um ponto de partida, para podermos ler Patativa e encará-lo sem nos perdermos na infinidade de assuntos que ele havia trilhado ou sem cairmos na tentação de simplesmente dramatizar sua biografia. A luz veio numa conversa com o diretor Ilo Krugli e a educadora Rita Rozeno. Falávamos sobre o fato de o Brasil possuir um dos maiores índices de analfabetismo funcional do mundo e nos assombrávamos percebendo que isso acontecia justamente no país onde o educador Paulo Freire desenvolvera sua “pedagogia do oprimido”, afirmando que era preciso “ler o mundo”, antes de ler as palavras. 55 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 A conexão se fez imediatamente em nossas cabeças: Patativa foi um homem que estudou só seis meses e desenvolveu extraordinariamente em si as possibilidades poéticas, práticas, reflexivas no manejo da língua. Qual caminho percorreu Antônio Gonçalves da Silva até alçar voo e chegar a se tornar Patativa? Talvez as concepções de Paulo Freire sobre o conhecimento e sobre o ser humano nos desse um norte para a leitura e para a análise da obra do mestre cearense. Desse encontro surgiu o nome Cia. do Tijolo, de um exemplo freireano. O primeiro passo no processo de alfabetização do método criado por Paulo Freire é o levantamento do universo vocabular dos grupos com que se trabalha; são palavras ligadas às experiências existenciais, profissionais e políticas dos participantes dos diferentes grupos. Foi assim que em Brasília, cidade ainda em construção nos anos 1960, surgiu, entre os estudantes de Paulo Freire, a palavra TIJOLO, palavra geradora abrindo a janela da leitura do mundo. Para essa empreitada, a aventura de criar um trabalho em conjunto, chegou Fabiana Barbosa. Depois Karen Menatti, Thais Pimpão, Aloísio Oliveira, Rogério Tarifa, Lilian de Lima, Maurício Damasceno, Jonathan Silva, Wiliian Guedes, Alécio Cezar, Silvana Marcondes, Fábio Retti: junto deles, as histórias pessoais e profissionais de cada um. TIJOLO passou a ser nossa “palavra geradora”, nosso princípio de orientação na construção deste Concerto de ispinho e fulô, nosso segundo espetáculo. Garcia Lorca entra em cena – trilhando os caminhos da música, do poema e da História. A utilização da poesia, da música, o uso dos objetos e das pontes entre as chamadas culturas populares e eruditas como forma de discurso, desenvolvidas nos dois primeiros espetáculos, nos impeliram a acercarmonos de outro poeta, Federico Garcia Lorca, tomando-o como força motriz de nosso terceiro espetáculo. Em princípio, aproximar Lorca e Patativa pareceu um pouco arbitrário, mas, ao iniciarmos esse exercício, percebemos que não era só a poesia que nos levava do sertanejo ao andaluz. As afinidades eram muitas: ambos foram poetas fortemente arraigados às suas terras e transformaram suas vivências cotidianas, a linguagem de seu povo, seus mitos e metáforas, em experiências poéticas universais; ambos trafegaram com sua poesia entre o popular e o erudito. Patativa escreveu, além de poesia matuta, belíssimos sonetos, enquanto Lorca se utilizava do “romance”, forma popular de poesia oral, bem semelhante ao cordel, mesclando-a às experiências da vanguarda europeia; ambos eram “cantadores” e “performáticos”, Lorca ao piano entoava o Cante Jondo e as canções de ninar tradicionais andaluzas; enquanto Patativa na viola cantava os retirantes na Triste Partida; ambos eram poetas engajados, sem jamais terem se filiado a partidos políticos diretamente; ambos perceberam a miséria em seu aspecto mais absurdo e a denunciaram. Carregavam em si o gene do inconformismo diante da opressão; ambos foram, cada um a seu tempo, ícones de lutas progressistas. Patativa chegou cantando ao século XXI, Lorca teve menos sorte. Patativa e Lorca, por essa postura ética que impulsionava seu canto em direção ao corpo vivo de seu povo, nos permitiram exercitar outra questão que nos era cara: desconstrução das fronteiras que separam o palco da plateia, o ator do espectador a partir da busca de uma essência do popular. A escolha desses dois poetas que bebem sofregamente da tradição oral, do cordel, do falar das feiras e dos bonecos da Andaluzia, mas que, por outro lado, se utilizam também de recursos estilísticos mais eruditos, permitiunos manter aberto o espaço do improviso como forma de pesquisa e como forma de resultado estético, sem ficarmos reféns de certas caricaturas do teatro popular. Essas características possibilitavam que o ator pudesse ser dramaturgo de sua trajetória em cena, funcionando como um veículo que sutilmente convida o espectador a participar, seja criticamente, seja por identificação com a experiência encenada, seja concretamente, adentrando o espaço da encenação, brincando e subvertendo nosso jogo. Aos atores, músicos, iluminador, ao cenógrafo e ao figurinista, mais do que encenar e representar, cabia criar a atmosfera necessária que indicaria ao espectador sua responsabilidade diante do desenrolar do espetáculo, e da vida. A partir dessa sucinta narrativa de nossa curta história, é possível discernir em vários níveis, uma tendência horizontalizante, norteadora de nossas ações. A esse impulso darei o nome de exercício (aproximante) da amizade. Sobre horizontalidades e verticalidades – o espectro da amizade. O desespero dos poetas advinha de não poderem eles realizar seu sonho de fazer-se entender de todos, encontrar um eco no coração de todos os homens. Eles sabem que a poesia só se fará carne e sangue a partir do momento em que for recíproca. Paul Eluard (apud BOSI O ser e o tempo da poesia). 57 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Antes de discorrer a respeito da horizontalidade e das influências dessa tendência de organização nos processos criativos da Cia. do Tijolo, gostaria de propor uma definição, mesmo que superficial e provisória, dessas duas tendências, verticalidade e horizontalidade, que serão utilizadas como suporte desse breve exercício de reflexão. Por verticalidade entenda-se o eixo de organização de caráter hierárquico que estrutura as práticas, determina os paradigmas estéticos, valores, as formas de produção e as funções criativas, partindo dos modelos dominantes da sociedade. Esse eixo vertical estrutura em torno de si valores tidos como verdadeiros e naturais, confere a cada integrante um lugar dentro da estrutura, uma função definida, determina obrigações, deveres, formas de remuneração etc. Às formas verticais de organização, opõe-se o eixo horizontal, que ensaia outras maneiras possíveis de organização que surgem nos interstícios da ordem estabelecida dos sistemas dominantes de produção artística. Por seu próprio caráter menos hierárquico, pressupõe um exercício permanente de atenção e criação contínua de formas de existir, em que responsabilidade pela criação, produção e sobrevivência são partilhadas e decididas por um coletivo. Colocando os termos das formas de criação num grupo de teatro, o exercício da horizontalidade dá nome a uma forma de organização em que os valores dominantes são postos em questão pelas demandas práticas cotidianas do fazer teatral desses coletivos. Os problemas que surgem tendem a ser discutidos caso a caso, de acordo com necessidades e desejos concretos: pesquisas estéticas, organização interna das funções criativas e administrativas, maneiras diferentes de determinar o nível de pertencimento e de responsabilidade, remuneração, distribuição do dinheiro etc... Cada assunto requer um acordo coletivo que, às vezes, obedece a regras pré-existentes, outras vezes, são reinventadas. As formas de organização verticais baseiam-se em modelos pré-concebidos e os reafirmam como regra, reproduzindo os valores avalizados pela sociedade em geral, valores tidos como mais “naturais”. Já as formas horizontais de organização promovem, no seu fazer cotidiano, em maior ou menor grau, o questionamento desses valores e certezas da sociedade: embaralham as cartas, desestabilizam certezas e funções. As formas de organização mais verticalizadas podem caminhar sem muitos percalços e incertezas, ancoradas bem firmes nas verdades cristalizadas pelo mercado da cultura ou do entretenimento. Porém, as organizações de cunho horizontalizante, estão em eterna negociação com essas estruturas dominantes, fazendo dos grupos que exercitam esse “modo de vida”, um polo permanente de resistência e invenção. Feito esse esclarecimento preliminar, podemos, então, abordar a forma como essa experiência de exercício coletivo se dá dentro da Cia. do Tijolo e de que forma ela determina a ética que norteia nossas relações internas e externas, nossas pesquisas estéticas e nosso posicionamento político. Nossa experiência de horizontalidade se alicerça naquilo que optarei por chamar Amizade. Em primeiro lugar, a escolha da palavra Amizade, Amizade maiúscula, pretende deixar clara a extrema importância do componente afetivo em nossa maneira de criar. Se um dia tivermos que formalizar uma metodologia de trabalho, nos depararemos, muito provavelmente, com o embaraço de ter que, se quisermos ser realmente sinceros, descrever e inventar práticas de desenvolvimento do afeto ou exercícios para a amizade. Mas como definir nossas práticas, partindo dessa forma de laço social, sem corrermos o risco de sermos malcompreendidos, tachados de ingênuos demais? É preciso esclarecer que não se trata da amizade tomada como relação interpessoal corriqueira, secundária na estrutura social; não se trata da amizade de mesa de bar (embora essa prática esteja presente em nossa convivência), nem muito menos daquele tipo de relação que cria em torno de si uma bolha de condescendência mútua, impedindo questionamentos, enfrentamentos e críticas recíprocas (a amizade certamente pressupõe uma espécie de concórdia, mas não identidade de opiniões). A amizade a que nos referimos é aquela que, numa bela definição de Marilena Chauí, se caracteriza “[...] por excelência como um bom encontro, relação entre homens livres e iguais, tecida no bem querer e no bem fazer, na qual as ações de cada um são a fonte de liberdade de todos” (CHAUÍ, 2014, p.204). Baseia-se na confiança, na integridade e lealdade de cada um, possibilitando, através da generosidade, a criação de um espaço para o exercício da liberdade. Amizade como força política que tenta elaborar meios de expressão que sejam eles próprios resistência às formas de submissão interiorizada. Essa ética da Amizade atravessa de fora a fora nosso fazer teatral: a dramaturgia coletiva busca evitar que os anseios individuais sejam submetidos e solapados pelas exigências de um discurso totalizante do 59 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 espetáculo coerente, fechado. As escolhas são feitas pelo grupo e não por uma figura hierarquicamente superior: diretor, dramaturgo ou produtor. Apesar de definirmos esses papéis a cada montagem, as funções exercidas não dão o direito à última palavra. A versão final do espetáculo deve corresponder aos anseios expressivos de cada um e de todos os envolvidos. Esse cotidiano criativo evita que caiamos desavisadamente na armadilha ideológica que fetichiza a ideia de “profissionalismo”. Certa dose de amadorismo militante é essencial na garantia da manutenção de um espaço de liberdade. Evidentemente, isso torna o processo de criação bem mais complexo que o de um espetáculo submetido aos imperativos da “verticalidade” dominante. Assuntos aparentemente insignificantes são debatidos por horas, estejam eles relacionados a questões de texto ou encenação, sejam ou não relacionados a questões de produção e organização interna. Papéis e funções se misturam, problemas de várias ordens se interpenetram, encontram soluções nos espaços mais improváveis, formando pouco a pouco a rede que compõe o espetáculo. Também a relação que estabelecemos com a plateia pode ser pensada sob a égide das relações de amizade. Há uma busca por certa porosidade que permita que os trabalhos se preencham de significados por meio da interlocução direta com os espectadores, como se construíssemos juntos um poema sem fim, um bordado eternamente inacabado. Mas há, acima de tudo, o desejo de relação com o outro, impulso de estabelecer com ele um bom encontro. Uma definição boa para amizade é justamente essa: um bom encontro de almas e de corpos. Encontro a partir do qual sentimos um aumento de nossa potência de existir, de nosso desejo de viver e criar. Após um espetáculo, desejamos que essa sacralidade da amizade se perpetue e nos faça, a nós e ao público, mais potentes diante da vida. Bom encontro é uma bela definição de Amizade; Amizade é o outro nome da horizontalidade. Esse aumento de potência criativa e vital, gerado pelos bons encontros da amizade, nos permite o exercício político da liberdade enquanto resistência cotidiana, concretizada nas criações, no trabalho conjunto. Termino essa reflexão com um trecho de uma conferência de Garcia Lorca intitulada, Nova Iorque num poeta em que ele sintetiza um pouco dessas impressões: Sou um poeta que aparece nesta sala e quer construir a ilusão de estar no seu quarto, e de que vós... vocês! são amigos dele, pois não há poesia escrita sem olhos escravos do verso obscuro, nem poesia falada sem orelhas dóceis, orelhas amigas por onde a palavra que brota leva sangue aos lábios ou céu ao topo da cabeça de quem ouve (LORCA, 1995, p.25). 61 Referências bibliográficas CHAUI, Marilena. Contra a servidão voluntária. São Paulo: Autêntica, 2013. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977. LORCA, Federico Garcia. Nova Iorque num poeta. Porto: Hiena, 1995. Intervenção Urbana e desespetacularização11: a experiência do Coletivo Mapa Xilográfico, por Diogo Rios e Milene Valentir12 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Resumo: Diante de uma crítica aos conceitos hegemônicos de urbanização, o Coletivo Mapa Xilográfico faz uma espécie de residência artística em determinada localidade e propõe a criação de “coletivos fluidos”, que são agrupamentos com moradores locais ao redor de uma proposição poética no espaço vivido. Com o pressuposto de estabelecer aproximações que busquem a autonomia, o grupo propõe a coeducação - relações de trocas de saberes - e a coprodução - produções artísticas de autoria coletiva - no intuito de ativar a experiência e a participação no espaço urbano. Palavras-chave: Mapa Xilográfico, intervenção urbana, experiência, coletivos fluidos, e coeducação. Abstract: Assuming a critical approach to the hegemonic concept of urbanization, the Coletivo Mapa Xilografico (Xylographic Collective Map), organizes artistic residencies in determined regions within the city space, proposing the creation of what we call “fluids collectives”. The idea of those collectives is to activate the experience of human interaction with its surrounding urban space. For that, the group sets itself for few months in a chosen neighbourhood, engaging with the local community in poetic gatherings working on elaborating artistic material using a diverse range of platforms such as video making and art performance. With the principle of establishing actions that leads the community towards its autonomy, the groups ethics is based on with the concept of coeducation – horizontal exchange of knowledge – and coproduction – collective authorship in what comes as result from that exchanging process. Keywords: Mapa Xilográfico, urban intervention, experience, fluids collectives, coeducation. O impulso de ruptura é um dos fundamentos das ações de intervenção urbana, como resposta às tentativas de um espaço planejado em determinar como os corpos e as práticas urbanas devam se comportar. Nesse sentido, conceber o espaço urbano como uma materialidade em que a pulsão criativa humana pode interferir, poetizando-a, relacionandose com a cidade de forma autônoma em exercícios de ressignificação, é Desespetacularização no sentido de “espetáculo” proposto por Debord: “[...] relações sociais entre pessoas, mediadas por imagens” (DEBORD, 2012, p.14). 11 Diogo Sérvulo da Cunha Vieira Rios é artista e educador, integrante do Coletivo Mapa Xilográfico desde 2006; mestrando no Instituto de Artes da Unesp e do Bloco Fluvial do Peixe Seco. Milene Valentir Ugliara é graduada e pós-graduada pelo Instituto de Artes da Unesp; arte-educadora na Educação de Jovens e Adultos (em São Caetano do Sul); integrante do Coletivo Mapa Xilográfico desde 2006 e do Bloco Fluvial do Peixe Seco. Realizou mestrado na Unesp – IA, com a pesquisa “Errâncias na Metrópole: A Experiência do Coletivo Mapa Xilográfico”, concluído em 2013. 12 um caminho potente na integração entre arte e vida, em busca de uma ação artística que reverbere macro e micropoliticamente e que subverta os mecanismos de adestramento biopolíticos em forma de biopoder, afirmando o corpo como realidade biopotente, bem como a relação entre corpo-cidade. O Mapa Xilográfico é um coletivo de intervenção urbana criado em 2006, como desdobramento de uma ação que consistia na impressão do tronco de árvores cortadas13 nas calçadas da cidade de São Paulo. A intervenção buscava tratar os troncos como matrizes de xilogravura a céu aberto, refletindo sobre a questão da autoria, uma vez que um anônimo havia gravado a matriz no ato do corte e a deixado exposta, ao destino do tempo, aberta para outros impressores. A impressão levava o nome da rua e do número onde a árvore havia existido. 63 Impressão de tronco na cidade de Havana (Cuba), 2006. 13 A intervenção de impressão de troncos foi concebida por Milene Valentir e Kleber Silva. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 O que se configurou inicialmente como uma ação pontual, transformou-se gradativamente em uma espécie de portal, contatando outro tempo e elaborando outros territórios, uma vez que sempre que imprimíamos, éramos abordados por transeuntes e moradores que compartilhavam generosamente a história da árvore, do quarteirão, do bairro e suas memórias em troca, seus mapas mentais e afetivos de um lugar em transformação. Outras significações eclodiram em torno da ação: a relação entre cultura e natureza em uma cidade que impermeabilizou seu chão e condenou a maior parte de suas árvores a espaços reduzidos de sobrevivência. O caráter retilíneo das marcas de corte em oposição aos anéis de crescimento da árvore, circulares, orgânicos, sobrepostos na impressão e materializando a tensão entre a cidade como obra e o que chamamos de “natureza” como objeto a ser controlado. A cada novo bairro, novos portais e agenciamentos surgiam, fato que promoveu um transbordamento da prática: nascia um processo de aproximação com o urbano, um mapa xilográfico psicogeográfico e afetivo, estabelecendo relações entre as árvores que caíram, seus moradores e a necessidade de impedir o apagamento da memória dos espaços em metamorfose cujo vetor de mudança não eram os praticantes do lugar, mas interesses de valorização territorial do mercado. A cada impressão, uma espécie de escavação poética capaz de integrar gente disposta a narrar suas experiências, a fortalecer diálogos e outra relação corpo-cidade. Como afirmou Benjamin, estávamos a “[...] escavar a história a contrapelo” (2012, p. 243), contatando trocas de saberes orais para além da história oficial, pois nada está perdido na investigação histórica, uma vez que o instante de escavação se integra à própria história. Sua concepção de história está intimamente ligada ao momento em que sua significância se apresenta ao investigador: Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele de fato foi”. Significa apropriarse de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo [...] Pois é uma imagem irrecuperável do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se sinta visado por ela (Idem, ibidem). Visamos as árvores e, além delas, encontramos novos territórios e tempos, lugares de encontro e de resistência poética na cidade. Desses encontros, um convite: a criação de um coletivo para poetizar o lugar, estabelecer pontos de troca e de sociabilidade que promovessem rupturas com fazeres artísticos pelo espaço, que chamamos de Coletivo Fluído. Ao criar um coletivo fluido, que atuasse conjuntamente na troca de conhecimentos (o que o coletivo chama de coeducação) e na produção artística coletiva (coprodução), pode-se atuar na intenção de quebrar algumas dualidades: artista X público, educador X educando, arte como entretenimento X integração arte-vida, pesquisador X pesquisado e história oficial X história não oficial. A criação desse grande coletivo aponta para uma relação entre pessoas bastante diversas em situação de horizontalidade, não ignorando as dificuldades e contradições implicadas nesse processo; inclusive, assumindo as falhas que provavelmente acontecem no decorrer do trabalho ou das tentativas não contempladas. A possibilidade do erro está incluída. Memória, experiência, processos artísticos, exercícios de singularidade, reconhecimento de alteridade, contato com o diferente, prática de permanência na construção de espaços públicos, enfim, uma forma de agenciamento horizontal e autônomo de retomada das produções simbólicas e da pluralidade de narrativas. Perseguir experiências de fazer artístico pela cidade é também esvaziar a dicotomia artista e não-artista, requisito para a cooptação e o agenciamento de iniciativas artísticas pelo mercado. Conceber acontecimentos que valorizem a potência criativa de qualquer um é desmontar a concepção de arte burguesa e uma ideia elitista de produção cultural. Pelbart destaca que: “[...] A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação” (2011, p.138). Ao estabelecer o conceito de artista como um sujeito especial, com mais potencialidades criativas do que a população em geral, legitimase assim o mercado de arte, bem como o conceito de artista burguês, mistificando a potência de invenção estética e poética como algo inacessível a todos, logo, hierarquizando produções culturais como superiores e inferiores. Daí a criação de um sistema de valores estéticos dominantes que legitima seletos grupos com suposta capacidade de definir o que é arte, sequestrando a autonomia de produção cultural de uma sociedade. Ao longo dos processos de imersão em cada bairro, o Mapa Xilográfico busca a construção de uma teia de contatos, que se desdobra por meio das interações do coletivo fluído. Espaços culturais, movimentos sociais, associação de moradores e escolas estatais são convidados a 65 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 integrar o processo de troca de saberes e experiências. As escolas, em especial, costumam ser espaços de difícil parceria, tendo em vista sua arquitetura disciplinar, vertical e a reboque dos projetos hegemônicos da cidade espetacular. Contudo, a ação do Mapa Xilográfico consiste em convidar professores e professoras para participarem dos processos de investigação e poetização, para depois convidar estudantes das respectivas séries. Geralmente, poucos professores se integram, entretanto, os que aceitam o convite são aqueles sedentos por interlocuções criativas na escola, e que vislumbram a possibilidade de desenvolver um trabalho consistente em parceira, não mais em solidão escolar. Um convite, por mais estranho que possa parecer, já promove desorganizações férteis na escola de profissionais cansados de imposições verticais que destroem sua autonomia como educadores, e estudantes aprisionados, enfileirados e “encurriculados”. O fato de exercitarem autonomamente uma escolha tem sido capaz de fomentar potentes ações, em especial na relação que buscamos estabelecer com a rua. Convidamos os jovens às derivas, às intervenções, aos encontros com os moradores, a fazer parte do coletivo fluído. Nas caminhadas pelo bairro, os estudantes apresentam seus caminhos, seus mapas mentais e suas narrativas sobre o espaço praticado. Aprendem uns com os outros, e as barreiras de uma relação horizontal entre educadores e educandos é desafiada. A rua, como elemento significativo de aprendizagem, em toda a sua potência antidisciplinar, possibilita caminhos de conhecer que respeita os saberes prévios, os tempos e as circunstâncias de cada integrante do coletivo fluido. Velhos aprendem com os jovens, jovens aprendem com os velhos e outras possibilidades de sociabilidade são inauguradas, como semente de uma possível continuidade após o término das intervenções. Da mesma maneira que as propostas de intervenção urbana são capazes de promover rupturas pelas ruas das cidades, elas também podem se infiltrar em circuitos espetacularizados e disciplinares, como a escola. Nesse sentido, a relação escola-rua é um potente desprogramador da instituição escolar, sem a intenção de reformála, mas de produzir fendas de exercício de autonomia que apresentem o conhecimento não como imposição, e sim como possibilidade de singularização. A criação de novos territórios é um objetivo das ações intervencionistas. Lugares fora do mapa, que eclodem, permanecem o tempo necessário e significativo aos seus construtores e praticantes. Espaços que promovem sociabilidades autônomas, em busca de diversidade e de acontecimentos fora do planejamento urbano, atravessados por experiências éticas, estéticas e políticas. A permanência e o desaparecimento como estratégias de insurgências, capazes de corporificar outros modos relacionais. Como uma TAZ (Zona Autônoma Temporária), que prevendo os riscos de absorção ou de repressão, é constituída – podendo durar alguns instantes ou décadas dependendo das circunstâncias – e dissolvida para ressurgir em outra fissura, em uma dança contra a estratificação e a institucionalização. Segundo Bey: “A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la” (2001, p.10). Em exercícios de formas de nomadismo, as práticas intervencionistas atuam na surpresa da invisibilidade que, mediante uma ruptura poética, desequilibra um lugar para imediatamente migrar para um outro, que propõe narrativa diversa, mas impede que ela se torne absorvida e cotidiana. Como cooptar o invisível, ou o visível que desaparece ao menor movimento de interferência do poder? Como destacam Deleuze e Guattari; Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava sobre nômades. [...] Os nômades inventaram uma máquina de guerra contra o aparelho de Estado. Nunca a história compreendeu o nomadismo [...] (1996, p.46). Ao dificultar as formas de estratificação operadas pelo poder, as práticas intervencionistas emitem convites-surpresas para “dançar” com o Estado, daí a potência autônoma dos territórios criados, desfeitos e recriados no espaço urbano. Uma prática perversa e sistemática ocorre na cidade de São Paulo: em nome da higiene urbana, promove-se um processo de higienização social, materializado pela lavagem das calçadas da cidade, em especial na região central, por iniciativa da Prefeitura, que aponta seus jatos de água de reuso para a população em situação de rua. A caravana é composta por três segmentos: uma viatura da Guarda Civil Metropolitana, um caminhão de nome “cata-bagulho” e um caminhão pipa, para encerrar a “limpeza”. A descrição da prática de viés fascista contrasta com a naturalização de tal evento nas ruas de São Paulo. A Polícia, em nome da suposta desobstrução 67 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 do espaço público (público?), enquadra a população de rua tratando seus pertences, muitas vezes material reciclável organizado para ser levado a uma cooperativa como forma de geração de renda, como bagulho a ser retirado da vista social. Seguidos por agentes de colete laranja, alguns com luvas de látex e máscara hospitalar, avançam sobre os pertences, atirandoos na caçamba do caminhão comboiado pela viatura policial. Na sequência, os jatos de água. Quem não sai é atingido pela água do caminhão pipa, que exibe o seguinte aviso: “Água não potável. Evitar contato com a pele e olhos”. Simbolicamente, a mensagem é explicita: “vocês são um lixo social!”. Prática de extermínio sistemático em São Paulo? Nesse contexto, o Mapa Xilográfico propôs a criação do Bloco do 14 Pipa , uma intervenção que carnavalizou e buscou enfrentar simbolicamente a naturalização de uma política estatal de natureza higienista. Um grupo de banhistas, trajados de pés de pato, óculos de mergulho, boias, pranchas e demais elementos relacionados a um banho público, foram ao encontro do caminhão pipa em ação. Acervo Coletivo do Mapa Xilográfico. Intervenção Bloco do Pipa, Santa Cecília, São Paulo, 2011. 14 Intervenção realizada pelo Coletivo Mapa Xilográfico, com o apoio de Daniela Hernandez Solano, Angelo Flores, Daniela do Nascimento, Luciano Costa, Ana Paula Tomimori, Cristiane Gurgel, Marcelo Ferreira, Thais Bessa e Coletivo Parabelo. Na madrugada anterior, lambe-lambes espalhados pelas pilastras do minhocão15 relacionavam os agentes de limpeza urbana com o nome de um bairro elitista próximo dali, Higienópolis. A bateria intercalava sambas e marchas fúnebres, enquanto os corpos dos intervencionistas obstruíam a ação de expulsão. Ao longo do trajeto, um morador de rua integrou-se ao grupo, dançou, tocou, obstruiu a ação ao nosso lado. A rua é dele também. 69 Lambe-lambe instalado na região. Santa Cecília, São Paulo, 2011. Em janeiro de 2011, e inserida na mesma proposição, foi desenvolvida uma nova intervenção no Jardim Pantanal, às margens do Rio Tietê, extremo leste da cidade de São Paulo, comunidade fundada em razão do déficit habitacional urbano. O bairro foi tomado pelas águas, em decorrência das fortes chuvas e do transbordamento do rio Tietê. Entretanto, ao contrário dos alagamentos de anos anteriores, passaram 12 dias e as águas não baixavam. Tratou-se de um alagamento planejado, uma vez que as comportas da barragem da Penha, situada a alguns quilômetros dali, foram fechadas, aumentando o volume de água sobre a comunidade. Estando próximos ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, a expulsão das famílias da região atendia a interesses da especulação imobiliária e aos do Estado, com suas obras de embelezamento e cosmética urbana da cidade espetacular. 15 Símbolo de uma urbanização rodoviarista, o Elevado Costa e Silva localiza-se no bairro de Santa Cecîlia, região central de São Paulo. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Após o recuo das águas, o Mapa Xilográfico convidou integrantes da comunidade para a vivência do Coletivo Fluído, resultando na criação da intervenção O Barco. Construído pelos moradores do Jardim Pantanal com peças do ferro velho local, o barco zarpou pelas ruas do bairro. Em seu convés, fones de ouvido com as diferentes narrativas dos fundadores do lugar, dividindo com as crianças seus saberes e suas experiências de resistência, em busca do direito à cidade. Ao longo da navegação, atracamos em diferentes “portos”, convidando moradores para entrar na embarcação e dividir seus saberes. Um carro emparelha, buzina e seu motorista bem humorado afirma: “precisava de um desses em janeiro passado”. A subversão do alagamento planejado como acontecimento de resistência e valorização das histórias de luta por moradia. Memória, experiência, poesia e enraizamento como contranarrativa do processo de expulsão. Acervo Coletivo do Mapa Xilográfico Intervenção O Barco, Jardim Helena, Jardim Pantanal, São Paulo, 2011. As propostas intervencionistas, além de convidar a um jogo aberto lançado aos transeuntes e a uma prática autônoma experimentada nas brechas, acabam por produzir desdobramentos imagéticos no urbano planejado, ao produzir uma imagem dialética16 que, segundo DidiHuberman, caracteriza-se como “[...] imagem de memória e de critica ao mesmo tempo, imagem de uma novidade radical que reinventa o originário” (2010, p.178). Ao promover uma fricção no imaginário urbano, a imagem gerada pela intervenção provoca um instante de recognoscibilidade, uma relação do pretérito com o agora, uma imagem aberta, fulgurante, inacabada, que provoca o olhar a sua própria e singular composição, ativa no exercício de elaboração e compreensão da ruptura observada naquele momento do cotidiano. Daí a quebra, o convite, a inquietação. Nesse exercício de memória e de crítica simultâneas, escavamos infinitas possibilidades de significação de tempo e espaço de um lugar, acessando a percepção de que todos os territórios, assim como as imagens, estão abertos a reinvenções, uma esquina, uma rua, uma cidade. Como destaca Benjamin, “[...] o conhecimento existe apenas em lampejos” (2006, p.499), fulgência de conhecimento autônomo não espetacular. Na resistência luminosa das intervenções urbanas, em sua efemeridade tática ou em seus processos perenes e estratégicos, a disputa pela construção do urbano, bem como do imaginário da cidade, os contrafluxos se apresentam como reafirmação da potência da experiência humana, que na perspectiva de Didi-Huberman, apresenta o seguinte percurso: “Devemos, portanto, […] nos tornar vaga-lumes e, assim, formar novamente a comunidade do desejo, a comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em dizer o não da luz que nos ofusca” (2011, p.154). A multiplicidade de ações intervencionistas como lampejos de vaga-lumes em alternativa às homogêneas luzes do espetáculo contemporâneo são experiências de resistência, uma vez que a origem de novos enunciados, narrativas e agenciamentos são também os instantes de encontro, trocas de saberes e de afetos produzidos em oposição ao imaginário naturalizado da cidade planejada. Concepção elaborada por Walter Benjamin. “A imagem dialética é uma imagem que lampeja. É assim, como uma imagem que lampeja no agora da cognoscibilidade, que deve ser captado o ocorrido. A salvação que se realiza deste modo – e somente deste modo – não pode ser realizar senão naquilo que estará irremediavelmente perdido no instante seguinte” (BENJAMIN, 2006, p.515). 16 71 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. 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A propósito, o objetivo é identificar uma genealogia histórica desses grupos e aspectos políticos e estéticos partindo de trocas e influências mútuas entre universidades, grupos de teatros e movimentos sociais. Palavras-chave: teatro de grupo; cidade de São Paulo; universidades; movimentos sociais. Abstract: This article regards to issues related to the concept of “theater of group” and the doing of theater in the city of São Paulo in the 1990s and 2000s. It is given special attention to groups whose practices started to establish a connection to city issues mainly around the 2000s. In fact, the goal is to identify a historical genealogy of these theater groups and political/aesthetic aspects departing from exchanges and mutual influences among universities, theater groups and social movements. Keywords: theater group; city of São Paulo; universities; social movements. Por mais que digam que o conceito de teatro de grupo tenha se tornado controverso no fazer teatral atual (e para alguns até anacrônico), muitas experiências de jovens que saem das universidades e optam por trabalhar em contextos sociais precários e adversos, têm mostrado que o princípio de ação coletiva desse modo de produção artística continua sendo a melhor maneira de se “nadar contra a corrente”, no meio de uma enxurrada de detritos produzidos pela indústria cultural. Aliás, tal fato comprova, entre outras coisas, que se existem forças reacionárias atuando na formação acadêmica de jovens artistas dentro das universidades, e em cursos técnicos de teatro, elas não foram e não são suficientes para transformar boa parte dos estudantes em autômatos da publicidade que reina nas produções teatrais voltadas para o mercado de consumo. Uma rápida passada pela história do teatro feito no Brasil nos últimos 60 anos, mostra que pelo menos dois grupos são fundamentais Anderson S. Zanetti da Silva, formado em Filosofia pela Unesp de Marília-SP, mestre e doutorando em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp de São Paulo-SP, professor universitário e diretor do Grupo Teatral MATA! 17 para o surgimento do que hoje é chamado de teatro de grupo na cidade de São Paulo: o Teatro de Arena de São Paulo, e o Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Sem querer estender o assunto, cabe ao menos ressaltar como tais grupos se organizaram, para contrapor tal perspectiva com algumas experiências de práticas de teatro de grupo dos anos 2000. A fundação da companhia Teatro de Arena ocorre em 1953, por iniciativa do diretor José Renato [Pécora], que no final de 1954, com a ajuda de alguns estudantes da Escola de Arte Dramáticas (EAD), aluga um pequeno espaço na Rua Teodoro Baima, no centro da cidade de São Paulo. Depois disso, com a entrada de Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Chico de Assis e Augusto Boal, o grupo encorpa em termos de consciência política um papel imprescindível para a história do teatro político no Brasil. Apesar das limitações econômicas e do pequeno espaço teatral, o Arena passa a ser um dos principais catalizadores de novos “talentos” no universo teatral paulistano. Isso faz o grupo crescer e ao mesmo tempo aprofundar suas contradições. Depois de um tempo, Oduvaldo Vianna e Chico de Assis vão para o Rio de Janeiro trabalhar na formação do CPC da UNE. O interesse dos dois integrantes não é compatível com os pontos de vista de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, que preferem permanecer em São Paulo. Dentro do Arena as contradições continuam. Enquanto alguns integrantes passam pelo grupo e o fazem de “trampolim” para a televisão; outros, como Heleny Guariba e Izaias Almada, radicalizam a postura política e se alinham à luta armada, o que faz com que a primeira seja assassinada, e o segundo preso e torturado pela ditadura civil-militar. O senso de coletividade posto em prática nas discussões sobre os processos criativos, a insistência em temáticas relevantes para a cultura política brasileira e uma estética não submetida aos interesses da indústria cultural são, em síntese, as maiores contribuições do Arena e do CPC para o que hoje é considerado teatro de grupo. Por outro lado, mais conhecidos como criação coletiva, os processos do Arena e CPC preservam certa autoridade do dramaturgo e do diretor e, em certa medida, diferem-se dos trabalhos de grupos que começam a surgir ao longo dos anos 1980, 1990 e 2000 na cidade de São Paulo, nos quais muitos empregam o conceito de processo colaborativo. Aqui há um esforço de horizontalização no qual dramaturgo e diretor medeiam e instigam criações individuais dentro de uma totalidade da pesquisa em processo, o que faz com que os atores sejam também criadores diretos da dramaturgia e da encenação. 75 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 No que tange mais especificamente ao CPC, ao contrário do Arena que em muitos casos recebe estudantes recém formados das escolas de teatro e universidades, os artistas profissionais do CPC fazem o movimento inverso e levam tanto experimentos de vanguarda como a força da arte amadora para dentro dos centros universitários. Rapidamente, as experiências do CPC do Rio se difundem, e em várias outras universidades o mesmo trabalho passa a ser feito, o que faz surgir outros CPCs da UNE. Em razão de algumas características já mencionadas, somadas ao aparato institucional universitário e partidário, não se pode dizer que o que os CPCs fizeram em termos de teatro é o que hoje se chama de teatro de grupo na cidade de São Paulo. Entre uma coisa e outra, ou seja, entre a perspectiva de trabalho do Arena, que recebe estudantes recém formados, e a perspectiva dos CPCs, que formam politicamente os estudantes dentro das universidades, surgem ao longo das décadas de 1980 e 1990, segundo Alexandre Mate, aproximadamente 250 grupos de teatro na cidade de São Paulo18. Um dos grupos pioneiros com ligação direta com a cidade é o quase cinquentenário Teatro Popular União Olho Vivo (TUOV). Fundado em 1966 como Teatro dos Onze, ainda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o grupo apresenta as peças O evangelho segundo Zebedeu e Corinthians, meu amor, escritas por César Vieira, e depois vai trabalhar nas periferias de São Paulo. Segundo César Vieira, essa guinada nos trabalhos se dá em razão do contato com Augusto Boal que, ainda em tempos de Arena, fala em trabalhar com não atores em regiões periféricas19. Em 1979, pouco mais de uma década depois da formação do TUOV, um grupo chamado Apoena monta a peça Mãos sujas de terra, que trata da atuação de posseiros e a expulsão de camponeses de suas terras. Em 1981 o grupo monta outro espetáculo intitulado A ferro e fogo, que trata da situação do operariado nas fábricas. A última peça é censurada tanto em âmbito federal como municipal, e depois de sofrer algumas alterações, 18 A seguir, aquilo que comentamos a respeito dos grupos TUOV e Grupo Teatral Engenho parte da leitura da tese de doutorado de Alexandre Mate. Ver: Alexandre Luiz Mate. A produção teatral paulistana de 1980 – R(ab)iscando com faca o chão da história – tempo de contar os (pré)juízos em percursos de andança. Tese (de doutorado) apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008. Endereço: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-04122008-152310/pt-br. php Isso foi ouvido pelo autor do artigo em algumas palestras e debates com a participação de César Vieira, que foi advogado de Augusto Boal na época do regime civil-militar. Depois de sair do Brasil, Boal trabalhou com não atores e criou o que passou a ser conhecido como Teatro do Oprimido. 19 finalmente é apresentada. Em 1986, dadas as dificuldades enfrentadas, agora frente ao mercado de entretenimento, o grupo Apoena se une a outro núcleo teatral da Cooperativa Paulista de Teatro, o Engenho de Arte, e dessa junção nasce o grupo que hoje constitui o Engenho Teatral, que a partir de 1993 abandona o Bairro do Bixiga, região central da cidade de São Paulo, e começa a rodar pelas periferias da cidade com uma estrutura móvel de teatro. Com algumas diferenças relevantes, tais como, por um lado, o vigor do caráter amadorístico na cena do TUOV, e, por outro, a força da perspectiva histórico-dialética do Engenho Teatral, tecida dramaturgicamente a partir do contato com a comunidade interlocutora, esses dois grupos além de salvaguardarem, em certa medida, o que de mais interessante há no passado em termos de experimentação estética e política, têm uma base estrutural que representa o sumo das atividades do Arena e dos CPCs. No caso do TUOV, existe a prática constante de inserção no quadro tanto de pessoas de comunidades locais como de estudantes universitários interessados nos trabalhos do grupo. O Engenho Teatral, por sua vez, mantém um quadro fixo de integrantes formados em universidades e em cursos de teatro e desenvolve uma poética que surge da relação com o público da periferia, o qual participa das atividades promovidas pelo grupo e acompanha seus espetáculos. Na luta durante muito tempo, o TUOV e o Engenho Teatral encontram no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 novos grupos com perfil alinhado às suas jornadas e logo esse encontro culmina no Movimento Arte Contra a Barbárie20, que também conta com a participação de intelectuais e artistas de outras linguagens artísticas. No interior desse movimento, parte da categoria de trabalhadores do teatro consegue se organizar e escreve uma proposta de projeto de lei voltada à fomentação e manutenção de pesquisa de grupos teatrais com trabalho continuado. O projeto é votado e aprovado na Câmara Municipal e, em janeiro de 2002, passa a vigorar a Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, na gestão da então prefeita Marta Suplicy, do Partido dos Trabalhadores (PT). 20 Além do TUOV e do Engenho Teatral, outros grupos tiveram importante atuação no Movimento Arte Contra a Barbárie. Sem querer diminuir a importância de outros grupos atuantes no período, e apenas por uma questão de enfoque e escolha de linha discursiva, não coube citar todos os coletivos que participaram da luta pela Lei de Fomento. Para citar alguns nomes, outros grupos foram: Àgora, Cia. do Latão, Folias d´Arte, Cia do Feijão, Parlapatões, Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes e Teatro da Vertigem. 77 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Dada a consolidação e andamento do Programa de Fomento, alguns grupos que surgem pouco antes ou durante o Movimento Arte Contra a Barbárie e participam da luta e elaboração da lei ganham fôlego e se firmam no cenário do teatro paulistano. Entre esses grupos, estão a Cia. do Latão e a Cia. do Feijão. Embora os planos de trabalho desses dois grupos sejam diferentes daqueles do TUOV e do Engenho Teatral, posto que nem a Cia. do Latão nem a Cia. do Feijão são grupos de teatro amador e tampouco possuem uma estrutura móvel de teatro que atua na periferia de São Paulo. Outro aspecto que aproxima esses dois grupos, a Cia. do Latão e a Cia. do Feijão, da perspectiva histórica das práticas iniciadas no Arena e CPCs, diz respeito ao elo que as pesquisas desses grupos mantêm com alguns intelectuais presentes nas universidades, tais como Paulo Arantes, Roberto Schwarz e Iná Camargo Costa; e ao fato de alguns de seus integrantes terem saído delas, ou de cursos técnicos de teatro, e ao mesmo tempo de manterem um diálogo frequente com movimentos sociais importantes, como é o caso de alguns trabalhos realizados pela Cia. Latão com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), e da relação que a Cia. do Feijão mantêm com algumas comunidades quilombolas do litoral sul paulista. A aproximação com movimentos sociais, aliás, faz parte de uma nova conjuntura histórica que marca as práticas de teatro de grupo que começam a aparecer nos últimos 30 anos. É esse intercâmbio, inclusive, que motiva e ajuda a orientar as ações coletivas entre os grupos teatrais paulistanos. Comparado ao contexto histórico do Arena e dos CPCs, destacam-se pelos menos dois diferentes aspectos fundamentais, sendo que o primeiro diz respeitos às ações do Arena. Os integrantes desse grupo fazem algumas expedições ao Norte e Nordeste do País a fim de entrar em contato com movimentos sociais de base e assim “encontrar o povo brasileiro”, obsessão dos movimentos culturais de esquerda da época. Por outro lado, terminada a expedição, o grupo volta aos trabalhos no Arena e se depara com o dilema de sempre, apresentar e debater seus trabalhos à classe média pequeno-burguesa paulistana. Na cidade, para tentar se aproximar dos trabalhadores e da população excluída socialmente, uma alternativa ao Arena seria se alinhar a instituições como partidos, sindicatos e à UNE. Mesmo com a saída de Oduvaldo Vianna Filho, Chico de Assis, entre outros, tal fato não ocorre para o CPC. Acontece que com os desdobramentos históricos dos anos 1960 e 1970 e até o processo de democratização do país, no decorrer dos anos 1980 e 1990, ocorre gradativamente uma inversão no papel de atuação de instituições como partidos políticos, sindicatos e a UNE. Se antes essas organizações buscavam representar as bases sociais frente ao governo, posteriormente elas passam a representar o governo frente às bases sociais. Numa palavra, é por isso que a principal força do Movimento Arte Contra a Barbárie se dá mais por conta de uma organização espontânea e necessária por parte dos grupos de teatro e da formação de um coletivo de luta em comum, do que por qualquer espécie de alinhamento político a instituições partidárias, sindicais e estudantis. Outro fator importante a ser destacado é que nos anos 2000 os grupos de teatro paulistanos, diferentemente das dificuldades enfrentadas pelo Arena, encontram inúmeros movimentos sociais urbanos como canais de diálogo e de trabalho ligados diretamente às bases sociais. Com o passar do tempo, e a consolidação do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, grupos que surgem nas periferias passam a se estruturar melhor e a ter um raio de atuação mais consistente e orgânico com o público local. Esse é o caso da Brava Companhia, composta por jovens formados em teatro e em outras áreas das ciências humanas. Localizada na região Sul de São Paulo, a companhia ocupa um espaço público ocioso chamado pela Prefeitura de Sacolão, o qual servia como uma espécie de feira permanente com preços populares. Depois do espaço ser abandonado pelo governo municipal, a Brava o ocupa e passa a chamá-lo de Sacolão das Artes21. Para Antônio Gramsci, as relações hegemônicas entre as classes sociais, tanto do ponto de vista da política como da cultura, se dá pela mediação de seus intelectuais. Esses intelectuais nascem no interior dos grupos sociais que se organizam conforme a produção econômica da sociedade, e assim criam uma relação orgânica com sua classe social, dando a ela homogeneidade ideológica e política. Do lado da classe dominante, os intelectuais orgânicos tratam de organizar a produção cultural de modo a submeter todos os grupos sociais aos interesses da classe dirigente; ao passo que aos intelectuais orgânicos que representam os grupos sociais dominados, cabe o papel de trazer à consciência a necessidade histórica de superação das divisões sociais, do papel histórico dos trabalhadores nessa luta, e da importância da união das forças 21 Outro grupo de teatro que faz um trabalho parecido com o da Brava Cia. é o Grupo Pombas Urbanas, localizado no bairro Cidade Tiradentes, extremo da Zona Leste da cidade, onde ocupa um grande galpão público e lá desenvolve inúmeras atividades culturais. 79 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 populares para o surgimento de uma nova ordem social (GRAMSCI, 1999). Nada melhor para sintetizar o papel desempenhado pelo trabalho artístico da Brava Companhia de Teatro e das atividades de seus integrantes. Sem medo de atrelar a sala de ensaio e o trabalho de campo na periferia às discussões teóricas exaustivas, a Brava faz o tipo de teatro de grupo que sintetiza o que há de mais interessante no passado com o que há de mais combativo no presente. As peças da companhia, ao mesmo tempo em que usam linguagens artísticas presentes nos meios de comunicação dominantes (como a televisão), concedem um tratamento estético próprio a esse material e conseguem causar ao mesmo tempo divertimento e estranhamento crítico; ou seja, algo não muito diferente do que usar bem o velho Brecht em tempos e conjunturas atuais. A Brava e seus integrantes desempenham o papel do que Gramsci denomina intelectual orgânico, e no campo do trabalho teatral são mediadores e produtores de uma cultura contra-hegemônica. Da perspectiva do plano de trabalho, a Brava Cia. leva o “centro para a periferia” e ao mesmo tempo faz da periferia sua fonte de construção poética. É comum que ao Sacolão das Artes sejam levados intelectuais de esquerda para a realização de debates, e também de espetáculos de grupos de teatro de outros locais. O exemplo do plano de trabalho da Brava Cia. de Teatro representa práticas de muitos outros grupos paulistanos localizados nos rincões dos quatro cantos da cidade. Um deles é o grupo teatral II Trupe de Choque22, gestado ainda no período em que alguns integrantes estudavam no Instituto de Artes da Universidade Estatual Paulista (Unesp), e que depois de formados continuam os trabalhos e passam a atuar no bairro periférico São Matheus, desenvolvendo um trabalho na Usina de Compostagem de Lixo desativada do local. O interessante é que o grupo trabalha com uma perspectiva pedagógica ligada ao universo acadêmico da filosofia, chamada pelo grupo de Teatro Peripatético, que inspirada na prática aristotélica de discutir filosofia caminhando, desenvolve um trabalho de pesquisa e montagem de peça com não atores, suscitando questões filosóficas por meio do teatro e preparando intelectual e artisticamente os integrantes do grupo advindos da universidade e os da comunidade local. Essa fusão A partir desse momento serão citados os grupos que participaram da mesa: (A prata da casa se posicionando sobre) Na crença e compromisso do teatro como experimento estético-social, a força do coletivo. Evento: V Semana de Estudos Teatrais – Teatro de Grupo na Cidade de São Paulo, novembro de 2013. Os grupos e seus representantes foram: Amanda Cavalcante (II Trupe de Choque), Daniela Giampietro (Companhia Estável), Evill Rebouças (Companhia Artehúmus de Teatro), Fabia Pierangeli (Teatro Girandolá), Juliana Mado (Coletivo Cênico Joanas Incendeiam), Natalia Siufi (Grupo Teatral Parlendas). 22 entre o universo acadêmico e o não acadêmico, ao mesmo tempo em que segue uma prática histórica do teatro de grupo paulistano, fortalece política e poeticamente a II Trupe de Choque, inclusive por conta do fato de que alguns novos integrantes do grupo vêm do trabalho desenvolvido por ele. O Coletivo Cênico Joanas Incendeiam é outro grupo que segue a linha de atuação e ligação entre a universidade e as comunidades de periferia. No caso desse grupo, o plano de trabalho que dá origem à peça Homens e Caranguejos parte de uma pesquisa de campo realizada fora da cidade de São Paulo, no horizonte de “outras periferias”; quais sejam, a Ilha de Deus, em Recife, no Estado de Pernambuco, e o Boqueirão, região da baixada santista do Estado de São Paulo. Além desse tipo de trabalho ter certa ligação com a herança de práticas como a do Arena e suas expedições, o resultado estético, de alguma maneira, acaba reverberando no universo social paulistano, em parte por conta do grande fluxo migratório de nordestinos, e em parte por conta da pobreza e da falta de assistência social encontradas nessas regiões e que na capital paulista ganham novas “roupagens”. Outro grupo que em sua gestação tem contato com a universidade, e que desenvolve um plano de trabalho semelhante ao do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam é o Grupo Teatral Parlendas. Depois de alguns integrantes saírem do Instituto de Artes da Unesp e ganharem alguns editais públicos, como o Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (Proac), e o Fomento ao Teatro, o Parlendas se fortalece e amplia seu quadro artístico, agora com algo advindo de novas parcerias fora do âmbito acadêmico, e monta a peça Marruá, nome que designa touro bravo que foge do rebanho e vira bicho selvagem perdido na mata. A pesquisa da peça se dá por meio de expedições feitas ao Norte do Brasil e conta a saga do ciclo da borracha e a violência em solo de coronelismo tardio. Depois de Marruá, o Parlendas, que conta as histórias do outro lado da história, estabelece parceria com o Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes e ocupa a sede compartilhada Clube da Comunidade do Patriarca (CDC Vento Leste) que fica no Jardim Triana, Zona Leste da cidade. Por essa aproximação, o olhar do grupo se volta para a herança histórica do coronelismo no norte do país. A partir dos recursos do Fomento ao Teatro, o Parlendas realizou um trabalho na Comunidade da Favela da Paz, localizada ao lado da nova Arena Corinthians, o “Itaquerão”, e, a partir daí, desenvolveu o projeto Cidade Em[traves] Estad[i] de Sítio; com o intuito de contar o outro lado da história da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, a história da expropriação de residências de pessoas pobres 81 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 e a fartura dos gigolôs do futebol, quase um equivalente ao coronel do sertão, que na cidade veste o terno dos empreiteiros, políticos e dirigentes do esporte mais popular do País. Trabalhos como o do Parlendas impressionam por conta da capacidade de articulação social, de combatividade política e da ligação disso à linguagem poética de grupos que surgem e se desenvolvem dessa maneira. Além disso, o Parlendas, assim como outros grupos, representa uma capilaridade crescente na atuação de coletivos formados nos últimos quinze anos que, percebendo a necessidade de ações culturais nas periferias, estabeleceram parcerias com as comunidades locais e se distribuíram pelas regiões metropolitanas da cidade de São Paulo. A cidade de Francisco Morato, por exemplo, tida como uma das mais violentas e menos assistidas socialmente na Grande São Paulo, desde 2007 abriga o grupo Teatro Girandolá. Semelhante ao que a Brava Cia. de Teatro faz na Zona Sul da cidade de São Paulo, o Girandolá promove inúmeras atividades culturais na região onde atua, tais como saraus de poesia e literatura marginal, oficinas culturais, shows musicais e peças teatrais. Todas as atividades, inclusive, recebem artistas de outras regiões do Estado de São Paulo e cumprem um papel não feito pelo Estado, que é o de facilitar o acesso à arte e à produção cultural. Depois de montar uma peça voltada ao público infantil apresentada entre 2007 e 2009, em 2010 o Girandolá estreia o espetáculo Aruê, voltado ao público adulto, que explora manifestações religiosas afrodescendentes relacionadas à Pombagira e ao universo do feminino e do selvagem. No segundo semestre de 2011, o Girandolá ganha o edital de produção de espetáculo inédito do Proac e com base em outra pesquisa ligada aos povos originários do Brasil, agora voltada à cultura indígena, o grupo realiza um trabalho de campo com uma comunidade indígena Guarani Mbya, no bairro do Jaraguá, Zona Noroeste da cidade de São Paulo, e monta o espetáculo Ara Pyau – Liturgia para o povo invisível, estreado em maio de 2012. O grupo Girandolá se depara com um “outro morador da periferia” da cidade de São Paulo, no caso o índio. No meio do que se costuma entender como periferia, regiões pobres e distantes do centro, e do que se costuma entender como o morador da periferia, trabalhador assalariado geralmente com baixa escolaridade, a região das aldeias Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, no Jaraguá, destoa disso e abriga um “povo invisível” aos olhos da sociedade, da imprensa e das autoridades públicas. O trabalho do grupo Girandolá em relação a essa comunidade indígena, não só contribui para destacar a luta e resistência desse povo, mas para mostrar que a periferia é feita de muitas periferias. A periferia da Grande São Paulo, no caso, nem é homogênea do ponto de vista étnico, nem se limita à espacialidade geográfica, posto que o não assistido social e culturalmente, o pobre, o morador de rua, o negro e o migrante nordestino, como outros “povos invisíveis”, nem sempre habitam, necessariamente, regiões longe do Centro da cidade; esses “povos invisíveis” também moram nos becos e cortiços das regiões centrais, debaixo de viadutos e em abrigos de associações beneficentes. Aqui começa o trabalho de sentido inverso em relação à periferia. Se há uma percepção que leva alguns grupos de teatro a agirem sob força centrífuga na direção do centro para a periferia, há também um movimento centrípeto de outros grupos que desvelam o que é periferia no centro. A Companhia Estável de Teatro, por exemplo, curiosamente migra de uma cidade da Grande São Paulo com condições sociais opostas às de Francisco Morato, onde atua o Girandolá, e se aproxima da região central da cidade de São Paulo para trabalhar com “outro tipo de povo invisível”; no caso, moradores de rua que procuram abrigo no Arsenal da Esperança, instituição filantrópica de assistência social ligada à Igreja Católica, localizada entre o Brás e a Mooca. Todos os integrantes fundadores da Cia. Estável estudaram na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, cidade seguidamente indicada com o melhor IDH do País e com o 48º maior PIB brasileiro. Ainda fazendo o curso profissionalizante de teatro, em 2001, eles começam a consolidar o que viria a ser um grupo profissional e independente da escola. Terminado o curso, os integrantes dão continuidade aos trabalhos e começam a se envolver com mobilizações políticas do movimento teatral paulistano, o que faz o grupo criar um projeto de ocupação do Teatro Flávio Império, localizado na Penha, Zona Leste da cidade de São Paulo. Aprovado o projeto no edital da Secretaria Municipal de Cultura, a Cia. Estável dá início a primeira meta a ser alcançada: mobilizar a comunidade local e trabalhar na formação de público, uma vez que o Teatro Flávio Império estava há muito tempo sem atividades, fato este, inclusive, que fazia com que muitos moradores nem soubessem que ali era um teatro. No final do ano de 2004, depois de tentar e não conseguir ganhar o que seria o segundo edital de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, a Cia. Estável vê a troca de gestão municipal fechar as portas para ocupações em espaços públicos e acaba tendo que sair do Flávio Império. 83 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Depois de passar por um ano difícil em 2005, a Cia. Estável dá início a sua parceria no Arsenal da Esperança e começa os trabalhos em janeiro de 2006. No mesmo ano o grupo tem um projeto aprovado pelo Fomento e mergulha em pesquisas de fôlego em relação a teorias políticas e estéticas. Em 2007 a Cia Estável faz a montagem do espetáculo Homem Cavalo & Sociedade Anônima, trabalho no qual transparece a maturação da pesquisa e a consolidação de um teatro de grupo, que nasce da relação com movimentos sociais, de estudos aprofundados com intelectuais, da parceria com outros coletivos e do uso poético da realidade local como proposta estética. A palavra é (des)territorializados, como usada por Alexandre Mate23. Sem estar em “seu território”, quer dizer, ao perder o chão de seu território, à semelhança de perda significativa daquilo que ocorre com a tribo Guarani Mbya, os nordestinos que vêm trabalhar em São Paulo passam por um processo de perda de identidade cultural em nome de postos de trabalho subumanos. O homem cavalo é a alegoria daquele que puxa a carroça de uma Sociedade anônima. Absurdamente, tal alegoria não poderia estar mais perto da realidade. Por meio de relatos dos homens abrigados no Arsenal da Esperança, o espetáculo da Cia. Estável conta a história de muitas histórias vividas por eles: a busca por uma vida melhor em São Paulo, o trabalho desumanizador, a distância e perda da família que fica para trás, o desemprego e finalmente a indigência. Tudo isso é arrastado pelo Homem Cavalo, que puxa uma carroça na qual essas histórias se misturam com os papelões e marcas publicitárias estampadas nos recipientes vazios a serem trocados por uns “trocados” que vira comida e cachaça. Esses homens se tornam invisíveis socialmente na medida em que não estão no espaço de onde vêm, o Nordeste, nem no da metrópole, onde estão e não encontram lugar para ficar. Os viadutos, as praças e os edifícios públicos ociosos tornam-se os únicos lugares onde os pobres, indigentes e desempregados conseguem ocupar para não deixarem de existir totalmente. Isso parece fazer uma espécie de movimento “dialético regressivo”24, no qual a influência de um homem desumanizado sobre o Ver o artigo de Alexandre Mate em: Iná Camargo Costa (org.). Companhia Estável. Das Margens e Bordas – Relatos de interlocução teatral. São Paulo, 2011, p. 82. 23 Aqui o termo “dialética regressiva” é usado livremente apenas para ilustrar um movimento oposto ao do desenvolvimento da civilização e das faculdades mentais do homem, o que levaria, consequentemente, a um tipo de barbárie diferente daquela advinda da razão instrumental, que faz a separação do homem e do mundo e o não reconhecimento dele em relação às coisas. No caso, “dialética regressiva” significa a negação completa do homem a sua condição humana num espaço que é a sombra do que é tido pela sociedade como espaço habitável. 24 espaço, e a influência de um espaço desumanizado sobre o homem, cria um homem e um espaço invisíveis, dos quais nascem a criminalidade, a violência e a barbárie como únicas formas possíveis de se alcançar o contrário; ou seja, a visibilidade social. Dentro da perspectiva histórica de se usar a arte contra a barbárie, muitos fazedores de teatro de grupo percebem que para tentar inverter essa “dialética regressiva” de desumanização do homem/espaço, os territórios ociosos da cidade de São Paulo e sua ocupação para o fazer artístico seriam imprescindíveis para a humanização do ser social paulistano. Um desses grupos a trabalhar com espaços alternativos e ociosos é a Companhia Artehúmus. Assim como a Cia. Estável, a Artehúmus também nasce no ABCD paulista, só que na cidade de Santo André, e depois migra para a capital. Nos anos 2000, depois de tomarem contato com Antônio Araújo e Luís Alberto de Abreu, na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), a Cia. Artehúmus direciona seu olhar para formas de dramaturgia que nascem da composição sócio-histórica de certos espaços públicos. Dessa perspectiva do olhar voltado para espaços públicos, no caso, inóspitos, a Cia. Artehúmus cria a peça Evangelho para lei-gos, realizada em 2004 no banheiro público da Galeria do Viaduto do Chá, com financiamento do Programa de Valorização de Iniciativas Culturas da Secretária Municipal de Cultura de São Paulo - VAI. A proposta da peça é mostrar a vida de pessoas sem moradia que passam a habitar um banheiro público desativado. O público pode acompanhar a peça escolhendo a opção de ver as ações pelas frestas debaixo das portas, ou por um plano superior a elas. Essa experiência da Cia. Artehúmus, no Centro da cidade de São Paulo, num dos lugares por onde transitam milhares de pessoas por dia, comprova a invisibilidade do homem/espaço desumanizados. O lugar onde se despeja os detritos humanos não usados é o mesmo que depois vira morada de homens que são tratados como detritos sociais. É o avesso daquilo que na superfície do Viaduto do Chá é mostrado: lojas e marcas cobiçadas por um público que não quer olhar o chão onde pisa; isto é, o outro lado do território comercial é a (des)territorialização de um povo, da sua dignidade e identidade cultural. O conceito de dramaturgia em processo usado pela Cia. Artehúmus em relação à pesquisa do grupo em espaços não convencionais, por conta do seu caráter ensaístico, e principalmente por entender a interferência das pessoas e dos fatos locais onde se desenvolve a poética teatral, bem como 85 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 outras questões levantadas aqui, é mais um elemento que caracteriza e ajuda a entender o fazer artístico do que é teatro de grupo no novo cenário paulistano. A proposta de transitoriedade construída a partir das leis de mercado, que quer lançar a ideia de espaço concreto a um plano metafisico, não engana os grupos de teatro que enxergam a permanência do que está ali, no território intransitivo da exclusão social. Aliás, isso pode ser içado ao plano da consciência social tanto por meio da barbárie como da arte. Para terminar, dá para dizer que fazer teatro de grupo no novo cenário paulistano implica, inevitavelmente, em se produzir uma arte contra qualquer tipo de mercantilização da cultura. Pelo menos é isso o que mostra as origens históricas do atual teatro de grupo feito na cidade de São Paulo, desde a herança do Arena e CPCs, ao contato com as universidades e pensadores de esquerda, até sua ligação orgânica com os novos movimentos sociais de base que, consequentemente, fomentam a pesquisa de novas linguagens e o surgimento de novos grupos. Referências bibliográficas CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes – e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988. CARVALHO, Sérgio (org.). Introdução ao teatro dialético. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009. COSTA, Iná Camargo (org.). Companhia Estável. Das margens e bordas – relatos de interlocução teatral. São Paulo: Cia. Estável, 2011. _________. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2006. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (orgs.). Teatro e vida pública – o Fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Editora Hucitec & Cooperativa Paulista de Teatro, 2012. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere (V. 2). Rio de Janeiro: Record, 1999. MATE, Luiz Alexandre. A produção teatral paulistana de 1980 – R(ab) iscando com faca o chão da história – tempo de contar os (pré)juízos em percursos de andança. Tese (de doutorado) apresentada ao Departamento de História Social – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2008. http://migre.me/qC20N Endereços eletrônicos Companhia Artehúmus: http://artehumus.blogspot.com.br/ Companhia Estável de Teatro: http://territorioestavel.blogspot.com.br/ Coletivo Joanas Incendeiam: http://migre.me/qC273 Engenho Teatral: http://engenhoteatral.wordpress.com/ Grupo Teatral Parlendas: http://www.grupoparlendas.com/ Teatro Girandolá: http://www.teatrogirandola.com.br/ CARVALHO, Sérgio. O teatro de grupo em São Paulo e a mercantilização da cultura. IN: http://www.sergiodecarvalho.com.br/?p=1804 (Texto extraído da internet em 24.04.2014). 87 Homens e caranguejos: relato de uma experiência, por Juliana Mado, Luciana Lyra, Camila Andrade, Beatriz Marsiglia e Letícia Leonardi25 Resumo: Neste artigo busca-se retratar o processo de pesquisa e criação do espetáculo Homens e caranguejos, inspirado no romance homônimo de Josué de Castro. Com um histórico relativamente curto, mas já permeado por uma intensa vivência em campo de pesquisa e em diferentes palcos do País, o Coletivo cênico Joanas Incendeiam e a encenadora e dramaturga Luciana Lyra adentram as memórias e trilham com as palavras, os becos e estradas desta caminhada. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Palavras-chaves: Homens e Caranguejos, Josué de Castro, Mitodologia em Arte, Artetnografia Abstract: This article is looking for the portray or process research of the play Man and Crabs inspired by Josué de Castro romance’s. With a relatively short historic but has already permeated by an intense experience in the search field and at different stages of the country, the Coletivo Cênico Joanas Incendeiam and the director and playwright Luciana Lyra goes to the memories of process and tread with words, alleys and roads of this walk. Keywords: Man and Crabs, Josué de Castro, mythodology in art, artethnography 25 Juliana Mado é atriz, narradora de histórias com mestrado em Artes cênicas (I.A./ UNESP), sua pesquisa é voltada à expressividade do narrador. Atua como produtora e fundou a Cia. Ju Cata-histórias. Luciana Lyra é atriz, performer, encenadora, diretora e dramaturga. Pós-doutoranda em Artes Cênicas (UFRN), pós-doutora em Antropologia (FFLCH/USP), doutora e mestre em Artes Cênicas (IA/Unicamp). Camila Andrade é atriz, diretora, arte-educadora e iluminadora. Graduada em Licenciatura - Artes Cênicas pela UNESP, é cofundadora do Coletivo Quizumba, onde atua como diretora. Beatriz Marsiglia é atriz e arte-educadora. Graduada em Licenciatura - Artes Cênicas pela UNESP, atualmente integra a equipe de formação de professores do SESI-SP. Letícia Leonardi é atriz, arte-educadora e mestre em Artes Cênicas pela UNESP. Atualmente integra a equipe de educadores do SESC Belenzinho. Beatriz Marsiglia, Camila Andrade, Juliana Mado e Letícia Leonardi fundaram o Coletivo cênico Joanas Incendeiam, onde trabalham como atrizes e produtoras. Foto de Alícia Pires. Coletivo Cênico Joanas Incendeiam. Atrizes da Companhia em Homens e caranguejos. Teatro, a arte do encontro. Sim, acreditamos que teatro só acontece se houver diversos encontros: o de pessoas afinadas por ideais e interesses estéticos parecidos, o encontro com uma obra que traduza em alguma medida as inquietações dessas pessoas – mesmo que essa obra tenha que ser gerada pelo próprio conjunto de pessoas –, o encontro de meios ou metodologias que possam servir à estetização dessa obra, o encontro de viabilização financeira para sua realização e por fim o encontro que, via de regra, dá sentido a todo o caminhar: o encontro com o público. Homens e caranguejos foi feito não menos que dessa matéria: encontros. Considera-se aqui que todo encontro pressupõe confronto entre dois ou mais lados - em cada um deles: histórias, certezas, dúvidas, vontades, janelas abertas e janelas fechadas. O encontro entre as pessoas se deu na caminhada tateante e por vezes inusitada da vida. O ponto inicial foi o curso de graduação em comum entre as atrizes do Coletivo, o extinto curso de Educação Artística – habilitação em Artes Cênicas, da UNESP. Ali, vivemos diversos pequenos grandes processos, ali as afinidades e os afetos em comum surgiram e vivemos juntas a experiência de participar, por quatro anos, do grupo Atrás do Grito de Teatro, responsável pelo projeto de extensão Teatro didático daquela universidade, por mais de quinze anos. 89 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Algum tempo depois nos reunimos novamente. Dessa vez só nós: Beatriz Marsiglia, Camila Andrade, Juliana Mado e Letícia Leonardi, à convocação desta última. O que nos movia era o desejo de fazer teatro com quem confiávamos, com quem tínhamos a liberdade e a vontade de nos colocar, não mais que isso. Assim, a proposta de Juliana, de trabalharmos a partir de Homens e caranguejos, o romance que serviu de base para um exercício cênico durante a faculdade, foi abraçada. O encontro com Josué de Castro havia se dado anos antes, por meio da leitura do seu único romance, Homens e caranguejos. Nele podemos ler “um prefácio um tanto gordo para um romance um tanto magro” (CASTRO, 2007, p.9), em que Josué conta a sua própria história de aprendizado com os caranguejos, com os mangues de Recife, seu encontro com o fenômeno da fome. O tema deste livro é a história da descoberta que da fome fiz nos meus anos de infância, nos alagados da cidade do Recife, onde convivi com os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livro de ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife (CASTRO, 2007, p. 10). O romance de fato é magro, ou melhor dizendo, seco, numa alusão metafórico ao sertanejo: esguio, carne pouca, o suficiente para obter a energia e agilidade necessária na lida do sertão, de pouca fala, o suficiente para dizer o essencial. Essa escrita seca e essencial também é marcante em Geografia da fome (CASTRO, 2010), obra que foi um marco no desvelamento dos processos geográficos, biológicos e sociais que definem a fome no Brasil. Neste livro de cunho científico, Josué de Castro se debruça com tamanho afinco na compreensão desses processos, sobre os quais parece colocar uma lente de hiper-realidade. É justamente nesse método de descrever e analisar com tamanho detalhismo e clareza cada região do País e seus povos, passando cada qual por suas diferentes fomes, que se encontra a sua poesia. No romance Homens e caranguejos, as histórias são fragmentos da vida de um Menino26 de 11 anos, num bairro do Recife, fincado no mangue sobre palafitas, nos idos de 1950, a Aldeia Teimosa. Esses fragmentos são reflexos poéticos da enorme pesquisa de Josué de Castro sobre o 26 A personagem do livro se chama João Paulo, mas na dramaturgia da peça ganha o nome de Menino. fenômeno da fome, numa construção mosaica que une pessoas - mulheres, homens e crianças - do imaginário e da experiência de Castro, a beleza da luta dessas figuras e a realidade triste e hostil que os recebe na metrópole. Procedimentos metodológicos e viabilização A ideia de sair do livro, procurar esses lugares e seus pares na metrópole paulistana, confrontar nossos sentidos com o mesmo campo em que imergiu Josué de Castro, acabou nos levando ao encontro de Luciana Lyra, que veio a ser encenadora, diretora e dramaturga em Homens e caranguejos. Sua pesquisa acerca do que intitula Mitodologia em Arte para o trabalho de cena, nos instigou, exatamente por sugerir um caminho para o processo de criação, onde arquétipos e mitos são investigados em sala de ensaio, em duas frentes: num processo de exposição do sujeito-artista ao que de fato o inquieta e num processo de mediação com os personagens e o universo da obra-base de criação. O conceito da “mitodologia em arte” foi elaborado durante o doutorado de Luciana Lyra em Artes Cênicas, na UNICAMP, e é um complexo que parte do si mesmo (o artista) para galgar o outro (a comunidade). Propõe uma arte de existência, destacando-a num patamar não só estético, mas ontológico, capaz de investigar a natureza do agir e dos modos de ser do artista, de desvelar suas potencialidades mais altas. O complexo mitodológico que Luciana Lyra defende, a princípio aplicável a todos os campos artísticos, é um caminho em que o artista aperfeiçoa o pluralismo das imagens colhidas em seu trajeto antropológico27. Com inspiração primeira na ideia de Mitodologia, cunhada por Gilbert Durand (1990), a Mitodologia em Arte lida com forças pessoais que movem o atuante na relação consigo mesmo e com o campo, num processo contínuo de retroalimentação. Da perspectiva durandiana e seus predecessores estudiosos do imaginário, entendemos que o ser humano tem uma vocação mitológica e ritualística, performática, como também aponta Victor Turner (2005) em seus estudos sobre a Antropologia da Experiência. 27 Conceito desenvolvido por Gilbert Durand na sua Antropologia do Imaginário. O trajeto antropológico deve se instalar no intervalo de reversibilidade entre a cultura e o natural psicológico. Assim, temos o imaginário, enquanto um reservatório antropológico, onde se é possível recortar esquemas, trajetos, a partir de imagens que são dadas pelas culturas ou pelas análises psicológicas. 91 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 No contato com o imaginário elaboramos o ato de ver o que hoje nos cativa e provoca, nossa máscara, ligamo-nos à raiz mesma do fenômeno performático e suas possibilidades de reconhecimento humano, relacionando-o ao trajeto da cultura, por meio do que intitulou de Artetnografia, conceito que também acabou por cunhar em doutoramento (2011) e pós-doutoramento em Antropologia (USP, 2013). A Artetnografia é pressuposto fundamental à Mitodologia e se desvela justamente no trânsito entre o eu e a alteridade, do artista ao meio. A ideia da jornada artetnográfica não é capturar uma realidade para dramatizá-la, dramatizar dramas sociais e políticos, também não é elaborar modos de dramatizar observações e argumentos sobre a vida pessoal, social e cultural, nem se ocupa de representar literalmente fontes da realidade sociocultural. A Artetnografia constitui-se como um operador que promove contaminação entre artistas e comunidades. Sendo que estas são delimitadas a partir das dinâmicas pessoais dos artistas no processo de criação. Para a nossa sorte, quando a procuramos, Luciana Lyra estava justamente empenhada nos meandros da investigação da Artetnografia. Sobre o ator artetnógrafo, a pesquisadora complementa: As experiências de campo por mim orientadas vêm afirmando que o artetnógrafo desvela-se como um ator de f(r)icção, uma espécie de cartógrafo que vai traçando paisagens na relação com o outro. Longe de seguir uma reta de fatos, revelando-se em pedaços, em justaposições instáveis, onde a realidade não é um dado somente, a realidade transcende, atingindo a subjetividade dos sujeitos, ou seja, esse princípio cartográfico vai além do traçado de paisagens materiais (LYRA, 2012, p.46). O encontro com o trabalho de Luciana nos animou em direção a algo que já vislumbrávamos, mas para a qual ainda não havíamos de fato descoberto um caminho: a ida a campo. Como educadoras, Juliana e Camila atuavam no programa Fábricas de Cultura da Secretaria de Estado da Cultura, de São Paulo, na comunidade da Fazenda da Juta – Sapopemba, Zona Leste da cidade. Em 2010, esse bairro estava passando por transformações arquitetônicas revolucionárias: o lugar, que antes era um morro invadido cheio de barracos, havia recebido através de projetos do governo, prédios populares; isso depois de muitas lutas da comunidade e dos movimentos por moradia da Zona Leste. Por conta da aproximação das atrizes-educadoras com a comunidade, decidiu-se iniciar a pesquisa artetnográfica no lugar. Orientadas pela encenadora, íamos a campo com “missões”. Estávamos lá com os olhos, ouvidos, corpo todo atento, antenado. Fazíamos visitas com foco nos sons do lugar, nos cheiros, nas histórias. Conhecíamos “personagens” e suas histórias, voltávamos para a sala de ensaio transformadas, tocadas. Era um turbilhão de sentimentos e sensações. Cada vez que líamos o romance, as imagens que criávamos eram alimentadas pelo que víamos em campo. Nessa fase em sala de ensaio, também estávamos imersas nos procedimentos da Mitodologia em Arte28, estávamos nos expondo, rasgando máscaras, “abrindo as pernas” para o processo. E isso nos deixava ainda mais sensíveis para o campo. Mas esse início não foi nada fácil. Sem incentivo financeiro, o processo caminhava muito lentamente, dependíamos de nosso pouco tempo entre um trabalho e outro para nos encontrarmos e qualquer investimento no processo saía de nosso próprio bolso. Éramos um grupo novo em seu primeiro processo com essa formação e havíamos nos arriscado, convidando alguém para trabalhar sem dinheiro algum. Assim, nos arranjávamos ao velho modo brasileiro de se fazer teatro. Com uma das atrizes cursando a pós-graduação e sendo todas alunas egressas do I.A., conseguimos um apoio importante da universidade que nos cedeu uma sala para ensaio, fundamental para o início do processo. Começamos então a ir atrás de incentivos: nos inscrevemos em todos os editais possíveis que pudessem fomentar a montagem de nosso sonho e nos ajudar a erigir o trabalho. Iniciamos as escritas em 2010 e a boa notícia veio em 2011, quando fomos contempladas pelo edital Proac de montagem inédita. Foi de fato uma grande alegria saber que estávamos tendo a chance de transformar dinheiro público em produção teatral profissional, estética e politicamente consciente, para com ela dialogar com públicos diversos, a preços populares ou mesmo de graça. Estávamos mesmo determinadas e confiantes, tanto que antes de sair o prêmio, havíamos feito uma viagem para Recife, por nossa conta e risco, para mergulharmos na lama que alimentou Homens e caranguejos. Depois, com o Proac, fomos mais uma vez ao Recife em caráter de pesquisa e outras três vezes para apresentar o espetáculo, já viabilizadas Os procedimentos da Mitodologia em Arte não estão isolados como um conjunto de práticas, mas foram compostos a partir de pressupostos e princípios norteadores, sem os quais não existiria. Os dois pressupostos foram intitulados, Artetnográfico e Lúdico. Os princípios em número de três são: o Princípio Narcísico, o Princípio Alquímico e o Princípio Místico. Os procedimentos desta Mitodologia surgem, à priore, em três grandes grupos de jogos seguindo a jornada do herói, quais sejam: Ritos de Partida, Ritos de Realização e Ritos de Retorno (LYRA, 2011) 28 93 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 por outras fontes29. Ilha de Deus e Boqueirão Em São Paulo, dando continuidade à proposta de ir ao encontro do beira-rio daqui, traduzindo-se como o beira-mangue de lá – e muitas vezes como uma extensão da emigração de fato - encontramos o Boqueirão. A pesquisa na Fazenda da Juta encontrou diversas barreiras e os caminhos nos levaram para a favela do Boqueirão, que fica ao lado da escola onde Beatriz lecionava, no Jardim da Saúde, Zona Sul de São Paulo. Quando lá chegamos pela primeira vez, havia acontecido há poucos dias uma ação de despejo da prefeitura: à beira do córrego, que é um braço do rio Tamanduateí, diversas casas com janelas e paredes destruídas, casas ainda com as marcas de quem procurava morar com dignidade – janelas novas, paredes pintadas, restos de móveis, camas, colchões. Do outro lado da rua, os que por pouco ainda se salvavam, nos fitavam reticentes. A cada beco, casas sobrepostas, algumas janelas e portas abertas mostravam o colorido e a vida das casas, reluzentes com os incontáveis televisores. No córrego, a água era um detalhe: pilhas de entulho e, naquele dia de inverno, o carro que havia sido queimado esfriava placidamente. Enquanto isso, logo ali, do outro lado do córrego, um condomínio de luxo se erguia. No Boqueirão conhecemos Neide, Luzia, Cristina, Valter, os filhos tantos, tantas histórias, quase todos imigrantes do nordeste de Josué de Castro. Em Recife, fomos para a Ilha de Deus, um bairro que, por nossos estudos acreditamos ser o mais próximo de onde seria de fato a fictícia Aldeia Teimosa. Niltinho, que viria a ser o diretor musical do espetáculo foi nosso intermediador com a comunidade, nosso Hermes. Por meio de sua amizade com o povo da Ilha, conhecemos Jó, Beró, Tânia, Edson, Romero, Sandra, Silva, Felipe, Vitor e outros tantos. Jó foi sempre nosso principal anfitrião, navegando conosco em sua canoa por diversos pontos do imenso rio Capibaribe. Muita água, muito verde, muitas raízes expostas do mangue, muito lixo. Um arsenal de sacos plásticos, garrafas pet, embalagens de todo tipo salpicam a paisagem, mas também fazem o papel de fonte de renda Em 2012, o projeto de circulação pelo norte e nordeste do país foi contemplado com o prêmio Myriam Muniz de Teatro, da Funarte. A circulação se deu em 2013, quando também a peça ficou em cartaz no Teatro João Caetano, em São Paulo, e foi selecionada para participar do 16o Festival Recife do teatro nacional. 29 para Jó, que havia retirado e vendido toneladas de material reciclável naquele mês de julho. O ciclo não é mais o do caranguejo, relatado por Josué – caranguejos que alimentam pessoas, que com seus excrementos misturados à lama, alimentam caranguejos. O novo ciclo recebe o peso do material descartado pela grande Recife e tem uma pequena porcentagem sua transformada em sustento para as famílias do mangue. A despeito de tantas outras comunidades à beira do mangue (o Coque, o Bode Preto etc.), as palafitas na Ilha de Deus já são um tanto esparsas. Tida como um dos objetos políticos do governo local, a Ilha vem sendo gradativamente ocupada por construções de prédios populares, o que divide a comunidade entre os que são a favor e os que são contra, preferindo manter o quintal, o viveiro de camarão, o coqueiro, ainda que de forma muito precária em se tratando principalmente de saneamento. A Ilha foi para nós o paraíso dos paradoxos. Lá nos sentimos muito bem, o lugar é lindo, com todos os antagonismos possíveis: natureza, beleza e lixo, vida e morte fervilhando na lama, pessoas receptivas e sem o menor medo da vida, casas precárias, porcos e crianças dividindo a mesma água. No saldo da memória gravada no corpo, uma sensação de paz. Em duas viagens que fizemos para lá, no intuito da pesquisa, não passamos mais que dez dias na Ilha de Deus. Porém, esse é um daqueles casos em que o tempo se retira e deixa os sentidos e as relações tomarem a forma e o tamanho que for preciso para produzir uma experiência. Relações-rizoma Na trama da construção teatral, urdida por essa experiência e pelos meandros da Artetnografia, muitas questões perpassaram. A questão da horizontalidade das relações é tema recorrente nas discussões do grupo. Antes de ser tomada como uma utopia, ela deve estar de fato em pauta, não só nas conversas, mas na atitude de cada um. Obviamente essa horizontalidade não pressupõe igualdade, em seu sentido mais inocente, mas sim uma vigilante negativa a toda possibilidade de subestimar a capacidade de criação do outro, criação como pensamento, como arte, como gesto, como o impensável e o não previsível. E quem é esse outro? No processo aqui relatado, ele deveria estar em três “lugares”: 1) comunidade artetnografada, 2) equipe de criação e equipe técnica, 3) público. 95 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Jacques Rancière ilumina essa questão e nos inspira com seu texto “O espectador emancipado”, utilizando-se de exemplos no teatro e na educação30: Os espectadores vêem, sentem e entendem algo na medida em que fazem os seus poemas como o poeta o fez, como os atores, dançarinos ou performers o fizeram. O dramaturgo gostaria que eles vissem esta coisa, sentissem este sentimento, entendessem esta lição a partir do que eles vêem, e que partam para esta ação em consequência do que viram, sentiram ou entenderam. Ele parte do mesmo pressuposto que o mestre embrutecedor: o pressuposto de uma transmissão igual, não distorcida. O mestre pressupõe que aquilo que o aluno aprende é precisamente o que ele ensina... O paradoxo do mestre ignorante está aí. O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente procurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do ensinamento do mestre. Mas ele não aprende o conhecimento do mestre (RANCIÈRE, 2010, p. 116). Como seres humanos tateantes, imbricados num sistema global de embrutecimento, é claro que poucas vezes de fato conseguimos abrir espaço para este campo da horizontalidade. Mas tê-la em mente, discutila, fomenta-la por meio do exercício da colaboração, no trabalho de grupo, é no mínimo instigante. Meandros de uma encenação31 Homens e Caranguejos procura estabelecer uma linha contínua entre o mundo do sertanejo e a marginália urbana das favelas. O sertão, o grande outro da civilização tropical, de onde partem o Menino e seu Pai, antecede a migração para a cidade destinada, para o mangue paradisíaco, a grande mãe que tudo dá, caranguejo e casa, mas é movediça e inconstante. No perigoso labirinto do mangue e das favelas, a performance procura se largar, alcançando sua dimensão mítica. O Menino, O Pai, Cosme, O Padre, Chico (o barqueiro) e Idalina, passam de personagens do livro a arquétipos, personas, dilatando a visão pré-determinada que emoldura o retrato da pobreza como coitada e explorada, para encontrar justamente aí, seu calibre mitológico, os lumes de dignidade e potência. 30 Neste texto, assim como no livro O mestre ignorante, Rancière parte das concepções do professor francês Joseph Jacotot. 31 Trecho do programa do espetáculo Homens e Caranguejos, redigido por Luciana Lyra. A encenação é uma estratégia de guerrilha, alimentada não somente por Josué e pelas comunidades, mas afetada por todo um tempo marcado por pensadores e artistas, outros sonhadores em busca da revolução social. O teatro de Brecht na nossa dramaturgia; o cinema novo e convulsivo de Glauber Rocha, os parangolés e penetráveis de Hélio Oiticica, na cenografia e na indumentária, vieram potencializar a cartografia cênica, afetando-nos numa insurreição contra as gritantes diferenças na sociedade brasileira, embaladas também pelas influências do manguebeat de Chico Science e do rap de Sabotage que nos guiaram na criação da trilha sonora. Entende-se o espetáculo como guerrilha. Uma guerrilha que procura saída pelo mito e pela poesia, onde comunidades e atrizes são sujeitos de discurso, sujeitos de desejos, atuantes no processo social. A performance procura uma escrita de nós mesmos, de nossa sociedade barroca e, em fragmento poético, ali, capturada, procura o confessional e o lírico, onde o desejo de morte acompanha insistente diante da impotência. A poesia e o lirismo são puros anseios de transformação. Performar Homens e caranguejos é desvelar a placidez de charco, unificada no ciclo do caranguejo, é descortinar as famílias Silva, que vão vivendo com sua vida solucionada, numa marcha até a morte. Aquele corpo-lama que deixou de viver seguirá as etapas do verme e da flor, etapas demasiado poéticas, cheias duma poesia soterrada no mais íntimo do mangue ou mesmo sob o concreto das grandes cidades. De certa forma, o auge da ida aos campos, o desdobramento nos laboratórios mitodológicos em sala de ensaio para montagem e as apresentações de Homens e Caranguejos, foi perceber como a Artetnografia configurava-se na experiência. Como as cores, matérias, tons e discursos nos preenchiam poeticamente, dialogavam com o livro-base de nossa encenação, transbordavam na cena. Realidade e ficção entraram em atrito, os anos sessenta do último século decorrido e relatado no livro estavam se fazendo naquelas experiências. Imagens do passado de um Castro romanceado se articulavam a um presente, eminentemente real e, a um só passo, performático. 97 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências bibliográficas CASTRO, Anna Maria de. Josué de Castro; semeador de idéias. Veranópolis/ RS: ITERRA – Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, 2003. CASTRO, Josué. Geografia da fome. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. _________. Homens e Caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. DURAND, Gilbert. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: Editorial Presença,1990. LYRA, Luciana de F. R. P. de. Da artetnografia: máscara mangue em duas experiências performáticas. 2013. 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Palavras-chave: processo colaborativo, toyotismo. criativo, processo coletivo, processo Abstract: The essay aims to discuss the possibilities of the production mode in theatrical creation, weaving a discussion of how the colaboration term is being used by theatrical collectives in past two decades, and how this same term has been employed in the business world in the toyotist production system. This text attempt to consider on how the theater group II Trupe de Choque organizes its mode of production, both in structuring the group and in the creative process. Keywords: creative process, colective process, colaborative process, toyotismo. O grupo teatral paulistano II Trupe de Choque foi formado há quatorze anos. A trajetória do coletivo pode ser dívida em cinco fases: a primeira é o momento de formação do grupo na universidade. A segunda iniciase no projeto Anjos do Desespero, quando o grupo estende sua pesquisa artística à prática pedagógica chamada Teatro Peripatético33 na Usina de Compostagem de lixo desativada em São Mateus. O projeto Corpos Acumulados caracteriza a terceira fase, em que o Teatro Peripatético reestrutura a formação do grupo, que passa a ser integrado por atores e não Formada em Licenciatura Arte Teatro (2010) no Instituto de Artes da UNESP. Há três anos atua como arte-educadora do projeto Curumim, do SESC Santana. Desde 2007, integra o grupo teatral II Trupe de Choque como atriz e arte-educadora do Núcleo Peripatético de Pesquisa, que consiste em um amplo processo artístico-pedagógico empreendido pelo coletivo, que articula processos de criação e formação em diversas linguagens artísticas. 32 A palavra peripatetikós indica a filosofia aristotélica (filosofia peripatética). Os discípulos de Aristóteles tinham mais do que lições de filosofia procuravam vivenciar o saber em um processo de discussão e aprendizagem em que o caminho se construía a partir dos passos dados. Por isso, eram chamados de peripatétikos; aqueles que ensinam caminhando. A II Trupe de Choque define sua ressignificação do conceito Peripatético: O que chamamos de “Teatro Peripatético” estimula o pensamento crítico e criativo em duas etapas, dialeticamente interligadas, Os Núcleos Peripatéticos de Pesquisa e a montagem de um espetáculo. Desse modo, percebemos que a proposta pedagógica do grupo procura romper a divisão entre teoria e prática, dando nova dimensão a questões filosóficas a partir do teatro. 33 99 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 atores, estreitando a relação entre criação artística e prática pedagógica que ocorre simultaneamente na Usina e no hospital psiquiátrico Pinel. A quarta fase é marcada pela experiência com o público, chamada Detritos, em ensaio que se inicia no projeto Material Tebas Eldorado 11 de Setembro e estende-se ao projeto Material Ciborgue/ Eldorado Silício 11 de Setembro. Por fim, a quinta e atual fase se dá no projeto Material Ciborgue Fantasma/ o Ornitorrinco da Revolução/ Planeta Favela 11/09/4012 (um conto maravilhoso de atrocidades) que tem por objetivo investigar a formação da subjetividade brasileira, já que o projeto trata da deformação do País, decidimos situá-lo no espaço, por excelência, de formação de sujeitos da sociedade ocidental, a escola, duas estaduais no bairro do Grajaú. Desde sua formação, o grupo concebe o teatro não apenas como um espaço de experimentação estética, mas como um espaço capaz de unir a pesquisa da linguagem teatral à reflexão estética e crítica do capitalismo em seu estágio tardio de produção. Nessa perspectiva, partimos do conceito de Ernest Mandel, que define o capitalismo tardio como o atual terceiro estágio desse sistema, hegemonicamente batizado de globalização. Sucedendo os estágios do capitalismo de mercado e do monopolista ou imperialista, o capitalismo multinacional marca a apoteose do sistema e a expansão global da forma mercadoria, colonizando áreas tributárias de tal forma que não se pode mais falar de algum lugar “fora do sistema”, como a Natureza ou o Inconsciente, constantemente bombardeado pela mídia e pela propaganda (Cf. JAMESON, 2006). Com a forma mercadoria atingindo seu ápice dominando todas as esferas da vida através de mecanismos subjetivos de controle do trabalho e social, pensamos que é preciso construir espaços de resistência contra este mundo perverso. Desse modo, a II Trupe de Choque busca fazer do seu espaço de trabalho um lugar capaz de quebrar com as relações sociais impostas pelo capitalismo e para isso se faz fundamental repensar o modo de produção do grupo. De modo geral, os grupos escolhem formas democráticas de organização como o processo coletivo e o colaborativo. No processo coletivo as funções não são delimitadas e o artista exerce várias funções na construção do espetáculo; tudo é dividido: da concepção da luz a criação do figurino. Já no processo colaborativo as funções são definidas (ator, diretor, dramaturgo e outras), mas procura-se estabelecer uma relação horizontal, onde todos discutem sobre as decisões a serem tomadas. Sobre o processo colaborativo: Entendemos por processo colaborativo o procedimento que integra a ação direta entre ator, diretor, dramaturgo e demais artistas. Essa ação propõe um esmaecimento das formas hierárquicas de organização teatral. Na maioria das vezes, conservam-se as funções e distribuições de tarefas [...]. No entanto, os parâmetros que delimitam tais campos tornam-se menos rígidos e a concretude de cada função apenas se realiza sob o viés da participação e da contribuição em cadeia (FISCHER, 2003: 39). No entanto, falamos e adotamos o nome processo colaborativo para as nossas pesquisas artísticas sem nos darmos conta dos outros significados que estão contidos no termo. Vejamos outra descrição que aborda o colaborativo, mas agora no universo empresarial: E no lugar do trabalhador especializado, operando uma única máquina, sob o olhar de um supervisor com um cronômetro, imagem clássica do modelo de Taylor, teremos no toyotismo um trabalhador que opera várias máquinas ou executa diferentes funções, às quais escapariam à gerência coordenar e, além disso, essa gerência ainda foi reduzida; as atividades podem ser feitas por equipes ou times de trabalho muitas vezes com rotatividade das competências (SILVA, S/A, S/P). Observando a citação acima e comparando à anterior, uma série de questões podem ser apresentadas. Quais as semelhanças entre elas? Na primeira há uma indicação segundo a qual a concretude de cada função só se realiza por meio “[...] da participação e da contribuição em cadeia”. Já na seguinte há a indicação segundo a qual as atividades podem ser feitas por equipes ou times de trabalho muitas vezes com rotatividade das competências. O que isso quer dizer? Os dois trechos tratam do mesmo tema do modo de organização do trabalho, mas como é possível tal semelhança se um se refere à criação teatral e o outro ao modo toyotista de produção? Na década de 1980 o termo colaborador passa a ser empregado para definir o trabalhador, em um sistema de cooptação dos operários para participação nos objetivos da empresa, resultando na extensão da jornada de trabalho e em um processo de pressão contínua, com a promessa de que haveria aí vantagens: o trabalho se tornaria mais criativo, haveria rotatividade das funções, participação dos lucros da empresa, no entanto por trás destas aparentes vantagens o que ocorre é a infeliz verdade que em um momento de crise o primeiro a ser dispensado será o trabalhador. Levando em conta que o termo colaborativo tem origem num sistema perverso de exploração do capital, porque ainda assim continuamos a 101 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 nomear nossos processos criativos com tal nome? Pois a maioria dos grupos não baseia suas produções em práticas repressivas. No projeto Material Ciborgue Fantasma O Ornitorrinco da Revolução/ Planeta Favela (um conto maravilhoso de atrocidades) 11/09/4012 apresentado a 23ª edição da Lei de Fomento ao Teatro define no item orçamento seu atual modo de produção: A Trupe de Choque trabalha a partir de um modo socializado de produção, que chamamos de “matilha”. Todos participam de todas as decisões sobre o processo artístico e sobre a condução do grupo. No entanto, pelo fato do grupo contar com atores profissionais e não profissionais nem todos os integrantes comparece a todos os períodos de ensaio em que o grupo se reúne. Por isso, os rendimentos correspondentes a cachês são divididos igualmente, mas de acordo com o número de períodos de ensaio que os integrantes do grupo, independente de suas funções, podem comparecer. Àqueles participantes do processo que podem comparecer em um número pequeno de períodos de trabalho são destinados apenas o pagamento de ajudas de custo correspondente à verba de transporte e alimentação34. No que se refere às funções que os integrantes da II Trupe desenvolvem vale dizer que não estão restritas apenas ao âmbito da criação artística, mas estendem-se à produção do projeto como um todo. Ainda que exista a função produção, várias tarefas são distribuídas entre os integrantes, numa divisão por núcleos de trabalho como o núcleo financeiro, produção do espetáculo, assessoria de imprensa, produção da Revista Negativo, produção dos seminários Diálogos Negativos, relação com o espaço de residência artística. No entanto, como já afirmado todos ganham o mesmo cachê de acordo com a quantidade de períodos trabalhados. A busca por um processo de criação horizontal em que todos os integrantes possam atuar e tomar partido fez com que o grupo desenvolvesse um procedimento de criação chamado jornada cênica: A JORNADA CÊNICA é um exercício teatral criado pelo grupo que une a liberdade da improvisação, da abertura ao imprevisto, a uma elaboração que deve transformar uma idéia, um ponto de vista sobre uma cena do roteiro em cena, através da exploração de diversas 34 II Trupe de Choque. Projeto Material Ciborgue Fantasma O Ornitorrinco da Revolução Planeta Favela 11/09/4012 (um conto maravilhoso de atrocidades). Disponível para consulta na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. São Paulo, 2013, p.110. dramaturgias (cenário, figurino, vídeo, fotografia, música, ações, poesia, palavra etc). A JORNADA, ao contrário do workshop, por exemplo, não parte de um depoimento pessoal do ator, a partir de um universo que este conhece e quer expressar, mas parte sim de uma jornada ao desconhecido, de um AUTO-ANIQUILAMENTO do que o ator tem de mais precioso, transformando este destruirse em material e exploração cênica35. O grupo é um organismo vivo em constante modificação que se transforma a cada processo de criação, inserção de novos integrantes, espaços de residência artística; no entanto, se faz fundamental estar em permanente processo de reflexão e discussão sobre o modo de produção do grupo. É preciso pensar como estão as relações entre atores e diretor. Se todos apresentam seus pontos de vista sobre o processo de criação. E mais, se todos os integrantes do grupo estão apropriados do discurso que o grupo pretende em sua peça. Penso que estas são, ainda, questões fundamentais para buscar um processo criativo horizontal. As experiências como a do grupo II Trupe de Choque nos faz pensar que é possível vislumbrar novas possibilidades de organização do modo de produção, buscando coerência entre o que se pretende dizer com o espetáculo e o modo como este é produzido, buscando espaços de resistência em tempos tão sombrios em que a forma mercadoria tudo faz para dominar até mesmo a nossa subjetividade. II Trupe de Choque. Relatório de pesquisa do projeto Corpos Acumulados. Disponível para consulta na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. São Paulo, 2009, p. 89. 35 103 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências bibliográficas: CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. II TRUPE DE CHOQUE. Relatório de pesquisa do projeto Corpos Acumulados. Disponível para consulta na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. São Paulo, 2009. CHOQUE, II Trupe. Projeto Material Ciborgue Fantasma O Ornitorrinco da Revolução Planeta Favela 11/09/4012 (um conto maravilhoso de atrocidades). Disponível para consulta na secretária municipal de cultura de São Paulo. São Paulo, 2013. FISCHER, Stela Regina. Processo colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras nos anos 90. Dissertação (de mestrado) apresentada ao Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2003. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2006. MATOS, Ivan Delmanto Franklin de. O labirinto miopia: o espetáculo teatral como planetário em ruinas. Dissertação (de mestrado) apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. SILVA, Rafael Alves. “Toyotismo e neoliberalismo: novas formas de controle para uma sociedade - empresa”, in: Vigilância, segurança e controle social na América Latina. Curitiba. Fonte: http://migre.me/qC3mr (acessado em 25/01/2014). O nascimento de um teatro e o alvorecer de vários intérpretes, por Fábia Pierangeli36 Resumo: Este é um artigo que apresenta o relato de uma “cidadã-artista” que nasceu, cresceu e vive na periferia paulistana. Trata-se de um relato que narra a trajetória de sete anos de atuação do Teatro Girandolá, grupo de teatro que mantém sede artística em Francisco Morato, um dos municípios mais pobres do Estado de São Paulo, e que encontrou no fazer teatral uma forma de dialogar com sua comunidade, com seus conterrâneos e contemporâneos. Palavras-chave: teatro, trajetória, transformação, cidadania, encontro, parceria. Abstract: This is an article that presents a report of a “citizen-artist” who was born, grew up and lives in the poorer outskirts of town. This is a narration that tells the story of seven years of operation of Girandolá Theatre, theater group that holds artistic headquarters in Francisco Morato, one of the poorest counties in the state of São Paulo, and that found the way to make a theatrical dialogue with their community, with their countrymen and contemporaries. Keywords: theater, history, processing, citizenship, meeting, partnership. 105 Foto de Fábia Piarangeli. Teatro Girandolá. Gilberto Araújo em Ara Pyau - Liturgia para o povo invisível. Graduou-se no Instituto de Artes da UNESP, no curso de Educação Artística - habilitação em Artes Cênicas, em 2006. Em 2007 fundou, ao lado de outros artistas, o Teatro Girandolá. Atualmente dedica-se a elaborar, desenvolver e produzir projetos artísticos em Francisco Morato/SP. 36 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 um povo que vive em Dó um lugar que avança em Ré um poeta que desatina um padre que reza em Mi um pastor que ora em Fá um coro que desafina um esgoto aberto em Sol um saneamento que não tem Lá uma ameaça em cada esquina um político que pensa em Si um ególatra em Tom Maior um vício que contamina um estado de Saúde em Dó um transporte público em Ré um descaso que alucina um comércio que grita em Mi um trânsito que berra em Fá uma balbúrdia que fascina uma sobrevida ao Sol um sonho da casa em Lá uma angústia em surdina uma inconsequência em Si uma revolta, ma non tropo um conformar-se com a sina rogo aos céus que algo, enfim, aconteça, para que os que por ali convivem nessa cidade-dormitório possam, ao menos, potencializar seus bons sonhos André Arruda (Ode a um certo povoado tido como cidade dormitório). O Teatro Girandolá nasce em 2007, no município de Francisco Morato, Estado de São Paulo, e não há como contar sua história sem olhar para os anos que antecederam o seu nascimento... Creio que alguns fatores foram determinantes para esse nascimento e o primeiro deles está intimamente ligado com a história de vida de cada uma das pessoas que o idealizou e fundou: quatro jovens, três que cresceram em Francisco Morato, um que cresceu em uma pequena cidade do interior paulista. Ambos, começaram a fazer teatro ainda na adolescência, em projetos sociais e encontraram nesse fazer um caminho para compreender e dialogar com a realidade que os cercava. Em 2007 esses jovens se (re)encontram, num momento de muita angústia, em que parecia praticamente impossível encontrar, na cidade de Francisco Morato, um espaço para a criação, e esse é o segundo (e não menos importante) fator determinante para o nascimento do grupo, a cidade. Francisco Morato é um jovem município, com 49 anos de emancipação político-administrativa, situado a 45 km da capital paulista, com uma população de aproximadamente 165 mil habitantes, um dos maiores índices de vulnerabilidade social e um dos menores índices de desenvolvimento humano do Estado. Em Francisco Morato não existem equipamentos públicos de cultura ou lazer; não existem teatros, centros culturais, cinemas, bibliotecas, praças, parques. Em Francisco Morato não existem políticas públicas para a cultura (nem para a saúde, educação, habitação, desenvolvimento social etc. etc. etc.), um lugar onde falta tudo, inclusive espaço para sonhar! O município é considerado uma cidadedormitório, onde a maioria da população, por não encontrar formas de buscar meios que permitam sua sobrevivência, se vê obrigada a buscar trabalho na capital paulista, permanecendo, dessa maneira, muito tempo longe do local onde mora. Jornadas de 2 a 3 horas de locomoção para chegar ao trabalho, somadas às horas de jornada do trabalho mais outras 2 ou 3 horas para voltar para a casa, fazem de Francisco Morato um lugar de passagem. Quem permanece na cidade são, em sua maioria, velhos e crianças, estas geralmente cuidadas por si mesmas; é comum que irmãos mais velhos cuidem dos mais novos, logo, é comum que as crianças moratenses abandonem muito cedo suas infâncias. E é diante desse quadro, repleto de ausências materiais e imateriais, que o Teatro Girandolá nasce e começa a atuar. A princípio, como um grupo de pesquisa da linguagem teatral para crianças, mas que logo percebe que a busca de um espaço de criação, naquele contexto, só faz sentido se esse espaço for também de diálogo e se dele surgirem ações que possam, de alguma forma, virar ferramentas que auxiliem na busca de possibilidades de transformação. A criação de obras autorais e o processo colaborativo, entendido como um processo que busca substancialmente a horizontalidade nas relações, aponta o caminho pelo qual aqueles quatro jovens decidem seguir. Logo em seu primeiro ano de existência, além do trabalho em sala de ensaio para a criação de seu primeiro espetáculo, o grupo começa a se articular e a fazer contato com outros realizadores culturais que, solitários em suas comunidades, realizam suas ações. Desses contatos, surge o desejo de realização de um encontro, onde se pudesse trocar ideias e quiçá 107 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 vislumbrar ações que pudessem transformar aquela árida realidade cultural, de onde parecia impossível brotar qualquer semente, que pudessem criar raízes e quem sabe um dia florescer em qualquer tipo de atividade artística ou cultural, naquele lugar. Era junho de 2007, quando o Teatro Girandolá decidiu chamar o 1º Fórum de Cultura de Francisco Morato, que num domingo frio e chuvoso de inverno, reuniu cerca de 60 pessoas. Naquele dia, desabafamos todos. Falamos de nossas angústias, da tristeza que sentíamos por ver nossa cidade daquele jeito, mas principalmente da vontade que tínhamos de fazer daquele lugar, um lugar diferente. Nesse Fórum, encontramos muitos outros pares, e desse encontro surgiu um movimento que batizamos de Morateia Desvairada. Fóruns setoriais, encontros semanais, realização de mostras, de festivais, caminhadas pela cultura, tentativas de diálogo com o poder público (quase sempre malsucedidas), criação e eleição do Conselho Municipal de Cultura. De 2007 a 2010, um intenso movimento de articulação e de parcerias vai começando a colorir as ruas e espaços da nossa cidade-dormitório. Paralelamente a tudo isso, estreamos, em 2008, nosso primeiro espetáculo, o Conto de todas as cores, um trabalho que fala da infância num lugar onde ela é perdida muito cedo. Com esse espetáculo, que é apresentado até hoje, realizamos muitas apresentações na cidade, atendemos quase toda a rede de alunos da Educação Básica e é com ele que, em 2009, conquistamos nosso primeiro prêmio via edital de chamamento público, o Proac (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura), de circulação de espetáculos pelo Estado de São Paulo. Esse prêmio chega como uma espécie de injeção de ânimo. Encontramos nele uma possibilidade de potencializar nossos projetos e um caminho para buscar recursos que pudessem ser diretamente aplicados na área da cultura e melhor, um recurso que podia ser administrado por nós mesmos, que tínhamos certeza de que chegaria em forma de ações para nossa comunidade. E essa não foi a única injeção de ânimo que ganhamos em 2009... Nesse mesmo ano criamos o “Girandolá Recebe...”, um projeto de formação de público para as artes, onde recebemos mensalmente uma atividade artística oferecida gratuitamente (na maioria das vezes) ou a preços populares, e inauguramos nossa sede, o Espaço Girandolá, uma sala de ensaios e atividades com 70m², construída pela minha mãe, no quintal da minha casa e que nos possibilitou um baita espaço de exercício de autonomia e nos iniciou num caminho de busca pela autogestão. A inauguração do Espaço Girandolá tem um outro aspecto muito importante na nossa trajetória, pois ele passa a abrigar, além das nossas ações, ações de nossos parceiros. Inauguramos o Espaço e logo ele passa a ser coabitado por mais um grupo de teatro, o Teatro em Carne & Osso, e pela Ôxe! Produtora Comunitária. O Teatro em Carne & Osso é um grupo formado por jovens que saíram, em 2006, de uma oficina de teatro de um projeto social da Prefeitura de Franco da Rocha, cidade vizinha de Francisco Morato. A Ôxe! Produtora Comunitária é um núcleo que se dedica às questões ligadas à gestão e produção cultural. E é dessa coabitação que algum tempo depois (2012), nasce a Associação Cultural ConPoeMa, que hoje é a representante legal e protege, debaixo do mesmo guarda-chuva, as 3 iniciativas (Teatro Girandolá, Teatro em Carne & Osso e Ôxe! Produtora Comunitária). A ConPoeMa desenvolve projetos nas áreas de teatro, música, artes visuais, literatura, formação artística e cultural, produção cultural, sempre agregando diversos parceiros. Nessa nossa trajetória, podemos afirmar, com muita certeza, que os encontros que tivemos foram essenciais e criaram, a nossa volta, uma rede de parcerias extremamente significativas, que nos fortalecem e nos fazem continuar seguindo em frente. Podemos afirmar também, que desde muito cedo percebemos que só criar e produzir espetáculos teatrais não nos satisfazia. Queríamos sim, e muito, fazer teatro, mas antes de tudo, queríamos dialogar com nossa comunidade, queríamos falar e transformar em arte, em poesia, tudo aquilo que vivíamos, tudo aquilo que nos incomodava. E mais: além de falar, queríamos encontrar alternativas que de alguma forma pudessem transformar a nós mesmos, aos nossos pares, aos nossos vizinhos, aos nossos governantes... Por isso, desde o princípio, nossa atuação artística sempre esteve ligada ao nosso exercício de cidadania. Por isso, em 2010, criamos o espetáculo “Aruê!”, que traz à luz questões ligadas à violência contra a mulher, à prostituição, aos cultos afrodescendentes; e também criamos, junto com a Ôxe! Produtora Comunitária, o Oxandolá [In] Festa, Festival de Artes Integradas, que acontece anualmente em comemoração ao aniversário das duas iniciativas que o criaram (Ôxe + Girandolá = Oxandolá) e vem, ano após ano, se transformando em paradigma no que se refere à profissionalização dos realizadores culturais de nossa cidade. Por isso, em 2012, estreamos nosso terceiro espetáculo, fruto de uma pesquisa desenvolvida em parceria com 109 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 uma comunidade Guarani Mbyá que vive muito próxima da nossa cidade. E ainda, é por isso que atualmente estamos criando um novo espetáculo que tem a história do Hospital Psiquiátrico do Juquery e a formação da nossa região como tema. Se isso gerou uma nova realidade em Francisco Morato? Não, ainda não, mas a passos pequenos e curtos, um após o outro, entre acertos e desacertos, nos percebemos trilhando um caminho que já não levanta mais tanta poeira e nos permite vislumbrar um outro cenário, que ainda está distante, mas que acreditamos que podemos alcançar e... Nesse caminho... Ah, nesse caminho... já vemos desabrochar algumas flores, que alegram e perfumam parte de nossas almas. Referências bibliográficas: CHAGAS, Cassiele Arantes de Moraes. A periferização da pobreza e a degradação sócio-ambiental na Região Metropolitana de São Paulo, o caso de Francisco Morato. São Paulo/SP. Dissertação (de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo: Universidade de São Paulo, 2007. ARRUDA, André. Das coisas, outras. São Paulo: Scortecci, 2013. Teatralidades do real presentificadas na cena e no mercado, por Evill Rebouças e Edu Silva37 Resumo: Reflexões sobre teatralidades do real, tendo como objeto de estudo as experiências da Cia. Artehúmus de Teatro. Aborda implicações poéticas decorrentes do vínculo entre grupo teatral e território investigado, bem como a contrapartida social como ferramenta de mercado e dispositivo de controle estético. Palavras-chave: teatralidades do real, espaço não convencional, contrapartida social. Abstract: Reflections on the real theatrics, having as object of study the experiences of Cia. Artehúmus Theatre. Discusses poetic implications of the link between theater group and territory investigated, as well as the social counterpart as marketing tool and aesthetic control device. Keywords: the real theatrics, unconventional space, social counterpart. 111 Foto de Eduardo Raimondi. Em cena Leonardo Mussi, Daniel Ortega e Bruno Feldman. 37 Evill Rebouças e Edu Silva são integrantes da Cia. Artehúmus de Teatro e se conheceram em uma metalúrgica, num período em que se iniciaram no teatro. Rebouças é ator, dramaturgo e diretor, graduado e mestre em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da UNESP. Silva é ator, diretor e fundador da Cia. PicNic - Núcleo II. Graduado e pósgraduado em Artes Cênicas pela Fainc - Faculdades Integradas Coração de Jesus e, atualmente, mestrando no Instituto de Artes da UNESP. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Imbricações da arte nos territórios reais Em boa parte das leis ou de editais públicos e privados que concedem subsídios financeiros à arte, geralmente consta parágrafo referente à contrapartida social. Para se enquadrar nesse requisito, muitos são os artistas e coletivos que elaboram seus projetos privilegiando algum vínculo com determinado território social, geralmente, em comunidades distantes centro da cidade. Inegável que o vínculo de relação com determinado território social tem gerado inúmeras produções artísticas de valor inegável. Na cidade de São Paulo tem se tornado cada vez mais habitual ver grupos de teatro criarem espetáculos a partir de investigações realizadas em campo. São coletivos que pesquisam determinadas geografias sociais para fundamentar seus discursos e, por consequência, apresentam peculiaridades poéticas e políticas. Todavia, podemos observar distintos modos de inserção: aqueles que investigam as realidades do tecido social e apresentam os resultados estéticos em qualquer território e aqueles que, além de investigar o tecido social, produzem experiências estéticas para o território investigado, fixando inclusive suas sedes nesses locais. Como se dão esses vínculos entre coletivo teatral e território investigado? Quais as implicações estéticas decorrentes dessas relações? Quais os benefícios e os aprisionamentos estéticos gerados em função de escolhas territoriais como determinantes de diálogo entre espetáculo e espectador? Até que ponto a contrapartida social se torna fonte de mercado e dispositivo de controle estético? Para lançar luz a essas questões, utilizaremos as experiências da Cia. Artehúmus de Teatro, coletivo que já foi contemplado com diversos subsídios públicos - dentre eles, o Programa VAI de Iniciativas Culturais e três edições da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo - e que, desde 2004, realiza seus espetáculos a partir de investigações em campo, tendo o espaço não convencional como palco para suas produções. Libertações e aprisionamentos estéticos I A primeira experiência da Artehúmus em trazer realidades do tecido social para a cena se deu com o espetáculo Evangelho para lei-gos, em 2004. Havia um canovaccio em que elegemos discutir a morte social; no entanto, para que pudéssemos encontrar subsídios concretos sobre o tema decidimos trabalhar durante quatro meses com os moradores do Abrigo Municipal Zacki Narchi - uma espécie de minúsculas casas improvisadas que abrigavam numerosas famílias, na Zona Norte da cidade de São Paulo. O primeiro dilema posto aos integrantes da Artehúmus se deu justamente em como transpor para a ficção uma realidade tão concreta e brutal: inexistência de saneamento básico, fome, violência doméstica, viciados, prostituição infantil administrada pelos próprios pais das crianças etc. Somente transpor para a cena a realidade encontrada era pouco enquanto ambição estética, pois não queríamos trabalhar com efeitos ilusionistas e tão pouco causar identificação e comoção a quem assistisse ao espetáculo. Ali, por exemplo, presenciamos a polícia sobre cavalos perseguindo meliantes e atropelando uma criança com dificuldades motoras e mentais: rosto e corpo caídos à beira de esgoto; inúmeras mulheres que sofriam violência doméstica, dentre elas, uma que tinha marcas de ferro de passar roupas no corpo, outra que guardava alimentos e documentos na vizinha ao lado para não ser roubada pelo marido; pais que obrigavam suas filhas a se prostituir ao lado de um shopping center. E um dado comum: a maioria dos moradores não tinha documentos, mas tinha, necessariamente, extintores, uma vez que não era a primeira vez que perdiam tudo em função de incêndios em seus barracos. Por termos presenciado experiências tão reais e perturbadoras, boa parte do material improvisado tendia a radiografar o que fora encontrado em campo. Como então ir além do caráter arqueológico enquanto criadores? Depois de inúmeras discussões e tentativas, com mais erros do que acertos, chegamos a alguns apontamentos, dentre eles, recriar situações do território investigado e pesquisar expedientes poéticos que propiciassem ao espectador realizar ajustes e afastamentos: estrutura fragmentada; figuras multifacetadas e sem trajetória linear; alusões bíblicas por meio de nomes e falas para gerar tensões entre realidade e ficção. 113 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Foto de Eduardo Raimondi. Em cena Solange Moreno e Roberta Ninin. Magias do acaso que atravessam a ficção O espaço da representação é outra fonte de discurso nas encenações da Artehúmus, isso porque a carga semântica de determinados territórios se ajusta ou tenciona os temas abordados. Evangelho para lei-gos foi apresentado no banheiro público, abaixo do Viaduto do Chá; Amada, mais conhecida como mulher e também chamada de Maria (2007) estreou no prédio abandonado da CaDopo - Casa do Politécnico, no Bom Retiro; OHamlet - do estado de homens e de bichos (2010) melhor se ajustou às áreas externas e internas da Oficina Cultural Oswald de Andrade. Desses lugares pode emergir uma imagem inicial - expressão utilizada por Gaston Bachelard para identificar elementos sígnicos de determinadas paisagens - e que, ao ser inserida em uma encenação, pode gerar múltiplas leituras. Tão potente quanto a carga semântica desses locais, temos também o modo como o espetáculo se deixa atravessar pelas circunstâncias do real. Numa das apresentações de Amada..., no Teatro Oficina, uma chuva torrencial se inicia e escorre para dentro do teatro quando Maria clama por água, após tomar uma garrafa de coca-cola e não matar a sua sede. Diante do acaso do real, os atores modificam completamente o tempo, as falas e o trajeto da cena: o ruído constante dos trovões é mais forte do que suas vozes; a imagem das goteiras é infinitamente mais mágica do que a própria cena da ficção. Restava-lhes então caminhar até as goteiras, brincar com a chuva, calar-se e interagir com o que se presentificava. Fato semelhante se dá em OHamlet. Apresentávamos a peça em espaços que ladeavam a área de embarque e desembarque de uma estação de trem, em Pindamonhangaba. Fomos avisados pelos contratantes de que o local escolhido não seria adequado, pois ali passavam vagões cargueiros em horários indefinidos. Depois de muitas conversas os contratantes permitiram a utilização do espaço, porém, sem entender a nossa escolha. Durante as longas horas de ensaio para adequação das cenas aos espaços, nenhum trem passou; no entanto, quando Ofélia, no único momento em que fala na peça, termina de se despedir e caminhar para a morte, o cargueiro passa. Foram quase cinco minutos, ininterruptos, presenciando o ruído da locomotiva. Via-se apenas o trem passar, respeitando aquela situação do real e, hora ou outra, Ofélia tentando partir no trem que passava. 115 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Libertações e aprisionamentos estéticos II Até o presente momento apresentamos expedientes e resoluções que esclarecem as tantas potências das teatralidades do real. Retomemos a outra parte dos problemas enunciados. Quais os benefícios e os aprisionamentos estéticos gerados em função de escolhas territoriais como determinantes de diálogo entre espetáculo e espectador? Até que ponto a contrapartida social se torna fonte de mercado e dispositivo de controle estético? Nas andanças da Artehúmus - as quais geralmente acontecem quando apresentamos rascunhos de cenas para grupos teatrais a fim de colher impressões38 - nos são lançadas questões que estão vinculadas aos problemas enunciados. Metodologicamente, comentamos o assunto que estamos abordando, bem como as pesquisas realizadas em campo e, em alguns casos, antes mesmo de nossos parceiros apreciarem os conteúdos das cenas vistas, a preocupação maior é saber onde e para quem será apresentado o espetáculo. Em nosso atual processo de criação - O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário -, investigamos relações de isolamento e aproximação em diferentes tipos de condomínios (CDHU´s, Albergues e condomínios de luxo) e, boa parte das apreciações apontava que as personagens mostradas não abrangiam ou representavam com fidelidade todas as classes sociais investigadas. Além dessa questão, o alvo principal era colocar em discussão até que ponto a linguagem das cenas iria dialogar com o espectador do território investigado. Valiosa contribuição de nossos parceiros teatrais, pois passamos a dedicar tempo maior para discutir nossas ações enquanto estetas principalmente porque na Artehúmus, trabalhamos com expedientes que fogem aos padrões de comunicação fechada39. Por outras palavras: a não fábula (ou a fábula que será construída pelo espectador); a não personagem (ou a figura, ou somente o performer, ou ainda a não delimitação entre figura e performer) - elementos que são lançados para colocar o espectador em suspensão e em movimento diante da obra. Se tais estruturas poéticas correspondem aos nossos propósitos políticos e ideológicos, por que excluí-las em detrimento das classes 38 Desde 2004 o grupo realiza, regularmente em todos os seus trabalhos, encontros com grupos teatrais das mais diversas linguagens, por meio das Mostras de Processos de Criação. 39 Sobre o assunto, ler reflexões de Umberto Eco, apontado na bibliografia. socioeconômicas que irão assistir ao espetáculo? Saiamos do teatro e vamos para as artes plásticas: um sujeito “não iniciado” nas artes terá que ver sempre ou primeiramente pintores miméticos, antes de apreciar obras abstratas? Jamais Picasso? Sobre esse embate, identificamos em nossas conversas o que denominamos de mercado da contrapartida social ou estéticas que melhor dialogam com classes menos favorecidas. Nada contra descentralizar produções artísticas para regiões periféricas, até porque investigamos a agregação de valores semânticos da cidade ao espetáculo e, como bem observa Anne Ubersfeld, nesse tipo de experiência “o espaço da representação é dependente do lugar onde ele se encontra”. Porém, escolher poéticas que supostamente garantirão maior comunicação com determinada classe social é adequar-se ao mercado da contrapartida social e, essencialmente, subjugar e antever a capacidade do espectador. O que então nos diferencia de uma produção comercial que também realiza seu produto artístico pensando na comunicação com determinada classe social? Debruçados sobre o nosso próprio percurso, detectamos diferenças. Essencialmente, porque no trabalho em grupo podemos elaborar criações em que todos participam da realização do espetáculo; logo se abre espaço e tempo diferenciados para tratar de vontades e desejos poéticos e políticos que o coletivo julga importante discutir com a sociedade. Assim, diferentemente de determinado segmento teatral, o mercado pode surgir como consequência e não como meta principal para grande parte dos coletivos paulistas; daí a importância de subsídios para a realização de seus espetáculos. Ainda que existam essas e tantas outras diferenças de modos de produção, se faz urgente reavaliarmos as adequações ao mercado dos editais. A performance, por exemplo, não é linguagem adequada ao “entendimento” da periferia? O problema apresentado não é tão simples, já que é inerente à arte a relação entre obra e espectador; logo não podemos descartar a comunicação. Mas, se proponentes e comissões julgadoras, respectivamente, elaboram e avaliam projetos tendo como foco corresponder aos supostos padrões da contrapartida social, a pluralidade estética tende a se esvaziar. Fundamental distinguir nessa tendência mercadológica a trajetória de coletivos que se inserem em geografias periféricas sem cercear suas poéticas ou se isentar de vínculos com os territórios investigados. Na Artehúmus, esse embate esteve presente em Evangelho para lei- 117 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 gos, pois apresentar o espetáculo onde foi realizada a pesquisa traria resultados estéticos que não comungavam com nossos propósitos. Por outras palavras: a carga semântica do abrigo municipal Zacki Narchi gerava estados de identificação, ainda que utilizássemos expedientes de distanciamento. Resolvemos então transferir o espetáculo para lugar prenhe de outros significados - o banheiro público -, mas, aqueles que foram objetos da pesquisa ficariam privados de ver a peça que agora seria apresentada na região central da cidade. A solução para esse impasse foi encontrar estratégias que não dissolvessem o vínculo entre grupo e comunidade, entre elas, facilitar acesso ao espetáculo e realizar atividades artísticas durante e depois da estreia. À luz do exposto, e longe de encontrar respostas absolutas e certeiras para os problemas apresentados, entendemos ser necessário fomentar debates e ações sobre a relação arte e sociedade, principalmente, quando a contrapartida social e outras tantas tendências mercadológicas se tornam moedas superiores às escolhas estéticas. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lidia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, S/D. ECO, Umberto. Obra aberta - formas e indeterminações nas poéticas contemporâneas, 9ª ed. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2005. REBOUÇAS, Evill. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional. São Paulo: EdUnesp, 2009. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral (18801980). Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama - escritas dramáticas contemporâneas. Trad. Alexandre Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Trad. e coord. José Simões. São Paulo: Perspectiva, 2005. Grupo teatral, processos criativos e alienação, por Adailtom Alves Teixeira40. Resumo: O artigo discute o ajuntamento em grupo e o processo de criação teatral coletivo e colaborativo, bem como as possibilidades de desalienação contidas nesses processos artísticos e organizacionais. Palavras-chave: grupo teatral; criação coletiva; processo colaborativo; alienação Abstract: The article discusses the gathering group and the collective and collaborative theater creation process as well as the possibilities of no alienation contained in these artistic and organizational processes. Keywords: theatrical group, collective creation, collaboration process; alienation 40 Professor do curso de teatro da Universidade Federal de Rondônia; mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; integrante do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas); integrante do Núcleo Paulistano de Fazedores e Pesquisadores em Teatro de Rua; articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua; ator e diretor teatral. 119 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Foto de Bob Sousa. Buraco d’Oráculo. Edson Paulo, Lu Coelho e Selma Pavaneli (de costas) em Ser tão ser: narrativas de outra margem. O grupo teatral e seus processos de criação Por que artistas fazedores de teatro se juntam em grupo para realizarem suas atividades? Seja por desconhecimento, por ausência documental ou por idiossincrasia decorrente da natureza classista daqueles que escrevem a “história do teatro” e, propositalmente, deixam de lado a história dos artistas populares; seja por questões contingenciais ou decorrente de arbítrio, os artistas populares, sempre se juntaram em bandos, em grupos. Em sentido popular, andar em grupo ou fazer parte de um grupo é uma tática de sobrevivência, pois aí se cria uma rede de solidariedade, na qual um integrante tende a fortalecer o outro. Iná Camargo Costa, alinhada a um pensamento em arte que discute os pressupostos sociais e estéticos, afirma que a raiz dos grupos teatrais modernos estaria em André Antoine e que suas estratégias, no Teatro Livre, formado na estética naturalista. No Brasil, o Teatro de Arena, segundo a autora “[...] um dos raros casos de nossa experiência cultural em que as ideias estavam no lugar” (ITAU CULTURAL, S/P), seria o marco zero do teatro de grupo, já que nele não havia um investidor, como no Teatro Brasileiro de Comédia. Além disso, a realidade brasileira começou a adentrar a cena, o que gerou contradições no seio daquele coletivo, pois propostas mais radicais iriam se destacar no grupo, dando origem aos Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE): “Por isso podemos dizer que o Arena é nosso marco zero e que o CPC da UNE é o nosso limite” (Idem). Luiz Carlos Moreira, diretor do Grupo Engenho – coletivo que surgiu em 1979 e, desde os anos 1990, dirigiu-se à periferia para realizar seus projetos –, no Café Teatral41, afirmou que a organização de fazedores de teatro em grupo “[...] não é uma opção, mas falta de opção”, compreendendo que os artistas passaram a se reunir em grupo exatamente porque não havia empresários dispostos a correr os riscos nesse meio, pois não há mercado para o teatro. E já que não existe mercado, a única possibilidade de produzir é em grupo. Ao discorrer sobre o processo de formação dos grupos na cidade de São Paulo, afirmou que, entre os grupos surgidos nos anos 1970 e 1980, houve a tentativa de “empresariar” suas produções por meio de empréstimos ou cotizações, isto é, por meio das cotas de capital, a parte de uma sociedade, o valor líquido com o qual cada um dos sócios inicia uma empresa. A busca pela profissionalização do trabalho em grupo, bem como pela autonomia, levou à criação, na cidade de São Paulo, por exemplo, da Cooperativa Paulista de Teatro. Alexandre Mate, em “Trinta anos da Cooperativa Paulista de Teatro: uma história de tantos (ou mais quantos, sempre juntos) trabalhadores fazedores de teatro”, escreve sobre as contendas e as alegrias decorrentes da manutenção de uma cooperativa de artistas: A história da Cooperativa Paulista de Teatro – uma cooperativa de produção de trabalho que luta até hoje pela regulamentação de um ramo de cooperativismo de cultura – caracteriza-se em uma trajetória repleta de contendas, de desentendimentos, de pertencimentos, de fases distintas e articuladas, de conquistas. [...] Funcionários, diretores, presidentes, associados, todos O Café Teatral aqui citado ocorreu em 01/09/2010 na Casa d`Oráculo, sede do Buraco d`Oráculo, grupo que realiza essa atividade desde 2005. O Café Teatral consiste em um debate com um convidado que discute determinado tema, via de regra, relacionado ao teatro, em volta de uma mesa de café. No projeto Narrativas de trabalho, voltado à precarização do trabalho, Luiz Carlos Moreira foi chamado para discutir essa situação a que estão submetidos os grupos teatrais paulistanos e, por extensão, todo grupo teatral brasileiro. 41 121 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 juntos lutando pela dignidade do trabalhador ligado às chamadas artes da representação, agrupado pelos princípios do cooperativismo. Trabalhador do teatro em situação de desemprego endêmico. Noites não dormidas, decorrentes de tantas preocupações com o tudo faltando ou com o gigantismo da entidade. Noites maravilhosamente dormidas pela sensação da conquista conjunta (2009, p. 17. Grifo nosso). Dessa forma, os grupos poderiam produzir seus espetáculos e dispôlos no “mercado”. Mas essa tentativa de criar o tal mercado nunca deu muito certo e, portanto, o profissional naufragou. Segundo Moreira: “Profissional é aquele que vende seu trabalho para um produtor, empresário, patrão. Eu só me defino e existo como profissional na relação com meu patrão. Se ele desaparecer, eu desapareço” (2010, p. 34). Desse ponto de vista, em um grupo, não há o profissional, já que não há patrão, pois não existe mercado; mesmo assim, existem as pessoas que se juntam em torno do objetivo de criar espetáculos, de fazer teatro. Aliado ao desejo de fazer teatro, desde o Teatro de Arena, cresceu entre os artistas a necessidade de falar da realidade brasileira em cena, nasceu “[...] o desejo de se expressar e não apenas de atuar” (Idem, ibidem). Portanto, ao se pensar acerca do grupo teatral, organizado de forma artesanal, vê-se que ele não cabe no sistema capitalista da forma como está posto. Por outro lado, os grupos se veem obrigados a se enquadrar em outras organizações a fim de participar do sistema como ele está posto, gerando certa esquizofrenia interna. Organizam-se de forma diferenciada, mas na prática, e por uma questão de sobrevivência, se veem obrigados a driblar o que são de fato. Ou seja, na prática, o grupo é um coletivo composto de diversos sujeitos que, em certa medida, abrem mão da individualidade em nome da identidade coletiva; atuam de forma horizontal, não hierarquizada; dominam ou participam de todo o processo de produção. No entanto, para a sociedade, especialmente para os gestores públicos e instituições culturais, só são reconhecidos como pessoa jurídica que, na atualidade, demanda uma organização hierarquizada. Assim, criam empresas para poder participar da sociedade. Mas a questão continua: afinal, o que é um grupo teatral? Um grupo teatral é a união de pessoas em torno de um projeto, de um objetivo comum e, de modo geral, no ofício aqui apresentado, com organização horizontal. Essa forma de organização ampliou-se nos anos 1990, não por acaso época de chegada do neoliberalismo ao Brasil. Se o grupo se organiza em torno de uma identidade, de objetivos comuns, levando para a cena sua realidade e se, em um primeiro momento, a união de pessoas deu-se na tentativa de produzir e adentrar o “mercado”, é preciso não esquecer também de outros elementos que nortearam o surgimento dos grupos. O primeiro deles é o próprio combate ao mercado, uma tentativa de dizer não à privatização da cultura e do ser humano. Outro ponto que os grupos passaram a combater foi a hierarquização do processo de criação, particularmente contra a hegemonia do diretor e do autor, de modo que todos pudessem fazer parte do processo de criação e que nenhuma das partes fosse mais importante que outra, mas sim que caminhassem juntas com o objetivo de expressar o que coletivamente havia sido definido. É uma forma de organização, portanto, que exige solidariedade entre seus integrantes. E como afirma Eliane Ganev: [...] a solidariedade é atributo indispensável na perspectiva da superação da alienação – compreendida como possibilidade de reapropriação [...] da sua riqueza material e espiritual, ou ainda, como possibilidade de humanização dos processos pelos quais homens e mulheres objetivam a si mesmos, corporificando no tempo e no espaço a sua riqueza: humanização dos sentidos e dos modos de produção social da vida (1999, p. 33). Considerando os aspectos já descritos, se o grupo teatral representa, por um lado, a precarização de trabalho, por outro, o fato de seus integrantes serem donos da própria mão de obra e estarem organizados horizontalmente, baseados em forte solidariedade interna, tende a leválos à desalienação; que se reflete também em suas criações; estas, por sua vez, ao se apresentarem como elemento de crítica à sociedade, desnaturalizando a realidade, tendem a chacoalhar os espectadores em sua visão de mundo. Assim, do combate à hierarquização e ao mercado, sem deixar de lado a necessidade de expressar sua realidade, surgem os métodos de criação, primeiramente coletivos e, depois, o que passou a ser conhecido como processo colaborativo. Sem pretensão de esgotamento do assunto, passemos à discussão da criação de forma coletiva ou colaboracionista. Segundo Luciana Magiolo (2006), os processos de criação coletiva são desencadeados no fim da década de 1950. Tais processos surgiram com o objetivo de eliminar as hierarquias nos grupos e do desejo de refletir sobre a realidade, bem como da vontade de participar das decisões políticas. A 123 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 criação coletiva foi se aperfeiçoando nos fóruns de ideias, isto é, em debates que os grupos realizavam com o público, entre grupos e com estudiosos. Segundo Magiolo, Enrique Buenaventura, do Teatro Experimental de Cali (Colômbia), é um dos sistematizadores de propostas que se irradiaram pela América do Sul. Para ilustrar um pouco essas proposições, vale destacar a experiência do Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV), grupo paulistano que nasceu em 1966 e que, desde a década de 1970, realiza seus trabalhos de forma coletiva. Para César Vieira, no livro Em busca de um teatro popular (2007), nesse tipo de proposição, quem detém a decisão é sempre o coletivo, e no caso do TUOV todas as decisões são tomadas por consenso. No processo coletivo, existem as comissões. César Vieira, em organograma do citado livro (2007: 118), apresenta quatro comissões: artística, administrativa, espetáculos e cultural, sendo que cada uma delas se subdivide em cinco comissões. Tomemos, então, como exemplo, o processo de criação de um espetáculo do TUOV, composto de dez etapas: 1) é eleito um tema; 2) escolhe-se a estrutura popular para a montagem (bumba-meu-boi, marujada etc.); 3) pesquisa do tema e da estrutura; 4) com base nos dados coletados, organizam as fichas dramáticas com sugestões de conflitos e de personagens; 5) criação do quadro dramático ou do roteiro geral, que será entregue à comissão de dramaturgia; 6) criação do texto-base; 7) submissão do texto-base ao coletivo que, após os debates, realizarão cortes, proporão modificações e aprovarão o texto a ser montado; 8) produção do espetáculo; 9) apresentação do espetáculo ao público, seguido de debate com vistas a propostas de mudanças; 10) mudanças apontadas pelo público são acrescentadas. Dessa forma, o TUOV chega ao espetáculo final, criado coletivamente. Cada processo criativo ou colaborativo é único, sendo possível estabelecer as diferenças apenas caso a caso. Quanto às diferenças de termos, o vocábulo colaboracionista surgiu nos anos 1990, divulgado especialmente pelo Teatro da Vertigem (São Paulo). Segundo Stela Regina Fischer (2003, p. 43), nem mesmo esse grupo sabe muito bem a origem do termo. Ainda de acordo com Fischer, foi em decorrência de certo preconceito em relação ao teatro coletivo desenvolvido nos anos 1970, sob a pecha de amador e anarquista, que fez surgir o termo colaborativo. Se na prática do teatro coletivo aparentemente não havia sistematização (o que pode ser questionado pela prática do TUOV), o teatro colaboracionista, por surgir em grupos ligados a universidades, pretendeu se diferenciar do anterior, ao se apresentar como grupo de pesquisas estéticas e de rigor técnico. Adélia M. Nicolete afirma que há outros termos na prática contemporânea, mas que todos apontam para um resultado: “Processo colaborativo, participativo; método coletivo, montagem cooperativa ou interativa. São muitas as maneiras com que se vem tentando nomear um processo de construção do espetáculo contemporâneo que se caracteriza, basicamente, pela equiparação das responsabilidades criativas” (2005, p. 10). Diante do exposto, torna-se patente que os grupos, nesse processo histórico, romperam com certa hierarquia e vem compreendendo que sua mão de obra e o que produzem lhes pertence. Passos importante para se conscientizaram também do sistema no qual estão inseridos. Assim, se organizaram em coletivos maiores, movimentos políticos que lutaram e lutam por políticas públicas que contemplem a categoria teatral. E a década de 1990 foi fértil nesse sentido, pois nesse período surgiram o Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo, no início da década; o Movimento Arte Contra a Barbárie (que apesar de ligado à cidade de São Paulo, ganhou dimensão nacional ao inspirar outros movimentos); o Movimento Redemoinho e a Rede Brasileira de Teatro de Rua. Por um lado, se em dado momento da história o chão da fábrica alienou os trabalhadores, por outro, e de modo dialético, juntou-os, possibilitando sua organização política, levando-os ao processo de conscientização e de luta; o mesmo é possível afirmar sobre os trabalhadores do teatro: a ausência de mercado os levou a se juntarem em grupos, permitindo que refizessem seus processos de criação, bem como avançassem na luta política. É possível afirmar, portanto, que o processo em grupo pode favorecer a conscientização das pessoas que o constitui, seja como sujeitos inseridos em determinada sociedade, seja como indivíduos pertencentes a uma classe. Afirmamos que pode, pois o processo não é categórico, mas sim dialético. Como em um grupo teatral, todos são donos da própria mão de obra e participam do processo de produção do início ao fim, esse caminho não os aparta daquilo que constroem, isto é, de suas obras. Em tese, esse processo leva-os à desalienação artística e, consequentemente, à desalienação social, posto o teatro ser uma atividade social. No entanto, é importante frisar que no sistema capitalista a desalienação nunca será plena (MARX, 1983). 125 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Alienação e teatro Alienação em latim se diz alienus (outro), logo, é tudo aquilo que está alheio, apartado de nós, ainda que tenha sido criado pelos indivíduos. “A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma [...], não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser-outro separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles” (CHAUÍ, 1995, p. 170). Para Marilena Chauí, em Convite à filosofia (1995, p. 172-3), há três formas de alienação na sociedade moderna: a) alienação social, “[...] na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas”, aceitando-as passivamente ou se rebelando individualmente contra elas, como se fosse possível vencer “[...] a realidade que os condiciona”. Em ambos os casos, a sociedade é o outro, apartada dos sujeitos; b) alienação econômica, na qual aqueles que produzem – os trabalhadores – “[...] não se reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho”, observando-se aí dupla alienação, já que o próprio trabalhador torna-se mercadoria ao vender sua força de trabalho, sem perceber que, nesse ato, torna-se coisificado e, depois, o trabalhador-mercadoria produzirá outras mercadorias com as quais passam a se relacionar cotidianamente, esquecendo-se que em cada mercadoria foi dispendido trabalho humano. Desse modo, as mercadorias ganham autonomia, “[...] deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas”; c) e, por fim, a alienação intelectual, fruto da separação do trabalho material e do trabalho intelectual. Daí decorre o preconceito de que o trabalho manual não requer conhecimento, mas tão somente habilidade manual. O intelectual, por sua vez, pode vir a mergulhar em tripla alienação, pois muitas vezes ele se esquece que suas ideias decorrem da classe à qual pertence. De igual maneira, ele ignora que as ideias que produzem visam explicar a realidade na qual ele próprio está inserido, esquecendo-se de que elas não estão gravadas nessa realidade, como se ele apenas as descobrisse, acreditando que as ideias existem por si mesmas. “As ideias se tornam separadas de seus autores, externas a eles, transcendentes a eles: tornam-se um outro” (CHAUÍ, 1995, p. 173). Com base na observação desses pontos, o grupo teatral servirá de referência para a discussão da alienação econômica e da alienação intelectual observadas por Marilena Chauí, buscando desvelar de que maneira os coletivos teatrais, por estarem organizados em grupo, teriam mais facilidade de se desalienarem. Ainda que não se possa generalizar, na forma de grupo aqui entendida, não há venda de força de trabalho entre seus integrantes42, não há patrão, já que se constitui a partir de indivíduos imbuídos de um desejo de se expressar artisticamente. Como produtores, os artistas não se coisificam, isto é, não vendem sua força de trabalho nem se apartam daquilo que produzem, a saber, seus espetáculos. Esse primeiro processo de desalienação é de fácil compreensão, já que a obra artística tem valor de uso, não de troca; o espetáculo até pode ser inserido no “mercado” pois, no capitalismo, tudo tende a virar mercadoria. No entanto, as obras artísticas, ou parte delas, visam alimentar “[...] os valores espirituais do homem [que] são, na verdade, aspectos da plena realização de sua personalidade como um ser natural” (MÉSZÁROS, 2009, p. 175). Elas visam à formação dos sentidos, isto é, têm por objetivo humanizar o homem, pois não basta nascermos entre os seres humanos; é necessário um processo de humanização, como afirmou Karl Marx: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui” (apud MÉSZÁROS, 2009, p. 182). Dessa forma, as obras artísticas só têm sentido para o homem como valor de uso. Ainda que, em algum momento, a sociedade capitalista solicite que as obras estabeleçam uma relação de troca – caso em que os artistas são contratados para uma apresentação –, nesse momento, os produtores não estão/são apartados da obra teatral, e o espetáculo não deixa de ser do coletivo teatral, pois seus criadores são produtores e “produto” ao mesmo tempo. Dessa maneira, a obra jamais ganha autonomia de seus produtores em forma de mercadoria. Ainda que ela, ao ser apresentada e fruída pelo público, seja autônoma, ganhando diversos significados para aqueles que a fruíram. Poderiam se questionar se, nesse momento, ao venderem seus espetáculos – posto que os atores são os criadores e, em certa medida, a obra, pois não se pode realizar um espetáculo teatral sem eles –, não estariam vendendo sua força de trabalho. Segundo Karl Marx, em Salário, preço e lucro (1978), a venda da força de trabalho ocorreria no sistema assalariado. Marx afirma ainda que: “A força de trabalho de um homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva” (1978, p. 81). É o No entanto, em certas condições, porque vivemos em uma sociedade capitalista, nada impede que o grupo, ao necessitar de determinado serviço, contrate um profissional para um trabalho específico, transformando-se, assim, em “patrão”. Não obstante, entre as pessoas que compõem o coletivo não há venda da força de trabalho. 42 127 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 espetáculo teatral, obra/produto do grupo, que vai ao mercado, pois ele, em tese, é fruto de criação coletiva. Portanto, não há venda de força de trabalho, mas tão somente negociação com um produto ou obra artística43, apenas por determinado tempo: a duração do espetáculo. Essa troca no “mercado” traduz-se em lucro, já que o grupo teatral permanece como proprietário da obra. Vale salientar que, nessa perspectiva, o teatro em grupo é um trabalho improdutivo. Marx define trabalho produtivo como aquele que se troca por capital, “[...] para o que é preciso que os meios de produção do trabalho e o valor em geral, dinheiro ou mercadoria, se convertam, antes de mais nada, em capital e o trabalho em trabalho assalariado, na acepção científica da palavra” (2010, p. 151). Essa denominação de trabalho produtivo ou improdutivo não decorre das características do trabalho, “[...] mas das formas sociais específicas, das relações sociais de produção no interior das quais o trabalho se realiza” (MARX, 2010, p. 151). No entanto, isso não significa que a produção teatral não possa se tornar um trabalho produtivo: Um ator, inclusive um palhaço, pode ser, portanto, um trabalhador produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (de um empresário), ao qual restitui uma quantidade maior de trabalho do que a que recebe dele sob a forma de salário, enquanto um alfaiate que vai à casa do capitalista para arranjar-lhe as calças, criando não mais que um valor de uso, não é, pois, mais que um trabalhador improdutivo. O trabalho do ator se troca por capital, o do alfaiate, por lucro. O primeiro cria mais-valia; o segundo apenas consome lucro (MARX, 2010, p. 151). Assim, para Marx, a distinção de trabalho produtivo ou improdutivo se faz na relação, “[...] a partir do ponto de vista do capitalista e não do ponto de vista do trabalhador” (idem, p. 151. Grifo do autor). O que se percebe é que um mesmo trabalho pode vir a ser produtivo ou improdutivo. Desse ponto de vista, a produção de um grupo teatral só faz sentido como valor de uso, logo, improdutivo. Com relação à alienação intelectual, isto é, a divisão entre o fazer e o pensar, ainda que alguns grupos mantenham certa divisão entre as funções de atores, diretores, autores, cada vez mais essas funções se misturam, todos participam da construção da obra final. E como afirma Marx: “A divisão do trabalho somente se torna uma verdadeira divisão quando se separam o Não é o caso de discutir aqui que a arte não é mercadoria, pois o exemplo serve apenas para o entendimento das relações com as quais os grupos lidam. E estamos entendendo produto como obra dos homens; logo o espetáculo é um produto criado pelo grupo de artistas nele envolvidos. Desse ponto de vista, toda obra teatral é coletiva. 43 trabalho físico e o trabalho intelectual” (2010, p. 138). No entanto, sabe-se que ao longo do processo de qualquer pesquisa ou de criação de espetáculos em grupo, pensar e fazer se confundem. Há um movimento dialético da prática para a reflexão, retornando ao fazer em saltos qualitativos. No processo de criação de um espetáculo instaura-se, portanto, a práxis. Por outro lado, no campo intelectual propriamente dito – acadêmicos, pensadores e outros tantos profissionais que escrevem sobre o trabalho dos grupos ou registram a história do teatro –, salvo raríssimas exceções, quase não se encontram publicações voltadas à história do teatro dos grupos populares, bem como de suas práticas, pois, ao escreverem do ponto de vista da classe dominante, os intelectuais retiram o que a essa classe não interessa, restando apenas, como nomeou Bertolt Brecht (2005), um teatro culinário. Em virtude disso, muitos desses intelectuais continuam alienados. Se “a cena se dividiu”, sobretudo com a ascensão da burguesia, como afirma Gerd A. Bornheim, travou-se uma luta para reconduzir o teatro ao seu lugar de origem: Esse processo de marginalização como que condena os teatristas a uma luta que postula a reinvenção do próprio sentido do teatro, e a luta solerte, que se prolonga faz já quase um século. Entre nós também, são as mesmas lutas que eclodem, embora com o atraso de praxe e assimiladas, nos primeiros anos após a Segunda Guerra, as lições que nos trouxeram diretores de cena europeus, lutas motivadas pelas mesmas razões: a realização de um teatro nosso, de cunho eminentemente popular (BORNHEIM, 1983, p.11). Essas duas formas de alienação e seus respectivos processos de desalienação conduzem os indivíduos e, consequentemente, os grupos, ao processo de desalienação social, combatendo a primeira forma de alienação. De que forma? A compreensão da opressão imposta pelo sistema capitalista pode levar ao engajamento social e político, juntandoos em movimentos políticos e levando-os a uma consciência de classe. Entretanto, todo esse processo não ocorre de forma rápida, bem como não é suficiente pertencer a um grupo teatral para que ele ocorra, pois, como afirma Mauro Luis Iasi: A consciência de classe não está apenas na forma coletiva enquanto produto ou em suas representações institucionais acabadas, assim como não pode se reduzir a manifestações individuais que compõem estas formas coletivas, mas no movimento em que umas se transformam nas outras (2008, p. 74). 129 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 O processo é dialético. Para Walter Benjamin, em O autor como produtor (1996), o, por ele denominado, escritor progressista deve lutar ao lado do proletariado, orientando-se em função daquilo que seja útil para essa classe. Benjamin, no mesmo ensaio, lembra o teatro épico brechtiano como um avanço, na medida em que transformou o confronto com a arte burguesa em coisa sua, isto é, em algo que o outro lado recusa. É importante frisar também que não se está propondo aqui uma desalienação transcendental por meio do simbólico, haja vista que o processo de desalienação aqui discutido se dá em relação àqueles que praticam o teatro e não em quem recebe, ainda que estes, por meio das obras, possam estranhar um mundo naturalizado. Em relação à consciência de classe, Mauro Iasi estabelece três processos, afirmando que eles ocorrem de forma dialética. Cada momento contém elementos para sua superação, pois suas formas apresentam contradições que, “[...] ao amadurecerem, remetem à consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa em um processo que contém saltos e recuos” (2007, p. 12). Segundo o autor, fundamentado nas teses de Karl Marx, a consciência de classe “[...] não se contrapõe à consciência individual, mas forma uma unidade” (idem, p. 13), na medida em que as condições particulares sintetizadas levam a uma consciência de classe. Os três processos de consciência são os seguintes: consciência de si, consciência em si e consciência para si ou, dito de outra forma, consciência individual, consciência de grupo e consciência revolucionária. A primeira forma de consciência é formada a partir do próprio meio; são as representações que as pessoas têm da vida e de seus atos. Tratase da inserção no mundo como pessoa. Apesar de ser uma representação mental do mundo objetivo, é subjetiva. Sendo assim, é “[...] uma realidade externa que se interioriza” (IASI, 2007, p. 14). É, portanto, especialmente adquirida no seio familiar. Sabemos, os sujeitos nascem no mundo da cultura, isto é, em um mundo já feito, logo, na relação social; o sujeito internaliza a parte e generaliza-a, de maneira a perceber o todo (mundo) pela parte (sua vida). “Evidente que aquilo que fica interiorizado não são as relações em si, mas seus valores, normas, padrões de conduta e concepções” (Idem, p. 18). Dessa forma, o mundo se “naturaliza” e o sujeito forma o senso comum e com ele se conforma. Mesmo quando toma contato com outras instituições como a escola, o serviço militar ou o trabalho, tão diferentes da família (formadora da “personalidade”), instituições por meio das quais os sujeitos podem vir a adotar um papel ativo, menos dependente, já que distintas da família, nada garante que o potencial dos sujeitos se manifeste, podendo tão somente “[...] reforçar as bases lançadas na família” (Idem, p. 19). Assim, os cidadãos tornam-se disciplinados, e essa consciência passa a ser uma forma de alienação, visto que se toma a parte pelo todo. “A ideologia encontra na primeira forma de consciência uma base favorável para sua aceitação. As relações de trabalho já têm na ação prévia das relações familiares e afetivas os elementos de sua aceitabilidade” (Idem, p. 22). O autor afirma ainda que essa alienação não ocorre porque o sujeito está desvinculado da realidade, mas porque a naturaliza, sua visão de mundo está descontextualizada de sua história. Claro que podem surgir contradições, o que permitirá que os sujeitos avancem, pois a família mediatiza aquilo que foi determinado; no entanto, as representações mentais das forças produtivas são historicamente determinadas e, como as forças produtivas, transformam-se, geram contradições. Eis aqui uma contradição insolúvel capitalista: enquanto as forças produtivas devem constantemente desenvolverse, as relações sociais de produção, sua manifestação e justificativa ideológica devem permanecer estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das forças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonância entre as relações interiorizadas como ideologia e a forma concreta como se efetivam na realidade em mudança. É o germe de uma crise ideológica (IASI, 2007, p. 27). Se há novas relações com o mesmo potencial de interiorização, gerando outros valores, isso se reflete em condutas variadas, em novos comportamentos. Dessa forma, os indivíduos buscarão compreender o novo, a despeito dos próprios valores ultrapassados e arraigados. Surge daí um conflito interno e externo, levando-o a um estado de revolta que, mesmo assim, ainda não é a sua superação. Como afirma Iasi: “As relações podem não ser mais idealizadas; são agora vividas como injustas e existe a disposição de não se submeter; no entanto, ainda aparecem com inevitabilidade: ‘sempre foi assim’” (2007, p. 28). Dessa forma, só em determinadas condições a revolta pode dar um salto qualitativo e passar para um novo estágio de consciência. Para tanto, existe uma precondição: o grupo. “Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstâncias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um mecanismo de identificação da 131 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 primeira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade” (Idem, p. 29). Chega-se, assim, à segunda forma de consciência: consciência de si ou consciência reivindicatória. Ao se perceber parte de um grupo, que luta contra as mesmas injustiças, o indivíduo começa a vislumbrar mudanças. As lutas sindicais, os movimentos sociais e culturais são estágios dessa consciência. “O que há de comum nesses casos particulares é a percepção dos vínculos e da identidade do grupo e seus interesses próprios, que conflitam com os grupos que lhe são opostos” (IASI, 2007, p. 30). Ainda que essa forma de consciência continue a tomar como base as relações imediatas, já não é mais do ponto de vista do indivíduo, mas sim do grupo, da categoria, podendo, portanto, evoluir para uma consciência de classe. Quais são as contradições apresentadas nesse estágio ou nesse processo de consciência? É evidente que os grupos, as categorias, pela luta, negam as formas de produção capitalista, e isto pode levar à superação. Entretanto, mesmo negando, continuam a produzir dentro de um sistema cujas normas continuam as mesmas. Ainda que avancem em suas conquistas, mesmo que deem diversos passos, são apenas pequenas reformas. Tome-se como exemplo uma greve de trabalhadores de determinada categoria, que se organizam e lutam porque tomaram consciência da exploração imposta. Desse ponto de vista, esses trabalhadores estão se afirmando como classe. Mas vale destacar que, mesmo que se organizem e saiam vitoriosos dessa luta, os trabalhadores retomarão seus afazeres em igual modelo de produção. Dessa forma, [...] o proletário, ao se assumir como classe, afirma a existência do próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um pouco maior do que recebia antes. A consciência ainda reproduz o mecanismo pelo qual a satisfação do desejo cabe ao outro. Agora, ela manifesta o inconformismo e não a submissão, reivindica a solução de um problema ou injustiça, mas quem reivindica ainda reivindica de alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas (IASI, 2007: 31). Ao considerar as ideias do teatro épico brechtiano, Walter Benjamin, em O autor como produtor (1996), esclarece que a passagem do senso comum para a consciência crítica, segunda forma de consciência, pode levar os trabalhadores à falsa ideia de que dominam as máquinas (estrutura), quando, na verdade, são dominados por ela. Por isso, na concepção de Benjamin, ao escritor, por exemplo, não cabe apenas escrever, ainda que seja de forma combativa: Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera de produção, ou seja, quanto maior sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores (1996: 131-2. Grifo do autor). Para tanto, está implícita uma questão pedagógica, ou seja, não se trata apenas da conscientização individual e do grupo, é preciso engajar outros trabalhadores nesse processo. Não se pretende aqui diminuir a força das lutas travadas em greves, fundamentais para a transformação da consciência. Mas é importante deixar claro que essas lutas melhoram a vida dos trabalhadores, mas não há transformação do ponto de vista dos meios de produção e do sistema como um todo. Ainda que os trabalhadores estejam se afirmando como classe, é urgente que se tornem conscientes de todo o processo, como afirma Iasi: “Conceber-se não apenas como um grupo particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante da tarefa histórica da superação dessa ordem” (2007, p. 32). Continua o autor: “A verdadeira consciência de classe é fruto dessa dupla negação; num primeiro momento o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe, assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o capital (Idem, p. 32). Afirma-se, pelo exposto, que os fazedores de teatro, ao se organizarem em grupo, podem chegar a uma consciência de classe, e acredita-se que muitos chegaram a esse estágio no processo de conscientização. A prova dessa consciência é que os grupos teatrais têm se juntado em movimentos reivindicatórios, cobrando do Estado políticas públicas de cultura, de maneira a criarem melhores condições para si e para que sua arte chegue aos demais cidadãos e têm também se juntado aos movimentos sociais, reforçando suas lutas. Por outro lado, percebese que ficar apenas nesse estágio (mesmo sendo fundamental para a luta) não é suficiente para a transformação do sistema no qual estão inseridos. Claro que a grande transformação não cabe ao teatro, embora, como elemento de disputa do simbólico, tenha papel importante na luta 133 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 junto aos demais trabalhadores. Como afirma Rodrigo Dantas: “Entramos aqui nos subterrâneos da luta de classes, em que a luta pelo domínio da subjetividade antagônica do trabalho se materializa na luta pelo domínio do inconsciente, do imaginário, da própria produção desejante do proletariado” (2008, p. 96). Quais são os riscos inerentes ao segundo estágio de consciência? Corporativismo, burocratização ou aristocratização operária – termo utilizado inicialmente para demonstrar o enriquecimento dos trabalhadores ingleses na época vitoriana, fazendo com que eles arrefecessem os ânimos na revolução. Depois, o termo foi generalizado para toda ascensão material por parte de alguns trabalhadores que, mesmo “enriquecendo”, não deixam sua condição de trabalhador, embora não se reconheça mais entre os seus. Dessa forma, a consciência pode levar a uma passividade diante de fatos incontroláveis, podendo, inclusive regredir, pois como alerta Iasi: “O processo de consciência não é linear, pode e muitas vezes regride a etapas anteriores” (2007, p. 33). Outro ponto a destacar: “O amadurecimento subjetivo da consciência de classe revolucionária se dá de forma desigual, depende de fatores ligados à vida e à percepção singular de cada indivíduo” (IASI, 2007, p. 35). Por isso mesmo pode haver dissonâncias e disparidades entre alguns indivíduos e sua classe, entre indivíduos e seu grupo. Isto é, o indivíduo pode atingir a consciência revolucionária até mesmo em um grupo alienado. “Por isso, o indivíduo que se torna consciente é, antes de tudo, um novo indivíduo em conflito” (Idem, p. 36). A sociedade capitalista, por mais hipócrita que isso possa parecer, se autoproclama a sociedade da harmonia. O indivíduo em conflito é isolado como se não expressasse uma contradição, mas fosse ele mesmo a contradição, mais que isso, o culpado por sua existência. Enquanto isso, o alienado recebe o título de “normal” (Idem, p. 37). É dessa forma que o indivíduo em conflito, ao verificar a ausência de elementos revolucionários junto à sua classe, pode sofrer “depressão”, como afirma Iasi, ou regredir até mesmo ao estágio de revolta. Quais as contribuições de um coletivo teatral? Se o compartilhamento de todo o processo criativo, bem como de toda a sua organização interna, pode levar os seus criadores à desalienação, suas obras, seus espetáculos podem suscitar no público o interesse pela reflexão sobre a realidade na qual estão inseridos. A arte é uma forma de conhecimento do mundo; sua importância aumenta ao realizar uma abordagem estética realista, em que a realidade do homem é o ponto de partida de sua criação, sabendo que ela “[...] não é um dado bruto ou um produto acabado e sim um movimento” (KONDER, 2009, p. 162); por outro lado, é importante saber que o conhecimento proporcionado pela arte não é um conhecimento cientifico. Quanto ao significado de realismo, podemos tomar os pressupostos de Bertolt Brecht, que acredita que uma arte realista deve: • • • • apresentar o sistema da causalidade social; escrever do ponto de vista da classe que propõe as soluções mais amplas para as dificuldades mais urgentes em que se encontra a sociedade humana; destacar, em qualquer processo, os seus pontos de desenvolvimento; ser concreto e possibilitar a abstração (1973, p. 11). Em um mundo globalizado, cujos mecanismos de alienação nos bombardeiam indistintamente, organizar-se em grupo, compartilhando todos os processos vividos pelos seus integrantes, num processo de autogestão44, é contrapor-se à hegemonia capitalista; criar obras artísticas críticas, tomando a realidade como ponto de partida, é colocar-se em disputa simbólica; facilitar o acesso às obras, visando à troca de experiências, é levá-las para o principal campo de batalha, pois é aí que se pode dialogar diretamente com os trabalhadores. Rafael Vecchio, no livro A utopia em ação (2007), que aborda a organização da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, afirma que a autogestão se opõe à heterogestão capitalista. Assim, a autogestão não está atrelada ao lucro, sendo uma prática que acena para uma mudança radical da sociedade em termos políticos, econômicos e sociais. 44 135 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 7ª ed. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Obras escolhidas; v. 1). BORNHEIM, Gerd A. Teatro: a cena dividida. Porto Alegre: L&PM, 1983. BRECHT, Bertolt et al. Teatro e vanguarda. Trad.: Luz Cary e Joaquim José Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença, S/D. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, 5ª ed. São Paulo: Ática, 1995. COSTA, Iná Camargo. O teatro de grupo e alguns antepassados. 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Considerando a luta de classes como cerne de suas investigações, esses coletivos superam os estigmas recorrentes sobre “a arte de esquerda” ao produzirem espetáculos densos e com profunda carga poética a partir de um discurso assumidamente político. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Palavras-chave: teatro de grupo, teatro paulistano, arte e militância, luta de classes. Abstract: The search for a non-hegemonic theater and closer ties with organized social movements guided the process of aesthetic and political education of some present-day theater groups. Considering the class conflict as the core of their research, these collective outweigh the applicants stigmas about “political engaged art” by producing dense shows with deep poetic charge from an clearly political discourse. Keywords: theater group, São Paulo theater, art and activism, class conflict. Foto de Bob Sousa. Cia. Estável. Osvaldo Pinheiro em Homem cavalo & sociedade anônima. Daniela Giampietro – tem graduação em Licenciatura em Arte-Teatro e é estudante de mestrado do Instituto de Artes da UNESP. É integrante da Companhia Estável de Teatro e professora do curso de teatro infanto-juvenil da Fundação das Artes de São Caetano do Sul. 45 A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/ Mbarakay46 Realizar uma reflexão significativa sobre o teatro contra hegemônico desenvolvido por alguns dos grupos teatrais da atualidade e sua aproximação com movimentos sociais organizados, certamente, implica em estabelecer a devida relação entre o processo de formação política e estética de parte da categoria artística e as forças econômicas e sociais contemporâneas. No auge de uma das piores crises já geradas pelo sistema capitalista, aos que se atrevem, resta a difícil tarefa de desvincular-se de todo ecletismo filosófico-midiático moderno e posicionar-se com clareza diante das barbáries perpetradas contra a classe trabalhadora. Desse modo, é no reconhecimento da existência histórica da luta de classes, e dos genocídios cíclicos praticados pelas classes dominantes, que reside o embrião de intervenções e espetáculos muitas vezes estigmatizados pela própria categoria teatral: - “Eu faço teatro, não faço política!” – bradou um dia, aos gritos, uma ingênua e corajosa companheira. Ingênua porque não se dava conta da opção política de “seu teatro” e corajosa porque, diante do que lhe parecia um atraso estético e filosófico, preferiu posicionar-se. Obviamente, não é de hoje que grupos alinhados à esquerda pagam o preço pelo desenvolvimento de um teatro politicamente consequente, sobretudo quanto aos posicionamentos históricos. A voracidade de opositores dispostos, no mínimo, a desclassificá-los os obriga a criar, permanentemente, estratégias de enfrentamento dentro e fora dos espaços artísticos cabendo, inclusive, apropriar-se de experiências estéticas realizadas pela classe trabalhadora em luta - como o teatro de agitação e propaganda, por exemplo - para somar-se a ela em suas pautas e disputas públicas sempre acirradas. Entretanto, o mais curioso acerca de grande parte dessas produções estéticas é que, ao contrário do que prega o senso comum, elas nada têm de pragmáticas e tampouco – é preciso rir de certos adjetivos 46 Trecho da carta assinada pelos líderes indígenas da aldeia Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul e remetida ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em outubro de 2012. 139 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 “rancorosas”. O lirismo e a potência imagética de uma obra como Marruá, do grupo Parlendas ou da obra Conjugado, realizada pelos coletivos Dolores, Estável e Inhocuné Soul, derrubam definitivamente a tese de que espetáculos políticos são duros e verborrágicos ou, ainda, de que é preciso explorar os recônditos lugares da alma dos indivíduos para que o amor e a poesia se manifestem. A vida é tão bela quanto a luta para mantê-la e é preciso evidenciar a história dessa luta para que a exploração e todas as formas de opressão se desnaturalizem. Existe força poética e desafio maior do que este? Evidentemente, este não é um caminho só de acertos, afinal, coletivos de pesquisa em teatro, pesquisadores que são, nem sempre confirmam suas hipóteses e o resultado pode ser bastante confuso ou ineficaz em termos de recepção da obra. No entanto, o processo de formação dos atores inseridos em grupos de pesquisa teatral é dialético, permanente e fruto de um modo de produção absolutamente contra hegemônico. Um coletivo de teatro, mesmo que tente – e alguns tentam - reproduzir em sua organização interna todos os níveis hierárquicos de uma empresa, sempre estará à margem do sistema produtivo capitalista. E esses atores a quem o capitalismo presenteou com a ilusão de fazerem do ofício de ator uma profissão, terminam descobrindo, por necessidade, outros modos de relação produtiva na dinâmica interna dos grupos. E é na radicalização de tais relações, dialéticas e contraditórias, que também ocorre a formação estética e política dos trabalhadores das artes cênicas. Além dessa aprendizagem, que ocorre em âmbito interno, também, é necessário pontuar que algumas conquistas da categoria teatral organizada, dentre elas a Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo47, facilitaram a formação e estruturação de novos grupos já voltados à esfera pública o que, de alguma forma, implica no comprometimento de continuidade na luta por políticas de fomentação, ampliação e descentralização da produção cultural. É de volta à esfera pública, portanto, que o teatro vem conseguindo encontrar alguma interlocução e manter-se como prática social significativa. E são, justamente, nas questões de interesse público que ocorre o Redigida por artistas integrantes do movimento Arte Contra a Barbárie, a lei é fruto de uma longa batalha política por parte da categoria teatral, na tentativa de possibilitar ao sujeito histórico teatro de grupo uma pesquisa continuada em âmbito estético e social. Para entender um pouco mais sobre o impacto da lei de Fomento na produção teatral na cidade de São Paulo, consultar: Iná Camargo Costa & Dorberto Carvalho. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiro anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. 47 alinhamento entre arte e classe trabalhadora. E uma vez alinhados, não há como fechar os olhos para a expulsão e assassinato de trabalhadoras e trabalhadores pobres. Não há como aceitar o genocídio, físico e cultural, de etnias indígenas e nem a transformação do planeta em depósito de lixo e mercadorias inúteis. Não há como continuar admitindo que a riqueza gerada pelos trabalhadores sustente o luxo de capitalistas vagabundos e parasitas. Inevitavelmente alinhados, teatro e classe trabalhadora, não há como deitar a cabeça no travesseiro e pensar na arte pela arte. Não em tempos como estes em que a poesia pode e deve tingir-se de vermelho e sair novamente às ruas. Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa. Nestes últimos vinte anos nada de novo há no rugir das tempestades. Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas. Vladmir Maiakovski (E então, que quereis?). Referências bibliográficas COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (orgs.). Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Cooperativa Paulista de Cooperativa, 2012. 141 Relato de uma te-arteira, integrante de um coletivo (in)tenso, em processo de constante (de)formação, por Natália Siufi48 Resumo: O texto apresenta uma articulação entre fazer parte de mesa que discute teatro de grupo; ensinamentos vividos durante o período na universidade, e, sobretudo, a prática teatral em um grupo de teatro que concilia permanentemente o estético e o histórico-social. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Palavras-chave: teatro de grupo, teatro político, coletivo, experiência, cultura popular. Abstract: The text presents a link between part about discussing theater group; teachings experienced during the period at the university, and, above all, the theatrical practice in a theater group that permanently combines the aesthetic and historical-social. Keywords: theater group, political theater, collective experience, popular culture. Alguns argumentos: 1) Todo teatro é político. Não há “um certo tipo de teatro” que seja político. Qualquer divisão, segmentação, como se fosse uma especialidade, obscurece a questão de que todo teatro é político. Tal como não existe arte pela arte, todo teatro tem efeitos políticos, mesmo que não tenha consciência disso. Sendo assim, é importante nos darmos conta a quem servimos, de que lado estamos; nos darmos conta a quem o teatro serve, a quem serve sua técnica. 2) Não adianta apenas ser simpático à causa dos oprimidos, apenas denunciar a exploração. Qualquer tendência política é falsa se não préescreve a atitude que deve adotar para concretizar essa tendência. Apenas a convicção política não basta. Tal como Walter Benjamin pontua em O autor como produtor (1996), a exigência fundamental é não abastecer o aparelho de produção da opressão, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista. 3) A qualidade da produção artística está intimamente relacionada com seu aperfeiçoamento como aparelho para servir à causa de transformação social. Walter Benjamin (1996) pontua que é preciso colocar à disposição da causa um aparelho cada vez mais perfeito. E esse será tanto melhor quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores 48 Natália Siufi é atriz e diretora, integrante fundadora do Grupo Teatral Parlendas e produtora do Grupo Mamulengo da Folia. Formou-se em licenciatura em artes cênicas, na UNESP. Artista Orientadora do Programa Vocacional, articuladora da Rede Brasileira de Teatro de Rua e do Núcleo Paulistano de Pesquisadores em Teatro de Rua, desenvolve suas pesquisas na linguagem cômica popular e nos modos de produção de teatro de grupo. os leitores e espectadores. Trata-se de disparar no homem a reflexão de sua posição no processo produtivo a fim que ele se posicione. Brecht, neste mesmo sentido, fala da tarefa de “refuncionalização”: a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência interessada na liberação dos meios de produção a serviço da luta de classes. O autor consciente não visa apenas fabricar obras ou produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, os meios de produção compatíveis com suas convicções. Tal caminho coincide, ainda, com a Pedagogia do oprimido de Paulo Freire, que requer a superação do sistema de opressão através de pensamento crítico articulado com ação prática, ou seja, pela práxis. Paulo Freire requer um diálogo que não impõe, não maneja, não domestica, não é slogan. Em vez de um evento teatral onde um sujeito exerce domínio sobre uma plateia passiva, trata de sujeitos que se encontram para o exercício da pronúncia do mundo. Os argumentos aqui apresentados foram emprestados da parceira Carolina Abreu, que muito ajudou na organização de nossas ideias e na teorização de nossa prática. 143 Foto de Annaline Picollo. Grupo Teatral Parlendas. Elton Maioli e Natália Siufi em Marruá, em Campo Grande/Mato Grosso do Sul. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Relato de uma te-arteira, integrante de um coletivo in(tenso), em processo constante de (de)formação Não à toa começo pedindo ajuda a parceiros, pois o grupo no qual atuo se alimenta muito dessas fricções provocadas por pessoas de diferentes campos, cruzadas por aí em diversas estradas. E entendido alguns de nossos pressupostos, podemos falar de coletivo ou de estética (temas desse texto) a partir de conceitos agora comuns. Nosso teatro toma partido e talvez o modo de produção coletiva seja a única forma de coerência com que o que buscamos. Mas antes... outros parceiros! Por ser “prata da casa” (referência ao nome da mesa de estudos para a qual fomos convidadas) nessa estrada/trajetória unespiana, não posso deixar de comentar o mais que parceiro, mestre, Alexandre Mate, que não só acompanhou de perto as pegadas de nosso coletivo e desta que agora escreve, como mostrou atalhos, apontou buracos e refez conosco percursos longos, mostrando muito mais do que víamos antes de sua presença. Dessa troca, fica em nós, sobretudo, a necessidade de ir além, de ser radical, de enxergar em profundidade e sempre de modo contextual: de buscar as raízes; de sermos críticas, mas com critérios, daquelas que passam as coisas na peneira, para ver decantado; de buscarmos o significado/origem das palavras para compreender os sentidos de formação de ideias, conceitos e práticas; de darmos valor ao que é simples, popular e claro!, por isso, sofisticado; de ser não “eu”, mas nós, coletiva e múltiplas nas tantas partes de nós; de não fazer concessões, porém agindo com tática e delicadeza; de persistirmos no trabalho de grupo, resistindo em meio ao lixo-mercadoria e à indústria-arte. Seguindo esses passos, não poderia fazer um texto que tem o tema “A prata da casa se posicionando sobre a crença e compromisso do teatro como experimento estético-social, a força do coletivo” sem compreender o sentido da palavra coletivo. Coletivo (lat) collectivu - recolhido; que se funda no raciocíonio/ Séc XVII: os nomes collectivos são aqueles que no singular significam multidão, como povo, gente etc. Coletivo de colher junto. De singular que é plural. De algo que se funda em pensamento, em razão. Lembrei dos Baniwa, da aldeia Castelo Branco, lá em cima no mapa, no rio Içana, no Amazonas. Ajuri é o nome que eles dão para os mutirões na roça, na época de colheita da mandioca braba, fonte importante do sustento e sobrevivência da comunidade, mutirão em que todos trabalham juntos, com funções muito bem divididas e distribuídas. Coletivo! Está aí talvez nossa maior arma contra a mercantilização de nossas vidas e, ao mesmo tempo, nossa grande dificuldade, nas contradições do con-viver. Como produzir coletivamente, buscando formas não hierárquicas, iguais e que se somem às potências e habilidades dos indivíduos, para um objetivo comum? Para Walter Benjamin (1996), não há sentido em um autor que não ensine nada a outros autores. Precisamos não apenas buscar cenas, imagens, musicalidades, desenhos, formas... mas pensar e repensar a maneira de criá-los. Estabelecer já, nesse mundo ainda, no hoje, outras relações de trabalho que não as mediadas só pelo capital. Fazer o nosso fazer de um jeito que seja nosso e não do jeito a reproduzir servilmente o sistema que criticamos. Mas como fazer isso, premidos diariamente pelo tempo, regras e espaços desse sistema? E aí nascem nossas contradições, tantas, e estou certa de que não convivemos com elas como quem está bem satisfeito. Elas gritam, doem, incomodam, inquietam, fazem mexer e remexer as musculaturas dos nossos corações, nos fazem frágeis e fortes. Nossas contradições nos movimentam na tentativa de cada vez mais aproximar prática e pensamento, futuro e presente, utopia e possibilidade. Cabe aqui trazer a experiência do nosso coletivo, que em meio à realização de um primeiro projeto de fomento, se viu tomado por tantas atividades e fazeres fundamentais que, por vezes, o tempo espaço do ócio e do nada fazer era pequeno demais, fazendo com que sucateássemos nossas relações e desgastássemos nossos corpos, numa insana tarefa de atuar, militar, criar, gerir uma sede, produzir, estar em uma comunidade, circular, escrever e tudo mais que é sempre muito mais. E que ninguém reivindique o descanso. Ócio? E a possibilidade de não pensar em nada!? Pronto! Lá estamos nós reproduzindo nosso inimigo capital. Negar o ócio = negócio. É isso que o sistema quer! Que seja vergonha o tempo não produtivo, que o único espaço vazio do seu dia seja num entretenimento “amortecente” futebol-novela-cerveja ou para os mais endinheirados alguma atração da indústria cultura, do show-business ou por aí, qualquer coisa que aliene um pouco mais de tudo que a potência como ser-humano gostaria, de toda sua liberdade ou desejo próprio. E nosso ócio, diversão, descanso, alegria, que nos faz criar, que nos faz produzir nossa arte, cadê? Como? Se nossa política pública para as artes só legam editais que nos pagam para produzir? Se mesmo o Fomento, que é um modelo de lei a ser ampliado e pensado nacionalmente, conquista da categoria, está com uma verba abaixo do que a quantidade 145 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 de grupos qualificados demanda, o que gera competição, aumento de atividades, corte nos orçamentos, e nisso, mais trabalho! E nesse “tempo-producão-edital” ou “tempo-produção-capital” muitos coletivos sucumbem. Por isso, é preciso achar saídas, pensar junto, rever os meios de produção, lutar por outras formas de financiamento, por outras formas de subsistência, por mais verba, por mais manutenção e pesquisa e menos resultado, resultado, resultado. Sim, isso também é um chamado à categoria, aos colegas, para que ocupemos as ruas, a câmara, a prefeitura, as praças, exigindo que nosso trabalho-arte-não-mercadoria tenha formas para (r)existir. E no meio desses turbulentos processos de trabalho, em um almoço em nossa cozinha compartilhada, uma de nossas aprendizes nas oficinas do projeto, Letícia Carvalho, atriz do grupo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, e psicóloga com especialização em esquizoanálise, manifesta sua vontade de desenvolver conosco um trabalho focado no entendimento do que seria autogestão em um coletivo de teatro. Trago aqui essa experiência por ter completa relação com nosso pensar o coletivo e a força do coletivo na busca de uma estética forte e potente. E o que teríamos de concreto enquanto objeto de pesquisa de alguém? E percebi a imensidão que movíamos, na tentativa diária de fazer um trabalho contra todas as lógicas de um mercado voraz, sem chefia, sem liderança, buscando igualdade nas relações, em processos dialéticos e contraditórios, complexos, envolvendo autonomia, autoridade, vontade, companheirismo, afeto, respeito... Sim! Topamos! E sabendo que topar significa entrega, tempo, escuta e disponibilidade. Aceitamos abrir nossas vísceras e olhar dentro, entender o funcionamento dos mecanismos de nossas relações, compreender as subjetividades e o que há de mais concreto. Não buscamos individualismos, essa é uma análise a partir do grupo, do todo, do social, coletiva. E desses encontros, entendemos que nossas estruturas internas estão o tempo todo sendo reestruturadas e modificadas pelas forças motoras sociais e institucionais, que estão externas. Entendemos que só há coletivo se há indivíduos fortes que se fortalecem mutuamente. E como viver uma autonomia, aliada a conceitos de auto-gestão, a não-hierarquia das atividades, horizontalização das relações e proponência coletiva sem que as idiossincrasias do grupo sejam desconsideradas? O caminho do trabalho em grupo é longo, difícil e tortuoso, mas ao mesmo tempo nada é tão delicioso como compartilhar as conquistas, dividir as dificuldades, ver-se num meio onde não há chefes ou empregados, onde cada qual contribui, onde o diretor não é mais que o ator, onde o atuador pensa, constrói, reflete. Isso não impede funções ou divisões de tarefas, desde que não sejam cristalizadas, eternas e insubstituíveis, desde que a função não represente o poder, mas a organização prévia de algo que será dividido com todos. E todos, muito além de apenas nós mesmos. Nosso coletivo se junta a coletivos maiores, a movimentos sociais, grupos organizados, outros coletivos que nos fortalecem e são fortalecidos por nós. A nossa classe é enorme. Somos trabalhadores como tantos outros, que fazem greves, protestos, manifestos, que clamam por outra sociedade, assim como nosso teatro que se propõem a materializar nas imagens outras realidades que não as ensinadas e naturalizadas. Descontruir o que está dado, o obvio, mostrando que as coisas são construídas, gerando nos seres-humanos autonomia, possibilidade, liberdade e, portanto, diversão. Brecht ensina bem isso! Teatrólogo alemão que buscou expedientes, também, na cultura popular achar e formas de fazer históricas significativas. Que pensou junto com atores e atrizes, a partir de textos construídos previamente, mas em processo de criação coletivo. Talvez o grupo, por sua característica de continuidade, de permanência, seja a saída para não termos de narrar a história do teatro a partir de nomes de diretores ilustres e suas ideias brilhantes, mas a partir de conjuntos de indivíduos que escolhem sua forma de fazer, criam sua estética, suas ações que vão para além do teatro, em mutirões, manifestações, encontros, festas, lutas, gestão de sedes públicas, construção de políticas de financiamento etc. E não há como pensar nossos coletivos menores, desassociados de coletivo maior, que é a própria sociedade. Não há como se ausentar da história e não tomar partido, e não atuar no contexto político e social. Somos sujeitos históricos, nosso teatro comunica, e em coletivo, decidimos o que queremos comunicar nessa barbárie-caos-metrópole que nos atropela todos os dias. Não há receita, não há coletivo ideal, não há uma ilha socialista em meio ao capitalismo. Há tentativas concretas de romper as correntes, de agir diferente, de ser-humano nesse mundo máquina, de tirar poesia de pedra, de recuperar a potência dos encontros, do olhar/tocar/sentir, de fazer ciranda, abrir roda, cantar junto mesmo que ainda não afinemos tão facilmente... De expandir a consciência de nossos corpos e de outros corpos, de celebrar o que é vida. 147 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Forte nos encontrarmos na UNESP, nessa semana de estudos, para falar de nossos coletivos, de nossos trabalhos em comunidade, em luta, em processo. E ver, na mesa, distintos seres-humanos com trabalhos completamente diferentes (que bom!), estéticas próprias, narrativas de diversos lugares, querendo se olhar, se ouvir, e sabendo e reconhecendo que somos parecidos, que temos tanto em comum. Forte sermos ali, grupos, e não apenas “eus”. Como na última Mostra Lino Rojas de Teatro de Rua, em que na sede do TUOV – Teatro Popular União e Olho Vivo, pintamos as paredes com nossas mãos e nomes, a convite de César Vieira, e percebemos que nossas marcas tinham nomes de grupos: Buraco d’Oráculo, Parlendas, Coletivo Alma, Pavanelli, Brava, Dolores, Bazar, Mamulengo da Folia, Estável, Cirquinho do Revirado, Pombas Urbanas... Que cada vez mais nas paredes, universidades, mesas, estantes e lousas, não sejam homens-brancos-colonizadores-bandeirantes os exemplos a serem seguidos. Que contemos outra história, daqueles que constroem, que trabalham e que resistem. Não para criação de heróis, mas sim de parceiros, encontros, referências, possibilidades. Que não se pronuncie apenas o eu, o meu, o dele, mas o que é nosso, que é de todos, que é público, como nossa arte pública que (r)existe colorindo a cidade, traçando outras linhas e criando novos espaços, nossos! O Grupo Parlendas tem seis anos de trabalho continuado, há dois anos com uma sede, compartilhada com outros coletivos, no Clube da Comunidade Vento Leste, Jardim Triana, Zona Leste. A sede é fruto de ocupação e resistência, com mais de dez anos, e que sofre ameaças de desapropriação. Para mais informações sobre os trabalhos de nosso coletivo: www.grupoparlendas.com. Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Obras Escolhidas; v. 1). FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 42ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. BLOCO II: O evento de 2014 Impressões e expressões: as práxis de 05 de maio Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Em busca da arte da mediação como prática política e pública (e em processo de politização) nestes tempos sombrios; (ou melhor): Já que nem toda política é pública, como reinventar a luta?, por Daniela Landin49 Resumo: A reflexão aqui apresentada está amparada no registro em síntese da experiência de mediação da mesa “Políticas Públicas e o Teatro”, ocorrida em 5 de maio de 2014, na VI Semana de Estudos Teatrais, do Instituto de Artes da Unesp, e da fala dos debatedores convidados Marisabel Mello (Secretaria Municipal de Cultura), André de Araújo (Projeto Ademar Guerra), Rudifran Pompeo (Cooperativa Paulista de Teatro/ Grupo Redimunho de Investigação Teatral) e Luiz Carlos Moreira (Engenho Teatral). Partindo do pressuposto do autor francês Denis Guénoun de que o teatro é fundamentalmente político, problematiza-se brevemente a noção de “políticas públicas”, com destaque para o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Palavras-chave: política pública, grupo teatral, Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Abstract: The reflection presented here is supported in the registry in short of mediation experience the discussion “Public Policies and the Theater”, occurred on May 5, 2014, in VI Semana de Estudos Teatrais, in Instituto de Artes (Unesp), and the speech of the guest debaters Marisabel Mello (Secretary Municipal Culture), André de Araújo (Project Ademar Guerra), Rudifran Pompeo (Cooperativa Paulista de Teatro/ Redimunho de Investigação Teatral) e Luiz Carlos Moreira (Engenho Teatral). Starting from the french author presupposition that the theater is fundamentally political, discusses up briefly the notion of “public policy”, highlighting the Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Keywords: Public policies, theater group, Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Prólogo: o contexto Inaugurando a VI Semana de Estudos Teatrais do Instituto de Artes da UNESP, cuja edição teve como mote “A força do teatro de grupo no Brasil”, reunimo-nos na manhã da primeira segunda-feira de maio de 2014 no Teatro Reynuncio Lima para a realização de mesa temática intitulada Daniela Landin é formada em Licenciatura em Arte-Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), integrante do Coletivo Cafuzas e participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com). 49 “Políticas públicas e o teatro”. Os debatedores convidados foram Marisabel Mello (diretora da Divisão de Fomentos da Secretaria Municipal de Cultura, tendo sido coordenadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo durante três anos e meio), André de Araújo (diretor de teatro, gestor cultural e assistente de curadoria do Projeto Ademar Guerra - representante de Aldo Valentim, coordenador do Projeto), Rudifran Pompeo (presidente da Cooperativa Paulista de Teatro e integrante do grupo Redimunho de Investigação Teatral) e Luiz Carlos Moreira (autor, diretor e integrante do grupo Engenho Teatral). Convidada para mediar a mesa e antevendo as dificuldades que enfrentaria diante do ato público da fala, era possível, no entanto, entender a experiência como um exercício pedagogicamente significativo que ensejaria um breve balanço da minha formação no Instituto de Artes e que dissesse respeito a uma responsabilidade política com a universidade. Ao longo dos seis anos em que estudei no Instituto de Artes, participei das edições da Semana de Estudos Teatrais, basicamente como ouvinte, em debates e atividades de formação que tanto me fizeram refletir acerca de um sem-número de aspectos relativos ao fazer teatral, em suas imbricações com as práticas pedagógica e política. Como mediadora de um debate, havia a possibilidade de contribuir agora a partir de um outro “lugar” de participação. Mediação: prática política Mediação, em tese, se caracteriza em ato de intervenção entre momentos de uma experiência coletiva de modo a relacioná-los. Num encontro voltado para a discussão de determinados assuntos, além da abertura para o exercício tão importante da escuta, é preciso que nossa atenção se volte a duas frentes de ação: aquela marcada pela fala, com o intuito de colaborar para a elaboração coletiva, e uma outra, talvez ainda mais relevante, ligada à partilha da fala, garantindo voz aos participantes e potencializando a experiência. A mediação parece oscilar entre essas duas dimensões do trabalho, mas residir, sobretudo, na segunda. Ofício belo, portanto. E que, atendendo ao convite de Alexandre Mate, complementa-se com este registro, possibilitando o acesso das pessoas que, por quaisquer motivos, não estiveram presentes. 151 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Breves apontamentos acerca do tema “O teatro é uma atividade fundamentalmente política e pública”; ou: O que o teatro de grupo tem a ver com tudo isso? O tema do debate realizado propõe uma articulação de ideias intrinsecamente relacionadas: política, público e teatro. Entre outros autores, o diretor, dramaturgo e professor francês Denis Guénoun, discutiu tais relações. Em A exibição das palavras (2003), Guénoun remete-nos à noção original em torno do termo “teatro” - do grego, théatron, “lugar de onde se vê”. Ou seja, o teatro, inicialmente, refere-se à “assembleia de espectadores”, na expressão do autor – e o uso de uma palavra fundamentalmente política, “assembleia”, não é aleatória. Daí a tese de que o teatro é público, em duplo sentido: manifesta-se no público e configurase em atividade pública. Sabe-se que, ao longo do processo histórico, a noção de “teatro” se desloca do público e passa a designar o edifício, como local privilegiado para a representação, a cena ou simplesmente a linguagem artística. Mas, no sentido atribuído primeiramente, teatro é o lugar do público reunido. Além disso, para ser realizado, o teatro necessita de uma convocação, pública, e, em seguida, do encontro concretizado. Esses dois momentos do teatro apontam para a sua característica eminentemente política, em que o político está na própria representação e não necessariamente no representado (ainda que não seja indiferente à escolha dos conteúdos). Guénoun aponta ainda para a disposição do público como outra manifestação do político no teatro, com recorrência para a forma circular. Isso porque o círculo é a disposição que permite que o público se veja e se reconheça, não como massa, mas como agrupamento de sujeitos, percebendo o seu “estar-ali coletivamente”. “É, ao menos como esperança, como sonho, uma comunidade” (GUÉNOUN, 2003, p.21). Enfrentar a constatação de que o teatro é uma atividade intrinsecamente política já abre uma senda para o processo de politização de todos os envolvidos nesse tipo de experiência estético-social. Pode-se afirmar que um dos frutos do processo mencionado é a criação do chamado “teatro de grupo”, construído com base em sentidos de militância política e estética. Tendo em vista o contexto cultural da cidade de São Paulo em tempos de resistência à ditadura civil-militar instaurada em 1964 no Brasil, teatro de grupo é tática de luta frente às dificuldades colocadas às práticas políticas, de acordo com Alexandre Mate, em tese de doutoramento acerca da produção teatral paulistana da década de 1980. Em entrevista concedida ao pesquisador, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu afirmou que o teatro de grupo é formado por aqueles que “[...] disseram não ao sistema, ao modelo, ao mercado” (MATE, 2008, p. 211). Em outras palavras, esse “não” significa a construção de relações de trabalho horizontais, a recusa da figura do patrão e a criação de um modo de produção divergente daquele dos reinos do entretenimento e das mercadorias. Por outro lado, não há recursos estáveis para salários fixos para esses trabalhadores impossibilitados de produzir lucro e eternamente desempregados, como pontua o diretor Luiz Carlos Moreira no texto Discutindo o próprio umbigo ou Atiro as primeiras pedras ou Questão de responsabilidade (2000), lido em reunião do movimento Arte Contra a Barbárie. O movimento congregou fazedores de teatro que se contrapunham ao processo de mercantilização da cultura, com predomínio de uma política de eventos para o setor, como constava no primeiro manifesto, que veio a público em maio de 1999. Os signatários do documento, sendo a maioria integrante de grupos de teatro formados entre os anos de 1980 e 1990 (exceção feita ao diretor e dramaturgo César Vieira, do resistente Teatro Popular União e Olho Vivo, de 1966), passaram a se reunir para discutir a respeito do cenário socioeconômico e político que determinava as condições precárias do trabalho artístico, ao mesmo tempo em que encurralava as possibilidades de práticas culturais contra-hegemônicas. A questão básica, não custa insistir, é entender que as teses liberais do “estado mínimo”, da eficiência administrativa etc., encobrem um movimento de dupla direção: o estado abandona seus compromissos com previdência, saúde, educação, cultura - que correspondem a direitos consagrados na Constituição de 1988 e atendem às necessidades e demandas dos trabalhadores e da população mais pobre -, deixando o caminho livre para a sua exploração pelo capital e redireciona as verbas orçamentárias destes setores [...] aos que servem mais diretamente aos interesses do capital, representados em ministérios como os da Fazenda, Planejamento, Agricultura etc. [...] Leis de renúncia fiscal fazem parte deste processo. Consistem em transferir ao próprio capital a prerrogativa de definir políticas para a arte e a cultura (COSTA e CARVALHO, 2008: 19). Em síntese, após um intenso processo de debate, formação e mobilização gerado entre a categoria teatral da cidade, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, na forma da Lei 13.279, foi promulgado pela então prefeita Marta Suplicy, em 8 de 153 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 janeiro de 2002. Em seguida, tem início uma nova etapa da luta, em prol da viabilização do Programa. Em 2003, dos 178 projetos inscritos para a primeira edição do edital, 23 são contemplados. Ao longo desta última década, é possível perceber o impacto da lei no cenário teatral paulistano em termos de qualidade estética, possibilitada pela continuidade das pesquisas dos coletivos, estímulo à criação de grupos dada à circulação de trabalhos e oferta de oficinas (entre outras atividades de formação) e potencialização do caráter transformador do teatro em sociedade bem como de sua dimensão política e suas contribuições à vida pública. O Programa de Fomento configura-se na principal conquista dos grupos de teatro de São Paulo, enquanto categoria precarizada organizada, no tocante às políticas públicas. Na análise de Moreira, tal feito só foi possível graças às poucas concessões que o Estado é obrigado a fazer para garantir o discurso ideológico de que é neutro, público, de todos: A questão central é simples e, até hoje, difícil de engolir: pela primeira vez, o Estado, no caso a prefeitura paulistana, foi obrigado a pôr dinheiro num sujeito histórico que não é o mercado, numa outra forma de organizar e estruturar a produção, o núcleo artístico com trabalho continuado. Que, registre-se mais uma vez, não pode ser autossustentável (MOREIRA, in: DESGRANGES e LEPIQUE (orgs.), 2012, p.24). A mesa temática: “Políticas públicas e o teatro” Politicamente heterogênea, a mesa foi composta por debatedores que produziam suas falas a partir de diferentes “lugares”, sendo cada convidado, de alguma forma, representativo desses variados âmbitos: poder público, mais especificamente a Secretaria Municipal de Cultura; um projeto público, no caso, o Ademar Guerra; uma entidade da categoria teatral, a Cooperativa Paulista de Teatro; e um grupo de teatro, por meio de um militante ligado à luta por políticas públicas na área. Em linhas gerais, Marisabel Mello comentou a importância do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, destacando o traço fundamental desta política pública: ser fruto da militância da categoria teatral e reflexo da força política do teatro de grupo da cidade de São Paulo, o que, apesar dos tantos obstáculos, vem garantindo a permanência da lei. Salientou ainda a liberdade de pesquisa e criação possibilitada pelo Fomento, numa perspectiva coletiva, elencando dados significativos no que concerne à quantidade de projetos contemplados, além de apontar para alguns problemas ligados ao Programa, como uma certa disputa entre os grupos teatrais, identificando a ausência de categorias específicas para a contemplação como uma lacuna a ser resolvida. Já André de Araújo mapeou a anterioridade do Projeto Ademar Guerra, nascido do Projeto João Rios – este último tendo sido implementado durante a ditadura civil-militar e voltado para atender e monitorar os grupos de teatro do interior do Estado de São Paulo. Ao contrário dessa pecha autoritária, o Ademar Guerra foi apresentado pelo debatedor como uma política pública caracterizada pela descentralização das práticas teatrais a fim de amparar grupos quixotescos que se espalham pelas tantas cidades interioranas. O trabalho no projeto é marcado pela interculturalidade, pela noção de troca entre artistas (orientadores e integrantes de grupos), pela capacitação e ampliação de repertório, pela formação de público, enfim, pelo fomento ao teatro, em que os orientadores, sensíveis à importância dos afetos das relações estabelecidas com os coletivos, mostram-se atentos para os processos de formação dos integrantes dos grupos atendidos. Rudifran, por sua vez, apresentou dificuldades em relação à articulação com determinados sujeitos e à briga pela manutenção das políticas públicas. Mencionou a disputa entre os grupos como traço revelador da divisão da categoria teatral, o que favorece discursos contrários a determinadas políticas públicas, como o Programa de Fomento. Comentou também a respeito da precarização do trabalho dos fazedores de teatro e dos entraves à sobrevivência dos coletivos existentes justamente pelo fato de os grupos se configurarem a partir de um modo de produção antihegemônico. Defendeu ainda a necessidade de criação de uma cartografia em sentido documental relativa às práticas de teatro de grupo. Por fim, antes da abertura para as perguntas e comentários das pessoas que acompanhavam o debate (estudantes da graduação em teatro da UNESP, principalmente), Moreira desferiu uma série de provocações. Ele localizou historicamente o início do conceito de política pública na primeira metade do século XX, calcado em um pensamento voltado para a realização de reformas. Identificou o processo de naturalização de determinados discursos em torno da mercantilização da cultura por meio das relações próximas entre Estado e mercado – e é nesse contexto em que as políticas públicas são discutidas e implementadas. Moreira afirmou ainda que, exceto pela manutenção do Programa de Fomento – que, vale lembrar, deve ser ampliado, o que talvez esteja longe de acontecer –, perdemos nesta luta. A partir do desenho do cenário sombrio em que estamos inseridos, apontou que a organização dos grupos de teatro (caracterizada por ele 155 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 como organização do trabalho precário) está condicionada às estruturas do Estado, construído para a manifestação máxima do capital e que promove as variantes de existência do mercado, o que, no limite, conduz à criação de um modo de vida alicerçado em torno da forma-mercadoria. Epílogo Em A Lei do Tormento (ARANTES, in: DESGRANGES e LEPIQUE (orgs.), 2012, p.24), o filósofo Paulo Arantes redimensiona a discussão sobre políticas públicas em apontamentos bastante provocadores, ao identificar certa armadilha na qual o teatro de grupo se deixou apanhar, ainda que não tivesse como evitar. Sem minimizar a importância de uma conquista da categoria como o “Fomento”, desvela algumas contradições de uma militância em sociedade capitalista, em que a luta social vai sendo progressivamente canalizada para o universo regulado e vigiado das políticas públicas (que, a rigor, são consensuais) e, nessa esteira, embarca na institucionalização da concorrência. Nisso, acabamos por participar de um outro “quase-mercado”, que resulta da exportação das regras concorrenciais mercadológicas e que não funciona por meio de coerção, mas surge do interior de núcleos organizados. Afirma o filósofo: “Uma novidade no léxico da esquerda, ‘política pública’ então é isto: reordenar o universo associativo em expansão segundo rituais de concorrência entre práticas selecionadas por edital – no fim da linha, o elo mais fraco da luta de classes, estilizado em planilha como ‘público-alvo’” (idem, p.209). Ao final, o filósofo alerta para a urgência de reinvenção da luta, ao citar fala da ex-secretária executiva do Ministério das Cidades no primeiro governo Lula, Ermínia Maricato, em entrevista à revista Caros amigos, em maio de 2010. A conclusão de Ermínia reafirma o caminho a ser trilhado: tal reinvenção deve levar em consideração uma luta em chave necessariamente anticapitalista. 157 Referências bibliográficas: COSTA, Iná Camargo; DORBERTO, Carvalho. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura - os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (orgs.). Teatro e vida pública - o Fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec: Cooperativa Paulista de Teatro, 2012. GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras - uma ideia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. MATE, Alexandre. A produção teatral paulistana dos anos 1980 - r(ab) iscando com faca o chão da história: tempos de contar os (pré)juízos em percursos de andança. Tese (de doutoramento) apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP), 2008. MOREIRA, Luiz Carlos. Discutindo o próprio umbigo ou Atiro as primeiras pedras ou Questão de responsabilidade. Disponível em: http:// engenhoteatral.wordpress.com/caderno-de-viagem/ Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo: a busca de um teatro para a cidade... E de uma cidade para as pessoas!, por Maria Silvia do Nascimento50. Resumo: Correspondendo à fala apresentada por Marisabel Mello, sobre questões decorrentes da aplicação do Programa Municipal de Fomento à atividade teatral na cidade de São Paulo, o texto apresenta as principais questões e dificuldades quanto à aplicabilidade da lei municipal. Palavra-chave: Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, teatro de grupo, Secretaria Municipal de Cultura. Abstract: Corresponding to the speech by Marisabel Mello, on issues concerning the application of the Municipal Program for the Promotion of Theatrical Activity in São Paulo, this text presents the main issues and difficulties regarding the applicability of municipal law. Keywords: Municipal Development Program to the Theater for the City of São Paulo, theater group, Municipal Culture. O texto aqui apresentado decorre da fala de Marisabel Mello51 durante a mesa temática intitulada “Políticas públicas e o teatro” que integrou a abertura da VI Semana de Estudos Teatrais – A força do Teatro de Grupo no Brasil. Desse modo, a transcrição desenvolvida amplia a fala, tentando apresentar outras fontes acerca da Lei Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, agregando uma breve pesquisa bibliográfica sobre o assunto e algumas de minhas impressões pessoais enquanto estudante de teatro e artista. Segundo Marisabel, o Programa de Fomento é paradigmático na medida em que se opõe à principal lei referente à cultura na época de sua criação: a Lei Rouanet52. Promulgada em 1991, a Lei Federal 8.313 teve como princípio a renúncia fiscal, transmitindo à iniciativa privada a decisão final sobre o destino da verba pública. Complementando seu raciocínio, acredito ser importante ressaltar que essa lógica – um tanto esquizofrênica – define um modelo de gestão cultural fundamentado em critérios puramente mercadológicos para a Graduação em Licenciatura em Artes-Teatro no Instituto de Artes da UNESP, e pós-graduanda pela mesma instituição, palhaça, produtora cultural, educadora e teatreira. 50 Diretora do Núcleo de Fomentos Culturais da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, coordenou o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo durante três anos e meio. 51 52 É valido lembrar sua equivalente no âmbito municipal: A Lei Mendonça (Lei nº 10.923 de 30 de dezembro de 1990). 159 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 produção cultural no país, consequentemente, o bem cultural – em nosso caso, o espetáculo de teatro – é rebaixado à categoria de mercadoria. Dessa forma, a cultura tornou-se “um bom negócio!”, principalmente para quem a patrocina e para os intermediários, pois o montante investido provém de impostos devidos e esse tipo negociação não incorre em riscos. Os projetos patrocinados – salvo aqueles que conseguem milagrosamente convergir interesses públicos e privados – reafirmam aquilo que já é consagrado pelos valores dominantes: presença de “celebridades” televisivas ou alinhamento aos planos de marketing os mais diversos. Do outro lado, a Lei Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo (Lei 13.279/2002), que institui o Programa de mesmo nome, baseia-se no financiamento público direto ao teatro, por meio de editais e comissões julgadoras especializadas, promovendo um novo paradigma de produção cultural e artística. O Programa de Fomento foi fruto de um diálogo entre o poder público municipal e artistas organizados por meio da atuação contundente do Movimento Arte Contra a Barbárie e suas reverberações. Nas palavras de Marisabel, o Fomento “tem no seu DNA, o processo coletivo de elaboração, de discussão e de articulação política”, desencadeando um projeto de lei emblemático para cidade e de referência nas esferas nacional e internacional. Isso posto, é pertinente expor um breve histórico da instituição do Programa. O Movimento Arte Contra a Barbárie, formado por grupos de teatro e pensadores dessa arte53, foi uma reação ao contexto de exacerbação de políticas neoliberais dos anos 1990, no qual os direitos à cidadania eram ameaçados ao serem transformados em “produtos e serviços”. O conceito de barbárie empregado pelos militantes espelha-se no que propõe Fernando Peixoto (2004), segundo o qual a barbárie seria a indistinção, ou seja, a incapacidade de diferenciar algo de seu oposto; ou ainda: um julgamento do mundo de maneira amorfa, atribuindo valores às coisas sob os mesmos critérios e sem considerar suas especificidades. Naquele momento – e ainda, hoje - a barbárie representava a visão mercantilista e a ação predatória do capitalismo sobre as artes, em especial, sobre o teatro. 53 Em seu primeiro núcleo, o Movimento Arte Contra a Barbárie era formado por Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Umberto Magnani, Aimar Labaki, Tadeu de Souza e pelos grupos Tapa, Parlapatões, Patifes e Paspalhões, Companhia do Latão, Teatro da Vertigem, Folias d´Arte e Pia Fraus. Ao longo do tempo, o Movimento agregou diversas pessoas envolvidas com o teatro na cidade. A reflexão sobre a função social da arte levou à redação do Primeiro Manifesto Arte Contra a Barbárie, assinado em maio de 1999. Decorrente do primeiro, mais dois manifestos foram criados, sendo o terceiro lançado em junho de 2000 e assinado por mais de 600 pessoas, após diversas reuniões e pesquisas de grupos de trabalho que estudaram a situação da cultura no Brasil e em diversos países do mundo. Os manifestos expunham o total descaso com a arte por parte das autoridades: o cancelamento de prêmios; a falta de politicas públicas estáveis; o pífio percentual de verbas públicas destinado à cultura; o caráter não democrático e centralizador da destinação de verba; a visão de cultura apenas enquanto eventos e entretenimento; a negligência perante a qualidade da produção artística e às formas de cultura e arte não hegemônicas. O terceiro manifesto, entretanto, propunha medidas mais concretas para viabilizar programas de cultura democráticos e perenes, baseados na Constituição Federal em vigor e em outras leis municipais. Por meio de um processo cada vez mais intenso de reflexão e pesquisa, as proposições coletivas foram confrontadas com modelos internacionais de politicas culturais – sobretudo, o italiano. Logo, surgiu a redação do projeto de lei do futuro Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo que obteve apoio da Câmara Municipal, em especial na pessoa do vereador Vicente Cândido (Partido dos Trabalhadores). Assim, após mais de dois anos de trabalho coletivo, no dia 08 de janeiro de 2002, a lei foi promulgada. O texto continha alguns aspectos fundamentais para instituir uma politica pública renovadora para o teatro, como: dotação orçamentária própria; instituição de uma comissão avaliadora especializada; valorização do processo criativo e da pesquisa de linguagem continuados e não apenas do resultado em forma de espetáculo; necessidade de contrapartida social consonante com necessidades da cidade, como descentralização e formação de público. Segundo Marisabel, os princípios da Lei do Fomento ofereceram maior liberdade aos artistas, o que é essencial para suas criações. No entanto, essa não foi uma ação isolada da prefeitura para promover o fazer teatral de forma diferenciada, pois, segundo Marisabel, “existia um conjunto de ações, que possibilitava ao Teatro de Grupo e ao teatro em geral a pesquisa, a circulação, a formação e a difusão”. Assim sendo, “havia condições para que uma política pública de teatro pudesse florescer na cidade”. 161 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 No período da gestão de Marta Suplicy (2001-2004), criou-se o Programa de Formação de Público que tinha como objetivo levar “Um conjunto de programações que envolviam apresentações e um processo formativo” para os vinte e um Centros Educacionais Unificados54 (CEUs) da prefeitura e para os Teatros Distritais (teatros públicos de bairro, distribuídos pelas quatro regiões da cidade) que, por sua vez, também possuíam um programa municipal de ocupação por parte de coletivos de teatro. Foram, também, instituídos os programas de formação: Vocacional, que iniciou com a modalidade teatro, e Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), que apoia iniciativas de jovens em várias linguagens, das quais a linguagem do teatro é uma das mais potentes, com maiores números de inscrições e de projetos aprovados. Entretanto, as administrações subsequentes desencadearam uma interrupção nesse processo de legitimação do teatro enquanto direito de cidadãos e cidadãs. Entre 2005 e 2012, embora tenham sido criadas algumas ações culturais, por exemplo, segundo Marisabel, “um espaço de asilo e abrigamento para os funcionários de carreira da prefeitura de São Paulo”, houve poucas propostas desenvolvidas por parte do poder executivo. Segundo a palestrante, a Secretaria Municipal de Cultura adotou um “Processo de zeladoria dos equipamentos públicos e de zeladoria da própria ação cultural na cidade”. O termo “zeladoria” define uma política de mínimos investimentos na área em questão apenas para a conservação do considerado estritamente essencial. Tudo que parecia sólido, desmanchou-se no ar!. Logo, os CEUs perderam seu caráter fundamental de integração de artes, cultura, formação, educação e lazer para a população e definiram-se apenas como “escolões”. Ademais, o Programa de Formação de Público foi extinto. O Vocacional na modalidade teatro não teve ampliação significativa, apesar do Programa ter se expandido para outras linguagens. As programações teatrais da cidade ficaram restritas aos Teatros Distritais, sendo que muitos deles permaneceram fechados ou em reforma e não foram entregues até o momento de participação de Marisabel no evento em epígrafe55. Além disso, poucos coletivos teatrais fomentados tiveram acesso a pautas nesses locais. Atualmente (dezembro de 2014), a cidade conta com 45 CEUs espalhados por suas regiões periféricas, todavia, nem todos seguem o modelo inicial. 54 55 Atualmente, a cidade possui dez Teatros Distritais, dos quais três estão fechados. Já o Programa VAI teve sua continuidade assegurada pela força e pela potência dos coletivos jovens das periferias. Ao mesmo tempo, o Programa de Fomento ao Teatro foi ameaçado56 e resistiu principalmente graças à vigilância constante exercida pelo Teatro de Grupo, no sentido de preservar sua conquista. Outra vitória do período foi a criação do Programa de Fomento à Dança57 que ajudou a consolidar uma área específica para fomentos dentro da Secretaria. Apesar de não possuir a simpatia do corpo dirigente da Secretaria de Cultura naquele momento, o Fomento ao Teatro tinha ainda grande apoio dos funcionários de seu corpo técnico. Marisabel afirma que essa adesão de funcionários de carreira à causa fez muita diferença no processo de preservação do Programa. Foram essas pessoas que “tiveram uma dedicação e um compromisso, do ponto de vista de gestão e de seus procedimentos, para garantir a existência do Programa”. Dessa forma, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo legitimou seu espaço de politica pública permanente. De acordo com Marisabel, o Fomento é um “atravessador de décadas”, o que comprova que o sucesso das políticas públicas está relacionado diretamente com sua construção a partir do debate entre artistas, população e agentes do poder público. Ao contrário, as políticas públicas “de gabinete” tendem a possuir “vida curta”. No período da 1ª a 20ª edição, por meio do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, foram produzidos: 228 espetáculos; 23 publicações na modalidade livros, que registram os processos de pesquisa dos coletivos; 58 tipos diferentes de materiais de divulgação, propaganda e agitação, como jornais, revistas e cadernos; 20 DVDs, que documentam trabalhos dos grupos participantes. Entre os anos de 2002 e 2013, foi investido um total de R$ 117.249.641,87 para contemplar 342 projetos (no universo de 2.090 projetos inscritos) e 127 núcleos artísticos. Os dados acima auxiliam na constatação do impacto positivo do Programa de Fomento para os coletivos teatrais, para as comunidades e para a cidade como um todo. Reiterar a relevância do Programa de Fomento é extremamente importante, pois, nas palavras de Marisabel: “Ele Não foram poucas ou raras as falas segundo as quais a Lei de Fomento seria inconstitucional. 56 Instituído em setembro de 2006 através da Lei 14071/05, o Programa de Fomento à Dança teve trajetória análoga à de teatro, sendo marcado pelo ativismo de artistas da dança e sua articulação por meio do movimento Mobilização Dança em diálogo com o poder público municipal. 57 163 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 é um programa que, durante todo seu período de existência, provocou, e provoca ainda, muitas paixões. As pessoas não ficam simplesmente alheias a ele. Tem aqueles que amam e tem aqueles que odeiam”. Assim sendo, ponho-me ao lado daqueles que amam o Programa, sobretudo por perceber que mesmo quem o ama admite suas contradições e o faz visando contribuir para sua melhoria. Reconhecemos que sua existência – ou resistência! – depende de uma reflexão contínua sobre os caminhos percorridos. O amor encontra-se, então, na dedicação e na luta para preservar essa conquista coletiva. A crítica mais comum ao programa refere-se à repetição dos mesmos grupos contemplados. É possível observar que grande parte deles recebeu os recursos do Programa mais de uma vez, porém, isso é uma decorrência do princípio de continuidade dos projetos de pesquisa – um fator norteador desde a criação do Fomento. Assim, quando um grupo consegue investir em sua pesquisa e em suas ações, como sede, publicações, espetáculos, oficinas, ele precisa de recursos para preserválas. O Fomento foi criado justamente para atender pesquisas que não eram reconhecidas pelo mercado, sendo assim, é um contrassenso exigir que as atividades realizadas consigam outras fontes de recursos que não os investimentos públicos diretos. O Fomento proporcionou a existência de projetos de amplo escopo, que integram diversas ações complementares direcionadas para os processos criativos, atividades de formação e fruição artísticas. A nova forma de produzir valoriza o processo de criação e seus desmembramentos e não apenas o produto cultural/produto final. Assim, os coletivos passaram a questionar seus procedimentos de criação e suas relações de trabalho, ou seja, as relações de poder dentro dos próprios grupos. Isso refletiu em formas mais horizontalizadas de trabalho em todos os níveis e naturezas de atividades. O foco no processo deixa evidente a preocupação com a criação e a experimentação de linguagens e, em mais de dez anos do Programa, é possível se observar uma grande riqueza de manifestações teatrais pela cidade, em suas ruas, praças, teatros, espaços alternativos e inusitados e, ainda, nas sedes dos grupos fomentados. As sedes dos grupos representam, além de um espaço de ensaio e apresentação, novos equipamentos culturais para São Paulo. Elas fortalecem o enraizamento do fazer artístico na cidade, muitas vezes, de forma ainda mais legítima do que os próprios equipamentos criados pelo poder público. Nesses espaços, são estabelecidas relações estreitas como o entorno, por meio de atividades de formação, como oficinas, debates e outras diversas possibilidades de diálogos entre comunidades e artistas – aqui, até essa distinção entre o que seria a comunidade e quem seriam os artistas não parece muito adequada. Contudo, a existência de uma sede do grupo não é um fator determinante para esse ser contemplado pelo Programa de Fomento, apesar disso se mostrar uma contrapartida social muito potente. A contrapartida social – sobre a qual também recaem diversas críticas – é um requisito da Lei de Fomento devido ao fato do Programa ter sido desenhado, desde o seu principio, para a cidade e não para o teatro. Às vezes, acusada de “assistencialista”, outras, de “apaziguadora de tensões sociais”, é indiscutível a contribuição dos grupos para a geopolítica da cidade e o seu caráter de participação direta da população na transformação do status quo. Mais uma problemática atribuída ao Programa de Fomento é que sua existência criou um ambiente favorável para o surgimento de novos grupos teatrais, ou melhor, para a sobrevivência desses. Assim, o limite de trinta projetos anuais, estabelecido em lei, tornou-se um gargalo para o fluxo de ações teatrais da cidade, pois o número de grupos que têm perfil para o Programa é muito maior na atualidade. Consequentemente, a demanda por recursos ampliou-se e a disputa entre os concorrentes é crescente, muitas vezes, acontecendo de maneira não equitativa, uma vez que grupos já consagrados competem com grupos em formação. Entretanto, uma medida possível para “desafogar” a procura pelo Programa de Fomento – apresentada também por Marisabel Mello - foi o surgimento do Prêmio Zé Renato de apoio à produção e desenvolvimento da atividade teatral para a cidade de São Paulo. Esse visa à produção e à circulação de espetáculos teatrais realizados por núcleos artísticos, pequenos e médios produtores culturais, sem exigência de contrapartida social, ou melhor, considerando-se a própria realização do projeto como contrapartida. Dessa forma, a Lei Nº 15.951/2014, que institui o novo Prêmio, possibilitou a cobertura de diferentes perfis de atuação teatral na cidade58. 58 Em sua fala, Marisabel expõe que a atual prefeitura está retomando algumas políticas esquecidas a partir de 2004, por exemplo, no que se refere aos CEUs. Ela afirma também que há metas de ampliação do programa Vocacional, novos projetos de circulação de espetáculos e de formação teatral. Em sua opinião, seria esse o momento de se estabelecer um novo diálogo entre artistas e o poder público a fim de criar novas politicas públicas “pra 165 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Por outro lado, acredito que seja imprescindível refletir – e agir! – sobre como garantir a efetiva continuidade dos coletivos teatrais com um histórico de ações que necessitariam ter seu acesso aos recursos públicos garantido permanentemente. O caráter intermitente das verbas públicas – sujeitas a aprovação nos editais – gera uma condição de insegurança e precarização do trabalho. Na atual conjuntura, grande parte dos coletivos do chamado Teatro de Grupo vive constantemente em risco59, apesar de sua existência traduzir a voz do interesse público. Parece-me, então, muito nítido que o poder público tem o dever de assegurar a eles maior estabilidade, reconhecendo a notoriedade de suas criações e a legitimidade de seu trabalho. Em outras palavras, o Fomento fez “florescer” o teatro na cidade... Agora é preciso assegurar seus “frutos”! A força do Teatro de Grupo na cidade São Paulo dá origem a espaços de resistência de um modo de pensar e agir que prioriza as pessoas, comunidades e o bem comum. Uma fenda de humanidade é aberta em meio a uma sociedade na qual predominam os interesses de uma minoria e a lógica do capitalismo. O Teatro de Grupo na cidade derruba muito mais do que a “quarta parede” do teatro dito tradicional. Ele põe abaixo as barreiras que separam artistas e plateia, público e privado, elite e povo, espetáculo e processo, arte e vida. Não obstante, o Teatro de Grupo ergue muros de resistência para assegurar os territórios coletivos que são, hoje, constantemente devastados pela “força da grana” e seu maior cumplice: o fatalismo. que, no final de 2016, a gente tenha outras políticas públicas que, a exemplo do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, deixem de ser políticas de governo (de gestão) e se transformem realmente em políticas públicas de Estado”. No momento, um dos principais algozes dos grupos teatrais – e de todo espaço de caráter público na cidade - é a especulação imobiliária. 59 167 Referências: COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. DESGRANGES, Flávio. Lepique, Maysa (org.). Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec: Cooperativa Paulista de Teatro: 2012. PEIXOTO, Fernando. Dicionário crítico de políticas cultural. São Paulo: Iluminuras, 2004. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Política cultural: provocações & contradições, por Luiz Carlos Moreira60 Resumo: O Estado moderno é a organização máxima do capital. A mercantilização da cultura e uma política cultural voltada para o mercado são, portanto, “naturais”, fazem parte dessa história. No século XX, frente ao perigo revolucionário, o projeto social-democrático propõe a mudança da sociedade via reformas através do Estado. Nascem as políticas públicas e o Estado do Bem-Estar Social. Passa o perigo, vêm as crises do capital, que não consegue mais pagar seus custos de reprodução, e o Estado, responsável por esses custos, quebra. O neoliberalismo recompõe o discurso de que só o mercado resolve tudo. Em São Paulo, no final do mesmo século e no meio do desmanche neoliberal, um movimento intitulado Arte Contra a Barbárie denuncia: cultura é necessidade e direito e cabe ao Estado promovê-la. Exige uma política pública de cultura. Propõe que esta se consolide em programas, e não num programa único, e em fundos. Ambos deveriam ser estabelecidos em leis, com orçamentos e regras próprias que todo governo (Poder Executivo) seria obrigado a aplicar e cumprir. Os programas teriam um caráter estrutural e estruturante; os fundos serviriam a cada conjuntura, via editais a serem constantemente reelaborados com participação dos envolvidos. O movimento perde a batalha, mas deixa um exemplo concreto: o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Através dele, o município passa a apoiar financeiramente projetos de trabalho continuado, basicamente o chamado grupo teatral, uma forma de produção que, em si, traz a negação à forma empresarial e mercantil de organizar o trabalho. Os grupos proliferam e a cidade vive uma primavera teatral em quantidade, qualidade e capilaridade. Mais de 10 anos se passam. O programa permanece uma ilha isolada e não é atualizado frente à demanda que gerou. A precariedade resultante dessa limitação, as contradições internas dos grupos (invadidos pelo trabalho alienado, por exemplo) e o desmanche da classe trabalhadora que esfumaça um público “natural” transformam o fomento num tormento. Em 2013, multidões tomam as ruas contra um Estado que não as representa. A pauta de exigências é enorme, não há perspectiva revolucionária nem um programa unificador. As reivindicações apenas apontam um renascimento da luta por políticas públicas? A repressão mostra os dentes de múltiplas formas e o Estado de exceção se impõe. 60 Autor, diretor, cenógrafo, iluminador, integrante do Engenho Teatral (SP). Palavras-chave: Capitalismo, Estado, revolução, social-democracia, política pública, Arte Contra a Barbárie, fomento ao teatro, grupo teatral, trabalho alienado, mercantilização, forma de produção. Abstract: The modern state is the maximum capital organization. The commodification of culture and cultural policy aimed at the market are therefore “natural” part of this story. In the twentieth century, against the revolutionary danger, the social - democratic project proposes changing society through reforms through the state. Born public policies and the State Social Welfare. Pass the danger come the crises of capital, which can no longer pay their costs of reproduction, the State (responsible for those costs) break. Neoliberalism recompose the speech that only the market solves everything. In São Paulo, at the end of that century and in the middle of the neoliberal dismantling a movement called Art Against Barbarism denounces culture is necessary and right and the state must promote it. Requires a public policy culture. Proposes that this be consolidated into programs, and not a single program, and funds. Both should be established in law with budgets and own rules that all government (Executive Branch) would be required to implement and enforce. The programs have a structural and structural nature; the funds would serve every situation, via notices to be constantly reworked with participation of those involved. The movement lost the battle, but leaves a concrete example: the Municipal Development Program to the theater for the city of São Paulo. Through it, the municipality shall financially support continued work projects, primarily the so-called theater group, a form of production that in itself brings the denial to the business and commercial way of organizing work. The groups proliferate and the city lives a theatrical spring in quantity, quality and capillarity. More than 10 years pass. The program remains an isolated island and is not updated to fulfill the demand it generated. The resulting insecurity of this limitation, the internal contradictions of the groups (invaded by alienated labor, for example) and the dismantling of the working class that a public Fades “natural” turn fostering a torment. In 2013, crowds take to the streets against a State which is not the. The agenda of demands is huge, there is no revolutionary perspective or a unifying program. The claims only indicate a fight renaissance for public policy? Repression showing teeth in multiple forms and a state of emergency is imposed. Keywords: Capitalism, State, revolution, social democracy, public policy, Art Against Barbarism, promoting the theater, theater group, alienated labor, 169 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 commercialization, production form. Foto de Bob Sousa. Engenho Teatral. Iraci Tomiato em Opereta de botequim. 1. O Estado moderno é a organização máxima do capital. Sua função é proteger a propriedade privada dos meios de produção e os lucros, manter a relação de trabalho patrão-empregado e bancar as despesas de custeio da forma mercadoria, tais como moeda, transporte, comunicação, justiça e polícia, enfim, tudo o que é necessário à produção e circulação de mercadorias e que as empresas, isoladamente, não podem fazer. 2. O Estado moderno não é, portanto, inimigo do mercado, foi criado por ele para ser seu mantenedor máximo e, sem ele, não sobrevive. É impossível separar o mercado, o capital, desse Estado. E também é impossível separar esse Estado do capital. 3. A mercantilização da cultura e das políticas desse Estado são, portanto, “naturais”, quer dizer, fazem parte dessa história. 4. Mas só porrada, isto é, lei, justiça e polícia, não seguram esse rojão. A coisa funciona na marra, mas com doses homeopáticas de concessões e compensações (que ninguém é de ferro) e muito, também, na base do consentimento. As pessoas têm que aceitar que tudo isso é “natural”, que o mundo e os homens são e sempre foram assim, que é assim que as coisas funcionam, que isso é melhor para todos, que não há saída, que basta você ser competente para vencer e se dar bem, que o trabalho enobrece o homem, que um homem sem trabalho não é ninguém, que... Nada melhor do que a ideologia e sua cultura do estabelecido lugar comum para dourar a pílula do bom senso que fabrica uma visão de mundo, uma visão de ser e estar no mundo. Neste mundo, evidentemente. A esse sentimento nada natural, mas historicamente construído dentro de cada um de nós, dá-se o nome de cultura hegemônica. 5. Enfim, vivemos numa sociedade burguesa, numa cultura burguesa, somos todos, culturalmente, mulheres e homens burgueses. 6. E é assim que acreditamos que o Estado deve ser: neutro, público, servir ao interesse do povo, da nação, do Brasil, e que o problema são os políticos e seus partidos; no limite, o problema é a própria política. E quem não viveu seu momento de “horror à política” que atire a primeira pedra. Não percebemos que a própria noção de povo e nação é a conciliação de classes, é a manifestação máxima do pensamento hegemônico já naturalizado, entranhado em nossa jugular. 7. Na mesma bacia ideológica, aprendemos que a melhor maneira do Estado servir ao interesse público é entregar ao mercado o destino e a vida do povo e da nação. O mercado tudo resolve, inclusive na cultura, e qualquer intervenção estatal será taxada de censura. Obviamente, isso só 171 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 vale para o tal povo, já que os donos da grana, as megacorporações, não largam os políticos, a política, o Estado e seus sistemas de financiamentos, subsídios, contratos, leis, polícia, proteção, manutenção da ordem (deles) que aí está. 8. Mas quem depende do emprego para sobreviver sabe que esse mercado e seu Estado não são um mar de rosas. E isso vale até mesmo para os prepostos do capital, que ganha muito bem, obrigado, mas que vive no inferno do tempo cada vez mais enlouquecido da mercadoria, totalmente incompatível com o tempo biológico do mamífero homem. Isso pra não falar da fome e da miséria de bilhões de seres humanos em contraposição à centralização cada vez maior das riquezas mundiais. Ou será que ninguém percebe as fusões diárias das grandes corporações mundiais que controlam o planeta e os Estados? 9. Então, volta e meia, a casa cai. Foi assim em 1848, em 1871, em 1917, em... E lá se vão os anéis para não se perder os dedos. A máscara e a mascarada se recompõem. Na primeira metade do século XX, a coisa estava feia: a revolução do tal fantasma que rondava a Europa era uma presença assustadora. 10. O que fazer? 11. Sem ir ao fundo desse angu, vou direto à sopa servida. Prevaleceu a tese social-democrata: através de reformas fomentadas pelo Estado, mudaríamos o mundo. Seria uma passagem pelo tal Estado do Bem-Estar Social, só uma passagem. Nascia, nesse caldeirão, a ideia de políticas públicas, com um condimento secreto, ideológico, para o preparo do prato: a premissa de que esse Estado é ou pode ser público, de todos, servir a todos. A história das concessões e compensações chegava ao Estado depois de alguns “probleminhas”, como o enforcamento de trabalhadores em Chicago, que queriam (imaginem!) jornada de oito horas de trabalho por dia, ou os acontecimentos relacionados às datas mencionadas no item 9, acima. 12. Fim do prólogo. Agora, um pé no presente, no aqui e agora, na terrinha, neste pedaço de terra chamado Brasil. Como nos requentamos nesse caldeirão já transformado na tina – o “There Is No Alternative” da Margareth Thatcher – do neoliberalismo e do capital financeiro? 13. Pra começo de conversa, nem mesmo a tese social-democrata se coloca mais. A História acabou. Não se trata mais de mudar o mundo pelos caminhos a, b ou c. Temos que ser realistas e pragmáticos e ver o que é possível: compor com um Congresso conservador e esquecer a rua; só nos resta melhorar o sopão, a tal política de compensação e concessões onde se rifa o futuro pelo presentinho imediato. E a coisa tá tão feia que nem isso a direita quer. 14. Em termos de política pública de cultura, a coisa é assim, diria/disse um ex-presidente do partido do governo: “é besteira o Minc defender o Procultura junto às bancadas do Norte e Nordeste dizendo que o dinheiro vai todo para o Sudeste; o banqueiro que financia a campanha em São Paulo é o mesmo que financia a campanha no Recife e o deputado vai votar no que o banco mandar ele votar, não interessa se ele é do Sul ou do Nordeste”. 15. Não é assim que as coisas são? Então, é assim que as coisas são! Tautologia pura a explicar a política(gem). 16. Pausa para informações necessárias na compreensão desse guisado. 17. Outras premissas dessas provocações: o autor confessa não ter interesse em organizar esse Estado e, sim, interesse em organizar a sociedade: descarta, portanto, a discussão do Sistema Nacional de Cultura. Castelos de areia, miscelâneas onde cabem todas as boas e más intenções, mas que, de concreto, não acrescentam nada, também não lhe interessam: descarta a discussão do Plano Nacional de Cultura. 18. O que sobra? O Pronac – Programa Nacional de Cultura implantado pelo Collor e mantido pelos Fernandos, Lulas, Dilmas. E o Procultura – Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura dos atuais governos, que pretende substituir o Pronac. 19. O Pronac é assim: Incentivo Fiscal, Fundo de Investimento, Fundo Nacional de Cultura. O Procultura é assim: Incentivo Fiscal, Fundo de Investimento, Fundo Nacional de Cultura (e isso – um retoque do mesmo – ainda é um projeto de lei do Executivo não votado pelo Legislativo). 20. A Lei Rouanet é o nome como ficou conhecido o Pronac. E, não por acaso, todo mundo a associa única e exclusivamente ao incentivo fiscal; os dois Fundos mencionados parecem não fazer parte da mesma lei. 21. Incentivo fiscal é assim: as grandes empresas (só as grandes) pegam imposto de renda e aplicam no seu marketing. Quer dizer, o dinheiro que dizem ser público é usado de forma privada; o dinheiro (dito) público e para a cultura não vai para quem faz cultura, vai para o marketing das grandes empresas repassar pra quem ele quiser (pra fazer, evidentemente, a cultura que interessa a ele, marketing). A empresa diz que ela está patrocinando, como se o dinheiro fosse dela; e tudo isso para incentivar o mercado cultural, para as grandes empresas aprenderem como é bom 173 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 negócio investir, isto é, pôr dinheiro do próprio bolso na cultura. Mais de 20 anos se passaram e ninguém se pergunta por que, até hoje, o grande empresário não aprendeu a lição. Uma dica: por que o grande empresário vai pôr dinheiro do seu bolso se ele pode usar o dinheiro público? Enfim, o que é, mesmo, que se está (des)incentivando? E por que essa mamata continua? Resposta com o tal presidente de partido da situação no item 14; mas seria a mesma resposta com qualquer parlamentar que sabe como o jogo funciona. 22. E por que só se fala no tal incentivo fiscal? Porque tanto o Pronac quanto o Procultura são um programa único, isso mesmo, programa único, via de uma mão só, de uma única direção, uma fala única e, portanto, autoritária e antidemocrática: incentivo ao mercado via marketing (dito cultural) das grandes empresas. É disso que se trata quando se discute um programa nacional e de cultura!!! Uma pauta única, rebaixada e distorcida. 23. Os tais Fundos não são programas. São formas de aplicar ou administrar dinheiro. O Fundo de Investimento se destina a aplicações em ações na Bolsa de Valores, outro instrumento de mercado, e que nunca funcionou. O Fundo Nacional de Cultura e seus “derivativos” estaduais e municipais virou a panaceia para tudo e todos, e não deixa de ser uma enganação nos moldes em que está colocado. 24. Primeiro. Ele não tem recursos próprios, depende do governo de plantão. Desse jeito, os tais Fundos não mudam nada. Os governos não dependerão deles pra dizer o que vão ou não fazer; com ou sem esse Fundo, continuarão a colocar o que quiserem – o mesmo de sempre – no orçamento voltado para a cultura. 25. Segundo. Mas, dizem, o Fundo seria democrático, teria editais públicos de concorrência. Que editais? A cada governo, a cada ano, teríamos uma luta sem fim para escrever esses editais. De novo, ao invés de uma política pública de Estado, estrutural e estruturante, com continuidade, teríamos editais de conjuntura, dependentes do governo da hora. Algo diferente do que temos hoje? 26. Os filhos do Arte Contra a Barbárie ou uma voz discordante. 27. No final dos anos 1990, explode em São Paulo o movimento Arte Contra a Barbárie. Ataca a mercantilização da cultura e afirma que arte e cultura são necessidades e direitos e que sua defesa é responsabilidade do Estado (nada que não esteja – ainda – nas Constituições Federal, Estaduais e nas Leis Orgânicas de Municípios; nada que ultrapasse os limites da ideologia, do desejo e da necessidade de sobrevivência). O mercado não teria interesse nem daria conta de atender a essas necessidades e direitos (o que é verdade). 28. A manifestação repercute como uma bomba, não só no País, mas internacionalmente. No fundo, com ou sem intenção, questionava-se todo o arcabouço ideológico do neoliberalismo (aquela história requentada de que o mercado resolve tudo). 29. Frente à repercussão e ao eterno mutismo dos governos ditos representativos, o que fazer? Nenhum movimento social interessado nessas questões, nenhuma revolução à vista, junta-se a tropa mais presente, atuante e interessada: a chamada “classe” teatral. 30. Sem condições de viver às custas da bilheteria, com a privatização de empresas públicas fechando a torneira do chamado incentivo fiscal ou Lei Rouanet (eram elas as principais sequestradoras do Imposto de Renda para aplicar em seu marketing cultural), a “classe” teatral abraçou em peso a defesa da cultura como direito e como responsabilidade do Estado contra a genérica mercantilização da mesma. 31. Nem mesmo uma discussão sobre o que seria um teatro “comercial” ou “mercantil” e sua possível ou impossível negação foi desenvolvida. Também não se “riscou o chão”, termo corrente na época, para se questionar o chamado teatro “comercial” e seu direito de acesso às verbas públicas (“afinal, quem defende o mercado, que vá ao mercado”, apenas murmuravam alguns). No fundo, conscientemente ou não, a questão da sobrevivência falou mais alto e uniu a todos, evitando-se um racha na “classe” (que junta, num corpo único, pequenos empresários, artistas, produtores, grupos, profissionais endemicamente desempregados, críticos, estudiosos; e que não leva em conta qualquer coloração política e ideológica do momento). 32. Assim, uma discussão profunda sobre cultura, Estado, nação, povo, democracia, mercado (o atual sendo apenas um eufemismo para esconder o capitalismo), políticas públicas, História, passou ao largo. 33. Mas uma parte do Arte Contra a Barbárie tinha claro: o mercado teatral estava falido desde a virada dos anos 1950 para os 1960. E não houve nem haveria Cristo que o ressuscitasse. Sem dizer que o movimento era contra a mercantilização da cultura; não tinha sentido discutir ou defender, por mais que a “classe” assim o quisesse, uma política necessariamente mercantil – há muito falida e inepta – de apoio à fabricação de produtos, eventos, temporadas populares ou de democratização e acesso (que não popularizam nem democratizam nada), circulação (sempre geográfica, mas nunca social), criação de uma classe empresarial, geração de lucros, 175 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 empregos... enfim, o mesmo de sempre, já morto, mas nunca enterrado (que o digam os Myriam Muniz e Proacs/SP da vida). 34. Nesse balaio de gato, surgiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, uma lei (13.279/02), com orçamento e regras, redigida pelo movimento e aprovada na íntegra pelo Legislativo e Executivo (o que não é pouca coisa). Todo governo, de qualquer partido, ficava obrigado a pôr aquele dinheirinho (atualizado) no programa e teria que aplicar as regras estabelecidas na lei: política de Estado, não de governo. Foi a proposta redentora que a todos uniu, talvez porque poucos a compreendessem e cada um via nela o que queria ou precisava ver. 35. Pausa necessária para discutir esse programa de fomento já que ele se tornou referência sempre que se fala em política pública de cultura. 36. Tratava-se, em todos os sentidos, de uma escolha política. 37. Escolheu-se entrar na luta por política pública; na esfera municipal, não estadual nem federal; num recorte restrito, isto é, voltado para o teatro, não para as artes cênicas, para as artes ou para a cultura; e mais restrito ainda: mesmo para o teatro, não se propunha como um programa único, que a tudo abarcasse, era apenas um entre outros que poderiam se seguir. 38. Acima de tudo, e esta é a questão central do chamado Fomento ao Teatro, escolheu-se um sujeito histórico – o núcleo artístico com trabalho continuado. Com isso, optou-se por organizar os “fazedores” teatrais e não o Estado. Com isso, deu-se uma resposta prática à luta por uma política pública democrática, universal e impossível de ser realizada nesse Estado e sociedade. 39. Hipóteses e premissas para a escolha desse sujeito histórico: . o trabalho continuado de núcleos artísticos já propiciava um melhor “desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo” (objetivo fixado no art. 1º da lei) se comparado às produções empresariais; . a organização da produção em núcleos contínuos era, em si, uma forma não mercantil se comparada ao modelo padrão do capitalismo; (Explicação necessária para a afirmação anterior. Na produção empresarial, a obra é decidida pelo empresário ou produtor. A partir de um texto que ele escolheu, os artistas e técnicos são selecionados e contratados (isto é, vendem sua força de trabalho, a única coisa que têm para vender) para executar determinados papéis, para realizar aquele espetáculo, numa organização vertical, com mando e decisão “de cima”, divisão de tarefas específicas. O compromisso das partes se restringe a essa obra, condições e período. No grupo, mesmo imperando uma liderança forte e centralizadora, mesmo não existindo um modelo único e “puro”, podese afirmar que não se trata de escolher determinados profissionais para determinada obra; a obra surge da relação e decisão dos envolvidos. Quase sempre, texto e espetáculo nascem juntos. No limite, não se trata de uma obra mas de um percurso maior, um projeto estético e de vida: não mais vender trabalho para sobreviver (como qualquer trabalhador) mas escolher o que será criado, como e para quem fazer isso. Em síntese, trata-se de afirmar a identidade do artista como sujeito que cria, em contraposição ao profissional ou trabalhador alienado do sistema empresarial, no sentido que Marx emprega ao termo.) . pelo exposto, a forma de produção “grupo” já era, em si, uma forma cultural de ser e estar no mundo; o núcleo e suas relações de trabalho, criação, organização – e não a obra ou o resultado desse trabalho – seriam a experiência a ser fomentada; o processo substituía o produto; . assim, para ter acesso aos recursos do Programa – talvez a única fonte de sobrevivência naquele momento –, os interessados teriam que se organizar e apresentar projetos de trabalho continuado, seja para pesquisa (não teórica, acadêmica) ou para produção; . ao se organizarem dessa maneira, sua prática, técnicas, conhecimento e sua própria subjetividade seriam, no mínimo, afetados pela forma coletiva de criação, de ser; . portanto, o programa apoiava as experiências já em andamento, ainda que restritas e condenadas à marginalidade frente ao hegemônico, de afirmação do artista em contraposição ao profissional alienado (de novo, Marx), de afirmação de outra forma de produção, de outro processo criativo, outra obra, outra relação com o público e a cidade (diferente da mera produção-consumo), enfim, outro teatro. 40. Não é pouca coisa, portanto, a pretensão do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. 41. Também não é pouca coisa a responsabilidade dos artistas e técnicos transformados em sujeitos históricos desse programa público: o programa é público porque não é para eles, é para o teatro e a população, cabendo a eles a tarefa de imaginar e construir os caminhos que levem ao “desenvolvimento do teatro e ao melhor acesso da população ao mesmo”, previstos no artigo 1º da lei. 42. Mais de uma década se passou (o programa começou a ser implantado 177 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 no segundo semestre de 2002). O que aconteceu? 43. Por mais que os caminhos percorridos sejam diferentes, há quase um consenso: . os trabalhos e ações mais significativos da cidade nesse período devem sua existência aos grupos, que proliferaram graças ao programa; . o teatro chegou à periferia e à população tradicionalmente marginalizada, numa capilaridade nunca vista, ocupando praças, ruas, construindo espaços ou ocupando áreas inusitadas; . mesmo sem qualquer acordo ou intenção prévia entre os núcleos, realizou-se uma espécie de programa estético, a chamada “estética do desmanche”, isto é, o teatro desenvolveu recursos de dramaturgia e cena para fazer um balanço do desmonte social do último período histórico, chegando a mergulhar na História menos recente do país; em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o filósofo Paulo Arantes afirmou que a tradição crítica brasileira havia migrado das universidades para os palcos dos grupos teatrais. 44. Mas nem tudo é um mar de rosas. Mais de meia década após seu início, essa “Primavera Teatral” começou a viver a lenta agonia e morte do Programa e dos núcleos. Foi com ironia que o mesmo filósofo escreveria, num livro comemorativo dos 10 anos do Fomento, sobre o “programa de tormento” para os selecionados (ele mesmo, um pouco antes, já havia colocado o dedo em certas feridas num texto intitulado “Quando a classe teatral acordar que sonhava”). 45. Então, de novo, o que aconteceu? 46. Precariedade, contradições internas e momento histórico sintetizam as mil e uma singularidades por onde passa o desmanche em andamento dos grupos, do programa e da estética do desmanche. 47. Obviamente, o “Fomento” não conseguiu sustentar os núcleos que deram origem a seu surgimento e, muito menos, os novos, que nasceram sob suas asas e jamais desconfiaram como eram as coisas antes e onde estavam metidos. 48. As condições de trabalho e vida melhoraram significativamente em relação ao momento anterior, o que aumentou, em muito, a expectativa dos envolvidos: todos precisavam e queriam mais. Contraditoriamente, como o dinheiro nunca foi suficiente para todos – pela lei, até 30 projetos podem ser selecionados anualmente para um período de, no máximo, 2 anos –, mais e mais os grupos se propunham a fazer mil e uma coisas para serem selecionados, para “ganhar a concorrência” dos demais “companheiros”. Então, não se tratava mais de fazer teatro de uma determinada maneira para uma determinada cidade, mas, além disso, tinha que se propor oficinas, publicações, vídeos, mostras, intercâmbios, xis apresentações, o diabo! Os produtos oferecidos substituíam o processo. As comissões selecionadoras mais e mais se atêm ao Plano de Trabalho, um pacote de atividades com princípio, meio e fim. O “projeto de trabalho continuado” se perde no cotidiano de correria. 49. Com o passar dos anos, a idade avançando, as relações pessoais internas desgastadas pela grana curta e pelo trabalho insano, esquecidas as premissas iniciais – qual é, mesmo, nosso projeto estético, cultural, de trabalho, de vida? – que deram liga ao grupo, tudo se apequena e a vida privada se impõe: como pagar o aluguel, transporte, alimentação, comprar e manter os gadgets mais turbinados? Nenhum julgamento moral ou condenação na constatação: a sobrevivência – com as exigências destes tempos – cobra seu preço. Mais e mais o Fomento se transforma num tormento e tudo piora quando a consciência começa a perceber, juntar e pesar os longos períodos (meses, anos) em que o grupo não consegue ser “fomentado” (de novo, cadê a continuidade?!). 50. Por outro lado, o desmanche dos trabalhadores enquanto classe organizada e a transferência da classe operária para a China deixavam os grupos a ver navios: cadê o público necessário para o diálogo com coletivos teatrais que “assumiram o controle” de seu trabalho e produção e passaram a estetizar esse desmanche? Afinal, nenhuma obra artística se define apenas em si, mas na relação com seu público. E era exatamente o desmantelamento desse público, ausente, portanto, na plateia e na cena política real, que as obras refletiam no palco. (Não há, aqui, nenhuma negação das observações anteriores, particularmente aquelas mencionadas no item 43.) 51. Isolada externa e socialmente – já que as organizações e a própria classe trabalhadora estava destroçada –, a forma de produção grupo, uma redoma ou quisto dentro do modo de produção capitalista, também se fragiliza no front interno quando se confronta com a norma hegemônica. Lá atrás, dentro do Arte Contra a Barbárie, discutia-se: estar num grupo, num determinado grupo e não em outro, deveria ser uma opção de vida, mas nem sempre era. A falta de opção empurrava os profissionais para o grupo: não havia Redes Globos ou patrões para contratá-los, não porque eles não tivessem “qualidade”, mas porque o capital não tinha como explorá-los no 179 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 falido mercado teatral ou incluí-los na indústria cultural. E esse profissional sem contrato, parte integrante do chamado trabalho alienado, passa a circular e minar internamente os grupos. 52. No trabalho alienado, o trabalhador se separa (se aliena) do que faz: o emprego, aquilo que ele executa e o produto final disso não são um fim, mas o único meio que tem para sobreviver. Obrigado a esse trabalho que não lhe diz respeito, não lhe interessa e normalmente inferniza sua vida, ele reage, resiste como pode: não veste a camisa, faz corpo mole, pouco se lixa para a qualidade etc. Daí, quando entra num grupo de teatro, por maior que seja a amizade entre os envolvidos, é fácil perceber sua resistência em participar de discussões intermináveis, estudar, ensaiar demais, assumir funções que não lhe agradam – produção, administração, trabalho braçal, contatos, participar de reuniões externas, militar, cuidar da luz, da montagem, manutenção, consertar ou fazer adereços (a lista é interminável). Ao invés de diminuir, aumenta o fosso entre esse(s) companheiro(s) e o núcleo de ferro do grupo: os primeiros se sentem cobrados o tempo todo, afinal, eles têm que cuidar da vida, começando por correr atrás do dinheiro, que é curto; os segundos sentem-se sobrecarregados, explorados, incompreendidos e traídos pelo pouco interesse dos outros pelo projeto que, no fundo, não é de todos. E não será o recurso escasso e intermitente que irá segurar essa “união”: os recursos do Fomento ajudam, e muito, são fundamentais, mas não impedem e, não raro, aumentam a precariedade das condições de trabalho (ver, particularmente, item 48). Alguma dúvida se isso afeta a criação, a continuidade e a estabilidade do grupo? Alguma dúvida se a disposição e a entrega inicial dos envolvidos foram se deteriorando ao longo de uma década? 53. E ninguém pensou nisso? 54. Os formuladores do “Fomento” apostaram: a vida e o trabalho na forma “grupo” mudariam a subjetividade e consciência de muita gente. E isso, de fato, aconteceu. Mas o programa geraria uma demanda e expectativas que ele não poderia atender. Essa demanda teria, forçosamente, que ser jogada no colo do Estado, com uma política pública de cultura sempre inconclusa e tensa: o Fomento teria que ser ampliado e outros programas, e mais outros, teriam que ser construídos e cobrados. Não era no mercado (a autossustentabilidade é uma miragem míope e ideológica), mas no seu Estado que se deveria disputar algum recurso para organizar o trabalho (e isso era apenas uma possibilidade de luta). A consciência e organização dos grupos e seus artistas, de um lado, e sua inserção junto à sociedade (leia-se “classe trabalhadora”) de outro, seriam o caldo necessário para essa luta. E a luta, mais e mais, deixaria claro os limites do capitalismo e de seu Estado nacional. No sentido contrário, a precariedade e a concorrência nos jogariam uns contra os outros na disputa pelo cobertor curto: farinha pouca, meu pirão primeiro. 55. O Arte Contra a Barbárie lançou, então, sua palavra de ordem: . política pública de Estado, não de governo, . com programas, e não um programa único, a serem estabelecidos em leis, com orçamentos próprios e regras claras para organizar a cultura, não o Estado ou o mercado; . programas, portanto, com caráter estrutural e estruturante a serem executados pelo governo, qualquer governo, transformado, assim, em Poder Executivo e não em tutor a ditar as regras de plantão; . como os programas, por melhores que fossem, não dariam conta da realidade e de necessidades momentâneas, também se defenderia a construção de Fundos municipais, estaduais e federal a serem estabelecidos em leis, com orçamentos próprios e editais conjunturais a serem construídos com a participação dos envolvidos. 56. Até hoje, 2014, ninguém viu qualquer possibilidade política de ampliar o Programa de Fomento na cidade de São Paulo. 57. No Estado, perdeu-se a batalha pela criação do Fundo Estadual de Arte e Cultura. 58. No País, o Prêmio Teatro Brasileiro, um programa que tentava a aliança política entre grupos, pequenos empresários e artistas produtores nunca foi realmente compreendido pelos mesmos. O projeto de lei discutido em escala nacional (basicamente pelo Redemoinho, uma articulação de grupos que não existe mais) nunca foi encaminhado pelo governo federal ao Legislativo e o máximo que se conseguiu, graças a uma ocupação da Funarte em São Paulo, foi sua inclusão no Procultura, mas numa redação final (sem orçamento, sem regras) que traiu o acordo firmado e que, provavelmente, o tornará letra morta mesmo se o Procultura for aprovado. 59. Mais e mais, os “fazedores” de cultura, “classe” teatral incluída, são cooptados pela pauta governamental, com seu incentivo ao mercado, seus Fundos sem dinheiro e regras, sua proposta de participação (inócua) nas Plenárias do Sistema Nacional de Cultura, seu diálogo sempre aberto para lugar nenhum. 60. Os sujeitos um dia acordados pelo Arte Contra a Barbárie viraram objeto. 181 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 61. E pur si muove. 62. Em 2013, multidões tomam as ruas do país. O que todo mundo sentia e sabia individualmente, toma um caráter social: o atual sistema político, com seu Executivo, Legislativo e Judiciário, com seus políticos e partidos institucionais não nos representa. Queremos isso e aquilo! 63. A lista de reivindicações é grande. Reforma Agrária Popular (reconheçase: o MST há muito se afirmou como o movimento mais organizado do país), moradia, saúde, educação, transporte, não aos gastos da Copa do Mundo, reforma política, democratização dos meios de comunicação, fim da corrupção, fim da Polícia Militar, fim dos leilões do pré-sal, salários maiores, não à terceirização do trabalho... 64. A classe trabalhadora ressurge embalada em movimento(s) social(is), em greves e mobilizações trabalhistas de caráter sindical (em alguns casos, a base rejeita o acordo da direção), em ocupações. 65. Além de vitórias localizadas, o máximo a que se chega é um plebiscito popular marcado para a Semana da Pátria, à revelia das instituições do Estado, para se forçar a convocação de uma Constituinte exclusiva para a Reforma Política, a primeira para se chegar às demais. 66. Na cidade de São Paulo, uma versão do Prêmio Teatro Brasileiro vira lei. É o Prêmio Zé Renato, voltado para a produção e apresentação de espetáculos, o que atende a grupos, pequenos empresários e artistas produtores. Em setembro/2014, em solenidade no Teatro Municipal de São Paulo, o Prefeito Fernando Haddad anunciou o primeiro edital para execução do Prêmio José Renato, com R$ 4 milhões. Pela lei em questão, esses recursos se destinariam a pequenas produções e a projetos de apresentações teatrais de até 200 mil reais. 67. Ainda na cidade, a periferia se mobiliza e exige um Programa de Fomento para os “sujeitos periféricos”. Nos bastidores, articula-se uma retomada para mexer e aumentar o Fomento ao Teatro. Alguns grupos avançam, pouca coisa ainda, nas suas relações com movimentos (MST, MTST, Cordão da Mentira...) 68. Não há um programa que unifique os movimentos sociais, sindicatos, a classe trabalhadora. Por enquanto, como diz um dos espetáculos de um grupo teatral em cartaz, “não sabem 1848, não sabem 1871, não sabem 1917, mas caminham!”. Não há, nem mesmo, um projeto de nação e, muito menos, uma proposta nacional-democrática, social-democrática (aquela que visava mudar a sociedade) ou revolucionária. A pauta não chegou lá. O que predomina é a luta por direitos junto ao Estado. Políticas públicas? O andar da carruagem determinará seus caminhos, que podem, ou não, levar a sonhos maiores. 69, Verso e reverso. O capital e seu Estado, a direita, mostram os dentes. Nunca a Polícia Militar matou tanto. Articula-se uma Força Nacional repressora, desenvolvem-se unidades de “pacificação”, o Exército se exercita no Haiti na arte de reprimir o povo. A Justiça não cansa de rasgar a Constituição e criminalizar manifestantes. A imprensa cria fatos, distorce, acusa, rebaixa, urra desvairada. As manifestações e religiões afro são demonizadas, cresce o fanatismo religioso. Torcidas de futebol se matam. A cultura mais e mais se rebaixa via indústria cultural. A razão e o pensamento perdem espaço. O Estado de Exceção vira regra e, dizem, veio para ficar. 70. ... 183 A cultura no centro do debate, por Rudifran Pompeu61. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Resumo: o texto apresenta algumas dificuldades concernentes à produção teatral decorrente, sobretudo, da pouca importância conferida por parte do poder público à linguagem. No sentido de demonstrar a tese apresentada os percentuais investidos em cultura caracterizam-se em evidência cabal. Nesse sentido, além da ampliação de recursos é fundamental a criação de uma política pública para os investimentos na área e a consciência dos produtores no sentido de não brigarem entre si. Palavras-chave: política pública para a cultura, arte e consciência classista, produção artística e militância, teatro de grupo. Abstract: the text presents some difficulties concerning the theatrical production, mainly due the low importance given by the government to language. In order to demonstrate the thesis presented the percentages invested in culture characterized in full evidence. In this sense, besides the expansion of resources to create a public policy is critical for investment in the area and awareness of producers to not fight among themselves. Keywords: public policy for culture, art and class consciousness, artistic production and militancy, theater group. Foto de Bob Sousa. Grupo Redimunho de Investigação Teatral. Elenco em Marulho. Rudifran Pompeu é diretor e dramaturgo do Grupo Redimunho de Investigação Teatral, escreveu e dirigiu os espetáculos A casa (Premio APCA de melhor autor em 2006), Vesperais nas janelas (2007), Marulho: o caminho do rio...(Premio APCA de melhor autor em 2011),Tareias: atrás do vidro verde tem um mundo que não se vê... (Premio CPT 2013 de melhor elenco e melhor espetáculo apresentado em rua). Atualmente, é presidente da Cooperativa Paulista de Teatro e milita na área da cultura desde 1985. 61 Que a Cultura não é prioridade para os governos nós já sabemos. A questão que permanece é: como mudamos isso? O que buscamos em nossa militância na Cooperativa Paulista de Teatro é o entendimento da Cultura como necessidade básica, como uma prioridade de Estado. Essa busca militante passa pela pressão contínua para que as gestões públicas assumam essa prioridade em forma de ato e atitude política, para que esse quadro indecoroso possa ser revertido. O que aprendemos com tantos anos de luta pela Cultura é que não dá para acreditar numa política que se realiza dentro dos gabinetes. É preciso ouvir as ruas e criar a sintonia entre os artistas, que constroem com sua prática artística a identidade e a cidadania culturais, e a política institucional, muitas vezes surda ao clamor dos fazedores de arte e cultura. Nesse intuito, tentemos entender o que está colocado em termos de políticas públicas para o Estado de São Paulo e seus 645 municípios. O orçamento para o Estado no ano de 2014 foi algo na ordem de 200 bilhões de reais. Desses valores uma quantia perto de 900 milhões foi para a pasta da Secretaria de Estado da Cultura, o que significa menos de 0,5% do total. Meio por cento. Esse diagnóstico rápido permite perceber que Cultura não é matéria importante para o governo do Estado de São Paulo. Basta abrir a peça orçamentária para ver o que é prioridade de um determinado governo. Não quero aqui falar mal desse ou daquele gestor, mas é preciso enfatizar que nosso adversário é poderoso e não é uma pessoa ou um governo específico. Nossas dissonâncias, hoje, nossas discordâncias internas, só fortalecem o real inimigo que, a meu ver, é justamente o pensamento majoritário que não entende a Arte e a Cultura como prioridades. Infelizmente, esse inimigo domina as esferas do poder Executivo e Legislativo no Estado. É importante dizer também que o que queremos não é só um aumento de recursos, mas um horizonte. Um pensamento de política cultural mais robusto e fortalecido; queremos pensar a cidade e as relações para além do entretenimento, queremos a formação capaz de elaboração crítica. Queremos trazer a cultura para o centro do debate! Como seriam a cidade e o Estado se pudéssemos discutir nossas produções e nosso modo de produzir? Como seria mais “profundamente importante” se pudéssemos proporcionar a disputa do pensamento e a reflexão acerca de nosso ofício, de nossas preferências e de nossa causa? Mas de que causa estamos falando, afinal? Na verdade, queremos uma cidade e um Estado mais feliz e menos cinza, queremos a liberdade das 185 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 ruas, queremos condições para produzir e criar nossa arte com liberdade, queremos projetos de formação que atravessem as regiões além do imaginário cultural, queremos criar um sistema público capaz de suprir as demandas que temos e que provem das periferias com seus fluxos no centro... Queremos e buscamos uma política pública de Estado e não de governo, queremos política estruturante com possibilidades de ampliar os nossos horizontes para além da luta por recursos, queremos definitivamente disputar o pensamento da cidade. O que nos atrapalha é, de novo, a velha política que desagrega Pois somos ocupados a todo instante por pequenas fogueiras e estamos o tempo todo a jogar água na fervura e ainda não conseguimos apontar nossas flechas para quem de fato nos ignora ou tenta nos afastar da luta. Ainda que esteja errado, não consigo ver gente de teatro como inimigo de classe, posso ver como desavisados alguns companheiros que disputam a farinha que está miúda e minguada, mas isso ainda não os faz meus inimigos, acredito ainda que poderemos nos organizar melhor e fazer a luta justa contra o real inimigo que, do lado do banqueiro, se organiza através da nossa desorganização. Como podemos avançar e reunir forças para pautar o Estado em nossas reivindicações? Esta é a questão. E creio que isso também está ligado ao nosso modo de nos relacionarmos com a cidade. E com os nossos concidadãos, claro. Aquele que é nosso público em potencial, mas às vezes parece nosso inimigo. E então, qual o programa que temos para a Cultura e o que de fato estamos colocando dentro desse termo, que é gigantesco? Será que talvez tenhamos de focar sobre o que estamos entendendo como Cultura? Estamos falando de Arte? E por que precisamos fazer isso? Aliás, o que é isso exatamente? A Arte que vem da academia é única? Não existe vida fora dela? São questões que lanço para que possamos rever sobre o que estamos falando exatamente. De toda forma, numa questão eu tenho a certeza: que estamos juntos! Não somos inimigos! Pensar diferente e estar por vezes divergindo ainda não nos faz inimigos! Meu desejo é que um dia possamos nos reagrupar com o pensamento mais plural e capaz de agregar os companheiros em alinhamentos possíveis, porque desde pequeno eu já sei que precisamos nos organizar para as nossas reinvindicações, porque governo é que nem feijão: só funciona na pressão. Políticas públicas para as artes. Breve panorama do Projeto Ademar Guerra de Qualificação em Teatro, Aldo Valentim62, André de Araújo63 e Douglas Novais64 Resumo: O presente artigo apresenta um breve panorama sobre o Projeto Ademar Guerra, realizado desde 1997 pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo e atualmente gerenciado pela Poiesis – Organização Social da Cultura. O Projeto Ademar Guerra é um “case” único de política pública para as artes, focado na qualificação de jovens artistas que atuam em grupos sediados nas cidades do interior, litoral e grande São Paulo. Palavras-chave: políticas públicas, políticas públicas para as artes, Projeto Ademar Guerra, Programa de Qualificação em Artes, teatro. Abstract: This article presents a brief overview of the Projeto Ademar Guerra, held since 1997 by the Secretary of State of São Paulo Government of Culture and currently managed by Poiesis - Social Organization of Culture. The Projeto Ademar Guerra is a case one of public policy for the arts, focused on training for young artists working in groups based in the inner cities, coastal and great São Paulo. Keywords: public policy, public policies for the arts, Projeto Ademar Guerra, Qualification Program in Arts, theater. Mestre em Artes pela UNICAMP, pesquisador nas áreas de Políticas Públicas para juventude e cultura, professor de Políticas Públicas na Pós-Graduação em Gestão Cultural do Centro Universitário SENAC-SP, estudou Gestão e Políticas Públicas na FGV/Escola de Administração de Empresas de São Paulo, atualmente colabora como Coordenador-Geral do Projeto Ademar Guerra e Gerente do Programa de Qualificação em Artes do Estado de São Paulo/POIESIS-Organização Social da Cultura. 62 63 Mestrando em Ciência da Informação pela Escola de Comunicações e Artes-USP, graduado em Artes Cênicas ECA/USP, ator, diretor teatral e atualmente é assistente de Curadoria do Projeto Ademar Guerra/Programa de Qualificação em Artes do Estado de SP. 64 Doutorando e Mestre em Artes pela UNICAMP, bacharel em Teatro pela UNICAMP, é ator da Cia. Os Geraldos e atualmente é Assistente de Curadoria do Projeto Ademar Guerra/Programa de Qualificação em Artes do Estado de São Paulo. 187 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 O Projeto Ademar Guerra: o que é, objetivos e origens. Criado em 1997, pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, o Projeto Ademar Guerra integra uma série de políticas públicas do Governo do Estado voltadas para a qualificação de grupos de teatro, formado por jovens artistas65, sediados no interior, no litoral e na Grande São Paulo. Seu formato é composto por orientações artísticas e técnicas, periódicas, durante 7 a 8 meses, ministradas por especialistas e profissionais de teatro denominados artistas-orientadores. O objetivo das orientações é qualificar os grupos e seus artistas no campo do fazer teatral, com estratégias metodológicas diversificadas e recursos didáticos que possibilitam aos grupos o seu aperfeiçoamento artístico na prática. Durante o ano são realizadas outras ações: Encontro Preparatório, Encontros Regionais, Mostras Regionais, Mostra de Compartilhamento e Mostra Final, além de diversas parcerias com municípios, festivais e outros grupos artísticos. A origem do Projeto Ademar Guerra se deve ao Programa Mapa Cultural Paulista, outra política pública estadual, criada em 1995, com objetivo de mapear e diagnosticar a produção artística existente fora da capital paulista e, a partir de tais informações, incrementar a condução das demais políticas da pasta. Desse modo, nas edições dos anos 1995 e 1996 do Mapa Cultural, os especialistas de teatro que viajaram pelo interior observaram uma rica produção teatral, fruto da arraigada prática de teatro amador desenvolvida por décadas nas diversas cidades paulistas e também resultado das políticas educacionais implementadas a partir dos anos 1980, como o estímulo ao ensino das artes nas escolas. No entanto, apesar da numerosa e promissora produção, observou-se, na maioria dos casos, carências básicas em conhecimentos e técnicas teatrais, certamente em função da ausência de cursos especializados, universidades, referencial bibliográfico e da preponderância do referencial televisivo. O mapeamento apontou para a Comissão Estadual de Teatro, coordenada pela atriz Analy Alvarez, a necessidade de uma política pública que colaborasse com o pleno desenvolvimento dos grupos teatrais distantes dos grandes centros. Foi então formulado um projeto de monitoramento de O público do Projeto é composto em sua maioria, por aproximadamente 70% de jovens com até 30 anos, mas há também grande participação de adultos e até mesmo público da melhor idade. 65 grupos teatrais, intitulado de Ademar Guerra66 homenageando o renomado diretor de teatro e televisão, natural de Sorocaba, e que tinha por prática, quando realizava as apresentações de seus espetáculos pelo interior, desenvolver atividades formativas aos artistas locais. Ademar Guerra, nos anos 1960, também participou de projetos de monitoramento artístico aos grupos de teatro desenvolvidos pelo Governo do Estado nos anos 1960 e 1970. É importante ressaltar que a prática do teatro pelos grupos amadores67 nas diversas cidades do Estado de São Paulo, de 1950 a 1980, gerou o movimento das Federações e da Confederação de Teatro Amador, o desenvolvimento de efervescente rede de festivais – com destaque para: Festival de São José do Rio Preto, Festival de Presidente Prudente, Festa - Festival Santista de Teatro Amador; articulação com o poder público para construção de teatros municipais, demanda para desenvolvimento de alguns projetos tais como o Projeto João Rios (realizado nos anos 1970) e intensa participação no movimento da redemocratização política do país. A história do Projeto Ademar Guerra está então intimamente ligada ao rico contexto político e cultural envolvendo o movimento teatral amador e a sua relação com o poder público desde os anos 1940. O Projeto Ademar Guerra foi coordenado de 1997 até 2002 pela Comissão Estadual de Teatro; de 2003 até 2004, pelo DFC-Departamento de Formação Cultural; em 2005 esteve abrigado no DARC-Departamento de Atividades Regionais de Cultura; em 2005, com a implementação do modelo de gestão por meio de Organizações Sociais da Cultura, o Projeto migra para Abaçaí, fazendo parte das atividades desta OS até 2008; de 2009 até meio de 2010 integrou o Programa Oficinas Culturais do Estado, gerenciado pela ASSAOC-Associação dos Amigos das Oficinas Culturais do Estado e, de agosto de 2010 em diante, passa ser gerenciado pela Para mais informações sobre Ademar Guerra, cf. Oswaldo MENDES. O Teatro de um homem só. São Paulo: Editora SENAC. 1997. 66 Para conhecer mais sobre o movimento de teatro amador no Brasil e Estado de São Paulo, dentre outras obras, recomendamos: Ariane Porto. Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda - quatro décadas em cena. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. Col. Aplauso Teatro Brasil. Maria Helena Kühner. Teatro amador: Radiografia de uma realidade. Rio de Janeiro: Funarte, 1987. Coleção Documentos, do Centro de Estudos de Artes Cênicas. Roseli Figaro (org.). Na cena paulista, o teatro amador, circuito alternativo e popular de cultura (1927 - 1945). São Paulo: FAPESP e Escola de Comunicações e Artes da USP, 2009. Teresa Aguiar. O teatro no interior paulista - do TEC ao Rotunda, um ato de amor. São Paulo: T.A.Queiroz, 2006. Clovis Garcia. Os caminhos do teatro paulista: um panorama registrado em críticas: O Cruzeiro (1951-1958); A Nação (1963-1964). São Paulo: Prêmio, 2006. 67 189 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 POIESIS, Organização Social da Cultura, ainda dentro do Contrato de Gestão das Oficinas Culturais do Estado. Em termos operacionais, nos anos de 1997 e 1998, as ações do Projeto se concentraram no interior, litoral e Grande São Paulo (exceto Capital), tendo como foco grupos amadores (não profissionais); de 1999 até 2002, se concentra exclusivamente na Capital, preponderantemente nos bairros mais periféricos e algumas cidades da Grande São Paulo, tendo característica mais social. Em 2003, o governador Geraldo Alckmin e a então Secretária de Estado da Cultura, Claudia Costin, estabelecem novas diretrizes para desconcentrar investimentos e interiorizar as ações para o interior, litoral e Grande São Paulo, tendo o Projeto Ademar Guerra como principal bandeira desta medida: [...] apostamos nossas fichas na interiorização das ações públicas, por acreditarmos que é nas localidades mais distantes da capital, assim como nas mais carentes, que as manifestações culturais menos encontravam caminhos e recursos para sua revitalização e consolidação. A maior parte das iniciativas culturais, públicas e privadas, estava concentrada na capital – e era papel do gestor público leva-las a quem sempre se sentiu tão alijado de todo um universo que amplia horizontes e reforça a integração de nossa gente. Temos agido firmemente no apoio e patrocínio de projetos regionais, entre outras linguagens, teatro por meio de oficinas e adoção de mais de 200 grupos de teatro amador em todo estado, que recebem por um ano orientação em dramaturgia, cenografia e iluminação, por meio do já consagrado Projeto Ademar Guerra, agora desenvolvido no interior (COSTIN, 2003, p. A10). O Projeto foi remodelado e desde então as suas ações se concentram nas pequenas e médias cidades do interior do Estado, atendendo o total de 1034 grupos de 97 até 2015, cerca de 20 mil jovens artistas. Tabela 1: Quantidade de Grupos parceiros do Projeto Ademar Guerra -1997 a 2014 fonte: Gerência do Programa de Qualificação em Artes, Poiesis. A gestão do Projeto, desde sua criação até o ano de 2015, foi coordenada pelos seguintes profissionais: 1997 a 2002 - Analy Alvarez (atriz e dramaturga) e Luis Serra (ator). 2003 a 2006 – Aldo Valentim (gestor de políticas culturais) e curadoria de Fausto Fuser. 2007 a 2008 – Claudio Mendel (diretor teatral). 2009 a 2010 – Abílio Tavares (diretor teatral). 2011 até a presente data Aldo Valentim (gestor de políticas culturais) e curadoria de Sérgio Ferrara. Como o Projeto funciona a) Aspectos institucionais e financeiros Atualmente o Projeto Ademar Guerra é financiado pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo e gerenciado pela Poiesis – Organização Social da Cultura, integrando o Contrato de Gestão das Oficinas Culturais do Estado. O Plano de Trabalho para o Contrato de Gestão de 2014 - 2018, traz um significativo ganho para o Projeto, pois, devido aos excelentes resultados e a sua boa repercussão entre secretários municipais de cultura, artistas e público beneficiado, possibilitou para a gestão do Ademar Guerra maior credibilidade perante a Direção, Conselho da OS e Governo, para dar um passo adiante e estruturar o Programa de Qualificação em Artes, criando o Projeto de Qualificação em Dança e ampliando as próprias ações do Projeto Ademar Guerra, conforme expos a Diretoria Executiva na apresentação do Plano de Trabalho 2015: [...] tendo como base a experiência exitosa do Projeto Ademar Guerra, realizado há 18 anos e que se mostrou um exemplo de boas práticas em políticas públicas de formação em artes, daremos continuidade, neste Plano de Trabalho, ao programa “Ações de Qualificação em Artes: Teatro e Dança”. [...] Esses conteúdos e programação são executados de maneira descentralizada, em uma perspectiva de democratização da cultura68. GOVERNO DO ESTADO DE SAO PAULO. Processo Sc/155976/2013 Contrato de Gestão 08/2013. 2o. Termo de Aditamento do Contrato SEC-POIESIS. 68 191 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 b) Aspectos organizacionais A ampliação também resultou em novo desenho organizacional, composto por: Gerência do Programa de Qualificação em Artes e equipe gestora, Curadoria Artística, Assistentes de Curadoria, ArtistasOrientadores, Estagiários em Teatro: orientação artística, consultores técnicos especializados e produtores executivos. c) aspectos gerais: seleção de grupos, profissionais e estagiários. O foco do Projeto Ademar Guerra é o grupo de teatro, sendo ele o principal “sujeito” e “agente” das ações desenvolvidas pelo Projeto. Assim, o processo seletivo sempre inicia com a definição dos grupos que serão parceiros. Este procedimento obedece o Edital que apresenta a síntese da proposta artístico-pedagógica e estabelece objetivos, prazos, regras etc. que nortearão a seleção e a relação dos grupos com o Projeto. As etapas de seleção geralmente são: análise do projeto, entrevista com diretor/líder do grupo, participação no Encontro Preparatório. Após a seleção, a equipe averigua o perfil artístico de cada grupo para que com essa informação oriente o processo seletivo de artistasorientadores e estagiários de teatro, também realizados por edital. Geralmente, a média de grupos inscritos se mantém entre 110 grupos, anualmente. Em 2014, 113 grupos se inscreveram e 81 foram selecionados. É importante notar a prevalência dos grupos participantes sediados em pequenas e médias cidades. Conforme vemos abaixo, podem ser separados em três grandes blocos: 45% dos grupos são sediados em pequenas cidades, 48% estão em medias cidades e 7% em grandes cidades. Este retrato aponta que, enquanto política pública voltada para suprir a carência de equipamentos e cursos, o Projeto busca atender este foco, tendo em vista que há maior carência de equipamentos, cursos e universidades nas áreas artísticas nas pequenas e médias cidades do interior, pois, atualmente, estes equipamentos culturais e cursos estão centralizados em cidades sede de região e/ou grandes cidades e/ou cidades das regiões metropolitanas (Campinas, Santos, Grande São Paulo e Vale do Paraíba). Tabela 4: Grupos Selecionados de acordo com porte da cidade Fonte: Gerência do Programa de Qualificação em Artes.Relatório de Pesquisa de Perfil e Satisfação de Público. Poiesis, 2014. Atualmente, estimamos que o perfil do público atendido pelo Projeto apresente as seguintes características, 65% dos participantes são do sexo feminino. Do universo dos participantes temos a seguinte composição: 1% crianças (7 a 11 anos), 14% adolescentes (12 a 15 anos), 52% jovens (16 a 29 anos), 31% adultos (30 a 60 anos) e 3% terceira idade (maiores de 60 anos). Esses dados reforçam a predominância do público jovem nas ações do Projeto. As principais ações artístico-pedagógicas a) O eixo curatorial. Nas edições de 2011 e 2012, foram desenvolvidos e implementados conceitos visando responder a diversidade artística dos grupos participantes. Esse trabalho se concentrou na curadoria artística que propôs a verticalização das ações de orientação artística com foco no ator-criador, nas relações entre atuação, direção e dramaturgia e na relação da obra com o público, buscando potencializar os objetivos do Projeto Ademar Guerra, que são: a capacitação dos jovens artistas e a qualificação dos seus grupos teatrais. A capacitação dos jovens se dá no contexto dos processos aos quais o indivíduo se vincula para desenvolver e aperfeiçoar sua sensibilização no universo das artes. Neste âmbito, o projeto proporciona a atualização, a complementação e/ou a ampliação das competências artísticas inerentes à prática teatral; colaborando na aproximação, no aprofundamento dos temas e com as técnicas necessárias para aprimorar 193 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 a atuação artística do indivíduo. Abrem-se as portas para uma capacitação que possibilite desde a experiência do protagonismo artístico, passando por aspectos fundamentais da iniciação no universo das artes e quando necessário, orientando o jovem nos passos para o início do seu percurso de profissionalização. A qualificação dos grupos propõe a sua preparação dentro de paradigmas estabelecidos da linguagem teatral, com os integrantes executando funções específicas e próprias em grupo artístico, sobretudo em atividades voltadas para a criação, os processos, o desenvolvimento de espetáculo, a relação com a comunidade e com os demais agentes no campo artístico e cultural. A qualificação não é formação completa ou profissional, mas sequência de ações formativas que visam orientar o processo criativo do grupo e as suas relações no campo da arte. Seu objetivo principal é a incorporação de conhecimentos teóricos, técnicos e operacionais relacionados à produção de bens e serviços artísticos, voltados à expressão estética do indivíduo e do grupo e nas relações que estes estabelecem com seu público por meio de processos desenvolvidos em diversas instâncias (apresentações, participações em festivais, temporadas etc.). b) Metodologias de orientação b.1.- Orientação para Núcleos Estáveis A metodologia Orientação para Núcleos Estáveis destina-se a grupos que já possuem experiência com o fazer teatral, tendo realizado anteriormente diversas peças teatrais e cuja maioria dos participantes já integre o coletivo a mais de dois anos. Mesmo que em diferentes contextos geográficos, sociais e artísticos, além de tempos de existência diversos, é desejável que já conheçam o projeto e estejam familiarizados com seu “percurso formativo”. Recebem, ao longo de sete a oito meses, cerca de duas visitas mensais de um artista orientador, com 6 horas de duração cada. Um importante vetor dessa metodologia, presente no Eixo Curatorial do Projeto Ademar Guerra, é o conceito de “artista orientando artista”. O Projeto Ademar Guerra, calcado em valores como a democracia cultural e a valorização da diversidade, não tem a pretensão de ensinar a arte teatral ou difundir cartilhas e fórmulas que privilegiem algum gênero artístico ou pasteurização da formação de novos artistas. Pelo contrário, pretende-se estabelecer fluxos de trocas entre criadores de geografias, contextos e experiências diversas, estimulando o fortalecimento das possibilidades de acesso às ferramentas de criação artística e a constituição de uma ideia de cidadania que compreenda a cultura como um conceito em permanente construção, permeável pelas novas vivências, experiências, riscos e intercâmbios. Segundo García Canclini, “[...] adotar uma perspectiva intercultural proporciona vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a conceber as políticas da diferença não só como necessidade de resistir” (2009, p. 25). O orientador é um artista profissional atuante e experiente na área do teatro, com formação básica nos campos fundamentais das artes cênicas, como direção, dramaturgia e interpretação, além de ser especializado em determinada técnica ou linguagem, sendo essa ênfase justamente o que definirá o grupo que atenderá. Por exemplo: para grupos que desejam trabalhar com teatro de rua, teatro dança, teatro de máscaras ou mesmo performance, o orientador deve possuir um currículo que atenda a essas especificidades, tornando-se apto a dialogar com o projeto do grupo e abrir possibilidades de escolhas conceituais, referências, treinamentos etc. Sua fala não deve ser determinante, contudo, como um bom mediador, deve agir como provocador, ou mesmo um perguntador que, junto ao grupo, alargará o leque de possibilidades de criação. O trabalho do grupo vai além do trabalho com o orientador. Deve, por exemplo, ter periodicidade regular de encontros, contando com uma carga horária semanal de no mínimo oito horas, além das visitas de orientação. Além disso, participam de uma série de eventos gerais do Projeto Ademar Guerra, como o Encontro Preparatório no início da edição, com duração de um final de semana, onde são realizados fóruns, oficinas, seminários e workshops com vistas a esclarecer o pacto de compromisso com o Projeto e fornecer ferramentas de pesquisa, como vivências laboratoriais, exercícios de corpo, voz e direção teatral. Participam também de um Encontro Regional, que ocorre na metade do período de orientação, onde acontece o acompanhamento do seu processo, através da apresentação de uma cena, exercício, seminário ou simplesmente um debate, compartilhando com a curadoria quais são os nortes, dificuldades, pontos positivos e próximos passos na elaboração de suas peças. Já na reta final de suas orientações, os grupos promovem em sua própria cidade uma Mostra de Compartilhamento, momento em que abrem seus processos criativos para o público local, e, por consequência, passam pela experiência da produção, divulgação e recebem o feedback de sua comunidade. 195 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Por fim, participam da Mostra Final, evento que novamente reúne representantes de todos os grupos para o acompanhamento de alguns trabalhos que ao longo da edição se revelaram como referências de deslocamento artístico dentro de seus contextos. Em outras palavras, grupos de diferentes metodologias, selecionados a partir de critérios como o desenvolvimento do fazer artístico, empenho na pesquisa ou inventividade na abordagem dos textos, apresentam seus trabalhos na íntegra para que possam ser apreciados e discutidos por todos os participantes do Projeto Ademar Guerra em conjunto com a curadoria e convidados externos. A Orientação para Núcleos Estáveis surgiu do desenvolvimento de uma metodologia antes denominada Orientação Padrão, destinada a grupos em cujos projetos era possível identificar capacidade argumentativa, em virtude da maneira como descreviam seus processos artísticos e de como defendiam a escolha de seu próximo trabalho, articulando referências, conceitos e necessidades técnicas que acreditavam ser determinantes para a composição da pesquisa a ser iniciada. Tal metodologia buscava atender tanto grupos já participantes de outras edições do Projeto Ademar Guerra, nos quais o empenho e disponibilidade para a orientação já estavam atestados, quanto grupos novos, selecionados a partir da leitura de seus projetos e tidos como preparados para receber a Orientação Padrão, uma vez que relatavam encontrar-se com frequência semanal e possuíam em seus portfólios um conjunto de trabalhos que comprovava a longevidade de sua existência. Essa metodologia foi primordial para a realização de obras de grande relevância para a trajetória dos grupos. Muitos deles se profissionalizaram e constituíram sedes, além de encamparem iniciativas como eventos do escopo da cultura e iniciarem núcleos formativos, desempenhando o papel de agentes multiplicadores, replicadores do conhecimento desenvolvido por eles em parceria com o Projeto Ademar Guerra e seus orientadores, o que parece ser uma notável faceta dessa iniciativa: a multiplicação de agentes culturais. É possível identificar em muitos festivais do interior do Estado de São Paulo ou mesmo em festivais nacionais a presença de grupos que tiveram em algum momento pesquisas que contaram com a colaboração de orientadores, nas mais diversas linguagens: teatro de rua, montagens de grandes clássicos da dramaturgia mundial, formas populares e até mesmo trabalhos de linguagens experimentais e multimidiáticas. b.2.- Orientação Especial Para buscar sanar o descompasso entre a proposta apresentada pelo grupo em seu projeto e discurso e a realidade encontrada pelo orientador nas primeiras visitas, relativo à maturidade da abordagem com o tema e desempenho técnico, foi criada a Orientação Especial. Essa metodologia tem por objetivo principal o compartilhamento de ferramentas técnicas e procedimentos artísticos prioritários para a pesquisa do grupo. Nesta dinâmica é possível também diagnosticar novos grupos com mais cautela, pois o envolvimento do Projeto Ademar Guerra com a pesquisa se dá de maneira mais sutil, quase indireta, uma vez que não trabalha incisivamente na constituição do processo em curso. Assim, os orientadores podem observar as potencialidades desses coletivos e suas capacidades de absorção das orientações e dedicação real às artes cênicas. Além de promover o acesso aos instrumentos de criação, o Projeto Ademar Guerra tem mais oportunidades de fazer uma leitura detalhada das ações daquele coletivo interessado em receber orientações com maior intensidade e periodicidade. É também na resolução da problemática que tem relação com maturidade do grupo, que se insere a valorização do percurso formativo. Uma vez que o Projeto Ademar Guerra conta com grupos remanescentes da metodologia de Orientação para Grupos em Formação por algumas edições seguidas, percebemos que os coletivos já adquiriram lastro suficiente para se lançarem em jornadas profundas, contando com orientadores especializados. Tanto do ponto de vista técnico quanto conceitual, o grau de exigência em relação a esses grupos também aumenta, gerando consequentemente um estímulo à sua consolidação como coletivo artístico e pesquisador de teatro. b.3.- Orientação para Grupos em Formação De acordo com o eixo curatorial do Projeto Ademar Guerra, a orientação técnica e artística intermediária é destinada para Grupos Em Formação. Considera-se “em Formação” coletivos já iniciados com mais de 1 ano de atuação. O grupo será acompanhado pela curadoria e terá a monitoria dos estagiários em teatro que tem como principal atribuição o acompanhamento das ações do diretor do grupo, no dia-dia da constituição e organização do grupo e da obra artística em desenvolvimento. Os estagiários atuam monitorando e subsidiando o diretor do grupo, não tem autonomia para 197 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 interferência na obra desenvolvida. Os estagiários e os grupos parceiros nesta metodologia são supervisionados por profissional especializado na área teatral, curadoria e toda equipe do projeto, o que quer dizer que se considera em formação nesse módulo não apenas os grupos, mas também os estagiários, atores e universitários, aprendizes em uma condição análoga aos dos integrantes dos grupos. Nessa metodologia a busca essencial é pela formação do repertório por meio da criação de uma obra que privilegie o jogo e a familiarização com o “estar em cena”. Para a conquista desse objetivo aposta-se na instrumentalização mais básica dos jovens artistas: um ensino do vocabulário teatral, preponderantemente pelo viés da prática: o que são dramaturgia, direção, figurino, cenário, coxias, contrarregragem, ribalta, bambolina, ação física, personagem, ritmo, energia, foco não são considerados meros conceitos, mas instrumentos e matérias elementares da criação artística. As características dos integrantes são completamente diversas e heterogêneas. Encontram-se grupos formados apenas por crianças (liderados por um adulto), grupos de jovens, de adultos e com integrantes de todas as idades, grupos ligados a instituições escolares, instituições religiosas, secretarias de cultura, conservatórios de artes e grupos completamente autônomos. Na maioria dos casos não existe uma determinação de estética ou de linguagem, mas uma busca pelo exercício mais simples e genuíno do teatro, que se coaduna com os objetivos do Projeto: o prazer de estar em cena e a formação do artista/humano/cidadão. Ainda assim, nota-se um gosto majoritário e uma identificação com o teatro popular – usado aqui no seu âmbito mais largo e abrangente, não relacionado às estéticas ou regionalismos, mas à sua capacidade de estabelecer um contato direto, real e catártico com o seu público, com o povo. Nas orientações, lida-se com as questões mais ordinárias (mas não menos presentes naquilo que se chama de “teatro profissional”) das relações humanas, das relações pessoais e diante delas investe-se em uma formação que não se dá apenas no palco, mas em todo ambiente de trabalho – podendo esse ser alargado da sala de ensaio para a comunidade da qual o grupo faz parte, e para todo o Estado, consequentemente. Nesse sentido, um dos pontos principais sobre o qual se atua, principalmente nos primeiros meses de orientação, é na formação da disciplina e do comprometimento do individuo, considerado aqui como condição sine qua non da formação do artista. Desse modo, levando em conta, então, que o conflito é a base da ação dramática, o embate das vontades humanas e não-humanas, o esforço nas orientações é para deslocar os conflitos da ordem pessoal e cotidiana para a ordem poética e criativa. Por fim, observa-se nos grupos em formação que as formas de produção são, em geral, rudimentares e vinculadas à figura do líder, que em poucos casos acaba também assumindo a função de diretor artístico. Colocados então diante da necessidade de organização interna para a criação da obra artística e de olhar para fora para o compartilhamento dela é que o Projeto Ademar Guerra propõe o desenvolvimento da relação do grupo com sua comunidade. Conforme afirma Pierre Aime Touchard, em Dionisio – apologia do teatro: “O ato realizado no palco só adquire valor de ato absoluto, autônomo, aos olhos daquele para quem na vida, a ação, ou certo tipo de ação permanece como um domínio proibido” (1978, p.15). Ou ainda, tal qual manifesta Fernando Pessoa, o poeta ator, “O Tejo é mais belo que o rio que corre da minha. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre na minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (2001, p.27), ou seja, ao promover o olhar para o entorno e origem desses jovens atores, as orientações artísticas fundem os modos de produção – consideradas em seus âmbitos artístico e administrativo - e a formação de público, completando o ciclo de ação de uma politica cultural eficiente, na medida em que conecta indivíduos da universidade aos mais recônditos lugares do interior do Estado de São Paulo. b.4.- Orientação Grupo Orienta Grupo Essa metodologia ampliou as possibilidades de orientação artística, contando com a participação de grupos profissionais reconhecidos em parceria com grupos ingressantes no Projeto Ademar Guerra, propondo como diferencial a transferência de competências técnicas, a sistematização e o intercâmbio de processos criativos; e o fortalecimento da estrutura de teatro de grupo. b.5.- Circulação A metodologia Circulação consiste essencialmente na apresentação dos espetáculos orientados pelo projeto em festivais, mostras e parcerias estratégicas, complementada por ações de supervisão, aprimoramento e manutenção dos trabalhos. 199 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Participam da metodologia “Circulação” os espetáculos e/ou processos orientados e produzidos por grupos participantes das edições anteriores do Projeto, que demonstraram desenvolvimento artístico dentro dos princípios estabelecidos pela curadoria e foram apreciados nas Mostras Finais; e que, em função da sua proposta, possam ampliar a ação do projeto voltada para a comunidade e ações de formação e/ou fidelização de plateias, nas suas próprias cidades ou com parceiros. visando à relação dos grupos com o público e com os sistemas de validação em arte. c) Apontamentos sobre as metodologias do Projeto c.1.- O risco do “paternalismo” Primeira problemática: em muitos grupos atendidos durante seguidas edições passou a ser perceptível: uma grande dependência em relação às ações do Projeto Ademar Guerra, tendo-se construído dessa maneira uma relação paternalista com essa política cultural, condicionando os processos às interferências das orientações para que seus trabalhos possuíssem uma encenação creditável ou para que suas pesquisas se renovassem, lançando-se por lugares ainda não explorados. Tais sintomas pareciam não ir totalmente ao encontro dos princípios de estímulo à autonomia dos grupos. Ao invés do compartilhamento de ferramentas de pesquisa, para que o grupo pudesse criar seus próprios instrumentos e fins, eles passavam a esperar do Projeto Ademar Guerra a resolução de suas crises internas, questionamentos e dificuldades. Nesse contexto, o entendimento da equipe do Projeto é que este se apresenta como uma política pública voltada para o estímulo criativo dos grupos, se propondo enquanto “ação cultural” a colaborar com o início desse processo, conforme Teixeira Coelho, quando propõe que: [...] sob um ângulo específico, define-se a ação cultural como o processo de criação ou organização das condições necessárias para que as pessoas e grupos inventem seus próprios fins no universo da cultura. [...] Neste sentido, por depender daquilo que as pessoas e grupos aos quais se destina entendam dela fazer, a ação cultural, apresentando-se como o contrário da fabricação cultural, não é um Programa de materialização de objetivos previamente determinados em todos os seus aspectos por uma política cultural anterior, mas um processo que, tendo um inicio claro, não tem um fim determinado nem etapas intermediárias previamente estabelecidas. Neste sentido, a ação cultural é, antes, uma aposta: dados certos pontos de partida e certos recursos, as pessoas envolvidas no processo chegarão a um fim não inteiramente especificado embora provavelmente situado entre certas balizas. Ou não... O processo ou os meios, nesse caso, importam mais que os fins, e o agente cultural, bem como a política cultural por ele representada, deve aceitar correr este risco. O próprio agente cultural, de resto, submete-se ao processo por ele mesmo desencadeado, sofrendo ele também a ação cultural resultante (COELHO, 1997, p. 32). Atentos a essa essência do conceito de ação cultural, que alimenta a relação do Projeto Ademar Guerra com os grupos, entendemos que os próprios indivíduos (ou, no nosso caso, também o grupo) devem apropriarse dos meios de produção e criação compartilhados pelo mediador (o orientador e o Projeto Ademar Guerra), ao invés de fruírem do intercâmbio entre esses artistas como um meio insubstituível para determinarem os objetivos de seus processos criativos. c.1.- Distância entre discurso e realidade Segunda problemática: em muitos casos em que novos grupos, desconhecidos do Projeto Ademar Guerra ingressavam na metodologia de orientação “grupos estáveis”, os projetos redigidos por esses pouco correspondiam à realidade de seus trabalhos em relação à disponibilidade, empenho e assiduidade para assumir um compromisso de estudo intenso do fazer teatral. O discurso expresso no papel e mesmo nas entrevistas e dinâmicas do processo seletivo por vezes revelava um representante com boa retórica, vivência teatral e capacidade de argumentação, mas ocultava um grupo ainda pouco preparado para uma imersão mais vertical, pois contava com membros que há pouco tempo haviam ingressado no coletivo ou ainda muito insipientes no que toca às técnicas mais fundamentais do teatro, como a compreensão do jogo cênico e o domínio básico do corpo e da voz, o que, se percebido a tempo, poderia levar a curadoria a destinar esse grupo à outra metodologia de orientação, como a Orientação para Grupos em Formação. c.2.- Tentativas de resoluções para as problemáticas No intuito de maximizar o aproveitamento desses grupos, o Projeto Ademar Guerra vem lançando mão de novas estratégias, como a elaboração de novas metodologias de orientação e a valorização do percurso formativo. Como vimos na primeira problemática, há necessidade, em 201 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 determinados casos, de impulsionar o grupo a alcançar sua autonomia, estimulando-os a criarem seus próprios valores através da síntese das diversas informações oferecidas. Para isso, foi criada a Orientação Especial, uma modalidade de atendimento que envia diversos orientadores para o mesmo grupo, cada um deles com foco em um campo de atuação das artes cênicas, e, portanto, com diferentes formações e estilos de orientação. Apesar dos orientadores trocarem informações entre si, as impressões, estímulos e devolutivas sobre a pesquisa do grupo nem sempre coincidirão ou incidirão sobre um mesmo ponto de ataque. O grupo é levado, portanto, a fazer suas próprias escolhas, uma vez que não haverá apenas um estímulo externo, mas diversas linhas de força, parâmetros, gostos e experiências que desestabilizarão a ideia de unidade com a qual esse grupo está acostumado. Em suma, entre um CsO (Corpo sem Órgãos) de tal ou qual tipo e o que acontece nele, há uma relação muito particular de síntese ou de análise: síntese a priori onde algo vai ser necessariamente produzido sobre tal modo, mas não se sabe o que vai ser produzido; análise infinita em que aquilo que é produzido sobre o CsO já faz parte da produção desse corpo, já está compreendido nele, sobre ele, mas ao preço de uma infinidade de passagens, de divisões e de sub-produções (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 12-13). Como nos sugere Deleuze e Guattari, o grupo passa a ser um grande organismo vivo, capaz de abarcar diversas interferências e constituir um corpo sem força determinante, estando sempre permeável e disposto a reinventar-se a cada nova experiência. O Projeto Ademar Guerra no contexto das políticas públicas Para o entendimento do conceito de políticas públicas, partiremos do referencial dado por DYE (1972) quando afirma que: “[...] tudo o que um governo decide fazer ou deixa de fazer” (apud SOUZA, 2006, p.20) pode ser considerado como política pública, propondo que o agente primário da política pública é o governo, envolve tipos de tomada de decisão, portanto, escolhas, pressupondo ação determinada e realização consciente para alcançar objetivos determinados. Dialogando com esse conceito síntético o pesquisador Jenkins entende a política pública como [...] um conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um ator ou grupo de atores políticos, e que dizem respeito à seleção de objetivos e dos meios necessários para alcança-los dentro de uma situação específica em que o alvo dessas decisões estaria, em princípio, ao alcance desses atores (JENKINS,1978, apud HOWLETT; PERL, 2013, p.7). Nesta visão podemos entender a política pública como processo dinâmico, envolvendo diversas opções de decisões e soluções possíveis, dada a capacidade dos governos para resolver os problemas públicos demandados pela sociedade. Contextualizando o Projeto Ademar Guerra no campo das políticas públicas, é possível observar, nesta primeira e panorâmica aproximação, que o este traz na sua implementação algumas das principais características conceituais de política pública. Pois é uma iniciativa governamental que visa resolver um problema público pré-existente dado diagnóstico do necessário investimento na formação artística aos grupos sediados no interior devido a, ausência de equipamentos e outros meios estatais para esta ação. A formulação do Projeto parte de uma demanda trazida pelo diálogo entre a sociedade civil organizada (Comissão Estadual de Teatro, movimentos e organizações de classe) e decisão governamental que, ao decidir realizar o Projeto reconhece a importância desses atores sociais (os grupos teatrais) para o desenvolvimento dos próprios participantes e também das suas cidades. Nesses 18 anos de implementação, observamos que o Projeto Ademar Guerra é um tipo de política cujo processo de implementação pode ser entendido pela abordagem denominada de escolha de instrumentos ou policy design, que traz a ideia de que a solução proposta por uma política necessita, ao ser implementada, da combinação de diversos instrumentos políticos e de governo e/ou a participação de diversos atores públicos para alcançar êxito, ou seja: [...] começa com a premissa de que independente de estudarmos o processo de implementação top-down ou bottom-up, o processo de dar substância a uma decisão governamental sempre envolve a escolha de diversas ferramentas disponíveis que puderem individualmente da alguma contribuição para a promoção da política (Howlett, Ramesh e Perl, 2013). Dito de outra forma, o Projeto faz parte de uma política maior (Plano e Programa Estadual), na área de formação cultural que para obter os objetivos previamente traçados necessita realizar diálogo com outras 203 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 políticas, principalmente as municipais, atentar para a diversidade, buscar ferramentas atuação dentro deste campo multicultural e contar com diversos tipos de parceiros: festivais, mostras, prefeituras, grupos etc. em busca de sinergia que colabore com os esforços dispendidos na implementação visando alcançar os resultados planejados na sua formulação. Essa visão conceitual de política pública, aplicada ao campo artístico e cultural, ainda era novidade em 1997, na implementação do Projeto. A relação do próprio Governo do Estado, notadamente da Secretaria da Cultura, na sua missão de realizar programas culturais visando o desenvolvimento artístico e cultural da população do Estado, lastreados com princípios lidados aos conceitos de democratização, democracia e descentralização foi se transformando entre 2003 a 2006. Nesse período há uma reformulação da própria estrutura institucional da Secretaria de Estado, implementação do modelo de Gestão por meio das Organizações Sociais e é esse contexto que promove o entendimento dos programas e projetos da Secretaria de Estado da Cultura como políticas públicas de cultura, conforme podemos averiguar por meio da declaração da então Secretária de Estado Claudia Costin: [...] ao estabelecermos como meta a definição de uma política cultural como política pública, que permitisse reforçar o conceito de cidadania através do acesso à cultura, contrariamos com certeza alguns interesses. A maioria daqueles que ainda acreditam que a cultura pertence às elites, que se arvoram em proprietários onipontentes de um conhecimento seleto e excludente. Não é essa nossa visão de política cultural pública. Uma política pública tem que ter como foco, como beneficiário, o cidadão. A ele, e não às elites ou aos artistas, devem se destinar os investimentos do Estado na cultura (2003, p. A10). O Projeto Ademar Guerra representou então um percentual significativo deste pensamento, sendo fruto das ações para o setor cultural implementadas ao longo da gestão do Governador Mário Covas, mas ao ser redesenhado apresenta em sua práxis características buscadas pelo Governo do Estado de interiorização, descentralização e desconcentração, tornando o Projeto um dos exemplos de políticas publicas para as artes, voltada para o interior do Estado e aos jovens, uma política extremamente focalizada em “território” e “perfil”. Ao analisarmos o Projeto Ademar Guerra diante dos conceitos de políticas culturais (ou políticas públicas para a cultura) apresentados pelo pesquisador Teixeira Coelho, verificamos que o Projeto se legitima perante a sociedade por compor um conjunto de políticas que são motivadas pela lógica do Estado do bem estar social, “[...] sem uma política cultural adequada, a dinâmica social é deficitária e precisa ser corrigida uma vez aceita a premissa de que as práticas culturais são uma complementação do ser humano” (COELHO, 2004, p.294). As fontes de inspiração da política estão correlacionadas com os interesses maior do Governo para com a área cultural, pois como já foi dito o Projeto é um exemplo de política que atende aos princípios da descentralização, desconcentração, valorização das culturas locais e de algum modo compensatória, pois suas ações tentam suprir a ausência de equipamentos estatais culturais no interior. No que se refere a sua orientação trata-se de uma política focada na lógica da demanda, pois no caso do Projeto Ademar Guerra se busca a formação dos jovens no universo artístico, não apenas com a preocupação de uma profissionalização, mas, principalmente em ter esses jovens como público “formado” e também, por meio dos seus espetáculos criados e apresentados em suas comunidades, colaborar com as ações de formação de públicos e plateias para as artes. Olhando o Projeto Ademar Guerra podemos também entendê-lo como uma política pública cujo objeto se propõe ao desenvolvimento de propostas “criacionistas”, ou seja, a valorização da produção, criação e percepção de novos valores culturais. Tais aspectos são observados no cotidiano do Projeto quando colaborar com artistas que visam o desenvolvimento de dramaturgias próprias, hibridismos de linguagem, estudos de textos teatrais inéditos etc. Além do que, como afirma Teixeira Coelho quando analisa as possibilidades das tipologias das políticas de cultura diante do nosso cenário atual globalizado “[...] não basta que muitos saibam apreciar algumas ou muitas formas culturais: é preciso garantir ao maior número de pessoas a possibilidade de participar do processo como criadores” (COELHO, 2004, p.295). No que se refere ao seu circuito de intervenção, o Projeto se concentra em ações alheias ao mercado cultural e principalmente desenvolve estratégias que permitem entendermos sua atuação vetorizada dentro dos princípios denominados de usos da cultura, proporcionando condições para que as pessoas possam se manifestar artisticamente. Por fim é importante ressaltar que, como um Projeto não exclusivo para a profissionalização de artistas, muitas vezes as estratégias do Projeto materializadas por meio das metodologias de orientação aqui já relatadas, 205 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 atuam com foco no indivíduo, sua compreensão enquanto ser humano e parte de uma comunidade. A ideia é desenvolver nos jovens artistas o pensamento de “cidadão-criador” que possa olhar para si, para a sua comunidade e a sua obra artística coletiva como possibilidades de transformação sócio-cultural, onde o estético e o político se comuniquem, pois: Com as suas ações o Projeto estabelece uma conexão onde o protagonismo do fazer artístico e teatral, com o espetáculo, deve ser a força motriz para o contato do grupo com a sua comunidade, buscando colaborar com a vida cultural local bem como potencializá-los para a trajetória de inclusão nos meios de validação do sistema cultural. A busca dessa forma é por uma conexão entre o indivíduo-artista, o artista em grupo e o cidadão- criador que possa através da arte potencializar mudanças em si e nas comunidades e cidades que realizarem seus trabalhos (VALENTIM, 2014, p.15). Por este campo de visão o Projeto Ademar Guerra também pode dialogar com os deslocamentos e atualizações dos conceitos de políticas públicas em artes debatidos, na atualidade, principalmente, por meio do conceito de “conveniência da cultura”. Este conceito, é desenvolvido por George Yúdice (2006), que apresenta mudanças de paradigmas da ação e usos da cultura diante das mudanças do próprio sistema capitalista, globalização e a mudança já observada da visão de cultura ensimesmada, ou seja: a cultura pode ser um recurso em si para a busca de outros objetivos. Referencias Bibliográficas: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas - estudos, 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras,1997. COSTIN, Claudia. “Cultura, inclusão e Políticas públicas”, in: Coluna Opinião. Valor Econômico, São Paulo, p. A 10., 3/nov/2003. COUTO, Claudio Gonçalves. “Política constitucional, política competitiva e políticas públicas”, in: BUCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de (org.). Implementação de políticas públicas: teoria e prática. Belo Horizonte: Editora Puc-Minas, 2012. HEIDEMANN, Francisco G.; SALM, José Francisco (orgs.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. 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Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. 207 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Ti-jo-lo/ en-con-tro: Cante lá que eu canto cá, por Dinho Lima Flor, Lílian Lima, Rodrigo Mercadante, Thiago França, Aloísio Oliveira. Para demonstração de processo de criação, é importante: • não organizar uma aula, mas um encontro. • manter aberto o espaço dos improvisos, associações e novas direções. • ênfase à amizade: como conceito a partir do qual a horizontalidade é possível, e crítica a certo “profissionalismo” como modelo de organização. • não criar uma estrutura fechada, mas reproduzir, dentro do possível, junto com quem estiver conosco, um ambiente de criação. • apresentar uma narrativa sobre as origens da Cia. do Tijolo. • comentar sobre a poesia e a canção como formas de resistência (tomando como referência algumas falas do professor Alfredo Bosi). • apresentar algumas canções, poemas e histórias que tenham servido de inspiração para construção dos espetáculos do grupo. • abordar as relações entre música e teatro, popular e erudito, Federico Garcia Lorca, Patativa do Assaré e Paulo Freire. • apresentar a história da Companhia e dos espetáculos em termos de processo: as continuidades e descontinuidades que nos ligam tanto àqueles que vieram antes de nós como àqueles que virão depois. • fazer desse encontro um momento de prazer para a Cia. do Tijolo e para os participantes do evento. Roteiro 1. Porque cantamos (poema de Mário Benedetti) Se cada hora vem com sua morte se o tempo é um covil de ladrões os ares já não são tão bons ares e a vida é nada mais que um alvo móvel você perguntará por que cantamos se nossos bravos ficam sem abraço a pátria está morrendo de tristeza e o coração do homem se fez cacos antes mesmo de explodir a vergonha você perguntará por que cantamos se estamos longe como um horizonte se lá ficaram as árvores e céu se cada noite é sempre alguma ausência e cada despertar um desencontro você perguntará por que cantamos cantamos porque o rio está soando e quando soa o rio / soa o rio cantamos porque o cruel não tem nome embora tenha nome seu destino cantamos pela infância e porque tudo e porque algum futuro e porque o povo cantamos porque os sobreviventes e nossos mortos querem que cantemos cantamos porque o grito só não basta e já não basta o pranto nem a raiva cantamos porque cremos nessa gente e porque venceremos a derrota cantamos porque o sol nos reconhece e porque o campo cheira a primavera e porque nesse talo e lá no fruto cada pergunta tem a sua resposta cantamos porque chove sobre o sulco e somos militantes desta vida e porque não podemos nem queremos deixar que a canção se torne cinzas. 2. Mambembe (canção de Chico Buarque de Hollanda) No palco, na praça, no circo, num banco de jardim, Correndo no escuro, pichado no muro, Você vai saber de mim Mambembe, cigano Debaixo da ponte/ Cantando Por baixo da terra/ Cantando Na boca do povo/ Cantando Mendigo, malandro, moleque, mulambo bem ou mal/ Cantando Escravo fugido, um louco varrido Vou fazer meu festival Mambembe, cigano Debaixo da ponte/ Cantando Por baixo da terra/ Cantando Na boca do povo/ Cantando Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu/ Cantando Dormindo na estrada, no nada, no nada E esse mundo é todo meu Mambembe, cigano Debaixo da ponte/ Cantando Por baixo da terra/ Cantando Na boca do povo/ Cantando Tema 1: Cia. do Tijolo Nossas raízes. De onde viemos: Teatro Ventoforte, Cia. São Jorge e Casa Laboratório para as Artes do Teatro. 209 Tema 2: O surgimento da Cia. do Tijolo O encontro de Dinho Lima Flor com Patativa do Assaré. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 3. Flor e o ispinho (canção de Nelson Cavaquinho) Tire o seu sorriso do caminho Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho Espinho não machuca flor Eu só errei quando juntei minh´alma à sua O sol não pode viver perto lua É no espelho que eu vejo a minha mágoa A minha dor e os meus olhos rasos d´água Eu na tua vida já fui uma flor Hoje sou espinho em teu amor Tema 3: “Leitura do Mundo e a leitura das palavras”. História de como chegamos ao nome Cia. do Tijolo: Patativa do Assaré encontra Paulo Freire. Duelo de poesias – Concerto de Ispinho e fulô e Cante lá que eu canto cá: dois espetáculos sobre Patativa do Assaré. ... Mas era preciso ir ao Cariri e nessa viagem foram: Música (coro): São três dias e três noites de São Paulo a Fortaleza. Que Beleza!!! Fortaleza, Juazeiro sete horas sem parar. Sem parar, sem parar, sem parar... Juazeiro até o Crato vai ser mesmo uma moleza. Crato, Nova Olinda, em Assaré vamos chegar. Atores: Falta muito? Que calor? Dirige pra mim? Música (coro): São três dias e três noites de São Paulo a Fortaleza. Que Beleza!!! Fortaleza, Juazeiro sete horas sem parar. Sem parar, sem parar, sem parar... Juazeiro até o Crato vai ser mesmo uma moleza. Crato, Nova Olinda, em Assaré vamos chegar. Atores: Seu Patativa? Patativa: Ummmm!! Ator: Seu Patativa, é um prazer em primeiro lugar, nós somos um grupo de São Paulo e estamos fazendo uma peça sobre o senhor. Viemos até aqui para conhecê-lo melhor. Atriz: Viemos pesquisar para fazer um espetáculo sobre a sua vida, colher material. É que a gente leu tudo seu Patativa, a gente adorou... Queríamos fazer um laboratório... Ator: Seu Patativa, a gente veio primeiro conversar... com o senhor. Saber das coisas daqui do sertão, saber sobre o caldeirão (com um gravador na mão) o senhor se importa se... Patativa: Gravador, que estás gravando, aqui, no nosso ambiente, tu gravas a minha voz, o meu verso, o meu repente. Mas, gravador, tu não gravas a dor que meu peito sente! Tu gravas em tua fita com maior perfeição, o timbre da minha voz, a minha fraca expressão! Mas não gravas a dor grave, gravada em meu coração! Gravador, tu és feliz! E, ai de mim o que será? Bem o que em tua fita está pode ser desgravado, e a dor do meu coração jamais se desgravará! (tempo) São de onde? Atores: Sou de Santos, sou de São Paulo, Maringá... Patativa: São poetas? Atriz: Poeta aqui é o senhor, seu patativa. Eu sou atriz, o senhor sabe, né? Todo ator é uma espécie de poeta. Patativa: Sei não! Poeta cantor da rua que na cidade nasceu, cante a cidade que é sua, que eu canto o sertão que é meu, se ai você teve estudo, aqui Deus me ensinou tudo, sem de livro precisá, por favor, não mexa aqui, que eu também não mexo ai, cante lá, que eu canto cá. Atores: Seu patativa, não é isso não! Só viemos para conhecê-lo. Patativa: Pra gente aqui sê poeta e fazê rima compreta, não precisa professor, basta vê no mês de maio, um poema em cada gaio e um verso em cada fulô, cante lá que eu canto cá... Ator: Não é isso, seu Patativa, não é o que senhor está pensando. Vou gravar isso não. Patativa: Poeta cantor da rua que na cidade nasceu, eu sou cantor da mão grossa, trabaio na roça de inverno e de istio, a minha choupana é tapada de barro e o meu cigarro é de palha de milho. Poeta das brenhas eu sou e não faço papé de argummenestréerrante cantor, que veve vagando com sua viola, cantando pachola a procura de amor// Não tenho sabença, pois nunca estudei, apenas eu sei meu nome assinar, cante lá que eu canto cá. (Reações) Ator: Garoa do meu São Paulo. Timbre triste de martírios, um negro vem vindo, é branco! Só bem perto fica negro, passa e torna a ficar branco. Meu São Paulo da garoa, Londres das neblinas finas, um pobre vem vindo, é rico! Só bem perto fica pobre, passa e torna a ficar rico. Garoa do meu São Paulo, costureira de malditos, vem um rico, vem um branco, são sempre brancos e ricos... Garoa sai dos meus olhos. Patativa: Você é munto ditoso, 211 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 sabe lê, sabe escrevê, pois vá cantando sue gozo, que eu canto o meu padecê Repare que a minha rima é diferente da sua, a sua rima pulida, nasceu no salão de rua, mas, porém eu não invejo os grandetesôro seu, o livro de seu colégio, onde você aprendeu É certo que você teve inducação, estudou munta ciência, mas das coisas do sertão não tem boa experiência. Atores: Sertão é dentro da gente, o sertão é do tamanho do mundo, não tem janelas nem portas. sertão é como eu, ou bem Deus governa o sertão ou o sertão nos governa. Sertão é aonde o pensamento da gente se torna mais forte, do que o poder do lugar. Patativa: Só se canta o sertão dereito com tudo quanto ele tem, quem sempre correu istreito, sem potreção de ninguém, coberto de precisão com paciência de Jô, arrastando o cabo de enxada na pegada e na chapada molhadinho de suó. Poeta niversitário, poeta de cademia, de rico vocabulário, cheio de mitologia, tarvês essa minha fala, não vá recebê carinho, nem lugio, em estima, mas eu garanto ser fié e num instruir papé com poesia sem rima a poesia sem rima bastante me desanima e alegria não me dá, não tem sabôa leitura, parece uma noite escura, sem estrela e sem lua, cante lá que eu canto cá. Ator: Quando nasci um anjo torto, desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche, nas casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas, para que tantas pernas meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco. Mundo, mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto seu patativa é o meu coração. Patativa: Se o doutor me perguntar se verso sem rima presta, calado eu não vou ficar e minha opinião é essa: Sem rima a poesia perde arguma simpatia e uma parte do primô, não merece muita palma, é como um corpo sem alma e um coração sem amor. Meu caro amigo poeta que faz poesia branca, não me chame de pateta por essa opinão franca, é que seu verso é mistura e um tá sarapaté, que quem tem pouca leitura, lê, mas não sabe o que é, tem tanto coisa encantanda, tanta deusa, tanta fada mistério e condão e outros negócios impossivi, e eu canto a coisas visive do meu querido sertão e por isso vivo nessa solidade, bem distante da cidade, onde a ciência guverna, tudo meu é natura e eu não sou capaz de gostar de poesia moderna, já disse: não mexa aqui, que eu também não mexo ai, cante lá, que eu canto cá. Ator: Ora (direis) ouvir estrelas! Certo, perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto E abro as janelas, pálido de espanto E conversamos toda a noite, enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido tem o que dizem, quando estão contigo?” E eu vos direi: 213 Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas Patativa: Olavo Bilac! Conheço! Vai de Castro Alves! Ator: É de um escravo a humilde sepultura, Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 foi-lhe a vida o velar de insônia atroz. Deixa-o dormir no leito de verdura, que o Senhor dentre as selvas lhe compôs. Patativa: Vinte e quatro anos esse homem viveu, magina se um homem desse tivesse vivido 56 anos, o que não teria deixado pro mundo. Eu aprendi a lê, pra lê Castro Alves. Patativa: Vai de Camões! Conhece! Ator: As armas e os Barões Assinalados Patativa: Pela estrada da vida nós seguimos Ator: Que da ocidental praia luzitana Patativa: Cada qual procurando melhorar Ator: Por mares nunca dantes navegados Patativa: Tudo aquilo que vemos e ouvimos Ator: Passaram muito além da taprobana Patativa: Desejamos na mente interpretar Ator: Por perigos e guerras esforçados Patativa: Pois nós todos na terra possuímos Ator: Mais que permitiu a força humana Patativa: O sagrado direito de pensar Ator: Entre gente remota edificaram Patativa: Nesse mundo de Deus olho e diviso Ator: Novo reino que tanto sublimaram Patativa: O Purgatório, o inferno e o Paraíso. É assim que eu sou, é assim que eu canto... Eu canto as fulô e os ispinhos com todas as coisas daqui, pra toda parte que eu óio, eu vejo um verso se buli Mas se eu as vez andando nos vales atrás de curá meus males, quero reparar pra serra, assim que olho pra cima vejo um diluvi de rima, caindo em riba da terra. 4. Último pau de arara (canção de Luiz Gonzaga) A vida aqui só é ruim Quando não chove no chão Mas se chover dá de tudo Fartura tem de montão Tomara que chova logo Tomara, meu Deus, tomara Só deixo o meu Cariri No último pau-de-arara Só deixo o meu Cariri No último pau-de-arara Enquanto a minha vaquinha Tiver o couro e o osso E puder com o chocoalho Pendurado no pescoço Vou ficando por aqui Que Deus do céu me ajude Quem sai da terra natal Em outro canto não para Só deixo o meu Cariri No último pau-de-arara 5. Canto dos Emigrantes (Alberto da Cunha Mello) Com seus pássaros Ou a lembrança dos seus pássaros Com seus filhos Ou a lembrança dos seus filhos Com seu povo Ou a lembrança de seu povo Todos emigram De uma pátria a outra do templo De uma praia a outra do atlântico De uma serra a outra das cordilheiras Todos emigram Para o corpo de Berenice Ou o coração wall street Para o ultimo tempo Ou a primeira dose de tóxico Para dentro de si Ou para todos Para dentro de si Ou para todos Pra sempre todos emigram Tema 4: Patativa encontra Garcia Lorca: continuidades possíveis 6. Alerta (canção de Jonathan Silva) Bordar, num pano de Linho Um poema Tambor que desperte o vizinho. Pintar, no asfalto e no rosto Um poema alvoroço que adormeça a cidade. Dançar com tamancos na praça Cantar, porque um grito já não basta Esfarrapados, banguelas Meninos de rua, poetas, babás. Vistam seus trapos, abram os teatros, É hora de começar: Alerta, desperta, ainda cabe sonhar. Alerta, desperta, ainda cabe sonhar. 215 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Tema 5 : Poesia e resistência: o modo como a Cia. do Tijolo organiza sua dramaturgia. Elza caga na rua ( Miró da Muribeca) Elza caga na rua no Largo de Santa Cecília não limpa a bunda nem por isso morreu ainda a guarda metropolitana não ousa prendê-la não há nada no código penal que diga que cagar em via pública é crime se tivesse, Elza cagaria do mesmo jeito dizem que Elza não tem juízo os sem juízo são imunes perante Deus e a polícia e nem sequer sabe da existência de papel higiênico Tema final: A política da amizade como forma de resistência à servidão, como bom encontro potencializando a criação. Morte e Vida Severina (trecho – João Cabral de Melo Neto) E não há melhor resposta Que o espetáculo da vida: Vê-la desfiar seu fio, Que também se chama vida, Ver a fábrica que ela mesma, Teimosamente, se fabrica, Vê-la brotar como há pouco Em nova vida explodida Mesmo quando é assim pequena A explosão, como a ocorrida Como a de há pouco, franzina Mesmo quando é a explosão De uma vida Severina. 7. Nenhuma lágrima (canção de Suely Costa) Nem uma lágrima Nem uma lástima Só este chorinho meio antigo Pra dizer que eu não chorei de amor Nem uma lágrima Quem me olha e não me vê Aprendi amor vou repetir Enquanto eu fizer canção E tocar violão E atravessar a dor Com os olhos na poesia E os passos no meu dia Mas amor não choro não Nem mais uma lágrima de amor Espaço para perguntas e processo de diálogo com os participantes presentes ao evento. Segundo dia A criação da intérprete nas fronteiras: onde (re)nasce a linguagem?, por Lúcia Romano Resumo: O texto que se segue relata a experiência em primeira pessoa na criação do espetáculo Xapirí xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos, no que concerne à interpretação e à aventura para a qual são convidados/as os/as intérpretes em pesquisas que buscam constituir suas poéticas no trânsito entre as linguagens artísticas. Palavras-chave: gêneros híbridos, interpretação, corpo-voz. Abstract: The following text describes the experience in the first person in the creation of the show Xapirí xapiripê, there where we danced on mirrors, as regards the interpretation and adventure for which they are invited the interpreters in research that aims to be his poetic in traffic between the artistic languages. Keiwords: Keywords: hybrid genres, interpretation, body- voice. 217 Foto de Cacá Diniz. Cia. Livre e Oito Nova Dança. Lúcia Romano, Lu Favoreto, Gregory Slivar e Thiago Antunes em Xapirí xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Os espetáculos contemporâneos de natureza híbrida desafiam a recepção crítica. São objetos que escapam ao enquadramento nos territórios tradicionais do teatro, do circo, da mímica, da dança ou da performance, e assim, precisam ser tratados a partir não dos elementos que caracterizam a natureza pura de cada linguagem artística, mas a partir dos limites definidos pelas criações em si mesmas. Atenta a isso, Lima (2005, p. 22-3) define a crítica contemporânea como uma crítica intrínseca, que deve tratar cada produção teatral em sua singularidade, mas sem deixar de observar elementos extrínsecos, relativos aos contextos de criação. Além disso, os dois limites – o externo e o interno à obra – devem ser matizados e entrecruzados. Cabe ao crítico capturar a ressonância que cada espetáculo provoca, entendida como o seu mais legítimo “devir”, de cuja invenção participa aquele que faz e aquele que assiste. Assim feito, ressalta Lima, cabe ainda observar o conhecimento acumulado, abarcado pelo cânone artístico, sem esquecer que toda obra de arte de valor encontra sua posição na oposição ao já estabelecido. Criar nesse território onde as fronteiras estão embaçadas também enseja novidades. Em especial para os intérpretes, a vivência de processos criativos híbridos tem provocado mudanças nos aspectos da formação e do treinamento (portanto, nas técnicas e práticas corporais), assim como da construção poética da obra (no sentido de como a linguagem é inventada cotidiana e continuamente, nas trocas entre os artistas durante o processo de criação). Um processo de criação que se propõe explorar as “fronteiras” não só questiona os limites rigidamente estabelecidos entre as artes, mas convida a uma multiplicidade de procedimentos, numa mistura experimental de propostas e métodos de criação. Quando da “institucionalização” de um modo de fazer teatral dessa natureza, essas operações inventadas no processo caracterizam a linguagem tanto quanto a forma que emerge nos corpos dos intérpretes e na materialidade da cena. Assim foi com a dança-teatro de Pina Bausch, cuja mistura particular entre dança e teatro passou a ser identificada com seus procedimentos; entre eles, a prática da dança clássica, fundida a vocabulários da dança expressionista alemã (de Jooss e Wigman), da dança contemporânea e ao emprego de jogos e improvisos que aportam estruturas dramáticas derivadas do fazer teatral (personagem, narrativa etc.). Na cena de Bausch, as linguagens encontram-se desestabilizadas, em atrito constante. Sua construção poética, pode-se dizer, não teria o resultado apresentado se seus bailarinos e bailarinas não vivenciassem dia após dia o processo que permitiu o aparecimento, em seus corpos, de elementos estilísticos relacionados a aspectos tradicionais da dança e do teatro, mas que desafiam sua convencionalização em nome de um outro “algo”. Embora “especializados” em suas formações, aqueles bailarinos e bailarinas lançaram-se em direção à integração de componentes alheios à atuação tradicional do(a) dançarino(a), incorporando em sua expressividade, por exemplo, a contracenação, a fala e o depoimento pessoal. É no corpo desses intérpretes que a interação projetada por Bausch se processa e as categorias são suspensas. Xapirí Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos, espetáculo criado em parceria por Lu Favoreto, bailarina e coreógrafa, Cibele Forjaz, encenadora e iluminadora, e um grupo de atores-bailarinos também exemplifica a construção de uma linguagem híbrida, a partir do atrito entre as formas artísticas. Uma peça? Uma dança? Considerando somente o desenho da cena e a dramaturgia, talvez, a interrogação sobre o gênero do espetáculo permaneça sem resposta. Vale explorar um pouco seu processo, para contrapor à questão sobre “o que esse espetáculo é” alguns apontamentos em torno das zonas de significação que ele se propôs a criar. Nesse particular, Eleonora Fabião (2008) afirma que: “Diante de tal quadro sugiro que passamos de um problema ontológico – o que é teatro – para uma interrogação performativa: o que queremos que ‘teatro’ seja?” (p.245). Não é à toa que a definição do conjunto de intérpretes reunido no espetáculo mereceu essa somatória terminológica. Em Xapirí, a inflexão da função de “atuar” com a de “dançar” busca descrever um tipo de “performer” que não se limita a uma só forma de presença na cena. Mas, afinal, o que vem a ser esse “ator-bailarino”? O termo, que se popularizou no Ocidente a partir das vanguardas artísticas pós anos 1960, tenta definir um(a) intérprete cujo estado cênico se situa “entre linguagens”, ou na “soma” de modos de fazer. Laban, ainda na primeira metade do século XX, denominaria essa flutuação de registros como Tanz-Ton-Wort-Plastik (Dança-Tom-PalavraPlástica), destacando que a “atitude interna” é que irá definir a qualidade do movimento (FERNANDES, 2007: 34). Segundo Bausch, por sua vez, em sua dança-teatro “[...] os passos têm vindo sempre de algum outro lugar - nunca das pernas” (BAUSCH apud SERVOS e WEIGELT, 1984: 239). Sua afirmação indica a percepção que a experiência da “dança” extrapola o vocabulário visível e esperado - os “passos das pernas”-, os quais não detém a primazia sobre a definição da linguagem. 219 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 No caso da Companhia Oito Nova Dança, o ator-bailarino é também um artista criador que entende o corpo cênico como portador de diversas potencialidades expressivas, acionadas através do uso do movimento, do gesto, da palavra, do som e do silêncio. Não obstante a multiplicidade de possibilidades que cabe a ele (ou a ela) organizar, esse intérprete opera no terreno do movimento, compreendido em todas as manifestações do humano (na arte e na vida). Para a dança da Companhia Oito Nova Dança, portanto, o teatro se oferece como uma “tendência natural”, uma vez que ali o movimento também pulsa, ainda que não seja através de uma gramática reconhecida imediatamente como “de dança”, nos padrões mais tradicionais. Essa aproximação, entretanto, não significa uma homogeneização, situação na qual a dança e o teatro perderiam sua autonomia: o que pode ser mostrado diferencia-se do que pode ser dito e os estados do corpo é que “escolhem” seus canais. Com diferentes experiências e formações, Thiago Antunes, Denise Barreto, Camila Venturelli, Raoni Garcia, Fabricio Licursi, Lu Favoreto, Gregory Slivar e eu nos encontramos no desafio de construir um entendimento comum dos problemas que se colocavam na pesquisa, entre eles, relacionar as produções sonora e motora, sem a separação usual entre textualidade corporal e textualidade narrativa, e estabelecer diálogos criativos entre a música, a dança, o teatro e a teoria antropológica contemporânea (em especial, dos estudos de Eduardo Viveiros de Castro, Juliana Carneiro da Cunha e Renato Sztutman sobre os povos ameríndios). Assim, aceitamos individual e coletivamente a oportunidade de trazer para a prática em sala de ensaios não somente a justaposição de técnicas e conhecimentos que possuíamos nesses três campos, fazendo a soma de disciplinas já por nós dominadas, mas de investigar exatamente o que escapava à música, à dança e ao teatro – a experiência encarnada da palavra e sonoridade do movimento no espaço. O primeiro patamar dessa reconstrução da intimidade entre gesto e som foi estabelecido pelo trabalho com a Coordenação Motora e Consciência Corporal, segundo a leitura de Lu Favoreto para a técnica de Madame Béziers. Ao lado da metodologia de Béziers de aplicação consciente da biomecânica do corpo ao movimento, a técnica de dança clássica também foi fonte para a compreensão da estrutura corporal em situação dinâmica e para o treinamento do “dançar junto”, ou seja, a “escuta” no tempo e no espaço. Para tratar da voz, inventamos exercícios que enfocavam o canto coral e a “voz encarnada”; esta última, através das improvisações a partir da respiração, também com base na estrutura corporal e na relação entre coluna de ar (sede da sonoridade “encorpada”) e coluna de osso (que inspira o movimento sensível e integrado). Os momentos de apropriação técnica misturavam-se à realização de workshops, nos quais os temas do trabalho eram acessados por cada intérprete a partir de seus conteúdos pessoais, sem nenhum tipo de compromisso com a formalização, a não ser aquela que efetivamente emergisse da sua pessoalidade. Cada qual podia decidir qual “gramática” lhe seria útil, com vistas à comunicação. Por certo, dessa investigação emergem não apenas pontos de vista, mas o imaginário, sensibilidade artística, técnicas expressivas já vivenciadas e incorporadas, referências estéticas e toda sorte de acasos. O material gerado, mais afeito à narratividade do “teatro” ou à abstração da “dança”, foi sendo revisitado de modo a constituir esboços de partituras de movimento e som, que pudessem ser transmitidos e partilhados. A ideia de partitura permitia que os efeitos de sentido surgissem, mas sem uma lógica linear. A construção coreográfica, portanto, surgiu do impulso de projetar no tempo os “temas”, conectando as respostas através da relação entre as diversas matrizes de movimento, as imagens e sonoridades criadas, e não com o foco na organização de uma estrutura discursiva com base em relações causais. A partir da composição de “concentrações” (clusters) cada vez mais complexas (no sentido do número de interações entre suas partes, mesmo que com padrões derivados de movimentos “simples”) novas decisões foram sendo tomadas, no sentido dar relevo a alguma dimensão da construção realizada: ora era enfatizado o percurso de um movimento; ora a relação dos corpos no espaço; ora o tempo de uma ação e as alterações temporais; ora a especificidade, a qualidade de um gesto; ora a produção sonora; ora a relação entre alguém que canta e alguém que se move; ora o som de um corpo em colisão com o solo e assim por diante. A manipulação dessas ênfases era acompanhada do aprendizado de movimentos e sonoridades criadas pelos outros intérpretes, tornando toda a experiência individual uma pesquisa grupal. Uma vez incorporados, o vocabulário podia ser revisto, mesmo que fosse oriundo de outro(a) criador(a). Embora houvesse desenho, o trânsito entre “dentro” e “fora” era valioso e a articulação fina do diálogo entre corpo e espaço não poderia eliminar essa fonte de organicidade. Assim, manter aspectos psicofísicos das ações e deslocamentos, geralmente apagados com a repetição nos 221 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 ensaios, foi um impasse nesse trecho do processo. A sustentação na estrutura corporal e a manutenção de longos trechos de improvisação vieram ao encontro da intenção de tornar a “coreografia” um aspecto submerso e não a projeção no espaço de um resultado, a ser sempre realizado da mesma maneira. A produção vocal passou a ser estimulada pelo aprendizado de línguas e canções dos povos ameríndios. Estranhas à nossa “fôrma vocal”, cantar e falar com aqueles fonemas e acentuações escavava em nossos corpos outra anatomia e trazia novos vínculos entre as sonoridades encarnadas. O sentido original das palavras era explodido, em nome da experiência de resgate da fusão entre corpo, ambiente e cultura que cada língua aporta. O som, em um dado momento, configurou-se como imagem: no caderno de ensaios, anotei algumas delas: “Raoni - mais de uma pessoa dentro dele; Lu – um contador de histórias experiente; Fabrício – Desdêmona; Camila – borboleta ferida; Denise – feto de harpia/ a viagem da cachoeira; Greg – Majnum, o louco; Thiago – uma borra de café/ uma gota de óleo”. As naturezas das vozes ganharam carnalidade cênica, desenhando figuras que, por sua vez, trouxeram temas de movimento próprios. Aos poucos, sem que se abandonasse as fases de apropriação técnica e de linguagem, passou-se a compor e contrapor algumas das unidades coreográficas, cenas e “momentos cantados”, gerando sentidos diferentes para o material. Em termos da performance, tratava-se agora de entrar nas frequências de intensidades, encontrando modulações e transições. Construindo textualidades visuais, projeções em vídeo foram acrescidas, ao lado da introdução de elementos de narrativa textual, a fim de tornar mais perceptível aos futuros espectadores a visão do multiperspectivismo, que permeia o pensamento ameríndio. Com essa função, o roteiro foi finalmente estabelecido em três blocos (fumaça, comida-bebida e canto-dança), os quais demarcavam três etapas de transformação do corpo. A sucessão dos blocos desenvolvia na duração do espetáculo nossa leitura da realidade de múltiplas perspectivas concorrentes dos povos da floresta, no qual um entrecorpo transmuta-se continuamente em seres variados, seja gente, bicho, espírito, mineral ou vegetal. Nesse mundo-cena, a qual a palavra-gesto, ao mesmo tempo, fala, entona, canta, vibra e pulsa. Ali, anotei em meu caderno: “Palavra aqui é para atrair o movimento, não para afastá-lo”. No espetáculo Xapirí Xapiripê..., a fusão entre teatro, música e dança busca, mais do que um novo tipo de “estar em cena”, a liberdade de atuar a partir da rearticulação de elementos das três linguagens, transferindo métodos de um ambiente para outro segundo uma pesquisa rigorosa, sem se ater a uma maneira pré-fixada de perceber e experienciar qualquer uma das suas dominâncias. Isso quer dizer que a linguagem não se define de antemão, mas a partir da necessidade da própria cena e da expressão descoberta pelo(a) intérprete no momento da sua manifestação. Contudo, assim como a linguagem híbrida não se determina através de limites estéticos consagrados, existem tendências da expressividade em cada intérprete e, por vezes, intenções reafirmadas em reação às solicitações da direção. Ainda que todas as potencialidades de um sujeito estejam acionadas, em termos das estruturas mentais, os caminhos mais percorridos em sua experiência encarnada serão os mais facilmente disponíveis e, portanto, mais facilmente acionados. MerleauPonty, analisando a questão em termos fenomenológicos, descreve uma intencionalidade original num corpo que habita o espaço-tempo, a qual se manifesta na consciência não como uma síntese intelectual, mas enquanto um hábito adquirido: “[...] a consciência é não um ‘eu penso que’, mas um ‘eu posso’” (MERLEAU-PONTY, 2006: 196). O(a) intérprete em cena, atuante no tempo presente, manifestará seus saberes informados pela compreensão do corpo, sempre apto à constituição de novos saberes, desde que promovidos pela experiência em primeira pessoa. Ao final das temporadas que fizemos no primeiro semestre de 2014, entendi, de maneira mais livre, o sentido de “dançar”, “cantar” e “interpretar”. De fato, esses três verbos foram redimensionados pela ideia de “encarnar a experiência através do corpo” e “partilhar com o(a) espectador(a) a vivência”. Os territórios da dança, da música e do teatro foram deslocados, sem a necessidade de demarcá-los no que diz respeito a qualquer “oposição estética”. O espetáculo constituiu um fluxo orgânico entre os campos, dando emergência a uma mobilidade grande entre modos de presença do corpo, num registro mais sensível a afetações e contaminações – no qual se inclui, a partir da estreia, a corporeidade do(a) espectador(a). Foi quando anotei no meu caderno o próximo destino: “Conexão sutil – sem espetacularidade”. 223 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Referências bibliográficas FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007. FABIÃO, Eleonora. “Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea”, in: Revista Sala Preta, v.8. São Paulo: ECA-USP, nov. 2008. LIMA, Mariangela Alves de. “A crítica teatral”, in: Revista Camarim, n°. 34, Ano VIII, jan/fev/mar 2005, São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro. Disponível em: http://www.cooperativadeteatro.com.br/wp-content/themes/ mimbo2.1/camarins/Camarim34.pdf MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, 3ª ed. Campinas: Martins Fontes, 2006. Disponível em: http://migre.me/qE6jz SERVOS, Norbert e WEIGELT, Gert. Pina Bausch Wuppertal Dance Theater or the art of training a goldfish - excursions into dance. Colônia: Ballett-Bühnen-Verlag, 1984. Notas sobre o processo de criação de Xapiri Xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos, por Cibele Forjaz69. Resumo: Este texto – com alguns detalhes mais precisos – apresenta o nome de intérpretes e criadores, o percurso de pesquisa e de criação do espetáculo Xapiri xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos. Palavras-chave: pesquisa de linguagem, devoração como procedimento criativo, ancestralidade manifestada em relação, universo ameríndio. Abstract: This text - with some more precise details - displays the name of interpreters and creators , the route of research and creating the show Xapiri Xapiripë, there where we danced on mirrors. Keywords: language research, devouring as creative procedure, ancestry expressed about, Amerindian universe. Histórico (escrito em parceria com Lu Favoreto) O trabalho que deu origem ao espetáculo Xapiri Xapiripë tem sua gênese no encontro entre a pesquisa da Cia. Livre e da Companhia Oito Nova Dança. As duas companhias vinham trabalhando, cada qual em sua área de atuação específica, com uma pesquisa teórica e prática a partir da antropologia brasileira, mais especificamente, sobre o universo ameríndio. No caso da Companhia Oito Nova Dança, a aproximação entre a dança e a antropologia acontece desde sua fundação, em 2000, pelo modo de proceder no recolhimento da matéria criativa. Através da vivência do movimento e da experiência in loco, característica fundamental do trabalho de campo, provocamos a criação em dança. Em 2008 esse procedimento veio se estabelecer através de importante fundamentação teórica, no desenvolvimento do Projeto Intercâmbio Canibal. Nesse processo a antropofagia tomou à frente como matéria poética e de investigação temática, aproximando-nos de diferentes áreas de conhecimento como história, literatura e filosofia. Através de orientação filosófica desembocamos no conceito de perspectivismo ameríndio, desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro. Em 2010 estreamos o espetáculo Devoração como resultado desse processo de investigação. Foi o início de uma pesquisa pedagógica Diretora e iluminadora teatral. Bacharel em Artes Cênicas com Habilitação em Direção Teatral (ECA/USP 1985-1989). Doutorado em Artes Cênicas pelo PPGAC da Universidade de São Paulo. Docente e Pesquisadora do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP, desde 2006. Em 30 anos de teatro profissional, participou ativamente de três coletivos de teatro: A Barca de Dionísos (1985-1991); Teatro Oficina Uzyna Uzona (1992-2001) e Cia. Livre (onde é diretora artística, desde 1999). É parceira artística da Cia. Oito Nova Dança desde 2010. 69 225 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 e artística sobre a ancestralidade exposta no corpo. Após quatro anos, e com a parceria fundamental da Cia. Livre, com Cibele Forjaz e Lucia Romano, desenvolvemos o espetáculo Xapiri Xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos. No caso da Cia. Livre, esse encontro entre teatro e antropologia vem de oito anos de pesquisa sobre a mitologia e cosmologia ameríndias, com orientação do antropólogo Pedro Cesarino, que, por sua vez, gerou os espetáculos Vem-vai – O caminho dos mortos (dramaturgia de Newton Moreno, a partir de narrativas e descrições etnográficas dos povos Amuesha, Araweté, Yekuana, Marubo, Wayãpi, Tupinambá, Kalapalo, Kaxinawá e Acádios); Raptada Pelo Raio e Cia Livre Canta Kaná Kawã (ambas com dramaturgia de Pedro Cesarino, a partir do mito Kaná Kawã, do povo Marubo). Então, não por acaso, nos encontramos ao vivo em uma parceria entre companhias: Bruta Flor (2009). A partir de então, compartilhamos a criação de vários trabalhos: O idiota – Uma novela teatral (2010), Ancestralidade no corpo (2011), A travessia da Calunga Grande (2012) e Madame B (2013). Em Xapiri Xapiripê, unimos nossas pesquisas de fundo em uma parceria radical, onde nos propusemos a ir mais fundo na tentativa de assumir o ponto de vista do outro: (i) no encontro entre linguagens, (ii) no nosso olhar sobre a cultura de oito povos e em nossa capacidade de, através da assunção de outros pontos de vista, devir-ser-outro. Sobre a construção dramatúrgica de Xapiri Xapirepê A direção cênica de um espetáculo que se propõe a incorporar o teatro, a música e o canto à dança pressupõe, antes de tudo, uma tradução entre linguagens. De modo que, mais do que diretora de teatro, nesse processo de criação, minha função foi a de embaixadora de pontos de vista. Para nortear o trabalho comum, buscamos criar um roteiro dramatúrgico que servisse como fio condutor do espetáculo e, principalmente, do próprio processo de criação. Este roteiro tornar-seia, no correr do trabalho, um caminho comum para as várias direções (coreográfica, musical e cênica) criarem juntas, compondo uma pesquisa realmente coletiva. Embora pareça uma obviedade, não é tão simples encontrar esse “norte” em comum entre linguagens tão distintas. Na lida diária dos ensaios percebemos, logo no início do trabalho, que cada uma das linguagens possuía sua lógica particular; uma teoria específica, com conceitos próprios; um tempo de criação único e diferentes práticas cotidianas de trabalho. De modo que o fio em comum, ou seja, o nosso “roteiro dramatúrgico”, precisaria ser bem aberto, para poder, ao mesmo tempo, nortear essas diferentes formas de trabalho de criação e inspirar igualmente a todas as musas: Só quando se quebrar a obstinação das três modalidades artísticas [a arte da dança, a arte da música e a arte da poesia] em serem autônomas e, além disso, esta obstinação se transformar em amor de uma pelas outras; quando elas mesmas deixarem de ser isoladas, só então serão todas capazes de criar a obra de arte desejada: na verdade, neste sentido sua própria desaparição já é por si mesma, inteiramente, essa obra de arte, morte daquelas convertida de imediato em vida desta (WAGNER, 2000, p. 113)70. Mais do que uma história a contar - porque de fato não há neste espetáculo uma “história”, no sentido da fábula teatral - o roteiro dramatúrgico de Xapiri Xapiripë serviu como um fio invisível, composto por vários mitos e ritos, línguas e conceitos, contados pelos povos ameríndios e recontados por antropólogos, que foram usados como subtexto para os improvisos do movimento corporal dos dançarinos-intérpretes-criadores, durante quase dois anos. O roteiro tornou-se, portanto, a coluna vertebral do trabalho de criação, porque foi a origem e o eixo da relação entre as várias linguagens envolvidas na construção do espetáculo. A organização desse roteiro dramatúrgico, como subtexto da criação coreográfica, lançou mão de recursos do teatro colaborativo. Assim, buscamos estruturar o processo de construção de Xapiri Xapiripë, mesclando procedimentos de trabalho da dança contemporânea e do teatro, com o cuidado de respeitar as diferenças e especificidades dos processos de criação de cada linguagem. Por fim, enredando procedimentos diferentes de criação, acabamos inventando um processo novo para todos os envolvidos. 70 “Solo cuando se quiebre la obstinacion de las três modalidades artísticas en ser autônomas y dicha obstinacion se transforme ademas en amor hacia las otras; cuando ellas mismas dejen de ser aisladas, solo entonces seran todas capaces de crear la obra de arte lograda: en efecto, en este sentido su propia desaparicion ya es por si misma, enteramente, esa obra de arte, muerte de aquellas convertida de inmediato en vida de esta”. 227 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 O caminho Partimos de uma palestra ministrada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para a Companhia Oito Nova Dança, sobre a “Ancestralidade no Corpo”; da leitura conjunta do seu livro A inconstância da alma selvagem (2011); de aulas ministradas por Renato Sztutman sobre o universo ameríndio e o conceito de perspectivismo, da leitura conjunta de vasta bibliografia. Esse estudo inicial, no campo da antropologia, levou a alguns conceitos centrais para a pesquisa prática: o “devir-ser ancestral”, a figura do pajé como mediador entre diferentes perspectivas, os mitocantos (narrativas cantadas) e as danças rituais. Nesse caso específico, o ancestral é um vir-a-ser, uma transformação do corpo, de um em outro. Esse foi o princípio da pesquisa corporal. Tendo por ponto de partida um pensamento de Viveiros de Castro – “o esforço de construção do ancestral” -, cada dançarino criou uma “Deglutição Cênica” (uma pequena composição coreográfica pessoal, improvisada ou não), visando traduzir, por intermédio da dança, o estado de transformação do corpo do “devir ser ancestral”, que pode ocorrer na morte, no sonho, no mito ou ser representado pelo rito, nas danças e cantos coletivos. A partir das deglutições pessoais, cada dançarino desenvolveu algumas matrizes de movimento fundamentais do “seu ancestral”, que foram experimentadas e aprofundadas por quatro meses, nos ensaios de criação. Depois, para compartilhar as matrizes de movimentos pessoais, cada dançarino refez a sua “deglutição cênica” incorporando o grupo de dançarinos em sua cena. Com isso surgiram vários esboços de cenas coletivas. Nesse ponto do processo, achamos que – apesar da força do material levantado – corríamos o risco de nos distanciar muito da proposta original de “devoração” das referências ameríndias. Então, olhando de fora, pensei que seria bom unir a experiência individual do “ancestral de cada um” e das matrizes de movimento pessoais, com uma nova pesquisa, que voltasse nosso olhar para o outro, a partir do que já estava acontecendo... Depois de rever todas as deglutições, junto com Renato Sztutman, fizemos uma lista de povos ameríndios que, por alguma razão especial (cultura, danças, local em que vivem, desenhos gráficos, deuses ou espíritos em que acreditam, mitos de origem, ritos fúnebres etc.) tivessem alguma relação com as deglutições cênicas e/ou com o “ancestral” de cada intérprete-criador. Chegamos a oito povos, que seriam pesquisados por cada um dos intérpretes: - Guarany Mbya (Lu Favoreto) – em função dos ancestrais vegetais e da proximidade com o litoral. - Marubo (Lucia Romano) – em função da longa pesquisa já feita sobre os Marubos no processo de Vem-Vai e Raptada pelo raio, que influenciaram SUS “deglutição cênica”, sobre a polifonia da pessoa humana e o vir-a-ser-outro. - Kayapó Mebengokre (Camila Venturelli) – em função da arte plumária e o “ancestral pássaro” de sua cena. - Karajá (Thiago Antunes) – em função dos rios, que estavam na base de sua deglutição inicial e se caracterizam na origem de toda a cosmografia e cosmologia Karajá. - Kaxinawá (Fabrício Licursi) – em função de um ancestral do intérprete que chamávamos de ELA: uma mulher-animal. Renato lembrou de um mito kaxinawã, sobre uma mulher cobra que, por sua vez, denota a importância do feminino no xamanismo desse povo. - Waujá (Denise Barreto) – em função dos ritos das hiper-mulheres do Alto Xingu, que tem alguns ingredientes de jogo que combinavam com a deglutição da Dê e seus vários bichos. - Yanomami (Raoni Garcia) – em função das danças vigorosas do intérprete. No decorrer do processo, Raoni também pesquisou a língua e mitos dos Awá Guajá (povo que o seu irmão, também antropólogo, estuda). - Tukano (Greg Slivar) – em função de seus cantos. A partir daí, cada intérprete-criador investigou a cosmologia, a cosmografia, a língua, os costumes, a comida, as danças, os cantos e os mitos de cada um desses povos compartilhando suas pesquisas com o grupo. Aprendemos cantos e mitos. Greg Slivar, diretor musical do espetáculo, pesquisou cantos dos oito povos: conseguiu gravações das músicas e letras e aprendemos todos eles, para posteriormente serem devorados pela composição musical, como um todo. Ná Ozetti escutou as gravações e trabalhou a emissão vocal dos cantos. Porém, não pretendíamos “representar” literalmente mitos, ritos ou cantos, mas fomentar conexões livres (embora específicas) entre a cultura polifônica dos povos ameríndios estudados e a pesquisa de movimento já realizada até aquele momento do trabalho. A ideia era que essas referências fossem, aos poucos, sendo deglutidas de forma orgânica, como mais um impulso da pesquisa de movimento. O que de fato aconteceu. A pesquisa 229 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 específica sobre os oito povos, acabou também sendo um norte para a visualidade do espetáculo: as camarinhas dos intérpretes, a maquiagem nos corpos, os objetos usados. As “Deglutições Cênicas” foram todas refeitas, tendo como provocação o “ponto de vista” de cada povo pesquisado. Nesse momento do processo, depois de quatro camadas de “deglutições cênicas”, comentadas, retrabalhadas e desenvolvidas, do ponto de vista do movimento, tínhamos muito material levantado. Mas ainda faltava um roteiro dramatúrgico que ligasse todas elas, a partir de alguma lógica interna ao próprio trabalho. Em julho de 2013, fizemos uma imersão de dez dias na Barra do Una (litoral sul paulista), com o objetivo de criar um roteiro que unisse as muitas danças criadas até então. Primeiro listamos e rememoramos todo o material coreográfico levantado. Depois, chegamos juntos a um princípio fundamental de construção dramatúrgica, qual seja, a tradução entre mundos e pontos de vista e a transformação corporal entre o humano e diferentes seres ancestrais (animais ou vegetais), potencializados por alguns “detonadores”: (1) a fumaça; (2) a comida; (3) a bebida; (4) o canto; (5) a dança. A partir desse princípio polifônico, elaboramos um pré-roteiro, dividindo todos os esboços de “cenas” que tínhamos, entre os cinco detonadores (fumaça, comida e bebida, canto e dança). Fizemos também um trabalho de campo junto aos Guarany (aldeia Silveirinha, de Boracéia, no litoral norte paulista), que foi essencial para conectar-nos à importância sociocultural desse contato com outras culturas formadoras da nossa sociedade, plural e polifônica. Também improvisamos sobre um mito estudado por Renato Sztutman, que é muito comum nos povos do Alto Rio Negro, chamado de mito da cobra-canoa. Este mito trata da origem dos povos e transformou-se em um prólogo, de onde surgem e são apresentados cada um dos povos. Sobre tal pré-roteiro, improvisamos juntos, em várias camadas, até obter um roteiro final com um prólogo e três cenas, desenvolvido e aprofundado coreograficamente em sala de ensaio, nos meses de agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2013. Abaixo segue um resumo desse roteiro. Roteiro (observação): uma tradução para a língua escrita de uma outra escrita no corpo, indizível em palavras. Portanto, nada escrito nesse roteiro é literal, explicativo ou narrativo. O roteiro é, na verdade, mais uma sequência dos subtextos da pesquisa de movimento do que uma história sendo contada. Prólogo: a criação dos rios, da floresta e dos povos. Recriação coreográfica sobre o mito da Viagem da Cobra-canoa71 dos povos ameríndios da região do Rio Negro. Barco dos mortos/canoa de leite fermentado. Devir-ser peixe. A corredeira e a formação dos rios. A cobra sucuri. A diferenciação dos povos (objetos de poder, línguas e apresentação inicial das oito matrizes de movimento). Primeira cena: A Fumaça. Todos se olham e identificam as diferenças entre os povos recém-criados. Fumam de formas distintas e contam histórias em diferentes línguas. O pajé é como um rádio. O pajé e seu duplo: um entra em transe e se divide em dois, aquele que narra e aquele que “vive” a história narrada72. Solo de desfazer o rosto. Coro da desfiguração. Mitocanto Marubo e a língua-fumaça. Devir-ser pássaro: solo, duo e quarteto dos xamãs-pássaros73. Coro do “Cooper-Guarany”. Segunda cena: A comida/bebida. Coro do canto: a diferenciação entre presas e caçadores (som-onça e som-pássaro). Olhar subjetivo e olhar objetivo. Solo da raiva-animal (baseado nos espíritos Aony dos Carajás). Duelo da caça. Coro das maritacas gritantes (fui fui fui). Comer manga e o mito-canto Guarany: “tudo é muito perigoso”. Cena do devir-ser galinha: a transformação da mulher em galinha. Dança do devir-ser onça. Dueto das presas. Dueto da caça (tocaia/bote/estraçalhamento). Despelamento e o solo do avesso. Coro do avesso. Coro dos mortos. Floresta de braços. Terceira cena: canto/dança. A rede de línguas e cantos. Mito-canto Kashinawá. Devir-ser anta sob a rede. A transformação da anta em mulher. O solo de “Ela” sobre a rede. Coro do pão. Canto Kashinawá. Coro da travessia dos povos na Marginal Tietê. Coro dos xamâs-cavalos. Coro da polifonia. Fim sem fim. Em janeiro de 2014 entramos no SESC Pinheiros, onde finalizamos o trabalho. Conseguimos autorização para montar nosso palco no porão, De acordo com Renato Sztutman (texto inédito apresentado no Seminário “As cidades e suas margens” - Itaú Cultural, setembro de 2009), trata-se do mito da viagem da Cobracanoa, esta que parte de um espaço primordial – o Lago de Leite –, subindo por um rio subterrâneo até chegar a uma região de cabeceiras. Este mito trata da origem do cosmos e das diferenças entre humanos e animais, entre índios e brancos e entre os diferentes povos rio-negrinos. A Cobra-canoa, figura do contínuo, veículo de um impressionante cromatismo, contém em seu interior todas as possibilidades de realização dos seres e das coisas. Através dela todas as diferenças vão se desdobrando até chegar ao mundo no estado atual. 71 Todas as narrativas são em lingua original ou em recriações vocais-musicais dessas línguas. 72 73 Os pássaros são importantes psicopompos entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. 231 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 onde construímos as camarinhas dos atores, trabalho realizado pelo cenógrafo e cenotécnico Wanderlei Wagner da Silva; montamos uma oficina de costura e adereços dirigida por Marina Reis, e Lu Favoreto fez o trabalho final de limpeza das coreografias e de conexão das cenas improvisadas. Estreamos no dia 28 de janeiro, no Teatro Paulo Autran. Como sinal de reciprocidade e respeito admirado, nosso maior desejo é apresentar Xapiri Xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos em pelo menos algumas aldeias dos oito povos, cujas culturas pesquisamos: Guarany Mbya, Marubo, Kayapó Mebengokre, Karajá, Kaxinawá, Wauja, Yanomami e Tukano. Referências bibliográficas CASTRO, Eduardo Viveiros de. A incostância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. SZTUTMAN, Renato. Mitologia fluvial, civilização submersa (Texto inédito apresentado no Seminário “As cidades e suas margens” - Itaú Cultural, setembro de 2009). WAGNER, Richard. La obra de arte del futuro. Espanha: Publicacions de la Universitad de Valência, 2000. Sobre a perspectiva do movimento em Xapiri – devir ser... corpo de passagem, por Lu Favoreto74 Resumo: Este texto expõe o olhar da direção de movimento sobre o processo de criação do espetáculo Xapiri xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos. O procedimento “antropofágico” no modo de aproximação e contaminação da Companhia Oito Nova Dança e da Companhia Livre, possibilitou reflexões específicas e peculiares advindas não só da abertura para o diferente, no “devorar” e “ser devorado”, como também do acesso à matéria poética eleita como campo de investigação criativo: o universo ameríndio brasileiro. Surge então um espetáculo que ousa integrar linguagens artísticas e áreas de conhecimento distintas. Busca a potência de cada uma delas e dessa integração, na semelhança e na diferença, pela perspectiva do movimento. Palavras-chave: pesquisa de linguagem, perspectiva do movimento, devoração como procedimento criativo, ancestralidade exposta no corpo, universo ameríndio. Abstract: This article deals with the movement direction of look at the process of creating the show Xapiri Xapiripë, there where we danced on mirrors. The procedure “cannibalistic” in the approach and contamination Companhia Oito Nova Dança e da Companhia Livre, enabled specific and peculiar reflections arising not only from the opening to the other, the “devour” and “being eaten”, as well as access to poetic material chosen as the creative research field: the Brazilian Amerindian universe. Then comes a show that dares to integrate artistic languages and different knowledge areas. Search the power of each one of them and this integration, the similarity and difference, the movement’s perspective. Keywords: language research, the movement perspective, devouring as creative procedure, exposed ancestry in the body, Amerindian universe. Lu Favoreto investiga e prioriza em sua criação a relação entre estrutura corporal, movimento vivenciado e a comunicação na cena. Fundamenta seu trabalho didático e artístico em proposições de Klauss Vianna - Brasil) e M. M. Béziers e S. Piret - França. Foi uma das fundadoras do Estudio Nova Dança (São Paulo) e desde 2000 é diretora da Cia. Oito Nova Dança. Ministra cursos regulares de técnica, pesquisa e criação em Dança no Estúdio Oito Nova Dança, na qual trabalha como diretora, coreógrafa e intérprete-criadora. 74 233 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Foto de Cacá Diniz. Cia. Oito Nova Dança. Lu Favoreto em cena de Xapiri xapiripë... O espetáculo Xapiri xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos é um mergulho pontiagudo no interesse da Companhia Oito Nova Dança pela ancestralidade exposta no corpo e pela antropofagia como referência no procedimento de pesquisa na criação de um espetáculo. Na construção de Xapiri... radicalizamos a pesquisa de linguagem no que concerne à dança contemporânea, com interesse pela fundamentação antropológica, característica da companhia desde sua fundação, em 2000. Conduzidos pela antropologia, processamos criativamente uma área de conhecimento tão inacessível como o universo ameríndio brasileiro através de textos, materiais áudio visuais e fotográficos, trabalho de campo e reflexões. Fomos nos aproximando e “devorando” as questões que regem e movem o universo indígena: a perspectiva de corpo e de humanidade, o estado corporal de passagem e de trânsito entre mundos, os mitos, as línguas, as músicas, os cantos e danças. A indiferenciação entre o corpo que dança, fala, toca, canta, cura, caça, cuida... foi uma pista importante para a construção do trabalho técnico corporal que se fundamenta num corpo integrado que busca vivenciar no mesmo impulso psicomotor variadas formas de expressão. A coluna de ar do sistema respiratório logo à frente da coluna de osso do sistema esquelético, como impulso comum ao gesto vocal e motor. A expansão e o recolhimento do movimento respiratório, tão essencial à vida, reverberando em cada canto, ângulo, dobra e espaço de nosso corpo. A condução do trabalho corporal e coreográfico em Xapiri prioriza a perspectiva do movimento. Busca expor sua potência de transformação e passagem. O movimento aqui é encarado de forma abrangente. Tudo o que pode significar mover-se pode ser visto como dança. Pensar, encontrar, procurar, provocar, cavocar, duvidar, deslocar, cantar, falar, pegar, dançar… tudo isso é mover-se. A partir da vivência desse repertório é que trabalhamos em sua lapidação pela perspectiva do tempo. Início, fim, duração, (des)aceleração, pontuação, pausa, impulso comum, velocidade, são questões que nos conduziram nessa etapa. Para a construção do trabalho coreográfico nos deixamos contaminar pelo pensamento perspectivista e pela imagística mitológica dos ameríndios. Por esse viés, a relação entre pessoa, duplo e coletivo se potencializou e nos sugeriu uma organização coreográfica específica. As ancestralidades pessoais evocadas no desenvolvimento de matrizes estruturais e poéticas individuais no início do processo criativo foram duplicadas através das relações em duos, e coletivizadas através dos coros coreográficos e musicais. Essa relação entre solo, duos e coros nos norteou com potenciais específicos, como forma de desenvolvimento na construção coreográfica e como aproximação essencial entre a linguagem da dança contemporânea e as formas de organização desse universo indígena, que nos é tão inacessível. A complexidade exposta em cada fenda encontrada na tentativa de acessar o universo ameríndio me parece infinita. Deixo-me conduzir pela investigação do movimento e reconheço nele um possível condutor à aproximação desta perspectiva de mundo, desta humanidade de fundo. O desfazer de nossas faces como ação de desterritorialização e reconfiguração de algo que está submerso na identidade de cada um de nós, brasileiros. Xapiri é uma das possíveis “devorações” criativas deste mundo tão inspirador e desconhecido. Borramos a fronteira entre dança, teatro e música para expor um olhar contemporâneo sobre esses povos. Através do diálogo entre áreas de conhecimento distintas, e tendo a inspiração e o espírito colaborativo de todos os envolvidos no processo criativo, fomos “esculpindo” o tempo e o espaço de Xapiri Xapirepë... como se estivéssemos revelando um estado primordial, que sempre esteve aqui, entre nós, na sua invisibilidade. No trânsito constante entre presente/futuro/passado, ser/devir/ter sido, sempre esteve aqui conosco e estará... aqui e lá onde dançava sobre espelhos! 235 Terceiro dia Mediador-Memória: um registro na linguagem escrita sobre relatos de experiências em dramaturgia de cena feitos oralmente, por Fabiano Lodi75 Resumo: Neste texto encontram-se reunidos apontamentos sobre dramaturgia de cena, a partir de relatos de experiências feitos oralmente por quatro artistas com atuação destacada em grupos teatrais ou núcleos de criação colaborativa sediados no Estado de São Paulo. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Palavras-Chave: teatro de grupo; processo colaborativo; práticas da cena contemporânea. Abstract: In this paper are shown notes on drama scene, from experience reports made orally by four artists with outstanding work in theater groups or collaborative creation centers based in São Paulo. Keywords: theater group; collaborative process; practices of the contemporary scene. Este texto reúne apontamentos acerca da dramaturgia de cena, levantados pelos/pelas artistas reunidos/as na mesa de debates intitulada: Expedientes e procedimentos da criação da dramaturgia de cena: relatos de experiências. A atividade fez parte da VI Semana de Estudos Teatrais, mediante parceria firmada entre o Instituto de Artes da UNESP e o SESC Consolação. A programação do evento ocupou os espaços das duas instituições, sendo que a referida mesa aconteceu na UNESP em 07 de maio de 2014 e foi composta pelos/as seguintes artistas: Renata Melo (atriz e diretora), Lee Taylor (ator e coordenador do NAC – Núcleo de Artes Cênicas), Pedro Pires (Companhia do Feijão, de São Paulo) e Tiago Munhoz (Grupo Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente). O debate foi estruturado de modo a que cada artista tivesse cerca de 20 minutos para expor suas considerações. Antes disso, propus que fossem feitos apontamentos iniciais a partir da pergunta “O que é dramaturgia”? O objetivo foi trazer um panorama geral sobre dramaturgia e destacar aspectos caros às práticas dos/das artistas ali presentes. Minha participação aconteceu como mediador. Para elaborar este texto, utilizei as anotações que fiz nos momentos em que os/as artistas Fabiano Lodi é diretor teatral. Graduado em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina, suas atividades artísticas contemplam ainda realizações como ator, produtor, professor e orientador de teatro. Mestre em Teatro no Programa de Pós-Graduação em Artes da UNESP. 75 arguiam sobre suas respectivas experiências em relação ao tema proposto. Os registros contemplam, ainda, considerações proferidas pelo público presente e entre os/as integrantes da mesa em torno de alguma questão lançada. Saliento minha singela experiência em dramaturgia, o que não diminui o interesse que manifesto em descobrir suas potencialidades, sobretudo quando relacionadas a outras esferas das artes da cena. Nesse sentido, não sou um “especialista” na área. Ao longo da mediação, estive atento ao discurso deles/as, o que os constituía, o que era reiterado ou rapidamente comentado. Eis a fonte geradora deste texto. Conduzi a mediação desta maneira tendo em vista a informação referente à identidade artística que cada um/a dos/as artistas que compuseram a mesa fizeram de si mesmos/as. Nenhum deles se autodeclarou “dramaturgo”, dramaturg, “autor”, “escritor” ou quaisquer nomes familiares a estes e pelos quais eventualmente se recorre para designar o/a artista cujo terreno principal de atuação é a dramaturgia. O que une estes/as artistas sob um interesse comum é a dramaturgia contaminada por outras práticas da cena contemporânea. Assim posto, é preciso dizer que as contribuições deixadas por eles/as diz respeito: menos ao aprofundamento teórico-conceitual da dramaturgia; mais à experiência pessoal por eles/as vivida no âmbito do teatro de grupo e/ou de práticas cênicas colaborativas realizadas no Estado de São Paulo. Dramaturgia é tecimento As primeiras reflexões a partir da questão “O que é dramaturgia?” foram feitas por Lee Taylor, que destacou o aspecto individual da dramaturgia, sabido que tradicionalmente costuma-se pensar dramaturgia a partir de um/a autor/a de texto. E propôs uma compreensão ligada à dramaturgia como “aquilo que comunica”. Seguiu a reflexão partindo deste entendimento dizendo que “pode ser aquilo que a cena propõe enquanto comunicação”. Taylor ressaltou seu interesse por práticas teatrais colaborativas, sendo a dramaturgia um meio pelo qual busca promover uma revisão ligada à atribuição de funções no teatro. O alvo de Taylor situa-se no que é habitualmente atribuído ao ator/à atriz e ao diretor/à diretora teatral. Mencionou que questões sociais são conteúdos proeminentes em suas investigações. Com isso, almeja uma cena teatral cujo princípio seja “me ver no mundo e não como eu vejo o mundo”. 237 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Na sequência, Pedro Pires iniciou sua fala dizendo “tudo é dramaturgia”. E completou: “É a elaboração de um algo a dizer, daquilo de que se tem necessidade de falar a respeito, e para quem”. Rapidamente, complementou o raciocínio: “Dramaturgia é tudo o que comunica. Agora, se vai comunicar, é outra coisa!”. Pires enfatizou o caráter processual e o aspecto coletivo dos modos de criação da dramaturgia na cena. Fundamentou suas proposições evitando sentenças completamente fechadas. Sempre que alcançava uma definição, trazia um ponto de vista distinto ao formulado, como quando se perguntou: “Como ser objetivo no ‘algo a ser dito’? E de que maneira fazer com que haja pulsão no momento do dizer?”. As primeiras reflexões de Tiago Munhoz anunciaram claramente uma perspectiva oposta à relação entre dramaturgia e texto. Destacou o trabalho do Grupo Rosa dos Ventos, do qual é integrante e fundador desde 1999, ressaltando o teatro de rua e a intervenção no tecido urbano como características elementares dos processos criativos relacionados à dramaturgia. Para Munhoz “a roda é a dramaturgia do teatro de rua” e é por meio dela que se promove o que chamou de “reinvenção da ambientação”. Ou, a constituição de uma espacialidade correspondente ao tradicional posicionamento do público de forma circular. Esta formação – a roda – delimita o espaço de atuação dos/as artistas bem como o espaço em que o público se organiza para apreciar o espetáculo. É nessa configuração de espaço cênico, e nem sempre o obedecendo fielmente, que se dá realização do ato teatral, imbricando o espaço-tempo da obra apresentada ao espaço-tempo da vida cotidiana da rua. A primeira rodada de reflexões foi finalizada com Renata Melo, artista envolvida no que se convencionou chamar de dramaturgia do corpo: “Algo próprio, único daquele artista. É a maneira do artista contar. A fonte é o corpo”. O entendimento conferido por Melo a uma dramaturgia do corpo se alinha e se complementa ao que Greiner escreveu: [...] para se pensar na dramaturgia do corpo, há de se perceber um corpo a partir de suas mudanças de estado, nas contaminações incessantes entre o dentro e o fora (o corpo e o mundo), o real e o imaginado, o que se dá naquele momento e em estados anteriores (sempre imediatamente transformados), assim como durante as predições, o fluxo inestancável de imagens, oscilações e recategorizações (2005, p. 81). A via pela qual Melo conduziu sua fala esteve vinculada ao despertar das intuições do/a artista no trato com o material criativo. “Quanto de sua vida é elaborado previamente ou é ‘destino’? Talvez possamos pensar que a obra já esteja dentro de você, escondida em algum lugar”. Segundo Melo, são as distintas possibilidades de se investigar a fisicalidade do/a artista o que pode instaurar processos orientados pela ideia de uma dramaturgia do corpo. Pedro Pires – “Nenhum texto diz exatamente o que queremos dizer”. A segunda etapa da mesa de debates foi iniciada com a fala de Pedro Pires, que começou a levantar aspectos fundadores da Companhia do Feijão. A maior parte dos integrantes do grupo permanece trabalhando junta há 10 anos – a companhia surgiu em 1998. Com esse dado, nos revelou seu engajamento por uma prática teatral colaborativa. Inquieto diante do que poderia ser uma conclusão razoável para formar a identidade da Companhia do Feijão nessa fala, Pires ressaltou prontamente que “cada trajetória é única. Então, em que ponto um de nós pode se tornar referência para o outro? Sabemos, por exemplo, que a base de tudo é o trabalho de ator. Isso alimenta a cena?”. Foi partindo deste apontamento que Pires iniciou a explanação sobre dramaturgia de cena, retomando a relação entre dramaturgia e texto, como forma de expandir os domínios de interesse da Companhia do Feijão. Constataram que “nenhum texto diz exatamente o que queremos dizer”. Diante disso, foram em busca de fontes que os ajudassem a dizer o que desejassem dizer, e que complementassem o que fosse específico da técnica teatral de ator/atriz. Encontraram respaldo em autores da literatura brasileira. E, desde então, esta vem sendo uma área de interesse na qual a Companhia do Feijão se empenha em gerar materiais da dramaturgia de cena. A combinação de materiais da literatura brasileira e técnicas de ator/atriz culminou em uma predileção por técnicas narrativas, ou especificamente, pelo trabalho de ator-narrador. Exemplificou como se dá essa pesquisa ao compartilhar procedimentos dos quais a Companhia do Feijão lançou mão no processo criativo de Nonada (2006). O objetivo era possibilitar que os/as integrantes do grupo vivessem uma realidade específica, durante um período de pesquisa, e que isso fomentasse a criação cênica a partir dos princípios da narração. Esse processo envolvia, segundo Pires, um “distanciamento sem preconceito”, encarado como 239 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 condição para que os/as artistas do grupo conhecessem uma realidade in loco antes de falar dela. A literatura esteve presente através de personagens e histórias de Machado de Assis, Clarice Lispector e Mário de Andrade. Questionado pela plateia sobre a organização das frentes de trabalho na Companhia do Feijão, Pires respondeu que “sempre há alguém de fora, que fica responsável pela visão que complementa a criação de quem está dentro. É essa pessoa quem dá o retorno. Quem está dentro se contamina. A pessoa de fora ajuda a fechar algo em experimentação”. Lee Taylor – “Eu sou ator”. A abordagem de Lee Taylor foi fundamentada no processo criativo de Lilith S.A.. Destaque para a clareza com a qual realizou sua fala, especificando minuciosamente cada etapa de sua experiência. Taylor deu ênfase ao que chamou de “perigo”, posto que estava engajado em “quebrar funções teatrais estanques”. Assim como Pires, Taylor consolidou o trabalho de ator como fundamental ao processo criativo em teatro. “Eu sou ator”, disse entre silêncios. E completou: “nos interessa ver o ator como artista, que acaba se confundindo com outras potencialidades”. Houve um processo pedagógico anterior à fase de produção da encenação de Lilith S.A.. O objetivo dessa etapa foi instrumentalizar tecnicamente os/as artistas participantes, de modo que dispusessem de um vocabulário comum capaz, na fala de Lee, de “estetizar o interesse por uma inquietação”, conferindo-lhe “um tratamento poético-dramatúrgico”. Invariavelmente, a dramaturgia convocou uma intensa produção de material – não necessariamente textual, mas também – aliada a um recorte temático. Em relação à produção de material, a fala de Taylor esteve próxima do que Sarrazac designa como sendo “[...] a materialidade significante dos diferentes elementos cênicos da representação” (SARRAZAC, 2012, p. 103). O recorte temático era o mito da deusa Lilith e o material surgiu por meio de improvisações conduzidas por Taylor – ocasião em que assumiu a função de dramaturg. A quantidade e a diversidade de materiais de cena produzidos resultaram no que Taylor chamou de “dramaturgia Frankstein”. Instaurou-se aí uma dificuldade em lidar com o repertório produzido. Para ajudá-lo a tomar decisões sobre aquele material, Taylor convidou uma artista (Michelle Ferreira) para colaborar como “dramaturg”. A partir de então, quando o material começou a ser transformado em espetáculo teatral, as funções estanques reencontraram alguns limites dados tradicionalmente, ou ao menos, o trânsito entre potencialidades foi reduzido. O público que acompanhava a mesa de debates perguntou sobre a recepção dos espectadores à obra criada. Taylor mencionou novamente o “perigo”, ao responder que Lilith S.A. provoca reações diferentes, porque os gostos e interesses das pessoas são diferentes. E que isso enaltece o desafio de não comprometer um de seus objetivos que é “atingir um grau mínimo de comunicabilidade”. Retomou o objetivo de “buscar por precisão no tratamento dado à execução das técnicas teatrais” como o principal legado que a ruptura dos limites de funções artísticas vem trazendo para a sua experiência teatral. Renata Melo – “O texto é a musica que vira movimento”. Renata Melo é dentista. O exercício profissional fora do âmbito das artes lhe confere liberdade artística e certo nível de independência mediante as exigências de adequação a um mercado, ou a tendências modistas ditadas ocasionalmente. No início da fala, Melo também revelou sua dedicação aos esportes, o que a levou a estudar Educação Física. A dança surgiu tardiamente em sua vida, se comparada à carreira dos/das artistas em geral, que são inseridos no universo dessa arte logo na infância. À medida que se candidatava aos testes para elencos disponíveis, foi se aproximando de artistas e cultivando um interesse pela questão técnica da dança. Na década de 1980, integrou a Cia. Marzipã. O aprofundamento da investigação técnica que caracterizava o grupo marcou a maneira como Melo vem lidando com a dança desde então. Ao longo dos anos em que esteve envolvida com a Cia. Marzipã, Melo alimentou um desejo de desenvolver uma linguagem própria ligada à dança. Isso veio a ser concretizado a partir do momento em que cada um dos/das integrantes da companhia começou a trilhar de forma independente suas carreiras. Melo apontou duas das principais referências ao longo de sua trajetória artística, as quais relaciona com dramaturgia na dança. Uma delas foram algumas “dramaturgias teatrais”, em especial a estruturação de narrativas. O repertório teatral ajudava a alcançar diferentes qualidades corporais e romper vigorosamente certos padrões de estruturas compositivas. Outra referência é a coreógrafa estadunidense Katie Duck, cujo pensamento sobre a prática da dança está alicerçado sob princípios geradores de movimento físico, dentre os quais a manifestação do instinto, a ação movida por um impulso e o despertar da intuição – sendo este último o mais importante elemento da criatividade. 241 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Melo se mostrou claramente orientada pelas ideias de Duck e, juntamente com referências da dramaturgia teatral, especificou sua abordagem para uma dramaturgia do corpo relatando o processo de montagem de Lampião e Maria Bonita (1994). “Se consegui sistematizar uma prática de aprendizado e criação foi ao criar este espetáculo”, disse Melo, que experimentou procedimentos similares em Domésticas (1998). Escolhido um tema para investigação, e procurando respostas às suas inquietações “dando ouvidos” à intuição, Melo fez uma viagem de pesquisa para gerar material artístico que pudesse ser aproveitado cenicamente. O resultado alcançado e as medidas tomadas se assemelham às de Taylor: decidiu chamar um dramaturgo para assumir a responsabilidade pelas decisões sobre o material produzido. “Mas, será que um autor vai dar conta de transmitir uma experiência que é minha”? Incerta sobre a contribuição de um dramaturgo, Melo resolveu escrever um texto. Tempos depois de iniciada a escrita, convidou um dramaturgo teatral (José Rubens Siqueira) para ajudá-la, não sem antes preparar um tratamento textual à sua maneira. Pois para Melo, escrever era uma etapa necessária para fazer emergir uma dramaturgia do corpo. “O texto é a música que vira movimento”. Esse entendimento, que singulariza seu trabalho, reforça o interesse de Melo em se valer de expedientes desvinculados da fisicalidade cênica, os solicitando oportunamente. Melo criou um hiato entre a pesquisa de campo e a experiência de encenação do material textual, respeitando o tempo de estabelecer uma conversa com ela mesma. Deu pistas de que em seu processo a escrita pode ser a música da intuição. Tiago Munhoz – “Teatro de rua requer uma atitude de imposição ao cotidiano”. A fala de Tiago Munhoz foi a de menor duração e a que mais provocou risos no público presente. Isso se deu pelas referências da comicidade que marca o teatro que se empenha em fazer, as quais se manifestaram genuinamente na qualidade de suas expressões: sentenças curtas ditas sem pressa, variação vocal combinada a trejeitos faciais, olhos que fitavam assertivamente os olhos daqueles/as a quem endereçava o que dizia. O Grupo de Circo e Teatro de Rua Rosa dos Ventos foi fundado por um grupo de estudantes universitários da UNESP de Presidente Prudente. Nenhum deles se considerava artista, mas tinham vontade de fazer teatro. Se reuniram e decidiram, como disse Munhoz, “fazer um grupo de teatro, mesmo sem saber claramente como era fazer teatro, o que era necessário, essas coisas”. Começaram a experimentar algumas técnicas de palhaço, visto que era uma técnica minimamente dominada por um dos integrantes do grupo na época. Os procedimentos de experimentação funcionavam da seguinte maneira: todos/as se paramentavam e iam para a rua estabelecer relações com as pessoas. Intervir no cotidiano do espaço urbano passou a ser um treinamento para o grupo. Isso aprimorava as reações imediatas diante de situações inesperadas. Essa era a busca. Munhoz ressaltou que no início dos trabalhos do grupo não havia nenhuma relação ou interesse por textos escritos. Tudo era baseado no que poderia surgir da interferência do palhaço no cotidiano da rua. Mesmo que não tenha sido uma intenção clara do grupo, Munhoz destacou o quanto essa experiência foi libertadora ao contribuir para desvincular o primado do texto à dramaturgia. A vivência relatada acima determinou os interesses do grupo em produzir peças teatrais que pudessem ser apresentadas na rua, com temáticas ligadas à cultura popular. Impor o palhaço no cotidiano das ruas efetivou uma compreensão de que a roda é a dramaturgia no trabalho do Grupo Rosa dos Ventos. A investigação sobre como formar uma roda parece não se esgotar. Essa questão permanece viva e em constante processo de descoberta em todas as produções realizadas pelo grupo. Estratégias aprendidas ao longo dos anos de existência do grupo não parecem ser suficientes. O acúmulo de soluções potenciais para formar a roda do teatro de rua os interessa menos do que a integridade de estar no momento presente, sem saber o que vai acontecer. E jogar com isso. Considerações Finais Busquei traduzir para a linguagem escrita minha experiência como mediador da mesa de debates. Espero contribuir para aproximá-los/as das reflexões levantadas oralmente e em equivalente nível de qualidade os quais os/as integrantes da mesa lançaram mão em seus relatos. Que esse material seja um instrumento para acurar experiências em dramaturgia de cena, desencadear investidas nesse segmento e preservar a memória daquele encontro. O formato da atividade aproximou artistas e público, favorecendo a pluralidade de pontos de vista sobre dramaturgia de cena de acordo 243 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 com interesses, vontades e inquietações de ambos os lados. O encontro posicionou com relevância o debate sobre práticas teatrais colaborativas e/ ou feitas em grupo no Estado de São Paulo. Registro aqui o agradecimento a toda equipe responsável pela realização da VI Semana de Estudos Teatrais pelo convite que me foi feito. Agradeço também a Pedro Pires, Lee Taylor, Renata Melo e Tiago Munhoz pela oportunidade de estar entre vocês e, agora, escrever sobre suas trajetórias, particularidades, descobertas, erros e tudo o que suas investidas em arte foram capazes de provocar. Referências bibliográficas: GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Dramaturgia para uma poética do ator, por Lee Taylor76 Resumo: O presente artigo apresenta os procedimentos envolvidos na elaboração de uma dramaturgia que estimule o aprimoramento do aprendizado dos participantes do processo artístico-pedagógico proposto pelo Núcleo de Artes Cênicas (NAC) no curso de extensão, em nível de aperfeiçoamento, oferecido no Instituto de Artes da Unesp. A práxis tem como resultado monólogos documentários que se configuram, ao longo de suas etapas de construção, como um exercício sensível de alteridade. Palavras-chave: Núcleo de Artes Cênicas (NAC), atuação, dramaturgia, processo artístico-pedagógico. Abstract: his article presents the procedures involving the developing of a dramaturgy that stimulates the improving of learning from the participants of the artistic and pedagogical process proposed by the Center of Performing Arts (NAC) inside the extension course offered by the Arts Institute of UNESP. The practice results in documentaries monologues, which configure, over their construction stages, as a sensitive otherness exercise. Keywords: Center of Performing Arts (NAC), acting, dramaturgy, artistic and pedagogical process. 245 Foto de Bob Sousa. NAC. Frann Ferraretto em Lilith S.A. Ator e mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atualmente é coordenador do Núcleo de Artes Cênicas (NAC), curso de extensão, em nível de aperfeiçoamento, no Instituto de Artes da UNESP e professor da Graduação no Instituto de Artes da Unesp. Integrou de 2004 a 2013 o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) coordenado por Antunes Filho. 76 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 No curso de extensão “Poética do Ator”77 realizado pelo Núcleo de Artes Cênicas (NAC), no Instituto de Artes da UNESP, aplica-se um procedimento de elaboração dramatúrgica que visa colaborar com a autonomia de criação dos atores e atrizes participantes do processo de pesquisa e formação. O curso de atuação tem duração total de oito meses e é dividido em dois módulos, formação e montagem cênica, nos quais são realizadas atividades regulares de quatro horas por dia, quatro dias por semana. A prática artístico-pedagógica proposta pelo NAC tem início a partir da investigação da visão de mundo dos indivíduos envolvidos no aprendizado e como uma das últimas etapas da experiência proposta ao longo dos quatro primeiros meses do curso de atuação, cada integrante deve compor a dramaturgia de um monólogo. A chamada visão de mundo pode ser entendida aqui, como uma percepção particular dos acontecimentos e do contexto social no qual o sujeito está inserido. No caso dos atores e atrizes, surge aliada a um exercício hermenêutico de produção de sentidos, tecida por meio do simbólico, que deve, necessariamente, problematizar o senso comum e revelar uma perspectiva sensível e singular, que passa a ser determinante para a poética do artista. Assim, dentro dessa proposta, não há possibilidade de pesquisa de uma poética do ator sem antes se fazer uma análise aprofundada e consciente da própria visão de mundo, pois a mesma, deliberadamente ou não, é decisiva nas escolhas artísticas. Nesse sentido, a singularidade da visão de mundo do artista determinará também a singularidade de sua arte. O percurso de auto(re)conhecimento dessa visão de mundo é estimulado e provocado de diferentes formas: por meio de conversas diárias, filmes e documentários que ampliam o repertório conceitual e artístico, reflexões semanais escritas e comentadas individualmente por todos os integrantes a partir das práticas teatrais e das atividades realizadas durante todo o curso, bem como referências teóricas (artes, filosofia, psicologia, mitologia, antropologia, entre outras) que devem ser lidas e discutidas coletivamente a cada semana. Uma das fases mais importantes do curso ocorre com a exposição, discussão e apreciação da visão de mundo de todos os envolvidos no aprendizado. Essa etapa se efetiva com um debate em dupla, no qual se pode apresentar individualmente sua visão de mundo para o coletivo por duas perspectivas (contra e a favor) a respeito de determinado assunto ou situação, em uma análise abrangente que não se restringe à opinião e ao 77 “Poética do Ator” contempla atores e atrizes. gosto pessoal. Essa abordagem é feita a partir da eleição, por parte dos artistas pedagogos do NAC, de uma questão humana em comum retirada do contexto social (geralmente de uma notícia de jornal), que é compartilhada para ser investigada por todos na semana anterior ao exercício. O debate, entre diferentes duplas com posicionamentos distintos, acontece em quatro momentos: exposição inicial, preparada previamente com a análise de cada um sobre o fato escolhido, a partir de uma das perspectivas (contrária ou favorável); réplica ao pensamento articulado e exposto pelo outro; tréplica com considerações finais e, por fim, a avaliação realizada por todos os ouvintes de ambas as exposições. A partir da apresentação, do confronto e da reflexão crítica das visões de mundo de todos os atores e atrizes e, posteriormente, das descobertas decorrentes desse procedimento, é possível observar com mais clareza as dificuldades, necessidades e particularidades do grupo e de cada participante do curso. Nessas circunstâncias, as orientações durante as atividades passam a ser cada vez mais direcionadas para auxiliar objetivamente na percepção e na conquista do que seria uma visão de mundo singular. Na semana seguinte, após apontamentos e observações e indicações de referências individualizadas pelos orientadores, que visam o aprimoramento das questões compartilhadas e a investigação de novas possibilidades de pensamento, as posições assumidas inicialmente pelas duplas são invertidas e um novo debate, mais amplo e aprofundado, se inicia. A escolha dos artistas pedagogos em ter um ponto de partida dualista (contra e a favor) é necessária apenas como um pretexto para a introdução ao debate. O principal objetivo é que, por meio de uma análise humana do caso e da pluralidade de perspectivas, tanto na execução individual quanto na apreciação do outro, se possa ultrapassar, ao longo dos dias, essa noção primeira de dualidade e promover considerações mais dialéticas e multifacetadas. No decorrer da experiência, exemplificamse então, na prática, as inúmeras possibilidades de produção de sentido advindas de um único tema e a complexidade que envolve a organização e o compartilhamento de uma visão de mundo singular e humanística. Desse modo, é possível iniciar o contato com a dramaturgia de uma maneira mais sensível e atenta às características e questões humanas presentes no texto a ser estudado, evitando assim uma leitura unilateral ou estereotipada pois, ao vivenciar a experiência do debate com verticalidade, ocorre uma revisão e uma ampliação da visão de mundo de cada indivíduo. Para que se possa realizar um processo ainda mais depurado, que corrobore com 247 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 essa perspectiva e que incentive o desenvolvimento de uma poética do ator, é proposta a construção de uma dramaturgia pelo próprio ator por meio de um monólogo documentário. O monólogo documentário é feito a partir de uma entrevista com uma pessoa comum, conhecida ou desconhecida dos atores e atrizes. Preferencialmente é indicado que a entrevista seja com alguém que não se conheça previamente para evitar possíveis pré-julgamentos, certas tendências ou conclusões que por ventura estejam determinadas anteriormente na relação. É estabelecido um roteiro de perguntas simples, cujo foco é identificar a singularidade da visão de mundo do outro através de suas respostas. Para colaborar com o critério de seleção do material dramatúrgico, é indicado que se façam no mínimo três entrevistas, para que se escolha entre elas qual poderia fomentar uma dramaturgia mais adequada à pesquisa individual do ator ou da atriz. O roteiro de perguntas, apesar de conter algumas questões que norteiam a composição de todos os monólogos, é totalmente aberto para abarcar as particularidades de cada entrevistado e, desse modo, as perguntas podem ser reformuladas, alteradas ou mesmo omitidas de acordo com as necessidades eventuais e específicas. Uma recomendação absolutamente imprescindível ao término da entrevista é o cuidado para que o entrevistado esteja o mais próximo possível das condições emocionais que se encontrava antes do início das questões, visto que algumas pessoas podem se alterar emocionalmente ao fazerem seus relatos. Portanto, esse compromisso e respeito com a integridade psicológica do outro é fundamental. Além disso, as pessoas devem ser avisadas do uso que será feito do conteúdo da entrevista e ainda informadas que, durante o trabalho, não serão reveladas as fontes, visando manter em sigilo a identidade de todos os envolvidos. As respostas concedidas pelo entrevistado escolhido devem ser compiladas para a composição dramatúrgica de cada monólogo e, se houver necessidade, algumas poucas palavras ou frases podem ser inseridas para uma melhor condução da narrativa, desde que não altere o conteúdo e o sentido do discurso. O processo que envolve a criação da dramaturgia do monólogo documentário é o momento em que a identidade do sujeito dá espaço para se exercitar ainda mais a escuta e a alteridade necessárias à formação artística que se vislumbra no NAC. Assim, pode-se observar o contexto social a partir de visões de mundo diferenciadas das próprias concepções e convicções. Reforça-se, dessa forma, a necessidade do contato com o outro para a constituição de uma individualidade que se inter-relaciona com o coletivo, diminuindo a distância entre sujeito (eu) e “objeto” ao qual se destina a obra de arte (sociedade), porém, sem desconsiderar o respeito e a importância crucial das diferenças. É uma experiência de atravessamentos que auxilia no reconhecimento das contradições do outro e de si mesmo e na compreensão das inúmeras camadas que se sobrepõem e se entrelaçam na constituição da personalidade do ser. O artista começa a colocar em dúvida as verdades estabelecidas, os preconceitos e julgamentos a priori e passa a ser convidado a trabalhar no terreno das possibilidades e das relativizações, desenvolvendo sua capacidade de análise e discernimento para o posterior tratamento artístico da visão de mundo do entrevistado. Essa proposta irá reverberar, consequentemente, nas futuras abordagens das visões de mundo de quaisquer outras personagens com as quais os atores e atrizes se depararem em uma dramaturgia de um autor teatral, pois o procedimento revela uma possibilidade de análise e compreensão das características de personagens de modo geral. Durante a operação de transmutação do relato para a cena é inevitável uma atualização dos pressupostos da atuação, pois o contato presencial e a análise de um ser humano com toda sua real complexidade, como material criativo, alteram o apoio da criação artística. O compromisso ético com as escolhas artísticas para a construção da cena e a responsabilidade com o conteúdo da dramaturgia, acabam por exigir uma nova postura do artista, ao mesmo tempo em que as ferramentas propostas para o aprendizado solicitam uma instrumentalização diferenciada dos modelos convencionais de atuação, que culminam na elaboração da poética do ator. É importante ressaltar que não se trata de uma construção mimética, visto que, nessa proposta do NAC, a imitação do entrevistado dificulta e limita a pesquisa da poética almejada. No entanto, sabendo que imitar o entrevistado configura-se numa etapa muitas vezes inevitável no princípio do processo, é enfatizado que ela deve ser superada ao longo do trabalho, para que se instaure uma manifestação artística gerada a partir do encontro e tensionamento das visões de mundo do “eu” e do “ele”, que resultará em um terceiro e “outro” estado de ser. Esse processo de construção de uma dramaturgia, que nasce do entendimento da relevância de uma visão de mundo singular e de uma pesquisa de um monólogo documental realizada pelos atores e atrizes, instiga a busca pela emancipação enquanto criadores da cena, pois durante 249 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 todas as etapas eles são orientados – tanto nas atividades práticas que visam o aperfeiçoamento técnico quanto nos laboratórios de atuação – a compreender sua responsabilidade nas escolhas e nas etapas da criação artística. Com a finalização do primeiro módulo do curso de atuação do NAC, alguns atores e atrizes e seus respectivos monólogos são selecionados para a montagem de um espetáculo que se estrutura a partir do material dramatúrgico elaborado no monólogo documentário. O segundo módulo oferece então a oportunidade de aprofundamento da pesquisa para a conquista de uma autonomia artística e para a consolidação de uma poética, permitindo a possibilidade de um maior contato e apropriação da metodologia de trabalho desenvolvida pelo NAC. O Caminho do Feijão: expedientes e procedimentos da criação da dramaturgia da cena, por Pedro Pires78. Resumo: O texto discorre sobre expedientes e procedimentos que nortearam o trabalho criativo do grupo – Companhia do Feijão de São Paulo – ao longo de seus 16 anos de existência. Que determinaram sua trajetória artística e que concomitantemente a constituíram como um grupo de pesquisa e criação teatral. Palavras-chave: Companhia do Feijão, teatro de grupo, épico-dialético, linguagem narrativa, dramaturgia em processo. teatro Abstract: The paper is about arrangements and procedures that guided the creative work of the group – Companhia do Feijão of São Paulo - over its 16 years of existence. That determined his artistic career and the concomitantly formed as a group of research and theatrical creation. Keywords: Companhia do Feijão, theater group, epic - dialectical theater, narrative language, drama in the process. 251 Foto de Bob Sousa. Cia. do Feijão. Fernanda Haucke, Fernanda Rapisarda e Vera Lamy em Enxurro. Diretor e dramaturgo do Grupo Companhia do Feijão desde o seu início em 1997. Formado pela Ecole International de Théâtre Jacques Lecoq (Paris - 1993/95). Graduado em Administração de Empresas pela Fundacão Getúlio Vargas (São Paulo - 1985/90). Atualmente, é professor de Interpretação do Teatro-escola Célia Helena. 78 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 A companhia do Feijão formou-se no final de 1997 e de lá para cá foram criados onze espetáculos. Utilizarei este texto para discorrer sobre expedientes e procedimentos que têm norteado o nosso trabalho criativo, que determinaram nossa trajetória artística ao longo desse tempo e que concomitantemente nos constituíram como um grupo de pesquisa e criação teatral. Mas antes de entrar em expedientes e procedimentos acho que seria interessante discorrer um pouco sobre as premissas de nosso trabalho. O que moveu e direcionou nossas ações artísticas iniciais e que hoje nos servem de parâmetro e princípios que norteiam nosso trabalho. Os Impulsos iniciais – princípios O primeiro princípio, que surgiu antes mesmo da constituição da Companhia do Feijão, foi o da busca por um trabalho coletivo - de grupo. Essa busca pelo trabalho de grupo tem a ver com minha experiência pessoal. Iniciei minha trajetória teatral num grupo de teatro estudantil e amador (nos anos de 1980). Foi aí que dei meus primeiros passos, que me encontrei no teatro e com uma forma de fazê-lo – a resultante de um processo coletivo composto por pessoas que buscavam se expressar e que compartilhavam todas as etapas da criação e da produção teatral de uma maneira artesanal e amadora (no bom sentido do termo - daquele que faz por amor). Essa busca, que amadureceu com o tempo, adquiriu outros sentidos para além do primeiro impulso expressivo jovem e passou também a ter uma característica política. Ou seja, a busca por uma outra maneira de se relacionar no e com um trabalho e que se contrapusesse ao modo hegemônico do poder hierarquizado, qual seja: o do que manda e do que é mandado. Ou se se preferir, o do patrão e do empregado, do rei e do súdito, do senhor e do vassalo. As necessidades artísticas Discorrerei agora sobre os outros princípios que foram se estabelecendo ao longo da nossa existência enquanto Grupo e que formam uma base para o pensamento e um norteador das ações criativas do Feijão. Esses princípios resultam das necessidades expressivas dos artistas que compunham e compõe o grupo, por isso é desta forma que os caracterizo como necessidades. 1) A necessidade de falar/criar a partir da nossa vida presente sobre a realidade que nos cerca e sobre o que nos incomoda hoje enquanto brasileiros indivíduos (singular) e cidadãos (no plural, no coletivo da sociedade). 2) A necessidade de estabelecer um diálogo “histórico” com brasileiros de outros tempos que dedicaram suas forças a uma tarefa semelhante à nossa, e que chegaram até nós através de suas obras (de ficção ou teóricas). 3) A necessidade de, interseccionando o passado com presente, pensar sobre o que, ou como seria um futuro melhor e diferente do que o nos é dado. 4) A necessidade de partilhar esse falar/criar com ou outros brasileiros através de nossas criações, na tentativa de que este encontro possa iluminar um sentido para a nossa existência – individual e coletiva. É preciso ressaltar, neste momento do texto, que esses princípios não foram criados a priori como um programa a ser seguido. Hoje, com a distância de 16 anos do início dessa trajetória, é possível descreve-los, pois ao longo deste tempo as necessidades artísticas puderam, em contato com a prática, gerar seus resultados e hoje se fixam conceitualmente como consequência do nosso processo “histórico” prático, do nosso fazer artístico. Aqui inicio a abordagem do tema central do artigo “expedientes e procedimentos” e transformo a maneira de escrever este texto. Passo a trata-lo mais como uma narrativa, pois acho que esta forma – uma história sendo contada - pode aproximar o leitor da experiência vivida por mim e por meus companheiros do Feijão. A importância da relação prática, do empirismo nos procedimentos criativos do Feijão com os objetos (formas e conteúdos) a serem trabalhados e o teatro a ser construído. O espetáculo para nós do Feijão se constrói principalmente a partir do trabalho prático (diário) dos artistas que perseguem suas necessidades de expressão (o que inclui os estudos teóricos). Os dois primeiros espetáculos se chamam O Julgamento do filhote de elefante (1998) e Movido a Feijão (1997/98) e surgiram da vontade de artistas em fazer uma pesquisa cênica sobre o trabalho do ator, sobre as “realidades brasileiras”, e encontraram no gênero burlesco um meio de expressão, uma linguagem cênica a ser explorada. Em Movido a Feijão – espetáculo que tinha como tema as histórias de vida dos carroceiros catadores de papelão da cidade – os atores e 253 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 criadores se encontraram, definiram um tema, uma linguagem, saíram às pesquisas de campo (observação de uma realidade) e em sala fizeram experiências cênicas a partir do que viram e ouviram e também a partir de ideias inspiradas pelo “não sei o que (que nos acompanha)”. A partir disso compartilhavam o vivenciado e propunham ideias de cenas ou improvisações para seus companheiros. O que funcionava ficava e o que não funcionava ou jogava-se fora, ou então se tentava de novo. Então, dessa maneira, se criou o Movido a Feijão. Os espetáculos que seguiram mantiveram este procedimento (que nos dias de hoje se tornou “clássico”). O Ó da viagem (1999) foi feito com o mesmo método básico anterior, mas a ele foram incorporados outras matérias, outros expedientes e procedimentos. O Ó surgiu de uma viajem de trabalho. Viajamos para o NE para apresentar o Movido a Feijão e coincidentemente fomos parar na mesma região por onde passou Mário de Andrade em 1929. Daí veio a ideia para um novo espetáculo, sobrepor estas duas experiências dadas em tempos diferentes e deixadas registradas pelo Mário de Andrade em seu livro O turista aprendiz. Influenciados pelo texto O narrador, de Walter Benjamim – onde ele fala sobre o narrador como aquele que viu e viveu uma experiência e que por isso pode transmiti-la àqueles que o ouvem recontar suas histórias – passamos a buscar o caminho da narrativa, do ator narrador, como base do trabalho para a criação da cena. Mas não deixamos de lado a outra forma, o burlesco do Movido e do Julgamento e ainda começamos a incluir o lírico, inspirados pela poesia do texto de Mário, a música, inspirados pelo seu trabalho com a cultura popular (a preservação das manifestações populares) e os textos reflexivos sobre o Brasil e os brasileiros (presentes na obra de Mário de Andrade e de outros pensadores como Sérgio Buarque de Holanda). Este último aspecto era o mais delicado a ser lidado na prática da construção do espetáculo. A questão era de como tratar com conceitos “teóricos” dentro de uma encenação e não uma palestra ou colóquio. O bom, ou uma das saídas encontradas, foi justamente na presença do viajante – figura central da montagem – que durante sua viagem tinha lá seus momentos de reflexão sobre o que via e intuía e dividia esse momento com os espectadores – o narrador e o espectador interagindo através da história que era contada. Enfim, resolvemos que recontaríamos nosso Ó da viagem para os daqui de São Paulo, misturando um pouco daquilo tudo que falei acima com as histórias que ouvimos e vimos na viagem, e outro tanto que... inventamos. A partir desta experiência, da criação do Ó, a pretensão de que a coisa se tornasse mais séria foi se concretizando. A escolha de um tema a partir de nossos questionamentos presentes, a pesquisa de campo, os escrito do Mário e de outros autores (histórias e reflexões acerca da arte e do Brasil) e a “brincadeira” de se sobrepor várias linguagens teatrais e literárias tendo como base a estrutura narrativa, passou a fazer parte dos nossos procedimentos para a criação do que poderia se chamar “A dramaturgia da cena do Feijão”. E isso passou definitivamente a ocupar um lugar grande em nossas vidas – artísticas e cotidianas. Em Antigo 1850 (2000/01) voltamos a repetir os procedimentos e expedientes anteriores e acrescentamos outros. Entramos em outro tema: A Escravidão no Brasil – seu caráter formador de comportamentos individuais e sociais que a nosso ver (e também de outros pensadores do Brasil) continuaram a nortear as relações entre indivíduos e na sociedade mesmo depois de sua extinção (a herança do passado se estendendo ao presente). Passamos também a explorar novas possibilidades na performance, na linguagem do ator narrador. Se em O ó da viagem ele era mais “clássico”, no Antigo buscou-se aproximações entre a forma narrativa e a dramática. Esses fluxos se sobrepondo e se fundindo, com menos cortes. Essa experiência de linguagem continuou seu aprofundamento em Mire veja (2002/03), que chegou até a ser descrita por uma espectadora como uma experiência de fusão dos gêneros épico e lírico. Mas Mire veja fez com que nos encontrássemos (e explorássemos) com a narrativa fragmentada e como(?) um mar de histórias e personagens pudesse encontrar um fluxo “romanesco”. O fomentador dessa questão foi o livro de Luis Ruffato: Eles eram muitos cavalos que ao mesmo tempo pode ser lido como um livro de contos ou como um romance sobre as múltiplas histórias que se passam em um dia na cidade de São Paulo. A questão era: como poderíamos colocar diversas histórias diferentes num mesmo fluxo narrativo contínuo. Uma das saídas encontradas foi o conceito da espinha dorsal, de uma história nem mais nem menos importante que as outras, mas que garante um ir e vir que liga o espectador ao todo. A saída foi a figura do motorista que transformava a sala de espetáculo num táxi e conduzia os espectadores pela cidade e que passava pelos vário lugares onde outras vidas estavam sendo vividas. O Motorista de Táxi de Mire veja também abriu uma nova perspectiva de exploração cênico-temática, o do mundo interior, da memória, pois na 255 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 evolução de sua conversa cotidiana ele ia pensando sobre a sua vida, sua família e de onde veio - a narrativa do mundo interno dos pensamentos das personagens. Isso nos levou ao Nonada (2004/06), ao tema da pesquisa seguinte do Grupo – “A alma brasileira através de suas personagens”. Nela fomos pesquisar em personagens de vários autores de tempos diferentes suas “narrativas” interiores e buscar nas possibilidades de intersecções entre elas um fluxo narrativo que propusesse uma possibilidade de síntese para alma brasileira, ou melhor, as almas a partir da premissa da sociedade de classes, inspirados pela frase de Machado de Assis: “É pra baixo que a pancada desce”. Entramos também na exploração de um outro campo estético de possibilidade de desenvolvimento da narrativa grotesca, bufonesca. Da irreverência, e da insensibilidade do narrador principal de Nonada, o Sr. Leal, inspirado no narrador cínico e descrente de Brás Cubas de Machado de Assis, enveredamos, ou ainda, deixamos de lado o narrador mais positivo (que observa a realidade e reflete sobre ela, mas está sempre em busca de uma saída, ou ainda, divide sua indignação com seu espectador). E esse outro narrador passou a agir/narrar pelo oposto – o da impossibilidade – abandonou a utopia e tronou-se um ser desutópico. Essa tendência é deixada um pouco de lado no espetáculo seguinte, o Pálido colosso e retomada com força em Veleidades tropicaes. Fiz um salto talvez grande nesta narrativa. Então retomo o espetáculo seguinte ao Nonada, Pálido colosso (2006/07), para discorrer sobre outros procedimentos que ele desenvolveu. Em Mire veja chegamos ao tema das memórias, em Nonada o desenvolvemos; agora em Pálido colosso passamos a nos colocar de maneira mais pessoal, tendo as nossas memórias como base da construção das cenas e da dramaturgia (as memórias dos atores construiriam os narradores do espetáculo). Pálido colosso se concretizou cenicamente como um cabaré, onde os atores, através de seus números de variedades, fariam o reconto da história do Brasil desde a instauração da ditadura, passando pela restauração da democracia até o presente daquele momento da criação. Sobreposta a questão histórica estava a pessoal: Onde eu estava em cada um destes momentos e como eu via e vivia cada um deles? Pálido investiu fundo nas variedades de formas cênicas (possibilitado pela estrutura do cabaré). E isso foi resultado também de uma reflexão sobre como a indústria cultural, que se agigantou nesse período, se apropriou de iniciativas criativas diversas para reforçar o conceito do fim da história pregado pelos neoliberais e afirmar a sua ideologia. Em Veleidades tropicaes (2008/09) o grotesco e a narrativa bufonesca, que tem seu germe em Nonada, tornam-se o eixo central da pesquisa cênica – para a criação da dramaturgia da cena. Um fato histórico marca a montagem. O fechamento de um ciclo de boas expectativas brasileiras determinam o caráter grotesco e bufonesco de Veleidades (o PT no poder e a manutenção de estruturas antigas, de alianças arcaicas como, por exemplo, Lula-Sarney - um binômio mais que contraditório - reafirma o conceito da modernização conservadora como base do desenvolvimento da sociedade brasileira). Terra arrasada, Macbeth, o futuro que avança para trás e o textos de Machado de Assis A teoria do medalhão (conto) e Esaú e Jacó (romance) são imagens e obras que dão uma noção de por onde andamos, claro que de maneira irreverente – “à la” Oswald de Andrade, como disse uma crítica à época. Dando outro salto e para terminar a narrativa, chego em Armadilhas brasileiras (2011/13), que traz para a cena o conflito entre formas e conteúdos que foram explorados pelo grupo ao longo de sua existência. E o ator narrador é o centro desse conflito. A pergunta sobre de que maneira podemos chegar ao espectador, fazer com que ele compartilhe conosco das questões que nos mobilizam, ou imobilizam no nosso presente e de como será que podemos pensar um futuro para além do horizonte que nos é apresentado pela realidade, permeou nosso processo criativo, encaminhou-nos por obras diferentes de um mesmo autor – Mário de Andrade, em Café e O banquete – e jogou o narrador dentro de um conflito dramático. Esse conflito ao longo da criação evoluiu e se concretizou numa questão fundamental do espetáculo: qual seria a função do artista face à sua sociedade? Então temos em Armadilhas um conflito escancarado. Um conflito que surgiu no nosso próprio processo de criação entre os artistas do Feijão. De um lado o narrador “positivo” que entoa uma história revolucionária. Do outro o narrador “negativo”, bufão-grotesco, que não vê saída no momento e questiona os princípios positivos de seu antagonista. No meio um terceiro “tipo” de narrador, que daria um possível voto de Minerva, mas que visceralmente e terminalmente hora pende para um lado hora para o outro. Com uma forte influência nos claros e escuros expressionistas (inspirado pelo poema A meditação sobre o Tietê de Mário de Andrade), este terceiro narrador, um tipo ainda não explorado por nós, acaba não se conformando 257 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 com as possibilidades expressas pelos lados anteriores e, não vendo saída para o impasse, segue sozinho na sua busca angustiada. Como pudemos ver, o Armadilhas coloca os narradores no centro do conflito. Coloca-os em uma situação dramática (nos dois sentidos do termo), mas mantém a forma épica da narrativa em primeiro plano e a dramática como seu subproduto. Este impasse entre as formas narrativas foi o último passo dado pelo Feijão. Um impasse construtivo sobre quais serão os próximos passos a serem dados. Como poderemos manter o vigor de nossas criações neste momento presente, dirigida aos homens presentes (nossos espectadores) é a pergunta e a questão que sempre tem nos acompanhado, possibilitando as nossas renovações e reafirmando os nossos princípios criativos. “Finalmentes” Voltando à forma inicial do texto, arrisco aqui os princípios estéticos que nortearam e norteiam o trabalho do Feijão. São eles: . A busca por uma maneira de expressão épica. . A importância do gênero dramático dentro da estrutura épica. . A importância da mescla de estilos para falar de maneira diferente sobre coisas diferentes. E ao enfatizar o “sotaque da cena”, sublinhar o partido que estamos tomando – por exemplo, do que deve ser levado a sério e o que deve ser satirizado. . A desimportância de qualquer tipo de opção artística que se afirme como busca da forma pela forma. Dessa maneira, termino este texto, esta narrativa, esperando ter podido contribuir, com a minha experiência, para com a de vocês, leitores. E me aproprio de um trecho de Mário de Andrade editado para o espetáculo Ó da viagem: Por enquanto foi isso que eu vi. O resto não se conta, são carinhos de amizade, gente suavíssima que me quer bem. De mais dizer que o Brasil é uma gostosura viver. Vai mal? Acho que vai… acho que vai e sofro. Se eu tivesse que escolher uma pátria?... (decerto não escolhia o Brasil não, eu homem sem pátria graças a deus) Tenho vergonha de ser brasileiro… Mas nunca negarei este meu país. O Brasil é feio… mas gostoso! O corpo na construção da dramaturgia, por Renata Melo79. Resumo: O texto discorre sobre alguns procedimentos fundamentais para que o corpo se transforme em importante instrumento expressivo, a partir de experiências concretas para criação de personagens em dois espetáculos-referência da chamada dramaturgia do corpo: Bonita Lampião (1994) e Domésticas (1998). Palavras-chave: a potência do corpo como instrumento expressivo, dramaturgia do corpo, espetáculos de teatro-dança, Bonita Lampião, Domésticas. Abstract: The paper is about some basic procedures for the body becomes an important expressive instrument, from concrete experiences to create characters in two reference shows the call dramaturgy of the body: Bonita Lampião (1994) and Domésticas (1998) . Keywords: the power of the body as an expressive instrument, body dramaturgy, theater-dance performances, Bonita Lampião, Domésticas. No dia 7 de maio tive o prazer de participar de uma mesa de debates da IV Semana de Estudos Teatrais, ao lado dos ilustres colegas Lee Taylor, do NAC (Núcleo de Artes Cênicas), Tiago Munhoz, do Grupo Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente e Pedro Pires da Cia. do Feijão, brilhantemente mediada por Fabiano Lodi. O tema dessa mesa foi “Expedientes e Procedimentos da Criação da Dramaturgia”, onde cada convidado discorreu sobre suas experiências profissionais. A abertura do debate se deu com Lee Taylor constatando que, cada vez mais nas últimas décadas, o texto deixa de ser o elemento protagonista na criação da dramaturgia, dividindo essa primazia com outros elementos da cena, como o cenário, o figurino, a música, a iluminação etc. Como criadora e intérprete de trabalhos na linguagem de teatro-dança e preparadora corporal de atores, dediquei minha fala ao tema do corpo na construção da dramaturgia. Todo corpo traz consigo a história de sua experiência. Nosso corpo expressa com maior ou menor evidência o local, a época, o ambiente e cultura que nascemos e crescemos e as experiências que vivenciamos. Expressa nossa vida e personalidade na pele, nos músculos, nos ossos, Renata Melo é atriz, bailarina, atriz, diretora e coreógrafa. Realiza preparação corporal para produções teatrais, óperas, cinema e televisão. Ministra cursos e workshops de corpo para atores. Criou o Grupo de Dança Marzipan; bolsista da Rockefeller Foundation, no American Dance Festival: Co-roteirizou e atuou no longa metragem Domésticas, o Filme, de Fernando Meirelles. Pela sua obra recebeu os prêmios APCA, Mambembe, Shell, Molière. 79 259 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 na maneira de olhar, de andar, de falar, sorrir, nos trejeitos. Na forma da mão, dos pés, no peso, na força. Muito podemos dizer das pessoas apenas pelo seu tipo físico e sua maneira de se movimentar. Dessa forma, quanto mais soubermos dessa propriedade do corpo revelar personalidades e modos de vida, mais credibilidade podemos conferir às personagens que interpretamos e histórias que encenamos. Não se trata disso, então, a arte de atuar? Não é então o corpo o instrumento, por excelência, do ator? Se pensarmos em um músico, um instrumentista qualquer, para extrair do seu instrumento a exatidão das notas, a beleza da interpretação, imprimir seu estilo, ser um profissional, bom e reconhecido, não passa ele horas do seu dia, solitário, dedicado com seriedade sobre sua prática, repetindo, experimentando, corrigindo? Isadora Duncan80 afirmava que nosso corpo é uma hospedagem provisória para personagens. Então, podemos nos perguntar: Que tipo de abrigo oferecemos às nossas personagens? Espaços amplos, ventilados, Iluminados e confortáveis para que eles se sintam à vontade e bem instalados? Ou sujos, apertados, abafados onde eles não desejam sequer entrar? Um hotel de luxo ou uma pensão barata? Dedicamos pouco tempo para um treinamento corporal sério e consistente. A formação nas escolas de teatro, muitas vezes, não confere a devida importância a essa área e as produções geralmente não têm o tempo necessário para esse trabalho. Cabe então ao ator, a responsabilidade desse treino do corpo que precisa estar em constante prática de estudo, observação, calibragem e aperfeiçoamento. Acredito que não exista uma técnica única, ideal que prepare o corpo do ator. São vários os requisitos a serem desenvolvidos: força, flexibilidade, equilíbrio, coordenação, disponibilidade, alongamento, ritmo, fluidez, peso, leveza. São inúmeras as maneiras pelas quais podemos adquirir essas qualidades. Podemos experimentar em diversas modalidades de esporte, na dança, ioga, lutas marciais, técnicas circenses, técnicas somáticas e inúmeros exercícios e técnicas teatrais criadas por encenadores experientes. Variar a forma de treinamento é uma excelente maneira de ampliar o repertório físico e a consciência corporal. A observação é outra maneira também de adquirir, compreender, ampliar e aprofundar esse conhecimento. Observar as pessoas nas ruas, as crianças, os idosos, os jovens, pessoas trabalhando, brigando, se Isadora Duncan, bailarina nascida em São Francisco, EUA, em 1877, precursora da dança moderna, revolucionou a maneira de dançar no século XX. 80 divertindo. Observar a natureza, o deslocamento das nuvens, o movimento dos animais, as aves no céu, as árvores ao vento. Observar o corpo dos outros e o seu próprio, registrar e dar nome às sensações, perceber como elas se manifestam, que músculos envolvem, onde se localizam. Descobrir e entender de que maneira as qualidades, os defeitos, os desejos, os sentimentos se expressam fisicamente, com graus variados, tortuosos, surpreendentes e inesperados de revelação. Mesmo essa simples prática de observação requer o desenvolvimento de uma técnica sutil de aprender a olhar, ver, enxergar, ouvir. Despertar um ouvir interno, com todo o corpo, exercitando a intuição e a percepção. Nas minhas experiências de construção física de personagens, a primeira delas foi para o espetáculo Bonita Lampião81, o qual escrevi, dirigi e atuei como Maria Bonita e Plinio Soares, como Lampião. Depois de uma extensa pesquisa teórica sobre suas vidas, nos dedicamos a construir os corpos dessas personagens considerando suas características próprias: sertanejos, corajosos, rudes, fortes, obstinados, ágeis. Vida nômade, sempre caminhando pela caatinga, correndo, fugindo da polícia, se esgueirando, se escondendo. Aos poucos fomos criando e desenvolvendo exercícios e práticas para encontrar as personagens dentro de nossos corpos. Fazíamos diariamente caminhadas em parques, carregando cada vez mais peso e cada dia com um propósito: fugindo, procurando, rezando, espreitando. Em cada excursão descobríamos variações e texturas corporais: maneiras de movimentar em silêncio, corpos fortes e aterrados pelo excesso de peso, um caráter rude cultivado pelo calor intenso, escassez de água. Ao mesmo tempo um corpo ágil, leve e esperto para as fugas. Perspicácia na espreita, inteligência nas estratégias. Personagens que expressavam muito mais pelo corpo e ação do que por palavras. Muitas cenas foram construídas a partir dessas experiências. No espetáculo seguinte, Domésticas82, trabalhei intensamente com Cláudia Missura e Lena Roque as atividades domésticas: varrer, tirar pó, esfregar, passar o rodinho, passar pano, passar roupa, torcer, lavar, pendurar, limpar, enxugar. Fazíamos experiências coreográficas e Bonita Lampião espetáculo de dança-teatro, direção Renata Melo, interpretado por Renata Melo e Plinio Soares. Estreou em 1994, em São Paulo e recebeu Prêmio Shell, Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), Prêmio Mambembe, Prêmio Molière. 81 Domésticas, espetáculo de dança-teatro, direção Renata Melo, interpretado por Cláudia Missura, Lena Roque, Eduardo Estrela e Renata Melo. Dramaturgia de José Rubens Siqueira. Estreou em 1998 e foi adaptado para o cinema por Fernando Meirelles e Nando Olival, em 2000. 82 261 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 partituras com essas atividades. Pesquisávamos inúmeras maneiras de segurar a vassoura e varrer, de tirar um pano do balde, de torcê-lo e colocálo no rodinho, de esfregar o chão. E nessas atividades encontrávamos uma dança própria que nascia da variedade, da agilidade da repetição e da habilidade com os objetos. Aprendi muito nesses dois trabalhos e eles nortearam a maneira como realizo a construção dramatúrgica corporal. De como colocar o texto numa partitura corporal ou construir um corpo que suporte um determinado texto. Como juntar e harmonizar corpo e texto, como falar com o corpo e com as palavras. De como transformar o texto em música para o corpo se movimentar. Não existe uma técnica pronta, um exercício específico a ser explorado. Cada espetáculo, cada criação acaba solicitando a construção de um método, uma maneira de utilizar as ferramentas já adquiridas. Sempre fazendo perguntas sobre as personagens, criando exercícios e práticas próprias para descobrir o corpo próprio, sua maneira de se movimentar e de falar. Leituras de mesa bem orientadas são muito úteis. Assim como leituras solitárias, com serenidade, sem preconceitos e julgamentos. Ao ler as falas do texto, ouvindo atenciosamente nuances quase imperceptíveis dos detalhes, recebemos orientações e chaves preciosas para construção de nossos personagens. Aprender a ouvir nas entrelinhas, respirar nas pontuações, entender o significado do ponto final, da exclamação, das reticências, das vírgulas, das pausas. Acredito também que a construção criativa e verdadeira de personagens necessita e depende de uma prática de cultivar um corpo neutro, de saber se livrar de vícios, cacoetes e características pessoais para não imprimi-las, sem querer, às personagens. É importante que se construa a personagem sobre um corpo limpo, neutro, assim como um pintor inicia sua pintura em uma tela branca. Isso requer uma prática de exercícios de autoconhecimento e conscientização. O reconhecimento do corpo, assim como de outros elementos da cena como coprotagonistas na construção dramatúrgica oferece às artes cênicas um território ainda mais rico e fértil de pesquisa e investigação. Abre caminhos para a busca de artistas inquietos e reafirma a força do teatro ao lado das artes visuais e plásticas no cenário da cultura de nossa humanidade. Uma possível autoversão da malcriação artística do grupo Rosa dos Ventos, por Tiago Munhoz (com “pitacos” dos integrantes do grupo). Resumo: O texto comenta sobre os espetáculos montados pelo Grupo Rosa dos Ventos (interior do Estado de São Paulo), e destaca, sobretudo, os diversos expedientes de que lançam mão os atores-palhaços do coletivo para apresentação dos espetáculos da companhia. Palavras-chave: comicidade popular, recepção, teatro de rua, expedientes cômicos, Grupo Rosa dos Ventos. Abstract: The text comments on the shows put on by Grupo Rosa dos Vento (state of São Paulo), and emphasizes especially the various means that the collective lay hold of the clowns-actors to present the company’s shows. Keywords: popular comic, reception, street theater, comic expedients, Grupo Rosa dos Ventos. 263 Foto de Bob Sousa. Grupo Rosa dos Ventos. Gabriel Mungo e China (de costas), Tiago Munhoz em Saltimbembe Mambembancos Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 O Rosa dos Ventos é um grupo de circo e teatro que escolheu as ruas, praças e outros espaços alternativos para atuar. Nosso processo artístico de pesquisa e criação acontece concomitante ao trabalho administrativo, produção e circulação dos nossos espetáculos e está baseado em nossas experiências individuais e coletiva, como grupo em 15 anos de existência. Definimos nosso trabalho artístico como popular. Se a definição desse termo não é única é por isso ainda mais adequada para definir o que fazemos. Levamos uma linguagem que transita com o chamado humor rasgado, com improviso livre de artistas cômicos que encenam tratando diretamente com o público na rua. A linguagem é identificada como própria, mas não pode ainda ser definida e sim listada com características autênticas que marcam nossos trabalhos. O grupo não desenvolveu um modelo para a criação artística e nem se baseia em referências clássicas. Cada criação de espetáculo é vivida de acordo com as expectativas, pesquisas e influência das experiências de cada momento, presentes em cada integrante. Buscamos representatividades individuais num processo que acontece polifônico. Reconhecemos alguns avanços técnico-artísticos em nossos espetáculos e pensar em uma nova criação coloca a necessidade de tempo para aprendizagem no processo de ensaio, que por isso é lento, podendo variar de dois a cinco anos para a experimentação sair da sala de ensaio e ser apresentado para o público. Nossos espetáculos, após estreia, seguem sempre em transformação constante. A rua, o público, os amigos são referências fundamentais nesse processo, quando a criação é avaliada e os acertos mantidos, algumas coisas retiradas e outras experimentadas em outros contextos e tempo de cena. Algo marcante em nossas apresentações, em todos os espetáculos, é o que chamamos de “esquenta” (prévia, aquecimento – nos momentos que precedem os espetáculos), um processo que surgiu no cotidiano do grupo e que é marcado pela estimulação de brincadeiras, “tiração” de sarro, num jogo que acontece entre nós e se expande para o público. Percebemos nessas brincadeiras uma simpatia que foi ganhando função nos espetáculos. Hoje o esquenta é uma necessidade; é o momento em que conhecemos as pessoas, suas histórias, histórias e particularidades do lugar; é o momento em que abrimos a roda atraindo a atenção dos passantes e fazendo montagem de cenário, som, troca de roupas, aquecimento corporal, maquiagem, tudo no local do espetáculo com comunicação direta com as pessoas que se aproximam. Para explicar melhor como o esquenta funciona, podemos dividi-lo em quatro momentos: o de chegada e montagem, o de troca de roupa e aquecimento corporal, o de passagem de som e, finalmente, o momento de maquiagem. O esquenta tem níveis de intensidade que, geralmente, aumenta na medida em que o início do espetáculo se aproxima. Muitas vezes o esquenta chega a um nível tão alto de comunicação que se confunde com o início do espetáculo. O esquenta é a maneira de ganhar a atenção das pessoas, de facilitar a comunicação cômica e de provocar o público para se interessar pelo grupo e pela arte que será apresentada. Chegamos ao local do espetáculo quase sempre três horas antes do seu início. Logo fazemos estudo das melhores condições de apresentação, definindo local para a montagem de cenário e disposição e conforto do público. Esses acertos já são motivo de muitas conversa e brincadeiras, que a partir desse instante ficam ainda mais intensas. A cada momento um integrante do grupo pode estar no foco, virar motivo de piadas, tudo pode avançar para um nível de exposição de intimidades que dão conta do cocô de um, dos atrasos de outro, da enrolação de trabalho, da idade que chega, de histórias engraças acontecidas. Nessa relação de permissividade procuramos envolver um número cada vez maior de pessoas. Muitos curiosos que chegam pra saber o que vai acontecer acabam permanecendo até o final do espetáculo, e ficam porque entram nas conversas, ri de um, ri de outro, faz e vira piada, dá liberdade para ser zoado e depois interage no espetáculo. Certa vez um amigo disse que esse ambiente que criamos para o espetáculo parece o de um bando de pedreiros conversando e brincando. Quando trocamos de roupa e iniciamos alongamento e aquecimento de corpo e voz, as pessoas continuam se aproximando e a comunicação não para: “O espetáculo é uma porcaria! Mas para quem não estiver fazendo nada, vale a pena!” Essas brincadeiras aguçam a curiosidade e os chamados “figuras” logo aparecem na roda com suas histórias e vontade de brincar. Muitos olham tímidos, de longe, e mesmo assim nos aproximamos para conversar. Assim se descobre o nome de um, apelido de outro, histórias do local – elementos que ajudarão na condução do espetáculo. Se uma história chama a atenção, é muito engraçada, logo pode virar história da roda toda. A rua é para nós um ouro e em nossos trabalhos procuramos amarrar tudo o que dela vem numa dramaturgia carregada de improvisos que podem ou não ter êxito, e viva o erro! 265 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Meia hora antes do início do espetáculo é hora de passar o som e vozes. Então, palhaço Nicochina toca alguma música, ligamos nossos microfones, e assim o raio de comunicação é ampliado. Nesse momento o jogo fica mais específico, sendo que cada espetáculo tem um motivo diferente, uma ou mais piadas chaves; argumentos diferentes do espetáculo são colocados para o público tratando de personagens, cenas e técnicas que virão, numa tentativa de apreender as pessoas pela curiosidade, fazer sentir o que está por vir. Quinze minutos para começar o espetáculo a maquiagem é feita. Nicochina toca mais músicas; o público já está mais próximo e conhecemos algumas pessoas pelo nome, apelido; histórias contadas pelo público podem ser jogadas em cena; piadas e elementos chaves do espetáculo são reforçados; mais farra, o espetáculo já está começando, não é para haver ruptura, ou podemos perder o público. Às vezes o esquenta acontece num tempo muito curto, ou não acontece. Nessas situações é mais comum encontrar dificuldades para conduzir o espetáculo com o ritmo e intensidade que desejamos; e há casos em que o lugar, o público, são extremamente favoráveis ao que fazemos. Esse esquenta, para além da sua função em cada apresentação que fazemos, tem um papel importante em nossa criação artística. É quando se brinca mais com o improviso, com a piada, apresenta-se um número novo; funciona para nós como um campo de experimentações e descobertas da rua, nosso foco. Esse tipo de pesquisa empírica, vivencial, sempre foi característica na concepção dos nossos trabalhos. Nos primeiros anos fomos fortemente influenciados pelos circos pequenos que circulavam pela região de Presidente Prudente. Fizemos muitas visitas a esses circos para assistir espetáculos e conversar. Neles encontramos uma referência que é muito presente em nossos trabalhos, que são os palhaços verborrágicos, impudicos, tipo cômico que converge para outra referência fundamental em nosso trabalho, que são os artistas populares de roda de rua com seu humor escrachado e forma horizontal de se relacionar e brincar com o público. Nosso primeiro espetáculo “Hoje Tem Espetáculo!” (2001) foi criado a partir dessa referência desses circos pequenos, numa proposta de levar gags e reprises de circos tradicionais para um jogo direto na roda de rua com o público. A aproximação desses circos também aconteceu com o aprendizado de técnicas circenses (malabarismo, perna de pau, acrobacias), participando de oficinas e realizando treinamentos coletivos. Hoje essas técnicas são muito utilizadas na criação de nossos trabalhos artísticos, e estiveram muito presentes na criação do nosso segundo espetáculo Saltimbembe mambembancos (2005), que também apresenta uma gag tradicional e outras criações nossas a partir do universo circense. Em nossa criação artística realizamos muitas experimentações com o público e em diferentes contextos. Isso acontece muito em alguns trabalhos que somos solicitados, geralmente em Presidente Prudente e outras cidades da região; eventos diversos que sempre encaramos como oportunidade de experimentar, aprender, testando coisas que depois podem vir a ser parte de um novo trabalho artístico. Hoje temos uma intervenção itinerante, Rabo de foguete, em que vamos andando, parando e brincando; uma intervenção artística que surgiu nessas experiências diversas, onde não éramos chamados para apresentar um espetáculo, mas brincar e interagir com o público. Nossa montagem atual, do espetáculo Super Tosco, tem essa referência muito forte, acrescidos de uma musicalização com participação mais ampla de todo o grupo na sua execução cênica. Classificamos nossa pesquisa como utilitarista, no sentido de que aponta sempre para um uso específico de técnicas na concepção de cenas e números, e não para um aprendizado global das linguagens que trabalhamos. Hoje o processo artístico do grupo também se efetiva numa rotina de encontros de ensaio (muitas vezes irregular por conta da circulação e outros trabalhos) que incluem, variavelmente: exercícios de força; jogo de Ogrobol (jogo inventado por nós e que utilizamos como exercício); prática de técnicas circenses como malabarismo e acrobacias de solo; estudo e treino musical individual e coletivo; observação de vídeos; passagem de cenas e espetáculos; discussão de concepção de cenas; eventualmente práticas e discussões com outros grupos e artistas em colaboração com nosso processo artístico. Nesse processo a participação de cada integrante do grupo se dá de maneira diferente no desenvolvimento do conteúdo geral. O trabalho de criação musical e sonoplastia de Robson Toma tem papel importante no processo de criação artística do Rosa dos Ventos. Sua inserção no grupo aconteceu junto com uma banda, que durante um período acompanhou as apresentações musicalizando e fazendo sonoplastia. Os espetáculos já existiam, mas assim ganharam música e recursos de sonoplastia ao vivo, num encontro de resultado surpreendente 267 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 para o grupo. Mas um dia os outros músicos da banda saíram para compra cigarro e nunca mais voltaram, permanecendo apenas Robson, que deu continuidade à ideia nascida, tornando-se a partir daí o homem banda... desenvolvendo uma forma muito particular e espetacular de fazer música e sonoplastia ao vivo em nossas apresentações com uso simultâneo de bateria, guitarra, teclado e outros instrumentos acoplados. Hoje esse trabalho é uma das bases na criação do nosso espetáculo Super tosco, que incorpora novos instrumentos (sanfona, escaleta, trompete e sax) executados pelos outros integrantes do grupo. A montagem do nosso último espetáculo A farsa do advogado Pathelin (2009) ajudou a definir no grupo uma metodologia/rotina de ensaios que agora compreende nossa criação artística. Esse processo dáse, geralmente, com a passagem de treinos técnicos fragmentados para a passagem geral de cenas e números, um exercício repetitivo, mas criativo. Com A farsa também aprimoramos nossa pesquisa estética de rua desenvolvendo uma linguagem dramatúrgica aberta à interferência direta do público e recheada de piadas e brincadeiras nossas que ajudam a contar a história. Esse foi o nosso primeiro e único trabalho com uma direção, nos outros (e no atual) a direção foi coletiva. Uma particularidade dessa montagem é que nela encontramos um elemento provocador e novo para o grupo, que é um texto dramatúrgico. Até então a criação dos nossos trabalhos sempre foi livre com roteiros, cenas, quadros e gags tradicionais de circo criados por nós e que podiam ser modificados a cada instante em seu conteúdo geral. A proposta que chegou com o diretor Roberto Rosa foi a de estudar uma dramaturgia, um texto e sua encenação, isto é, contar uma história pré-definida, mas a partir da nossa linguagem (livre) e personagens cômicas. Enfrentando e resistindo a vários textos, finalmente chegamos ao gênero farsa e à história do advogado Pathelin. A partir daí o processo foi longo e delicado; sentíamo-nos engessados com o texto, com a história que deveria ser contada; o texto chegou como uma provocação à nossa linguagem e forma de criação. O processo desse espetáculo caminhou no sentido de fundir a linguagem circense do grupo ao texto, utilizando técnicas circenses e palhaçarias para contar a história. Buscamos formas de atualizar essa história, que tem mais de 500 anos, fazendo uma adaptação do texto ao contexto da rua de hoje, levando uma linguagem que nela aprendemos, a de comunicar diretamente com o público, abrindo a história para os improvisos e participação do público, fugindo assim da forma teatral mais tradicional. Não deixamos de lado a ideia de que o público precisa saber que ali existe espaço para ele participar, questionar e até entrar em cena, na história. A história é a rua. Hoje seguimos dois caminhos significativos na história do Rosa dos Ventos, o de continuar a criação livre de espetáculos cômicos, com a liberdade das rodas populares de rua, apresentando habilidades circenses, musicais, entre outras; e o caminho da dramaturgia, ao nosso modo, para contar histórias, sem abrir mão dessa comunicação própria da rua. Na linha desse primeiro caminho estamos vivendo nossa criação atual do espetáculo Super tosco, e em seguida pretendemos fazer novamente uma montagem a partir de algum texto dramatúrgico. A montagem do Super tosco acontece, muito irregularmente, desde 2011, a partir de um primeiro número de acrobacia de formação coletiva e segue com a criação de outros números e a busca de um argumento que perpasse todo o espetáculo e seja pano de fundo para tudo o que é apresentando. A montagem avançou no aprimoramento técnico de alguns números e ampliação de repertório associado a criação de cenas novas pensadas a partir de trocas e orientações com colaboradores amigos em encontros eventuais. Como já dissemos, vivemos a montagem desse espetáculo muito baseado nas performances e interações artísticas que construímos praticando com o público em espaços alternativos e que compõem hoje nosso repertório para esse tipo de trabalho. O desafio que se apresenta agora é o de alinhavar tudo com soluções trabalhadas em ensaios, com elementos do universo cômico dos circos pequenos e rodas populares de rua, buscando aí uma unidade para o espetáculo. 269 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Quarto dia A inserção de assuntos históricos na cena teatral – Zonas de Fronteira. O encontro foi desenvolvido no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação e contou com público significativo. Foi proposto aos convidados da mesa que, antes de dizer seus textos, pudessem assumir o desafio de imbricar suas falas àquelas que fossem apresentadas pelo público, na medida em que o tema do encontro já era de conhecimento de todos. Todos assumiram o desafio proposto, e durante exposição de aproximadamente quinze minutos de Alexandre Mate sobre os principais movimentos a assumir os acontecimentos históricos como assunto e a epicizar suas obras no teatro, o processo foi se desenvolvendo. Em tese, e de modo bastante sucinto, foi solicitado ao público, além de formular questões que durante as falas dos convidados que escrevessem em folhas de papel, que passavam na área do público, sobre o significado de fazer/ participar da história. Se naquela noite, ali reunidos, fazíamos história. Houve um conjunto muito interessante de respostas que, em sua totalidade, manifestava uma consciência crítica e bastante atenta ao evento e à formulação apresentada. Nekropolis: uma experiência por um fio da música no teatro, por Gustavo Kurlat83 Resumo: O texto apresenta, de modo bastante sintético, alguns expedientes de que se lançou mão para o trabalho coletivo com relação à criação das músicas que fizeram parte do espetáculo Nekropolis, criado por artistas-aprendizes, em parceria com profissionais da área musical, da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Uma experiência - fora dos padrões - de criação de um repertório de canções para um texto teatral e sua dramaturgia musical, dentro de um processo colaborativo. Palavras-chave: dramaturgia musical, musicalização em espetáculo teatral, repertório de canções, teatro musical, fronteiras. Abstract: The text presents, in a very concise manner, some expedients that resorted to collective work in relation to the creation of the songs that were part of Nekropolis show, created by artists - learners, in partnership with professionals in the music business, the Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). An experience - outside the box - to create a repertoire of songs for a theatrical text and musical dramaturgy, within a collaborative process.. Keywords: musical drama, music education in theatrical performances, musical score, musical theater, borders. Somos seres de fronteira. Nos debatemos entre contradições, coragens e medos, olhares para o entorno e olhares para o longe. Como argentino que mora no Brasil há mais de 37 anos, me é particularmente cara essa questão fronteiriça. Na verdade, com tanto tempo nessas terras, tal questão se metaforiza a cada nova experiência, propondo desafios inerentes à dualidade própria de transpor limites. Tenho vivido com intensidade a oportunidade da criação em espaços pedagógicos. Na Escola Livre de Teatro de Santo André essa experiência particular no campo teatral me levou a verticalizar pesquisas que talvez não acontecessem em outros contextos. Aprendizes-criadores, processos participativos, dramaturgias textuais e musicais sendo criadas conjuntamente na evolução processual, são protagonistas de possibilidades muito mais despojadas do que as que provavelmente seriam inventadas em processos mais tradicionais de criação. Talvez a invenção e montagem de Nekropolis tenha sido a experiência mais radical nesse sentido. 83 Gustavo Kurlat é autor, músico, compositor, tradutor, educador, locutor, diretor e diretor musical de teatro. Realizou trabalhos para mais de cinquenta peças teatrais, assim como cinema, shows, discos e publicidade, tanto no Brasil como no exterior. Ganhou entre outros os prêmios Shell, APCA e FEMSA de teatro. 271 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Partimos da vontade de criar um musical, considerando a fluência no cantar e a musicalidade do grupo de aprendizes que chegava ao último ano da escola, grupo com o qual eu já convivia como professor havia três anos. Esse criar do grupo era essencial – característica primordial da ELT -, alimentando a dramaturgia construída por Roberto Alvim, o trabalho de interpretação coordenado por Luis Mármora e Mariana Senne, o trabalho corporal orientado por Juliana Monteiro e a direção geral e musical e a dramaturgia musical, que estavam sob minha responsabilidade. Esse fio paralelo de músicas a serem criadas devia dialogar com a dramaturgia textual criando outra trama, outro nível de leitura; e isso se mostrou mais premente ainda quando começou a se configurar a história: o julgamento de um grupo terrorista que desenterrava cadáveres e os expunha publicamente, para dar voz àqueles que enquanto vivos nunca haviam tido a oportunidade de fazê-lo. A primeira impressão foi que seria impossível criar um musical com esse enredo. Nada mais longe dos nossos imaginários de teatro musical do que essa realidade crua, essa aridez das palavras secas que Alvim trazia como uma faca, que perfurava nossos corações e nos fazia refletir sobre um mundo que flutuava entre o humano e o sub-humano. Mas entra aqui o que eu nomeei anteriormente de oportunidade: o teatro de grupo e o ambiente de pesquisa da Escola nos possibilitavam quebrar nossos próprios preconceitos. Num grupo de criação podemos tentar o que parece impossível. Numa escola, não temos o compromisso de ter de acertar totalmente, mas, digamos, o dever da pesquisa e da tentativa. Que musical seria esse que poderíamos criar com esse tema? As músicas deveriam contar a história ou trazer novas camadas à luz? A resposta à segunda pergunta trouxe contorno também para a primeira. As músicas dialogariam com o texto sem repeti-lo. Trariam novos pontos de vista. Negariam, afirmariam, tomariam caminhos paralelos ou transversais, trariam o sentimento do coro narrador à tona, fariam reflexões sobre esses mundos que eram revelados como corpos desenterrados. Deparávamos, então, com mais um desafio: o conceito de como seriam as composições estava definido, mas... precisávamos de fato compor! E quem faria isso - com a coordenação da direção, é claro, mas com total protagonismo – seria o próprio elenco. Atores e atrizes aprendizes que também seriam os compositores da própria poética musical e suas melodias. Para isso, vários mecanismos foram detonados: o primeiro, a escuta exaustiva e crítica de dezenas de canções do repertório popular, para aproximar-se de estruturas formais, desenho de melodias, relações entre estas e as letras, compreensão mínima das sensações que as harmonias sugeriam. Discussões, reflexões, comparações, foram sementes do trabalho que iria se desenvolver a posteriori. Segundo, as primeiras tentativas de encontrar as poéticas que se mostravam “necessárias” para essa equipe de criação, considerando a construção progressiva do texto e seus desdobramentos cênicos. Terceiro, a formação de parcerias: as composições, na sua maioria, seriam criadas por duplas, trios, ou até por cinco ou seis pessoas em algum caso. Começaram a chegar assim os primeiros rascunhos. Ideias poéticas, esboços de melodias, poemas com métricas indefinidas, estruturas formalmente claras, mas que precisavam ainda ser recheadas, estruturas caóticas, mas com recheios saborosos. E assim como tínhamos feito com o material inicial de escuta, fizemos com esses rascunhos. Escutamos. Criticamos. Analisamos. Compreendemos as formas. Exercitamos o desapego. E a partir disso modificamos, reescrevemos, ajustamos. Coube a mim e a Cristiano Gouveia, meu assistente da direção musical, ajudar a dar a forma final desse material e principalmente harmonizá-lo. As melodias e as letras foram praticamente finalizadas antes disso, como fruto do esforço coletivo. Ideias surgidas a partir do próprio texto começaram assim a modificá-lo ao serem cantadas entre os hiatos da narrativa, criando assim um novo espaço de compreensão e uma nova possibilidade de relação com o discurso. O coro achava assim sua própria linguagem no espetáculo. Grupo e espaço de pesquisa possibilitaram a criação de algo que, como já afirmado, dificilmente seria criado fora desse contexto, absolutamente favorável. Um musical fora dos padrões que normalmente transitamos. Um desafio para todos os participantes. Uma experiência que nos modificou. Algumas criações musicais de Gustavo Kurlat: http://www.radio.uol.com.br/#/busca/artista/gustavokurlat https://www.youtube.com/watch?v=Wr-7PrYpFkA https://www.youtube.com/watch?v=6twNrIuekGo https://www.youtube.com/watch?v=WfCtwTPIp28 https://www.youtube.com/watch?v=CE9DmX0Bu5Y https://www.youtube.com/watch?v=I64M-CTJQjw 273 O grupo narrador, por Rosyane Trotta84 Resumo: O artigo aborda a vertente teatral carioca que, a partir do final da década de 1980, se formou em torno do ator como narrador da cena. Gerados pela pesquisa de grupos distintos, os diversos espetáculos expuseram um diálogo sobre as possibilidades da relação entre o teatro e a literatura. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Palavras-chave: ator narrador, grupos de teatro do Rio de Janeiro, teatro e literatura, teatro narrativo. Abstract: The article discusses a theatrical trend that appeared in the city of Rio de Janeiro, in the end of the 1980s, with the actor as narrator of the scene. As the result of the research of different groups, the various plays establish a dialogue on the possibilities of the relation between theater and literature. Keywords: actor narrator, theater groups in Rio de Janeiro, theater and literature, narrative theater. Quando Luiz Artur Nunes e o Núcleo Carioca de Teatro estrearam A maldição do Vale Negro85, no final dos anos 1980, não se tratava ainda da encenação de uma obra literária não dramática, nem se encontrava ali, como seria posteriormente desenvolvido, o conceito de “ator-rapsodo”. Mas alguns elementos já apontavam um claro descolamento da forma dramática tradicional, principalmente nos procedimentos e efeitos ligados ao recurso da paródia. Recuperando todos os elementos do melodrama e efetuando o que se poderia chamar de uma arqueologia, a montagem produzia, no contato entre palco e plateia, um contraste de tempos históricos, de visões de mundo, de regras e convenções teatrais, provocando assim uma ruptura na identificação, uma consciência da representação. Em 1990, A mulher carioca aos 22 anos é o primeiro espetáculo de uma trilogia86 em que Aderbal Freire Filho encena romances na íntegra. Ocorre ali a explicitação do que no teatro de Brecht estava implícito, sobretudo com relação aos recursos de distanciamento da interpretação. A incorporação do discurso narrativo do autor pela personagem fazia com que Rosyane Trotta é professora do curso de Direção Teatral e da Pós-Graduação da UNIRIO, pesquisadora de processos de criação e modos de produção em coletivo. Atua como dramaturgista junto à Cia. Marginal desde 2006 e colabora como dramaturga com os grupos Ser Tão Teatro (PB) e Miúda (RJ). 84 O espetáculo, de Caio Fernando Abreu e Luiz Arthur Nunes, estreou em Porto Alegre, em 1986, e no Rio de Janeiro, em 1988. 85 O diretor encenou três romances da literatura brasileira: A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas, 1990; O que diz Moleiro, de Dinis Machado, 2003; O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho, 2006. 86 o ator anunciasse ou comentasse as ações, sem no entanto abandonar a representação. Assim, o afastamento entre ator e personagem, ao invés de se estabelecer pontualmente, era adotado de forma contínua, e constituía de fato a gênese da linguagem. O emprego, postulado por Brecht, da terceira pessoa e do verbo no passado, como recurso oferecido ao ator em processo de criação, se tornava signo sonoro, semântico, técnico e poético da cena. Jamais víamos a personagem presentificada, jamais tínhamos a ilusão de que a história se passava diante de nossos olhos, como uma fatia de vida. Era sempre o ator, no ato de desempenhar sua função, que se oferecia à apreciação do público, como alusão paródica à história referida. Os atores se revezavam nas personagens, não havendo nenhum ponto fixo nem estável (diferentemente, por exemplo, das encenações sobre Zumbi e Tiradentes, realizadas pelo Teatro de Arena de São Paulo – na década de 1960–, em que o protagonista era resguardado do “sistema coringa”, preservando sua dramaticidade e a identificação do público). O espaço teatral era o Teatro Gláucio Gill, tal como se configurava enquanto abrigou o Centro de Construção e Demolição do Espetáculo, ou seja, com arquibancadas de poucos níveis que estabeleciam a proximidade entre área cênica e plateia. Mesmo havendo continuidade narrativa, uma vez que a obra era mantida em toda sua estrutura, a quebra da unidade dramática se operava cada vez que o grupo dos atores fazia girar novamente a distribuição de papéis, de objetos, de adereços, de objetos cenográficos e a própria configuração espacial. O mesmo se verifica em Alcassino e Nicoleta, encenado por André Paes Leme, em 1994. Ali o diretor lança mão de um artifício para contextualizar dramaticamente a estrutura épica: quem nos conta a história são empregados de um nobre, durante o trabalho. O espaço dramático é a cozinha e há uma divisão inicial de personagens sobre as quais se erguerá o jogo do faz de conta. Algumas cenas são representadas com os elementos desse espaço: legumes e utensílios domésticos manipulados como mamulengos. Então, diferentemente do “ator-narrador”, temos aqui a personagem narradora, uma vez que, por exemplo, é a cozinheira que conta parte da história e, ao findar, volta a ser a cozinheira (ainda que esta personagem seja destituída de psicologia e trajetória). Se o ponto de partida para a composição da dramaturgia não é uma obra única, mas um conjunto de contos ou crônicas, a desconstrução da ação dramática se dá desde o plano da estrutura. Mesmo que os fragmentos selecionados sejam assinados pelo mesmo autor ou que haja 275 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 uma tentativa de unificação temática, não apenas a continuidade dramática, mas também a narrativa é interrompida. É o que se dá, por exemplo, em A vida como ela é, de 1991, seleção de crônicas de Nelson Rodrigues em que Luiz Arthur Nunes desenvolve a técnica do “ator-rapsodo” e investiga o teatralismo entre a ação e a narração. O ator que mostra e não vive, a cena que cria uma linguagem e não uma realidade são os objetivos principais da linha de investigação do Núcleo Carioca de Teatro. O cenário - um palco cinzento e vazio, cadeiras e paredes translúcidas - ambienta a neutralidade. O figurino e a maquiagem - ternos de vivo colorido e rostos brancos - não caracterizam personagens, mas atores que, a cada uma das dez cenas, criam um jogo diferente que valoriza o elemento épico da linguagem: cena dublada por atores aparentes, manipulação de um ator por outro, ventriloquismo, gestualidade em substituição a elementos reais (o ator que faz de seu braço a própria corda em que ele se enforca), valorização da ação corporal, máscara. O distanciamento favorece o humor e a crítica que constituem a essência da encenação. Depois dessa montagem, as encenações de crônicas rodrigueanas se tornaram recorrentes. Mas, na maioria das vezes, os diretores optaram por eleger, a cada fragmento, um narrador, e deixar os atores exclusivamente voltados à sua personagem. É certo que, pela própria estrutura literária e pela linguagem irreverente de Nelson Rodrigues, a interpretação do ator já não segue a via da identificação: seus gestos são ampliados, sintetizados e até, em alguns casos, tipificados. Por outro lado, ele já não está tão livre para inserir os comentários, as antecipações e as interferências do narrador, cuja função permite a onipresença e a onisciência. A qualidade artística, o êxito e a divulgação desse tipo de experiência ampliaram significativamente as possibilidades estéticas e dramatúrgicas do teatro, conferindo não apenas aos atores e ao diretor, mas a todos os artistas teatrais, uma dilatação do campo técnico e artístico. (Quando, por exemplo, Paulo Betti encenou Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva, 1983, coube ao dramaturgo Alcides Nogueira realizar a adaptação, para, entre outras coisas, costurar a estrutura dialógica e operar uma síntese capaz de formular uma unidade e uma continuidade dramáticas. Hoje certamente haveria outras opções que na época não eram cogitadas). A assimilação do recurso do “ator-narrador” pela linguagem e pela encenação permitiu, por exemplo, que Aderbal Freire Filho, em 1998, condensasse Turandot ou o congresso dos intelectuais para um elenco de quatro atores, que entravam no palco vazio carregando uma mala e ali faziam representar o texto de Brecht. Seguindo este mesmo caminho, houve na UNIRIO uma encenação de Macbeth, em 1998. Foi o resultado de um processo que aglutinou alunos de Mestrado em torno do mesmo projeto, cada um deles encarregado de refletir sobre um dos sistemas significantes da montagem cujo objetivo geral era investigar e demonstrar a possibilidade de representar a peça de Shakespeare com apenas três atores. Obviamente, em ambos os casos, o recurso do ator-narrador não era um ponto de partida literário, mas um pressuposto da encenação que se ramificava a todos os setores: o uso de objetos e adereços-símbolos, o figurino de base, que veste antes o ator e a linguagem do que a personagem, o dispositivo cênico que, da mesma forma, ambienta o jogo e não a ficção. A difusão do recurso épico vem permitindo ao teatro contemporâneo uma ampliação do campo autoral dos artistas cênicos de todas as áreas. Admitir a hipótese de que o teatro deve se mostrar enquanto se faz resulta em um claro afastamento do aristotelismo e da verossimilhança, na medida em que põe fim à ocultação da subjetividade do artista em favor da objetividade da fábula. Mostrar a criação enquanto tal equivale tanto a revelar o caráter metafórico e poético da ficção quanto a colocar em evidência o ponto de vista daquele que narra e, inevitavelmente, colocar em questão a própria narrativa. Como existem vários criadores envolvidos no espetáculo, que resulta potencialmente do confronto entre visões de mundo, o teatro que narra acaba por descortinar a pluralidade inerente ao coletivo. A origem desse procedimento remonta à encenação do romance As aventuras do bravo Soldado Schwejk, em 1927, por Erwin Piscator, tendo Brecht como um de seus colaboradores. Essa experiência motivará Brecht a desenvolver a pesquisa que encontra no teatro chinês o princípio primeiro para a interpretação não dramática. Brecht observa que o ator chinês é como um mascarado que se mantém afastado da vida interior da personagem. Passo decisivo em direção ao teatro épico, a montagem traz um sentido novo ao trabalho do encenador, a quem não competiria apenas criar uma visão pessoal sobre um texto, mas selecionar e mesmo criar o texto a partir de uma concepção sobre a função do teatro. No Berliner Ensemble, Bertolt Brecht apontará uma nova possibilidade para a função do autor dramático, inserido no processo de criação, flexibilizando sua obra de acordo com as questões suscitadas pela cena, pelo contato com o público, pelas contingências históricas. A sala de ensaio se torna um lugar de verificação do texto, constantemente revisto. No teatro épico brechtiano, 277 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 a teatralidade ganha lugar privilegiado como porta-voz do sentido. O gestus sublinha o condicionamento histórico dos comportamentos sociais e conduz o ator a mediar as vivências da personagem a que, gestualmente, ele dá significação. No Brasil, é impossível não lembrar Macunaíma, pelo Grupo Paul Brasil, em 1978. Ali também a função épica se concentrava, sobretudo, na linguagem criada pelo diretor Antunes Filho. Embora não existisse a figura individualizada do narrador, esta função podia ser seguramente atribuída ao conjunto dos atores, que manipulava jornais transformando-os em objeto, adereço e cenografia, que atravessava a cena compondo imagenssímbolos, imagens-relatos, como narradores de uma memória ancestral coletiva. Nas últimas décadas, o recurso ao ator épico vem sendo tomado como princípio estético mais do que como técnica advinda do material verbal. A crise do sujeito tornou insustentáveis as noções de personagem, identificação, drama e unidade. Se penso nos diretores da minha geração – os que começaram a trabalhar nos anos 1990 – não consigo me lembrar de nenhum espetáculo que tenha preservado tais noções. Por outro lado, me lembro de vários que, recorrendo ou não à narração explícita, eram marcados pela linguagem épica. Hoje, mesmo quando tomamos um texto estrutural e dramaticamente fechado, os procedimentos épicos se impõem no processo de encenação, porque nos soam mais instigantes, mais eloquentes, saborosos, convincentes do que os preceitos dramáticos. Da mesma forma, a noção de gestus parece necessária, imprescindível, não apenas para quebrar a tendência da construção psicológica, mas principalmente porque a percepção de que a personagem não existe, de que ela é uma criação ideológica, fornece maior e mais adequado instrumental para o artista de teatro se relacionar com o seu tempo. Possivelmente os estudiosos de Brecht discordarão dessa visão ampliada do conceito. A ruptura brechtiana da estrutura dramática servia a um propósito reflexivo de um tipo muito específico. O gestus seria a revelação, pelo ator, de um sentido subjacente ao discurso da personagem, metáfora de uma função social identificável pelo espectador. De fato, se tomado em sentido estrito, original, o conceito jamais permitirá uma releitura fora dos propósitos ideológicos, pedagógicos e estéticos do completo teatro do diretor-dramaturgo. E pouco se poderá testemunhar de um hipotético legado no teatro contemporâneo. Mas, se for possível ampliar o conceito, ele será visível inclusive no teatro performativo, mesmo com a inegável filiação do gênero épico ao gênero dramático. Na montagem brechtiana de Mãe Coragem, a atriz Helene Weigel, na cena em que a mãe vê o filho morto, ergue a coluna, levanta a cabeça e abre a boca, num grito mudo. Ao fazer isso, joga uma luz sobre aquele que atua, dirige-se ao público como atriz. Esse exemplo pode esclarecer que narrar, interferir na cena como ator, não significa necessariamente despir-se da teatralidade para dar lugar a uma fala branca e informativa. Pode também – e, nesse caso, a intervenção se torna mais bela – atuar francamente, despudoradamente, como autor. Não será por acaso que a maioria dos experimentos e encenações nessa vertente tenha se dado pelas mãos de um coletivo. A apropriação da dramaturgia cênica pelo grupo, enunciado como autor do espetáculo, abre caminho para diversos desdobramentos das vocações épica e performativa do teatro. Mas, principalmente, resulta na ruptura em relação às estéticas baseadas na convergência de todos os sistemas significantes da cena para dentro de si mesma, às estéticas mistificadoras que ignoram o público para instaurar a suprema beleza, o mistério da técnica ou a grande verdade – o que muitas vezes ocorre mesmo nas linguagens contemporâneas. A cena que enuncia a si própria se admite como provisória e toma a imperfeição como elemento constituinte da arte e do humano. 279 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 O eterno retorno ou em busca do tempo perdido. Sobre o teatro de grupo, a Revista e um Brasil cordial, por Kleber Montanheiro87 Resumo: Em 2009, a Cia. da Revista foi contemplada pela 15a edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro com um projeto que buscava pesquisar cenicamente e levantar reflexões sobre a cidade. Os resultados desse processo, diante do público, representaram um avanço estético da companhia; aprofundaram os estudos sobre: as raízes do Brasil e a formação do caráter do povo brasileiro e quanto ao teatro de revista, resultando o espetáculo Cabeça de papelão. O teatro de revista, referência constante da companhia, contribuiu diretamente para a formação cultural do Brasil, aliando sátira, duplos sentidos, acontecimentos histórico-políticos e comportamentais, hibridismos formais da contemporaneidade. Um novo olhar sobre a forma deve – no sentido de comunicar e provocar, discutir e reagir –, rever, sobretudo, as relações sociais em tempos de combustão. Palavras-chave: teatro de revista, Cia. da Revista, teatro de grupo, Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda, Cabeça de papelão. Abstract: In 2009, the Cia. da Revista was included under the 15th edition of the Municipal Development Program to the Theater with a project that sought to search scenically and raise reflections on the city. The results of this process, before the public, represented an aesthetic achievement of the company; deepened studies: the roots of Brazil and the formation of the Brazilian people as to the character and musical theater, resulting in the Cabeça de papelão spectacle. The revue, constant reference of the Company, directly contributed to the cultural formation of Brazil, combining satire, double meanings, historical-political and behavioral events, formal contemporary hybrids. A new look at the form must - to communicate and lead, discuss and react - review, especially social relations in burning times. Keywords: musical theater, Cia. da Revista, theater group, Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda, Cabeça de papelão. 87 Ator, diretor, cenógrafo, figurinista e iluminador, dirige a Cia. da Revista, grupo com sede na Santa Cecília - SP, com repertório dos espetáculos: Cada qual no seu barril, Carnavalha, Kabarett e Cabeça de papelão. Recebeu diversos prêmios FEMSA, APCA e indicações ao Prêmio Shell pelo espetáculo Cabeça de papelão. Sua última direção foi a montagem do musical Ópera do malandro, de Chico Buarque de Hollanda. Foto de Bob Sousa. Cia. da Revista. Adriano Merlini e Flávio Tolezani em Ópera do malandro. [...] que, como em geral de todos os países lendários era o mais comum, o menos surpreendente em ideias e práticas [...] o povo que o habitava julgava-se além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse o país do Sol, seria o país do bom senso. João do Rio (O homem da cabeça de papelão). Para mim o fazer teatral se concentra na potencialidade do teatro de grupo. O debate de ideias, a forma cênica aliada à prática da colaboração, da verticalização de argumentos e a exposição no palco de um resultado que foi “digerido” não por intérpretes, mas por artistas que compreendem a criação teatral em todas as suas etapas. Em 2009, a Cia. da Revista - grupo que dirijo artisticamente - foi contemplada pela 15a. edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro com um projeto que buscava pesquisar cenicamente e levantar reflexões sobre a cidade: Bras-Ilha – carnavalização e civilização na cidade ideal. A pesquisa realizada em 10 meses possibilitou o aprofundamento na linguagem do Teatro de Revista e o estudo cênico de materiais diversos: a peça Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, de Brecht, o desfile do carnavalesco Joãosinho Trinta, Ratos e Urubus larguem minha fantasia, e 281 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 os 50 anos da fundação da cidade de Brasília. Os resultados daqueles 10 meses de mergulho, enriquecido pelos constantes experimentos diante do público, foram um avanço para o amadurecimento estético da companhia e, consequentemente, para o aprofundamento em uma linguagem que explorasse o Teatro de Revista em sua potência contemporânea, além da consolidação da equipe criativa do grupo (boa parte dos estagiários desse projeto foram agregados ao núcleo artístico). Tudo isso promoveu um norte à companhia e levantou novas questões. O resultado cênico que emergiu diretamente daquele processo de pesquisa foi o espetáculo Cabeça de papelão. Este processo desnudou a vocação deste coletivo, que se delineou mais claramente para a continuidade de sua trajetória: refletir sobre as raízes do Brasil e a formação do caráter do povo brasileiro, utilizando-se da linguagem do Teatro de Revista. O espetáculo, além de adaptado do conto de João do Rio, foi expressamente inspirado no ensaio O homem cordial, de Sergio Buarque de Holanda; uma dramaturgia foi criada com a participação direta do núcleo artístico e revelou um novo momento de ação para a Cia.: os questionamentos se desdobraram gerando uma inquietude em cena e na continuidade do trabalho em sala de ensaio. A obra de João do Rio, embora escrita na belle époque carioca do início do século XX, é extremamente atual em seu olhar sobre o indivíduo e sua inadequação perante a cidade. E foi a partir deste material que se configurou o tema da peça Cabeça de papelão: o indivíduo inadequado em relação ao meio social. Através do percurso de estudos: cidade> indivíduo> relação cidade/indivíduo inadequado, e tudo isso filtrado pelo olhar da Revista, chegou-se ao País do Sol indicado por João do Rio e teatralizado pela Cia. da Revista. E é nesta nação dos bacharéis que surge como contraponto à sociedade o jovem Antenor - aquele que tem a inadequada mania de dizer a verdade, “não a verdade útil, mas a verdade verdadeira”. Nesta nação, os interesses da sociedade e ideais do indivíduo entram em choque. Mas Antenor percebe a vantagem de aderir cordialmente ao sistema social e suas regras. O sujeito inadequado transforma-se em homem cordial. O país fictício de João do Rio, este “país do bom senso”, interessou à Cia. da Revista por apresentar um recorte da formação social brasileira. E também por tratar-se de uma alegoria em franco diálogo com a linguagem revisteira. Assim, depois do processo de montagem de Cabeça de papelão, a Cia. da Revista avaliou que outras cabeças poderiam surgir deste mesmo País do Sol, dando continuidade à sua busca artística; de olho no futuro, mas com os dois pés no presente. É daí que nasce um novo projeto de pesquisa: a Cia. se lança na obra dos Buarque de Holanda. A obra musical de Chico e a fricção dos personagens buarqueanos com a obra do pai, Sérgio, foram o tema de um segundo projeto de fomento, em 2013. Em 2014, a Cia. estreia no Centro Cultural Banco do Brasil o musical Ópera do malandro, fruto desse estudo. A Ópera revelou camadas de um Brasil sombrio: a ditadura de Vargas, tempo em que se passa a ação; a ditadura militar, época em que foi escrita a peça; e hoje, nossa ditadura do consumo, ou como diz a personagem Teresinha, premonitoriamente: “a multidão vai estar é seduzida”. Multidão seduzida por marcas, pelo desejo de ostentar e acumular. O Teatro de Revista, referência constante da Companhia na construção de seus espetáculos, foi um gênero que contribuiu diretamente para a formação cultural do Brasil. Podemos dizer que difundiu nossos costumes através de espetáculos em quadros que satirizavam a sociedade através do duplo sentido, de muita música, da comicidade e do visual exuberante. Os grandes cenários, a pouca roupa das vedetes e o domínio da cena teatral eram as qualidades exploradas para revelar a hipocrisia da sociedade, fazendo-a rir de si mesma através de uma realidade superdimensionada. O gênero, categorizado como popular, atendia a todas as camadas sociais: a Revista sempre teve o objetivo de “servir” a todos. Foi o gênero mais expressivo que se consolidou em mais de cem anos de história. Minha busca como diretor sempre foi aliar linguagens e pensamentos aos acontecimentos contemporâneos. O Teatro de Revista fazia isso, mas de forma direta, sem expor as contradições. Não acredito em uma “volta aos velhos tempos”, com escadarias e montagens grandiosas. O olhar para os dias de hoje parte da revisão das relações sociais. Buscamos uma “Revista contemporânea”, uma forma de se comunicar com o público através das convenções e estruturas que esse gênero trazia para a cena, mas com o olhar apurado ao passar em revista as ações e conceitos humanos, sociais e políticos. Somos um país mestiço, com memória curta e opiniões encerradas. Somos Antenores com suas cabeças de papelão e certezas inabaláveis. Somos cordiais e violentos; nossa cordialidade é invasiva e imperativa, portanto violenta. Aqui, o abandono do Estado torna a fraternité um termo impraticável. O individualismo, o “salve-se quem puder” parece ser a única solução possível. Percebo que o momento em que vivemos está se 283 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 tornando o início de um ponto de combustão, gerado por pouca discussão e muita informação externa: a velocidade do tempo se constrói com saltos e, em breve, poderemos estar perdidos. E então, um lapso de consciência revelará o precioso tempo perdido. Que atravessamos fronteiras sem nos darmos conta quais foram as perdas pelo caminho. E cabe ao teatro, desde já, antever e resgatar as perdas futuras. Resgatar esses olhares, esses momentos; cabe ao teatro sua função mais “arcaica”: comunicar e provocar. Discutir e reagir. Contraditoriamente arcaico e vanguardista. E, certamente, fazer tudo isso em “bando” torna o discurso mais potente e afirma um desejo de estar no mundo fraternalmente. Sempre. De outro modo, mas amparado pela mesma convicção, parafraseando Chico Buarque de Holanda, em Deus lhe pague: “Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir/ E pelo grito demente que nos ajuda a fugir”. Máskara, uma aventura goiana, por Robson Corrêa de Camargo88 Resumo: Este trabalho relata algumas aventuras na construção de uma companhia de teatro de grupo na cidade de Goiânia, entre os anos 2002-2015. Apresenta algumas características do teatro goiano e de sua complexidade. Descreve montagens do Grupo Máskara e suas aventuras. Palavras-chave: Máskara, teatro de grupo, teatro goiano Abstract: This paper reports some particularities in the process of building a collective group theater in the city of Goiania, between the years 20022015. Presents some characteristics of Goiás theater and its complexity. Describes some performances of the Group Máskara and its adventures. Keywords: Máskara, collective group theater, theater at Goiás 285 O nome Máskara anuncia o Grupo de Pesquisa de Espetáculo fundado em 2002 na Universidade Federal de Goiás. Seu nome se inspira no árabe máshara, significando bufão, coisa ou pessoa ridícula; ou ainda, reprodução estilizada do rosto humano ou animal com que os atores cobrem o rosto ou parte dele, na caracterização de suas personagens; também fantasia, disfarce; ou a expressão fisionômica do ator, a qual reflete o estado emocional da personagem que ele interpreta. A “máscara” define também, em rituais e festas, tanto o que cobre a cabeça e o corpo, como o portador, a personagem que encarna. A máskara carrega seu significado e seu contexto. Diretor e crítico teatral, coordena o programa de pós-graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás. Trabalhou como crítico teatral nos jornais Folha de S. Paulo (1983-1987) e Movimento (1976-1977). 88 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Assim o grupo Máskara apresenta uma ou mais duplicidades, partes e o todo, e um objetivo, o de apresentar uma realização humana social, num meio cultural onde o capitalismo empurra o ser humano cada vez mais para o exercício do self e da individualidade, apartando-o do seu ser coletivo. Através da arte, nada mais, criar um espaço de vivência coletiva e compartir seus devaneios com o público. A história do grupo Máskara em Goiânia se inicia com minha chegada a essa cidade, após haver sido aprovado no primeiro concurso público da área de Artes Cênicas da Universidade Federal e Goiás (UFG). Goiânia tinha, e ainda tem, um movimento teatral forte e tradicional para uma cidade de um milhão e cem mil habitantes, àquela época. O recém-fundado curso de Artes Cênicas da UFG, iniciado em 1999, dava seus primeiros passos. O teatro goiano já se manifestava de várias formas, mas todas não caberiam neste breve artigo pois ele existe há mais de cem anos. Aqui existe um teatro comercial, formado por três ou quatro companhias de teatro que se especializam em um público infantil e que se apresentam também em vários lugares do Brasil, para um público de até duas mil pessoas, geralmente com um repertório formado por adaptações que se pretendem similares aos dos filmes clássicos da Disney. Existe, também, uma série de tentativas de produções teatrais, mas poucas com um viés de um trabalho coletivo e apresentando propostas sociais e artísticas. Mesmo amador, financiado às vezes por pequenas verbas de um ou outro edital, os atores e produções goianas vivem pulando entre múltiplas tentativas e grupos, até que alguma consiga se efetivar. Muito longe ficaram os tempos em que os artistas fundamentavam sua prática em propostas manifestas que procuravam definir novas formas de vida e de arte. Poucas tentativas há de um teatro experimental, de grupo e que organize um elenco que tenha existência constante em torno a uma proposta estética determinada e inovadora e que se fundamente em torno a um ideal estético de um coletivo teatral. Uma proposta nesta perspectiva, que procure formar um público em torno a novas experiências de vida e abrir novas possibilidades estéticas na formação e na relação com a plateia, como é de se esperar, não arregimenta um grande público e exige assim uma relação amadora de seus artistas, pois não consegue subsistência autônoma. Em nossa formação, e para que este empreendimento possa continuar, a maioria dos artistas envolvidos no Máskara desenvolve sua atividade profissional como professores da Rede estadual ou municipal de Ensino, tentando trazer também esse público para nossas experiências. Isto nos deixa à vontade para fazer escolhas fundamentadas em uma pesquisa estética. O primeiro projeto do Máskara definia seus objetivos de pesquisa e também o processo de montagem de seus espetáculos, no “[...] entendimento do processo criativo e no estudo dos instrumentos de sua efetividade”. Entende-se também que a práxis teatral processa-se como método de conhecimento interativo, crítico e modificador do ser humano. Sua dialética se estabelece entre o ator, agente que produz a personagem, e o ator-espectador, agente partícipe do espetáculo, preso ao objeto pelos sentidos, mente, corpo e suas emoções. Nesta relação se estabelece um conhecimento produtivo ao qual chamamos arte. A experiência humana se organiza não apenas na “produção dos signos” como linguagem, mas nas ações das “qualidades sentidas” pelo ser humano. É no universo destas qualidades sentidas que se produz o ato teatral coletivo, primeiro experiência depois conhecimento. Esta ação de qualidade de vida se organiza e se constrói, entre seus agentes, como um processo de vida, como uma sucessão de experiências, permitindo-se contínua e frutuosa reconstrução. A práxis teatral é vida duas vezes vivida, enquanto ato e enquanto fato, enquanto presença e memória construída. Este processo que o Máskara constrói em sua relação com o público. A representação teatral, em sua história, é um ato que pertence, antes de mais nada, a tradição da oralidade e da gestualidade. A palavra escrita, no teatro, é um acidente ocasional em sua história. Mesmo na era de Gutemberg, o espetáculo não pode existir enquanto palavra escrita; a escrita, na história do teatro, é um fenômeno anterior e posterior ao espetáculo. O texto dramático impresso é apenas um registro, antítese do ato espetacular. Ler e escrever são fenômenos individuais e tardios em nossa sociedade; a oralidade é comunal e existe desde sempre na relação social humana. Assim também o é a gestualidade. A fala é sempre presente, depende da oralidade e da gestualidade, compostos orgânicos interdependentes e complementares. A fala convida a participação e ao diálogo, assim como exige a gestualidade. A minimização da participação da gestualidade e da musicalidade na oralidade, tanto na vida cotidiana como na arte teatral, vem se desenvolvendo nas culturas ocidentais, principalmente a partir da generalização da palavra impressa. A palavra impressa impõe o desenvolvimento dominante de um pensamento e uma percepção linear, que se antepõe ao pensamento imagético. Este é o terreno da arte. 287 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 O exame da relação orgânica primordial entre gesto e fala, som e movimento, ritmo e respiração, do pensamento corporal e imagético, na estrutura e na gênese do ato de representar, são fundamentais na determinação da presença cênica e na construção da experiência teatral como ato humano. A oralidade, elemento primeiro da arte do teatro, em sua relação social direta, como qualidade sentida e processo de vida, estabelece-se na relação humana, um processo didático, narrativo, mnemônico e, antes de mais nada, de “expressão do pensamento”. O esquema rítmico e imagético que se produz na oralidade é concreto e humano, produtor simultâneo de imagens e de corporeidade, “[...] uma mnemônica expressão do pensamento” (Jousse, 2000, p. 127). A palavra impressa, hoje dominante, sem som e sem gesto, tem corrompido e/ou impedido o desenvolvimento desse processo pleno da oralidade na vida cotidiana e no teatro. O gesto, elemento fundamental na oralidade, procedimento verbo-motor, é produto da relação inteira do corpo, da mente, das sensações, da cultura, da memória e da história. Não há oralidade sem gestualidade. Nosso processo de atuação se estabelece nas seguintes premissas: a percepção de que o processo de interpretação do ator tem se originado no teatro muitas vezes incrustado nas correntes estéticas envolvidas (naturalismo, realismo, teatro épico, teatro antropológico etc.) ou em características ideológicas, psicológicas e culturais, mas não na elaboração de um processo sistemático de avaliação e compreensão humana, na investigação de como o corpo funciona como detonador e receptor deste processo. O corpo como realidade material humana, como aparato técnico e cultural dos homens e mulheres envolvidos na produção deste objeto artístico. Não há emoção, memória, imagens e pensamento sem atividade verbo-motora e vice-versa. Surge daí a seguinte pergunta: de que maneira estes processos humanos conseguem produzir mudanças na sensação e vivência de tempo, espaço e memória em seus partícipes. O funcionamento do pensamento como um fluxo de imagens sensórias produzidas pelo corpo motor determina o processo de aprofundamento da complexidade sistêmica da produção teatral. Este é nosso principal foco de investigação: o corpo em movimento na produção destes estados de consciência sensório-motoras e de suas imagens. Surgiu daí nosso primeiro desafio, o texto escolhido para encenação, como objeto do primeiro trabalho, foi Esperando Godot, de Samuel Beckett. O texto foi escolhido pelas questões filosóficas que aborda e pela relação paradoxal que estabelece entre texto que se desenvolve nos limites do “não” dramático e no jogo teatral. Numa perspectiva pragmática, de tentativa e erro, através de ensaios, sistematizou-se a ação e discussão dos procedimentos que forem sendo adotados, a verificação de sua adequação a cada ator-personagem dentro do texto escolhido. O foco de observação foi a construção da voz e da gestualidade orgânica, na perspectiva da elaboração da dramaturgia do ator e da partitura da personagem na montagem e apresentação do espetáculo. Beckett nos interessa até hoje pela maneira singular que aborda o ser humano. Seus textos falam de múltiplos sentidos, de tortura, de ausência, de solidão, do humano, abrindo possibilidades sem fim de enfrentamento do fenômeno teatral a partir da relação palavra e cena, público-autor. Beckett apresenta o sem sentido do teatro, para uma busca de sentido, com as armas desafiadoras do fenômeno dramático. Beckett nos tem aberto várias possibilidades. Apresentamos nossas produções no Festival Beckett de Buenos Aires, a convite: Companhia, adaptação teatral do romance, e Que? Onde? Estamos indo agora participar do XIII Festival Independente de Teatro Íntimo do México (Merida, DF e Queretaro). Nosso repertório atual apresenta também Curta Beckett, um mix de textos de Beckett: Improviso de Ohio, Esboço para rádio I, Vai e vem e trechos de Textos para Nada IV. Em nosso horizonte ainda preparamos a montagem de A noite dos assassinos de José Triana. 289 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Referências bibliográficas CAMARGO, Robson. MÁSKARA. Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa do Espetáculo. Projeto de Trabalho. Manuscrito, 2002. JOUSSE, M. The anthropology of geste and rhythm. Durban: Mantis Publishing, 2000. MATE, Alexandre. Companhia, espetáculo que intenta à viagem. (Crítica sobre a apresentação de Companhia no FESTIVALE - São José dos Campos - SP), in: Blog Máskara. http://maskaranucleodepesquisa. blogspot.com.br/. Acesso em 4 de fevereiro de 2015. REINATO, E. J. Beckett com pés de Curupira - O Grupo Máscara e as leituras e recepções de Beckett no Interior do Brasil. Ometeca (Corrales, N.M.), v. 19-20, p. 12-19, 2014. REINATO, E. J. “Beckett com pés de Curupira - O Grupo Máscara e as leituras e recepções de Beckett no Interior do Brasil”, in: Karpa: journal of theatricalities and visual culture, v. 1, p. 1, 2013. REIS, Adriel Diniz. O tempo performático de Samuel Beckett: a presença da memória Imagética em Esperando Godot. Início: 2013. Dissertação (Mestrado em Performances Culturais) - Universidade Federal de Goiás. Ifigênia: os sons como elementos de composição cênica, por Marcelo Lazzaratto e Rafael Zenorini89 Resumo: O presente artigo tece considerações a respeito da sonoridade do espetáculo Ifigênia, da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico: o diálogo entre o acústico e o eletrônico como um dos elementos fundamentais de sua composição estética. Palavras-chave: Teatro, tragédia, improvisação, campo de visão, coro, música e sonoridade. Abstract: This article presents considerations about Iphigenia spectacle of sound, Elevador de Teatro Panorâmico: Dialogue between the acoustic and the electronic as a key element of its aesthetic composition. Keywords: theater, tragedy, improvisation, sight, choir, music and loudness. 291 Foto de João Caldas. Cia. Elevador Panorâmico de Teatro. Elenco em Ifigênia. Marcelo Lazzaratto é diretor da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico e professor da graduação e da pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da UNICAMP. Rafael Zenorini é graduando em Música no Instituto de Artes da UNESP, diretor musical da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, sócio-fundador da plataforma Ihearyou. 89 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Em 2011, iniciava-se um dos processos mais desafiadores da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico: a montagem do espetáculo Ifigênia. Baseada em Ifigênia em Áulis, tragédia grega de Eurípedes, a proposta era, através do Campo de Visão90 (jogo improvisacional coral sistematizado e desenvolvido por Marcelo Lazzaratto), construir a encenação sobre a dramaturgia de Cassio Pires. A música e os sons, sendo elementos da composição cênica, seguiriam as mesmas regras estabelecidas e participariam da construção de cada novo espetáculo. A encenação partia do seguinte pressuposto: tudo se desenvolveria através do coro, elemento fundamental das tragédias gregas, pode-se mesmo dizer, sua origem e seu sentido. Queríamos com isso fortalecer e aprofundar nosso questionamento a respeito da relação indivíduo e coletivo, tema nevrálgico, ao nosso modo de ver, da sociedade contemporânea e também do sistema improvisacional Campo de Visão. O espetáculo foi concebido em oito cenas e entre elas uma espécie de intertítulo que, de maneira lírica, anunciava o que viria na cena seguinte. Preservamos o fio narrativo do original de Eurípedes, mas ampliamos, amplificamos, aumentamos as “vozes” do coro. O coro por vezes assumia uma voz narrativa à la Brecht; em algumas vezes se tornava mesmo uma voz profética que sentenciava as ações dos personagens; em outros momentos uma voz dos guerreiros gregos ansiosos pela batalha; ou as vozes das mulheres de Cálcides lamentando as desditas da família de Agamenon; por outras ouvia-se um Coro Agamenon ou um Coro Ifigênia… Essa ênfase dada ao coro exigia uma construção poética própria, com características próprias. O que se veria na cena não seria uma história contada de maneira dialógica a partir da voz de personagens como em uma dramaturgia convencional: mas sim, várias vozes que se manifestariam através do coro e para o coro de espectadores. Diálogos e solilóquios, cantos e canções seriam gestados e enunciados pelo coro. E de maneira improvisada... a cada dia estabelecer-se-ia uma relação diferente entre elas. Para darmos conta desse imaginário pouco usual sentimos que precisávamos conceber um mundo… Todo um mundo, com características, convenções, regras, comportamento e sonoridade próprios. Assim, cenografia, figurino, adereços, iluminação e sonoridade deveriam ser processados de acordo com esses preceitos. Que espaço Para saber mais a respeito do Campo de Visão ver: Campo de Visão: exercício e linguagem cênica, de Marcelo Lazzaratto. São Paulo: Ed. Escola Superior de Artes Célia Helena, 2011. 90 cênico abarcaria a praia de Áulis, o mar, as naus ancoradas, a espera e principalmente a ausência de vento? Que vestes serviriam tanto ao masculino como ao feminino uma vez que qualquer ator e atriz poderiam a qualquer momento interpretar qualquer personagem e ao mesmo tempo fazer parte de um coro? Quais seriam os objetos essenciais à cena? Como iluminar um coro que se movimenta livremente pelo palco, uma vez que não há marcas no espetáculo? E por fim qual a sonoridade que a contemporaneidade faz vibrar a ancestralidade do mito nos dias de hoje? Para, ao mesmo tempo, conceber e instaurar esse universo, pensamos que deveríamos, de fato, na primeira cena, realizar uma criação de mundo. Convidar o espectador a entrar nesse universo, oferecer a ele balizas para bem se relacionar com os elementos estéticos que estávamos formulando. Da ausência de luz ao primeiro som que ecoa no espaço. Das frequências cósmicas à batida do tambor arquetípico. Dos sintetizadores ao sopro da flauta. Da teoria das cordas às cordas da viola da gamba. E assim fizemos... Percebemos que ao criarmos essa primeira cena tínhamos elencado uma série de sonoridades que serviriam de guia ao resto da encenação. A nossa cosmogonia nasceu da mãe Eletrônica e do pai Acústico. E seus filhos nos ofereceram os timbres, os tons e os andamentos de “Ifigênia”. A cada novo ensaio, tínhamos novas descobertas: um gesto, um timbre, um instrumento. Revelar o que a fábula trazia nas suas palavras, as melodias, a prosódia, as entonações, fazia com que nos aproximássemos do mito e descobríssemos pouco a pouco a vibração de cada personagem. Agamêmnon, grave e profundo. Ifigênia, leve e tépida. E assim, colocamos cada entidade no seu respectivo ponto do espectro de frequências. No entanto, mapear a vibração de cada personagem era só o começo da construção da nossa paleta sonora. Precisávamos escolher os timbres, os instrumentos que nos contemplassem e dialogassem com a atemporalidade da encenação. E dos sintetizadores aos tambores de pele animal, elencamos cerca de vinte instrumentos musicais para que dois músicos improvisassem ao lado dos nove atores no palco. . Viola da Gamba . Flauta de Madeira . Caxixi . Agogô . Sintetizador . Caixa do Divino . Alfaia . Sino Tibetano . Pandeiro . Pin . Violino . Flauta Doce . Didgeridoo O trabalho rítmico, as pulsações e o batimento cardíaco de cada personagem contou com o auxílio do percussionista Alexandre Caetano que 293 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 nos conduziu pelas sonoridades e métricas, orientais e ocidentais, das mais variadas possíveis, pois sabíamos que precisávamos nos instrumentalizar e ter no corpo a prontidão para qualquer estímulo que viesse do outro, sabendo que o ritmo é o primeiro viés de gera empatia entre dois seres. Aos poucos, cada uma das oito cenas foi adquirindo um tom próprio. O que se contava naquela cena, o que nela acontecia, se o acontecimento era regido por Agamenon ou por Clitemnestra, por Aquiles ou por Ifigênia; se a deusa Ártemis assumia o controle das coisas ou se a ouvíamos sutilmente por trás das mazelas humanas; tudo nos oferecia elementos para que ouvíssemos e criássemos uma textura sonora particular. Assim, cada cena se apresentava com sua tessitura sonora própria, mas que poderia variar de acordo com o jogo improvisacional que se estabelecesse entre os atores e entre os atores e os músicos naquele momento. Essas “camas” sonoras foram compostas durante os ensaios e gravadas previamente. Elas serviam como instauradoras de uma atmosfera específica aquele ponto da fábula. Serviam como baliza, norte, eixo... mas, uma vez criada tal atmosfera, a maneira que as coisas aconteciam, a movimentação dos atores, o enunciado das palavras, a relação entre coro e coro/protagonista, os instrumentos utilizados, sua cadência e intensidade tudo ficava à mercê das escolhas dos atores e dos músicos interagindo profundamente em favor de se contar bem a história de Ifigênia. Foto: João Caldas. Cia. Elevador Panorâmico de Teatro. Elenco em Ifigênia. A última etapa do processo consistia em melodizar pequenos trechos do texto que entrecortavam as cenas, os intertítulos. Chamados de Ponto Zero, esses pequenos intervalos eram ao mesmo tempo um momento de respiro, de entendimento e a preparação para o que estava por vir, como quando você está em um trampolim prestes a saltar. O trabalho começou com uma extensa pesquisa sobre os pés gregos. As referências métricas, as durações de cada sílaba, fundamentaram o início da criação dos cantos. Os versos que se seguem anunciavam a cena 3 do espetáculo, momento em que Menelau vem tirar satisfações com seu irmão Agamenon perguntando-lhe porque recuara da decisão de sacrificar sua filha à deusa Ártemis: O ar O frio O sol Águas infinitas Eu sou o sol e a terra Eu sou o timbre que não se pode ouvir 295 A linha melódica do intertítulo, descrita nesta partitura, era entoada pelo coro e conduzida pelo som da viola da gamba e da alfaia. Em outros momentos, outros instrumentos conduziam o canto ou até mesmo sons eletrônicos compostos anteriormente. Para finalizar, talvez o ingrediente mais significativo da sonoridade no processo de criação e apresentações de Ifigênia, seja a questão da “presença”. Como se trata de um espetáculo improvisado sob as regras do Campo de Visão, era fundamental, além da profunda integração entre atores e músicos, um “estar ali” absoluto. Esse fato muito interferia na qualidade da execução e principalmente na contribuição da construção poética que poderia surgir dos elementos sonoros e musicais. Como a poética a Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 cada dia poderia se estabelecer com matizes diferentes, a qualidade da “presença” determinava e muito o valor das opções feitas pelos músicos e atores e fortalecia ou não, o desenrolar dos acontecimentos da trama. Os músicos, assim, deveriam se comportar como verdadeiros performers com seus corpos conscientes, articulando conceitos e sensações no aqui agora da cena. No decorrer das apresentações, após as primeiras temporadas e as viagens pelo Brasil, sentíamos que o coletivo ficava cada vez mais afinado, a escuta estava mais aguçada e a conexão acontecia pela sensibilidade. O Campo de Visão se consolidava e chegava no seu estado mais potente, ampliando a percepção de todos os sentidos, fazendo com que de fato nos tornássemos ao mesmo tempo Um e Vários. Foto: João Caldas. Cia. Elevador Panorâmico de Teatro. Elenco em Ifigênia. 297 Referências bibliográficas CAGE, John. Silence – lectures and writings. London: Marion Boyars, 1973. COOPER, G.; Meyer, L. The rhythmic structure of music. Chicago: Chicago University, 1960. EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, As fenícias, As bacantes. Tradução: Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. LAZZARATTO, Marcelo R. Campo de Visão: exercício e linguagem cênica. São Paulo: Escola Superior de Artes Célia Helena, 2011. PIRES, Cássio. “Ifigênia”, in: Sobe? Ano II, n.2. São Paulo, 2012. REINACH, Theodore. A música grega. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. TRAGTEMBERG, Lívio. Música de cena. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 O teatro hip-hop como linguagem, Roberta Estrela D’Alva91 Resumo: Há quinze anos o coletivo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos iniciou uma pesquisa que teve como ponto de partida o diálogo entre duas linguagens – o teatro épico (mais precisamente o difundido pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht) e a cultura hip-hop (cultura popular urbana nascida no começo dos anos 1970 nos Estados Unidos), dando origem a uma terceira linguagem intitulada “teatro hip-hop”. Os resultados práticos dessa pesquisa, dentre eles, oito espetáculos, intervenções urbanas, além de publicações literárias e audiovisuais, podem ser sintetizados e estudados a partir de uma figura central no trabalho do Núcleo Bartolomeu, o atorMC, intérprete que traz na sua constituição características do ator-narrador do teatro épico e do MC (acrônimo para Mestre de Cerimônias) um dos pilares da cultura hip-hop. A partir da análise de algumas características do espetáculo Acordei que sonhava (2005) este artigo observa o momento do surgimento do ator-MC e algumas de suas características e dinâmicas constitutivas. Palavras-chave: teatro hip-hop, ator-MC, depoimento, autorrepresentação. Abstract: Fifteen years ago, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos started a research which came from the dialogue of two kinds languages: epic theater (more precisely the one broadcasted by german playwright Bertolt Brecht) and hip-hop (urban popular culture born in the early 70’s in the United States), giving rise to a mixed language called the “hip-hop theatre”. Practical results of this research, which resulted in eight plays, performances projects of urban intervention, literary publications and audiovisual equipment, can be synthesized and studied from a central figure. in the work of this research center, the actor-MC, artist who keeps some features from actor-narrator of epic theater and from MC (acronym for Master of Ceremonies, one of the pillars of Hip-hop) in his formation. From the analysis of some of Acordei que sonhava show (2005) this article looks at the emergence of actor-MC and some of its characteristics and constitutive dynamics Keywords: hip-hop theater actor-MC, testimony, self-representation. 91 Roberta Estrela D’Alva é bacharel em Artes Cênicas, com Habilitação em Interpretação pela ECA/USP e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atriz-MC, ativista, diretora, slammer, pesquisadora. Fundadora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e do coletivo artístico Frente 3 de Fevereiro, que desenvolve ações simbólicas, livros, shows, música, documentários e colaborativa pesquisa sobre o racismo na sociedade brasileira. Autora do livro Teatro hip-hop - a performance poética do ator-MC (Perspectiva, 2014). Foto de Bob Sousa. Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Luaa Gabanini, Roberta Estrela D’Alva e Eugênio Lima em Antígona recortada – contos que cantam sobre Pousopássaros. Acordei que sonhava: o nascimento do ator-MC Em 2001, a partir do convite da Companhia São Jorge de Variedades92 para participar do edital de ocupação do Teatro de Arena Eugênio Kusnet com mais outras duas companhias que formariam o coletivo Harmonia na Diversidade93, um grupo de artistas, que inicialmente havia se encontrado para realizar um único espetáculo, Bartolomeu que será que nele deu?, decide prosseguir com a pesquisa de junção de linguagens, montar uma nova obra e se tornar, então, uma companhia: o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Durante o processo de pesquisa e montagem de seu segundo espetáculo, Acordei que sonhava, livre inspiração em A vida é sonho, de Companhia criada em 1998 com integrantes da Escola de Arte Dramática e da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É um importante núcleo de pesquisa teatral paulistano, com um trabalho em torno da tradição do teatro político e de base experimental, sendo considerada uma “companhia-irmã” do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. 92 A proposta do coletivo Harmonia na Diversidade se baseava na ocupação e em uma gestão coletiva participativa do Teatro de Arena Eugênio Kusnet. A convivência criativa entre esses grupos com linguagens diferentes e o diálogo entre eles eram os objetivos centrais. Além do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e a Companhia São Jorge de Variedades, faziam parte do projeto a Companhia Isla Madrasta e a Companhia Bonecos Urbanos. 93 299 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Pedro Calderón de la Barca, novas descobertas estéticas foram emergindo, tomando corpo e criando características específicas que se estruturaram e se tornaram linguagem. É nesse contexto que surge pela primeira vez algo que se tornaria central no trabalho do Núcleo: o conceito de ator-MC. O ator-MC é um artista híbrido que traz na sua gênese as características narrativas do ator épico (distanciamento, o antiilusionismo, o gestus, a determinação do pensar pelo ser social), mixado ao autodidatismo, à contundência e ao estilo inclusor, libertário e veemente do MC. Os pontos fundamentais dessa fusão, que resultam no ator-MC, são a autorrepresentação e o depoimento, que, como estruturas da narrativa, configuram-se como célula fundamental para a concepção dramatúrgica e a criação das personagens, discursos e de performances poéticas dentro do teatro hip-hop. São características definitivas do ator-MC o levantamento e defesa de um ponto de vista claro por meio da elaboração e apresentação de um testemunho que chamamos de depoimento e a consciência de seu papel social e político, aliada ao exercício do intransferível direito de contar sua própria história e da sociedade na qual está inserido que consiste na autorrepresentação. O ator-MC, como voz do teatro hip-hop, é um ator-narrador que incorpora os procedimentos estéticos do MC e da cultura hip-hop em seu processo criativo e em sua performance e que, visto não se utilizar exclusivamente das técnicas de atuação vindas da área teatral, acaba criando especificidades de linguagem em suas resultantes expressivas que transitam, se entrecruzam e até mesmo se contrapõem entre os campos do teatro e a cultura das ruas. Dessa maneira, a voz do MC, se materializa dentro da performance do ator-MC, afetando-a em sua composição, em seus procedimentos sintáticos de montagem e todos os elementos que compõem a expressão de sua oralidade, como o gestual e o ritmo, trazendo novas possibilidades de atuação. Todas essas características foram emergindo e sendo percebidas organicamente a partir de uma necessidade cênica real, durante a montagem de Acordei que sonhava. A obra que serviu de ponto de partida para esse espetáculo, A vida é sonho, conta a história de Segismundo, príncipe herdeiro da Polônia, renegado pelo pai e confinado desde a infância em uma torre, criado como um “homem-fera”. A partir desse mote, segundo Claudia Schapira: [...] foi traçado um paralelo com o processo de enclausuramento do povo brasileiro, um caminho direto para destrinchar os mecanismos de aprisionamento, de exclusão do sistema vigente que condena a grande maioria da população à prisão da ignorância, seja através do bombardeiofeito por uma mídia alienante e emburrecedora [...], seja através da negação do acesso ao conhecimento (verdadeira arma de libertação) ou, ainda, mediante ao sucateamento do ensino público e da desqualificação da cultura e da arte como necessidade fundamental à formação de um povo. No espetáculo, a cultura hip-hop era ferramenta de depoimento, resistência e autorrepresentação na mão dos filhos “sem pai” nascidos nos “bairros-dormitório” dos grandes centros urbanos, na voz do protagonista, o príncipe Segismundo, que na montagem assumia o papel de porta voz da periferia”94 O ponto central desse processo, no que diz respeito à interpretação e ao texto em ação, chamados aqui de “performance poética”, foi justamente a transposição de linguagens, a maneira pela qual num processo tradutório o arcabouço da cultura hip-hop e seus elementos se materializaram na ação de um ator que os empregou numa personagem de teatro, deixando de ser somente um ator, para se tornar um ator-MC. Se, no espetáculo Bartolomeu, Que será que nele deu?, as funções eram bem definidas e cada artista atuava em sua “especialidade” (por exemplo, o DJ discotecava, os atores atuavam, os MCs “rapeavam” e faziam a “ponte” com o DJ, os dançarinos dançavam etc.), em Acordei que sonhava houve um momento crucial em que, num movimento antropofágico, os níveis de encontro entre as duas linguagens se aprofundaram, e seus pontos de contato se interpenetraram, borrando fronteiras e por vezes até mesmo extinguindo-as. Todo esse processo se deu no decorrer de quase três anos de muitos estudos práticos e teóricos, construção e desconstrução de cenas à exaustão, sessões intermináveis de depoimentos de todas as personagens feitas por todos os atores, além de muitas horas atráz dos toca-discos à procura dos depoimentos sonoros. Como nos processos em que a mestiçagem se dá, como quando um povo se encontra com o outro e tem de aprender uma nova língua para que haja comunicação, os atoresMCs tiveram de trazer para seus corpos, mais radicalmente, a linguagem e o ritmo, a pulsação, todos os novos elementos que a cultura hip-hop 94 C. Schapira, Lendas Urbanas. Trata-se de projeto do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos contemplado pela 4a edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, no ano de 2004. 301 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 apresentava à nova maneira de fazer teatro a qual o núcleo estava se propondo a investigar. Os procedimentos da representação e de criação cênica foram sacudidos pelo hip-hop, ao mesmo tempo que este se impregnava do universo teatral. Um dos elementos, sempre presente, que muito representa essa incorporação de linguagens é o uso do microfone, elemento constitutivo da performance do MC como um prolongamento de seu corpo e de sua voz. Dessa maneira, em nenhum momento ele é escamoteado ou tratado como elemento externo, ou seja, ele é evidenciado, passa a fazer parte da cena não só como elemento de amplificação da voz, mas como signo que evoca a autorrepresentação, poder, comando, um “bastão de força” para quem o empunha. Porém, ainda que esteja incorporado à performance, o microfone é um objeto que traz estranhamento, que interrompe a ação natural, portanto, seu uso já traz consigo um efeito antiilusionista, o chamado Verfremdungseffekt (efeito de distanciamento) característico do teatro épico (BRECHT, 2006, p.139)95. Além disso, o uso do microfone traz a necessidade de um novo comportamento corporal, pois como o som da voz é intermediado e sai das caixas amplificadas e não diretamente do corpo do ator, o foco de atenção do espectador se desloca no espaço, obrigando assim a uma expansão e dilatação do gesto, para que o público saiba a quem se referenciar, por exemplo, em uma cena musical em que várias pessoas estão com microfone cantando ou falando. Portanto, durante sua performance, o ator-MC traz constantemente a veemência, o tônus da urgência presentes na atuação do MC. Quando ele está com o microfone, nesse momento deixa claro quem conduz a ação, dá o ponto de vista e ciceroneia o público. Depoimento pessoal: memória e autorrepresentação Como já afirmado, o depoimento passou a ser uma metodologia utilizada como ponto de partida para todos os processos do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Dentre suas variações e diversas maneiras de realizá-la, uma das primeiras, principalmente no início de um processo 95 O efeito chamado de “distanciamento” (Verfremdungseffekt), ou V-Effect, tem a função de desnaturalizar os fatos a partir de uma postura cênica onde o ator, consciente da função social do teatro, “mostra” ou “demonstra” esses fatos ao público estabelecendo assim com ele uma relação crítica. “Distanciar’ um fato ou caráter é, antes de tudo, simplesmente tirar desse fato ou desse caráter tudo o que ele tem de natural, conhecido e evidente e fazer nascer em seu lugar espanto e curiosidade [...]. Distanciar é historicizar, é representar os fatos e as personagens como fatos e personagens históricos, isto é, efêmeros.” Patrice Pavis. Dicionário de teatro, 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 119, prefere a denominação de efeito de estranhamento. de pesquisa, é o “depoimento pessoal” que basicamente consiste em que cada ator-MC ou participante do processo prepare e apresente uma narrativa que conte a sua própria história de vida, sua trajetória pessoal. O objetivo principal e mote de direcionamento desse exercício é que os atores se apresentem, digam quem são e tragam a sua visão de mundo. O depoimento pode ocorrer desde sentando-se em uma cadeira e narrando fatos da sua vida pessoal considerados relevantes, determinantes ou até mesmo em uma cena elaborada com adereços, música, objetos pessoais como roupas, brinquedos, fotos ou outros elementos. Em qualquer um dos casos, esse já é um primeiro momento em que a performance poética acontece, já que esta se dá em presença, no momento em que o passado se atualiza no corpo de quem performa. Nesse processo de “colagem intelectual, afetiva e humana” ao relatar o acontecido, o fato é atualizado perante quem assiste à sua materialização verbal e gestual, quanto à narrativa, por mais simples que seja, passa por um processo de estetização cênica, simplesmente pelo fato de haver uma seleção, uma edição dos acontecimentos a serem narrados e da escolha de como eles serão relatados, em que ordem, com que tom de voz, quais vestimentas, enfim, com todos os elementos que compõem a narração, da qual nos fala Paul Zumthor: Somos seres de narrativa, tanto quanto de linguagem. À medida que me atribuo a tarefa de reter um pedaço do real passado, minha tentativa é, em si mesma, ficção. Se formo um discurso ficcional, para comunicar o resultado, ele será necessariamente narração, quaisquer que sejam talvez minhas precauções estilísticas visando à nudez do relato. Este caráter da história, sempre tenho tendência a assinalá-lo mais do que apagá-lo. [...] O que se produz assim, parece-me na apreensão dos fatos históricos, não é muito diferente do que se produz para cada um de nós no modo como se percebe, no dia a dia, sua própria existência. Todos nós percebemos nossa vida através de uma ficção – e essa ficção é nossa vida (2005, p. 48-9). Durante o processo de pesquisa e ensaios de Acordei que sonhava, presenciamos depoimentos pessoais diversos. De fato, esse é um momento em que a autorrepresentação é levada ao extremo e inevitavelmente as histórias são contadas a partir do ponto de vista e demandas do presente, e o contexto em que vivem e quem são esses narradores no momento tem influência determinante na forma e no conteúdo do que será apresentado no depoimento, já que: “Do ponto de vista social, considera-se sempre uma 303 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 relação de contexto que se aplica como uma força constitutiva daquilo que é transformado em texto, daquela comunicação que performa o universo narrado” (FERREIRA, 2004, p. 118). A ocasião do meu depoimento pessoal nesse processo, para citar um exemplo, coincidiu com um turbulento processo de mudança de residência pelo qual eu passava. Aproveitei as caixas de papelão com objetos pessoais que estavam sendo transportadas para o novo endereço e, em meio à mudança que “invadiu” o horário do ensaio, descarreguei parte delas no teatro em que ensaiávamos. Meu depoimento se deu em meio a essas caixas e, conforme eu as abria e encontrava os objetos, contava minha história e relacionando-a com o momento de profunda transformação pelo qual passava em minha vida pessoal sob o mote “Estou de mudança!”. Entre a narração de uma história e outra que os objetos suscitavam, repetia essa frase-mote, que pontuava e costurava a ação num ato poético-performático em que a fronteira entre o cênico e o real se misturava e onde a realidade estetizada teatralizava o discurso. Paula Pretta, uma outra atriz que fazia parte do processo, marcou o seu depoimento pessoal não no teatro em que ensaiávamos, mas em um endereço na rua. Quando todo o elenco chegou, ela foi até um ponto de ônibus, entrou em um deles fazendo com que todos a seguissem embarcando e quando começou a falar, já dentro do ônibus, “[...] esse é o ônibus que eu pego todo dia pra chegar no ensaio”, percebemos que sua performance já tinha começado desde o momento em que chegamos. Então, ela foi contando os fatos de sua vida enquanto atores e passageiros se transformaram em público e personagens ao mesmo tempo. Os lugares por onde passávamos eram cenários com os quais a atriz se relacionava diariamente, o cobrador e o motorista, antigos companheiros de cena. Descemos do ônibus e caminhamos até o teatro em que ela viria a terminar seu depoimento falando sobre sua relação com o processo e com os integrantes do núcleo no palco onde ensaiávamos todos os dias. Outros atores utilizaram-se de desenhos no chão como uma espécie de linha do tempo em seus depoimentos, outros simplesmente sentaram-se em uma cadeira e falaram. O depoimento pessoal é um importante exercício para o ator-MC, pois, além de ser um momento em que a autorrepresentação elementar se faz presente (o discurso pessoal dentro de um discurso coletivo), ele se relaciona diretamente com um ponto fundamental da performance poética no que diz respeito à oralidade: a memória. Uma memória que se configura como: [...] espaço, lugar, e a própria matéria construtiva de tudo o que se cria [...] encontro da tradição com o presente e com aquilo que se projeta ao futuro [...] memória acionada em presença, interativa e fundamental, no estabelecimento da pactuação que torna possível o reconhecimento de um repertório e do ato criador (idem, p. 65). No momento da performance, as memórias se entrecruzaram criando um repertório memorial comum, o que, no caso de uma investigação teatral coletiva, se torna algo relevante como ponto de partida até que se chegue aos depoimentos das personagens, à elaboração da dramaturgia e a um “macrodepoimento” da obra como um todo. Os depoimentos pessoais foram parte constitutiva e marcante do processo, que acabaram por se incorporar à encenação. O prólogo de Acordei que sonhava era uma cena musical, uma grande overture que evocava uma festa de rua, uma block party figurativa em que, sob o comando do DJ numa trajetória musical que fazia menções a vários períodos históricos da cultura hip-hop, os atores, de posse do microfone e de pequenos textos poéticos autorais, se apresentavam ao público, bem como as personagens que iriam “defender”. Tudo isso era feito com rimas, com uma narrativa falada e cantada sobre as bases musicais. Em quase todos os depoimentos, além dos pequenos textos escritos pelos próprios atores, foram utilizados trechos de textos já existentes de outros autores, bem como de músicas, o que mais tarde, no desenvolvimento da linguagem, chamaríamos de “samples dramatúrgicos”96. O sample é, em sua origem, conceitual, uma amostra de áudio, um recorte. No teatro hip-hop, o conceito é estendido não só à criação da música, mas a todos os elementos que constituem a dramaturgia cênica: texto, cenários, figurino, vídeo, interpretação, expressão corporal e vocal, dança, iluminação. Os recortes são utilizados com a consciência da existência do todo ao qual fazem parte e isso influencia toda a sequência da dramaturgia que o precede e que vem depois dele ou sobre o qual ele é aplicado em sobreposição. Nesse caso, a utilização de textos de outros autores deixa de ser uma simples “citação” ou “referência” e é usada conceitualmente como sample, na medida em que evoca o contexto original de onde foi sampleado, e isso interfere constitutivamente na nova configuração que se forma a partir de sua inserção. 96 305 Após os pequenos depoimentos individuais, os atores-MCs entoavam juntos a música-temas97 do prólogo, criada por Claudia Schapira, que logo localizava os espectadores sobre “o que” e “por quem” iria ser contada a história que estavam prestes a vivenciar: Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Eu queria que vocês Sentassem em seus lugares Aguçassem os ouvidos Preparassem a vontade Sou um representante do povo brasileiro Vou falar do meu país Mas represento o mundo inteiro Houve um jovem bem nascido que na torre encantada viveu Vinte anos de vida sem nunca ter visto nada Num certo tempo remoto Existiu um artista louco Amava a criação, amava a religião A vida era fonte de constante inspiração Carderón, que rico Caderón (de la Barca!) Cha-cha-cha, que rico cha-cha-cha Inventou uma história bem complexa de contar Agora, é o que vamos desvendar Destino ou livre arbítrio? Religião, materialismo, ciência, fanatismo, xamanismo, esoterismo ceticismo, imperialismo, é o que vamos desvendar Estamos todos circulando, procurando uma resposta Para a Era que começa e não topa as velhas regras O mistério da existência continua a ser segredo E quem quiser saber a verdade não pode ouvir o medo por isso se prepare Não relaxe na cadeira Aperte o cinto para essa viagem que formula essa contradição: A vida é uma ilusão, obra de arte do divino? Ou tudo é razão pura, matéria , limite, corpo findo? DJ! DJ! DJ!DJ! DJ! (todos apontam para o DJ que faz scratches) Eu te convido pra dançar, pra viajar Que essa obra é aberta, não tem dono Na montagem de Bartolomeu, que será que nele deu?, cada personagem era apresentada com uma “música-tema”, que, fazendo uma síntese, apresentava suas características e relações com o contexto a ser narrado pelo espetáculo. Isso também acontecia no prólogo e epílogo e em cenas-chave do espetáculo. A utilização do conceito de “música-tema” se repetiu em todos os espetáculos coletivos do Núcleo Bartolomeu desde então e, muitas vezes, foi o ponto de partida do processo de escritura do texto. 97 É mente esperta Unidade, comunidade, respeito, paz e dignidade Evoé em harmonia Evoé! Toda a cena, desde os pequenos depoimentos pessoais escritos pelos atores e que precediam esse texto, é um didático exemplo de características do MC que se manifestam dentro da linguagem do ator-MC, como a produção do texto autoral em primeira pessoa e de sua narração. Há ainda a incorporação de assuntos, referências e memórias de quem está narrando, a relação com o microfone, com o sample, com a melodia, o ritmo e a métrica, o enaltecimento e referência ao DJ. Como o MC que se torna um narrador que intermedia a relação entre o público e o DJ, o ator-MC, ao se apresentar como cidadão de seu tempo e simultaneamente intérprete de uma personagem, faz a mediação entre o público e a “força política” que ela representa, e ao mesmo tempo entre o público e o dramaturgo. Cria-se um efeito de estranhamento radical que não deixa margem a qualquer efeito enganoso ou de identificação inebriante que possa ter a representação. Os procedimentos do MC, o uso da primeira pessoa, a presença de uma métrica bem definida, a relação com um DJ em cena ou com o microfone, incorporados ao ator narrador colaboram para criar os efeitos do “distanciamento brechtiano”, para quem essa técnica não é apenas uma opção estética, mas uma escolha política que faz a obra “passar do plano do seu procedimento estético ao da responsabilidade ideológica da obra de arte” (PAVIS, 2008, p.106). Nesse sentido, mesmo que represente uma personagem com um discurso contrário ao seu, o ator-MC sempre está dando um depoimento pessoal, pois não desaparece, ele está sempre presente no discurso do espetáculo, da direção, do dramaturgo atuando num processo constante de mediação entre o público e o que está sendo narrado. Acordei que sonhava foi uma primeira experiência que se desdobrou em muitos outros espetáculos e projetos artísticos num processo ininterrupto de quinze anos de pesquisa, estudo e experimentação em um diálogo com o “tempo que nos tocou viver” e na incessante busca por um alinhamento entre ética e estética, política e poética. Hoje o teatro hiphop é uma linguagem reconhecida e amadurecida. Assim como o ator-MC, que tendo passado por mais de uma década de diversas experiências, sempre de posse do depoimento e da autorrepresentação, com melhor preparo técnico e, portanto, com maior liberdade, começa a explorar novos caminhos, na certeza de que muitos ainda estão por vir. 307 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - junho de 2015 Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e obras da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, v. 1). BRECHT, Bertolt. O teatro dialético. 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BLOCO III: Impressões e expressões de convidados Bertolt Brecht nos EUA: um refugiado anticapitalista na pátria do capital, por Agenor Bevilaqua Sobrinho98 Resumo: Neste artigo, procuramos demonstrar como o documento histórico Diários de Trabalho Vol. II (1941-1947) — que cobre o período de exílio do dramaturgo e escritor alemão Bertolt Brecht (1898-1956) nos EUA — fornece as razões pelas quais as observações do teatro que se praticava no contexto desse país constatam as dificuldades e até impedimentos à aceitação da produção das peças do dramaturgo alemão. Ademais, os depoimentos do narrador da intelligentsia de esquerda não dogmática no locus da pátria do capital são fundamentais para compreendermos este importante período da história. Palavras-chaves: Brecht nos EUA, Diários de trabalho, exílio nos EUA, teatro nos EUA, teatro épico. Abstract: This paper aims at demonstrating that Bertolt Brecht’s historical document entitled Diários de Trabalho (1941-1947), which cover his exile period in the U.S., provide and examine the reasons for the difficulties and impediments to the acceptance of his production in that country. The testimony of the narrator of the non dogmatic intelligentsia of the Left in the homeland of capital is crucial to the understanding of that important historical period. Keywords: Brecht in the U.S.A, diaries, exile in the U.S.A, the USA theater, epic theater. 1. Introdução Em decorrência da ascensão nazista e de suas regras estritas de perseguição aos dissidentes, Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo e poeta alemão, emigra para diversos países europeus (França, Dinamarca, Suécia, Finlândia). Porém, diante da ameaça do avanço das tropas do ditador nazista Adolf Hitler (1889-1945), vê-se obrigado a fugir novamente, e parte com a família — a mulher, a atriz austríaca Helene Weigel (19001970), e os filhos, Stefan (1924-2009) e Barbara (1930- ) — em 13/06/1941 de Vladivostok, a bordo do navio de refugiados Annie Johnson (Diário de Trabalho, vol. I, p. 193), rumo aos Estados Unidos, chegando em 21/07/1941, em San Pedro, porto de Los Angeles (Diário de Trabalho, vol. II, p. 3). Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-UNESP) e Doutorando pelo CAC - Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). É autor de O rato pensador (Cia. Fagulha) e de vários artigos publicados em revistas especializadas. 98 309 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Os Diários de Trabalho são analisados como documentos históricos da obra do autor alemão e como um recurso para observarmos mais de perto a época ali estudada e vivida. Os Diários... trazem anotações/reflexões a respeito das atividades desenvolvidas por Brecht enquanto dramaturgo e pensador do teatro e interessado no cinema, além de reiteradamente notar e comentar o período de 1938-1941 (Vol. I) e de 1941-1947 (Vol. II, tempo em que a família esteve nos EUA, e objeto deste artigo). O acompanhamento da Segunda Guerra se dá de modo atento, pois Brecht anexa recortes de jornais sobre o conflito, segue os noticiário no rádio e acrescenta seus ângulos de visão. Marxista em plaga estrangeira (e coração do capitalismo), Brecht compreende os desafios de compreensão de sua obra antípoda aos núcleos sedimentados de ideias conservadoras e reacionárias vigentes também à época no país. 2. Poder e dinheiro Brecht observa em poucos meses, em seu Diário de Trabalho, vol. II, 22/10/1941(2005) que a situação da arte dramática nos EUA é bastante distinta da Escandinávia, onde havia obstáculos políticos, mas não a impossibilidade de escrever. Na terra do Tio Sam, além de questões políticas a serem consideradas, há um agravante: um teatro totalmente comercializado (Idem, 22/10/1941, p. 14; 01/11/1941, p. 20), que eleva os custos de produção, tornando-a elitista (Idem, 02/12/1941, p. 267) e inviabilizando encenações (Idem, 18/06/1942, p. 119). As relações mercantis e o fascismo norte-americano (09/02/1942, p. 57) limitam as esferas à compra e venda (Idem, 21/01/1942, p. 51-2). “O mercantilismo produz tudo, mas na forma de bens vendáveis, de modo que aqui a arte tem vergonha de sua utilidade, mas não de seu valor de troca” (Idem, 23/03/1942, p. 75-6). Bancos e produtores realizam imposições: tirar negros, por rapazes com garotas etc. (Idem, 24/03/1942, p. 77). Os aspectos artísticos propriamente ficam relegados a segundo plano, quando não são desconsiderados para atender somente objetivos financeiros pleiteados por produtores. Brecht comenta sobre a possibilidade de escrever seu planejado Romance dos Tuis, no qual criticaria os malabarismos de intelectuais para justificar medidas opressivas tomadas pelo governo, ou seja, os ideólogos do regime (cf. a forma de atuação dos tuis Turandot ou o Congresso das lavadeiras). Entretanto, reconhece que nos EUA não faria sentido um texto dessa natureza, sendo “[...] impossível exibir a venda de opiniões aqui, onde é praticada abertamente” (Idem, 18/04/1942, p. 90). Quanto ao tipo de teatro reinante nos EUA, assevera ser um divertimento bem medíocre, ocasional, inconsequente. Escapismo (Idem, 15/08/1943, p. 195), descompromissado com quaisquer questionamentos das estruturas de poder. Para o ator alemão Fritz Kortner (1892-1970) e o ator vienense Oskar Homolka (1898-1978), e em menor grau o ator húngaro Peter Lorre (19041964), o divertimento noturno convencional é vendido por especuladores, embora alimentem um mito do teatro alemão na República de Weimer (19191933), tido por Brecht como também medíocre (Idem, 10/08/1944, p. 235). Mas os que não apreciam o teatro nas paragens norte-americanas não se resumem aos citados. O compositor austríaco Hanns Eisler (1898-1962) é outro que não gosta do teatro de Nova York (Idem, 26/04/1942, p. 94). Ademais, nos EUA os efeitos inebriantes produzidos por essas formas de teatro são hiperbólicas e fazem com que Brecht analise a extensa dificuldade em lidar com isso e se sinta “[...] largado no centro mesmo do narcotráfico mundial, no meio dos maiores tuis desse negócio” (Idem, 27/07/1942, p. 132). Formula críticas à indústria do entretenimento, que produz divisão no comércio com a criação incessante de intermediários (agentes, representantes), que impedem o acesso direto do artista ao detentor do poder de decisão (Idem, 27/12/1941, p. 40-1). Em tom jocoso, Brecht menciona que, para ter espaço, é preciso seguir o evangelho da MGM (Metro-Goldwyn-Mayer) e incutir histórias com mensagens consideradas pertinentes pelo establishment (Idem, 16/01/1942, p. 49). Corporações poderosas fazem sentir seu peso, contando com apologetas como o roteirista e novelista Ferdinand Reyher (1891-1967), que exalta o businessman americano do tipo Knudsun (Idem, 13/02/1942, p. 58)99. O dinheiro preside as relações: “É vendável?, dá lucro?, quanto ganho?”. E o teatro é só mais um meio de obtê-lo. Time is money (Idem, 22/10/1941, p. 15). Como se não bastasse, a censura, representada pelo controle do conservadorismo canhestro de senhoras idosas, impede a veiculação livre de ideias, demonstrando o caráter determinante das barreiras enfrentadas pelo pensamento crítico (Idem, 25/10/1941, p. 15). 99 William S. Knudsen (presidente da General Motors desde 1947), assume, a convite do Presidente Roosevelt (1882-1945), o cargo de Diretor-Geral do Escritório de Administração da Produção (nota do Org., p. 314, 13/02/1942). 311 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Com esses ingredientes elencados, Brecht nota que a alienação é fomentada ainda pela devoção à astrologia (Idem, 26/10/1941, p. 15-6), compartilhada em larga escala pelo senso comum e incensada pelos grupos hegemônicos como instrumento do arsenal de entorpecimento popular. A propósito, sarcasticamente Brecht indaga quais seriam as previsões do horóscopo sobre os próximos passos de Hitler para conseguirmos neutralizá-los? (Idem, 08/04/1942, p. 85). Sem esquecer que o ditador alemão também poderia lançar mão do mesmo expediente para saber sobre as iniciativas dos aliados, chegando a um resultado de soma zero. Em se tratando de mecanismos de manipulação das massas, poderíamos, acompanhando o marxista alemão Karl Kosch (1886-1961), fazer um paralelo entre o embate da monopolização nos EUA contra os princípios democráticos (27/10/1941, p. 16) com a situação brasileira atual, cuja estrutura financeira e de comunicação é coordenada e dirigida por poucas famílias. Sem espaço para o dissenso, as poucas margens de passagem para falas contrárias ecoam em alguns sítios na internet (LEBLON, texto da internet). Não obstante, as estruturas conservadoras também são transferidas para a Web, capturando incautos e desavisados em geral. A batalha digital, em seus primeiros rounds, incorpora armadilhas historicamente conhecidas e as novas ciladas para as quais os ingênuos serão úteis como suporte de plataformas e discursos autoritários e reacionários. Em Cidadão Kane (1941), Orson Welles (1915-1985) expõe claramente essas entranhas (Idem, 28/12/1941, p. 41-42) e os servomecanismos à disposição do capital para impor suas determinações. Contudo, em que pesem expressões isoladas de repúdio ao sistema nos EUA, para Brecht não existe oportunidade para o marxismo no país (Idem, 18/12/1942, p. 59), uma vez que a mentalidade mercantil está enraizada. Um lugar em que é compulsório alimentar famintos congressistas (25/02/1942, p. 61), aliás, como no Brasil e alhures. Os EUA são vistos também como meio inóspito “[...] à leitura da grande literatura” (Idem, 28/07/1942, p. 133), porque os espaços cultural, político, econômico etc. são colonizados pelo dinheiro. Do mesmo modo, o trabalho se modifica quando é emparedado pelo relógio. Um exemplo claro é a criação d’O Círculo de giz caucasiano – escrevendo premido por encomenda: quanta coisa é destruída quando se vê espremida entre “encomenda” e “arte” (Idem, 10/04/1944, p. 217). Brecht menciona a existência de diferenças de representação entre atores norte-americanos e alemães – gesto básico do lugar (Idem, 03/09/1942, p. 142), aspectos de circunstâncias e contextos históricos específicos. A hipocrisia dá o tom no país: “Não devemos falar em dinheiro, isso é execrado na Broadway”, diz o cenógrafo Mordecai Gorelik (1889-1990). É um fato que o dinheiro nunca é mencionado no teatro comercial, assim como não se fala de câncer na frente de cancerosos (Idem, 02/04/1945, p. 266). Ao analisar o cinema nos EUA, Brecht assevera que não se pode encontrar substância, reflexão crítica. Mordaz, fulmina: tentar ver se algum reflexo da realidade não surge inesperadamente na tela, enterrado debaixo de enredos infantis, escondidos em “personagens estereotipados”. Características que muito facilmente deixam de se vistas (p. 246). Confirmando sua precisa máxima: “do nada, nada virá”. As distinções entre países aparecem nas observações do ator inglês Charles Laughton (1899-1962), que relata haver na Inglaterra desprezo aos atores. E, ironicamente, completa: Nos EUA, não têm nenhuma consideração a oferecer, mas pelo menos têm dinheiro (Idem, 29/04/1944, p. 217-8). Diante de um quadro desanimador: “Primitivismo da estrutura de filmes. Admite-se que os atores não sabem representar e que o público é incapaz de pensar” (Idem, 20/08/1942, p. 139), não há surpresa em contatar que os filmes são “medíocres e infectos” (Idem, 25/10/1942, p. 153). Como o racismo e o preconceito de classe grassam sem freios nos EUA, as atividades tidas como de somenos importância são reservadas aos negros: “A verdadeira representação é aqui objeto de zombaria e só é permitida aos negros. Astros e estrelas não atuam, participam de ‘situações’” (Idem, 11/07/1942, p. 129). Também os avanços obtidos em diversas áreas do conhecimento servem como suporte para catapultar lucros fabulosos. Os fins comerciais comandam e adaptam os recursos de acordo com a matriz financeira norteadora do projeto, que converte tudo e qualquer coisa em mercadoria: Poll tests do Gallup – Utilizando um certo sistema para obter uma seleção representativa de diversos grupos sociais, conseguem uma amostra das opiniões da população (sobre problemas políticos, mas também sobre a formação do elenco de filmes baseados em romances populares). Considera-se que isso é uma instituição democrática. Na verdade é um teste da eficácia da publicidade e da propaganda (Idem, 12/07/1942, p. 129). Consoante a esse modus operandi, certamente Brecht ficaria 313 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 horrorizado com os “institutos de pesquisas” brasileiros e sua prática renitente de trucidar a estatística em razão da partidarização imposta pelos oligopólios de mídia. Estandardização promovida pelo marketing e cabeleireiros, entende-se a razão pela qual os produtos da indústria do entretenimento não terem consistência, serem superficiais e instrumentalizados para reproduzir as formas de existência limitadas ao escrutínio do deus-dinheiro: A seus atores este país não oferece fama, só credits e success. Em função disso formam-se vastos fãsclubes de astros e estrelas, com fanmail e comércio de autógrafos numa escala desconhecida em outros lugares, mas isto é um culto de tipos que nada tem a ver com arte. Há apenas certos papéis em que astros e estrelas aparecem e competem entre si. Esses tipos que, como os heróis dos não menos famosos comics, aparecem nas mais variadas situações românticas, são escolhidos de acordo com um denominador comum e depois entregues aos cabeleireiros. De vez em quando um deles, após prolongadas discussões entre publicitários e esboços feitos pelos cabeleireiros, sofre uma mudança de personalidade: faz isto pela vida que leva, que é uma sucessão de parties. Mesmo aqui personalidades mais singulares como Garbo100, digamos, são eliminadas sempre que possível. Embora os filmes rendam bom dinheiro, prejudicam outros (Idem, 09/08/1944, p. 234-5). A crítica aos artistas cooptados é contundente: “É completa a prostituição desses ‘artistas’. A puta vende o ‘efeito’ nu, e por isso é bem paga, já que seus clientes são impotentes. O interesse que o público encontra na vida é o do usurário, devia se chamar ‘juros’” (Idem, 28/05/1944, p. 221). Efetivamente, a Broadway reflete de forma adequada a vida intelectual dos Estados Unidos (Idem, junho a meados de julho de 1945, p. 270). Em realidades desse tipo, as obras de arte assumem o mesmo caráter de artefatos em geral, isto é, tornam-se artigos comerciais. Espera-se que apenas as artes que de alguma forma contribuem para salvar a humanidade serão salvas. Mas para isso a cultura deve perder o caráter de mercadoria para tornar a ser cultura outra vez. São as artes que preservam (produzem) nosso entendimento da arte (Idem, 22/08/1942, p. 140). Cabe aos proletários libertar de seus grilhões a produção artística assim como todas as formas de produção (Idem, 100 Greta Garbo (1905-1990), atriz sueca. 22/08/1942, p. 141). Demandando transformações em todos os quadrantes da sociedade. 3. Ciência e apropriação Lutar contra a assimilação das conquistas da ciência e suas aplicações práticas (a tecnologia), comutando-as em produtos do monopólio, são deveres de cientistas como a polonesa Mme. Curie (1867-1934), que se recusa a vender aos EUA o método para a produção do elemento químico rádio (Idem, 27/10/1941, p. 17). As frentes de luta são múltiplas, uma vez que o antissemitismo grassa nos estúdios: [...] “os judeus sabem como se safar do serviço militar e outras provocações do gênero” (Idem, 29/06/1942, p. 124). Refletindo acerca de Galileu, Brecht ratifica a ideia de que nesta forma de sociedade um desejo de conhecimento pode ser fatal (de vez que a sociedade produz e pune esse desejo) (Idem, 30/07/1945, p. 272-3). E uma das consequências das explosões atômicas é a repercussão destas na apreciação da ciência pelo público. Testemunha de seu tempo, Laughton acredita que as bombas atômicas lançadas em Hiroshima (06/08/1945) e Nagazaki (09/08/1945) seriam ruins para a Ciência e má propaganda para o texto Galileu (Idem, 10/09/1945, p. 278). Para responder a essas inquietações, talvez seja interessante historicizar o processo de privatização pelo qual passa a ciência e sua aplicação, a tecnologia. Então, teremos de repor a discussão em outros termos: a necessidade de tornar público o conhecimento e retirá-lo da espera da propriedade privada, redirecionando a ciência para o interesse público e não para os negócios privados que mantêm doenças e remédios em altos custos a pretexto de defender “patentes industriais”. 4. Guerra: indústria e comércio A preocupação com a guerra é constante. E dificulta escrever sobre teatro. Acompanhar o desenrolar da guerra e seus desdobramentos (Idem, 03/12/1941, p. 27-8), as questões geopolíticas (Idem, 08/03/1942, p. 68), as batalhas e ataques (Idem, 08/12/1941, p. 31), as características e suas dinâmicas (Idem, 20/02/1942, p. 61), as movimentações dos países do Eixo [Alemanha, Itália e Japão] (Idem, 08/12/1941, p. 31-5), as prisões de nazistas nos EUA (10/12/1941, p. 36), a fatura imposta aos proletários (Idem, 08/01/1942, p. 44-5), as estratégias dos camponeses da Polônia e o uso das próprias mãos para cavar pequenas trincheiras para deter os 315 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 tanques alemães (Idem, 09/02/1942, p. 57). A luta é conduzida anonimamente ou incógnita. A iniciativa pessoal desempenha um papel decisivo. E a classe operária deve muito ao sabotador desconhecido (Idem, 24/10/1942, p. 153). Contrariando essas providências, ocorrem traições de trotskistas convertidos ao fascismo, como, por exemplo, o escritor alemão Gustav Regler (1898-1963) (Idem, 19/02/1942, p. 59). Em que pese as incertezas, Brecht de vez em quando se arrisca em realizar previsões sobre o transcurso da guerra (Idem, 16/03/1942, p. 71-72), acertando e errando ao lidar com um problema movediço e cuja dinâmica se altera velozmente. Por outro lado, realiza consideração certeira a respeito dos papéis complementares desempenhados entre os combates e o processo econômico, a sinergia: as guerras são necessárias para manter nossa indústria funcionando (Idem, 07/06/1942, p. 116). O ódio na guerra não é nem mesmo especialmente necessário para as guerras modernas. Não prejudica nem ajuda o esforço de guerra [...] o fascismo é uma forma de governo que possibilita que as pessoas sejam subjugadas ao ponto de poderem ser impropriamente usadas para subjugar outros povos (Idem, 28/06/1942, p. 123). As relações entre guerra e tecnologia lembram a hostilidade entre firmas rivais que buscam definir as condições de fusão. A guerra é mais um negócio: “Tão logo dá lucro, essa portentosa maquinaria para aniquilar material tem tão pouca necessidade de inspiração ideológica quanto a maquinaria para produzir aquele material” (Idem, 10/05/1942, p. 101-2). Brecht analisa Hitler como um grande político burguês (Idem, 28/02/1942, p. 66-7), sopesa suas relações com a pequena burguesia (Idem, 27/02/1942, p. 64-5) e reconhece que os alemães agem como salteadores armados (Idem, 22/03/1942, p. 75). Portanto, evidenciando o caráter de assalto peculiar aos impérios. A guerra torna ainda mais distante a percepção equivocada das pessoas a respeito da vida parlamentar. Elas nem sequer descobriram os elementos de violência nas formas parlamentares de governo: parlamentos representam o consenso popular. Mecanismo parlamentar destruído e o que vem à superfície é a violência “nua” (despida de todos os véus)... eles não reconhecem essa nudez (Idem, 29/06/1942, p. 123). Em relação aos dias atuais, essas reflexões de Brecht reafirmam sua pertinência quando os autointitulados “apartidários” — que renegam a política e supõem que a queima do Congresso brasileiro será o prenúncio de um horizonte de pureza e perfeição — são incensados pelos meios de comunicação oligopolizados do Brasil, cujo plot reacionário é inconteste. A propósito, a deificação dos jovens não é uma novidade de agora. Brecht e Charles Laughton, já notaram a exuberância do prestígio da juventude: Ela goza de tal prestígio nestas paragens que se pode ganhar mais dinheiro com ela (Idem, 28/08/1944, p. 238-239). E é mais um elemento desolador a ser meditado. A capacidade de resistir à assimilação (Idem, 18/011/1941, p. 22) é posta em xeque diariamente. Além do mais, existe hostilidade aos enemy aliens (japoneses e alemães), estrangeiros oriundos de países inimigos (Idem, 25/03/1942, p. 78; 26/03/1942, p. 80) e o toque de recolher (curfew) a que são submetidos das 20h às 6h (nota do Org., p. 316). Devido ao curfew, Brecht recebe a visita de dois homens do FBI para inspecionar seu documento de registro (Idem, 29/05/1942, p. 111). A sobrevivência ameaçada pela falta de dinheiro (Idem, 21/04/1942, p. 93) e as dificuldades ao longo da vida (Idem, 08/05/1942, p. 100). Afinal, um questionamento que se dirige ao âmago: quem se interessaria pela contestação entre aqueles que podem pagar? Brecht relata que oferecera um artigo sobre Hitler para a série “Meu personagem inesquecível”, do Reader’s Digest. Embalde, recebeu a recusa. E identifica sem meias-palavras aquilo que é considerado palatável: A revista submete a colaboração dos leitores a meia dúzia de especialistas. Um verifica se a coisa é marrom, um segundo se fede, um terceiro se não há nela torrões duros etc. E assim é severamente examinada para se ter a certeza de que é merda de verdade antes de ser aceita. (Especialista em suspense, em caracterização, em “fidelidade à vida” etc.) (Idem, 21/04/1942, p. 91). Os crimes de Hitler e do ditador Benito Mussolini (1883-1945) são ostensivos. Em geral, não se cercam de cuidados para cometê-los: Os grandes crimes só são possíveis porque são inacreditáveis. Trapaça banal, simples mentiras, extorsões descaradas, estas são coisas que pegam muita gente desprevenida. Os espíritos mais sutis se recusam a acreditar em trapaça tão primitiva e, quando ficam desconfiados, procuram em demasia, contando com crimes meticulosamente planejados e de complexidade exemplar. Indignados, recusam-se a “confundir” estadistas com ladrões de cavalos, generais 317 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 com especuladores da bolsa de valores, e assim se mostram totalmente incapazes de entender roubos de cavalo e mercado especulativo. É óbvio que têm razão de procurar astúcia em grandes homens, mas trata-se de uma astúcia ordinária cujo uso é limitado a atividades criminais. Os golpes que desferem nem sempre são fatais. Engabelam as pessoas com belos discursos destinados não a deixar as vítimas incapacitadas para o trabalho mas simplesmente transformá-las em idiotas (Idem, 24/08/1946, p. 196). É claro que a guerra destrói ilusões e traz lições horripilantes: se as guerras duram muito tempo, a gente simples acaba reconhecendo a desumanidade de seus governos e a natureza imperialista da guerra, mas ao mesmo tempo aprende que o inimigo também persegue metas imperialistas (Idem, 27/08/1943, p. 197). Sobre o recrutamento nos EUA, Brecht assinala que em geral a população atende submissa à convocação do governo. O dever patriótico e o aceno do heroísmo parecem ter uma carga sedutora efetiva. Entretanto, a vez de seu filho, Steff, também chega. É convocado para a guerra (Idem, 18/09/1944, p. 242), mas no momento em que a Normandia já fora invadida (06/06/1944) e a direção dos acontecimentos selava o resultado. As derrotas dos nazistas não foram muito bem assimiladas pelos generais, que atribuem à Hitler (que chegara apenas a cabo, na tentativa do frustrado golpe/Putsch da Cervejaria de Munique, em 09/11/1923) a inépcia em lidar com problemas somente cominados ao generalato (Idem, 14/08/1944, p. 236). A pergunta incômoda é: apesar de tudo, por que os alemães continuam a lutar? (Idem, 15/08/1944, p. 236) Para salvar posições, assegurar a sobrevivência? Quanto aos alemães e italianos, Brecht afirma que os nervos notoriamente frágeis dos alemães contrastam com os italianos, pois estes ficaram expostos ao fascismo por um período duas vezes maior, já estão corrompidos demais para sucumbir (Idem, 18/07/1943, p. 184). A renúncia de Mussolini é festejada com prazer: “[...] retorna à sarjeta de onde veio” (Idem, p. 186, 25/07/1943). E não poderia deixar de constar a crítica ao nacionalismo (Idem, 10/11 e 11/11/1943, p. 213-215), fermento essencial do fanatismo que proporcionou o apoio a regimes ditatoriais sociopatas e suas atrocidades que resultaram em mais de 50 milhões de mortos. Brecht põe na lista outros efeitos devastadores da guerra, como o desânimo e a exaustão: até os próximos e queridos como estranhos (Idem, 31/08/1944, p. 239). O refúgio familiar não é uma garantia. Tampouco há segurança sobre a língua materna, em virtude do desenraizamento, que o faz “[...] esquecer palavras em alemão” (Idem, 17/11/1944, p. 250). A arte alemã precisaria representar os tempos e seus pavores (Idem, 17/09/1944, p. 242), mostrar ao mundo como se produziu a barbárie e o que se deve fazer para evitá-la no futuro. Assim, as Leis de Nuremberg (1935) — que codificaram o antissemitismo nazista (Nota do Org., p. 335, 05/10/1944) e consentiram com os processos de perseguição aos judeus na sociedade alemã —, o aparato material e ideológico que serviram para a adesão das massas ao regime e todo o repertório de atrocidades devem ser expostas à crítica severa e incisiva. Por sua vez, além da barbaridade, o que o soldado pode esperar da guerra? Ao debater com o diretor de cinema William Dieterle (1893-1972) o filme O que o correio trouxe para a mulher do soldado?, os mal-entendidos aparecem. Porque não se trata de denúncia de pilhagem cometida pelo soldado, por si só irrisória, pois os contemplados pelas guerras são os governos vencedores. Afinal, “[...] as guerras de conquista não valem a pena; todas as campanhas e atrocidades não produzem o suficiente para vestir a mulher e lhe roubam o seu homem” (Idem, 03/04/1945, p. 267). Fascistas britânicos e franceses (burguesia europeia) em muito contribuíram para o prolongamento da guerra (Idem, 05/01/1946, p. 287), aumentando desnecessariamente o número de vítimas, e devem ser responsabilizados. A Guerra acaba. Vitória das forças aliadas. a) Berlim se rende ao Exército Vermelho (Idem, 02/05/1945, p. 268); b) A Alemanha nazista capitula incondicionalmente (Idem, 08/05/1945, p. 268); c) Nem bem o mês de maio começou e o Reich de mil anos se esfarelou (meados de maio de 1945, p. 269); d) Conferência de Potsdam (17/07 a 02/08 de 1945 - Reino Unido, EUA e URSS), discute perdas territoriais, questão a ser tematizada em O círculo de giz... (Idem, p. 273). 5. Contradições e decepções Outros emigrantes também estão em solo dos EUA. Sem surpresas, 319 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 as dissensões (re)emergem, as contradições se manifestam e os choques são inevitáveis. Daí, notamos os enfrentamentos e comentários corrosivos aos alemães (escritores, filósofos etc.), cujos embates atravessam os oceanos. Brecht focaliza desafetos fora de sua imagem mítica, veiculada pela mídia da época. Por exemplo, ao se questionar: “[...] como o ‘povo alemão’ poderia justificar ter tolerado não só os crimes do regime de Hitler mas também os romances do Sr. Mann, especialmente quando a gente sabe que estes não têm o apoio de 20 a 30 divisões blindadas (Idem, 02/08/1943, p. 191). A respeito das posições conservadoras do escritor alemão Alfred Döblin (1878-1957), Brecht dispara: “[...] por um momento tive a infantil convicção de que ele diria ‘porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi com canções os famintos’ etc., mas tudo que fez foi anunciar com teimosia, sem arrependimento ou pesar, ‘porque não procurei Deus’” (Idem, 14/08/1943, p. 195). O filósofo e musicólogo Theodor W. Adorno (1903-1969) é o “redondo” (Idem, 18/01/1942, p. 50), que vive nas fabulações do mundo do Instituto de Frankfurt, visto como grupo de teóricos de uma abstração sem conectividade com a realidade concreta. E conclui: esse “[...] instituto de Frankfurt é uma mina de ouro para o Romance dos tuis” (Idem, 10/10/1943, p. 209). E são provocadoras as indagações de Brecht a Adorno: se o capitalismo tinha acabado com o hábito de pechinchar, o que torna sem sentido a presença do vendedor, por que não atacar o capitalismo? Por que considerar a Questão judaica, de Marx, obsoleta? Estaria certo o Instituto de Sociologia de Frankfurt? (Idem, 18/12/1944, p. 253-254). Lamentos do compositor e teórico austríaco Arnold Schönberg (18741951) sobre direitos autorais desafinam sobre por quanto tempo seu filho receberia a herança deles, 45 anos (Idem, fim de outubro de 1944, p. 248) ou 28 anos (Idem, 02/08/1945, p. 273). E a mesquinhez humana é retratada diretamente, sem dissimulações. Eisler tem pendência com o compositor e maestro alemão Paul Dessau (1894-1979). Este, em situação precária, precisa do dinheiro e Eisler, que sabia disso, não paga o que deve. O reacionarismo do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) quanto à bomba atômica, que ficaria melhor protegida em mãos de um “governo mundial”, que Brecht interpreta como “[...] criado à imagem da Standard Oil, com administradores e administrados”, não passa em branco. Infelizmente, não é preciso entender o mundo para destruí-lo (Idem, 28/10/1945, p. 281). O registro da prisão do escritor fascista Ezra Pound (1885-1972) (Idem, 20/11/1945, p. 282) — cuja obra se constitui em espaço contíguo ao mercado, nos templos, semeando a “dignidade feudal” e a quem ela pode ser oferecida — é conciso e fulminante. Não poucas vezes, Brecht faz referência a práticas corriqueiras em Hollywood, como, por exemplo, ser passado para trás em contratos por “amigos”, ter seu roteiro vendido por outrem sem o reconhecimento dos créditos (Idem, 11/04/1942, p. 87), atritos com parceiros de longa data, o compositor alemão Kurt Weil (1900-1950) (Idem, 15/04/1942, p. 89). “Pequenas ondas de calor que atacam todo mundo logo que o dinheiro surge no horizonte (morar melhor etc.)” (Idem, 27/06/1942, p. 121), truques de apropriação do trabalho (Idem, 05/08/1942, p. 135-6). Sem mencionar medidas que incorporam de antemão os parâmetros e determinações de produtores e patrocinadores: por exemplo, Fritz Lang (1890-1976) não quer cenas mostrando o povo. Arguto, Brecht constata que a mudança no homem (no caso específico, Lang), ante a possibilidade de descolar US$ 700.000 é extraordinária. Os que adotam o catecismo gerencial de Hollywood, não medem esforços em descaracterizar o trabalho de criação de roteiristas e outros criadores. Em consequência, Brecht sente a decepção e o terror do trabalhador intelectual que vê o produto de seus esforços arrebatado e mutilado (Idem, p. 146, 16/10/1942), a estropiação espiritual ao não obter o crédito como coautor do roteiro (Idem, 20/03/1943, p. 170). Passar por abusos de pessoas tidas como “progressistas”, imbuídas tão somente da lógica do dinheiro. Eles borram as imagens que você se esmerou em criar, distorcem os personagens. [...] O cliente pega o pincel e lambuza o quadro, de modo que ninguém jamais saberá como realmente era. [...] Acostumado a extrair minha própria dignidade da tarefa em execução, minha importância da importância que eu tenho para o povo em geral, minha energia das forças com que estou em contato, onde me situo se a tarefa é indigna, a atmosfera geral depravada, e nenhuma energia pode ser acumulada no meio em que me encontro? (Idem, 22/10/1942, p. 152). Desrespeito reiterado se convive com aquilo que se procurou evitar: “A cena que você corta é a filmada” (Idem, p. 154, 02/11/1942). E para coroar/reiterar as perfídias, Lang rompe o acordo de dar uma 321 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 pequena participação a Helene Weigel, companheira de Brecht: Como encarar esse tipo de coisa. A velha obrigação de reagir com violência à falta de escrúpulos nas relações pessoais deve, à luz das condições reinantes, ser considerada ineficaz; esse preceito recíproco foi descartado como inútil. Até um amigo chega rapidamente a um ponto em que não tem mais nenhum direito à indignação moral. No que se refere aos artistas, as condições são de tal ordem que toda insuficiência de talento requer e produz seu próprio peso em inescrupulosidade. Por outro lado, a indignação, socialmente uma emoção das mais produtivas, não pode se dirigida apenas contra as condições, uma vez que isto despersonalizaria totalmente as condições, despojandoas da participação humana e tratando-as como se estivessem fora de alcance e não mais alteráveis (Idem, 24/11/1942, p. 160-162). “Em Hollywood tudo é brilho e esplendor da pior espécie” (Idem, p. 155, 04/11/1942). As aparências, os jogos de fantasias, a alienação, os expedientes corriqueiros e engenhosos para ludibriar, os truques e espertezas, a desfaçatez etc. Um técnico “[...] produz um inacreditável monte de merda” sendo bem-remunerado por US$ 500,00. “Desse modo a cena se torna quase realista: um proletário se expressa nos clichês descartados da burguesia e a burguesia os engole com gosto. Lang não nota coisa alguma” (Idem, 17/12/1942, p. 168). As distorções e as falsificações são produzidas e maquiadas para reluzirem sem sentido ou qualquer mínima lógica, exceto a financeira, que será coroada com lucros volumosos com tais habilidades desses prestidigitadores. Brecht acrescenta que, historicamente, o teatro elisabetano e Hollywood guardam características comuns: “[...] escrita coletiva, escrita rápida por encomenda, repetida reutilização dos mesmos temas, nenhum controle dos autores sobre seus produtos, fama só entre outros escritores, depois a ação repleta de paixão, os entrechos, os novos cenários, os interesses políticos etc.” E a divisão de classe se aprofunda, superiores e inferiores em posições inconciliáveis (Idem, 07/07/1943, p. 181). No período de seu exílio nos EUA, Brecht conhece as regras e os escaninhos de como ganhar o pão de cada dia na “América”. Conseguir emprego vai muito além da competência para a função. É preciso ter contatos, conhecer gente influente: Homolka consegue papel no filme por intervenção do sogro, figurão importante de Washington (Idem, 17/10/1942, p. 148). O ator alemão Alexander Granach (1890-1945) em suas memórias descreve bem a classe teatral. Que o leitor(a) faça o juízo que entender adequado desta afirmação. Entrementes, no cipoal de surpresas e constatações desagradáveis, Brecht ressalta o modelo de colaboração dramaturgo e ator. Sua parceria na tradução e montagem com Laughton da adaptação do Galileu nos EUA (Idem, 10/12/1945, p. 284-285). É difícil e perigoso aprender com decepções. Exercemos influência sobre nossos semelhantes fazendo-os lembrar de certos princípios e predicados; a ideia que temos deles e que os estimula a esforços maiores é algo para o qual eles e nós contribuímos. (Muitos se tornam mentirosos inveterados porque pensam que a gente não acha possível que mintam e muitos se tornam honestos pela mesma razão.) Podia-se dizer que a incorruptibilidade torna as pessoas incorruptíveis, se a gente entende que a incorruptibilidade aumenta com o número de suborno que são recusados. O mau comportamento piora as pessoas, o bom melhora. Nossa punição para aqueles que nos decepcionam é a diminuição do que esperamos deles. A ira se traduz em indiferença. As relações são restauradas num nível mais baixo. O processo de desintegração continua, é claro. Um general rebaixado é geralmente pior como cabo do que era com todas as suas faltas como general. Aqueles cujas expectativas são frustradas são também prejudicados muito além do prejuízo imediato que sofreram. O fato mesmo de estarem propensos a apresentar contas é um mau sinal; e no futuro serão mais parcimoniosos com o crédito e assim diminuirão suas probabilidades de melhorar as pessoas (15/12/1945, p. 285). 6. Teatro épico e aristotélico, cinema e literatura Brecht tinha por hábito incluir comentários nos poemas (próprios e de terceiros), utilizando-se dos recursos do efeito-d (efeito de distanciamento) (Idem, 17/01/1942, p. 50), empregado principalmente em sua proposta de teatro para evitar a identificação, comum no teatro burguês. Nesse, o espectador anseia por esquecer seus transtornos cotidianos trocando-os por um mundo estável e sem conflitos; um mundo em que o gozo dos desejos do público será proporcionado, vicariamente, pelo ator que representa heróis, reis, prostitutas, assassinos etc. Mas há um duplo processo de identificação, pois da mesma forma que o público se identifica, 323 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 o ator faz o mesmo em relação às suas personagens, “encarnando-as”. A estrutura da sociedade é mostrada como insuscetível de ser modificada Sobretudo em “Pequeno órganon para o teatro”, Brecht afirma que esse comércio de entorpecentes é incompatível com a era científica, na qual se operam transformações que curam doenças e varrem preconceitos. Ou seja, as mudanças não são apenas necessárias para os trabalhadores, mas realizáveis. Como a intenção não é iludir o público — e sim examinar com ele as variantes das reações e experiências acerca das questões historicizadas, contextualizadas em determinado período, ou seja, julgar um sistema social do ponto de vista de outro sistema social, entendendo que os pontos de vista em questão resultam do desenvolvimento da sociedade — por conseguinte, o requisito para a crítica é o conhecimento da realidade objetiva, a qual sendo desnudada no palco contribuirá para as mudanças sociais. O efeito distanciamento (efeito-d) consiste: [...] na reprodução da vida real no palco de modo a sublinhar-lhes a causalidade e trazê-la à atenção do espectador. Esse tipo de arte também gera emoções; tais representações concorrem para o conhecimento profundo da realidade, e isto é que move o espectador. O efeito-d é uma técnica antiga; é conhecido da comédia clássica, de certos ramos da arte popular e das práticas do teatro asiático (Diário de Trabalho I, 02/08/1940, p. 98). O teatro épico busca mudar o mundo (Diário de Trabalho II, Idem, 15/03/1942, p. 70), pois a arte e a propriedade dos meios de produção estão nas mãos de fabricantes de roupas e banqueiros (Idem, 27/03/1942, p. 8081). Assim, a própria estrutura material da sociedade é posta em causa, sendo verificadas as maneiras pelas quais ela venha a ser modificada com as rupturas próprias de cada realidade sócio-histórica do lugar onde sejam demandadas tais alterações. Acerca das diferenças entre o teatro, o cinema e suas peculiaridades, o dramaturgo alemão dialoga com Theodor Adorno: “[...] o efeito de uma representação artística sobre uma plateia que não pode ser independente do efeito da plateia sobre o artista. No teatro o público regula a apresentação”, enquanto no cinema “[...] o público não tem mais a oportunidade de ajustar o trabalho do ator, não está diante de uma produção mas de um produto final que foi realizado em sua ausência” (Idem, 27/03/1942, p. 80-82). Quem comanda o que será visto? A pseudodemocracia é constituída pela falácia de que antes de chegar ao público, seja obrigatório passar pelos filtros dos donos, os distribuidores de cinemas que “conhecem” o público e estariam em condições de determinar o gosto dos produtos em circulação pela indústria do entretenimento (Idem, 08/04/1942, p. 86). O círculo vicioso se retroalimenta e produz a profecia autorrealizável: banalização e frugalidades reinam. E os critérios de exigência não são como escrever bem, mas como conformar-se aos ditames da indústria do entretenimento, chega-se ao caminho das pedras. “Receita para o sucesso de quem escreve para o cinema: escrever tão bem quanto possível, o que quer dizer mal pra dedéu” (Idem, 12/10/1943, p. 209). Para superar essas vicissitudes e continuar a pensar com precisão, Brecht defende o uso da dialética como fundamental, pois permite trabalhar com unidades contraditórias, e nos força a procurar o conflito em todos os processos, em todas as instituições e ideias (na guerra, no cinema, no teatro etc.) (Idem, 22/01/1942, p. 52). A prática do uso da dialética responde a exigências da realidade, as quais demandam respostas e o estadista russo Lênin (Vladimir Ilitch Ulianov, 1870-1924) é um exemplo de iniciativas diante de enormes desafios: “[...] era sobretudo um funcionário e dava prova disso funcionando” (Idem, 25/01/1942, p. 54). O mesmo se pode cobrar das técnicas sem função social. Inovações puramente técnicas desligadas de qualquer função social (Idem, 09/05/1942, p. 101), adotadas em outros momentos, passam a ser questionadas. É preciso encontrar/produzir os vínculos entre as novidades e a razão pela qual elas se ligam à realidade cumprindo uma função social. Em 25/09/1945, Brecht comenta que a encenação na Alemanha de A ópera dos três vinténs se dá na ausência de qualquer movimento revolucionário, a “mensagem” da peça é puro anarquismo (Idem, 25/09/1945, p. 278-279), por estar dissociada de seu caráter de transformação. Assim, a criação artística não pode estar desligada de uma perspectiva de intervenção na realidade material. Brecht relata sobre sua produção de poemas, textos teóricos (Messingkauf – A compra do latão (14/08/1942, p.137-138) descrevendo exemplos do cotidiano de pessoas empenhadas em demonstrar algo; e elementos de atuação teatral na vida privada e na vida pública (Idem, 10/10/1942, p. 145) e os processos de peças Turandot... (Idem, 12/05/1942, p. 104), A alma boa de Set-Suan (Idem, 21/07/1943, p. 185-6; 20/09/1943, 325 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 p. 203), As visões de Simone Machard (primeiro com o título As vozes, Idem, 17/12/1941, p. 37; nota do Org., p. 310), cujo roteiro de cinema não foi filmado (Idem, 07/01/1944, p. 216), Terror e miséria... (Idem, 20/05/1942, p. 110), o registro de seus anos de exílio (Idem, 20/06/1944, p. 230)] etc. Em relação à representação, observa as ligações possíveis entre o ator e o fenômeno social: “Quero [...] basear o que há de especial no ator no interesse que ele desperta para o fenômeno social com que está envolvido no ato de representar” (Idem, 11/07/1943, p. 183). Porém, seu trabalho teatral, no período do desterro, não conta com aquilo que é imprescindível a uma peça, a avaliação da cena. Consciente do problema, ressalta a necessidade fundamental de por à prova suas criações: “Peça nenhuma pode receber os últimos retoques sem ser posta à prova numa produção” (Idem, 11/05/1942, p.103); uma representação é para uma peça: o teste (Idem, 26/07/1942, p.132). No degredo, Brecht mantém contatos com inúmeros artistas [Clifford Odets, (1906-1963), Charles Chaplin (1889-1977), Orson Welles, Jean Renoir (1894-1979, cineasta francês), Schöenberg, Eisler, Kurt Weil, Groucho Marx (1890-1977) etc.] e intelectuais (Reichenbach (1891-1953), Kosch, Adorno, Max Horkheimer (1895-1973) etc.]. Conviver com múltiplas e contraditórias visões de mundo auxilia a reforçar e corrigir posições eventualmente equivocadas. Brecht reconhece com ênfase quando o companheiro de trabalho colabora com uma parceria produtiva, caso do romancista alemão Lion Feuchtwanger (1884-1958): aspectos técnicos e sociais são discutidos (descrição épica, efeito-d, personagens constituídas com ingredientes mais sociais que biológicos, conflitos de classes embutidos na história etc.), Lion é sensível em questões de estrutura, dialoga em alto nível e um bom amigo (p. 169, 03/01/1943). Aprecia e elogia Waiting for lefty (1935), de Odets, e Nossa cidade (1938), de Thornton Wilder (1897-1975). Das anotações do Diário..., depreendemos como a realidade nos EUA oferece material de constatação e de criação para o dramaturgo e poeta. Para interessados em estrutura sindical nos EUA, por exemplo, Brecht distingue que esta lembra muito os gângsteres (Idem, p.113, 31/05/1942). Na parábola A resistível ascensão de Arturo Ui (1941), ele conta a ascensão de um chefe mafioso de Chicago associando-a à trajetória de Hitler. Brecht lê e discute Baudelaire (1821-1867), Poe (1809-1849), Kafka (1883-1924), Heine (1797-1856), Hölderlin (1770-1843), Goethe (1749- 1832), Rilke (1875-1926), Gide (1869-1951), Huxley (1894-1963) etc. Mas em que medida um trabalho pode ser intitulado um clássico? Um clássico só é extraordinário na medida em que aperfeiçoa obras similares que o inspiraram e o tornaram possível (Idem, 29/05/1943, p. 175). Literatura e aprendizado delivery não se dão bem: [...] o aprendizado, praticado como a compra rápida de conhecimento para fins de revenda, provoca desprazer. Em épocas mais felizes aprendizado significava uma absorção agradável das artes (no sentido baconiano). A literatura, em obras didáticas como em outras, logra intensificar nossa fruição da vida. Aguça os sentidos e transforma até a dor em prazer (idem, 28/11/1944, p. 250-251). Os métodos que [os bolcheviques] decidiram empregar neste campo [a literatura] falharam. A situação era certamente calamitosa. A tomada do poder pelo proletariado pegou de surpresa a literatura. As faixas estreitas e simplificadoras do dogmatismo estimulam o silêncio ou a produção enaltecedora do poder e empobrecida esteticamente. E abrem avenidas para Andrei A. Zhdanov (1896-1948), braço direito de Stálin e chefe do partido em Leningrado, ditar a política nas artes da então União Soviética. “Erros de certas revistas literárias soviéticas”, pontifica em sua condenação o manda-chuva da ortodoxia, Zhdanov. Brecht escreve sobre os erros de Zhdanov: “Esse é o tipo de coisa que é sempre usado por intelectuais como bálsamo para a consciência quando fizeram a opção por seus empregos” (Idem, 24/03/1947, p. 290-291). Dois princípios da dialética são ressaltados: a) a frase relativa às contradições que parecem unificadas; e b) o princípio referente ao salto da quantidade para a qualidade (Idem, 19/01/1945, p. 259-260). Quando correlações de forças mostram-se didaticamente em disputa e a possibilidade de avançar nas lutas sócio-históricas encontra a ensejo de se concretizar. Problemas tidos como insolúveis para um dialético não encontraria dificuldade alguma; por exemplo, “[...] na disputa sobre se os escritores da alta burguesia representam a humanidade ou a burguesia, visto que eram ao mesmo tempo membros da humanidade e da burguesia e, portanto, seres contraditórios. Representam a humanidade enquanto membros da burguesia, e a burguesia enquanto membros da humanidade em geral” (Idem, 16/10/1943, p. 211-212). 327 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Nenhuma dialética — a arte de alcançar a verdade via afirmação e contestação — frequenta certas paragens. Por essa razão, Brecht não contemporiza com escolhas assumidas: Livro alemão de Stanislavski – a “realidade” se transforma num culto rebuscado. Em geral tem a ver com emoções subjetivas que são filtradas das influências do mundo exterior enquanto são elaboradas em exercícios de tipo jesuítico voltados para a autossugestão. Em parte alguma se recomenda a observação, a não ser a autoobservação. O mundo exterior reflete-se exclusivamente em percepções sensórias. Instintos e reações psíquicas compulsivas nunca são questionados. Tudo tem a ver com atos de criação, o ator cria a partir de si mesmo. [...] Nenhuma dialética no stanislavskismo (Idem, 15/09/1947, p. 297). Arte realista é a arte que contrapõe a realidade às ideologias e torna possível sentir, pensar e agir de maneira realista (Idem, 17/10/1943, p. 212) e Brecht é assertivo em seu quadro de diferenças entre Naturalismo e Realismo (30/03/1947, p. 293). Quando as pessoas partem, as lembranças também ficam nas anotações. Sobre a morte do produtor austríaco de teatro e cinema Max Reinhardt (1873-1943): “Nossa época, marcada pelo tremendo abismo entre arte e vida, de tal modo que há pouca arte na vida e pouca vida na arte. Não há nada natural na arte quando a vida é artificial” (Idem, 01/11/1943, p. 213). O divórcio entre a arte e a vida serve no capitalismo com indústria de alienação. Muitos, ainda, falam sobre o novo teatro. Todavia, Gorelik só pode fazer afirmações estéticas válidas quando descreve o teatro europeu. Nos EUA, a situação é bem outra: A utilidade política do drama não-aristotélico: os problemas começam na esfera estética. Toda uma nova experiência artística no teatro tem de se fazer compreender. Trata-se de renovar a metafísica, de terrenalizar a experiência artística. O homem não é mais joguete de forças sobrenaturais (as Parcas101, que ainda hoje controlam o plot na Broadway), nem de sua própria “natureza”. O novo teatro cria (e deriva sua vida da) alegria de transmitir relacionamentos humanos (Idem, 20/12/1944, p. 254-255). 101 Parcas: na mitologia latina, três divindades do destino. Em grego, Moiras: Cloto (fiar), Láquesis (sorte) e Átropos (inflexível). Cloto tece os fios da vida, Láquesis decidia da extensão de cada fio e Átropos cortava o fio (Nota do Org., p. 339). Porém, novos temas têm de ser abordados bem como refletir sobre as novas funções sociais do teatro. Novo público não para ver o mundo interpretado, mas para vê-lo mudado (Idem, 25/08/1943, p.196-197). Proposições estéticas não são destituídas de caráter político e vice-versa. Gorelik revela senso comum lendo o Círculo... Brecht frisa: Encenar o Círculo... demanda evitar os efeitos embriagadores da ilusão (Idem, 03/07/1944, p. 231). No entanto, Gorelik chegou tarde demais para ver esse resíduo de feudalismo [as migalhas que os pensionistas recebiam a título de caridade na Baviera]. Por outro lado a cultura parece exigir grande parcela de “conhecimento prévio”... (Idem, 30/07/1944, p. 232-233) e a complexidade das questões requer estudos das mais diversas áreas do conhecimento para efetuar uma crítica fundamentada. Contar não só com o concurso das mais diversas áreas da ciência, mas com as diferentes expressões artísticas no teatro (projeções, música, dança, canto etc.). Preocupações sobre a constituição e o caráter das músicas nas peças (30/07/1944, p. 234), aberto à reelaboração de textos quando acolhe conselhos pertinentes, como, por exemplo, os de Feuchtwanger acerca da personagem Gruscha em o Círculo... (Idem, 31/07/1944, p. 233). E estar apto a identificar a música de que o teatro épico deve prescindir (Idem, 06/11/1944, p. 249), ou seja, a que estimula o estupor, o desvairado coma em que se é embalado. O documento histórico também se antecipa para evitar confusões e mal-entendidos: não confundir teatro para uma época científica com teatro científico (Idem, 15/01/1945, p. 259). E coerente com quem tem interesses diversificados e produção intensa, Brecht faz referência a projetos que acabaram por não ser concretizados. Por exemplo, o de um Prometeu em que este entrega o fogo aos deuses, que atormentam a humanidade (Idem, 02/10/1945, p. 279). 7. Pobreza material e cultural nos EUA A pobreza nos EUA é sem dignidade (Idem, 07/05/1942, p.99). Numa viagem que passa pelo Arizona e Texas, Brecht observa as casas de madeira de dois andares, rústicas e cinzentas, e as pessoas parecem muito pobres (Idem, 12/02/1943, p. 171). Quando há algo que de alguma maneira evoque a existência de um período no passado que viesse a evocar a existência de uma cultura, Brecht ironiza: “Até parece que a América foi um dia uma nação com uma cultura” (Idem, 19/11/1942, p. 158). 329 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Em contraste, a Alemanha é terra da cultura. Lá, mesmo em condições adversas, um preso recita poemas de Brecht sobre o pintor de paredes, Hitler (Idem, 16/02/1943, p. 172). O valor de troca impera, deixando de lado o valor de uso: “Estas casas não se tornam propriedade de alguém para serem moradias, mas por meio de um cheque. Para o dono o que importa não é morar nelas e sim tê-las à sua disposição” (Idem, 20/09/1942, p. 144). Cinco anos depois, até habitar nos EUA tornara-se algo extremamente perigoso para um anticapitalista. A situação de artistas e intelectuais de esquerda se complica com o Comitê de Atividades Antiamericanas (House Unamerican Activities Committee) (Idem, 30/10/1947, p. 300), chefiado pelo senador republicano Joseph McCarthy (1908-1957), à cata de indícios e provas da influência comunista em todos os setores da sociedade. Fomentou a perseguição, a delação e a saída do país de artistas de diversas áreas da indústria do cinema e do teatro (Nota do Org., p. 344)102. Brecht depõe no referido Comitê e procura fugir, mais uma vez, da caça às bruxas. Não há ambiente para permanecer nos EUA sem risco. No dia seguinte, volta para a Europa: Voo para Paris (Idem, 31/10/1947, p. 301) e depois para Zurique (Idem, 06/11/1947, p. 302). 8. Conclusão Por um lado, a Segunda Guerra Mundial deixou de herança a imagem reforçada da capacidade destrutiva da humanidade, capaz de cometer um repertório eloquente de atrocidades e vilanias. Algumas dessas chagas cicatrizam. Por outro lado, muitas outras permanecerão expostas para a compreensão da necessidade sempre urgente de produzirmos condições de igualdade e justiça na distribuição do trabalho e de seu resultado. A guerra do dia a dia continua ceifando vidas a pretexto de manter em funcionamento o capitalismo selvagem em sua denominação atual, o neoliberalismo. Em vista disso, a resistência materializada na obra de Bertolt Brecht serve como exemplo do tipo de atitude e vontade política que devemos levar nas inúmeras frentes de batalha em busca de um mundo distinto, porque A perseguição pode ser aquilatada nos documentários “The McCarthy Years”. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=yVwCepEVk-8>. Acesso em: 12/04/2013; e “Point of Order.” Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=2EhOdSSI8n4>. Acesso em: 12/04/2013. 102 a realidade material é histórica, construída pelos homens em convívio, e, portanto, transformável. Referências bibliográficas BRECHT, Bertolt. Diário de trabalho, vol. 1: América, 1938-1941. (org.). Werner Hecht; tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. _________. Diário de trabalho, vol. 2: América, 1941-1947. (org.). Werner Hecht; tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. _______. “Pequeno órganon para o teatro”, in: Teatro dialético. Ensaios. Sel. e introd. Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. _________. “Turandot ou o Congresso das Lavadeiras”, in: Bertot Brecht Teatro Completo, vol. 10. São Paulo: Paz e Terra, 1993. LEBLON, Saul. País gasta com juros 13 vezes o custo do programa ‘Mais Médicos’. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/ postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1288. Acesso em: 24/07/2013. Vídeos sobre o Comitê de Atividades Antiamericanas (House Unamerican Activities Committee) ANTONIO, Emile de. Point of Order. Disponível em: http://www.youtube. com/watch?v=2EhOdSSI8n4. Acesso em: 12/04/2013. MARDER, Murrey. The McCarthy Years. Disponível em: http://www. youtube.com/watch?v=yVwCepEVk-8. Acesso em: 12/04/2013. 331 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 João das Neves e a crítica militante, por Roberta Carbone103 Resumo: O projeto dedica-se à pesquisa sobre o trabalho teatral de João das Neves, correspondente ao período histórico do processo de politização do Teatro de Arena e de formação do Centro Popular de Cultura da UNE (CPC). Dividido em duas partes, que abordam fases diferentes de sua atuação artística, a primeira analisa a produção crítica e tem como material de estudo as publicações no jornal comunista Novos Rumos. A segunda refere-se à participação no CPC, a partir de 1962, e tem como ponto de partida a posição diversa ao Anteprojeto do manifesto do CPC, elaborado por Carlos Estevam Martins. Assim, a pesquisa pretende documentar os trabalhos do artista no pré-1964, em análise que contribua para o entendimento do processo cultural brasileiro, a partir da verificação da relevância do pensamento de João das Neves104. Palavras chave: história do teatro, crítica teatral, teatro político. Abstract: The project intends to dedicate to developing a research on the theatrical work of the Brazilian playwright João das Neves, covering the historic period of the politicization of the Teatro de Arena and the constitution of the Centre for Popular Culture of UNE. It is divided into two parts covering the different stages of his artistic work; the first one analyzes the critical activity of João das Neves and consists of a study of the reviews he published in Novos Rumos. The second part covers his experience within the Centre for Popular Culture (CPC) in 1962, the position defended differs from the one expressed in the preliminary draft of the manifesto of the CPC, written by Carlos Estevan Martins. Thus, the research intends to document the work of João das Neves as an artist in the pre-19464 period so as to allow the readers to understand the Brazilian culture of the period, and the relevance of J. das Neves. Keywords: history of theatre, theatrical criticism, political theatre. A revolução, e não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria. Karl Marx(A ideologia alemã). Durante os primeiros anos da década de 1960, o dramaturgo e encenador João das Neves foi colaborador do jornal Novos Rumos, escrevendo sobre teatro. Uma publicação semanal do Partido Comunista Brasileiro, dirigida por Mário Alves e Orlando Bonfim, o jornal tem sua 103 Roberta Carbone é formada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e mestre em História do Teatro Brasileiro, também pela ECA/USP. Este texto é resultado de dissertação de mestrado orientada pela professora Maria Silvia Betti e apresentada ao Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP, intitulada: O trabalho crítico de João das Neves no jornal Novos Rumos em 1960: perspectivas sobre a construção de um fazer teatral épico dialético no Brasil. 104 primeira edição em 28 de março de 1959 e em seu editorial é possível perceber o alinhamento com as orientações do PCB. A crise que gerara a repercussão mundial dos acontecimentos relacionados ao XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), no início de 1956, havia provocado grande dissidência entre, principalmente, os intelectuais de esquerda e abalado a unidade do marxismo sob a égide do PCB. Para aproximar os trabalhadores e retomar o prestígio junto aos estudantes, os comunistas brasileiros passam então a adotar uma nova estratégia política, apostando no caminho da legalidade e na via de um governo nacionalista e democrático (RUBIM, 1998, p. 345). O imperialismo e o latifúndio são agora seus adversários primeiros e justificam a formação de uma “frente unitária das forças nacionalistas e democráticas”, legitimando a conciliação de classes, entre a burguesia e o proletariado. Reafirmando uma linha política deliberada por Moscou em 1935, a proposição dessa aliança se faz apoiada na especificidade de nosso país e de nosso tempo, em que “[...] o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo” (Declaração sobre a política do PCB, 1958) A conquista do socialismo é, assim, vinculada à ampliação dos espaços democráticos e a estratégia revolucionária é formulada a longo prazo. Antes de 64, o socialismo que se difundia no Brasil era forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes. A razão esteve em parte ao menos na estratégia do Partido Comunista, que pregava aliança com a burguesia nacional. Formou-se em consequência uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista então dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno (SCHWARZ, 1978, p. 63). E é esse “complexo ideológico” que se vê também espelhado em Novos Rumos, que se mantém como um dos instrumentos de propaganda do PCB até a sua proibição, em razão do Golpe Militar de 1964. No entanto, a colaboração de Neves se apresenta de modo singular. Isso tanto em relação às posições defendidas pelo partido, identificadas também com os propósitos do jornal, como no que se refere ao debate teatral do período. Com o olhar sempre voltado às urgências de seu momento histórico, ele aponta questões de grande importância para a construção de um projeto popular em arte – tema que permeou toda a atividade cultural do pré-1964. 333 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Ao mesmo tempo, seus escritos parecem desafiar a tradição crítica de então, como ao levantar a discussão sobre o experimentalismo formal e o engajamento estético, de modo que seu pensamento parece muitas vezes avançar sobre os limites propostos pelo seu tempo. 1. Revolução e contradição “Revolução e contradição”, publicada na edição de 15 a 21 de julho de 1960 do jornal Novos Rumos, talvez seja a crítica mais posicionada de Neves e por isso também a de maior repercussão. Augusto Boal, no pequeno trecho de sua autobiografia imaginada, Hamlet e o filho do padeiro (2000), em que comenta sobre Revolução na América do Sul, destaca o argumento conclusivo do crítico: “Do ponto de vista formal, foi Revolução que provocou no Arena, outra revolução. Todos elogiavam, mas alguns, como João das Neves, que escrevia para um jornal comunista, Novos Rumos, reclamavam de que a peça falava sobre o povo para plateia de classe média! Sempre a mesma queixa!” (BOAL, 2000, p. 176). O que Boal interpreta como “queixa”, Iná Camargo Costa coloca em outros termos. No livro A hora do teatro épico no Brasil (1996), uma das obras que se dedicam ao teatro do período, a autora introduz sua análise sobre a peça com a seguinte passagem: Quando Revolução na América do Sul estreou no Rio de Janeiro, em setembro de 1960, João das Neves escreveu para o jornal Novos Rumos a crítica “Revolução e contradição”, na qual apontava o passo em falso que o Teatro da Arena estava dando: produzir um espetáculo épico fora das condições em que ele faz sentido (COSTA, 1996, p. 57). Ou, nas palavras do crítico: Atualmente estamos assistindo, e os próprios mentores do grupo já se deram conta disso, a uma contradição viva. O Arena a fazer um teatro – que deveria ser assistido pela classe proletária, que pretende dirigir-se a ela, que deveria ser por ela criticado, ideológica e artisticamente – para a burguesia, para a gente “bem” de Copacabana (NEVES, 1960, p. 5). E, ainda que a produção de Neves tenha sido, por muitos, até agora ignorada enquanto constitutiva do pensamento crítico da época, o argumento acima representa o eco histórico de um debate que, segundo Maria Silvia Betti, significou a encenação de Revolução na América do Sul para o Teatro de Arena: Com o texto de Augusto Boal [...] a linha do nacionalismo crítico, iniciada com Black-tie e Chapetuba... [...], desloca-se da observação da realidade sócio-política para a ideia de compromisso, entendido no sentido da mobilização do público para uma adesão ao ponto de vista ideológico veiculado. [...] Esta passagem de um realismo documental para uma postura mobilizadora é defendida num momento em que o Arena estabelece uma nova meta, produto de debates e reflexões a respeito do papel do teatro diante do momento histórico: visase, agora, a oferecer teatro também para as camadas da população excluídas das salas de espetáculo; visase, ainda, a desenvolver um núcleo de pesquisa sobre o país, estreitando vínculos com associações culturais, sindicatos, e organismos preocupados com a cultura popular, criando equipes paralelas de atuação que se apresentem fora do espaço original do Teatro de Arena e em áreas de periferia, escolas, clubes, igrejas (BETTI, 1997, p. 63). Ao se propor a acompanhar as transformações de nosso teatro e, principalmente o processo de politização da cena, Neves problematiza as ações da militância e revela sua perspectiva de programa para o teatro engajado. E sua participação no Seminário de Dramaturgia no ano de 1960, quando da temporada carioca do Teatro de Arena, parece fornecer-lhe as bases para o diálogo com o novo ideário do grupo105. Assim, amparando-se nas discussões internas do Arena, o crítico ressalta a importância que a mobilização das classes trabalhadoras tinha para o teatro. E na medida em que seus escritos tendem a discutir os espetáculos para além das expectativas estéticas da crítica que atuava nos principais jornais da época, ele torna-se um importante interlocutor de alguns componentes do Arena. O diálogo direto com Oduvaldo Vianna Filho revela os primeiros passos da formação de uma frente teatral militante, que iria radicalizar sua proposta de ação com o trabalho do Centro Popular de Cultura. Por isso ainda, a documentação, em caráter público, do debate que também o Arena se colocava naquele momento é de suma importância para o entendimento das escolhas futuras de alguns de seus principais integrantes que, reafirmando suas reflexões estéticas segundo a prática da militância, migram para o CPC, assim como João das Neves. Mas a opção pela militância no CPC não parece ter sido uma “solução” para os problemas que o Arena, enquanto grupo, enfrentava. O que dá ainda a entender o porquê da interpretação de “queixa” que Boal faz da crítica de Neves. Ao examinar as concepções de nacional e popular 105 Informação concedida à autora em entrevista realizada no dia 22 de novembro de 2012. 335 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 para Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Vianinha, em Oduvaldo Vianna Filho (1997), Betti observa as diferentes visões que compunham o grupo. E o impasse vivido pelo Arena naquele momento – e tornado público nos termos da contradição apontada pelo crítico – parece restrito às reflexões de Vianna. Assim, em livro já citado, Costa analisa os antecedentes que levaram à criação do CPC a partir do exposto em textos como “O artista diante da realidade” e “Alienação e irresponsabilidade” (PEIXOTO, 1999), sobre o estrangulamento da manutenção de um modelo empresarial que, como comenta Betti: [...] O Teatro de Arena, em nenhum momento, perdera de vista a especificidade da relação teatral entre autores, atores e plateia, muito embora seu programa de atuação e sua própria estrutura física o distingam das demais companhias. A própria ideia de encenar peças fora do circuito do teatro comercial, em nome do processo de conscientização política, nunca tivera, como perspectiva, no Arena, a realização de um trabalho para “massas”, mas para segmentos do proletariado arregimentado em sindicatos, indústrias ou áreas da periferia (Op. cit., 1997, p. 71). A passagem acima complementa a exposição do pensamento de Oduvaldo Vianna Filho que, segundo Betti, já se faz sentir na escolha dos termos de que ele faz uso: “Nota-se, primeiramente, que ao questionar o alcance cultural do trabalho do Arena, Vianinha o faz a partir da perspectiva de ‘massas populares’, e não mais de ‘público’ na acepção usual do termo” (Ibidem, 1997, p. 71). Ao colocar em foco a função social do teatro, Neves parece dar voz a um debate histórico, expondo publicamente a necessidade de enfretamento de um dos temas de urgência para os artistas militantes do pré-64. Tema esse que, dada a sua importância, foi retomado em estudos posteriores, como o de Iná Camargo Costa ou Maria Silvia Betti, que procuram discutir – mesmo que em termos mais amplos, dado o privilégio da distância temporal – o que a contradição apontada pelo crítico representou para os encaminhamentos futuros do teatro brasileiro. E, nesse sentido, outros pontos, que confluem para o que foi dito até agora, podem ainda ser destacados do escrito de Neves sobre a peça de Boal. A hora do teatro épico no Brasil106 Em Revolução na América do Sul, o operário José, despedido após uma tentativa solitária de reivindicação de aumento salarial, assiste ao processo eleitoral para o qual concorrem seu ex-colega de trabalho Zequinha Tapioca – suposta oposição – e o Líder, candidato da maioria. As negociatas para espoliar a indústria nacional, os efeitos da propaganda eleitoreira e a ação dos grandes trustes internacionais decorrem sem interferência externa. O Povo, representado por José da Silva, se mantém alheio às negociações dos demais personagens – Jornalista (a imprensa), Anjo da Guarda (o imperialismo), Milionário (o capital nacional), entre outros. Ao final da peça, com a morte de José, uma crise momentânea de função se instaura, já que não há mais a quem governar; e o operário é prontamente substituído pelo coveiro, o novo governado. A associação da peça a Brecht é o principal argumento de muitas críticas da época, que pontuam a influência do dramaturgo alemão em Revolução, como Décio de Almeida Prado: “A inflexão antirrealista que Revolução na América do Sul imprimiu ao Arena marcava o início da influência de Brecht no Brasil” (2002, p. 70). O mesmo efeito brechtiano é identificado por Bárbara Heliodora, que segue comparativamente relacionando os dois autores no que se refere aos ganhos e perdas na articulação do conteúdo político e da realização dramática, sempre em defesa da última: Revolução na América do Sul é profundamente influenciada por Brecht, mas, para grande regozijo nosso, Augusto Boal conseguiu livrar-se da extrema reverência ao mestre, rasgou a fantasia e fez o que Brecht havia feito, principalmente nos primeiros estágios de sua carreia, quando esteve influenciado pelas formas de entretenimentos de cabarés e circos (BRAGA, 2007, p. 511). Se a referência ao dramaturgo, feita também por Neves, não apresenta novidade para a crítica do período, há, por outro lado, uma diferença fundamental em sua análise, que reside no fato de abandonar a ideia de influência, como se destaca nos trechos acima citados. Como marxista e homem de teatro, o crítico parece ter condições de discutir Brecht que superam, concretamente, as da crítica naquele momento. O seu apontamento apresenta, assim, a questão em outros termos, reconhecendo a importância histórica para o teatro brasileiro da mudança de paradigma 106 Faz-se referência aqui ao título do livro de Iná Camargo Costa já citado. 337 implicada na composição de Revolução: a adoção de um novo modelo dramatúrgico. E, para a validação de seu ponto de vista, Neves se utiliza de uma citação do próprio Brecht: Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Não há um acesso puramente teórico aos métodos do Teatro Épico: O melhor é, na prática, copiar e esforçarse incessantemente por descobrir as razões dos grupamentos cênicos, dos movimentos e dos gestos indicados. Em minha opinião, deve-se ter feito uma cópia antes de realizar-se, por si, um modelo... E é preciso ter sempre em mente que há uma cópia servil e uma cópia soberba (NEVES, 1960, S/P). Sobre o trecho acima, Neves observa: “Estas palavras, que pronunciadas em referência à encenação de suas peças, podem e devem ser transportadas a qualquer realização que vise o Teatro Épico.”. Dessa indicação, pode-se concluir que a passagem tenha sido extraída de comentário do dramaturgo sobre “a práxis no teatro”107 e, guardadas as diferenças de tradução – já que Brecht ainda não havia sido editado no Brasil –, encontra-se a mesma ideia em “A utilização de um modelo restringe a liberdade artística?”, publicado em Estudos sobre o teatro, com tradução de Fiama Pais Brandão (BRECHT, 2005). No referido texto, uma entrevista realizada por E. A. Winds, diretor do teatro da cidade alemã Wuppertal, Brecht discute a necessidade de utilização de um modelo formal – épico – para a montagem de sua peça Mãe coragem. E a defesa de uma orientação estética se contrapõe à reprodução generalizada de certos procedimentos teatrais, de conhecidos efeitos, a quaisquer textos a serem encenados, como de hábito entre os diretores de seu tempo. Mas, ao ser interrogado sobre o conceito de teatro épico ou estilo de representação épica, Brecht responde: É extraordinariamente difícil descrever em poucas palavras do que consta uma representação épica. Até agora, as tentativas que fizeram neste sentido levaram, na sua maioria, a banalizações extremamente equívocas (suscitando a aparência de que se pretende eliminar tudo o que seja emocional, individual, dramático, etc.) (BRECHT, 2005, p. 221-222). Para além da discussão proposta, a crítica de Neves apresenta um importante registro das leituras feitas pelos artistas da década de 1960. Pois, se é sabido que o Brecht dramaturgo já se fazia presente no Brasil do final dos anos 1950, pouca ainda é a informação do que aqui se tinha “A práxis no teatro” dá nome à segunda parte do livro Escritos sobre teatro, de Bertolt Brecht, publicado na versão brasileira pela Editora Nova Fronteira. 107 acesso de seus escritos teóricos, para o que a citação do crítico abre alguns caminhos108. O trecho citado parece também dar pistas do modo como o teatro militante se apropriava dos ensinamentos do dramaturgo, já que os esforços de Neves parecem no sentido de afastar o modelo épico brechtiano de uma definição puramente formal ou até mesmo esquemática. Desse modo, e mesmo que indiretamente, o crítico acaba por colocar em questão certas falas da época, como o tão repetido “distanciamento emocional”, frequentemente identificado na peça de Boal quando referida a Brecht. Pois, se há validade nessa afirmativa, ela poucas vezes foi apresentada como um pensamento mais complexo, que a ultrapassa enquanto objetivo109. Ao negar certos lugares comuns de definição da forma épica, o crítico traz para o centro do debate o ponto de aproximação da peça de Boal com a proposta brechtiana: a metodologia de análise materialista. A crítica de Neves revela, portanto, uma leitura politizada de Brecht, distante dos ditames puramente estéticos e aproximada de Karl Marx; uma leitura que procura considerar os objetivos e efeitos cênicos, segundo suas possibilidades de análise social e seus efeitos de mobilização. Não perdendo de vista a materialidade do teatro, e mesmo tirando seus argumentos dos processos do Arena, Neves procura fundamentar o que se acredita ser a tentativa de teorização de uma nova forma de apreensão da realidade, decorrente do enfrentamento dos problemas de seu momento histórico. E a conclusão sobre o caráter militante de sua escrita se encontra na função de sua crítica, que não é apenas a de informar, mas de formar, explicitando os mecanismos de feitura teatral, refutando fórmulas de fácil reprodução e apontando como caminho a pesquisa, trabalho que também destaca em Revolução. E é ainda, nesse sentido, que Neves avalia o uso dos recursos 108 Segundo Sábato Magaldi: “Foi só com sua morte, ocorrida em 1956, que Brecht se tornou mais familiar aos brasileiros. Passamos a escrever sobre sua concepção épica e sobre suas peças, traduzidas para o francês e o inglês. Começava-se a encená-lo entre nós, com uma preocupação bastante ortodoxa, quanto ao propalado efeito de distanciamento. Em 1958 houve a primeira montagem profissional brechtiana de efetivo valor, realizada pelo italiano Flaminio Bollini Cerri no Teatro Maria Della Costa de São Paulo (pelo Teatro Popular de Arte e Cia. Maria Della Costa-Sandro Polônio).” Na sequência, a montagem de relevância, que merece ser citada é de 1968, do texto Galileu Galilei dirigido por José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina (MAGALDI, 2005, p. 223-224). 109 Sobre a pertinência desse debate ainda nos dias de hoje, Sérgio de Carvalho comenta ao discutir a atualidade de Brecht: “[...] não se pode considerar o distanciamento como uma técnica – puramente formal – sendo antes um efeito que se realiza na percepção de crítica social gerada pela representação” (CARVALHO, 2009, p. 45). 339 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 formais retirados de nossa tradição teatral, enquanto ferramentas para a experimentação épica: Os elementos altamente positivos da crítica do autor estão nos aspectos caricaturais assumidos pelos exploradores de José da Silva (patrões, políticos – os trustes, organizações religiosas, etc.). E aí começam os equívocos de julgamento em torno do tratamento apresentado pelo Teatro de Arena de S. Paulo. Acusaram o autor de exagero, desonestidade (sic) e de introduzir em sua crítica facilidades de revista. Que isso não tinha nada de Brechtiano etc. etc. Bobagens! Esqueceram-se quase todos que Revolução pretende ser uma peça popular, que pretende entre muitas outras coisas ridicularizar os exploradores de nosso povo, esqueceram-se sobretudo que a caricatura é um gênero de arte popular (nunca vulgar) e como tal perfeitamente válida, que pelo próprio Brecht foi várias vezes utilizada, e utilizada inclusive com o fito de chocar o “bom gosto” da burguesia reacionária (NEVES, 1960, S/P). Apesar da associação quase unânime de Revolução a Brecht, a relação do dramaturgo alemão com a forma adotada por Boal parece não ter sido bem aceita pela crítica da época, como o trecho acima procura expor. Já que o comentário sobre, por exemplo, as “facilidades de revista” é citado como tentativa de rebaixamento da peça. E dada a sua ampla repercussão no pensamento teatral, ele é também discutido por Iná Camargo Costa em sua análise de Revolução, para o que a autora encontra uma das razões no “[...] antigo preconceito do teatro brasileiro tido como sério contra a farsa, a sátira e a revista [...].”110 (COSTA, 1996, p. 60). No entanto, a defesa do tratamento dado por Boal revela a compreensão, no campo formal, de um posicionamento estético frente ao assunto abordado. E é para além da representação propriamente dita que parece se referir o principal argumento da crítica de Neves em relação aos recursos adotados pelo dramaturgo, onde se vê colocado o tema da luta de classes, mas por outro ângulo: do chamado “bom gosto da burguesia reacionária”. O recurso à caricatura, definida como um “gênero de arte popular”, é assim defendido como uma tomada de posição frente ao que ele denomina de “bom gosto”, ou uma arte identificada pelo crítico ao hábito cultural Em A hora do teatro épico no Brasil, a autora faz uma rica análise de Revolução na América do Sul segundo as convenções do teatro de revista, estabelecendo a função de compère à personagem de José da Silva (COSTA, 1996, pp. 60-69). 110 burguês111. E, nesse sentido, Neves parece ainda posicionar muito da crítica, trazendo para o debate o questionamento de padrões culturais socialmente reconhecidos. Ele tenta, assim, explicitar o uso de tal recurso enquanto “efeito”112, no caso a deformação caricatural dos exploradores de José da Silva (o Povo), por meio do qual Boal pretendeu estabelecer o ponto de vista crítico de sua peça, sobre o que Neves ainda comenta: Aliás, é sintomático no caso da Revolução que esta burguesia saia do teatro um pouco insatisfeita, arrependida talvez de ter se divertido tanto com o próprio retrato, “cantando” as “vulgaridades” as “facilidades de teatro revista” do espetáculo. A luta de classes sempre foi um pouco incômoda, mesmo quando levada na brincadeira (NEVES, 1960, S/P). Assim, a análise de João das Neves avança em relação ao teor das considerações estéticas mais correntes no âmbito da militância do PCB nesse período. E ao problematizar as ações de mobilização e historicizar o debate sobre a forma – aspecto que distingue seus textos críticos –, ele se apresenta como um dos primeiros a discutir o fazer teatral épico-dialético em andamento no Brasil do pré-64, enquanto processo revolucionário. 341 111 Em “Uma crise preparada há quinze anos”, Vianna aponta os entraves do “gosto” perpetuado por uma classe para o reconhecimento social de outras formas de arte, ao que ele chama de “aristocrática discriminação” (PEIXOTO, 1999, p.31). 112 Refere-se aqui à ideia exposta por Sérgio de Carvalho citada em nota acima. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências bibliográficas BRAGA, Claudia (org.). Barbara Heliodora: escritos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007. BETTI, Maria Sílvia. Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: Edusp, 1997. BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro – Memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000. _________. Teatro de Augusto Boal. Volume 1. 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RUBIM, Antônio Albino Canelas. “Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil”, n: MORAES, João Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil. Campinas/SP: Unicamp, 1998. SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política”, In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. VOZ OPERÁRIA. “Declaração sobre a política do PCB”. Rio de Janeiro: 22 de março de 1958. Dramaturgia de testimonio – o desvelamento de uma possibilidade, Luiz Carlos Checchia113 Resumo: O ensaio apresenta proposta de diálogo entre a literatura de testimonio e a dramaturgia engajada brasileira, sobretudo, aquela desenvolvida pelo chamado teatro de grupo. Palavras-chave: Teatro, Teatro Engajado, Literatura de testimonio, dramaturgia, teatro de grupo. Abstract: This paper presents dialogue proposal between the testimonio literature and engaged Brazilian drama, especially the one developed by the group theater. Keywords: Theater, engaged theater, testemonio literature, drama, theater group. Veterana – Ninguém vai falar? Ninguém vai protestar? Veterano – A verdade tem que ser dita nem que seja feia, nojenta e maldita O passado tem que ser passado a limpo Quem lutou? Quem Morreu? O que foi que realmente aconteceu? César Vieira (A cobra vai fumar). Uma voz latino-americana: a literatura de testimonio A segunda metade do século XX assistiu ao esforço dos EUA em ampliar sua influência sobre todo o continente americano, utilizando-se, para isso, de diversos expedientes, inclusive o financiamento e o apoio às mais violentas ditaduras militares. No bojo da história de uma América Latino-americana que tentava superar todas as adversidades impostas por um longo processo de colonização e exploração por parte das grandes metrópoles europeias e, depois, do imperialismo estadunidense, surgiram as lutas de resistência e libertação desses povos. Realidade semelhante ocorria também em países africanos e asiáticos, que, junto aos países latino-americanos, eram conhecidos como terceiro mundo. As formas de resistência e de luta incluíam também ações no universo da arte, por meio da música, da literatura, do teatro, das artes plásticas e outras expressões mais. É nesse contexto em que passam a ser realizados, na importante Casa de las Américas, no final dos anos de 1960, os debates em torno de uma forma literária114 surgida entre autores e autoras oriundos da América Luiz Carlos Checchia, integrante da Cia Teatro dos Ventos, atuando nas funções de diretor e dramaturgo; historiador e mestrando em Ciências Humanas no Diversitas, Núcleo Interdisciplinar da FFLCH-USP. 113 114 Utilizamos aqui, e também quando abordarmos o sujeito histórico teatro de grupo ao conceito apresentado por Raymond Williams, em Cultura (2000), para quem, grosso modo, 343 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Latina. Essa forma, em linhas gerais, caracterizava-se, no concernente em seu aspecto político e de denúncia a uma possibilidade de ser a voz daqueles que não podiam ou que não puderam escrever suas experiências; e, por fim, à escrita em caráter quase jornalístico, mas sem abrir mão da preocupação estilística com a obra, garantido seu valor estético. Essa prática literária recebeu, em 1970, como conclusão dos debates realizados, o nome de literatura de testimonio. A literatura de testimonio assumiu um papel preponderante nas lutas sociais e políticas durante os anos de 1970 e 1980; e, por meio dela, foi possível não apenas recuperar e evidenciar as experiências de pessoas e povos submetidas a diversas formas de opressões, mas também, e sobretudo, colocar essas situações em uma perspectiva histórica, suscitando e mantendo debates e análises críticas a seu respeito. É inevitável associar a literatura de testimonio ao pensamento de Walter Benjamin exposto em seu texto Experiência e pobreza (1993): a ação de escrever artisticamente os relatos das luta e das resistências de pessoas e povos subjugados, explorados e expropriados é uma ação que busca evitar que a experiência humana seja tragada pela pobreza de experiência que acompanha a barbárie engendrada nas contradições da modernidade e da cultura burguesa. O esforço empreendido na realização de uma obra de testimonio transcende apenas o registrar uma experiência ou condição de indivíduos isolados, para alcançar o objetivo de revelar e resistir à naturalização da barbárie. A literatura de testimonio é, de certa maneira, uma literatura das ausências, no sentido que Boaventura Souza Santos (1997) confere ao termo, e ainda segundo o intelectual português, abre o campo da disputa política às emergências de nosso continente, sua história e cultura, colocando-os no embate pela partilha do sensível comum. Um teatro engajado no Brasil Há uma longa tradição de um teatro engajado no Brasil, que em suas feições modernas remontam a, pelo menos, 1958, com a montagem, no Teatro de Arena, de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, e está profundamente analisada por pesquisadores e pesquisadoras como Iná Camargo Costa, Fernando Peixoto, Roberto Schwarz e Marcos Napolitano, e entre os seus nomes mais significativos encontram-se Vianinha, Boal e Guarnieri. Atualmente, essa tradição se expressa, sobretudo, pela forma teatro de grupo. Uma resposta de artistas e técnicos excluídos do o conceito de forma pode ser entendido correspondendo a formações sociais e históricas carregas das contradições de seu contexto. desenvolvimento do teatro-mercadoria em terras brasileiras, o teatro de grupo tem seus primórdios nos anos de 1970, mas é nos anos de 1990 que suas feições atuais consolidaram-se, levando em questão não apenas o que tange os aspectos poéticos e técnicos que lhes são inerentes, mas, sobretudo, seus aspectos políticos, que se expressam tanto nos temas levado à cena por muitos grupos como, e principalmente, na organização dos processos de produção, momento em que seus participantes assumiram – da forma como aponta Walter Benjamin em seu clássico texto O autor como produtor (1997) – a disputa pela produção de sua arte. Ainda que singrando nas desfavoráveis águas do capital, portanto carregada de contradições, a forma teatro de grupo tem se mantido como espaço de criação estética e resistência política, ainda que não tenha consigo levar adiante conquistas acerca da democracia econômica, conquistando, quando muito, a criação de alguns poucos editais por parte do poder público. O teatro de grupo tem mantido, ainda, um intenso fluxo de pesquisas estéticas e técnicas e de trocas de informação, tanto entre os grupos quanto destes com o público em geral, por meio de seminários, encontros, fóruns, publicações etc. Tanto por seu potencial criativo e engajado, quanto pela práxis da pesquisa e divulgação, acreditamos ser o teatro de grupo o local privilegiado – ainda que não exclusivo – para o diálogo entre o teatro engajado e a literatura de testimonio. Não acreditarmos que um possível diálogo entre literatura de testimonio e dramaturgia engajada seja uma aproximação artificial ou estéril: tanto o engajamento das artes no Brasil quanto a definição de Literatura de testimonio surgem no mesmo contexto de críticas e lutas contra as várias formas de opressão no então chamado terceiro mundo, sobretudo na América Latina. Dramaturgia de Testimonio. Uma aproximação possível. E talvez necessária. Os princípios da literatura de testimonio quando levados à cena ampliam a dimensão sensível da experiência apresentada, aprofundando o laço que une personagens, suas situações vividas e o público. Essa dimensão sensível não diz respeito à catarse aristotélica – pela qual haveria uma identificação acrítica entre personagem x público – mas promoveria uma identificação crítica entre as condições às quais tanto as personagens quanto o público estão submetidas nos dois contextos, compreendendo o estético e o social. Aproximar a literatura de testimonio à dramaturgia constituiria, se possível, uma dramaturgia de testimonio, possibilitando a 345 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 ampliação do repertório de dramaturgistas engajados; ampliando, ainda, o campo de experiências e pesquisas na dramaturgia de esquerda dentro do movimento de teatro de grupo, envolvendo coletivos, grupos e artistas. Pensar a possibilidade de uma dramaturgia que possa ser identificada com a literatura de testimonio não significa o simples deslizamento dos princípios e pressupostos desta para aquela. É preciso maior análise e debate acerca de características inerentes ao teatro que precisam ser pensadas numa dramaturgia de testimonio, tal como a duração de um espetáculo; as delimitações narrativas, muito mais enxutas num texto teatral do que em um romance; a utilização de recursos técnicos como iluminação, cenários e figurinos para a composição narrativa e o diálogo com os gêneros e modalidades especificamente teatrais. Todos esses aspectos precisam ser avaliados com profundidade para que possa ser definido um conceito claro e satisfatório de dramaturgia de testimonio. Isso significa que seriam necessários debates, estudos, análises e muita experimentação para a delimitação desse conceito, produzindo, assim, um volume de conhecimento que por si só já justificaria tamanho esforço de aproximação. Não estamos, evidentemente, propondo algo novo, o que estamos chamando de dramaturgia de testimonio já é uma realidade: espetáculos como A cobra vai fumar, que conta a situação dos soldados brasileiros que serviram a Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial, montada pelo Teatro Popular União e Olho Vivo, ou Máquinas paradas, da Cia. Teatro dos Ventos que narra a histórica greve de Osasco e, ainda, Ser tão ser: narrativas de outra margem, do grupo Buraco d’Oráculo, que recolhe testemunhos diversos para contar a vida nos “sertões urbanos” das periferias da cidade de São Paulo, se utilizam de testemunhos de participantes desses processos históricos para compor suas dramaturgias. Portanto, não estamos propondo algo novo, mas constatado uma tendência que parece cada vez mais consolidada dentro do movimento de teatro de grupo. Todavia, ao constatar essa tendência, percebe-se que ela ainda não foi nem reconhecida nem debatida, ficando, ainda, apenas como uma tendência não intencional de artistas e grupos. Promover o debate acerca da delimitação do conceito de dramaturgia de testimonio permitiria ampliar sua potência estética e poética, aprofundar sua eficácia enquanto ação política e construir novas possibilidades dentro desse campo dramatúrgico, provocando novos estudos, novas experiências, novas possibilidades. Boaventura Souza Santos propôs, em seu texto A queda do Angelus Novus (1997), que reflitamos sobre a necessidade de elaborarmos uma nova teoria da História para esses nossos tempos obscuros115, que dê conta de alertar a humanidade dos assombros provocados no presente e no passado e que nos faça perceber que o ocorrido não ocorreu pela inevitabilidade dos processos históricos, mas por escolha de seus agentes, e, assim sendo, podemos optar e lutar por outras consequências históricas, fazer outras escolhas. Da mesma forma como propôs Boaventura, para a questão da História, propomos aqui uma nova percepção dramatúrgica sobre um teatro já realizado acerca das histórias de pessoas e de comunidades e de suas condições sob a barbárie do nosso tempo; intensificar a exposição de tais histórias para aproximar público e personagens por meio do reconhecimento das condições materiais e subjetivas impostas pelo capital compartilhadas por todas as gentes das classes subalternas. Para explicitar esse contexto, é sempre preciso um teatro que “[...] empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto” (BRECHT, 1997, p. 197). Acreditamos que uma possível dramaturgia de testimonio seria um instrumento a mais nesse processo de transformação. 347 Tempo de subjugação da humanidade aos desregramentos da economia capitalista, de passeatas nas grandes avenidas brasileiras a pedir por “intervenção militar”, eufemismo pós-moderno para “golpe militar”, e de intenso processo de formação de uma cultura neopentecostal, colocando abaixo a laicidade do Estado. 115 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referência bibliográficas ANDRÉ, Rina Landos Martinéz. La literatura de testimonio y la crítica. Disponível em <cpd1.ufmt.br/meel/arquivos/artigos/32.pdf > _________. El testimonio. Roque Dalton y la representación de la catastrofe. Tese de doutorado. 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O professor propôs que os estudantes escolhessem sete peças, de autores diferentes, como se estivessem editando uma suposta antologia da dramaturgia brasileira, moderna e contemporânea. As peças selecionadas seriam apresentas por intermédio de um prefácio explicitando os motivos das escolhas. No intuito de traçar um percurso lógico e identificável da dramaturgia nacional, optou-se pelas seguintes obras: Paiol Velho (1951), de Abílio Pereira de Almeida; A revolução dos beatos (1961), de Dias Gomes; O testamento do cangaceiro (1961), de Chico de Assis; Vereda da salvação (1963), de Jorge Andrade; Os Azeredo mais os Benevides (1964), de Oduvaldo Vianna Filho; Na carrera do Divino (1979), de Carlos Alberto Soffredini; e Agreste (2004), de Newton Moreno. Para conferir unidade temática à coletânea, todas são ambientadas em localidades distantes dos grandes centros urbanos, donde se compreende o “sertão” do título, utilizado no sentido mais largo do termo. Palavras-chave: dramaturgia brasileira moderna, dramaturgia brasileira contemporânea, teatro brasileiro moderno, teatro brasileiro contemporâneo, sertão. Abstract: This article is based on the complete works of Theatre, Literature and Modernization in Brazil, given by Gilberto Figueiredo Martins. The lecturer suggested that students choose seven plays from different authors, as if we were editing an anthology of Brazilian modern and contemporary dramaturgy. The reason for selecting each play is explained in the preface. In order to provide a logical and identifiable idea of national dramaturgy, we chose the following works: Paiol Velho (1951), by Abílio Pereira de Almeida; A Revolução dos Beatos (1961), by Dias Gomes; O Testamento do Cangaceiro (1961), by Chico de Assis ; Vereda da Salvação (1963), by Jorge Andrade; Os Azeredo mais os Benevides (1964), by Oduvaldo Vianna Filho; Na Carrera do Divino (1979), by Carlos Alberto Soffredini; and Agreste (2004), by Newton Moreno. To check the thematic unity to the collection, all are set in remote locations in large urban centers, where one understands the “wilderness” of the title used in the broadest sense of the term. Doutorando e mestre em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), onde realiza pesquisa sobre a formação da historiografia teatral brasileira, mais especificamente sobre a obra crítica e historiográfica de Décio de Almeida Prado. 116 349 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Keywords: modern Brazilian dramaturgy, contemporary Brazilian dramaturgy, modern Brazilian theater, contemporary Brazilian theater, wilderness. Conceitos como moderno, modernismo e modernidade não são fáceis de delimitar. A um só tempo estéticos e históricos, eles carregam consigo uma gama bastante ampla de definições, que podem variar consideravelmente dependendo da ocasião em que são mobilizados. Para um historiador tradicional, por exemplo, moderno seria aquele período compreendido entre a queda de Constantinopla para os turcos otomanos (1453) e a Revolução Francesa (1789). Já para um historiador das artes, atrelado a movimentos de ordem estética, o termo tenderia a adquirir conotações um pouco mais complexas e abstratas, na medida em que a chamada “arte moderna” não se insere dentro daquele intervalo, designando uma época posterior a ele – que iria, grosso modo, do final do século XIX ao início do XX. Nem mesmo inserido em uma manifestação artística específica (no caso, a literatura) tais conceitos são consensuais. O que nossos vizinhos hispano-americanos denominam de “modernismo literário” pouco ou nada tem a ver com a maneira como nós brasileiros concebemos essa expressão. Enquanto, para eles, o modernismo teria se iniciado com a publicação de Azul... (1888), livro de contos e poesias escrito pelo nicaraguense Rubén Darío, o representante máximo da reação antirrealista em língua espanhola, para nós o vocábulo se confunde inevitavelmente com a literatura produzida a partir da Semana de Arte Moderna, realizada em 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Não obstante a diferença, nada desprezível, de 34 anos entre uma manifestação e outra, vale lembrar que a primeira correspondia aproximadamente ao simbolismo, ao passo que a segunda associava-se de perto às chamadas vanguardas europeias, em especial o futurismo. No teatro, arte híbrida por excelência, que mantém um pé na literatura e outro nas artes cênicas, definir com precisão termos como moderno e modernismo não é tarefa simples. Em primeiro lugar, se faz necessário estabelecer certos limites na hora de utilizá-los, normalmente relacionados ao âmbito em questão, associado ou à dramaturgia ou à encenação. Se, para muitos historiadores do teatro ocidental, a arte da encenação já nasceu moderna, surgindo no momento em que André Antoine fundou, em 1887, o Théâtre Libre, a dramaturgia assim considerada teria aparecido um pouco depois, em 1896, com a conturbada estreia de Ubu rei117 no Théâtre de l’Oeuvre. Em se tratando de teatro brasileiro, o estabelecimento de balizas seguras que atestem o advento do modernismo em nossos palcos e estantes tende a adquirir tonalidades obscuras. Entre outros fatores porque, ao contrário da literatura, das artes plásticas e da música, o teatro não se fez presente na histórica Semana de Arte Moderna, um marco decisivo, malgrado seu peso para a cultura nacional não ter alcançado jamais unanimidade crítica e/ou historiográfica. De todo modo, tomando a Semana como referência, o teatro brasileiro só teria se modernizado efetivamente, segundo uma gama considerável de historiadores, 21 anos após sua realização, quando, em 1943, estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro o espetáculo Vestido de Noiva, escrito por Nelson Rodrigues e dirigido por Zbigniew Ziembinski. É claro que, nesse ínterim, algumas tentativas foram feitas no sentido de atualizar texto e palco brasileiros, de modo a colocar o país em sintonia com as correntes ditas modernas de dramaturgia e encenação – cujas origens, como sempre, vinham da Europa. No âmbito dramatúrgico, merecem destaque algumas peças escritas no início da década de 1930, como Deus lhe pague (1932), de Joracy Camargo; Amor (1933), de Oduvaldo Vianna; e Sexo (1934), de Renato Vianna. Todas elas, ainda que discretamente, já apresentavam temas ou formas considerados modernos. Não à toa, todas ganharam montagens em suas respectivas épocas e obtiveram sucesso de público. O mesmo não se pode dizer da obra teatral de Oswald de Andrade, plenamente moderna e produzida no mesmo período: de suas três peças, somente uma (O rei da vela, de 1933) foi representada, e mesmo assim 34 anos depois de escrita118, A morta, de 1937, com diversas montagens. O homem e o cavalo, de 1934, que, salvo engano, ainda permanece inédita no palco. Na esfera da cena, não se pode esquecer alguns ensaios de modernização que, embora fugazes, “prepararam o terreno”, por assim dizer, para o estrondoso sucesso de Vestido de Noiva, consolidando de vez o modernismo no teatro nacional. Exemplos marcantes dessa trajetória seriam o grupo Batalha da Quimera, fundado em 1922 por Renato Vianna, Peça de Alfred Jarry, que a teria concebido ainda na adolescência, embora sua versão definitiva, publicada em livro, tenha antecedido em poucos meses a estreia no palco, quando o autor já contava 23 anos de idade. 117 118 Trata-se da montagem realizada pelo Teatro Oficina em 1967, com direção de José Celso Martinez Corrêa, uma das mais importantes da história do teatro brasileiro. 351 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Ronald de Carvalho e Heitor Villa-Lobos; o Teatro de Brinquedo, fundado em 1927 pelo casal Álvaro e Eugênia Moreyra; o Teatro da Experiência (1933), iniciativa pioneira de Flávio de Carvalho; e o Teatro do Estudante do Brasil (1938), criado a partir do incentivo de Paschoal Carlos Magno. Com exceção, talvez, do último caso, em todos os outros a influência do modernismo teatral francês era perceptível, capitaneada especialmente pelo Vieux-Colombier, de Jacques Copeau, e seus honoráveis “seguidores”, membros do Cartel dos Quatro (Gaston Baty, Louis Jouvet, Charles Dullin e Georges Pitoëff). Percebe-se, por meio dessa exposição sumária, que a introdução do modernismo no teatro brasileiro foi muito mais um processo do que um evento. A importância atribuída a Vestido de Noiva nessa trajetória talvez se deva ao fato de que, naquele espetáculo, finalmente texto e encenação estiveram “de mãos dadas e dedos entrelaçados”, no qual um drama moderno, com insuspeitadas influências expressionistas, foi montado de acordo com uma concepção cênica idem. Seu enorme sucesso representou, até certo ponto, uma sentença de morte para o chamado “velho teatro”, marcado, no que concerne ao repertório, pelas idílicas e ufanistas comédias de costumes escritas por autores como Gastão Tojeiro, Armando Gonzaga e Cláudio de Souza. Mas, qual seria, afinal de contas, a “mola-mestra” a nos conduzir dessa para aquela dramaturgia, isto é, das comédias de costumes para o drama moderno brasileiro? Um bom parâmetro analítico, fundamental na escolha das peças que compõem a antologia ora apresentada, encontra-se de maneira algo esparsa na obra de um escritor que, embora não tenha participado da Semana de Arte Moderna, pode ser considerado um modernista de primeira hora: Antônio de Alcântara Machado. A partir de 1926, quando fundou o periódico Terra Roxa e Outras Terras, jornal quinzenal de recorte assumidamente modernista, Alcântara Machado iniciou uma verdadeira militância em prol da modernização do teatro brasileiro, mais especificamente em relação à sua dramaturgia, em uma série de artigos de escancarado viés panfletário. Antes disso, já havia exercido a crítica de espetáculos no Jornal do Comércio, sem jamais esconder sua insatisfação com o teatro de então. Na ótica do escritor paulista, o teatro brasileiro dos anos 1920, pródigo na exaltação de uma brasilidade tradicionalista e saudosista, voltada aos valores rurais e suburbanos da realidade nacional, chegara a uma espécie de beco sem saída, de onde não se podia mais avançar. O espectador brasileiro simplesmente não se reconhecia mais naquilo que se via nos palcos da época. Faltava à dramaturgia brasileira... brasileiros, pois ela desconhecia a figura do cangaceiro, do bicheiro, do proletário, do imigrante, do industrial etc. Para que a cena nacional pudesse de fato oferecer uma representação autêntica de brasilidade, sem se render ao pitoresco explorado à exaustão pela comédia de costumes, Alcântara Machado propunha a “salvação pelo popular”, ou seja, que o teatro brasileiro, partido do zero, absorvesse algumas formas e convenções próprias de gêneros teatrais considerados “menores”, como, por exemplo, a revista e a burleta. Vem daí a sua admiração, compartilhada com outros modernistas, pelo palhaço Piolin, do Circo Alcebíades. São Paulo tem visto companhias nacionais de toda a sorte. Incontáveis. De todas elas, a única, bem nacional, bem mesmo, é a de Piolin! Ali no Circo Alcebíades! Palavra, Piolin, sim, é brasileiro. Representa Dioguinho, o Tenente Galinha, Piolin sócio do Diabo, e outras cousas assim, que ele chama de pantomimas, deliciosamente ingênuas, estupendas, brasileiras até ali. As outras companhias, sempre dirigidas pelo brilhante ator patrício Fulano e das quais faz parte a inteligente atriz Beltrana, caceteam a gente com peçazinhas mal traduzidas e bobagens pseudo indígenas. A de Piolin, que nem chega a ser uma companhia, não. Improvisa brasileiramente tudo. É tosca. É nossa. É esplêndida (ALCÂNTARA MACHADO, 1926, p. 3). Antes, porém, que semelhante “redenção” sucedesse, seria necessário que o teatro brasileiro se universalizasse, atualizando-se em termos dramatúrgicos. A ideia básica, que pode parecer paradoxal, mas não é, levando-se em conta que Alcântara Machado foi uma espécie de crítico “pau-brasil”, era a seguinte: uma vez em sintonia com o teatro de vanguarda europeu, o teatro brasileiro iria, fatalmente, se nacionalizar, se abrasileirar. O primeiro passo, para ele o mais fácil, seria o de integrá-lo no “momento universal”, renovando-o; o segundo, mais difícil, deveria integrálo no ambiente, particularizando-o. Pensando assim ainda na década de 1920, Alcântara Machado teria simplesmente prenunciado todo o processo de “evolução” pelo qual a dramaturgia nacional passou entre os anos de 1940 até, mais ou menos, 1970, período de hegemonia do modernismo em nossos palcos. É essa a interpretação de Décio de Almeida Prado (1993), importante crítico e historiador do teatro brasileiro. Para ele, Alcântara Machado foi 353 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 um verdadeiro “profeta de uma nova era”, ainda que, infelizmente, tenha pregado no deserto, pois suas ideias não tiveram grande repercussão nem antes nem depois de sua morte precoce – ocorrida em 1935, quando tinha 33 anos. De acordo com Prado, analisando o pensamento de Alcântara Machado em retrospecto, o momento de universalização vislumbrado pelo escritor paulista só chegaria com a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948; a particularização ficaria a cargo, principalmente, do Teatro de Arena, fundado em 1953. Isso em um plano coletivo. Num plano mais individualizado, a integração ao universal seria obra de Vestido de noiva, enquanto que o ponto culminante da integração ao ambiente poderia ser vislumbrado na encenação de O rei da vela pelo Teatro Oficina. A militância de Alcântara Machado, apesar de pioneira em sua seara, não se diferenciava muito à de outros escritores e artistas brasileiros modernos em relação a outras manifestações do espírito, pelo menos no que toca à questão, dialética por excelência, entre localismo e cosmopolitismo. Ao longo de toda a nossa trajetória artístico-intelectual, semelhante debate sempre esteve presente, ora pendendo mais para um lado, ora para outro. Contudo, nos instantes de maior particularismo (como, por exemplo, no romantismo), um problema se colocava: como retratar a “cor local” de um país etnicamente mestiço, influenciado por culturas “primitivas” como a ameríndia e a africana? Para fugir ao constrangimento de representar o homem brasileiro em sua alteridade, normalmente apelava-se ou à idealização ou à depreciação pura e simples, de modo que sua imagem, distorcida para o bem ou para o mal, jamais se chocasse com o etnocentrismo próprio do intelectual nativo, europeizado dos pés à cabeça. O indianismo romântico exemplificaria com exatidão o primeiro caso; Urupês (1918), de Monteiro Lobato, reunião de contos acerca do caboclo caipira, o segundo. A novidade introduzida pelo modernismo, segundo o ponto de vista esboçado por Antonio Candido, crítico e historiador da literatura brasileira, é que ele, ao despontar, inaugurou “[...] um novo momento na dialética do universal e do particular, inscrevendo-se neste com força e até arrogância, por meio das armas tomadas a princípio ao arsenal daquele” (CANDIDO, 2000, p. 109). Atenta aos elementos arcaicos e populares menosprezados pelo academismo, a estética moderna, em seus múltiplos desdobramentos (cubismo, dadaísmo...), estaria mais apta à realidade cultural brasileira do que à europeia, de onde provinha: [...] ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um Picasso, um Bracusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles. O hábito em que estávamos do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos, da poesia folclórica, nos predispunha a aceitar e assimilar processos artísticos que na Europa representavam ruptura profunda com o meio social e as tradições espirituais (CANDIDO, 2000, p. 111). Assim compreendido, o modernismo teria significado, para a cultura nacional, uma providencial libertação de uma série de recalques históricos, sociais e étnicos. O primitivismo, tendência inerente a certas correntes artísticas e literárias surgidas nos primórdios do século passado, uma vez assimilado pelos artistas e literatos daqui, permitiu-lhes, finalmente, abandonar seja aquela visão condescendente da realidade local (indianismo), seja aquela intolerante (do Lobato de Urupês). O resultado não poderia ser outro: elementos antes desprezados pela intelligentsia oficial (ou oficialesca) começaram a emergir no plano mais geral das consciências artísticas. Estava aberta a entrada na arte brasileira para o mulato, o malandro, o cangaceiro, o beato etc, e da maneira o mais empática possível, neles identificando uma autêntica “reserva de brasilidade”. Reserva esta sufocada, no caso específico da literatura, por exemplo, pelo beletrismo. O teatro, embora retardatário nesse processo, não poderia dele ficar de fora, inserido que está no campo das belas-artes. Com efeito, o que Alcântara Machado fez foi direcionar, para um domínio que lhe era caro, um sentimento comum a boa parte da intelectualidade de então, que já havia atuado na renovação de outras manifestações artísticas. Seu pioneirismo, portanto, não estaria exatamente no conteúdo de suas ideias, mas no emprego conferido a elas, que explicitavam o atrasado do teatro em relação à literatura e às artes plásticas, as “pontas de lança” da Semana de 1922. Visto por esse ângulo, compreende-se melhor o trecho acima citado de Terra roxa e outras terras, no qual Alcântara Machado, para expressar seu apreço pela arte de Piolin, serviu-se de adjetivos como “ingênua” e “tosca”. Uma vez estabelecido o “desrecalque”, traços identitários antes interpretados como deficiências passaram a ser vistos como qualidades ou até, em casos extremados de nacionalismo, como superioridades. Também 355 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 se compreende melhor certos critérios que nortearam a seleção das peças aqui coligidas, todas elas, de um modo ou de outro, comprometidas com o projeto moderno em geral e o de Alcântara Machado em particular. No intuito de oferecer uma coletânea que perfizesse uma trajetória coerente da moderna dramaturgia brasileira, ousando inclusive ultrapassar seus limites temporais, foram escolhidas sete peças teatrais de sete autores diferentes, reunidas de modo a obter uma inequívoca unidade temática, relacionada aos problemas do campo. São elas, em ordem cronológica: Paiol Velho (1951), de Abílio Pereira de Almeida; A revolução dos beatos (1961), de Dias Gomes; O testamento do cangaceiro (1961), de Chico de Assis; Vereda da salvação (1963), de Jorge Andrade; Os Azeredo mais os Benevides (1964), de Oduvaldo Vianna Filho; Na carrera do Divino (1979), de Carlos Alberto Soffredini; e Agreste (2004), de Newton Moreno. O leque geográfico é bastante abrangente: das sete obras, duas se passam no interior de São Paulo (Paiol Velho e Na carrera do Divino), uma em Minas Gerais (Vereda da salvação), uma na Bahia (Os Azeredo mais ou Benevides), uma em Pernambuco (Agreste), uma no Ceará (A revolução dos beatos) e uma num sertão indefinido do nordeste brasileiro (O testamento do cangaceiro). A opção pela temática de cunho rural não é, claro, acidental. Desde o período romântico, explorar assuntos ligados às áreas mais inóspitas e despovoadas do território nacional tornou-se praxe entre pintores, romancistas e, até certo ponto, dramaturgos brasileiros. Na ânsia de conferir dignidade artística a todos os rincões do país – promovendo no plano estético uma ideia de unidade que, no político, somente com o tempo seria conquistada – foram surgindo, para dar conta desse fenômeno, termos como “regionalismo” ou “romance sertanejo”. Todos, ressalte-se, altamente controversos. Pelos motivos já expostos, argumentos considerados rústicos só poderiam despertar um vivo interesse da parte dos escritores modernistas, e uma hora ou outra os dramaturgos brasileiros modernos haveriam de se interessar por eles. Sendo a dramaturgia um gênero “anfíbio”, isto é, que ocupa duas artes diferentes (o teatro e a literatura119), a introdução desses assuntos em suas hostes inspiraria algumas obras, no mínimo, curiosas, cuja trajetória merece ser rastreada. Ao fazê-lo, o leitor terá acesso a um quadro bastante representativo dos caminhos percorridos pela literatura dramática brasileira em um intervalo de pouco mais de 50 anos (1951-2004), que lhe permitirá observar 119 Ou até três, incluindo a música, se se pensar nos libretos das óperas. como o tratamento conferido a essa temática foi se desenvolvendo ao longo do tempo. Da peça benfeita ao drama épico-dialético, da incorporação de elementos advindos do cordel aos procedimentos mais performativos da dramaturgia contemporânea, tudo isso poderá ser encontrado nas peças aqui recolhidas. Nesse espaço de meio século, é possível perceber uma nítida evolução da dramaturgia brasileira, como talvez jamais tenha ocorrido em outra época, o que não quer dizer, cabe ressaltar, que ela tenha se dado de maneira evolucionista, no sentido de algo que se modifica, necessariamente, do pior para o melhor. Ela simplesmente se modificou, atendendo aos ditames do momento histórico em que foi produzida e às sugestões do meio em que estava inserida, humano e geográfico. Além disso, não se pode falar em uma evolução contínua, ou seja, unidirecional, voltada sempre para o mais novo e atual. Longe disso. Tratou-se de um processo acidentado, realizado com avanços, mas, também, com recuos, um evidente sintoma do quão difícil pode ser a adequação de meios expressivos novos em um ambiente que lhe é, em princípio, estranho. Exemplo de inadequação seria Paiol Velho, a primeira peça da coletânea. Escrita por Abílio Pereira de Almeida, o dramaturgo “oficial” do TBC, lá ela estreou em janeiro de 1951, com direção de Ziembinski. O enredo gira em torno da figura de Tonico Loferato, imigrante italiano que tenta se apossar da fazenda onde trabalha, pertencente a uma tradicional família paulista, mas há anos cuidada e administrada por ele. Por meio desse breve resumo (sic), percebe-se, de imediato, a afinidade do enredo com um tema por excelência moderno: a luta de classes. Mas se trata apenas disso mesmo, uma afinidade, visto que o interesse fundamental do autor estava focado nos conflitos interpessoais, isto é, que movem as personagens tomadas em sua individualidade, e não como abstrações sociais. Embora a luta de classes não seja escamoteada, na fatura da peça ela jamais assume o primeiro plano. E não poderia ser muito diferente, pois a forma que a contém é, essencialmente, burguesa, fruto da estética realista de meados do século XIX. Drama em três atos e nove cenas, Paiol Velho é uma típica peça benfeita, daquelas que, em termos formais, poderia ter sido escrita por Eugène Scribe ou Alexandre Dumas Filho, os dramaturgos mais representativos do realismo teatral francês. Em poucas palavras, Paiol Velho seria um recorte (tranche de vie) de uma determinada realidade social, no caso o universo rural paulista da primeira metade do século XX. 357 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Dentro desse universo, Tonico Loferato se move não como um revolucionário, cujo esforço visaria reformar a sociedade, mas como um arrivista, ou seja, alguém que deseja simplesmente subir na escala social, ainda que de modo desonesto. O mesmo se dá com outras personagens da obra, conforme observou Décio de Almeida Prado ao criticar o espetáculo em sua coluna “Palcos e Circos”, publicada durante anos pelo jornal O Estado de S. Paulo: E, no entanto, nada mais distante de Paiol Velho do que esses dramas em que cada personagem assume, diríamos conscientemente, uma posição teórica, como o representante de uma determinada ordem de ideias. [...] Nenhum esquema teórico, portanto, geraram essas criaturas no espírito do autor com o intuito de provar este ou aquele ponto de vista. Sentimos a existência de João Carlos, de Tonico, de Mariana, preliminarmente como pessoas humanas, reais e verídicas, e somente depois como paradigmas que são de uma classe, mais pela escassa peculiaridade de suas reações do que por intenção expressa do autor (PRADO, 2001, p. 27-28). Ainda seriam necessários alguns anos para que o conflito de classes adquirisse o primeiro plano em uma obra dramática nacional, algo que só aconteceria quando, em 1958, Gianfrancesco Guarnieri escreveu e estreou no Teatro de Arena Eles não usam black-tie – embora, vale ressalvar, ainda dentro dos moldes acanhados do drama burguês tradicional. Semelhante defasagem entre forma e conteúdo não deve (ou deveria) surpreender tanto, fruto que é de um fenômeno único da história do teatro brasileiro: a preponderância do teatro musical em detrimento do teatro “declamado”120, devido ao sucesso de gêneros como a opereta e a revista, que prevaleceram entre os anos (aproximados) de 1870 a 1940. Admitido essa tese, comum a certa historiografia do teatro nacional, o advento do modernismo teria significado, no âmbito da dramaturgia, um reatamento de relações com um tipo de teatro que, lá atrás, havia deixado de se desenvolver por aqui. Donde se entende alguns elementos anacrônicos a perpassá-la, como, por exemplo, tratar um assunto moderno, típico do século XX, valendose de uma forma arraigada ao século anterior. De todo modo, em defesa de Paiol Velho se faz necessário dizer o seguinte: dentro de seus limites, Abílio Pereira de Almeida compôs um bom “recorte da vida”. Graças à sua habilidade técnica, em nenhum momento ele incorreu naquele que seria o pecado venal do escritor moderno, a saber, render-se ao pitoresco exótico 120 De tipo dramático, sem dúvida, no sentido de se sustentar no dialogismo, isto é, na fala das personagens. próprio da literatura e do teatro pré-modernos. Se se quiser encontrar uma peça mais adaptada ao seu momento histórico será preciso dar um salto de 11 anos no tempo, quando o TBC já iniciara sua denominada “fase nacionalista”121 e resolveu montar, em 1962, A revolução dos beatos, de Dias Gomes. Dirigido por Flávio Rangel, o espetáculo não obteve, nem de longe, o mesmo sucesso que a dupla obtivera com a encenação de O pagador de promessas, em 1960, a mais conhecida peça do dramaturgo baiano. Até certo ponto, isso não deixava de ser uma injustiça, por dois motivos: primeiro, pela qualidade do texto malogrado, uma boa comédia dramática; segundo, pela posição que ele ocupa na carreira de Dias Gomes, quase um “divisor de águas”. Escrita em 1961, A revolução dos beatos está inserida em um outro momento da dramaturgia brasileira moderna, posterior às primeiras experiências de Abílio Pereira de Almeida e, também, às primeiras experiências do próprio Dias Gomes como autor maduro, quando escreveu O pagador de promessas (1959) e A invasão (1960). Isso se deve ao fato de, em princípios da década de 1960, já se divisar no Brasil as influências do teatro épico-dialético de Bertolt Brecht, tanto no campo da encenação como no dramatúrgico. Muitos fatores poderiam ser levantados para explicar as origens de tais influências, até porque a literatura a respeito desse tema é profusa, mas um evento deveras significativo foi a montagem realizada pela Companhia Maria Della Costa da peça A alma boa de Setsuan, em 1958, considerada a primeira encenação profissional de um texto de Brecht no Brasil. A direção do espetáculo, deve-se creditar, ficou a cargo do italiano Flaminio Bollini Cerri. Além da descoberta dos originais de Brecht, a influência do brechtianismo entre nós também se deu de maneira indireta, acrescentese, exercida por autores como Friedrich Dürrenmatt e Max Frisch. De qualquer forma, importa aqui destacar que, uma vez introduzido em nosso ambiente teatral, os dramaturgos brasileiros não se mostraram indiferentes a ele, sem dúvida um dos pilares do teatro considerado moderno no mundo ocidental. Seus primeiros frutos começaram a aparecer no princípio da década de 1960, motivando uma espécie de segunda fase da dramaturgia moderna no Brasil. A primeira, dentro da qual poderiam ser incluídas obras 121 Até 1960, não fazia parte da política de repertório do TBC montar textos de autores nacionais, exceção feita a Abílio Pereira de Almeida. Com o grande sucesso de Eles não usam black-tie, no Teatro de Arena, a companhia de Franco Zampari resolveu alterá-la, concedendo ampla primazia a peças brasileiras inéditas, a partir da direção artística de Flávio Rangel, que, neste mesmo ano, monta O pagador de promessas, de Dias Gomes. 359 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 como Paiol Velho e Eles não usam black-tie, teria se caracterizado pela representação naturalista da realidade nacional. Não à toa, o encenador e dramaturgo Augusto Boal batizou-a de “fase da fotografia”. A segunda, seguindo os passos do teatro épico, singularizou-se pela busca de formas expressivas não alinhadas ao teatro dramático, ou, em outras palavras, ao drama burguês. Vem daí, particularmente, o aproveitamento de motivos oriundos da cultura popular, como a literatura de cordel, o teatro de mamulengo e o bumba-meu-boi, gêneros cuja irreverência jamais poderia se coadunar a um teatro de tendência “figurativa”. Nesse novo contexto, do qual fizeram parte as farsas políticas de Boal e Vianinha, além de todo o ciclo “Arena Conta”122, insere-se A revolução dos beatos, peça dividida em três atos e quatorze quadros. Sua história, baseada em fatos reais, se passa em Juazeiro (CE), no ano de 1920, quando o padre Cícero, principal líder político e religioso da região, contava cerca de 75 anos. Alquebrado pela idade, com a saúde debilitada, ele não é mais do que um boneco nas mãos de seu médico particular, dr. Floro Bartolomeu, homem ambicioso que se utiliza da devoção ao “padrim” para obter vantagens políticas (está em vias de se eleger deputado federal). Tudo ia bem até que Bastião, um pobre nativo, ao ser impedido de falar com o padre, solicita uma graça a um boi de sua propriedade. Como a graça é atendida, o boi passa a ser objeto de culto, que vai se avolumando a ponto de rivalizar com o que era devotado ao próprio dono do animal. Para impedir semelhante zoolatria, Floro decide declarar guerra aos beatos adoradores do boi, que, ao reagirem, deflagram a revolução expressa no título da obra. Esse seria, de modo bem condensado, o argumento básico de A revolução dos beatos. O resumo, contudo, não faz justiça à peça, repleta de peripécias e recheada de picardia. Nela se encontram, explicitados, vários elementos tomados da cultura popular, como o cordel e, especialmente, o bumba-meu-boi, de onde Dias Gomes tirou inspiração para compor as personagens de Zabelinha, Mateus e Bastião. A maneira como esses elementos foram por ele elaborados deixa às claras certos procedimentos de natureza épica, tais como: o uso de projeção (primeiro quadro); o uso, ainda que muito discreto, da música; a opção pela narrativa estruturada de forma episódica, dividida em quadros mais ou menos independentes; 122 Composto pelas seguintes obras: Arena conta Zumbi (1965), Arena conta Tiradentes (1967) e Arena conta Bolívar (1970). a multiplicidade de cenários; a concepção um tanto esquemática das personagens, despojadas de caracteres incidentais. Agindo assim, Dias Gomes cumpriu com um dos objetivos primordiais do teatro épico, focado não em oferecer um “recorte da vida” (o que acontece), mas uma visão panorâmica capaz de investigar as razões escondidas por detrás de uma determinada realidade, seja ela política, econômica ou social (por que acontece). No caso da peça em debate, as razões do fanatismo religioso e sua manipulação para fins políticos escusos. Mas nem tudo são flores para A revolução dos beatos. Sábato Magaldi, crítico e historiador do teatro brasileiro, ao fazer um balanço da dramaturgia de Dias Gomes, expôs algumas restrições bastante contundentes em relação a essa peça. Entre outras coisas, que não cabem reproduzir neste prefácio, Magaldi incomodou-se com o que, para ele, seria excesso de maniqueísmo na pintura das personagens (boas ou más de acordo com a posição social), e com o desfecho que lhe foi conferido, a seu ver pouco inteligível: No volume publicado, as cenas finais permanecem algo descosidas, e talvez fosse difícil para o espectador apreender de imediato todo o alcance dos últimos diálogos, quando, ao transmitir Zabelinha a opinião segundo a qual “foi Deus quem matou” o boi, Bastião replica: “Eu sou Deus, Zabelinha! Eu sou Deus!” O protagonista atingiu a consciência da realidade, desmistificando um engodo que ele próprio criou. Como sugestão literária, esse desmascaramento da santidade do boi era plenamente satisfatório e caberia à plateia completar o itinerário intelectual do protagonista. Na versão cênica, o herói explicita o seu pensamento e agrava a insuficiência artística do texto. No estalo do reconhecimento, Bastião diz algo parecido como “a terra não é de quem a possui mas de quem a planta”, o que faria ruborizar o mais modesto discípulo do marxismo. [...] Vale a pena lembrar um truísmo literário: a fidelidade aos estímulos espontâneos, sem dobrá-los às conveniências ideológicas, assegura um resultado artístico melhor. Que em geral costuma ser também mais eficaz (MAGALDI, 1998, p. 138-139). Admitindo-se tais censuras à obra de Dias Gomes, não seria um grande despropósito estendê-las a boa parte da dramaturgia brasileira produzida nesse período inicial dos anos de 1960, quando os procedimentos épico-dialéticos de Brecht e companhia ainda eram uma novidade a ser devidamente assimilada. Assumindo o mesmo ângulo de visão do crítico, é possível apontar na terceira peça deste volume alguns defeitos parecidos 361 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 aos que foram levantados para desqualificar, pelo menos em parte, A revolução dos beatos. Analisados em conjunto, eles talvez pudessem ser interpretados como um problema geracional, isto é, que afetou, em maior ou menor medida, uma parcela dos jovens dramaturgos da época. O tempo se encarregaria de lhes dar cabo, conforme se verá adiante. Mas não custa lembrar que, em uma coletânea disposta a traçar um painel da moderna dramaturgia brasileira, seria impossível ignorar os reveses do percurso, sob pena de não se conseguir identificar uma linha evolutiva convincente. O testamento do cangaceiro (1961), de Chico de Assis, foi escrita no mesmo ano de A revolução dos beatos, e encenada pelo Teatro de Arena sob a direção de Augusto Boal. Assim como outras produções do grupo naquele período, sua origem deveu-se ao famoso Seminário de Dramaturgia do Arena que ali se instalou, a partir de abril de 1958. A bem da verdade, trata-se da primeira parte de uma série de três peças intitulada “trilogia do cordel”, da qual também fazem parte As aventuras de Ripió Lacraia (1963) e Farsa com cangaceiro, truco e padre (1967). Como o próprio nome da trilogia revela, uma das referências estéticas de Chico de Assis para compor O testamento do cangaceiro provém de um dos gêneros mais populares da literatura brasileira, de larga tradição especialmente no nordeste. Desses folhetos vendidos nas feiras e mercados de lá, tudo indica que o dramaturgo paulista retirou três sugestões fundamentais para a economia da peça, que seriam: a existência de um narrador (ou contador); o uso da música, que adquire um papel bem mais importante do que em A revolução dos beatos; e a intriga, tipicamente cordelista, construída a partir de um herói astuto, capaz de superar os mais diversos ardis que se interponham no seu caminho. O resultado disso não poderia ser outro: O testamento do cangaceiro é uma peça consideravelmente “mais épica” do que A revolução dos beatos. Tanto a figura do narrador como as músicas, sem trair suas origens nordestinas, são utilizados à maneira de Brecht, ou seja, procurando extrair de cada quadro as devidas ilações morais. Além disso, sua estrutura dramática é mais entrecortada, concebida de modo a dispensar uma cenografia sofisticada, ao gosto do Teatro de Arena123. De Dias Gomes a Chico de Assis deixou-se a comédia para se adentrar na farsa desbragada, capitaneada 123 Um dos fatores que motivaram José Renato a fundar, em 1953, o Teatro de Arena, foi a descoberta das experiências de Margot Jones no Theatre’50 em Dallas (EUA). Para baratear os custos de produção de seus espetáculos, ela resolveu lançar mão de um teatro construído nos moldes de uma arena, no qual os atores atuam no centro de uma sala rodeados pela plateia. A vantagem desse formato é que, desvencilhando-se da caixa cênica própria do palco italiano, ele praticamente dispensa o uso de cenário. por Cearim, um sertanejo que, após perder os pais devido à seca, resolve emigrar em busca de um pouso seguro, onde quer que ele esteja. Depois de passar por várias provações, recorrendo, sem sucesso, tanto a Nossa Senhora quanto ao demônio, Cearim se apercebe da solidão do homem sobre a Terra, visto que nenhuma força sobrenatural é capaz de interceder em seu favor. Somente a ele cabe a resolução de seus problemas, individual e coletivamente falando. Neste ponto, conforme ressaltou mais de um crítico, O testamento do cangaceiro se aproxima muito da supracitada A alma boa de Setsuan (1943), que predica em sua fábula algo bastante parecido, por meio das figuras de três deuses chineses. Mas as semelhanças param por aqui, moralmente falando. Conforme observou Décio de Almeida Prado ao criticar o espetáculo do Teatro de Arena, embora ambas comunguem desse pressuposto, as consequências advindas dessa sensação de abandono em uma e outra peça são diferentes: A Boa Alma de Setsuan, sendo visceralmente marxista, ataca logo o ponto essencial: os meios de produção. E não é por acaso que coloca uma de suas cenas capitais numa fábrica, uma pequena fábrica que é também o começo de toda uma determinada organização econômica e social. As implicações políticas, quando chegam, não surpreendem porque, sub-repticiamente, já se haviam incorporado ao texto desde o princípio. O Testamento do Cangaceiro encara de uma maneira inteiramente diversa as relações humanas, num plano individual, em que a injustiça aparece sob a forma do logro, do engano, reparável pelo embuste oposto, pela contra-esperteza. Não se prova assim que a sociedade esteja organizada em moldes errados: prova-se, somente, que os ladinos aproveitam-se dos bobos. Essa é, aliás, a moral implícita na maioria das fábulas populares. Daí um certo mal-estar provocado pela predica política final, feita a propósitos de personagens – os camponeses – que só aparecem na história como pretexto político: sentimos uma quebra de tom, uma falta de respeito pelas regras do gênero, como se de repente Pedro Malazartes se pusesse a discursar sobre “mais-valia” e a exploração do homem pelo homem (PRADO, 2002, p. 209). A avaliação do crítico paulista (Prado), se comparada à do mineiro (Magaldi), não deixa dúvidas: de novo uma peça artisticamente promissora se perdeu por conta da “inabilidade” do autor na hora de arrematá-la. Guardadas as devidas diferenças entre um dramaturgo e outro, os motivos que os teriam levado a falhar justamente no final – quando a obra, ao encerrar uma determinada moralidade, deveria “dizer a que veio” – talvez pudessem 363 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 ser resumidos assim: uma dissonância existente entre o ímpeto de se fazer teatro politicamente engajado e a densidade dramatúrgica necessária para isso, sem a qual não se obtém resultados esteticamente válidos. Ou pelo menos não totalmente válidos. E eles estavam se reportando, mais ou menos dependendo do caso, a Bertolt Brecht, autor cuja obra é considerada exemplar nesse quesito. Um sintoma, muito provável, de que as teorias do teatro épico-dialético ainda não estavam devidamente assentadas no ambiente teatral brasileiro daquele longínquo ano de 1961. Deixando um pouco de lado o dramaturgo e poeta alemão, para mais tarde voltar a ele, importa agora tecer algumas palavras a respeito da quarta peça coligida (Vereda da salvação), de autoria de outro dramaturgo paulista: Jorge Andrade. Escrita ao longo de anos, sua versão definitiva ganhou forma somente em 1963, um ano antes de Antunes Filho encenála no TBC. A montagem, por diversos motivos, redundou em um grande fracasso, notabilizando-se de maneira algo lamentável por ter sido a última da história da companhia124. No tocante à temática, não há como não aproximá-la de A revolução dos beatos, uma vez que ambas debatem as consequências do fanatismo religioso. Contudo, o tratamento conferido por Jorge Andrade à questão é bastante distinto do de Dias Gomes, em especial no que se refere à estrutura formal de Vereda da Salvação, que é totalmente dramática. De certo modo, isso poderia ser interpretado como um nítido retrocesso da dramaturgia brasileira, na medida em que, àquela altura, ela já detinha certa intimidade com o brechtianismo e outras estéticas teatrais não dramáticas. Poderia, não fosse um detalhe: trata-se de uma das melhores peças da história do teatro brasileiro, uma obra-prima, por assim dizer. Tal qual A revolução dos beatos, Vereda da salvação também é “baseada em fatos reais”. Sua trama remete a fatos ocorridos em 1955 nas redondezas da cidade de Malacacheta, Minas Gerais, quando integrantes da Igreja Adventista da Promessa mataram quatro crianças que, segundo eles, estariam possuídas pelo demônio. Ao tomar conhecimento da história, a reação do poder público foi ainda mais violenta: todos os habitantes da comunidade acabaram executados pela polícia local. No recorte estabelecido por Jorge Andrade, inevitável na transposição da realidade para a ficção, as crianças foram reduzidas a uma e o número Depois de Vereda da salvação, ainda foram produzidos alguns poucos espetáculos no TBC, mas, segundo Alberto Guzik, autor de TBC: Crônica de um Sonho, o fracasso da peça de Jorge Andrade significou “[...] o fim do conjunto enquanto equipe estruturada, dotado de perfil e política próprios” (GUZIK, 1986, p. 216). 124 de personagens a, basicamente, quatorze, dos quais quatro se destacam visivelmente: Artuliana, Dolor, Joaquim e Manoel. Os diversos conflitos que porventura levaram aqueles homens de Malacacheta ao aniquilamento são, na peça, personificados nas figuras de Manoel e Joaquim, este atuando como o principal líder religioso da comunidade, o outro como uma espécie de líder “político”, aquele que, por ser o mais forte e trabalhador, exerce a função de representar os colonos junto ao dono da fazenda onde trabalham. Embora concebida em moldes tradicionais de composição dramatúrgica, os dois atos de que se constitui Vereda da salvação são tão bem construídos, seja na elaboração da linguagem ou no encadeamento das ações, que a peça, à sua maneira, não deixa de ser moderna. Em relação à linguagem, Jorge Andrade conseguiu, atendo-se ao mais elementar dialogismo, superar a “prova dos nove” do escritor modernista: criar uma fala que soasse rústica sem cair no perigoso “caipirismo literário”, recurso quase sempre artificial que, em tese, jamais poderia atender aos propósitos artísticos da ocasião. Em relação ao encadeamento das ações, a ele se deve o que Vereda da salvação tem de mais moderno: tornar o leitor-espectador um verdadeiro cúmplice daquele desvario religioso coletivo, graças a um processo de identificação com os caboclos que, à medida que vai crescendo, se torna absoluto. Isso pode ser atribuído, em parte, à divisão da peça, um drama em dois atos, algo relativamente raro. Se, no primeiro, uma vez estabelecido o conflito entre Joaquim e Manoel, tende-se a tomar o partido deste, com sua visão pragmática da realidade – em detrimento daquele, portador de uma mensagem messiânica e escatológica – no segundo tudo se modifica. Em sua marcha, o leitor-espectador vai aos poucos assumindo o partido de Joaquim e seus correligionários, até reconhecê-lo plenamente. Isso acontece devido à posição especial ocupada pelo autor na obra, que soube, de fato, “desvencilhar-se” de sua própria visão de mundo, supostamente civilizada e racional, para assumir outra, supostamente primitiva e irracional. A rigor, não se percebe aquela separação, tão comum na literatura brasileira prémoderna, entre a consciência do escritor, disposta a jamais abrir mão de sua condição de homem erudito, e a consciência das personagens, ignaras e rudimentares. O resultado desse divórcio, no plano literário, é um só: em boa medida, deixou-se simplesmente de mostrar a riqueza interior das vidas culturalmente pobres do Brasil. Não é isso o que acontece em Vereda da salvação, cujo autor compreendeu e, por isso, soube fazer compreender o mecanismo básico 365 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 por detrás daquela manifestação frenética de sectarismo religioso, que, do primeiro para o segundo ato, deixa de ser o delírio de um bando de fanáticos para se tornar a sublimação de um longo sofrimento no mundo. As causas desse sofrimento são, obviamente, econômicas, relacionada à absoluta pobreza material dos agregados. Seres alijados dos elementos mínimos de realização pessoal, só lhes resta a fuga para o sobrenatural, garantia mais palpável de felicidade diante das adversidades terrenas. A solução escapista não é uma opção, mas uma necessidade. Uma necessidade, dir-se-ia, trágica. Com efeito, Vereda da salvação possui relações estreitas com uma obra que, mesmo não sendo nem teatral nem moderna, soube estabelecer uma relação de cumplicidade parecida com seu universo humano: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. Conforme asseverou Décio de Almeida Prado, na análise que fez do espetáculo em 1964, [...] a posição de Jorge Andrade, neste ponto, é semelhante à de Euclides: profundo respeito pelo fanatismo, não pelo que ele é, mas pelo que representa socialmente, como expressão de um Brasil sofrido, obscuro, primitivo, e por isso mesmo singularmente representativo (PRADO, 2002, p. 291). Apesar de suas qualidades estéticas, politicamente Vereda da salvação desagradou a todos, à esquerda e à direita, lembrando que a estreia da montagem aconteceu apenas três meses depois do golpe civil-militar, época, portanto, de ânimos exaltados. A direita condenou-a, fundamentalmente, devido à parcela de verdade que a peça encerra a respeito de um tema, no mínimo, incômodo: a miséria rural e seus substratos religiosos. Mais incômodo ainda num período posterior às agitações em torno da reforma agrária, item caro às chamadas reformas de base lançadas por João Goulart em 1963. Não à toa Vereda da salvação foi considerada subversiva por essa parcela da opinião pública. A esquerda, por outro lado, não perdoou a falta de um comprometimento ideológico da parte do autor, cuja obra, ainda que revestida de um caráter denunciatório, jamais aponta soluções. Sob esse prisma, teria faltado a Vereda da salvação algo como um corretivo didático. O problema é que, para obter semelhante resultado, Jorge Andrade teria fatalmente que se render às premissas do teatro épico-dialético, segundo as quais o dramaturgo-narrador deveria não só se afastar como também se posicionar mediante seu objeto. Em outras palavras, seria necessário utilizar-se de uma forma derivada da seguinte ideia: o homem é um ser histórico; por conseguinte, passível de mudança. Não é o caso, evidentemente, do drama tradicional, cujos pressupostos sempre estiveram baseados na ideia oposta, ou seja, do homem como ser universal, estático e imperturbável diante do tempo. Sendo Vereda da salvação um drama puro, fechado, totalmente devotado à construção de caracteres, só caberia mesmo ao autor ocultar-se, de modo a não se interpor na relação de identificação do público com as personagens, que deve sempre atingir o paroxismo. Essa identificação, plena na obra de Jorge Andrade, só poderia ser considerada, do ponto de vista do teatro épico-dialético, como alienante e conformista. A questão agrária, tão premente naqueles tempos, não ficaria, contudo, sem uma resposta da esquerda, mais particularmente da esquerda teatral. E ela veio através de outra obra-prima da moderna dramaturgia brasileira, conformada dentro dos mais rigorosos preceitos do brechtianismo. Trata-se de Os Azeredo mais os Benevides, a quinta peça da coleção, escrita por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. Seu argumento, como convém a uma boa peça “didática”, é relativamente simples: Espiridião, membro de uma tradicional família fluminense, um dia decide se mudar para a Bahia e lá explorar terras abandonadas há anos por sua parentela, em franca decadência econômica. Isso nos primórdios do século XX, época de expansão da cultura cacaueira naquela região do país. Ao tomar as rédeas da fazenda, Espiridião conhece Alvimar, um dos colonos, que logo se torna seu homem de confiança. À medida que a fazenda prospera com o plantio do cacau, os dois se tornam amigos, a ponto de Espiridião apadrinhar o primeiro filho de Alvimar – batizado, a propósito, de Espiridião. Tudo vai bem até o momento em que a fazenda entra em declínio por causa do esgotamento da terra. Enquanto os senhores deslocam a produção do fruto para outras áreas do nordeste brasileiro, os colonos são deixados à própria sorte, sem condições mínimas de subsistência. A situação deles chega a tal ponto de penúria que uma pequena revolta se forma, liderada pelo filho de Alvimar. Para servir como exemplo aos outros agregados, Espiridião manda matar o afilhado, assim deixando patente a impossibilidade da amizade entre homens que deveriam ser, em princípio, inimigos de classe. Para completar o quadro de aviltamento moral resultante da concentração de terra, na cena final, passada no velório do menino, Alvimar ainda é capaz de se mostrar submisso ao “doutor”, não só aceitando como agradecendo pela ajuda de dois contos de réis que lhe é 367 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 oferecida. O resumo não deixa dúvida: Os Azeredo mais os Benevides é uma parábola em favor da reforma agrária no Brasil. Escrita com maestria, nela é possível antever um brechtianismo plenamente assimilado, expresso na segurança com que Vianinha dele soube se servir para problematizar questões ligadas ao país. Uma dessas questões, para além da reforma agrária, diz respeito às relações entre a burguesia e a aristocracia brasileiras, classes que, em substância, não se diferenciam, irmanadas na manutenção do poder político. Na peça, vale lembrar, elas são ambiguamente representadas pelas personagens de Espiridião Albuquerque, Gonçalo Carvalhais e Alburquerquinho. Por essas e outras, Os Azeredo mais os Benevides é uma obra que resistiria bem a uma análise de cunho sociológico, tomando como referencial o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda ou, especialmente, de Raymundo Faoro, autor de Os donos do poder (Formação do patronato político brasileiro). No que se refere à forma, mais do que conter certos elementos facilmente reconhecíveis do teatro dialético, como a música, a narrativa episódica etc, Os Azeredo mais os Benevides apresenta em sua composição aquilo que seria o cerne dessa poética, ao menos em termos dramatúrgicos: o motor de sua ação não se sustenta na ideia de conflito, como acontece no drama, e sim no princípio da contradição. Entre Valdemar e Espiridião não se estabelece nenhum conflito de tipo intersubjetivo, a ser resolvido, supostamente, no final. Pelo contrário: a peça se move ancorada na amizade dos dois, que existe, mas não deveria existir, devido a um conflito essencialmente metassubjetivo, ou seja, que extrapola a esfera individual. Trata-se, claro, do conflito de classes, assunto que, finalmente, ganhava dentro da dramaturgia brasileira um tratamento formal condizente com sua dimensão épica. A referência para que Vianinha estabelecesse com bases seguras esse que é um dos alicerces de Os Azeredo mais os Benevides não é difícil de rastrear, já que ela se revela na epígrafe da obra, retirada de Mãe coragem (1941). Nesta peça de Brecht, talvez como nenhuma outra, o princípio da contradição atua como mecanismo-chave, por meio da figura de uma mãe que, a despeito das benesses trazidas pela guerra, como o enriquecimento, assiste à aniquilação de seus filhos. Diante de observações como essas, só se pode lamentar o fato de Os Azeredo mais os Benevides não ter estreado como deveria. A peça estava programada para inaugurar o Teatro da União Nacional dos Estudantes (UNE), à época sediada na Praia do Flamengo (RJ). O incêndio do prédio, perpetrado por forças militares logo após a consumação do golpe civil militar de 1964, impediu que isso acontecesse. O resultado não poderia ter sido mais lamentável: embora premiada pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1966 e publicada dois anos depois, Os Azeredo mais os Benevides permaneceu décadas inédita nos palcos. Nesse aspecto, a peça seguinte da coleção teve mais sorte, pois sua montagem, realizada apenas dois meses após a finalização do texto, tornou-se um grande sucesso, um dos maiores do teatro brasileiro na década de 1970. Curiosamente, nela a questão agrária também está presente, embora abordada em uma chave, dir-se-ia, culturalista, bem diferente à utilizada em Os Azeredo mais os Benevides, que não nega suas dívidas com o materialismo histórico. Na carrera do Divino, de Carlos Alberto Soffredini, poderia ser resumido como um comovente estudo dramático acerca da cultura caipira, em vias de extinção devido à crescente capitalização da terra. Nela se pode acompanhar um ciclo completo de uma típica família de caboclos do interior paulista, que vai da abertura de uma clareira no mato, para dar início a um roçado, até a expulsão da terra em virtude de problemas como, por exemplo, a grilagem. Tomando-se como parâmetro a periodização proposta por alguns autores, segundo a qual o teatro brasileiro moderno se encerrou com a montagem de Macunaíma, em 1978, Na carrera do Divino seria uma peça contemporânea, visto ter sido escrita e encenada um ano depois da realização de Antunes Filho. Mas isso pouco importa, pois, em diversos aspectos, ela mantém relações muito estreitas com o projeto modernista, na forma e no conteúdo. A linguagem usada por Soffredini na composição dos diálogos é um indício seguro para o estabelecimento de alguns desses liames. Diferentemente, por exemplo, de Vereda da salvação ou Paiol Velho, textos que se salvam do “caipirismo literário” por apresentarem em suas falas um português rústico, porém reconhecível, flexionado de modo a não caricaturar suas personagens, Na carrera do Divino vai na direção oposta, ao reproduzir o linguajar caipira em sua máxima expressividade literária. Isso significa dar vazão a todas as suas idiossincrasias fonéticas, morfológicas e prosódicas. Com efeito, não seria nenhum exagero afirmar que a peça de Soffredini foi escrita em linguagem dialetal, acessível somente a leitores e ouvintes brasileiros, não sem alguma dificuldade dependendo do caso. Impossível imaginar um estrangeiro, por melhor que fale o português, compreendendo as falas de Na carrera do Divino, mesmo 369 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 que esse estrangeiro seja lusófono. Tamanha ousadia de estilo fez com que a obra recaísse no condenável caipirismo de outrora? Não. E por quê? Porque Soffredini soube, à sua maneira, orientar sua pesquisa de linguagem no rumo certo, cujas coordenadas foram, sem dúvida, tomadas do modernismo brasileiro. Por mais que tenha distorcido as normas gramaticais e ortográficas da língua, não o fez da mesma maneira, para pegar um exemplo sob medida, do vulgo “conto sertanejo”, gênero literário em voga nas primeiras décadas do século passado. Ao contrário de autores como Cornélio Pires, Valdomiro Silveira e Coelho Neto, que se valiam da fala sertaneja como citação, e sempre a partir de um ponto de vista eurocêntrico, Soffredini conseguiu, por meio dela, dotar sua obra de um caráter universal, ainda que partindo das sugestões mais bairristas possíveis. Isso significa, em outras palavras, fugir à representação pitoresca, o terreno por excelência do caipirismo. A questão primordial é a seguinte: diferentemente dos autores mencionados, o dramaturgo paulista conseguiu instaurar em sua peça um modo-de-ser caipira, o que significa transcender o cunho regionalista e “documental” do relato para inscrevê-lo num plano superior, passível de encarnar os problemas comuns do homem. Nela se sente e se observa o mundo através do olhar de Jeca, Pernambi, Nha Rita e Mariquinha, fazendo com que o mundo deles, o mundo-do-caipira, se torne também o nosso. Dir-se-ia ser essa a pretensão suprema do modernismo no Brasil: atingir o universal por meio do mais vertical mergulho no particular. Na literatura brasileira, de acordo com o pensamento de Antonio Candido (1987), ninguém teria cumprido com mais êxito semelhante missão do que Guimarães Rosa, especialmente em Grande sertão: veredas (1956). Desnecessário dizer que, das peças reunidas na antologia, Vereda da salvação é, ao lado de Na carrera do Divino, aquela que mais se aproxima desse ideal, embora sem a mesma ousadia estilística. Aliás, mencionando Antonio Candido, não se pode jamais perder de vista que a obra de Soffredini, em sua recriação do dialeto caipira, contou com o valioso aparato sociológico de Os parceiros do Rio Bonito (1964), longo estudo do crítico literário mineiro a respeito dessa cultura, realizado como tese de doutoramento. Cientificamente amparado, Soffredini pôde evitar uma série de ideias-feitas e lugares-comuns inerentes ao universo retratado na peça, perigosos do ponto de vista social e, sobretudo, estético, vide o exemplo do “conto sertanejo”. Produzido pelo Pessoal do Victor e dirigido por Paulo Betti, o espetáculo estreou e permaneceu em cartaz no Teatro de Arena, àquela altura já cognominado de Eugênio Kusnet. Para não fugir à regra, vale a pena observar como a crítica se pronunciou a seu respeito, algo sempre importante quando se quer aferir o impacto provocado por uma determinada obra em um determinado momento histórico. Jefferson Del Rios, crítico teatral ainda em atividade, expôs seu parecer nos seguintes termos: O efeito emocional causado sobre o espectador atencioso surge da descoberta de que uma gente diluída no ouvi dizer, aparentemente distante, são brasileiros que vivem, os remanescentes, a menos de 20 quilômetros de São Paulo. O texto e a encenação, após oferecer a visão panorâmica deste peculiaríssimo homem do campo, temperando o quadro com fatos engraçados e uma boa dose de cantorias e repiques de viola, centraliza o assunto nos aspectos mais graves: a agonia de um universo riquíssimo a partir da exploração capitalista do campo que abala e, por fim, destrói a economia de subsistência do caipira. Sem pretensões agressivas, o espetáculo mostra com forte conteúdo crítico como os personagens são liquidados quando a terra selvagem passa a ser propriedade e a objetivar um tipo de lucro. Ao caipira restará a condição de empregado ou o êxodo para a cidade onde, confrontado com os valores urbanos, sofrerá a última derrota (RIOS, 2010, p. 52-53). Pelo que se pode deduzir das palavras de Jefferson Del Rios, o impacto provocado por Na carrera do Divino não foi nada desprezível. Parte dele, conforme se explicou, seria decorrência da orientação moderna conferida ao tema, elaborado de maneira a deixar Antônio de Alcântara Machado orgulhoso de suas admoestações. Outra parte talvez se devesse a algumas novidades formais não contempladas no repertório do teatro moderno, e que, por isso mesmo, fazem de Na carrera do Divino uma obra que não nega seu tempo histórico (sic). Prova de sua contemporaneidade seriam: os “comentários” em off de Monteiro Lobato, intercalados entre uma e outra fala, utilizados com vistas a ironizar sua visão sobre o caipira; o recurso do ator-narrador, que em certas horas se despe por completo das personagens para também tecer comentários; e a mistura, muito curiosa, de gêneros literários tais como a balada, a paródia e a fábula. Isoladas, provavelmente nenhuma delas possa ser considerada uma “novidade” para o teatro moderno. No entanto, ao atuarem juntas, elas denotam uma nítida tentativa de ampliação das fronteiras do teatro épico, aquele que, 371 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 no modernismo, tanto se bateu pela ampliação das fronteiras do drama. Ao que tudo indica, os ecos de um teatro que se poderia designar de pósépico já repercutiam por aqui no final dos anos de 1970, a década, afinal de contas, de Heiner Müller, Fernando Arrabal, Peter Handke e outros autores responsáveis por uma verdadeira implosão do gênero dramático. A maneira como Carlos Alberto Soffredini escreveu Na carrera do Divino é também reveladora de uma visão bastante contemporânea do fenômeno teatral. Em tempo: a peça surgiu a partir de um processo colaborativo, no qual os atores do Pessoal do Victor, todos do interior de São Paulo, contribuíram com recordações e relatos de parentes. Sendo assim, a Soffredini coube mais o papel de dramaturgista do que de dramaturgo propriamente dito. A informação é relevante por dois motivos: primeiro por se tratar de uma prática associada ao teatro contemporâneo, às vezes até confundida com ele; segundo porque, ao adotar esse procedimento, que requer uma relação de maior intimidade entre a dramaturgia e a cena, o resultado só poderia ser a performatização do texto. E o que seria isso? Não é tarefa das mais fáceis explicar, pois o conceito remete a uma longa problemática envolvendo literatura e teatro. Todavia, se faz necessário esclarecer alguns pressupostos básicos, que servirão de suporte para uma melhor compreensão tanto de Na carrera do Divino quanto, especialmente, de Agreste, a última peça da coletânea. Uma escrita performática é aquela que, até certo ponto, admite sua própria insuficiência literária, na medida em que sua ambição primordial é servir exclusivamente à cena, o único local onde, ao ser acionada, ela adquire sentido. Sua tessitura é o resultado de um teatro que não gira em torno da palavra, embora esta tenha, sem dúvida, o seu espaço, muitas vezes dividido igualitariamente com outros elementos não verbais, como o gesto dos atores, a dança, a música, a luz, e o cenário. Trata-se de um texto que não se fecha em si mesmo, mas, pelo contrário, é aberto, lacunar, consciente de sua incompletude. Um texto, em suma, que se coloca como pretexto para a encenação, a responsável, em última instância, pelo preenchimento dos espaços vazios. Isso quer dizer que peças dessa natureza não podem ser apreciadas pelo aspecto literário, ao serem lidas e não assistidas? Podem, claro. Se assim não o fosse, não faria sentido incluí-las neste volume. Mas elas exigem uma capacidade maior de imaginação da parte do leitor, que, para apreciá-las devidamente, terá que se colocar no lugar de um encenador. Caso sua atenção se concentre apenas nos elementos literários, algo possível em relação a autores com Shakespeare, Ibsen ou Brecht, para usar exemplos notórios, a fruição da obra ficará um tanto comprometida. Em se tratando de Na carrera do Divino, o risco disso acontecer não é considerável, já que seu grau de performatividade é baixo, se se pode assim dizer. De modo geral, a peça de Soffredini suporta bem uma “leitura literária”. Não é o que acontece, todavia, com Agreste, de Newton Moreno, dos autores aqui selecionados o único ainda vivo e em atividade. Nesse comentário não vai nenhuma censura, longe disso, mas uma simples constatação, pois Agreste é uma peça tipicamente perfomativa. A despeito disso, é uma pequena obra-prima do teatro brasileiro contemporâneo. Uma pequena obra-prima que, por mais recente que seja, mantém pontos firmes de contato com o modernismo brasileiro, entre outros aspectos pelo modo como ela se inscreve na dialética local x universal, repetindo o mesmo esquema verificado anteriormente em Vereda da salvação e Na Carrera do divino: alcançar dimensões universais a partir de sugestões locais. Tais “dimensões universais”, acrescente-se, muitas vezes se voltam para a busca de um sentido do trágico, ou seja, de uma tragicidade, que pouco ou nada tem a ver com o trágico dos gregos antigos, relacionado ao conflito dos homens com as forças da natureza (os deuses). Seria uma tragicidade moderna, portanto laica, ligada aos conflitos do homem consigo mesmo ou dele com as forças sociais. Se, em Vereda da salvação, Jorge Andrade enxergou um sentido trágico na trajetória de autoimolação dos camponeses de Malacacheta, e Soffredini, em Na carrera do Divino, no ciclo de destruição da cultura caipira, Newton Moreno assim o fez em relação ao casal de lésbicas descoberto no interior de Pernambuco e esmagado pela fúria homofóbica da população local. Apesar de muito pequena (mais ou menos quinze páginas), Agreste se divide em duas partes. A primeira discorre sobre a corte amorosa dos camponeses, aparentemente um casal comum (leia-se heterossexual). Escrito numa linguagem que se poderia definir de prosa poética, a narrativa se desdobra dos primeiros olhares trocados entre os dois, chamados apenas de “ele” e “ela”, até a fuga para uma zona rural remota, onde constroem um lar pacífico e isolado. A segunda parte inicia-se vinte e dois anos depois, quando “ele” morre. Ao ser despido pelas “velhinhas vestideiras” (sic), descobre-se que “ele”, na verdade, era “ela” também, revelação que, ultrapassando as medidas estabelecidas por aquela comunidade miserável, desencadeia uma catástrofe, consumada no incêndio do casebre onde as duas mulheres viviam. O eixo da peça, centralizado na descoberta, desloca- 373 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 se do plano individual (a relação homoerótica do casal) para o coletivo (a reação social adversa à relação). Nesse deslocamento encontra-se o sentido mais profundo da tragicidade do texto, conforme observou a crítica teatral Mariangela Alves de Lima, escrevendo para o jornal O Estado de S. Paulo: Sem complacência, sem atenuar a caracterização por respeito à indigência material e espiritual dos envolvidos, o texto enfrenta a questão mais complexa da intolerância como um componente obscuro e recalcado de qualquer agrupamento social. Este talvez seja o aspecto mais perturbador dessa peça superficialmente ancorada na representação de uma sociedade arcaica. Por contágio, de um modo quase inconsciente, o grupo se define contra a alteridade. Mobiliza-se para extirpá-la, cresce em dinamismo e energia quando encontra um pretexto para reafirmar um antigo código de conduta. Só quando vigia e pune a comunidade se fortalece e se torna sujeito da ação. Fora disso é vítima excluída do processo civilizatório. O autode-fé promovido pelos vizinhos do casal é, portanto, o seu momento afirmativo (LIMA, 2004, p. 124). No tocante à temática, o tratamento conferido à obra não nega o pacto do escritor moderno para com seu objeto, que pressupõe uma empatia absoluta do primeiro em relação ao segundo, visando extrair dele o máximo de riqueza humana e social. Não é o caso, contudo, do tratamento formal, que do ponto de vista dramatúrgico, conforme foi explicado, apresenta características reconhecidamente contemporâneas. Isso faz de Agreste uma peça bastante interessante, a um só tempo inscrita numa tradição moderna, que remonta a autores como Ariano Suassuna, Joaquim Cardozo e Hermilo Borba Filho, e outra, por que não dizer, pós-moderna. A própria escolha do homoerotismo como um dos temas caros à obra é eloquente a esse respeito. Ademais, nela não se encontra nem um resquício de drama, uma vez que nada é “presentificado”. Em outros termos, não há, em Agreste, personagens autonomamente concebidas, que deveriam viver no palco, encarnadas por um ator específico, seus dilemas e conflitos. Tudo é narrado por um legítimo ator-contador, conforme as indicações prescritas pelo autor bem no início da peça: A ideia deste texto é servir como exercício de narrativa para um ator-contador (atriz). Preferencialmente, sozinho em cena. O orador pode assumir todas as outras personagens, viúva, padre, o delegado e as vozes dos moradores. Ou dispor de outro(s) ator(es) que cria(m) uma partitura física para determinados momentos da estória. Da união destas duas linguagens – a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento – será feito o espetáculo. Um(a) narrador(a). Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles que reúnem um grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento. Ele(a) recebe o público, dá o clima de cada passagem do texto, pausas, enfim, é o grande condutor da cena (MORENO, 2008, p 18). A rubrica é absolutamente esclarecedora quanto aos procedimentos que nortearam a feitura de Agreste. Mais do que narrado, o texto foi feito para ser recitado por um ou dois atores, que teriam a missão de preencher a cena com uma determinada partitura física e vocal, materializando em termos imagéticos as palavras proferidas de acordo com um certo ritmo e uma certa cadência. A encenação que consagrou Agreste, levada a cabo em 2004 pela Companhia Razões Inversas e dirigida por Marcio Aurelio, optou por utilizar dois atores-contadores (Paulo Marcello e João Carlos Andreazza), que se dividiam na dupla tarefa de narrar-ilustrar o texto. Na primeira parte prevalecia o aspecto sonoro, expresso na melopeia das falas. Já na segunda o aspecto visual assumia certa procedência, por meio de algumas intervenções caricatas. O resultado não deixou nada a desejar, e a montagem acabou ganhando o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de melhor espetáculo de 2004. No mesmo ano, a Sala Preta, revista do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, dedicou a Agreste sua sessão Dossiê, reservada ao exame de algum espetáculo que tenha se destacado na temporada. E aqui termina este prefácio, que pretendeu, mais do que apresentar as obras selecionadas, oferecer um viés analítico em torno delas, disponibilizando subsídios para, quem sabe, melhor compreendêlas. Esse viés, embora não seja o único possível, longe disso, não deixa de ter suas virtudes, entre as quais se encontraria, com certeza, a coerência. Seguindo-o, é possível percorrer um caminho consistente trilhado pela moderna dramaturgia brasileira, que, entre avanços e recuos, não deixou sem resposta os elevados anseios estéticos proferidos há quase cem anos por Antônio de Alcântara Machado. Então, boa leitura, ou, melhor dizendo, boa viagem. 375 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências bibliográficas ALCÂNTARA MACHADO, Antônio de. “Indesejáveis”, in: Terra roxa e outras terras. São Paulo, n.1, p.3, 1926. ALMEIDA, Abílio Pereira de. O teatro de Abílio Pereira de Almeida. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. São Paulo: Perspectiva, 1970. ASSIS, Chico de. Teatro seleto de Chico de Assis (Volume I). Rio de Janeiro: Funarte, 2014. 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Abstract: This article aims to identify the different possibilities of artistic exchanges adopted by Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (Natal, Rio Grande do Norte), and, through a formative perspective, establish possible points of consonance among these possibilities, the transmission of knowledge on the “popular culture” as assigned by Burke (1989) and characteristics of Brazilian’s theater groups . Keywords: artistic exchanges, group theaters, Clowns de Shakespeare. Foto de Rafael Telles. Grupo Clowns de Shakespeare. Dudu Galvão, Joel Monteiro, Camille Carvalho, Marco França, João Ricardo, Renata Kaiser e Paula Queiroz em Muito barulho por quase nada. Bacharel em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atualmente desenvolve seu Mestrado em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP (IA-UNESP). É fundador e diretor da Cia. Alô, Doçura! 125 O presente artigo resulta dos questionamentos suscitados neste pesquisador quando do desenvolvimento de seu mestrado, atualmente em curso, sob o título provisório de Ser e não ser: a poética da alteridade no fazer artístico-pedagógico dos Clowns de Shakespeare. Tal pesquisa está sendo realizada na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, sob a orientação da Profa. Dra. Lúcia Romano, e nela propomonos a investigar o diálogo entre o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (Natal – RN) e os diretores Fernando Yamamoto – seu diretor artístico – e Gabriel Villela e Marcio Aurelio, encenadores convidados a assinar a direção de duas recentes montagens do grupo potiguar. Pretendemos, assim, analisar o procedimento do convite a diferentes encenadores externos ao Grupo como possibilidade de aprofundamento da prática artística e da poética do coletivo, identificada por nós como uma poética da alteridade. Tal poética se caracteriza por uma intensa troca artística entre o Grupo e diversos coletivos e profissionais das artes cênicas, trocas essas que adquirem forte caráter pedagógico, e de autoformação para os integrantes do próprio coletivo. Neste artigo, pretendemos estabelecer uma possível relação entre a prática do intercâmbio artístico proposta pelos Clowns de Shakespeare, aspectos da transmissão do conhecimento associado à cultura popular tal qual descrito pelo historiador inglês Peter Burke em seu livro Cultura popular na Idade Moderna (1989) e características do chamado movimento de teatro de grupo. Fundado oficialmente em 17 de novembro de 1993, data das apresentações de Sonho de uma noite de verão (1993) no Teatro Alberto Maranhão, localizado no bairro da Ribeira, em Natal-RN, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare constituiu-se inicialmente dentro de um contexto escolar, sendo conduzido nesse primeiro espetáculo pelo então professor de literatura Marco Aurélio Barbosa, e tendo como integrantes alunos e ex-alunos recém-formados do Colégio Objetivo de Natal. A partir do ano de 1994, o Grupo já se encontrava totalmente desvinculado do colégio no qual inicialmente fora gerado, e os integrantes remanescentes, uma vez que não possuíam formação oficial em artes cênicas, começaram a procurar artistas e profissionais que pudessem auxiliá-los nesta formação teatral junto ao próprio fazer artístico do Grupo. Podemos considerar que, apesar de haver uma intensa renovação de integrantes ao longo da história do Grupo, tal característica inicial, de estabelecer a formação de seus integrantes através do convite a trocas e intercâmbios com outros artistas, permaneceu como uma constante na 379 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 trajetória do coletivo e se mantém até hoje, decorridos vinte e um anos da fundação do Grupo. Essa característica é frisada pelo próprio diretor artístico dos Clowns de Shakespeare, Fernando Yamamoto, quando afirma que “[...] quem acompanha a trajetória dos Clowns de Shakespeare sabe o quanto a troca com outros profissionais e grupos é um traço fundamental para a formação da identidade do grupo” (YAMAMOTO, 2012, p.17). A troca entre os Clowns de Shakespeare e outros profissionais e grupos, citada por Yamamoto, se estabelece de variadas formas. Podemos citar como formas de intercâmbio as oficinas realizadas com profissionais da área (ou de áreas afins) ministradas aos integrantes do Grupo, ainda que não vinculadas à criação de um espetáculo; a colaboração de diversos artistas advindos de diferentes estéticas e segmentos dentro de um mesmo processo de criação, como ocorrido em O capitão e a sereia (2009); ou até mesmo o convite a encenadores externos ao Grupo para a condução de seus processos, como em Sua Incelença, Ricardo III (2010), que teve direção de Gabriel Villela, Hamlet: um relato dramático medieval (2013), com direção de Marcio Aurelio, ou mais recentemente, Dois amores y um bicho (2015), dirigido por Rafael Carrera. Podemos incluir como exemplo de intercâmbio também as trocas ocorridas entre grupos, como o projeto Conexões Música da Cena, realizado em conjunto com a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Porto Alegre/RS) por intermédio do Edital Rumos de Teatro, ou o processo de criação do espetáculo Farsa da boa preguiça (2010), compartilhado entre Clowns de Shakespeare e Ser Tão Teatro (João Pessoa/PB). Há ainda de se considerar a participação do Grupo em movimentos de articulação política tais como o Movimento Redemoinho e A Lapada, e a idealização e realização de duas edições do Festival O Mundo Inteiro é Um Palco, composto por espetáculos, cenas curtas, oficinas e ações formativas. Segundo Yamamoto, o aspecto do intercâmbio com outros artistas não é característica exclusiva dos Clowns de Shakespeare, mas uma tendência dos grupos de teatro na atualidade: “[...] é muito significativa na produção contemporânea de coletivos a ocorrência de experiências de trocas e intercâmbios, seja em movimentos mais amplos, seja em experiências mais pontuais e restritas [...]” (YAMAMOTO, 2009, p.60). De fato, a existência de editais especificamente destinados aos intercâmbios entre grupos, conforme o anteriormente citado Edital Rumos, e a utilização de procedimentos similares aos praticados pelos Clowns de Shakespeare por outros coletivos, como por exemplo, o recorrente convite a diferentes encenadores na trajetória do Grupo Galpão (Belo Horizonte – MG), atestam que elementos de uma poética da alteridade estão presentes em maior ou menor grau em variados coletivos pertencentes ao chamado movimento de teatro de grupo. Mas o que se busca e o que se gera através dessas trocas? A resposta à pergunta anterior sem dúvida é de grande complexidade, dada que são múltiplas as decorrências advindas desses intercâmbios, e conforme sinalizado pelos exemplos citados relativos aos Clowns de Shakespeare, inúmeras são também as formas de realização dessas trocas. No caso específico de nossa pesquisa, optamos por ressaltar o caráter pedagógico envolvido nos intercâmbios, verificando se as trocas do Grupo ocorridas dentro de sala de ensaio (oficinas com outros artistas e/ou colaboração destes em processos de criação do Grupo) poderiam se caracterizar como alternativa possível de formação para seus integrantes. Caso analisemos a formação dos integrantes atuais dos Clowns de Shakespeare – incluindo como integrantes não apenas os atores que compõem o elenco do coletivo, mas também seu diretor, iluminador, e produtor – uma parte significativa deles não possui formação técnica ou universitária em artes cênicas, tendo sua formação teatral ocorrido no decorrer do fazer artístico do Grupo. Isso se dá, em parte, pelo fato de os cursos técnicos de teatro terem sido introduzidos em Natal somente na primeira década dos anos 2000, data que coincide com a inauguração do curso de Licenciatura em Teatro, oferecido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. A título de curiosidade e comparação, o curso universitário em arte dramática da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP foi instituído em 1973, e o curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi inaugurado apenas em 2006. Seria então a poética da alteridade uma alternativa desenvolvida pelos coletivos teatrais a não prescindir de uma formação oficial? Segundo André Carreira, “O movimento de grupos teatrais sempre esteve preocupado com a formação de atores. A carência de escolas formadoras foi durante muitos anos suprida pelos próprios grupos que funcionavam como celeiro de atores” (CARREIRA, 2006, p. 51). Podemos observar que a formação através dos intercâmbios com outros profissionais, tal como aquela ocorrida no caso dos integrantes dos Clowns de Shakespeare, vincula-se exemplarmente ao quadro exposto por Carreira. Dentre as características dessa formação, identificamos que geralmente 381 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 ela ocorre por meio da observação, da transmissão oral, e da experiência prática, e que, sobretudo, ela é realizada em espaços não-oficiais de construção de conhecimento, não estando também, por consequência, regida sob os preceitos do ensino formal. Esse fato nos remete ao conceito da transmissão de conhecimento da chamada pequena tradição, segundo o historiador Peter Burke (1989). No segundo capítulo de seu livro Cultura popular na Idade Moderna (1989), Burke revisita criticamente o pensamento do antropólogo social Robert Redfield, de acordo com o qual em determinadas sociedades coexistiriam duas tradições culturais: a grande tradição pertencente à minoria culta, e a pequena tradição, pertencente aos demais setores da população não pertencentes àquela minoria culta. A crítica de Burke sobre o pensamento de Redfield resvala-se primordialmente no que ele define como uma não correspondência simétrica entre a grande tradição e a pequena tradição e os grupos sociais formados respectivamente pela elite e pelo povo comum. Segundo Burke: A elite participava da pequena tradição, mas o povo comum não participava da grande tradição. Essa assimetria surgiu porque as duas tradições eram transmitidas de formas diferentes. A grande tradição era transmitida formalmente nos liceus e universidades. [...] A pequena tradição, por outro lado, era transmitida informalmente. Estava aberta a todos, como a igreja, a taverna e a praça do mercado, onde ocorriam tantas apresentações (1999, p.55). Assim sendo, a pequena tradição – que no decorrer dos escritos de Burke pode vir a ser associada ao que comumente chamamos de cultura popular – seria compartilhada por todos os setores da população, enquanto a grande tradição estaria restrita à elite, sobretudo pelo modo como tal tradição era transmitida. É certo que a transmissão de conhecimento na pequena tradição/ cultura popular, conforme descrita por Redfield e revista por Burke, e a formação através da troca com outros profissionais, tal como ocorre no caso dos Clowns de Shakespeare, não são totalmente correspondentes. Principalmente se considerarmos o fator da universalidade do acesso ao conhecimento como uma característica da transmissão da pequena tradição, dado que, a princípio, o conhecimento gerado através dos intercâmbios propostos pelo Clowns de Shakespeare estaria restrito exclusivamente àqueles que deles participaram. Ainda que assim o seja, observamos que parte desse conhecimento é partilhada com o público não-participante de intercâmbios, seja através de oficinas públicas ministradas pelos integrantes do Grupo, posteriormente aos intercâmbios, ou por intermédio das apresentações dos espetáculos resultantes desses processos – o que nos remete novamente à Burke, quando este se refere que a pequena tradição era transmitida através de apresentações nas praças. Contudo, o fator que chama a atenção como possível maior aspecto de semelhança entre ambos os processos – transmissão da pequena tradição e formação através das trocas – reside no fato de que em ambos os conhecimentos são adquiridos, transmitidos, e gerados à margem dos espaços identificados inicialmente como oficiais para tal. Acreditamos, assim, que a prática de intercâmbio, transmissão e criação de conhecimento ocorrida nos espaços alternativos como aqueles propiciados não apenas pelos Clowns de Shakespeare, mas também por diversos outros coletivos vinculados ao chamado movimento de teatro de grupo, conforme mencionado anteriormente, podem ser atrelados a aspectos da cultura popular devido a seu caráter não-oficial, independentemente das escolhas estéticas resultantes dessas trocas. Essa característica de não-oficialidade, por sua vez, parece aproximar-se dos objetivos dos coletivos identificados sob a denominação de teatro de grupo, na busca de se manterem alheios às lógicas mercadológicas de produção, e apresentarem-se como alternativa possível de desenvolvimento teatral em regiões e condições periféricas. Carreira afirma que: Compreender as tendências determinantes na arte do ator periférico, e identificar como as práticas do teatro de grupo constituem um universo pedagógico, aparece como uma tarefa central na pesquisa sobre teatro brasileiro. Pois isso constitui um eixo que permite definir a cara de um possível “outro teatro” que tem pouca visibilidade e se enfrenta com a dificuldade de conquistar espaços de divulgação e circulação (2006, p. 52). Esperamos que, através dos exemplos citados e de nossa contribuição neste breve artigo, tenhamos podido auxiliar a fomentar atuais e futuras pesquisas sobre o teatro que se faz contemporaneamente no Brasil. 383 Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. BEZERRA, Camille Carvalho. O capitão e a sereia: processo de formação de uma atriz. 2014. Monografia (de graduação) apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Rio Grande do Norte: 2014. BRITO, Rubens José Souza. “Popular”, in: Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos, 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2009. BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Rebento – Revista de Artes do Espetáculo publica artigos, ensaios e resenhas na área das artes do espetáculo, com interlocuções com as Ciências Humanas em geral. Solicita-se aos colaboradores, entretanto, que sigam as seguintes indicações: 1. O material para publicação deverá ser encaminhado em duas vias impressas e uma em CD, em formato “doc” ou “rtf”. Os artigos deverão conter no máximo 20 páginas; as resenhas, até 6 páginas. Os textos deverão ser digitados em fonte Arial, tamanho da fonte 11, espaço 1,5. 2. Os artigos deverão conter os seguintes itens: Título, Subtítulo (quando for o caso), Autoria, Dados curriculares básicos do/a autor/a, Resumo, Palavras-chave, Abstract, Keywords, Texto e Referências Bibliográficas. 3. A simples remessa de originais implica autorização para publicação. 4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto. 5. Os editores poderão encomendar artigos e colaborações, que terão prioridade sobre os artigos enviados espontaneamente. 6. As notas, quando existirem, deverão ser indicadas no corpo do texto por algarismo arábico, em ordem crescente, e listadas no rodapé da página. Ao mencionar uma obra pela primeira vez, fazer citação bibliográfica completa. Em caso de nova referência à mesma obra, utilizar o padrão SOBRENOME, Nome, op. cit., p., ou idem, ibidem, quando for o caso de uma segunda citação consecutiva de um mesmo autor/a e/ou de uma mesma obra. 7. As notas devem ser digitadas em espaço simples, tamanho da fonte 10. 8. Para as citações, as aspas não são necessárias nem é preciso usar itálico. Basta recuar 4 cm à direita e digitar o texto em letra com tamanho da fonte 10, espaço simples. 9. Os artigos podem ser acompanhados de imagens (reduzidas ao mínimo indispensável), em formato JPG e com resolução de 300 dpi, enviadas em arquivos separados do texto, com os devidos créditos. 10. Para as citações com quatro linhas ou menos que apareçam no corpo principal do texto, simplesmente “abrir” e “fechar” aspas, sem recorrer a itálico ou o recurso das margens. Revista de Artes do Espetáculo no 5 - julho de 2015 PADRÃO PARA CITAÇÃO Livro: SOBRENOME, Nome. Título em itálico. Local de publicação: Editora, ano de publicação, página citada (p.) ou páginas citadas (p.). Coletânea: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo, in: SOBRENOME, Nome (org.). Título em itálico. Local de publicação: Editora, data, página citada. Artigo: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico, volume, número do periódico, local, mês (abreviado) e ano de publicação, página citada. Tese acadêmica: SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico: subtítulo. Tipo de trabalho: Dissertação ou Tese (Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica, local e data de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada. Documentos eletrônicos: AUTORIA. Denominação ou Título: subtítulo. Indicações de responsabilidade. Data. Informações sobre a descrição do meio ou suporte. Para documentos on-line, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico, apresentado entre os sinais < >, precedido da expressão “disponível em” e a data de acesso ao documento, precedida da expressão “acesso em”. ENDEREÇO Rebento – Revista de Artes do Espetáculo Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Instituto de Artes – Campus de São Paulo. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Rua Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271 Barra Funda – São Paulo (SP) CEP: 01140-070 Apoio institucional