A imaginação social jesuítica do Padre Antônio

Transcrição

A imaginação social jesuítica do Padre Antônio
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Josenildo Campos Brussio
Imaginação social jesuítica do Padre Antônio Vieira no Maranhão do
Século XVII
Rio de Janeiro
2012
Josenildo Campos Brussio
Imaginação social jesuítica do Padre Antônio Vieira no Maranhão do século XVII
Tese apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicologia Social, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores
Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A
B912
Brussio, Josenildo Campos.
Imaginação social jesuítica do Padre Antônio Vieira no
Maranhão do século XVII / Josenildo Campos Brussio. –
2012.
211 f.
Orientador: Luiz Felipe Baêta Neves Flores.
Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Psicologia.
1. Vieira, Antônio, Padre, 1608-1697 – Teses. 2. Jesuítas
- Maranhão – Teses. 3. Imaginário – Teses. 4. Psicologia
social – Teses. I. Flores, Luiz Felipe Baêta Neves. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Psicologia. III. Título.
nt
CDU 301.151
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese.
________________________________
Assinatura
________________
Data
Josenildo Campos Brussio
Imaginação social jesuítica do Padre Antônio Vieira no Maranhão do Século XVII
Tese apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicologia Social, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em: 28 de março de 2012
Banca Examinadora:
_______________________________________
Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores (Orientador)
Instituto de Psicologia da UERJ
_______________________________________
Dr. Luis Filipe Miranda de Souza Ribeiro
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Dra. Evelyn Goyannes Dill Orrico
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
_______________________________________
Dr. Jeferson José Moebus Retondar
Instituto de Educação Física da UERJ
_______________________________________
Dra. Regina Glória Nunes Andrade
Instituto de Psicologia da UERJ
Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA
À minha esposa, Amanda Brussio,
e minhas filhas, Jéssica e Julliana,
forças de minha inspiração para
compor esta produção.
AGRADECIMENTOS
Ao criador, responsável por essa maravilhosa glória que é a vida.
À minha esposa, Amanda Brussio, e minhas filhas, Jéssica e Julliana, pela
compreensão das inúmeras horas em que tive que abandoná-las por esta produção.
Aos meus pais, José dos Santos Brussio e Maria Eunice Campos Brussio, pelo que me
fomentaram ao longo de minha formação como ser humano e cidadão e ao apoio moral dado a
esta produção.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores, pelo esforço e ajuda na
construção desta produção complexa e, ao mesmo tempo, instigante.
Aos meus amigos da turma do DINTER UFMA/UERJ (2008-2012), pelo apoio e força
concedidos durante este quatro anos de luta acadêmica.
Ao prof. Almir Ferreira da Silva Júnior, por todo esforço desempenhado em coordenar
inicialmente o DINTER, principalmente, pelo apoio moral que me foi concedido para persistir
e continuar lutando para a realização deste feito.
À professora Denise Bessa Leda, Coordenadora Operacional do DINTER/Psicologia
que não mede esforços na busca de solução dos problemas deste doutorado.
Às professoras do DINTER, Dra. Ana Jacó Vilela e Dra. Regina Andrade, por todo
esforço e determinação para a concretização deste DINTER e, especialmente, pelo apoio que
me foi dedicado nos momentos difíceis.
Aos demais professores do DINTER pela grande colaboração que prestaram para o
meu enriquecimento científico.
Ao Prado Filho, sempre gentil e prestativo na sua atuação junto à secretaria do
DINTER.
Aos professores integrantes da banca examinadora por terem aceitado prontamente o
convite e por dedicarem parte de seus (corridos) tempos para contribuírem com esta pesquisa.
Aos colegas do COLUN, que nos momentos difíceis do início do Doutorado
estenderam-me a mão para apoiar-me nas lutas administrativas para minha liberação, em
especial, os colegas Francicarlos Veras Cardoso, Cristiano Capovilla, Fábio Garcez, Cláudio
Rodrigues.
Aos funcionários da Casa de Cultura Josué Montello, que me forneceram, com muita
atenção, cuidado e dedicação, as cópias das obras raras sobre o Padre Antônio Vieira, que
serviram de base para esta pesquisa.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
E, por fim, à professora Vera Lúcia Giusti de Sousa, revisora desta tese, que muito
contribuiu para a conclusão deste trabalho.
Nunca na igreja de Deus houve tantas
pregações, nem tantos pregadores como
hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de
Deus, como é tão pouco o fruto? Não há
um homem que em um sermão entre em
si e se resolva; não há um moço que se
arrependa; não há um velho que se
desengane; que é isto? Assim como
Deus não é hoje menos onipotente, assim
a sua palavra não é hoje menos poderosa
do que dantes era. Pois se a palavra de
Deus é tão poderosa, se a palavra de
Deus tem hoje tantos pregadores, por
que não vemos hoje nenhum fruto da
palavra de Deus? Esta tão grande e tão
importante dúvida será a matéria do
sermão. Quero começar pregando-me a
mim. A mim será, e também a vós: a
mim, para aprender a pregar; a vós, para
que aprendais a ouvir.
VIEIRA, Antônio. Sermão da Sexagésima,
2011
RESUMO
BRUSSIO, Josenildo Campos. Imaginação social jesuítica do Padre Antônio Vieira no
Maranhão do século XVII. 2012. 211f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de
Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
O padre Antônio Vieira é uma figura icônica do Barroco literário no Brasil do século
XVII, visto por muitos como um dos grandes representantes da Companhia de Jesus. A
presente tese busca contemplar um tema recorrente na historiografia jesuítica brasileira que
trata do papel desempenhado pelos jesuítas na tentativa de construção de “uma terrena cidade
celeste” segundo Neves, no novo mundo (Brasil colônia) e, particularmente, das práticas
sociais (sobretudo, políticas, religiosas, ideológicas, jurídicas) do padre Antônio Vieira – suas
implicações e rupturas no Maranhão seiscentista – sob o olhar do imaginário social. Através
de três sermões proferidos no Maranhão, pretendemos analisar e dialogar sobre as imagens
mais recorrentes na produção sermonística do Padre Antônio Vieira: como nosso objeto de
pesquisa também é a produção imagética do “sujeito” Vieira, utilizamos como referencial
teórico a noção ideológica de “sujeito” de Mikhail Bakhthin, as noções do Imaginário de
Gilbert Durand e Gaston Bachelard, as teorias sobre o Imaginário Social jesuítico do
antropólogo e pesquisador Luiz Felipe Baêta Neves e outros grandes teóricos, para nos ajudar
a analisar essas imagens. Buscamos uma possível estrutura do imaginário social do padre
Antônio Vieira durante sua presença no Maranhão a partir dos sermões analisados e
levantamos os processos de ruptura e continuidade com os projetos do missionário e da
Companhia de Jesus na formação da sociedade maranhense.
Palavras-chave: Padre Antonio Vieira. Imaginário social. Maranhão.
ABSTRACT
The priest Antonio Vieira is an iconic figure in the literary Baroque seventeenthcentury in Brazil, seen by many as one of the major representatives of the Society of Jesus.
This thesis seeks to contemplate a recurring theme in the Brazilian Jesuit historiography that
focuses on the role played by the Jesuits in an attempt to build "a heavenly city on earth"
(NEVES, 2003) in the new world (Brazil colony) and particularly of social practices (above
all, political, religious, ideological, legal) of the priest Antonio Vieira - their implications and
breaks in the seventeenth century Maranhão - under the gaze of the social imaginary. Through
three sermons published with greater impact, in Maranhão seventeenth century, we aim to
analyze and talk about the most recurrent images in the production sermons of the priest
Antonio Vieira and because our object is to produce imagery of the "subject" Vieira also used
as a theoretical notion of ideological "subject" of Mikhail Bakhthin, the notions of the
Imaginary by Gilbert Durand and Gaston Bachelard, theories on the Social Imaginary Jesuit
anthropologist and researcher Luiz Felipe Baêta Neves and other great theorists to help us to
analyze these images. Search is a possible structure of the social imaginary of the priest
Antonio Vieira during their presence in Maranhão from sermons and analyzed raises the
processes of rupture and continuity with the mission and projects of the Society of Jesus in
shaping society Maranhão.
Keywords: Padre Antonio Vieira. Imaginary social. Maranhão.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................
13
1
IMAGINAÇÃO SOCIAL JESUÍTICA – CONTEXTUALIZANDO A
PRESENÇA DE VIEIRA NO MARANHÃO ...............................................
22
1.1
Padre Antônio Vieira: o maior orador sacro em língua portuguesa ..........
22
1.2
O uno e o múltiplo: as faces de Vieira ...........................................................
23
1.3
“sujeito” Padre Antônio Vieira na concepção dialógica de Mikhail
Bakhthin ...........................................................................................................
26
1.4
“Trilhando” as “teias da imaginação” do Padre Antônio Vieira: do
referencial teórico ...........................................................................................
31
1.5
Vieira no Maranhão: a espada e o escudo em ação ......................................
39
1.5.1
As missões jesuíticas no Maranhão antes de Vieira .....................................
39
1.5.2
As missões jesuíticas no Maranhão após a chegada de Vieira ....................
41
1.6
Vieira, os mitos e a linguagem mítica ............................................................
44
2
O PREÇO DAS ALMAS NO MARANHÃO ................................................
51
2.1
A que diferente preço compra hoje o demônio as almas no Maranhão! ....
52
2.2
Vieira e os negros .............................................................................................
65
2.3
O legislador e o jurista: a criação dos cativeiros justos ...............................
71
3
NO MARANHÃO ATÉ OS CÉUS MENTEM .............................................
76
3.1
Metáfora do Apólogo do Diabo: Maranhão, o “Reino da Mentira” ..........
78
3.2
A mentira e o ócio: vícios tipicamente maranhenses ...................................
83
4
VÓS SOIS O SAL DA TERRA ......................................................................
97
4.1
O poder do sal ..................................................................................................
97
4.2
Os Vícios e as Virtudes dos peixes .................................................................
101
4.3
O grande peixe engolidor ...............................................................................
111
5
BUSCANDO CAMINHOS NAS TEIAS DA IMAGINAÇÃO DO PADRE
ANTÔNIO VIEIRA .........................................................................................
115
5.1
A imagem do soberano mago guerreiro ........................................................
117
5.2
O sentido de “vícios” para o Padre Antônio Vieira: ataque aos vícios do
Maranhão .........................................................................................................
121
5.3
A imagem dos contrários ................................................................................
126
5.4
As estruturas esquizomórficas (ou heroicas) do padre Antônio Vieira: as
imagens do regime diurno ..............................................................................
130
6
CONTRIBUIÇÕES E CONTRADIÇÕES DE VIEIRA NA FORMAÇÃO
DA SOCIEDADE MARANHENSE ..............................................................
134
7
CONCLUSÃO ..................................................................................................
141
REFERÊNCIAS ...............................................................................................
146
ANEXOS ...........................................................................................................
154
ANEXO A – Sermão da Primeira Dominga da Quaresma ...............................
155
ANEXO B – Sermão da Quinta Dominga da Quaresma ...................................
169
ANEXO C – Sermão de Santo Antônio aos peixes ..........................................
187
13
INTRODUÇÃO
Em MENSAGEM FERNANDO PESSOA,
Segundo
Antonio Vieira
edição clonada do original da Biblioteca
Nacional de Portugal, Pessoa (2011) revela,
de forma intensa, o significativo valor que o
O céu strella o azul e tem grandeza
Este, que teve a fama e a gloria tem,
Imperador da língua portugueza,
Foi-nos um céu também.
padre Antônio Vieira legou à Língua
No immenso espaço seu de meditar,
Constellado de forma e de visão,
Surge, prenuncio claro do luar,
El-rei D. Sebastião.
mas ainda por que como “mensagem” ela
Mas não, não é luar: é luz de ethereo.
É um dia, e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Imperio
Doira as margens do Tejo.
Portuguesa. Considero inevitável utilizá-la
aqui não apenas como justa homenagem,
permite adentrar em um assunto cujo
reconhecimento e celebração não se restringe
somente aos “especialistas” em Vieira, uma
vez que atinge a um público que não
pertence à esfera da vida acadêmica. A
oferta generosa de Pessoa para a pessoa do
(Fernando Pessoa)
padre Antônio Vieira ao dedicar um poema
ao “Imperador da Língua Portuguesa”,
serviu-me, entre, outras referências, de
gatilho luminoso.
14
INTRODUÇÃO
Há em mim uma certeza que convém não ocultar: ao me explicar melhor posso
afirmar que esta tese contribuiu para ampliar vários aspectos de minha vida acadêmica, antes
tomada quase que integralmente pelas coisas da literatura. Assim, forçado pelo objeto de
estudo, enveredei no século XVII em busca de um foco que não só iluminasse, mas me
levasse à essência do estava me propondo a fazer, que era uma exposição da imaginação
social jesuítica do padre Antônio Vieira no Maranhão, através dos seus sermões. Exatamente
dois meses depois, me dei conta de que o início da produção desta tese se deu em um
momento simbólico importante: 2008, quando comecei o doutorado, era o ano em que o
jesuíta completava 400 anos de nascimento. E os olhos do mundo voltavam-se para Vieira
com mais intensidade pela passagem de seu quadricentenário de nascimento. Pessoalmente,
me senti inseguro só de pensar que iria encarar não só a desenvoltura literária do jesuíta como
também de alguns teóricos que se debruçaram sobre a obra do missionário.
Confesso agora que o pior estava a caminho. E para utilizar uma das imagens do
padre, quase desci ao “inferno” procurando palavras que ficassem a contento para delinear a
introdução do assunto desta tese. Posso dizer isso em virtude de que o tempo me contrariou
bastante, pois me afrontava em várias direções, principalmente nos instantes em que me
detinha para pesar – e como pesei – a imensa responsabilidade que teria não só comigo, mas
com os leitores.
O tempo ia passando, as ideias se amontoavam e o meu olhar, pesado, me
reclamava pressa. Resolvi, então, me determinar a escrever com base no material coletado que
os doutos em Vieira já haviam escrito sobre ele. Feito isto, senti que o fator segurança
começava a tomar corpo.
O que consistia em extrema preocupação – a análise dos sermões do padre
Antônio Vieira – transformou-se, aos poucos, em materialidade à proporção que me deixei
guiar com olhos desanuviados, assim, considerei o foco temático sem dar trelas aos entraves
que poderiam se suceder.
Para dar conta de realizar esta tarefa me impus alguns passos, entre eles, fazer um
re-corte no objeto de estudo a fim de contextualizar a presença do jesuíta no Maranhão. A
15
produção literária1 do padre Antônio Vieira, principalmente os seus sermões, tem sido uma
fonte inesgotável de estudos e construção de conhecimentos, todavia, na condição de um
trabalho acadêmico, este extenso acervo requer um re-corte, o que significa fazer uma
criteriosa seleção dos textos, que o pesquisador pretende analisar, valendo-me da luz incolor
do tempo histórico, da complexidade e da universalidade que a obra de Vieira adquire nos
mais variados campos do conhecimento.
Eloy Coelho Netto (1985) cita que José Honório Rodrigues teve o cuidado de
selecionar os sermões mais importantes de Vieira, no Maranhão, por seu conteúdo e
contundência, assim os distribuindo: o “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma” (1653)
condena a escravidão indígena e apela para a consciência dos moradores; o “Sermão da
Quinta Dominga da Quaresma” (1654) mostra que não há verdade no Maranhão, onde os
moradores acusavam e afrontavam os jesuítas que defendiam os índios; o “Sermão de Santo
Antônio” (1654) condena a corrupção no Maranhão, as lutas internas, repreende os moradores
que por causa dos negócios do algodão perdiam a consciência cativando os índios; o “Sermão
do Espírito Santo” define a pregação dos indígenas, revela as dificuldades a vencer, a língua e
a rudeza da gente, e a glória do ofício de pregar a fé e salvar as almas.
A seleção que fizemos dos sermões proferidos pelo jesuíta no Maranhão, para
analisar nesta pesquisa, coincide quase na totalidade com a de José Honório Rodrigues, pois
analisaremos os três primeiros, e do último (Sermão do Espírito Santo) citaremos algumas
passagens importantes. Outro pesquisador, como Jomar Moraes, que presidiu a Academia
Maranhense de Letras, também destaca aqueles três sermões como os mais significativos
dentre os proferidos pelo jesuíta, no Maranhão.
O missionário esteve no Maranhão entre os anos de 1653 e 1661. Sua presença
nesta terra foi marcante quer nas mudanças que ocasionou na luta contra os colonos pela
defesa dos índios, quer no processo de evangelização, que resultou na produção de dezessete
sermões (MORAES, 1979).
De fato a sua produção é vasta, na qual se destacam o clamor de seus sermões, as
cartas e as profecias. Por essa razão, faremos uso somente de alguns sermões para
dialogarmos com concepções teóricas da Psicologia Social, mais especificamente, do
Imaginário Social, na contemporaneidade. Destes sermões, enfatizaremos o Sermão de Santo
Antônio – aos peixes (1654), o Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (1653) e o Sermão
da Quinta Dominga da Quaresma (1654).
1
O adjetivo “literária”, aqui, expressa todo o conjunto de produções escritas do jesuíta, incluindo as que
nitidamente possuem aspectos da arte literária, como as metáforas em seus sermões.
16
***
O trabalho dos jesuítas no Maranhão colônia já foi, é, e provavelmente, ainda
será, objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento como a História, a Sociologia, a
Antropologia, a Educação, a Filosofia, entre outras. Embora apresente tanta abrangência de
estudos, sabemos que a investigação deste objeto é inesgotável, pois, “toda produção teórica
reflete uma construção teórica de seu tempo” (NEVES, 1997).
Dos estudos realizados diretamente sobre imaginação social jesuítica nos séculos
XVI e XVII, interessa-nos destacar as produções “O Combate dos Soldados de Cristo na terra
dos papagaios” e “Vieira e a Imaginação Social Jesuítica: Maranhão e Grão-Pará no século
XVII”, ambos de Neves. As suas análises sobre o imaginário social jesuítico no Brasil deste
período são indiscutivelmente surpreendentes e impactantes, visto que rompem com as formas
de compreensão de ideologias da época com as quais estamos acostumados a lidar e que
mudam, de certa maneira, a forma de apreensão da história cultural do país, como ratifica o
próprio antropólogo a respeito da posição que os jesuítas ocuparam e ocupam na história do
Brasil:
[...] Curiosamente, não houve necessidade de luta. A posição jesuítica se beneficiou
de um silêncio espantoso que se impôs a dezenas de gerações ... e de posições
teóricas. Silêncio que se consubstancia em uma ausência maciça, quase absoluta, de
estudos críticos sobre tal posição. Mas tal silêncio é absolutamente enganoso; na
verdade não há silêncio – o que há é a repetição da fala (e da ação) dos religiosos.
Não há silêncio porque o tema não foi esquecido nem pela sociedade nem por seus
teóricos; apenas o tema foi erigido como tal – e assim analisado – por uma única
posição, que conseguiu estabelecer seu império sobre as demais – e onde menos se
espera (NEVES, 1978, p. 17).
O tema a que se refere o historiador foi uma de suas argumentações centrais em
suas obras: “há uma acentuada rarefação de estudos específicos sobre a história quer
econômica, cultural, religiosa, institucional, arquitetônica do objeto precípuo deste trabalho”.
Não obstante, isto não implica irrelevância pelo tema, ao contrário, “a extrema carência de
estudos substantivos é, em certo sentido, contrabalançada pela estimulante eclosão de grandes
estudos históricos gerais e de análises setoriais de temas – e teorias – novos” (NEVES,
1997).
17
De fato, os estudos e análises sobre a atuação dos jesuítas na colônia e a
importância do papel social e ideológico exercido por eles nas missões é um campo de
combate aberto, no qual se digladiam várias teorias.
Como este trabalho está vinculado à linha de pesquisa História, Imaginário Social
e Cultura, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ, optamos por
utilizar como referencial teórico a Teoria do Imaginário de Gilbert Durand, sem descuidar do
aspecto histórico2. Percebemos que desenvolver uma análise dos sermões pelo referencial
teórico do imaginário, poderia nos conduzir a novos horizontes de percepção das condições de
produção dos sermões e das cartas do padre Antônio Vieira. Implicaria, por assim dizer, uma
mudança de olhar teórico e metodológico do pensamento, consequentemente, das posições
diante do objeto de estudo.
A presença do padre Antônio Vieira, no Maranhão, portanto, leva-nos a refletir
não só sobre a construção ideológica, retórica, teórica de seus textos, mas também sobre as
condições de composição desses textos, seu ponto de vista histórico, político, geográfico, a
situação em que ele se encontrava, sendo que isso reflete as suas práticas sociais, sua maneira
de ver e pensar o mundo, seu imaginário social. Porém, como compreender a complexidade
de seu pensamento e o imaginário social constituído por ele?
O imaginário social na produção de Vieira talvez tenha brotado do circuito de sua
criatividade, mas consideremos, por exemplo, a necessidade de apresentar de que imaginário
estamos falando. Existem várias teorias do Imaginário, contudo, utilizaremos aqui a teoria de
Gilbert Durand que o conceitua como “uma encruzilhada antropológica que permite
esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por outro aspecto de uma outra”
ou “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo
sapiens” e ainda “tudo aquilo” que se produz no trajeto antropológico3, ou seja, “a incessante
troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as
intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 1997).
2
É importante ressaltar que os aspectos históricos desta pesquisa serão apresentados durante a exposição de cada
dado importante sobre o imaginário jesuítico do padre Antônio Vieira, ou seja, a cada nova abordagem,
contextualizaremos os fatos para maior situacionalidade histórica, facilitando a compreensão do “sujeito” Vieira
(explicaremos essa noção de “sujeito” no item 1.3 O “sujeito” Padre Antônio Vieira na concepção dialógica
de Mikhail Bakhthin, no primeiro capítulo), em determinado tempo e espaço.
3
Para Gilbert Durand (1997), é no trajeto antropológico que realmente nascem as imagens, na troca entre as
pulsões subjetivas do indivíduo e as intimações objetivas do meio cósmico-social. Por isso, os símbolos e as
imagens são motivadas, daí a importância da reflexologia e as dominantes reflexas, como matrizes sensóriomotoras nas quais as representações vão naturalmente integrar-se, sobretudo certos esquemas perceptivos vêm
enquadrar e assimilar-se aos esquemas motores primitivos, se as dominantes posturais, de engolimento ou
rítmicas se encontram em concordância com os dados de certas experiências perceptivas.
18
Em razão da complexidade do pensamento teórico de Durand, não poderíamos
deixar de chamar para esta construção de saberes as noções de “fenomenologia das poéticas”
de seu mestre Gaston Bachelard. Este traz grandes contribuições para o simbolismo do
imaginário ao conceber a imaginação como dinamismo organizador, ou seja, propõe uma
“fenomenologia do imaginário onde a imaginação é colocada no seu lugar, no primeiro lugar,
como princípio de excitação direta do devir psíquico” (BACHELARD, 2006).
Assim, Bachelard desenvolve uma fisiologia da imaginação que obedece às leis
dos quatro elementos: fogo, terra, ar e água, ratificando que as imagens designam uma
matéria-prima, um elemento fundamental, onde cada elemento é imaginado em seu
dinamismo especial e, em consequência disto, a consciência imaginante cria e vive a imagem
poética.
Como penetrar na esfera poética de nosso tempo? Uma era de imaginação livre
acaba de abrir-se. Em toda parte as imagens invadem os ares, vão de um mundo a
outro, chamam ouvidos e olhos para sonhos engrandecidos. Os poetas abundam, os
grandes e os pequenos, os célebres e os obscuros, os que amamos e os que fascinam.
Quem vive para a poesia deve ler tudo. Quantas vezes, de uma simples brochura,
jorrou para mim a luz de uma imagem nova! Quando aceitamos ser animados por
imagens novas, descobrimos irisações nas imagens dos velhos livros. As imagens
poéticas unem-se numa memória viva. A nova idade desperta a antiga. A antiga vem
reviver na nova. Nunca a poesia é tão una como quando se diversifica.
(BACHELARD, 2006, p. 25)
Essa “luz de imagem nova” corrobora bem a intenção temática da nossa pesquisa,
quando pretendemos “olhar” por diferentes ângulos a imaginação social que se constrói nos
discursos do padre Antônio Vieira. Percebe-se na produção do jesuíta uma grande capacidade
criativa de imagens, as quais devemos analisar sob as condições histórico-culturais em que
foram construídas, visto que essas imagens são criadas pelos diferentes discursos, ou seja, é
necessário atentar também para as condições de produção dos discursos em que estas se
inserem. Neste ínterim, contaremos com as contribuições de Mikhail Bakhthin (1997) sobre
as suas teorias de análise do discurso, principalmente, a noção de “sujeito”, elemento
histórico-social dinamizador dos enunciados em uma comunicação verbal, a partir de sua obra
A Estética da Criação Verbal.
Para Michel Maffesoli (2001): “o imaginário é determinado pela ideia de fazer
parte de algo”, assim, notamos que no trajeto entre as intimações objetivas do meio cósmicosocial e a subjetividade, “partilha-se uma filosofia de vida, uma linguagem, uma atmosfera,
uma ideia de mundo, uma visão das coisas” (MAFFESOLLI, 2001). Esta afirmação leva-nos
a pensar como o padre Antônio Vieira, porquanto missionário jesuíta, compartilhava de um
19
projeto ideológico: o projeto das missões. “Os jesuítas vieram conquistar não uma terra
sagrada; vieram construir a cidade de Deus num espaço que não O conhecia” (NEVES, 1978).
Com esta perspectiva, o trabalho se desenvolverá pelo seguinte percurso: no
primeiro capítulo, exploraremos o quanto a presença de Vieira no Maranhão contribuiu para a
constituição de um imaginário social jesuítico naquele contexto social. Consideramos a
biografia do missionário, a sua chegada ao Brasil e sua formação escolástica, na intenção de
demonstrar o estreitamento de laços entre o jesuíta e a colônia. Ainda neste capítulo,
discutiremos o caráter uno e múltiplo da obra do padre Antônio Vieira, o modelo de educação
jesuíta desenvolvido na colônia e a multiplicidade de papéis que ele desempenhou no
Maranhão do século XVII.
No segundo capítulo, faremos um estudo sobre o Sermão da Primeira Dominga da
Quaresma ou “sermão das tentações”, destacando a fértil imaginação social do padre Antônio
Vieira para acusar os fazendeiros do Maranhão de ambiciosos e pecadores, já que
escravizavam e maltratavam os índios e os exploravam para seus próprios interesses
mercantis como animais, como se não tivessem alma. Discutiremos ainda a relação entre
corpo e alma e seus valores como mercadoria para o colonizador europeu no novo continente.
Relação mediada por interesses e valores diferentes quando o ponto de vista é do jesuíta ou do
colonizador, uma vez que, para este, o corpo era mais interessante (o braço escravo para as
lavouras) e, para aquele, a alma era o seu fim, pois o projeto de catequese baseava-se na
conversão espiritual do selvagem em um ser civilizado. Em defesa das almas dos índios e dos
negros, o jesuíta argumenta sobre o valor das almas e como, no Maranhão, saem tão baratas
ao diabo. Neste capítulo, abordaremos também as considerações de Vieira em relação ao
negro escravo, trazido da África, e o aspecto jurista do missionário, que legisla sobre os
cativeiros injustos, criando os “cativeiros justos” e impondo as condições de execução deste
direito.
No terceiro capítulo, analisaremos o Sermão da Quinta Dominga da Quaresma,
conhecido como o “sermão das verdades”, observando as ações do jesuíta em relação aos
desmandos dos fazendeiros e colonos do Maranhão, como a metaforização do Apólogo do
Diabo e o enfoque nos vícios maranhenses, como a mentira e o ócio que eram os grandes
males dos homens que aqui viviam nestas terras. Neste sermão, o jesuíta soube utilizar,
inclusive, a situação climática do Maranhão para criar imagens correlativas ao
comportamento mentiroso dos colonos maranhenses, alegando que “No Maranhão até o sol e
os céus mentem” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 9). Percebemos, neste capítulo, a capacidade de
20
Vieira em dialogar com as mais variadas áreas do conhecimento, como, a Geografia, após
associar aspectos comportamentais dos colonos maranhenses às condições climáticas típicas
do Maranhão. Para o jesuíta, “a mentira é filha primogênita do ócio”, assim ele pretendia
encontrar causas naturais e verdadeiras para explicar como o clima e o céu do Maranhão
influenciavam em tanta mentira.
O Sermão de Santo Antônio aos Peixes será motivo de análise, no quarto capítulo,
um de seus mais férteis e conhecidos sermões, para destacar a sua capacidade lúdica de criar
imagens písceas com destreza, a partir de um repertório marinho consistente (rêmora, peixe
quatro-olhos, polvo, torpedo), vinculado ao litoral maranhense. Pressupomos, portanto, que o
jesuíta navegou bastante pelos mares maranhenses, pois demonstra um profundo
conhecimento das águas, como, a cor, a turvez, os peixes e os riscos que apresentavam. É
após este sermão (para ser exato, dois dias depois) que o missionário parte para a Corte na
intenção de convencer El-Rei a estabelecer uma legislação mais ofensiva contra os colonos
maranhenses que continuavam a escravizar e maltratar os índios. Vieira destaca os vícios e as
virtudes dos seres humanos metaforizados nas imagens dos peixes, comparando a sua situação
no Maranhão com a passagem bíblica de Jonas.
No quinto capítulo, tentaremos encontrar uma ponta do “fio de Ariadne” na teia
da imaginação do padre Antonio Vieira, apontando suas imagens mais recorrentes, presentes,
no intuito de apontar uma possível estruturação de sua imaginação social, bem como, buscar
descobrir de que maneira o cenário e o contexto maranhense (da época) favoreceram-lhe
estímulos para criação de um imaginário social único, em se tratando da excentricidade do
imaginário de Vieira e, ao mesmo tempo, múltiplo, quando essa excentricidade não nos
permite engessá-lo em uma única face, forma, interpretação, um único Vieira.
No sexto capítulo, aproveitaremos as estruturas imaginárias que encontramos a
partir das imagens provenientes dos sermões do jesuíta e apontaremos seus efeitos, positivos
ou negativos, em relação às práticas sociais dos colonos maranhenses, bem como dos outros
atores sociais que, direta ou indiretamente, sofreram (ou não) os impactos dos discursos do
padre Antônio Vieira. Por fim, apresentaremos as conclusões em torno desta pesquisa.
21
Capítulo 1
Figura 02: Vieira pregando os seus sermões.
Senhor, esta escrevo a V. A. no cabo verde, aonde
arribamos depois de trinta dias de viagem, obrigados de
tempestades, corsários e outros trabalhos e infortúnios que
nela se padeceram. Eu, Senhor, não sei se os padeci;
porque desde a hora em que o navio desamarrou desse rio,
não estive mais em mim, nem o estou ainda, atônito do
caso e da fatalidade da minha partida, e de não saber como
S. M. e V. A. a receberiam, pois não é possível serem-lhes
presentes todas as circunstâncias dela: tais que não fui eu o
que me embarquei, senão elas as que me levaram.
(VIEIRA, Carta ao Príncipe Teodósio, 1652. Dezembro
25. In: NEVES, 2004, p. 176)
22
1 IMAGINAÇÃO SOCIAL JESUÍTICA: CONTEXTUALIZANDO A
PRESENÇA DE VIEIRA NO MARANHÃO
1.1 Padre Antônio Vieira: uma breve biografia
Embora meticulosamente documentada e tratada por admiráveis historiadores,
ainda assim, entendemos ser necessário destacar alguns pontos da vida e obra do padre
Antônio Vieira, que podem nos ajudar na análise e compreensão dos seus sermões escolhidos.
Vieira nasceu em 1608, em Lisboa, e faleceu na Bahia em 1697. Aos seis anos
veio para o Brasil com os pais, Cristovão Vieira Ravasco e D. Maria de Azevedo e fixou-se na
Bahia, onde seu pai obtivera um emprego de escrivão junto ao Tribunal da Bahia. Em 1623
inicia, contra a vontade do pai, o noviciado na Companhia de Jesus. Ordena-se sacerdote em
1634, exerce as funções de pregador nas aldeias baianas e começa a granjear notoriedade
como pregador. Os primeiros sermões já refletem as preocupações sociopolíticas de Vieira
porquanto a colônia da Bahia lutava contra as invasões dos holandeses. Em 1637, completa os
estudos, obtendo o título de Mestre em Artes.
Em 1641, restaurada a independência, regressa a Portugal e torna-se amigo e
confidente de D. João IV (é nomeado o seu conselheiro)4. Em 1644 não só adquiriu a patente
de pregador do Reino, o que era distinção pouco ordinária, como também, era o conselheiro
mais fidedigno do Rei, que “o ouvia em todas as coisas de seu governo, preferindo muitas
vezes os seus planos e alvitres aos dos ministros de Estado, e submetendo à sua censura até as
ideias e atos destes” (LISBOA, 1991, p. 194-195).
Inicia missões diplomáticas na Europa, em 1641 e volta ao Brasil em 1653, para o
estado do Maranhão, depois de se envolver em questões relacionadas com a Companhia de
Jesus, não por sua livre vontade de converter os bárbaros, como confessa em carta ao
Príncipe D. Teodósio: “e eu dentro dela (caravela), e fora de mim, pois não sei, Senhor, o que
diga neste caso, senão ou que Deus não quis que eu tivesse merecimento nesta missão, ou que
se conheça que toda ela é obra sua”, continua, “porque a primeira vez tinha eu contra vontade
4
Como se vê, o padre Antônio Vieira, apesar de nascido em Portugal, passou todo o seu processo de
socialização primária e secundária (Berger e Luckman) no Brasil, o que lhe conferiu novos laços telúricos em
sua formação pessoal.
23
de S.M., mas vinha por minha vontade; e agora parti contra a de S. M., e contra a minha, por
mero caso, ou violência” (VIEIRA, Carta ao Príncipe Teodósio, 1652, Dezembro 25. In:
NEVES, 2004, p. 176)
No Maranhão, desempenha um papel muito ativo nos conflitos entre jesuítas e
colonos, como paladino dos direitos humanos, a propósito da exploração dos indígenas. No
ano seguinte prega o Sermão de Santo Antônio aos Peixes (1654).
É expulso do Maranhão pelos colonos, em 1661, e regressa a Lisboa. Em 1663,
em Coimbra, depõe no Santo Ofício sobre a sua obra Esperanças de Portugal. No ano
seguinte, escreve a História do Futuro, depois, adoece gravemente. Em 1665 é preso em
Coimbra pelo Tribunal do Santo Ofício sob a acusação de acreditar nas profecias do poeta
Bandarra. No ano seguinte, entrega a sua defesa ao Tribunal pelo qual é interrogado inúmeras
vezes, porém três anos depois é anistiado e retoma as pregações em Lisboa.
Em 1669, parte para Roma e obtém grande sucesso como pregador, combatendo o
Tribunal do Santo Ofício. Regressa a Portugal em 1675; mas, agora sem apoios políticos e
desiludido pela perseguição aos cristãos-novos (que tanto defendera), retira-se de vez para a
Bahia em 1681 onde se entrega ao trabalho de compor e editar os seus Sermões. Morre na
Bahia, a 18 de Julho de 1697, com 89 anos.
É evidente que há várias versões biográficas sobre o padre Antônio Vieira,
algumas bem mais complexas e até polêmicas, no entanto, esta sinopse, pautada na obra de
Silvano Peloso (2007), serve apenas para destacarmos alguns aspectos que marcaram a sua
vida e chamaram a atenção para a nossa pesquisa devido a sua contribuição histórica quando
da sua existência. Desse modo, a relíquia de sua obra, mesmo sendo sob diferentes prismas,
continua a despertar curiosidade crítica, tanto pelo que foi dito ou pelo que lhe foi negado.
1.2 O uno e o múltiplo: as faces de Vieira
Ainda que relatássemos em poucas ou muitas linhas a história de vida do padre
Antônio Vieira, mesmo assim, não chegar a ser um pré-requisito suficiente para nos dizer
quem foi (ou quem foram) esse(s) Vieira(s). As possíveis leituras e interpretações de seus
sermões geralmente convergem para a construção da identidade de um só homem, por outro
24
lado, as práticas sociais do jesuíta, no exercício do seu sacerdócio, apresentam-nos um
homem de múltiplas atividades profissionais.
Talvez, pela coexistência de aspectos uno e múltiplo na essência deste sujeito –
padre Antônio Vieira – que transcendem à sua própria existência no tempo e no espaço, aqui
costuma ocorrer um perigo teórico, como diz Neves (2003):
O perigo teórico mais relevante que se corre ao tratar de Vieira é, precisamente, o de
se deixar tomar por esta permanência histórica rara e pela multiplicidade de formas
de ação do jesuíta. O perigo está em se imaginar uma figura única, de se pensar em
uma essência que atravessasse sua vida e obra fundido-as em uma unidade que tudo
explicaria ou justificaria (NEVES, 2003, p. 44).
O crítico literário Alfredo Bosi afirma que “existe um Vieira brasileiro, um Vieira
português e um Vieira europeu [...]” (BOSI, 2001). Outros pesquisadores, como Brandão
(1979), acreditam que haja um Vieira maranhense. Pregou nas províncias de Pernambuco e da
Bahia. Todavia, em nenhuma delas, encontraríamos um Vieira mais brasileiro do que no
Maranhão, “[...] o Maranhão foi fonte de inspiração e mais ainda, de vida na obra de Vieira.
Um Vieira muito mais atuante e vivo que aquele dos volteios barrocos, dos cultismos e
conceptismos” (BRANDÃO, 1979). Assim sendo, até que ponto podemos afirmar que essa
construção ideológica é mais um mito5?
Acreditamos que o diálogo sobre esta questão é um “fio condutor” na percepção
do imaginário social em Vieira e fica ainda mais interessante se colocarmos alguns
contrapontos: será que esta denominação de “Vieira brasileiro, Vieira português, Vieira
europeu”, cunhada por Bosi (2001), aponta apenas para posições espaciais (geográficas) que o
jesuíta ocupara durante as suas produções, já que esteve no Brasil, em Portugal, em Roma, na
Holanda, na França (PELOSO, 2007) ou há muito mais implicações (sócio-culturais,
ideológicas, temporais, até mesmo, religiosas) nestas nomenclaturas? Pensar um “Vieira
maranhense”, como afirmou Brandão (1979), não seria fragmentá-lo mais ainda dentro destas
posições que mencionamos na questão anterior?
Como percebemos, há entraves teóricos que exigem cuidado do pesquisador ao
“olhar” o objeto de estudo, mas por se tratar de uma pesquisa cujo tema se erige a partir dos
discursos do padre Antônio Vieira, buscamos vincular o nosso “olhar” a um objeto de estudo
bastante explorado na Análise do Discurso e muito recorrente nos estudos em Psicologia
5
Cf. Ernest Cassirer, Mito e Linguagem. Discutiremos mais sobre a maneira como estamos abordando o mito
nesta pesquisa, no item 1.4 Vieira no Maranhão: a espada e o escudo em ação.
25
Social: a noção de “sujeito”, na tentativa de nos aproximarmos de um Vieira que represente a
ideologia (visão de mundo) que ele próprio sustenta, cujas imagens e símbolos estão
condicionados à sua própria condição histórica.
O caráter uno e múltiplo de Vieira se redobra em seu pensamento simbólico, sua
consciência indireta6 apresenta à consciência o objeto ausente em forma de imagem. São
estas imagens que buscamos analisar em seus sermões. No dizer de Eliade (2002):
O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do
desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a linguagem e a razão
discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que
desfiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos
não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e
preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, seu
estudo nos permite melhor conhecer o homem, “o homem simplesmente”, aquele
que ainda não se compôs com as condições da história. Cada ser histórico traz em si
uma grande parte da humanidade anterior à História (ELIADE, 2002, p. 9).
Mircea Eliade (2002) enfatiza que as imagens, os símbolos e os mitos revelam as
mais secretas modalidades do ser, justamente o que nos interessa nesta pesquisa, em relação
ao “ser” padre Antônio Vieira. O uso do termo “ser” que se refere ao humano é muito comum
nas pesquisas em ciências humanas e sociais, todavia, utilizaremos com maior frequência o
termo “sujeito” a fim de nos aproximarmos do “ser” histórico, ou seja, “sujeito” histórico que
reflete, consciente ou inconscientemente, as circunstâncias de seu tempo.
Na tentativa de compreender melhor este “sujeito”, buscaremos, também, como
referencial teórico os escritos de Mikhail Bakhthin reunidos na Estética da Criação Verbal,
em cuja produção encontra-se uma concepção dialógica de língua e, consequentemente, de
sujeito: “Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos
de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela
assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e
decalcado.” (BAKHTHIN, 1997, p. 315).
6
Para Durand (1988), em “A Imaginação Simbólica”, a consciência dispõe de duas maneiras de representar o
mundo: a primeira, representação direta, dá-se através da percepção na presença do objeto; a
segunda, representação indireta, ocorre na ausência do objeto e por meio de uma imagem. Tem-se, assim, um
contínuo, onde a consciência dispõe de diferentes graus da imagem, cujos dois extremos seriam constituídos
"pela adequação total, a presença perceptiva ou a inadequação mais acentuada, ou seja, um signo eternamente
privado do significado, e veremos que esse signo longínqüo nada mais é do que o símbolo" (DURAND, 1988, p.
11).
26
1.3 O “sujeito” Padre Antônio Vieira na concepção dialógica de Mikhail Bakhthin
Mikhail Bakhthin (1997) traz em seu pensamento a ideia de língua como algo
heterogêneo, suscetível a mudanças históricas, sociais e culturais. É justamente este ponto de
observação da linguagem que nos interessa para tentar compreender a construção dos
discursos do padre Antônio Vieira no Maranhão do século XVII.
Para Ribeiro (2011), “Bakhtin trabalha com um mundo em movimento e em
perene transformação, seu objeto está sempre em processo, não se submete a uma forma fixa e
imutável” (RIBEIRO, 2011, p. 05), ou seja, a linguagem em constante movimento deve ser
observada em sua relação dialógica:
Para ele (Bakhthin) o único objeto real e material de que dispomos para entender o
fenômeno da linguagem humana é o exercício da fala em sociedade. A língua falada,
nas casas e nas feiras, na rua e na igreja, no quartel e na repartição, no baile e no
bordel, é sempre o que existe de materialmente palpável para o estudo. Para ele, a
língua — que Saussure considera o objeto da linguística — não passa de um modelo
abstrato, construído pelo teórico a partir da linguagem viva a real. Coerentemente
Saussure afirmava que “não é o objeto que precede o ponto de vista, mas é o ponto
de vista que cria o objeto”. No caso da linguística é exatamente o que ocorre: o seu
objeto é criado a partir do ponto de vista de que a linguagem humana não pode ser
objeto de conhecimento científico, assim como o exercício da fala (RIBEIRO, 2011,
p. 4).
Para compreender melhor a relação dialógica, Ribeiro (2011) aponta em sua
análise sobre a linguagem na concepção bakhthiniana que “já que se trata de linguagem e não
de língua, a unidade básica não pode ser o signo, mas o enunciado” (RIBEIRO, 2011, p. 5).
Um enunciado não é um signo pela simples razão de que para existir ele exige a
presença de um enunciador (quem fala, quem escreve) e de um receptor (quem ouve,
quem lê). O signo faz parte de uma construção teórica que dispensa os sujeitos reais
do discurso. Um signo, num dicionário, não é e não pode ser um enunciado. Este
exige uma realização histórica. Um enunciado acontece em um determinado local e
em um tempo determinado, é produzido por um sujeito histórico e recebido por
outro. Cada enunciado é único e irrepetível. A mesma frase, exatamente a mesma,
pronunciada em situações sociais diferentes, ainda que pelo mesmo enunciador, não
constitui um mesmo enunciado e não pode constituir. Imaginem que, daqui a
algumas horas, eu leia este mesmo texto, palavra a palavra, na Estação Rodoviária
de Campos, para um público que não esperava ouvir-me. Será o mesmo texto, mas
seguramente não o mesmo enunciado. Aqui, leio uma palestra para um público que,
presumivelmente (eu espero!), deseja ouvir-me dissertar sobre as questões da
linguagem num teórico de nome estrangeiro e complicado. Lá, as pessoas estarão
possivelmente esperando as chamadas para as suas viagens e sem nenhum interesse
pelas coisas que eu venha a dizer. Tudo o que conseguirei é uma fama de maluco,
maior do que a já carrego, por ser professor universitário nesse nosso triste país.
(RIBEIRO, 2011, p. 6).
27
Para Bakhthin (1997), “língua” e “sujeito” são permeados de discursos alheios e
de relações dialógicas (de confronto, acusação, negação, recusa...); daí, pode-se depreender
que o sujeito se constitui na sua relação com os outros, “as palavras dos outros introduzem
sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos,
modificamos” (BAKHTHIN, 1997, p. 315). O Maranhão que aparece nos discursos de Vieira
é uma província da Colônia que, antes de sua presença física na terra dos maranaguaras7,
chegou à consciência do jesuíta por diferentes fontes discursivas, como os discursos de seus
superiores que o enviaram àquela missão e os demais interlocutores com os quais dialogara
até a sua chegada.
Para Ribeiro (2011), “o enunciado não é um conceito meramente formal; um
enunciado é sempre um acontecimento. Ele demanda uma situação histórica definida, atores
sociais plenamente identificados, o compartilhamento de uma mesma cultura e o
estabelecimento necessário de um diálogo” (RIBEIRO, 2011, p. 6). Por esta razão, todo
enunciado demanda outro a que responde ou outro que o responderá. Essa é a relação
dialógica na qual ninguém cria um enunciado sem que seja para ser respondido. “Mesmo isto
que eu agora leio, ainda que não venha a receber respostas exteriorizadas, por certo as
provocará interiormente e, desde já, esboço as minhas réplicas neste diálogo sem fim”
(RIBEIRO, 2011, p. 6).
A relação dialógica não acontece somente entre discursos interpessoais (seja
escrito ou verbal), embora tenha se originado dentro dessa concepção; ela engloba a
diversidade das práticas discursivas de maneira mais ampla e aberta. Assim, todo discurso não
é uma obra fechada e acabada de apenas um indivíduo, mas é um processo heterogêneo,
conjunção de discursos entre eu e o outro. O dialogismo pode ser aplicado à relação entre as
línguas, as literaturas, os gêneros, os estilos e até mesmo entre as culturas, pois todos esses
itens trazem em comum a linguagem, corroborando a busca da totalidade que norteia o
pensamento bakhthiniano.
Esta concepção bakhthiniana de “sujeito” pode nos ajudar a visualizar com outros
“olhos” o(s) sujeito(s) “Antônio Vieira” em suas diferentes relações com outros de sua época,
analisando os enunciados construídos em suas cartas e, principalmente, em seus sermões,
pois, como afirma Bakhthin (1997),
7
Termo utilizado por Eloy Coelho Netto (1985) para denominar os índios que habitavam o Maranhão à época da
colonização: “Estes índios tupinambás na ilha de Upaon-Açu tomam o nome de maranaguaras – Maranã –
semelhante ao mar, e guará – habitante, o que César Marques – Dicionário Histórico e Geográfico do Maranhão,
conclui nesta Província haviam nações Tupinambás, Tapuias, Tamarambeses, sempre em desabrida e cruel luta
entre si, sem trégua e descanso, sem piedade e remorsos” (COELHO NETTO, 1985, p. 32).
28
O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está
vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado
deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores
dentro de uma dada esfera (a palavra “resposta” é empregada aqui no sentido lato):
refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um
modo ou de outro, conta com eles. Não se pode esquecer que o enunciado ocupa
uma posição definida numa dada esfera da comunicação verbal relativa a um dado
problema, a uma dada questão, etc. Não podemos determinar nossa posição sem
correlacioná-la com outras posições. É por esta razão que o enunciado é repleto
de reações-respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicação
verbal (grifo nosso) (BAKHTHIN, 1997, p. 317)
Destacamos a última oração porque focaliza bem um dos procedimentos
metodológicos com o qual nos preocupamos nesta pesquisa: o enunciado como reaçãoresposta a outros enunciados numa dada esfera da comunicação. Este é sem dúvida um dos
exercícios que melhor desenvolveu em seu sermonário, o padre Antônio Vieira. Pretendemos
analisar estes enunciados (contidos nos sermões e cartas) a partir de suas continuidades,
ratificações, confirmações e, por outro lado, a partir de suas rupturas, contradições, negações,
objetivando diminuir o quanto possível os riscos de reducionismos dos ecos e lembranças que
possam expressar os enunciados do missionário. Como lembra Bakhthin (1997), “a
expressividade da palavra isolada não é, pois, propriedade da própria palavra, enquanto
unidade da língua, e não decorre diretamente de sua significação. Ela se prende quer à
expressividade padrão de um gênero,” continua, “quer à expressividade individual do outro
que converte a palavra numa espécie de representante do enunciado em seu todo – um todo
por ser instância determinada de um juízo de valor” (BAKHTHIN, 1997, p. 315).
Os enunciados (discursos retóricos) de Vieira, o uso da linguagem barroca, a sua
oratória, ora sarcástica/lúdica, ora explosiva, conferem-lhe uma dimensão complexa, mais do
que isso, demonstram a própria complexidade do “sujeito” que os constrói e refletem práticas
sociais de um contexto deveras conturbado.
Seja como for, o certo é que o século XVII tanto para Portugal quanto para o
Brasil foi sombrio, marcado por grande turbulência. Lá, além dos impactos causados pela
União Ibérica8, ainda tiveram que lidar com crises político-econômicas que duraram décadas;
8
Em 1578, D. Sebastião, Rei de Portugal, procurava restaurar o espírito das cruzadas. Ao tentar conquistar o
norte da África, foi derrotado na batalha de Alcácer Quibir e desapareceu. Portugal viu-se mergulhado numa
profunda crise político-sucessória, pois o jovem rei desaparecido não deixou herdeiros. Felipe II, Rei da
Espanha, era neto do rei português da época da descoberta do Brasil, D. Manuel, e se considerava o legítimo
herdeiro do trono português. Parte da nobreza de Portugal resistia à pretensão do monarca espanhol. O impasse
político foi resolvido com o uso da força: Filipe II invadiu Portugal, em agosto de 1580, e derrotou os exércitos
lusitanos na batalha de Alcântara. Iniciava-se nesta data o período denominado União das Coroas Ibéricas (ou
29
aqui, as disputas entre jesuítas e colonos mediante a escravização dos índios, requeriam
medidas diplomáticas estratégicas da Companhia de Jesus sem atingir diretamente os
interesses econômicos da Coroa, visto que ambas partilhavam fins em comum.
O “sujeito” padre Antônio Vieira se apresenta no século XVII de maneira
excepcional, “com uma inteligência inquieta, sensibilidade aguçada, capaz de revelar traços
da arte do seu tempo, ao lado de uma atitude crítica com relação a esta mesma arte”
(CARVALHO, 2005).
Quanto aos textos do padre Antônio Vieira talvez valha arriscar-me a dizer que
formam uma produção laboriosa, empenhada em um forte exercício retórico e oratório
tamanho, que lhe conferiram, entre os críticos literários, o lugar de expoente no uso do
Conceptismo, em textos de língua portuguesa.
O conceptismo, mais do que um recurso literário, representa nos textos do jesuíta,
uma ação desse sujeito (Vieira) sobre o mundo à sua volta. A força do seu discurso reflete
uma série de contradições e divergências que apresentam elementos e objetos discursivos
paradoxais, marcantes nos textos produzidos – eis porque sublinhamos este momento
histórico-literário de Barroco.
Os argumentos discursivos do jesuíta são estruturados em ensinamentos que
sublinhamos da Escolástica Medieval; dessa maneira, é comum que ele sempre busque um
argumento lógico para fundamentar sua fé católica. Por isso, o uso da retórica como disciplina
é um recurso indispensável na prática missionária do padre para fins de persuasão do público.
Por conseguinte, estes recursos discursivos refletem a composição de um imaginário social
fundamentado no “poder” da palavra, no labor de usá-la. Daí a freqüência dos silogismos e
sofismas, os que buscam resultados no presente (e no futuro). Sobre este argumento reforça
Neves:
É preciso, na análise da retórica vieiriana, tomar em consideração que ela parece
muito mais voltada para temas e formas tradicionais. Tem elementos claramente
advindos da escolástica, da oratória medieval e da herança patrística do comentário
interpretativo da Bíblia. Estas fontes, que Vieira elabora a seu modo
particularíssimo, não estão, contudo a serviço do passado, apenas marcado por ele.
O que soa, para este seu leitor, como estimulante paradoxal, é que o peso desse
passado é voltado para a intervenção no presente e para a construção do futuro, de
que falam especialmente seus livros proféticos, como a História do Futuro.
(NEVES, 2003, p. 23)
União Ibérica), no qual Portugal ficou sob o domínio da Espanha que se estendeu até 1640. Cf. Vamireh Chacon,
A Grande Ibéria, 2005.
30
Era próprio de Vieira o manejo especial em associar textos bíblicos – nem que
para isso modificasse o enredo, ou qualquer outro elemento da narrativa – aos fatos sociais
polêmicos no seu dia-a-dia. Todo o esforço dialético do padre orienta-se em construir uma
argumentação que defenda os seus posicionamentos ideológicos, políticos, religiosos; cabenos, então, perceber esses discursos, suas contradições, rupturas, aproximações e
continuidades com um projeto de estabelecimento da fé católica pelos soldados de Cristo, na
terra dos papagaios.
Bakhthin (1997) propõe que o indivíduo se afaste o quanto possível dos objetos
com os quais se relaciona a fim de que lhes perceba a real forma – a ordem do aleatório:
O que na vida, na cognição e no ato, designamos como objeto determinado, não
recebe sua designação, seu rosto, senão através da nossa relação com ele: é nossa
relação que determina o objeto e sua estrutura e não o contrário; é somente quando
nossa relação se torna aleatória, como que caprichosa, quando nos afastamos da
relação de princípio que estabelecemos com as coisas e com o mundo, que o objeto
se nos torna alheio e fica autônomo, começa a se desagregar, abandonando-nos ao
reino do aleatório no qual perdemos a nós mesmos e perdemos também a
determinação estável do mundo. (BAKHTHIN, 1997, p. 15)
Na perspectiva bakhtiniana, a busca de sentido do discurso se dá na constante
continuidade, na análise de elos múltiplos entre a atividade de linguagem, suas motivações, e
determinações, visto que há um processo histórico de constituição das significações e, neste
percurso, podemos buscar pontos (sinais) para a constituição do imaginário social de uma
determinada sociedade em uma certa época.
Quando trazemos esta discussão para análise dos sermões de Vieira, encontramos
um complexo de possibilidades que determinam o objeto de estudo deste trabalho, ao passo
que, quanto mais tentamos nos aproximar deste, mais nos sentimos distantes de sua
apreensão, visto que se torna essencial o distanciamento para olharmos, por diferentes
ângulos, a problemática em foco.
É justamente este posicionamento teórico, diante do discurso, que pretendemos
desenvolver na análise dos textos selecionados do padre Antônio Vieira, na intenção de
caminhar pelo “labirinto” de sua imaginação discursiva. Se na análise do discurso “o
enunciado é um fenômeno complexo, polimorfo, desde que o analisemos não mais
isoladamente, mas em sua relação com o autor (o locutor) e enquanto elo na cadeia da
comunicação verbal, em sua relação com os outros enunciados (uma relação que não se
costuma procurar no plano verbal, estilístico-composicional, mas no plano do objeto do
sentido)” (BAKHTHIN, 1997, p. 319), torna-se possível, através do discurso, tentar perceber
31
a constituição simbólica de um imaginário social do padre Antônio Vieira no Maranhão
seiscentista.
1.4 “Trilhando” as “teias da imaginação” do Padre Antônio Vieira: o poder da retórica,
da oratória e da educação jesuítica
O Padre Antônio Vieira apresenta um repertório de sermões bem elaborados e
construídos, seguindo a retórica clássica e o uso da oratória. Por isso, é comum que seus
sermões apresentem sempre uma estrutura, que pode se alterar apenas na quantidade de
capítulos, mas estabelece uma correspondência entre as quatro partes da retórica clássica:
exórdio
(introdução);
exposição
(desenvolvimento
de
argumentos);
confirmação
(comprovação dos argumentos) e peroração (conclusão). Para focalizar melhor esta questão,
vejamos um pouco da história da retórica, para a compreensão da importância do discurso
retórico jesuítico, no caso específico do padre Antônio Vieira.
A retórica clássica, cujo ápice encontrava-se em Aristóteles, também suscitou
grandes nomes como Demóstenes, Górgias e Quintiliano. Em sua obra “A Retórica”, Górgias
alude ao conceito desta matéria, quando se dirige a Sócrates, de tal maneira:
Górgias — O fato de por meio da palavra poderem convencer os juízes no tribunal,
os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer
reunião política. Com semelhante poder, farás do médico teu escravo, e do pedótriba
teu escravo, tornando-se manifesto que o tal economista não acumula riqueza para si
próprio, mas para ti, que sabes falar e convencer as multidões.
VIII — Sócrates — Quer parecer-me, Górgias, que explicaste suficientemente o em
que consiste para ti a arte da retórica. Se bem te compreendi, afirmaste ser a retórica
a mestra da persuasão, e que todo o seu esforço e exclusiva finalidade visa apenas a
esse objetivo. Ou tens mais alguma coisa a acrescentar sobre o poder da retórica,
além de levar a persuasão à alma dos ouvintes? (GÓRGIAS, 2010, p. 7)
Este diálogo entre Górgias e Sócrates demonstra o quanto a retórica era uma
disciplina fundamental na Era Helenística que, mais tarde, nas mãos de Aristóteles, tornar-seá um postulado que influenciará parte do pensamento ocidental depois de Cristo. Nesta
esteira, surgem as obras de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, na Idade Média, e em
seguida, o padre Antônio Vieira, no século XVII, no início da Era Moderna, PósRenascimento.
A retórica, convém relembrar, era disciplina obrigatória nos cursos de formação
eclesiástica e tal obrigação se estabelecia pelos motivos que definem a matéria, conforme
32
Górgias (2010): “o poder de persuasão que exerce a palavra”. Na verdade, durante séculos a
Igreja Católica se utilizou destes instrumentos como meio de persuasão de seus fiéis. Não foi
diferente com o trabalho realizado pelas missões jesuíticas:
O auditório predileto da Missão é o dos que ainda não tinham ouvido a Palavra
divina [...] Os missionários são pregadores. Restabelecem a oratória como estilo
preferido para a conversão, o que leva a um revigoramento de formas muito mais
inflamadas, eloqüentes e sentimentais do que as peculiares à escrita escolástica
(NEVES, 1978, p. 36);
No Maranhão, a primeira escola de ensino elementar foi aberta pelo Padre Luís
Figueira, conforme atesta João Felippe Betendorf, em sua Chronica da Missão dos padres da
Companhia de Jesus no Estado do Maranhão (1910),
Pouco depois começaram os religiosos a edificar seus conventos, tirados os
Reverendos Padres Mercenarios (sic)¸ que ainda não estavam no Estado, e o padre
Luiz Figueira também edificou então com ajuda dos vassalos do principal Gregório
Migtagoaya, o Collegio (sic) e ermida velha, que edificou a Nossa Senhora da Luz,
todo de pedra e sal [...] (BETENDORF, 1910, p. 47)
Imaginamos que não deve ter sido a contragosto que os jesuítas vieram para o
novo continente. Seria ingênuo supor que no projeto de colonização do qual eles faziam parte,
o projeto das missões visasse estabelecer tão-somente um espaço sagrado, em local onde
predominava o profano. Os missionários para consecução deste objetivo também dispunham
de várias estratégias, como: as missões, as aldeias, os sermões, as leis, as pregações, entre
outros, além das escolas, que exercem um papel primordial na execução do plano.
O padre José Coelho de Souza (1977) que se dedicou também aos estudos dos
jesuítas no século XVII afirma:
O papel dos jesuítas foi espiritualmente, antes de tudo, o de apóstolos junto aos
moradores, portugueses, mamelucos e mestiços, exercendo em benefício deles sua
ação pastoral com os vários ministérios sacerdotais, como a distribuição da palavra
divina, a administração dos sacramentos, a direção das almas, o ensino religioso e
literário, a formação da juventude, a pregação dos Exércitos Espirituais e as missões
populares (SOUZA, 1977, p. 6).
É notório que, no projeto das Missões jesuíticas, a educação era a arma mais
poderosa de que dispunham. A retórica e oratória eram instrumentos tão poderosos e
essenciais para os jesuítas que escolheram São Tomaz (sic) de Aquino para seu Doutor
próprio e introduziram definitivamente a Summa Theologica como livro texto (FRANCA,
1952). Além disso, pautaram a pedagogia do ensino jesuítico no Ratio Studiorum que conta
33
com a grande colaboração de grandes nomes como Nadal, Ledesma, Manuel Alvarez,
Cipriano Soares e recebe intensa influência da antiguidade clássica, Grécia e Roma, através
dos mais conhecidos pedagogos do Renascimento entre eles: Erasmo, Vives, Mureto,
Melanchton, Manucio e Murmelius que tinham uma formação haurida diretamente dos
mananciais antigos: da retórica de Aristóteles, da oratória de Cícero, Plutarco, Sêneca e
Quintiliano (FRANCA, 1952).
Além de São Tomaz de Aquino, não podemos deixar de citar a influência de
Santo Agostinho, que junto à grande maioria dos pensadores medievais, muito contribuíram
para a formação do pensamento jesuítico na Companhia de Jesus9. É com Santo Agostinho
que se propagam as ideias de Joaquim de Fiore, monge da região da Calábria considerado
santo e profeta, cujo pensamento constitui, na história do mundo ocidental, a fase primordial
do mito do progresso, cujas raízes históricas são mais bíblicas do que geralmente se pensa
(BESSELAAR, 2002, p. 438), como, o sentido que atribuem à palavra Encarnação:
[...] a Encarnação significa a plenitude dos tempos, a qual, sob o ponto de vista da
salvação, não admite qualquer aperfeiçoamento. O tempo que decorre entre ela e o
fim do mundo é, por assim dizer, um ínterim entre o primeiro e o segundo advento
de Cristo – um ínterim não destituído de importância, pois é nele que se situa a
decisão sobre a salvação dos homens individuais, só que essa decisão é o resultado
imprevisível da interação entre a graça divina e o livre-arbítrio humano. É o período
histórico que, na opinião do bispo de Hipona, corresponde ao sexto dia da Criação e
virá seguido do Eterno Sábado, no qual se dará a plena manifestação da glória de
Deus em todos quantos, no mundo histórico, aderirem livremente à Cidade de Deus.
O que se realiza na história é, no fundo, comparável à função de andaimes utilizados
para a construção de um edifício; uma vez erguido e concluído o prédio, os
andaimes são demolidos e afastados (BESSELAAR, 2002, p. 439).
Essa visão do mito progressista no pensamento de Santo Agostinho, influenciado
por Joaquim de Fiore, também influencia, na época dos grandes descobrimentos, muitos
exegetas espanhóis e portugueses que viam profetizadas na Bíblia a conquista e conversão de
novos contentes, além de tangenciar também o pensamento dos jesuítas, como o padre
Antônio Vieira: “Isaías [...] se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas
vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas genes e nações que por seus pregadores
se converterão à Fé” (BESSELAAR, 2002, p. 440).
O poder da persuasão através da palavra foi a maior arma utilizada pelos jesuítas
para a tentativa de desenvolvimento de uma “terrena cidade celeste” (NEVES, 2003) ou da
9
A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola (1491-1556) em 1534. Foi a mais poderosa
organização da Igreja católica durante muitos séculos e ainda na atualidade ocupa posição de destaque no
Vaticano.
34
“Cidade de Deus” (BESSELAAR, 2002, p. 439) no novo mundo. “A história da Companhia
de Jesus no Brasil é a história de uma missão” (NEVES, 1978), assim, “a ideia de ‘missão’ é a
que reúne todos os sonhos de estabelecimento da união de todos sob a égide de Deus”
(NEVES, 2003).
Resta saber o seguinte: como levar para um espaço profano a palavra de Deus? No
caso de Vieira, a missão não possui limites geográficos, deve ser exercida em toda parte de
maneira universal e contínua. “Não há ‘mundos fechados’ e a infinitude do mundo deve ser
perseguida e palmilhada para que a palavra Divina possa reinar, absoluta, por todos os
lugares, próximos ou distantes dos centros católicos” (NEVES, 2003, p. 45). Esta visão está
impregnada de “um imaginário social vincado pelas ideias de expansão e ocupação
espirituais, ideias que deveriam presidir os eventuais empecilhos terrenos (políticos,
econômicos, geográficos e, mesmo, os relativos à própria subsistência física dos
missionários)” (Ibidem).
Neste ínterim, o trabalho dos jesuítas, como um todo, exercia um papel
fundamental, não só na prática pedagógica exercida nos colégios, mas também nas pregações
dos sermões, nas procissões, nas festas, nas devoções, entre outras práticas públicas. A tarefa
de educar exigia dos missionários um esforço de diversidade e criatividade de ações que
pudessem atingir a um público variado, desde os filhos dos colonos aos índios catequizados.
Antecipamos salientando que o padre Antônio Vieira defendia as ideias de uma
instituição – a Companhia de Jesus – que representava apenas uma parte do poder políticoideológico da Igreja católica naquele contexto. Além do mais, percebe-se que a Companhia de
Jesus substituiu a ação de outras instituições católicas que entraram em decadência por conta
da Reforma Protestante, a exemplo das escolas monásticas e catedralícias (GILES, 1987. p.
135).
E o que mais precisamente a escola jesuítica enfatizava era a memorização, pois
dava especial importância à retórica e à redação, assim como à leitura dos clássicos e às artes
cênicas. A ação pedagógico-institucional jesuítica teve seu ponto mais alto nos colégios da
Companhia (NEVES, 1978, p. 142), que depois do ensino elementar: ler, escrever e contar,
tinham o curso chamado de Letras Humanas que compreendia Gramática, Retórica, Poesia e
História (Ibidem).
Entre os alunos, a emulação e os castigos físicos eram constantes, castigava-se ou
premiava-se de acordo com a disciplina e o rendimento escolar; o professor era considerado o
detentor de todo o saber e o transmissor absoluto dos conteúdos, cabendo aos alunos obedecê-
35
lo em todas as circunstâncias. Segundo Neves (1978), “A disciplina nos colégios era rigorosa.
Os jesuítas empregaram: repreensões, reclusão ou privação de recreios e castigos corporais”
(NEVES, 1978, p. 150).
O âmbito das penas disciplinares era grande: castigava-se moralmente (pelas
repreensões), pelo impedimento do lazer/descanso (reclusão ou privação de
recreios), pela dor corporal (castigos corporais, inclusive ... o “tronco”). Quanto ao
castigo corporal, ele é coerente com a ideologia do corpo jesuítica. Já o
impedimento do lazer/descanso parece demonstrar que, no início do que atualmente
se conhece por “escola” – em pleno século XVI colonial – já se percebe a
necessidade da coerção; e o estudo, o aprendizado na escola, é visto como algo
“sério” em oposição a algo jocoso. E a pena assume pois um caráter moral: reitera-se
a importância do foco no sério, impõe-se uma não muito grave penalidade física ( a
pessoa não pode sair para se encontrar com outros colegas no recreio por tempo
determinado) para reiterar uma importância ética da seriedade da aprendizagem do
saber. O que é peculiar à pedagogia jesuítica é que insere – ad infinitum – a
importância da repreensão, ou seja, da crítica ética a um comportamento ético,
stricto senso, ou a um comportamento escolar. Ética e Perfomance são sinônimos,
agora, tantas vezes. (NEVES, 1978, p. 150)
Apesar de reconhecerem a necessidade do castigo corporal, os jesuítas não
executavam esta tarefa: “nossos padres parecem antes políticos do que pedagogos; relações
corpo-a-corpo não são sua área – não a negam, mas não a executam. Nos colégios, havia a
figura do Corretor, encarregado da execução das penas, e a do Reitor, que as determinava”
(NEVES, 1978, p. 151). É interessante observar esta contradição no plano de ações dos
jesuítas, uma vez que os castigos corporais eram importantes, contudo, eles não queriam sujar
suas mãos de sangue alheio, por isso, delegavam esta tarefa a outrem, quando, era comum que
castigassem a si mesmos em regime de autoflagelação.
Para os jesuítas, os castigos corporais faziam sentido, pois o corpo do índio era
tido como um espaço profano, um organismo rude, grosseiro, animalesco, selvagem,
deformado em relação aos paradigmas europeus, além disso, “[...] a violência física nos
Colégios é generalizada (já o veremos) e se liga a uma ideologia eticamente louvada de
mortificação do corpo (já o vimos) e isto em muitas culturas e religiões”. (NEVES, 1978, p.
149).
A maneira como os “índios” se relacionam com a natureza e exibem o corpo
orgulhosamente contraria fortemente a relação corpo-cultura da ideologia cristã conforme os
moldes europeus. Para os jesuítas, era necessário vestir o corpo – ou pelo menos algumas
partes dele – imputando ao aborígene valores que até então desconhecia (como a proibição da
nudez, por exemplo). “Especialmente para a ideologia dos religiosos, o corpo deveria ser um
36
lugar de repúdio – o melhor que se deveria com ele fazer era mortificá-lo, mutilá-lo segundo
razões da Ética, não da estética” (NEVES, 1978, p. 134).
A intenção dos jesuítas objetivava atacar violentamente os hábitos e costumes do
aborígene, pois, para a catequese, era essencial fazer com que esta terra brasileira, amorfa
como seus habitantes, tivesse um corpo e um espírito que fossem os mais próximos possíveis
daqueles que são mais próximos de Deus: os cristãos europeus. (NEVES, 2003, p. 67).
O método de estudos da Companhia de Jesus, Ratio Studiorum, aprovado em
1599, ainda hoje é ministrado nos colégios jesuítas. Essa pedagogia vai reinar no Brasil
Colônia por mais de 300 anos e consistia no seguimento de alguns passos: a) preleção; b)
explicação; c) repetição; d) composição.
A pedagogia da Ratio Studiorum baseava-se na unidade de professor, na unidade
de método e na unidade da matéria.
O princípio da unidade de professor determinava que um mesmo mestre
acompanhasse um grupo de alunos no estudo de cada matéria, do início ao fim.
Todos os professores deveriam seguir o mesmo método de ensino, completando-se
esse princípio com o da organização das matérias de modo a explorar, ao máximo, o
pensamento de poucos autores (principalmente Aristóteles e Tomás de Aquino)
preferencialmente ao de muitos. O cultivo da disciplina, a atenção e da perseverança
nos estudos era uma das principais preocupações dos professores no sentido de
facilitar o próprio ensino e, também, de desenvolver um traço de caráter considerado
essencial tanto ao possível sacerdote quanto ao cristão leigo (CUNHA, 1986, p. 26).
A preleção era usada para o ensino de todas as matérias humanistas: a Gramática,
a Literatura, a Poesia, a História, e sob forma modificada, para a Matemática, a Retórica, a
Filosofia e a Teologia. Paralela à preleção, vem uma segunda técnica, a saber, o conserto
(consertatio), com base na etimologia ciceroniana, que estende o sentido de luta física para a
luta verbal ou debate. Este método é utilizado para o ensino de todas as disciplinas, com a
finalidade de corrigir os erros. Trata-se de incentivar a rivalidade honrosa, visando à melhoria
intelectual (GILES, 1987. p. 135). Neves (1978), sobre isto, afirma: “As formas pedagógicas
eram rigorosamente determinadas e previstas as durações. Todos os sábados havia disputas
entre estudantes, cada qual buscando mostrar maior conhecimento no tema indicado”
(NEVES, 1978, p. 142).
Manifesta-se, desse modo, a importância da oratória para a pedagogia jesuítica
que muitas vezes em uma disputa cujo vencedor era aquele que melhor se houve verbalmente,
o que teve respostas mais prontas e mais brilhantes. “Oratória tão importante na didática
inaciana que vê na leitura por parte do professor – na audição, portanto – e na repetição
37
metódica e adequada as formas ideais de se acumular conhecimentos” (NEVES, 1978, p.
143).
Cunha (1986) reforça que no ensino secundário, principalmente, as classes eram
estruturadas a partir da competição entre os estudantes pelo melhor desempenho, quando não
eram organizadas pela transferência, a alguns estudantes, de parte do poder da instituição
escolar (CUNHA, 1986, p. 26).
Nas “regras do prefeito de estudos inferiores”, a Ratio studiiorum determinanava:
“segundo o costume de diferentes regiões, nomeie em cada classe um censor
público, ou, se não soar bem o nome de censor, um decurião-chefe ou pretor, e para
que seja mais respeitado pelos condiscípulos deverá ser distinguido com algum
privilégio e terá o direito de impor, com a aprovação do mestre, algumas penas
menores aos companheiros. Será ainda seu ofício observar se algum discípulo
passeia pelo pátio antes do sinal, se entra em outra sala, ou deixa a própria aula ou
lugar. Leve também ao conhecimento do prefeito (diretor de estudos – LAC) os que
faltem a cada dia; se alguém, que não é estudante, entrou na aula; enfim qualquer
falta cometida em aula, na ausência ou presença do professor” (CUNHA, 1986, p.
26-27)
A Ratio Studiorum elabora, portanto, uma hierarquização de poderes e uma
dinâmica de competição em sua grade curricular. Nos desafios, antiga prática oriunda da
Idade média, os estudantes se hierarquizavam: os melhores eram oficiais, ou outros,
particulares. Os oficiais, em grupo ou individualmente, podiam desafiar outros oficiais; o
mesmo para os particulares. Se um destes últimos desafiasse um oficial e o batesse, ganhava
sua patente e mudava com ele de posição (CUNHA, 1986, p. 26).
Num certo sentido, a Ratio Studiorum trazia em seus fundamentos a oratória como
exercício essencial. Os dois métodos (preleção e conserto) se completam com os exercícios
por escrito. Estes devem ser corrigidos pelo mestre e as correções reforçadas por repetições
orais, com a finalidade de fortalecer a memória. Preleção, conserto, exercícios e repetição
constituem a técnica pedagógica comum a todas as escolas dos jesuítas (GILES, 1987. p.
135).
O padrão da oratória e o contexto da educação jesuítica, no Brasil Colônia, uma
vez comentados nos fazem retomar em que momento percebemos mais claramente os usos da
retórica, um instrumento indispensável nas produções escritas dos missionários, quer em seus
sermões, quer nas missivas com as quais se comunicavam entre si e com os seus superiores.
Dessa forma, observando o emprego dessas disciplinas conforme os objetivos da Ratio
Studiorum, percebemos que a oratória se antecipa à retórica: a retórica, “arte de persuadir”
Górgias (2010), dependia do bom exercício da oratória, “didática inaciana que vê na leitura
38
por parte do professor – na audição, portanto – e na repetição metódica e adequada as formas
ideais de se acumular conhecimentos” (NEVES, 1978, p. 143).
Como a retórica era disciplina típica das pedagogias grega e romana, foi como
oratória que a retórica se consolidou através do Império Romano, transformando-se em
disciplina obrigatória, já que ensinava como falar e convencer o público. Quem desejava uma
melhor articulação tinha, obrigatoriamente, que estudar retórica, de forma a expressar-se e a
convencer sua audiência. Por conseguinte, os romanos substituem aos poucos o termo retórica
(grego/pagão) por oratória (romano/cristão), denominações que se diferenciam por uma linha
tênue a partir do pensamento renascentista, cuja presença desencadeia o retorno aos valores
clássicos em oposição à persistência dos valores da Idade Média. Assim, além de sua
formação escolástica medieval, os jesuítas também estudavam os clássicos gregos (Aristóteles
– a retórica, a poética).
Ao migrar da Grécia Antiga para o Império Romano a oratória e a retórica não
perderam o seu sentido manipulativo. Grandes oradores ainda eram usados para convencer o
público, a opinião pública, ganhando, de certa forma, o sentido de propaganda, como a
conhecemos hoje. Foram a retórica e a oratória que ajudaram a Igreja Católica a se tornar
hegemônica e a disciplina acabou se transformando em algo obrigatório em todas as escolas,
fazendo com que seus mestres ganhassem importância e destaque (SERRA, 1996). Apesar das
diferenças entre uma e outra, muitos estudiosos ainda as utilizam como sinônimos, quando
referente ao discurso.
Após esta breve exposição sobre a importância da oratória e a retórica nos
discursos dos jesuítas, fica-nos mais evidente o exercício destas disciplinas nos sermões do
padre Antônio Vieira. Além do mais, a utilização destes instrumentos por si só não eram as
únicas armas de que dispunha o missionário jesuíta para o cumprimento das missões no
Maranhão.
39
1.5 Vieira no Maranhão: a espada e o escudo em ação
1.5.1. As missões jesuíticas no Maranhão antes de Vieira
O Maranhão do século XVII era uma capitania em formação, em construção lenta
e desorganizada, como afirma o historiador maranhense Mário Meireles10: “Não foi dos mais
felizes este primeiro período do Estado colonial recém-fundado” (MEIRELES, 2001, p. 192).
A colonização do Estado por si já demonstra a complexidade de sua origem, como podemos
notar na cronologia dos fatos da história colonial do Maranhão: primeiro, a conquista francesa
(1612 – 1615), a seguir conquista (1616 – 1621), capitania (1621 – 1626) e Estado-português
(1626 – 1641), depois conquista holandesa (1641 – 1644) e, por fim, definitivamente,
integrado no domínio da coroa lusitana (1644 – 1823) (Idem, p. 189).
A gênese do Maranhão é bastante conturbada, principalmente, na primeira metade
do século XVII, pois é tomado primeiramente pelos franceses num período de 3(três) anos
(1612 – 1615), depois tomado pelos portugueses por um período de 25(vinte e cinco) anos,
em seguida, invadido pelos holandeses por um período de 3(três) anos e, por fim, retorna ao
domínio português em 1644.
É necessário situar que o período que focalizamos neste
trabalho, isto é, da presença do padre Antônio Vieira no Maranhão, é justamente o último,
visto que o jesuíta “chegou à província em 1653, vindo na Oitava Expedição Missionária que
partiu de Lisboa ainda em 1652 e chegara ao novo Estado colonial em janeiro de 1653, na
Caravela Nossa Senhora das Candeias” (COELHO NETTO, 1985, p. 100).
O panorama político-econômico do Maranhão colonial reflete um quadro trágico:
o primeiro governador cuidou antes de interesses pessoais e os de família, de tal maneira que
ao falecer foi-lhe mandado penhorar ao espólio a importância de Rs. 3:820$726 (sic), que
desviara da Fazenda Real, portanto, não houve desenvolvimento econômico, nem tampouco o
progresso material da capitania. O segundo governador não fez por desmerecer do mau
conceito do seu antecessor e a situação se tornava cada vez mais precária, difícil e miserável.
10
Mário Martins Meireles (1915-2003) foi professor de História e um dos fundadores da Faculdade de Filosofia
de São Luís do Maranhão. Esta Faculdade, incorporada mais tarde à Universidade (Católica) do Maranhão, foi
um dos embriões da Universidade Federal do Maranhão. Na UFMA foi Vice-Reitor Administrativo, Chefe do
Departamento de História e Geociências e fundador do Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica e
Geográfica. Literato e historiador autodidata, publicou em vida 34 obras. Integrou várias instituições literárias:
Academia Maranhense de Letras (presidindo-a de 1962 a 1966), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Recebeu o título de cidadão de Caxias (MA).
40
A corrupção, o suborno e até o assassínio por envenenamento eram armas que serviam na
disputa pelas posições (MEIRELES, 2001, p. 192).
Eloy Coelho Netto11 (1985) lembra que “coincide com a chegada do notável
pregador jesuíta a publicação de Ordem Régia, levada pelo Capitão-Mor do Maranhão no seu
Regimento, que autorizava pôr em liberdade todos os índios até então cativos” (p. 100).
Vemos que se tratava de um momento conturbado em que se travavam lutas sobre a abolição
da escravatura (indígena) ou sobre o próprio índio que era um braço essencial nos engenhos e
nas lavouras dos colonos.
Além disso, a promessa de lucro fácil e enriquecimento rápido recaíam sobre o
comércio do indígena, “imprescindível à lavoura como mão de obra e à economia doméstica
e, por isso mesmo, fator de grande provento aos que se dedicavam ao negócio, arriscando sem
dúvida, de seu descimento e resgate – os ricos da terra”, assim, “todos negociavam, todos
abusavam, todos escravizavam o nativo, todos queriam enriquecer rápida e facilmente, que
para isso se tinham atirado à perigosa aventura além-mar” (MEIRELES, 2001, p. 194); até o
primeiro bispo, feito presidente da Junta das Missões, D. Gregório dos Anjos, atribuiu-se mil
cativos, na partilha dos índios, para empregar na lavoura do cravo, a cujo comércio se atirou
desenfreadamente, em hostil concorrência ao governador Coelho da Silva (Idem, p. 194).
Impressiona o fato de que todos pareciam buscar o mesmo fim (o enriquecimento
precoce), ao mesmo tempo, gerando um conflito de interesses entre os colonos e as missões
jesuítas, enviados pelo Rei para evangelizar os nativos; “o que motivou constantes e sérias
disputas entre, principalmente, os poderes temporal e espiritual, que todos, mesmo o capitãogeneral e o bispo, a ambos embora defeso qualquer ato mercantil, se deixavam seduzir pela
promessa de lucro fácil” (MEIRELES, 2001, p. 193).
Os representantes do Império (capitão-general) tanto quanto os representantes da
Fé (bispo) se perderam em suas funções administrativas, na capitania, diante da possibilidade
de enriquecerem rapidamente. Há um interesse em comum, mas objetivos individuais
diferentes, o que torna a relação, entre estas partes, complexa. “A Coroa, indecisa em face do
choque de interesses que escondiam o seu próprio interesse, não se decidia por uma política
qualquer, ora permitindo, ora proibindo, ora condicionando, a escravidão do indígena”,
todavia, tal atitude alimentava ainda mais a disputa que não raro chegava a lamentáveis
excessos, como a expulsão dos jesuítas em 1662; “nem conseguia coibir os abusos, eis que
seu próprio delegado sempre neles conivente, enquanto as ordens religiosas se
11
Eloy Coelho Netto foi membro do IHGM (Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão) e deixou grandes
contribuições para a história do Maranhão.
41
entredevoravam no zelo de defender o gentio que, sob sua proteção, seria aproveitado em sua
lavoura e pecuária” (MEIRELES, 2001, p. 193).
1.5.2 As missões jesuíticas no Maranhão após a chegada de Vieira
A chegada de Vieira ao Maranhão marca o clímax dos combates entre colonos e
jesuítas por causa dos índios, em uma sociedade preguiçosa que não tinha a menor disposição
para o trabalho braçal, escravizando o indígena a quem os jesuítas protegiam e queriam
catequizar. Em seus sermões, Vieira atesta o seu papel crucial como arguidor, argumentador,
contestador, jurista, orador, pregador, entre outros atributos, colocando-se como “centro desta
trama e se alteia singularmente no meio da tormenta” (COELHO NETTO, 1985, p. 101).
Até a chegada de Vieira, os jesuítas que se estabeleceram no Maranhão e GrãoPará, desde 1615, “não estiveram encarregados oficialmente da administração dos índios,
ocuparam-se apenas em os catequisar (sic) nas Aldeias que visitavam, e na defesa moral delas
em casos particulares” (COELHO NETTO, 1985). Parece-nos que existia simplesmente uma
restrição – dos jesuítas que antecederam Vieira – ao cumprimento de suas obrigações
missionárias, ao contrário, do exercício missionário deste, que faz desde a sua chegada ao
Maranhão um jogo ideológico, no sentido bakhtiniano12, que se constrói pela “articulação das
leis de Deus e das leis do rei” (NEVES, 2004), uma peculiaridade do discurso vieiriano, que
se flexibiliza em um “sujeito” plural e misto: missionário jesuíta (religioso), diplomata
(político), escritor (literário), orador, entre outros atributos.
Efetivamente é inevitável que se desenvolva duas questões, uma delas é: se os
demais jesuítas não conseguiam resolver os problemas recorrentes no Maranhão, por que esta
tarefa coube ao padre Antônio Vieira? E a outra é: que desígnios ou implicações possuía este
jesuíta a ponto de o encarregarem para tal missão?
Lembremos que o Maranhão no século XVII não passava, pois, de “um vespeiro
infestado de mosquitos, índios, colonos açorianos e portugueses, que para lá vieram apenas à
guisa de escapar da miséria em Portugal e obterem fortuna fácil, sem nenhum interesse
12
Bakhtin (2002) parte do princípio de que tudo é ideológico, que os sujeitos já nascem em um mundo instituído
por signos ideológicos. Neste sentido, Vieira estaria submerso em ideologias que o acompanham desde o seu
nascimento, e que não se ocultam na linguagem de suas produções.
42
civilizatório pela terra, uma vez que não vinham para povoá-la e nela não queriam trabalhar”
(LEÃO, 2008, p. 2).
É notório que, ao chegar, Vieira encontra uma região deflagrada, dilacerada, onde
os jesuítas eram hostilizados pelos colonos que os consideravam um obstáculo para seus
projetos particulares. Contudo, o jesuíta não agiu logo de imediato.
João Lisboa (1991) lembra que o Padre Antônio Vieira ficou algum tempo inativo
quando chegou ao Maranhão, dadas as condições em que se encontrava a Capitania:
[...] Aquele homem habituado à pompa, ao ruído, e vanglória das Cortes europeias, e
às fortes emoções que deviam gerar em sua alma os grandes negócios em que andara
constantemente empenhado, caiu sem dúvida em profunda tristeza e abatimento,
quando se viu oprimido da solidão e do silêncio, no meio das quatro palhoças que
naquele tempo se chamavam a cidade de São Luís (LISBOA, 1991, p. 206).
Dessa maneira, torna-se complicado falar de uma sociedade maranhense, quando
na verdade seria mais sensato afirmarmos que havia uma sociedade maranhense em préformação, ou seja, um número limitado de portugueses recém-chegados da Europa e dos
Açores, que pretendiam enriquecer rapidamente à custa da exploração da colônia sem se
estabelecer fixamente e um grande número de selvagens pagãos, que lutavam para expulsar
estes colonos de suas terras.
Vieira, até então quieto, mas atento aos acontecimentos, não tardou muito a
perceber os primeiros obstáculos de sua missão como jesuíta da Companhia, conforme relatos
ao Príncipe Teodósio na Carta LX (VIEIRA, 2004):
O desamparo e necessidade espiritual que aqui se padece é verdadeiramente
extremo; porque os gentios e os cristãos todos vivem quase em igual cegueira, por
falta de cultura e doutrina, não havendo quem catequize nem administre
sacramentos; havendo, porém, quem cative e quem tiranize, e, o que é pior, quem o
aprove; com que portugueses e índios todos se vão ao Inferno.
Ao bispo do Japão dou mais particular relação de tudo, para que o represente a V.
A., de cuja grande piedade e zelo espero nos mandará socorrer com maior número
de missionários, que é o de que só temos necessidade, e não podem vir tantos que
não sejam necessários mais. Ah! Senhor! Que se perdem infinitas almas remidas
com o sangue de Cristo, por não haver quem as alumie com a luz da fé, havendo
tantas religiões nesse Reino e tantas letras ociosas! Acuda S. M., Senhor, e ainda V.
A., a este desamparo por piedade, por cristandade, e por escrúpulo de que de todas
estas almas se há de pedir conta aos reis de Portugal, e a V. A. como príncipe do
Brasil. (VIEIRA, Carta ao Príncipe Teodósio, 1652, Maio 6. In: NEVES, 2004, p.
176)
Em outra Carta (LVI) também dirigida ao Príncipe Teodósio, de Cabo Verde, em
25 de dezembro de 1652, antes de sua partida para o Maranhão, o jesuíta assume uma posição
43
defensiva (quanto ao Clero e quanto à Família Real) em relação à responsabilidade que lhe era
delegada naquele instante e afirma: “desde a hora em que o navio desamarrou desse rio, não
estive mais em mim, nem o estou ainda, atônito do caso e da fatalidade da minha partida, e de
não saber como S. M. e V. A. a receberiam”, prossegue o jesuíta, “pois não é possível seremlhe presentes todas as circunstâncias dela: tais que não fui eu o que me embarquei, senão elas
as que me levaram” (VIEIRA, 2008).
Assim, Vieira se exime da responsabilidade por seus atos, artimanha audaciosa –
o que lhe conferia um caráter destacável, único, heroico – de quem sabe empunhar a palavra
como espada e escudo, especialmente, em um panorama seiscentista, no qual os “valores”
eram a verdade única, isto é, “tratava-se de valores que estruturavam uma sociedade fundada
mais sobre deveres do que sobre direitos” (FRANCO e TAVARES, 2007) e, parece-nos, que
ninguém – como Vieira – sabia executar tão bem aqueles, em defesa destes.
O jesuíta, precavido, se coloca como prisioneiro das circunstâncias e fatalidades e
tenta, ardilosamente, impessoalizar os acontecimentos, estratégia eficaz para defesa e proteção
de possíveis conflitos e perigos em terras maranhenses. “S.M e V.A não poderiam saber da
totalidade das circunstâncias; não podem julgar, pois, malgrado seu suposto desejo, não erram
se errarem” (VIEIRA, 2007).
Mesmo sem entrar no mérito das circunstâncias, o certo é que os portugueses que
habitavam aquelas paragens não aceitavam a possibilidade de livrar o indígena de sua
condição de cativos, por isso, viam nas missões jesuíticas uma grande ameaça aos seus planos
econômicos.
Bosi (2011) reitera que “os missionários, cientes de que a relação com os colonos
seria espinhosa quando se devesse tratar dos cativeiros dos índios na região, deliberaram
manter-se reservados na matéria silenciando-a até mesmo no confessionário” (BOSI, 2011,
41). No entanto, não tardaria muito para que os debates começassem, pois a prática dos
“portugueses”, como os chamava genericamente Vieira, colidia com os intuitos dos jesuítas e,
no plano legal, com uma ordem régia pela qual se aboliam os cativeiros dos índios.
Além do Clero e do Império ao seu lado, Vieira conta com a maior ajuda de todas:
Deus. Em missiva escrita ao padre Francisco de Morais, em 6 de Maio de 1653 (VIEIRA,
2008, p. 235), o jesuíta afirma: “Amigo, não é o temor do Inferno o que me há-de (sic) levar
ao Céu: o amor de quem lá se deixa ver e gozar, sim. Oh! Que bem em pregados mares, e que
bem padecidos maranhões, se por eles se chegar com mais segurança a tanta felicidade!”,
continua, “Só um defeito acho nesta minha, que é não poder repartir convosco; mas já que
44
vivemos sem nós, vivamos com Deus, pois está em toda parte; vejamo-nos n`Ele e ouçamol`O a Ele (sic), que melhor será que ouvirmo-nos” (VIEIRA, 2008, p. 235)
Apesar da existência de uma legislação que pretendia proteger o indígena contra
os abusos da submissão ao trabalho compulsório, muitas vezes considerada dúbia e hesitante
por historiadores e analistas do período e da presença de missionários que pretendiam
incorporar o ameríndio ao Reino de Portugal e ao Império Cristão, o que imperava nas
plantações e nos centros urbanos era a exploração do trabalho escravo indígena.
Constantemente, os colonos organizavam expedições para a captura e resgate de indígenas
que seriam repassados como escravos para a população da região, no caso, os portugueses do
Maranhão e Grão-Pará, que viviam do trabalho dos índios, em grandes fazendas
autossuficientes (SANTOS, 2010, p. 5).
Havia em Vieira uma capacidade de lidar com situações contraditórias na
construção de seus discursos e isso pode nos ajudar a compreender alguns “mitos” que se
erigiram em torno de sua imagem ao longo da historiografia jesuítica brasileira e,
inteligentemente, ele próprio deu grande parcela de contribuição a esses “mitos”, quando teve
a oportunidade de escrever, reunir, re-escrever e organizar a edição de quase tudo que
produziu.
1.6 Vieira, os mitos e a linguagem mítica
A análise da imaginação social jesuítica nos seiscentos torna-se mais complexa se
pensarmos que o horizonte histórico e social demonstra-se, essencialmente, de maneira
fragmentada; no caso de Vieira, alia-se a história “culta”, consagrada academicamente, às
histórias13 “populares”, que sempre se expandem exponencialmente com seus próprios
enredos. Tais histórias deturpam, contradizem, afastam, ou aproximam, aliam-se e dão
continuidade ao(s) “mito(s)”14 que, de forma direta ou indireta, fortalecem a história da
história de Vieira ou ainda a história do mito de Vieira e nos fornecem, ilusoriamente (pois
estamos cada vez mais afastados de “lidar” com o “próprio Vieira” ou a “própria obra”), uma
“identidade” ou “essência” do jesuíta.
13
14
Aurélio (2004) chama atenção para o uso exclusivo de história com “H”, em qualquer acepção: ficção ou não.
Cf. Ernest Cassirer (2006).
45
Entendemos o mito a partir do pensamento do filósofo Ernst Cassirer (2006), em
Linguagem e Mito, que baseado nas ideias do filólogo Max Müller afirma “Entre os filólogos,
foi Max Müller quem empregou a análise filológica não só como meio para revelar a natureza
de certos seres míticos, sobretudo no âmbito da religião védica, mas também como ponto de
partida para sua teoria da conexão entre linguagem e mito”. O mito não é, para ele, nem a
transformação da história em lenda fabulosa, nem uma fábula aceita como histórica; e,
tampouco, surge diretamente da contemplação das grandes configurações e poderes da
natureza. Tudo a que chamamos de mito é, segundo seu parecer, algo condicionado e mediado
pela atividade de linguagem: é, na verdade, o resultado de uma deficiência linguística
originária, de uma debilidade inerente à linguagem. Toda designação linguística é
essencialmente ambígua e, nesta ambiguidade, nesta “paronímia” das palavras, está é a fonte
primeva de todos os mitos (CASSIRER, 2006, p. 18).
Para Cassirer (2006), os mitos nascem de uma debilidade da linguagem, uma
deficiência linguística originária, capaz de produzir ambiguidade no discurso, mas sem
distanciá-lo da relação sujeito-história-linguagem. Considera ainda a mitologia como algo
inevitável, uma necessidade inerente à linguagem, “a mitologia é, em suma, a obscura sombra
que a linguagem projeta sobre o pensamento, e que não desaparecerá enquanto a linguagem e
o pensamento não se superpuserem completamente: o que nunca será o caso” (idem, p.19).
Entendemos ser arriscado afirmar que Vieira criou mitos no Maranhão, por outro
lado, não o seria se disséssemos que ele próprio é um mito. Com tantas habilidades e funções
(missionário, político, orador, pregador, sermonista, etc.), que desempenhou na província, o
uno e múltiplo, que coexistem em um indivíduo tão complexo, se articulam como obstáculos
a uma compreensão teórica mais profunda e igualmente complexa.
Quando o jesuíta diz, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma (que
analisaremos no 3º capítulo): “no Maranhão até o sol e os céus mentem” (VIEIRA (1654),
2008b, p. 9), constrói uma personificação, animização ou prosopopeia tão intensa que produz
um efeito avassalador sobre o auditório, visto que para atacar a mentira nos homens se utiliza
desta figura de linguagem, deformando linguisticamente o “sol” e “céu”, de natureza
inanimada, como elementos capazes de “mentir”, quando localizados no contexto das terras
maranhenses. A ambiguidade produz um efeito terrível porque estes elementos da natureza
(sol e céu), símbolos espetaculares segundo Durand (1997), representam o alto e o divino,
portanto, sua influências deveriam ser de purificação e iluminação, não o contrário.
46
Segundo Durand (1997), os símbolos teriomórficos (relacionados à animalidade),
os símbolos nictomórficos (relacionados às trevas, a noite sombria, escura) e os símbolos
catamórficos (relacionados à queda, ao abismo) expressam as três grandes angústias do
homem diante do tempo e da morte. A mentira, que para Vieira é um “mal”, enquadra-se nos
símbolos nictmórficos.
Afirma Durand (1997) que para combater o tempo e a morte, representados pelos
símbolos teriomórficos, nictomórficos e catamórficos, a consciência humana vai criar
mecanismos de defesa que permitam ao homem fugir diante do tempo e vencer o próprio
destino e a morte. Assim, a imaginação heroica combate os monstros (símbolos teriomórficos)
com a espada e o gládio (símbolos diaréticos – que servem para cortar, separar, discernir e
impor o poder); as trevas (símbolos nictomórficos) são combatidas pela luz, pelo sol, pela cor,
pela palavra (símbolos espetaculares); e a queda (símbolo catamórfico) é vencida pela
verticalização, elevação e subida (símbolos ascensionais).
Assim, para Durand (1997), os símbolos da luz e o símbolo solar, especialmente,
constroem um notável isomorfismo com o “céu” e o “sol” (imagens no sermão de Vieira) e
representam, em determinados momentos da psique humana, horizontes luminosos na prática
da elevação imaginária, horizontes “deslumbrantes”, de “azul-celeste e dourado” (DURAND,
1997, p. 146); logo, associando a frase do jesuíta “no Maranhão até o sol e os céus mentem”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 9), teríamos: o céu = azul-celeste e o sol = dourado; portanto, no
imaginário do padre Antônio Vieira, se até essas deidades são capazes de mentir (deformação
linguística – personificação), o que se dirá dos homens do Maranhão?
Ao partimos dessas premissas sobre o mito de Cassirer (2006) para analisar os
discursos do padre Antônio Vieira em seus sermões, verificamos que, de fato, o jesuíta faz
uso excessivo da linguagem metafórica – carregada de ambiguidades – para atingir aos seus
objetivos no púlpito, no Maranhão, desde a sua presença e atuação na colônia, como atestam
as seguintes frases: “A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade” (VIEIRA
(1654), 2008b, p. 11), “No Maranhão até o sol e os céus mentem” (VIEIRA (1654), 2008b, p.
09), “Vejo, peixes, que, pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos
mares, me estais respondendo e convindo que também nelas há falsidades, enganos,
fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 174).
De certa maneira, estas metáforas representam o quanto o vasto imaginário do
jesuíta está vivo no cotidiano do maranhense (século XVII), pois as imagens que ele resgata
47
para seus discursos eram criadas conforme o cenário e o contexto, como os encontrava na
colônia. Já que os colonos fazendeiros ao ouvir a sua pregação, pouco cumpriam do que
ouviam, contrariando os interesses da Companhia, a fim de, gananciosamente, realizarem os
seus próprios interesses mercantis, notamos que Vieira se utiliza de criações metafóricas que
se aproximam do real, uma vez que expressam a realidade maranhense da época por
ambiguidades, mas não constrói mitos propriamente ditos, já que sua intenção era
essencialmente atingir ao público-alvo (os colonos fazendeiros, principalmente) com os seus
sermões.
Veremos ainda que Vieira utiliza passagens mitológicas das Escrituras Sagradas
que, provavelmente, ao longo dos anos, contribuíram para o surgimento de imagens
mitológicas na literatura universal e, engenhosamente, constrói argumentos para alcançar os
seus objetivos no púlpito, como a do Santo peixe de Tobias, isomorfo do peixe que engoliu
Jonas (imagem mitológica das Escrituras Sagradas – complexo de Jonas), que estão
correlacionados às figuras mitológicas do Pequeno Polegar e Gulliver, ambos personagens da
mitologia europeia que representam a “miniaturização” ou “gulliverização”15 (DURAND,
1997, p. 214), elemento importantíssimo para a compreensão do imaginário do Santo peixe de
Tobias, no sermão de Santo Antônio aos peixes (VIEIRA (1654), 2008c). Sobre estas
questões, discutiremos de forma mais apropriada no último capítulo da tese.
Assim, acreditamos que os “poderes” conferidos a Vieira pela Coroa para sua
atuação nas terras maranhenses também possam ter corroborado para essa excentricidade
complexa do jesuíta. Aliás, era surpreendente a liberdade com a qual, nestas terras, o
missionário se dirigia aos ouvintes, a maneira como apontava as faltas, listava os defeitos e
falava as verdades: “no Maranhão o padre sentia-se em casa, ficando mais à vontade para
chamar a atenção – ‘tenho dito tantas verdades, com tanta liberdade, a tão grandes
ouvidos’[...]” (BRANDÃO, 1979).
Não podemos deixar de lembrar que a Carta Régia, escrita em Lisboa, a 21 de
outubro de 1652, ao padre Antônio Vieira, apontava-lhe a grandiosidade de sua missão:
[...] vos encomendo muito a continuação da pregação do Evangelho, que os leva
àquelas partes; e que para isso levanteis as Igrejas, que vos parecer, nos lugares, que
para isso escolherdes, e façais as Missões, pelo sertão e paragens, que tiverdes por
mais convenientes, ou por terra, ou levando os índios convosco, descendo-os do
15
Para Durand (1997, p. 214), a “gulliverização” integra-se nos arquétipos da inversão, subentendida que é pelo
esquema sexual ou digestivo do engolimento, sobredeterminada pelos simbolismos do redobramento e do
encaixe [...] O peixe é símbolo do continente redobrado, do continente contido. É o animal “encaixado” por
excelência.
48
Sertão, ou deixando-os em suas Aldeias, como então julgardes os mais necessários à
sua conversão (COELHO NETTO, 1985, p. 100).
Além desta incumbência conferida ao jesuíta, a mesma carta recomendava o
atendimento aos Governadores, Capitães-Mores, Ministro de Justiça e Guerra, Capitães das
Fortalezas, Câmara e Povos às solicitações de Vieira e que dessem toda ajuda ao que ele
pedisse. Tais circunstâncias podem ter contribuído para a construção de um imaginário
mítico, heroico, da figura do padre no trabalho das missões. Por isso, pretendemos analisar os
discursos retóricos, políticos, ideológicos que, de diferentes maneiras, apontam um imaginário
social – notadamente complexo – a partir das produções do jesuíta, que ora nos apresenta um
Vieira multifacetado, múltiplo, fragmentado em outros Vieiras (orador sacro, diplomata,
missionário, escritor, administrador eclesiástico, político), ora nos apresenta um Vieira denso,
concentrado, uno e mítico (como se fosse um só, do qual emanariam cada uma das suas outras
faces).
Além deste caráter duplo (uno e multi), ambíguo e, concomitantemente,
antagônico do jesuíta, o uso acentuado de antíteses em sua retórica e o destaque para a
temática do conflito existencial nos permitem caracterizar o seu discurso como um discurso
oximorônico16, não só pelo uso dos oxímoros, mas também pelo uso retórico do silogismo e
dos sofismas que muitas vezes se fundamentam na contradição ou oposição de ideias para
atingir a persuasão.
Os jesuítas almejavam o estabelecimento de um Império luso-católico, respeitado
pelo mundo todo e servido pelo zelo do rei, da nobreza e do clero, mas quando chegaram à
colônia viram que a realidade era bem diferente do que imaginaram. Contudo, as condições de
implementação do projeto das missões exigiria dos missionários jesuítas europeus muito mais
de sua intervenção política que de sua imponência religiosa.
É nesse espaço que Vieira se estabelece e se destaca por ser um diplomata sem
igual, envolto pelo poder da Fé e do Império, enviado exclusivamente para resolver os
entraves políticos na Companhia do Grão-Pará e Maranhão. Mas nesta conjuntura, quantas
foram as alianças, as aproximações ou quantos foram os conflitos, as contradições nas práticas
políticas/sociais do jesuíta? Até que ponto, podemos perceber o reflexo dessas contradições,
rupturas, alianças, aproximações nos discursos do missionário e de que maneira tudo isso
compõe um imaginário social de suas práticas sociais no contexto da sociedade maranhense?
16
O oxímoro é o mesmo que o paradoxo, uma figura de linguagem que aproxima termos ou expressões
contrastantes e contraditórios num só pensamento. Ex: Rios de neve em fogo convertido (Gregório de Matos).
49
Por esses fatos terem se organizado e se situado no ontem, ocasionando um certo
“assombro”, daí porque se tornou mais uma das inquietações que trazemos nesta pesquisa, a
presença dos diversos Vieiras, portanto, dos diferentes discursos, de um personagem histórico
complexo, oximorônico, um misto de fé e razão.
Os textos vieirianos, além de representarem um apogeu da retórica e da oratória
do Barroco em Língua Portuguesa, são discursos retóricos carregados de construções
ideológicas e políticas do contexto da época e muito podem oferecer para compreendermos a
“história” da história do Maranhão no século XVII.
Após a exposição metodológica da pesquisa e do cenário e atores do objeto de
estudo, partiremos, agora, para análise do imaginário social do padre Antônio Vieira nos
sermões proferidos no Maranhão. Mas, antes, é importante ressaltar que, para não
interferirmos no sentido proposto pelo jesuíta em seus discursos, fizemos constantes citações
diretas dos trechos dos sermões, de forma a não prejudicá-los, contextualmente, mediante as
nossas análises e conclusões. Dada a complexidade das construções discursivas do jesuíta,
século XVII, seu estilo próprio, o sentido que confere às palavras no contexto da obra, a
utilização de citações indiretas ou tentativas de redução de sentido do enunciado, poderiam
prejudicar bastante a nossa proposta de análise, notadamente, para aqueles que desconhecem
os sermões analisados. Assim, esperamos investigar da maneira mais impessoal possível,
distanciando-nos e nos aproximando constantemente, o objeto de estudo desta pesquisa, a fim
de percebemos mais claramente as imagens do imaginário social do padre Antônio Vieira no
Maranhão do século XVII. Para tanto, comecemos pelo Sermão da Primeira Dominga da
Quaresma, o primeiro que o jesuíta proferiu no Maranhão.
50
Capítulo 2
Figura 03: Vieira catequizando os índios.
A que diferente preço compra hoje o demônio as almas, do
que oferecia por elas antigamente! Já nesta nossa terra vos
digo eu! Nenhuma feira tem o demônio no mundo onde lhe
saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os
remos do mundo por uma alma, no Maranhão não é
necessário ao demônio tanta bolsa pra comprar todas: não
é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer
cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com
um tujupar de pindoba, e dois tapuias, e logo está adorado
com os ambos os joelhos [...] – Oh! Que feira tão barata!
(VIEIRA (1653), 2008a, p. 106)
51
2. O PREÇO DAS ALMAS NO MARANHÃO
Os sermões de Vieira apresentam sempre uma estrutura, que pode se alterar
apenas na quantidade de capítulos, mas estabelece uma correspondência entre as quatro partes
da retórica clássica: exórdio (introdução); exposição (desenvolvimento de argumentos);
confirmação (comprovação dos argumentos) e peroração (conclusão). Lembramos esta
nomenclatura, porque a utilizaremos na análise dos sermões no decorrer desta pesquisa.
O Sermão da Primeira Dominga da Quaresma ou das Tentações (1653) é o
primeiro, seguindo a cronologia, dos três sermões que analisaremos. A temática escolhida
pelo jesuíta para este sermão retrata claramente a angústia do padre diante de problemas que,
a priori, somente ele, a mando da Igreja e do Rei, poderia resolver.
Neste Sermão, Vieira se mostra indignado com a situação dos índios que eram
catequizados (“civilizados”) pelas missões jesuíticas, e, posteriormente, vendidos e
comprados como objetos, como se suas almas não tivessem nenhum valor. Para os
fazendeiros, comprar um índio “domesticado, civilizado” deixa de ser um transtorno ou futuro
aborrecimento e se torna um negócio lucrativo.
A autoridade civil, sustentando os padres, fixou na terra o elemento da reação à
desagregação moral e de resistência à cobiça desenfreada dos colonos. Esta não se
aquietou com facilidade. Houve várias manifestações para reenviar os padres. Mas a
autoridade régia não cedeu. E os padres ficaram, numa perpétua luta, em que umas
vezes eram quase adorados, outras perseguidos e exilados (SOUZA, 1977, p. 6).
O cenário e o contexto, com o qual se deparava o missionário jesuíta, trazem em
si uma contradição com o processo de evangelização do aborígine, visto que, catequiza-se
para libertar-lhes a alma e o corpo, todavia, não havia esse entendimento entre colonos e
jesuítas, visto que os colonos tiram interesse em ainda mantê-los cativos.
O jesuíta critica severamente os fazendeiros do Maranhão e depois de ter citado
um versículo de Isaías (Isaías 58, 1) que traduz assim: “Brada, pregador, e não cesses; levanta
a tua voz como trombeta, desengana o meu povo, anuncia-lhe os seus pecados e dize-lhe o
estado em que estão” (VIEIRA(1653), 2008a, p. 108), anuncia aos colonos fazendeiros do
Maranhão o papel de sacerdote, político e jurista que viera desempenhar na Colônia, e
continua: “Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus.
52
Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vós
ides direitos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não
mudardes de vida” (VIEIRA(1653), 1998a, p. 108).
O Sermão da Primeira Dominga da Quaresma é dividido em seis partes, as quais
podem ser ordenadas da seguinte maneira: I – introito, introdução ou exórdio; II e III –
exposição; IV e V – confirmação e VI – peroração.
No exórdio, são mencionadas as três tentações que Jesus teria sofrido pelo
demônio: na primeira, o demônio ofereceu que fizesse das pedras pão; na segunda,
aconselhou que se deitasse daquela torre abaixo; na terceira, pediu que caído o adorasse; e
dentre elas é escolhida uma que seria, como diz o próprio Vieira, “a lança de que mais se
fiava”: “A que escolhi das três, não foi a primeira nem a segunda, senão a terceira e última,
porque ela é a maior, porque ela é mais universal, ela é a mais poderosa, e ela é a mais própria
desta terra em que estamos.”, continua: “Não debalde a reservou o demônio para o último
encontro, como a lança de que mais se fiava; mas hoje lha havemos de quebrar nos olhos [...]”
(VIEIRA(1653), 2008a, p. 101).
Os recursos anafóricos17 utilizados pelo missionário fortalecem a sua
argumentação, e a sequência de superlativos absolutos conferem grandeza e gradação ao mote
desta introdução: “mas hoje lha havemos de quebrar nos olhos”. Vieira, com astúcia, aponta
que no Maranhão a terceira tentação do demônio (também negada por Cristo, mas não pelos
maranhenses) deitava e rolava (tirava proveito da situação): “A que diferente preço compra
hoje o demônio as almas no Maranhão!” (VIEIRA(1653), 2008a, p. 106).
2.1 Vieira e os índios: “A que diferente preço compra hoje o demônio as almas no
Maranhão!”
Na segunda parte, primeira da exposição, Vieira apresenta a frase na qual se
baseará todo o sermão: “Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Tudo isto te darei se,
prostrado, me adorares)” (VIEIRA(1653), 2008a, p. 101). Assim, correlaciona o valor das
almas para o homem e para o demônio: “nós, os homens, como nos governamos pelos
17
A anáfora é uma figura de linguagem que consiste na repetição de palavras, geralmente no início de versos ou
orações (CEREJA, 1994, p. 186). Ex: Ela é ..., ela é..., ela é... (VIEIRA(1653), 2008a, p. 101).
53
sentidos corporais, e a nossa alma é espiritual, não a conhecemos; e como não a conhecemos,
não a estimamos, e por isso a damos tão barata” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 102). O uso desta
máxima18 demonstra o posicionamento político do jesuíta em relação aos mercadores de
índios, esclarece-nos que o objetivo principal era criticar, no púlpito, a mercancia desenfreada
e ilegal do aborígene.
Um ponto destacável deste exórdio é a percepção das imagens que podiam ser
utilizadas pelo jesuíta para causar impactos nos ouvintes, que, geralmente, eram os
fazendeiros locais, alguns representantes da Coroa, colonos e índios. Vieira focalizou a sua
crítica naquilo que é mais valioso para o mercador: a mercadoria, não obstante o valor que ela
agrega. Assim, encontrou a imagem simbólica19 de que precisava para tecer a trama discursiva
do sermão: o valor da mercadoria.
A imagem simbólica do “valor da mercadoria” serve de ponto de partida para os
schemes20 que afloram na imaginação jesuítica de Vieira. Todavia, o universo discursivo do
jesuíta, do sujeito Vieira, no sentido bakhthiniano, reconstrói essa imagem da mercadoria
substituindo o objeto da relação mercadológica: retira a matéria (o índio) do papel de
mercadoria e coloca a alma (dos próprios fazendeiros e dos índios) como mercadoria. É
importante ressaltar que ele encontrou esse scheme no contexto das práticas sociais dos
fazendeiros do Maranhão àquela época e demonstra quão grande mercador o demônio se torna
18
Máximas são frases tidas como verdades absolutas e muito utilizadas nos discursos retóricos.
19
A imagem simbólica, ou seja, aquela que não depende diretamente do senso da percepção, parece ser refratária
a qualquer objetividade explicativa categórica ou universal e, simultaneamente, permeável aos mais distintos
métodos de interpretação. As diversas escolas psicanalíticas, por exemplo, podem ser classificadas através do
tipo de pulsão que priorizam no momento da interpretação. Tornou-se necessária, atualmente, uma nova
compreensão dessas hermenêuticas e uma revisão da concepção pulsional do símbolo. A Filosofia, a
Antropologia e os avanços da pesquisa clínica sobre a imagem vêm fornecendo elementos para essa nova
compreensão. Durand (1997) desenvolve em As estruturas antropológicas do imaginário uma topografia do
imaginário avessa às reduções sociológicas e psicológicas da imagem ou, em uma expressão do autor, um jardim
das imagens primordiais da espécie humana. Seu trabalho representa também um desenvolvimento da noção
junguiana de arquétipo e um projeto de sistematizar aquilo que a teoria junguiana deixou em aberto, ou seja, uma
terminologia precisa acerca da imagem e do imaginário e uma arquetipologia geral. Dessa forma, as imagens
simbólicas são interpretadas a partir das relações que estabelecem entre si, de seu arranjo e convergência em
torno de uma determinada estrutura. Assim, a imagem do fogo pode ser tanto um símbolo de intimidade e de
aconchego quando é o calor que aquece uma cabana ao cair da tarde (estruturação mística), quanto um símbolo
diurno quando é a arma de ataque do herói contra um monstro devorador (estruturação heroica). Ou ainda um
símbolo de iniciação, quando é a brasa que queima o corpo do neófito durante o ritual de passagem (estruturação
sintética).
20
Para Durand (1997), schèmes ou schémas são formas de percepção de certos esquemas reflexológicos
realizados pelo corpo humano que vêm se enquadrar e assimilar aos esquemas motores primitivos. Dessa
maneira, “o corpo inteiro colabora na constituição da imagem”. Desde pequenos, aprendemos a nos apossar de
nossos brinquedos, se alguém os toma gritamos, brigamos, batemos, mordemos, reagimos geralmente de maneira
agressiva, quando adulto nos apossamos de mercadorias que quando tomadas, tendemos a reagir da mesma
maneira de quando éramos crianças.
54
em relação a estes fazendeiros: “A que diferente preço compra hoje o demônio as almas no
Maranhão!” (VIEIRA(1653), 2008a, p. 106).
Vieira pretende enfatizar que não é só a alma do índio que serve de mercadoria,
mas a alma do fazendeiro que descumpre a lei (do Rei e, simultaneamente, de Deus) e, desta
maneira, vende sua alma ao diabo. Assim, o jesuíta destaca a importância da salvação da alma
para adentrar no Reino dos Céus, servir ao Rei e a Deus em vez de tornar sua alma uma
grande mercadoria para o demônio.
Ao destacar a importância da salvação da alma, o jesuíta traz ao cenário um
combate entre dois componentes humanos distintos e simultaneamente complementares – a
rivalidade entre corpo e alma – e destaca o que este combate representa para a Companhia de
Jesus, no processo de evangelização dos índios: ambos representam o exercício da dialética, a
luta constante entre os opostos, o concreto (corpo) e o abstrato (a alma), respectivamente,
entre o profano e o sagrado, o impuro e puro, o pecado e perdão.
O índio possui uma relação com a natureza bem diferente da que tem o
colonizador europeu. “O jesuíta vê a natureza como algo luxuriante, soberbo, avassalador,
misterioso, grávido de perigos e surpresas” (NEVES, 1978, p. 53). O índio em contato com a
natureza interage em igualdade com esta, mais animal, menos homem (sob a ótica das
civilizações modernas). “O corpo é o lugar de inscrição dos aspectos da animalidade, da
escassa humanidade” (idem).
Ana Lúcia Oliveira (2011a) faz alusão a estes contrastes ao ressaltar que no
“contato que estabelecem com o gentio, os jesuítas e cronistas do descobrimento denominam
a pluralidade desses povos como ‘índios’ e, simultaneamente, produzem uma essência, o
‘índio’, que pode ser definida como alma selvagem ou como animal sem alma” (OLIVEIRA,
2011a, p. 30). Por esta razão, o trabalho da Companhia de Jesus exerce um papel
importantíssimo, tanto para o Clero quanto para a Coroa, que se definia na conversão do
gentio ao Catolicismo.
Os jesuítas viam como obstáculos primários, no trabalho de catequese, além da
linguagem, a educação do “corpo” do nativo. Era preciso mostrar-lhes que o corpo é impuro,
ensinando-lhes comportamentos (andar vestidos, flagelações, jejuns, abstinências) que, a
princípio, não faziam sentido para o aborígene.
Jejuns, abstinências, flagelações são formas estranhas e paradoxais de se reprimir a
bestialidade do corpo: promovem uma inscrição de sofrimento no próprio corpo,
modificam seu aspecto físico por uma alteração de necessidades vitais, afastam tudo
aquilo que pudesse “agradar”, saciar desejos considerados supérfluos. Mas tudo isso
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é feito para purificar o homem, para resgatar seus pecados, para chamá-lo à razão,
aproximá-lo de Deus, salvá-lo. Estranho local para se conseguir tanto. No local dito
oposto à razão, à pureza, à etereidade. Por que não uma série de castigos e
disciplinas que afligissem diretamente a alma, o espírito, a sede do saber? Supõe-se,
portanto, alguma ligação forte entre corpo e alma, uma ponte muito sólida que é
mascarada por um aparente antagonismo polar e marcada pelo isolamento de cada
um dos dois elementos. Afligir o corpo resulta em beneficiar a alma, ferir o corpo é
aproximá-lo da alma (NEVES, 1978, p. 54).
Nesta luta entre corpo e alma, o corpo é a matéria, o concreto, o palpável e o mais
fácil de ser atingido, mas o fim objetivo principal a ser atingido, o outro lado da ponte é a
alma. Mostramos que há uma ponte que liga dois pontos fortemente e que está oculta. Por que
tem o direito de ligar esses pontos? Na realidade, se é certo que as penas são do corpo, não é
certo que sejam “naturais”. O que significa que estas, por não serem produtos naturais não
podem ser executadas a esmo por qualquer um. Na verdade, são produtos culturais,
socialmente engendrados; são práticas repressoras determinadas e possíveis de serem
transmitidas por membros específicos de uma determinada civilização. Logo, implicam
técnicas do corpo, em distinções entre corpo e alma, na existência mesma de um “corpo” e de
uma “alma” e por isso não são comuns a toda a humanidade (NEVES, 1978, p. 54).
Os padrões de comportamento e uso do corpo, conforme o modelo cultural
europeu eram completamente desconhecidos pelos índios, e esse desconhecimento “é
sinônimo de animalidade na medida em que não consegue estabelecer fronteiras internas às
tribos, e fronteiras entre as tribos e a natureza” (NEVES, 1978, p. 56).
A dialética do exterior e do interior21 (BACHELARD, 1998, p. 215) se dinamiza
na relação entre o corpo e as regras de funcionamento deste corpo que, a priori, encontra seus
fundamentos na natureza, esta que os jesuítas veem como espaço profano e deve ser aos
poucos afastada do selvagem para apresentá-lo à civilização – um espaço sagrado, daí a
importância das aldeias no processo de catequização do aborígene. No entanto, frise-se que
para o índio não há desconhecimento, uma vez que ele possuía uma relação de harmonia e
equilíbrio com a natureza, e suas formas de comportamento, uso do corpo, relações com
outras tribos, canibalismo, não representavam de nenhuma forma o desconhecimento de seu
próprio corpo e suas relações com a natureza.
2121
Gaston Bachelard (1998) aborda a questão da “dialética entre o exterior e o interior” na sua obra A Poética
de Espaço, destacando que “na superfície do ser, nessa região em que o ser quer se manifestar e quer se ocultar,
os movimentos de fechamento e abertura são tão numerosos, são frequentemente invertidos, tão carregados de
hesitação, que poderíamos concluir com esta fórmula: o homem é o ser entreaberto” (BACHELARD, 1998, p.
225). Dessa forma, podemos compreender o corpo como uma porta ou janela para o exterior e o interior do ser
humano, visto que por ele transitam as forças que se digladiam entre o exterior e o interior do ser, por
conseguinte, era esta “via de trânsito” que os jesuítas queriam controlar com as missões.
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Toda a lógica do processo de colonização e catequização do índio pautou-se em
inserir ao aborígene um elemento novo e estranho em suas vidas: o processo civilizatório,
entendido aqui, superficialmente, como a conversão do bárbaro (índio) em civilizado (modelo
do homem europeu), da cultura profana (pagã) em cultura sagrada (cristã). De qualquer
maneira o que conta é: como proceder a tal plano?
Isto posto, chegamos à conclusão de que a ação jesuítica se baseava na aldeia por
ela ser “um local previamente escolhido pelos colonizadores para onde seriam trazidos os
indígenas provados infensos à conversão por puro e pacífico ‘convencimento’” (NEVES,
1978, p. 118). Notamos que a Aldeia é o centro (geográfico, político, militar e religioso), é
um espaço criado pela cultura cristã, um lugar fixo, onde deslocados da natureza profana, os
nativos eram mais facilmente convertidos.
Este jogo de opostos aparece constantemente não só como característica da
produção de Vieira, mas de um momento literário efervescente no século XVII, o Barroco. As
figuras de linguagem (antíteses, paradoxos, oxímoros, quiasmos) expressam perfeitamente o
sentimento de conflito existencial e contradições que marcam a época, como dito
anteriormente.
Estas discussões sobre o corpo e alma demonstram o quanto estas diferenças eram
extremamente importantes para os jesuítas no processo de catequização dos índios. Não só
explicar os planos ardilosos do diabo, mas ainda dar ao público o verdadeiro significado do
valor de uma alma, era o grande objetivo do padre Antônio Vieira neste sermão. O uso deste
jogo contraditório entre corpo e alma permitia ao jesuíta convencê-los de que suas práticas
gananciosas eram ilícitas e pecaminosas à medida que não se preocupavam de nenhuma forma
com a escravização desenfreada dos índios e a exploração de sua mão de obra, mesmo
mediante as sanções dos jesuítas e da Coroa ou ainda que isto representasse a condenação de
suas almas.
Sendo a alma o foco do sermão de Vieira, ele questiona ao público: “Pesai
primeiro o que é uma alma, pesai primeiro o que vale, e o que custou, e depois eu vos dou
licença que a vendais embora. Mas em que balanças se há de pesar uma alma? Nas balanças
do juízo humano não, porque são mui falsas”, continua, “Tomai as balanças do demônio na
mão, ponde de uma parte o mundo todo, e da outra uma alma, e achareis que pesa mais a
vossa alma que todo o mundo” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 103-104).
Em seguida, convida o público a pôr em prática tal contrato a fim de que se
verifique se é um bom partido e indaga o que seria de um homem que vendesse a sua alma ao
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demônio e recebesse como pagamento o mundo. A resposta é um prelúdio para atacar
diretamente os fazendeiros do Maranhão: “Que lhe aproveita ao ser senhor de todo o mundo,
se tem sua alma no cativeiro do demônio? – Oh! Que divina consideração! Alexandre Magno
e Júlio César foram senhores do mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no inferno, e
arderão por toda e eternidade” (VIEIRA (1653)a, 2008, p. 104).
A segunda parte do sermão, Vieira finaliza com uma ofensiva direta aos
fazendeiros:
A que diferente preço compra hoje o demônio as almas, do que oferecia por elas
antigamente! Já nesta nossa terra vos digo eu! Nenhuma feira tem o demônio no
mundo onde lhe saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os reinos
do mundo por uma alma, no Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa pra
comprar todas: não é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer cidades,
nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e dois
tapuias, e logo está adorado com os ambos os joelhos [...] – Oh! Que feira tão
barata! Negro por alma, e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses
poucos dias que viver, e tua alma será minha escrava por toda a eternidade, enquanto
Deus for Deus. Este é o contrato que o demônio faz convosco, e não só lho aceitais,
senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima. (VIEIRA (1653), 2008a, p. 106).
Nessa prédica, o missionário utiliza o valor das almas para demonstrar que no
Maranhão elas são vendidas a um preço irrisório, isto é, os fazendeiros estão mais
preocupados em escravizar os índios (corpo e alma) do que em salvar as suas próprias almas
perante a Igreja. No trecho acima, Vieira ainda faz alusão ao negro comparando a alma dos
fazendeiros como mais negra que o próprio negro. Aqui, o jesuíta traz o negro ao palco da
discussão. Sobre o negro, faremos algumas considerações no item 2.1.
Na terceira parte do sermão, segunda da exposição, Vieira demonstra sua
habilidade de bom pregador, bom amigo, pois avisa aos fazendeiros do Maranhão do perigo
que corriam e tenta convencê-los de que, naquela Quaresma, o que Deus queria é que eles
parassem de transgredir e libertassem os índios para que houvesse perdão de seus pecados.
- Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, o qual é o jejum que quer
Deus de vós esta Quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir
livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão, estes
são os que Deus me manda que vos anuncie. – Cristãos, Deus me manda
desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado
mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vós ides direitos ao
inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes
de vida (VIEIRA (1653), 2008a, p. 108).
Logo em seguida, o jesuíta critica os cativeiros injustos, essa escravização ilegal
do indígena, visto que tal atitude dos fazendeiros contrariava os planos da Companhia de
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Jesus: “Sabeis quem traz pragas às terras? Cativeiros injustos. Quem trouxe ao Maranhão a
praga dos holandeses? Quem trouxe a pragas das bexigas? Quem trouxe a esterilidade? Estes
cativeiros” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 109).
Existe no texto dentre outras figuras uma que se destaca, a alegoria, recurso que o
orador utiliza para fazer a plateia se lembrar da Nação de Israel que vivia no Egito, cativa do
faraó. Esse cativeiro motivou a ira de Deus que convocou Moisés e seu famoso cajado a
lançar as pragas ao Egito.
Vieira lembra que, ao permitir que Moisés levasse os escravos do Egito, o Faraó,
com todo o seu poder, tentou recuperá-los, mas o que aconteceu? “Abre-se o Mar Vermelho,
para que passassem os cativos a pé enxuto – que sabes Deus fazer milagres para libertar
cativos” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 110). O jesuíta destaca ainda a descrição de Moisés da
passagem bíblica no Êxodos (15, 10.12): “que caiu sobre eles e os afogou o mar, e os comeu e
engoliu a terra” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 110), questionando: “se os afogou o mar, como os
tragou a terra”, ele próprio responde: “Aqueles homens, como nós, tinham corpo e alma: os
corpos afogou-os a água, porque ficaram no fundo do mar; as almas tragou-as a terra, porque
desceram ao profundo do inferno” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 110).
É interessante como algumas imagens são recorrentes na imaginação humana e se
exteriorizam através dos arquétipos22 (JUNG, 1996) e símbolos isomorfos (DURAND, 1997)
em diferentes tempo e espaço. A passagem do Mar Vermelho, em que o mar traga os corpos,
e a terra traga as almas, apresenta um esquema de ritmização da queda (DURAND, 1997, p.
215) muito diferente do esquema do peixe engolidor, ritmização do engolimento, de que
iremos tratar mais à frente, no quarto capítulo, no Sermão de Santo Antônio aos peixes, e que,
ao longo da análise destes sermões, leva-nos para os arquétipos cíclicos23 propriamente ditos.
Ao citar a passagem bíblica do Mar Vermelho como exemplo da punição para
aqueles que pecam, porque cativam, Vieira utilizou duas imagens catamórficas muito
interessantes: o abismo e o esmagamento. O fundo do mar é o lugar do abismo e a queda das
águas sobre os soldados e o Faraó representam o esquema do esmagamento. Durand (1997)
22
Para Jung (1996), os arquétipos são entendidos como resíduos arcaicos, isto é, formas mentais cuja presença
não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas,
representando uma herança do espírito humano (JUNG, 1996, p. 63).
23
Arquétipos cíclicos são aqueles esquemas da imaginação humana que se repetem representados pelos símbolos
cíclicos, do eterno retorno, da repetição, como: o ano novo, as estações do ano, as fases da lua, que estão
relacionadas na imaginação humana às plantações e o seu ciclo, aos ciclos menstruais, aos cortes de cabelo, à
piracema, à circuncisão, às cerimônias iniciáticas (batismo, formaturas, promoções), práticas orgiásticas
(carnaval, bailes), etc.
59
lembra que numerosos mitos e lendas põem a tônica no aspecto catastrófico da queda, da
vertigem, da gravidade ou do esmagamento (p. 113).
Essa passagem bíblica usada por Vieira possui símiles e silogismos rigorosos que
funcionam como argumentos para dizer que o povo que mantinha os índios cativos não os
libertava porque não conhecia a Deus, eram homens faltosos de Fé – e coloca Fé em
maiúsculo no texto para torná-la algo de real significância: “Todos ao inferno, sem ficar
nenhum; porque onde todos perseguem, e todos cativam, todos se condenam” (VIEIRA
(1653), 2008a, p. 110). Repete constantemente o alerta de deixarem as transgressões, pois o
inferno é o lugar dos que cativam.
Na quarta parte do sermão, primeira da confirmação, deparamo-nos com um
Vieira preocupado com as questões sociais do Maranhão: “o projeto da Companhia de Jesus
de catequizar os nativos, convertê-los em leais vassalos da Coroa portuguesa reunindo-os nos
chamados aldeamentos d'el-rei, administrados exclusivamente pelos jesuítas” (NEVES), tal
projeto de concorrer com o duro pragmatismo dos colonos que, no Maranhão e no Pará,
alegavam não ter mão de obra disponível que não fosse o trabalho forçado dos índios.
Mediante tais complicações, Vieira exprime a sua indignação à desumana exploração de que
os índios eram vítimas, nesta exclamação: "Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e
essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!" (VIEIRA (1653), 2008a, p. 112).
O jesuíta reconhece que “este povo, esta República, este Estado, não se pode
sustentar sem índios” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 112) e questiona ao público: “Quem nos há
de ir buscar um pote de água, ou um feixe de lenha? Quem nos há de fazer duas covas de
mandioca? Hão de ir nossas mulheres? Hão de ir nossos filhos?” (idem). Mas argumenta que
“melhor é sustentar do suor próprio do que do sangue alheio” (idem).
Vieira não era contra a escravidão do aborígene. Ao reconhecer que um povo, um
Estado, uma República não se constroem sem índios, Vieira ratifica a necessidade de mão de
obra “escrava”, isto é, braços escravos são necessários para que uma Nação se edifique, pois
reconhece que, no caso específico dos colonos maranhenses, é melhor se sustentar do sangue
alheio do que do suor próprio.
Mais do que sangue derramado, o que o jesuíta chama atenção é para os inúmeros
maus-tratos que os índios sofriam pelos colonizadores fazendeiros, visto que tal atitude ia de
encontro aos planos de catequização dessas almas. Para enfatizar essa argumentação, o padre
recorre às imagens do corpo novamente, “Direis que os vossos chamados escravos são vossos
pés e mãos” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 112), e faz uma análise comparativa da mutilação do
60
corpo para salvação da alma: “Quem há que não ame muito o seu braço e a sua mão? Mas se
nela lhe saltaram herpes, permite que lha cortem, por conservar a vida” (idem) e conclui: “O
mesmo digo do nosso caso. Se para segurar a consciência e, para salvar a alma, for necessário
perder tudo, e ficar como um Jó, perca-se tudo” (idem).
É interesse notar que a mutilação do corpo na ideologia jesuítica representa a
purificação deste e a salvação da alma; processo que compõe as práticas pedagógicas
desempenhadas pelos jesuítas nas escolas com os castigos corporais. Porém, os jesuítas não
castigavam com suas próprias mãos, pois havia quem praticasse tais atos.
Após esta sugestão de mutilação ao público, Vieira atenua o discurso, revelando
uma postura soberana e política mais atuante, ao pronunciar:
Mas bom ânimo, senhores meus, que não é necessário chegar a tanto nem a muito
menos. Estudei o ponto com toda a diligência e com todo o afeto, e, seguindo
opiniões mais largas e mais favoráveis, venho a reduzir as coisas a estado que
entendo que, com muito pouca perda temporal, se podem segurar as consciências de
todos os moradores deste Estado, e com muitos grandes interesses podem melhorar
suas conveniências para o futuro. Dai-me atenção. (VIEIRA (1653), 2008a, p. 113)
O jesuíta finaliza esta parte do sermão assumindo uma função tripla: político
(legislador), juiz e sacerdote. Vieira aponta as diversas situações em que vivem os índios no
Maranhão e suas condições legais de liberdade e escravização, pondo termos a cada situação e
especificando as pertinências de atuação dos fazendeiros em relação a estes: “Todos os índios
deste Estado, ou são os que servem como escravos, ou os que moram nas aldeias de El-rei
como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural e ainda maior liberdade”, continua, “os
quais por esses rios se vão comprar ou resgatar – como dizem – dando o piedoso nome de
resgate a uma venda tão forçada e violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos”
(VIEIRA (1653), 2008a, p. 113).
Vieira esclarece ao público as três posições sociais (sob a ótica do colonizador)
que os índios exerciam na colônia: 1- os que servem como escravos, 2 - os que moram nas
aldeias de El-rei como livres e 3 - os que vivem no sertão em sua natural e ainda maior
liberdade; sendo este último grupo o de maior número de vítimas da violência dos
fazendeiros. Todavia, não se pode esquecer que os elencados no primeiro grupo, um dia já
estiveram no terceiro, e sobre esta questão Vieira não silencia, intervindo com uma proposta
politicamente polêmica, mas juridicamente justa, se levados em consideração os documentos
legislativos sobre a liberdade dos índios na época, visto que, em 1652, El-Rei D. João IV
confere, através de missiva, plenos poderes e jurisdição para bem gerir causa indígena e, em
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1653, o Capitão-Mor do Maranhão recebe, no seu regimento, uma Ordem Régia de pôr em
liberdade todos os índios cativos. Tal ordem, só foi publicada algum tempo depois da chegada
de Vieira ao Maranhão (NEVES, 1997, p. 260).
Nestes termos, o missionário prossegue no sermão: “Quanto àqueles que vos
servem, todos nesta terra são herdados, havidos, e possuídos de má-fé, segundo a qual não
farão pouco – ainda que o farão facilmente – em vos perdoar todo o serviço passado.”,
continua, “Contudo, se depois de lhes ser manifesta esta condição de sua liberdade, por serem
criados em vossa casa, e com vossos filhos, ao menos os mais domésticos, espontânea e
voluntariamente vos quiserem servir, e ficar nela, ninguém, enquanto eles tiverem esta
vontade, os poderá apartar de vosso serviço” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 113). Aqui, Vieira
deixa claro aos fazendeiros que estão perdoados por terem havido tais índios de má-fé e ainda
atenua que se estes índios quiserem servi-los voluntariamente, ninguém os poderá tomar,
portanto, são índios própria e inteiramente cativos. Em seguida, o jesuíta argui: “E que se fará
de alguns deles, que não quiserem continuar nesta sujeição?” (idem), e responde:
Estes serão obrigados a ir viver nas aldeias de El-rei, onde também vos servirão na
forma que logo veremos. Ao sertão se poderão fazer todos os anos entradas, em que
verdadeiramente se resgatem os que estiverem – como se diz – em cordas, para ser
comidos, e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro. Assim serão
também cativos todos os que sem violência forem vendidos como escravos de seus
inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o
Estado, o ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das quatro
religiões, carmelitas, franciscanos, mercenários e da Companhia de Jesus. Todos os
que deste juízo saírem qualificados por verdadeiramente cativos, se repartirão aos
moradores pelo mesmo preço por que foram comprados. E os que não constarem
que a guerra em que foram tomados fora justa, que se fará deles? Todos serão
aldeados em novas povoações, ou divididos pelas aldeias que hoje há, donde ,
repartidos com os demais índios delas pelos moradores, os servirão em seis meses
do ano alternadamente de dois em dois, ficando os outros seis meses para tratarem
de suas lavouras e famílias (VIEIRA (1653), 2008a, p. 113).
Após essa exposição classificatória do quadro situacional do indígena em relação
à colonização no Maranhão, Vieira encerra enfatizando que de alguma maneira todos os
índios deste Estado servirão aos portugueses, ou como própria e inteiramente cativos, que são
os de corda, os de guerra justa, e os que livre e voluntariamente quiserem servir, como foi dito
dos primeiros; ou como meio cativos, que são todos os das antigas e novas aldeias, que pelo,
bem e conservação do Estado, consta que, sendo livres, se sujeitaram a servir e ajudar a
metade do tempo de sua vida. Só resta saber qual será o preço destes que chamamos meio
cativos, ou meio livres, com que se lhes pagará o trabalho do seu serviço (VIEIRA (1653),
2008a, p. 113).
62
Segundo Neves, “Vieira propõe, em Sermão da Primeira Dominga da Quaresma,
um plano de modo a obter um convívio entre as posições dos leigos portugueses e os
membros da Companhia de Jesus, no Maranhão, no que tange à questão do trabalho gentílico”
(NEVES, 1997, p. 185) e, continua, “é um plano geral que mostra bem a maneira de pensar
os problemas políticos – ou a maneira de conhecer a disposição das coisas no mundo –
integradamente” (idem). Para os jesuítas era crucial o estabelecimento de formas de
centramento em suas ações na colônia. Este plano não é apenas um plano político, mas
também econômico (oferece-se como um bom negócio mercantil), religioso e social, visto que
“há um esforço de disciplinar a escravidão, de impor regras claras, fixas, aceitas pelas partes
(em litígio; não se fala da opinião dos indígenas quanto ao mesmo)” (NEVES, 1997, p. 185) e
“a lei parece a forma possível aos jesuítas de regular a situação conflituosa; a lei é tão comum
a todos quanto o é a Coroa” (idem).
Não se deve perder de vista, no entanto, que o plano de Vieira não é um projeto de
extinção do trabalho indígena na Colônia, “Não é contra a escravidão – como acusaram os
senhores locais. É contrário ao que considera cativeiro injusto” (NEVES, 1997, p. 186), é,
antes, um discurso de negociação (idem), um acordo que propõe regras de comportamento em
comum a si e aos senhores interessados no trabalho escravo “indígena”.
Na quinta parte do sermão, segunda da confirmação, o jesuíta traz a seguinte
indagação: “Não será melhor perder índios por serviços de Deus, que perdê-los por castigo de
Deus?” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 115), argumentando que quem se não contentar e não se
satisfizer disto, uma das duas é: ou não é cristão, ou não tem entendimento. O jogo ideológico
do padre não abre mão de colocar Deus no centro do debate.
Esta postura, Vieira já defendia em missiva escrita ao padre Francisco de Morais,
em 6 de Maio de 1653 (VIEIRA, 2008, p. 235): “[...] nenhuma cousa faço que não seja com
Deus, por Deus e para Deus; e para estar na bem-aventurança só me falta o vê-Lo, que seria
maior gosto, mas não maior felicidade” (idem).
Voltando ao sermão, o jesuíta apresenta os males que anunciou: “O mal é um só,
que será haverem alguns particulares de perder alguns índios, que eu vos prometo, que sejam
mui poucos” (idem). Sobre esta questão corrobora Neves (1997): “O plano jesuítico que não
quer ser assim adjetivado) oferece-se como um bom negócio. Vieira pondera em termos quase
‘mercantis’, em sua expressão vocabular mesma, o que o proposto trará de positivo. Ganharse-á em que haverá poucas perdas de índios” (p. 187).
Quanto aos bens, o padre destacou quatro, como os mais consideráveis:
63
O primeiro é ficar com as consciências tranquilas, ou seja, tirar-se-á este povo de
pecado mortal; “vivereis como cristãos, confessar-vos-eis como cristãos; morrereis como
cristãos, testareis de vossos bens como cristãos; enfim, ireis ao céu, não ireis ao inferno, ao
menos certamente, que é triste coisa” (VIEIRA, 2008, p. 236).
O segundo plano é que os colonos retirassem de suas casas esta maldição,
argumentando que não há maior maldição numa casa, nem numa família, que servir-se com
suor e com sangue injusto. Tudo vai para trás, nenhuma coisa se logra, tudo leva ao diabo.
O terceiro bem é que por este meio haverá muitos resgates, com que se tirarão
muitos índios, que doutra maneira não os haverá. Vieira coloca a importância dos resgates de
índios que se encontravam no sertão, em cordas, para ser comidos, que poderiam se qualificar
como verdadeiramente cativos dos fazendeiros.
O quarto e último bem é que feita tal proposta, seria digno de ir às mãos de Sua
Majestade, com o intuito de que Sua Majestade a aprove e a confirme. Utilizando o
conceptismo, faz um jogo com as palavras afirmando que quem pede o ilícito e o injusto,
merece que lhe neguem o lícito e o justo; e quem requer com consciência, com justiça e com
razão, merece que lhe façam.
Este último bem, como se refere Vieira, expressa claramente a proximidade do
jesuíta com o Rei D. João IV, visto que o missionário, além de representar os interesses da
Ordem (Companhia de Jesus), representava também os interesses de Sua Majestade.
Percebemos aqui a intenção de Vieira em apaziguar os ânimos dos fazendeiros maranhenses
colocando-os em uma posição que agradasse tanto a Fé quanto o Império e, para isso, ousa
citar os limites da jurisdição do Rei, mesmo contra os índios: “El-Rei poderá mandar que os
cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição. Se tal
proposta fosse ao reino, as pedras da rua se haviam de levantar contra os homens do
Maranhão”, continua, “Mas se a proposta for lícita, se for justa, se for cristã, as mesmas
pedras se porão de vossa parte, e quererá Deus que não sejam necessárias pedras nem
pedreiras” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 116).
Na sexta e última parte do sermão, a peroração, padre Vieira enfatiza que só por
esse caminho – toda a proposta que vimos nas partes anteriores – os fazendeiros poderiam
sentir-se com a consciência tranquila e poderiam se salvar, livrando as suas almas do inferno e
propõe:
[...] se o que se pede ainda que temporalmente, é tão pouco, e pode ser que não seja
nada; e as conveniências e bens que daí se esperam são tão consideráveis e tão
64
grandes, que homem haverá tão mau cristão, que homem haverá tão mal entendido,
que homem haverá tão esquecido de Deus, tão cego, tão desleal, tão inimigo de si
mesmo, que não se contente de uma coisa tão justa, e tão útil, que a não queira, que
a não aprove, que a não abrace? Por reverência de Jesus Cristo, cristãos, e por aquele
amor, com que aquele Senhor hoje permite ser tentado, para nos ensinar a ser
vencedores das tentações, que metamos hoje o demônio debaixo dos pés, e que
vençamos animosamente esta cruel tentação, que a tantos nesta terra tem levado ao
inferno, e nos vai, levando também a nós. Demos esta vitória a Cristo; demos esta
glória a Deus, demos este triunfo ao céu, demos este pesar ao inferno, demos este
remédio à terra em que vivemos, demos esta honra à nação portuguesa, demos este
exemplo à cristandade, demos esta fama ao mundo (VIEIRA (1653), 2008a, p. 116).
Salto maior exibe o jesuíta, quando afirma que “saiba o mundo, saibam os hereges
e os gentios, que não se enganou Deus quando fez aos portugueses conquistadores e
pregadores de seu santo nome” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 117). Vieira ratifica que por Deus
e por sua salvação, há sempre quem meta seus interesses debaixo dos pés e argumenta que
não se trata de perda de interesses; ao contrário, “é multiplicá-los, é acrescentá-los, é semeálos, é dá-los à usura” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 117).
Deus para vos sustentar e para vos fazer ricos, não depende de que tenhais um tapuia
mais ou menos. Não vos pode Deus dar maior novidade com dez enxadas que todas
as vossas diligências com trinta? Não é melhor ter dois escravos, que vos vivam
vinte anos, que ter quatro, que vos morram ao segundo? Não rendem mais de dez
caixas de açúcar que cheguem a salvamento a Lisboa, que quarenta levadas a Argel
ou Zelândia? Pois, se Deus é o senhor das novidades da terra, se Deus é o senhor dos
fôlegos dos escravos, se Deus é o senhor dos ventos, dos mares, dos corsários, e das
navegações, se todo o bem ou mal está fechado na mão de Deus, se Deus tem tantos
modos, e tão fáceis de vos enriquecer ou de vos destruir, que loucura e que cegueira
é cuidar que podeis ter bem algum, nem vós, nem vossos filhos, que seja contra o
serviço de Deus? Faça-se o serviço de Deus, acuda-se à alma e à consciência, e logo
os interesses temporais estão seguros: buscai primeiro o reino de Deus, e a sua
justiça, e todas estas coisas se vos acrescentarão (Mt. 6, 33). Mas quando não fora,
nem se seguraram por esta via nossos interesses, faça-se o serviço de Deus, acuda-se
à consciência, acuda-se à alma, e corte-se por onde se cortar, ainda que seja pelo
sangue e pela vida (VIEIRA (1653), 2008a, p. 117-118).
A peroração deste sermão se encerra quando o jesuíta invoca o rei dos reis:
“Senhor Jesus, este é o ânimo, e esta é a resolução, com que estão de hoje por diante estes
vossos tão fiéis católicos” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 118), afirmando que “não há ninguém
aqui que queira outro serviço mais do que servi-vos; ninguém há que queira conveniência
mais do que amar-vos; ninguém há que tenha outra ambição, mais que de estar eternamente
obediente e rendido a vossos pés” (idem). Gradativamente, Vieira arremata a proposta do
sermão: “A vossos pés está a fazenda, a vossos pés estão os interesses, a vossos pés estão os
escravos, a vossos pés estão os filhos, a vossos pés está o sangue, a vossos pés está a vida,
para que corteis por ela e por eles, para que façais de tudo e de todos o que for mais conforme
65
a vossa santa lei” (idem). Visto que a incumbência de vencer o mal cabia aos fazendeiros, o
jesuíta clama pela vitória, por parte de Cristo, contra a maior tentação do demônio, “morra o
demônio, morram suas tentações, morra o pecado, morra o inferno, morra a ambição, morra o
interesse, e viva só o serviço de Deus, viva a fé, viva a cristandade, viva a consciência, viva a
alma, viva a lei de Deus, e que ela ordenar, viva Deus, e vivamos todos, nesta vida com muita
abundância de bens, principalmente os da graça, e na outra, por toda a eternidade, os da
glória” (idem).
Esta conclusão de Vieira, em relação ao sermão, ratifica o plano de tentar
conscientizar os fazendeiros da sua responsabilidade com a terra (colônia), o índio e a coroa,
denominando-os de “vossos tão fiéis católicos”. Os elementos alegóricos “Deus” e “demônio”
conferem agudeza ao antagonismo pregado pelo padre, no intuito de demonstrar aos colonos o
peso do perdão e do pecado, conforme as suas escolhas. O discurso de Vieira equivale a uma
balança que pondera o bem e o mal e aponta as consequências de um e de outro, pois quanto
mais os fazendeiros fizerem o mal (escravizando e maltratando os índios), mais castigados
serão pela ira de Deus.
O crítico literário Alfredo Bosi (2001) observa que os jesuítas se utilizavam da
alegoria como instrumento pedagógico no processo de catequização do aborígene.
Percebemos, no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, que Vieira também se utiliza
deste recurso para pregar aos fazendeiros do Maranhão na defesa dos índios. Mas Vieira não
pregou somente em defesa do aborígene, também defende os negros pelos maus-tratos
sofridos pelos colonos.
2.2 Vieira e os negros
A defesa das almas, no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, não se
restringiu à alma do índio, Vieira também lembrou a venda das almas dos negros (ainda que
considerasse a escravidão negra um “mal necessário”) e partiu em sua defesa: “Oh! Que feira
tão barata! Negro por alma, e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses
poucos dias que viver, e a tua alma será minha escrava por toda a eternidade, enquanto Deus
for Deus” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 116-117), continua, “Este é o contrato que o demônio
faz convosco, e não só lho aceitais, senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima” (idem).
66
É interessante que Vieira, nesse sermão, tenha criticado a escravização do negro,
trazido do continente africano para trabalhar nas lavouras dos colonos portugueses no Brasil.
Fato que pode ser visto como contraditório, visto que tanto a igreja quanto os fazendeiros,
naquele momento, precisavam muito mais de força bruta (física), para suprir as suas
necessidades na colônia. Independente deste ponto de vista, Vieira ainda assim dedicou-se a
criticar a escravização do negro.
De certa forma, o jesuíta ao criticar a escravização dos índios e dos negros, atinge
os fazendeiros no ponto que pretende: a escravização e os maus-tratos aos escravos, os
cativeiros injustos e suas consequências ao processo de colonização. Bosi coloca que “nem se
diga que Vieira foi insensível ao escravo negro preterindo-o no ardor da defesa ao indígena”
(BOSI, 2001, p. 45). De fato como lembra o crítico literário, no Sermão XIV do Rosário,
pregado em 1653 à Irmandade dos Pretos de um engenho baiano, o jesuíta equipara os
sofrimentos de Cristo aos escravos, ideia tanto mais forte quando se lembra que os ouvintes
eram os próprios negros: “Em um engenho sois imitadores de Cristo Crucificado: porque
padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em
toda a sua paixão” (BOSI, 2001, p. 45), continua, “A sua cruz foi composta de dois madeiros,
e a vossa em engenho é de três. (...) Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós
famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo” (idem). Sobre esta questão
também argumenta Neves (1997):
A grande preocupação de Vieira com a unidade humana volta-se para a situação
terrena dos pretos, para as causas da desigualdade de vida entre eles e seus irmãos
brancos, para a disparidade de fortuna entre eles. O ponto mais nitidamente
antagonizado das relações entre uns e outros é a escravidão dos pretos pelos
brancos. Ela é vista antes de tudo como um grande problema moral, já que é a
expressão de uma perversão histórica do Desígnio Divino de uma paz natural entre
irmãos na terra. A escravidão é um ato de força, não de razão (NEVES, 1997, p.
239).
No Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, Vieira argumenta sobre o “valor
das almas”, “Fique-nos, cristãos, que mais vale uma alma que todo o mundo. E é tão
manifesta verdade esta, que até o demônio, inimigo capital das almas, a não pode negar”
(VIEIRA (1653), 1998a, p. 105) e se revolta ao perceber que a imoralidade da escravidão
antes mesmo dos trabalhos dos pretos no campo, começa no próprio tráfico negreiro: “Oh!
Trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh! mercancia diabólica, em que os
interesses se tiram das almas alheias,e os riscos são das próprias!” (VIEIRA, 1998e, p. 37), no
sermão XXVII da série “Maria, Rosa Mística”.
67
No sermão XX da série “Maria, Rosa Mística”, o jesuíta critica a maneira como os
negros são tratados pelos brancos, demonstrando pelas escrituras sagradas, que todos são
iguais, mas os homens preferem antes a distinção à piedade: “O domingo passado, falando na
linguagem da terra, celebraram os brancos a sua festa do Rosário, e hoje, em dia e ato
apartado, festejam a sua os pretos, e só os pretos”, continua, “Até nas coisas sagradas e que
pertencem ao culto do mesmo Deus, que fez a todos iguais, primeiro buscam os homens a
distinção que a piedade” (VIEIRA, 1998d, p. 310).
O missionário aponta três causas, nesta grande república, para a distinção que os
senhores fazem entre si e seus escravos: o nome, a cor e a fortuna. Argumenta sobre cada uma
delas, das quais destacamos algumas passagens: “E se os olhos de Deus, como diz a mesma
Senhora, não olharam para a nobreza e soberania das senhoras, senão para a humildade e
baixeza da escrava: Respexit humilitatem ancillae suae - ditosa a humildade e baixeza dos que
sois escravos, pois não podem deixar de se inclinar piedosamente a ela os olhos de Deus e de
sua Mãe”; “[...] ninguém haverá que não reconheça e venere na cor preta duas prerrogativas
muito notáveis. A primeira, que ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta e
faz mais feios;”, continua, “ a segunda, que só ela não se deixa tingir de outra cor, admitindo a
branca a variedade de todas; e bastavam só estas duas virtudes para a cor preta vencer e ainda
envergonhar a branca”; “Os filósofos, buscando as propriedades radicais com que se
distinguem estas cores extremas, dizem, que da cor preta é própria unir a vista, e da branca
disgregá-la e desuni-la. Por isso a brancura da neve ofende e cega os olhos.”, continua, “ E
não é isto mesmo o que com grande louvor dos pretos, e não menos afronta dos brancos, se
acha em uns e outros?”; “ Dos pretos é tão própria e natural a união, que a todos os que têm a
mesma cor, chamam parentes, a todos os que servem na mesma casa, chamam parceiros, e a
todos os que se embarcaram no mesmo navio, chamam malungos. E os brancos?”, continua,
“Não basta andarem nove meses juntos no mesmo ventre, como Jacó e Esaú, para se não
aborrecerem, nem basta serem filhos do mesmo pai e da mesma mãe, como Caim e Abel,
para se não matarem. Que muito, logo, que sendo tão disgregativa a cor branca, não caiba na
mesma congregação os brancos com os pretos?” (VIEIRA, 1998d, p. 323).
Neste sermão, encontramos um Vieira defensor declarado dos negros, tanto
quanto era dos índios, que não concordava com os maus-tratos que os escravos africanos
sofriam pelos colonos fazendeiros (senhores de engenho). No entanto, nas práticas políticas,
nada pôde fazer de concreto, como fez pelos índios. Sobre esta questão afirma Neves (1997),
68
O comportamento ‘prático’ dos cristãos é capaz de ‘enegrecer’ a sua reputação
religiosa; é capaz de fazer de hereges pessoas ‘mais brancas’ que os cristãos
(‘verdadeiros’; portugueses). Ideologia que desvaloriza o negro (a cor negra
desqualifica) e que poderia levar o discurso a uma concordância com a ‘razão
branca’ para escravizar (tudo o que não fosse ‘branco’, seria ‘negro’, como os
“índios”). Ou a tentativa de demonstrar que “índios” não são “negros” (o que Vieira
faz em outras ocasiões) e que, mesmo que se admitisse a escravidão negra, nela não
estaria a população gentílica (NEVES, 1997, p. 199)
Mais uma vez, o modo prático de atingir o público é feito de forma peculiar, mas
ainda de acordo com a sua verdade, cuja referência vem do foco dos olhos de Deus e de sua
Mãe. A partir daí, o jesuíta desenvolve uma teoria das cores, demonstrando a superioridade da
“cor preta” em relação à “cor branca” demonstra um dos pontos altos de sua percepção
imaginativa. Sobre esta questão observa Neves (1997),
Como a visão é fundamental para o entendimento, Vieira desenvolve uma ideologia
plástica do cenário do mundo. Assim, se se nomina alguém de “preto” e se sua cor é
efetivamente preta, é imperioso tratar do que seja a cor preta. A exterioridade, a
aparência imediata, sensível, visível ao olho não são meros invólucros enganadores
e mistificadores de verdades invisíveis e inacessíveis; não há descontinuidade entre
percepção e conhecimento. Vieira esposa um empiricismo adepto do olhar, da
sensação, da materialidade. (NEVES, 1997,p. 233-234)
O jesuíta destaca na cor preta “duas prerrogativas muito notáveis: A primeira, que
ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta e faz mais feios; a segunda, que só
ela não se deixa tingir de outra cor, admitindo a branca a variedade de todas” e ratifica que
“bastavam só estas duas virtudes para a cor preta vencer e ainda envergonhar a branca”
(VIEIRA, 1998d, p. 323). Vieira coloca em cena uma imagem da cor preta bem diversa do
que pedagogicamente foi ensinado pela Igreja Católica durante a Idade Média: preto é
sinônimo de escuridão, trevas, sombras, ou seja, tudo o que é negativo, perigoso, nefasto. De
maneira geral, na cultura ocidental, o preto possui conotações negativas, mas em outras
culturas assume conotações positivas, como no Oriente (China) significa cor do “dinheiro”.
Assim, “a cor preta é original, mantém-se como ‘nasceu’, não admite misturas ou
nuanças – o que positivamente agrada Vieira amante da máxima nitidez da pureza-de-origem
e de uma taxonomia por contrastes” (NEVES, 1997, p. 234). Vieira sempre usa a dialética dos
contrastes em sua prédicas, não obstante, eleva a cor preta em relação à cor branca, quando
compara os brancos aos negros. “Vieira acha que todos os pretos são, na verdade, um só
preto, porque Deus é único e seu múltiplo é unidade” (idem, p. 234). Mas, se os negros
representam a unidade, a quem Vieira atribui a desunião da humanidade? “Aos brancos, que,
como a neve – sua irmã em propriedades óticas/físicas, portanto radicais (profundas) –
69
‘ofendem e cegam os olhos’ impedindo, assim, a razão, o entendimento, a compreensão da
definitiva união que deve, aqui como lá, reinar” (idem, p. 234).
O antropólogo Victor W. Turner (1974) em seu livro O Processo Ritual afirma
que para a tribo africana dos ndembos, a cor preta possui conotações positivas ou negativas,
como, por exemplo, pode ser símbolo da esterilidade ou da cura. O nsama é um feixe de
sombras malévolas que não deixam as mulheres ndembo parir filhos, mas se se coloca um
feixe de nsama em cima da lama preta, “acredita-se que a argila preta malowa sirva para
‘enfraquecer as sombras causadoras de doenças”, ou seja, possui o poder de curar (TURNER,
1974, p. 95).
Com isso, percebemos que mesmo em outras culturas, a cor preta pode apresentar
seus aspectos positivos em relação à cor branca. Tais signos – preto e branco – podem assumir
diferentes significados, sentidos, conotações, mediante a simbologia que representam nas
diferentes culturas pelo mundo.
No sermão XXVII da série “Maria, Rosa Mística”, vemos como Vieira mobiliza
toda a sua erudição religiosa e literária para tentar convencer os negros do “privilégio” de
serem escravos, o que para nós, hoje, soa como um contra-senso (sic) (RONCARI, 2002,
156): “Escravos – diz S. Paulo – obedecei em tudo a vossos senhores, não os servindo
somente aos olhos, e quando eles vos veem, como quem serve ao homens, mas muito de
coração, e quando não sois vistos, como quem serve a Deus”, continua, “Tudo o que fizerdes,
não seja por força, senão por vontade, advertindo outra vez que servis a Deus, o qual vos há
de pagar o vosso trabalho, fazendo-vos seus herdeiros. Enfim, servi a Cristo” (VIEIRA,
1998e, p. 57)
Sobre isto também ratifica Neves (1997), “eles (os pretos) são e serão altamente
compensados se souberem compreender sua situação de vida terrena e o adequado
comportamento que nela devem ter para alcançar a eterna bem-aventurança” (NEVES, 1997,
p. 240).
Vieira defende o negro contra os maus-tratos, mas não contra a escravidão, vista
como um mal necessário. Mas o jesuíta, utilizando uma tática de convencimento, lembra da
graça que os negros receberam de Deus: “[...] deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter
dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis
como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos
salveis” (VIEIRA, 1998d, p. 339). Assim, o jesuíta encerra o sermão ratificando essa graça:
70
Lá disse S. Paulo, que dividiu Deus o gênero humano em dois povos, gentílico e
judaico, para que o gentio, por emulação do hebreu, e o hebreu, por emulação do
gentio, se animassem e provocassem reciprocamente, não só a receber e conservar a
fé do verdadeiro Deus, mas a se vencer a porfia no exercício mais perfeito da
religião e culto divino (Rom. 10,19). Seja este, pois, o fim desta separação de
irmandades entre brancos e pretos. Os brancos e senhores não se deixem vencer dos
pretos, que seria grande afronta da sua devoção; os pretos e escravos procurem de tal
maneira imitar os brancos e os senhores, que de nenhum modo consintam ser
vencidos deles. E desta sorte, procedendo todos como filhos igualmente da Mãe de
Deus, posto que diferentes na cor, não só conservarão a irmandade natural, em que
Deus os criou, mas alcançarão a sobrenatural e adotiva de seu Filho, herdeiro,
enquanto homem, do cetro de Judá: Judam, et fratres ejus24 (VIEIRA, 1998d, p.
340).
A temática, nesse momento, gira em torno da irmandade natural entre brancos e
pretos, portanto, os pardos são ‘expulsos’ da fraternidade entre brancos e pretos. Mas, não
quer dizer que para Vieira os pardos não sejam importantes; ao contrário, segundo Neves
(1997), “eles teriam força suficiente para separar aqueles que, aqui, são elementos
constituintes de uma ‘irmandade’. Para a ideologia vieiriana, os pardos teriam incorrido em
dois ‘erros’ graves”:
O primeiro seria a própria indefinição de sua cor, que não é extrema e facilmente
determinável pela visão como as outras duas; é cambiante e mesclada, o que, já
vimos, não é uma qualidade positiva no discurso analisado. O segundo é o abandono
de seu cognome religioso (apelido): rompem com uma tradição, trocam por si
mesmos uma nominação (e além do mais prestigiosa como do Rosário, por outra,
como de Guadalupe). Para tanto, a razão seria sua cor “meia entre as duas” extremas
e que os levou a se “extremarem” (palavra de sentido duplo precioso; no infinitivo:
apartar-se distinguir) de ambas. As separações entre os homens obedecem tanto a
motivos de ordem ético-religiosa quanto a razões físico-corporais, estando ambas as
causas em mutável, mas permanente conexão (NEVES, 1997, p. 236).
O sermão é riquíssimo pela crueza com a qual descreve e denuncia a condição da
vida e do trabalho do escravo negro no Brasil. “A grande preocupação de Vieira com a
unidade volta-se para a situação terrena dos pretos, para as causas da desigualdade de vida
entre eles e seus irmãos brancos, para a disparidade de fortuna entre eles” (NEVES, 1997, p.
239).
É importante observar que este sermão “Maria, Rosa Mística” foi pregado na
Bahia, em data incerta, e destaca uma situação interessante: enquanto, no Maranhão, os
escravos eram ainda então exclusivamente indígenas, na Bahia, abundavam os transportados
de África, preferíveis em resistência de trabalho aos que eram descidos do sertão.
24
No sermão, a expressão completa é Jacob autem genuit Judam, et fratres ejus, que significa: “E Jacó gerou a
Judas e seus irmãos”.
71
Note-se que a importação do escravo negro para as lavouras de açúcar ainda não
era uma prática frequente no Maranhão. A mão de obra escrava era predominantemente
indígena. Mas, na Bahia, já havia muitos negros escravos. Sobre isto afirma o historiador
maranhense Mário Meireles (2001):
Em 1678, ensaia-se o chamado estanco da Fazenda Real, logo dois anos depois
extinto por não ter deixado o lucro que se esperava para o custeio da Colônia, que
continuava deficitária, e substituído, depois de posta a concessão em arrematação,
pela Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, sociedade de assentistas
constituída em Lisboa. O plano era o mesmo do Estanco Real; em supri-la de suas
necessidades em gêneros, fazendas e utensílios, inclusive escravaria negra,
fomentando-lhe a lavoura e a indústria (MEIRELES, 2001, p. 195).
Assim, percebe-se que a luta dos jesuítas contra a escravidão indígena, se não
atingiu o seu objetivo maior, alguns resultados conseguiu, de tal maneira que forçava os
colonos fazendeiros a buscaram os negros trazidos da África para trabalharem em suas
lavouras.
É importante ressaltar, portanto, a abrangência do discurso do missionário, que
retrata, no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma – pregado no Maranhão –, temáticas,
como a escravidão do negro, que atingiam não só os colonos fazendeiros maranhenses, mas
também os colonos fazendeiros de outras regiões do Brasil-Colônia que escravizavam o
negro. A imaginação social do padre Antônio Vieira em relação aos negros na sociedade
colonial brasileira no século XVII é assunto fértil que não poderíamos deixar de suscitar nesta
pesquisa. A relação do jesuíta com as questões jurídicas de seu tempo passam a ser, agora, o
foco da nossa pesquisa.
2.3 O “legislador” e o “jurista”: a criação dos cativeiros justos
Aristóteles (2005), em A retórica, definia três tipos de retórica (ou gêneros do
discurso) no uso da linguagem: a judicial ou forense, o deliberativo ou político e o
demonstrativo ou epidíctico. Os discursos deliberativos ou são exortações ou dissuasões, e
visam mostrar a vantagem ou a desvantagem de uma determinada ação. Os discursos judiciais
ou são acusações ou defesas sobre coisas feitas no passado, e visam mostrar a justiça ou a
72
injustiça do que foi feito. Os discursos epidícticos louvam ou censuram algo, e visam mostrar
a virtude ou defeito de uma pessoa ou coisa (ARISTÓTELES, 2005, p. 38).
Vieira usufruía muito bem dessas três modalidades da retórica, mas destacaremos,
neste momento, o discurso judicial ou forense que é desenvolvido pelo jesuíta com maior
propriedade neste Sermão da Primeira Dominga da Quaresma.
Há uma passagem do sermão em que Vieira, além de grande pregador, demonstra
sua habilidade discursiva forense, utilizando, os textos da escritura sagrada: como os relativos
à fuga de Moisés do Egito, através do Mar Vermelho, para justificar que todo o povo, que
aprisiona e escraviza outro, será punido com o inferno: “Abre-se o Mar Vermelho, para que
passassem os cativos a pé enxuto – que sabes Deus fazer milagres para libertar cativos”
(VIEIRA (1653), 2008a, p. 110). Quanto ao faraó e seus soldados foram castigados,
esmagados pela força das águas que caíram sobre eles quando o mar se fechou.
Ao lembrar que os cativeiros injustos resultam em punições divinas para aqueles
que cativam, o jesuíta desenvolve também a noção de cativeiros justos. Fala inclusive das
pragas jogadas sobre o povo egípcio e dos perigos das tentações com as quais o demônio se
mascara para nos enganar. Mas, o próprio Vieira desenvolve, no sermão, teorias ou
argumentos que justifiquem a necessidade dos cativeiros justos ou cativeiros lícitos.
Como bom “jurista”25, o jesuíta traz a questão o que é lícito e ilícito e estabelece
um jogo dialético e lúdico com as escrituras sagradas, no qual insere o poder e a soberania do
Rei como artifício de persuasão de sua argumentação: “El-Rei poderá mandar que os cativos
sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição. Se tal proposta
fosse ao reino, as pedras da rua se haviam de levantar contra os homens do Maranhão. Mas se
a proposta for lícita”, continua, “se for justa, se for cristã, as mesmas pedras se porão de vossa
parte, e quererá Deus que não sejam necessárias pedras nem pedreiras” (VIEIRA (1653),
2008a, p. 116).
Fiel aos postulados eclesiásticos, o jesuíta possuía a mesma postura ambígua e
contraditória de partes da sua Igreja, como podemos observar nesta pregação: "Não é minha
tenção que não haja escravos, antes procurei (...) que se fizesse (...) [o] cativeiro
lícito"(VIEIRA (1653), 2008a, p. 116). Podemos pensar que a criação do cativeiro lícito foi
uma forma de conciliar interesses, uma concessão de Vieira para amenizar os problemas que
25
É preciso destacar que não estamos afirmando que o padre Antônio Vieira tenha sido um advogado ou juiz
formado, atuando no mundo jurídico. Mas não se pode negar seu conhecimento em Direito Canônico. A nossa
intenção é tão-somente demonstrar o domínio e o uso do discurso jurídico para cumprir os seus objetivos na
Colônia.
73
tinha com os colonos no Maranhão. Assim, classifica as populações que tinham a
possibilidade de serem escravizadas no Maranhão em três grupos: 1 - "os escravos que já
estão na cidade", que tem o direito de escolher se continuam a trabalhar ou não; 2 – "os que
vivem nas aldeias de El-Rei como livres" e 3 - os que "vivem nos sertões", de que só
poderiam ser trazidos aqueles que estivessem presos em tribos inimigas e para serem mortos,
o que justificaria a escravidão.
O sermão foi pregado no dia 2 de março de 1653 e Vieira termina exortando os
cristãos do Maranhão para que abandonassem procedimentos errados e buscassem primeiro o
Reino de Deus, devendo, portanto, libertar os índios mantidos em cativeiro. Ele retoma a ideia
do início sobre as tentações de Cristo para fazer admirável desfecho: “Morra o demônio,
morram suas tentações, morra o pecado, morra o inferno, morra a ambição, morra o interesse;
viva só o serviço de Deus, viva a Fé...” (VIEIRA (1653), 2008a, p. 118). Em carta de 22 de
maio ao provincial, o jesuíta parece ter sido ouvido pelos fazendeiros do Maranhão e ficou a
impressão de que as suas imprecações de fato calaram fundo nas almas dos ouvintes. Mas
tudo era uma questão de tempo para que voltassem os problemas.
Por enquanto, interessa-nos observar que, em relação ao Sermão da Quinta
Dominga da Quaresma, o jesuíta desenvolve este recurso discursivo judicial na intenção de
defender os seus interesses como representante da Companhia de Jesus. Sobre isto, afirma
Luiz Roncari (2002): “A atuação de Vieira, como membro da Companhia de Jesus, nem
sempre coincidiu com os interesses dos colonos, com a política da Coroa ou mesmo com a do
Santo Ofício. O que não quer dizer que tenha sido um defensor extremado das aspirações das
vítimas dessas forças, ou seja, dos índios, negros e judeus” (RONCARI, 2002, p. 148)
Segundo Roncari (2002), Vieira defende os índios dos colonos fazendeiros
maranhenses, mas os quer aldeados e convertidos, sob o controle da Companhia. Demonstrase sensível à escravização dos negros, e sofre com ela, mas não a questiona, pregando aos
escravos antes a resignação aos maus-tratos. Quanto aos judeus, opõem-se às perseguições,
confiscos de bens, prisões e torturas que eles sofriam por parte do santo ofício, mas seus
interesses humanitários casam-se com interesses práticos: a importância dos capitais judeus
para a retomada da expansão comercial portuguesa (RONCARI, 2002, p. 150).
A historiadora Flávia Lages de Castro (2007) também corrobora com esta visão ao
afirmar que a questão da escravização do indígena é muitas vezes justificada com uma obra
primorosa de marketing (se é que podemos assim chamar – adverte a autora) dos jesuítas que,
interessados em ter os índios livres para a catequese não desejavam que estes fossem
74
escravizados, e cita: “Um famoso jesuíta do período colonial, Padre Antônio Vieira, dizia
serem os índios preguiçosos e pouco afeitos ao trabalho braçal”, mas nas reduções jesuíticas
os índios não pareciam ser preguiçosos nem inábeis para montar toda uma estrutura física e
agrícola dentro dos interesses dos religiosos (CASTRO, 2007, p. 305).
Enfim, não pretendemos afirmar que Vieira exercia um cargo jurídico ou
advogava pela Companhia de Jesus, mas percebemos em seus discursos os aspectos de um
discurso jurídico, que sem dúvida, na formação do jesuíta, era fortemente respaldado no
Direito Canônico e defendia antes os interesses da Companhia e da Coroa. Outro fator
importante é verificar até que ponto tais discursos influenciaram diretamente na sociedade
maranhense da época, os seus impactos, rupturas e continuidades. Mas, analisaremos mais
detalhadamente estas questões no penúltimo capítulo desta pesquisa.
75
Capítulo 3
Figura 04: Vieira e os índios indo para as missões.
E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados de
Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que
o M. M – Maranhão, M – murmurar, M – motejar, M – maldizer, M –
malsinar, M – mexericar, e, sobretudo, M – mentir: mentir com as
palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de
todos e por todos os modos aqui se mente (VIEIRA (1654), 2008b, p.
11).
76
3. NO MARANHÃO ATÉ O SOL E OS CÉUS MENTEM
O Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, proferido no púlpito da igreja de
Santo Antonio, em abril de 1654, foi tido como o mais brilhante, mas também o mais furioso,
magoado e indignado dos sermões de Vieira. Para resumir mais adequadamente, este ficou
conhecido como o “sermão das verdades”.
Uma frase marca acentuadamente a situação ideológica em que o jesuíta
desenvolve o sermão: “No Maranhão até o sol e os céus mentem” (VIEIRA (1654), 2008b, p.
09). A força dessa personificação, animização ou prosopopeia demarca bem a revolta de
Vieira após um ano de incursões no Maranhão, alguns resultados positivos (no processo de
evangelização e expansão das áreas de atuação no Pará e Amazonas)26 e muitos negativos (os
colonos continuavam a escravizar e negociar os índios). Lembrando que Vieira viajava muito,
toda a sua atuação missionária, diplomática, política, foi realizada com idas e vindas à Corte o
que o afastava constantemente de sua luta local.
Quanto à estrutura do sermão, Vieira mantém a tradição aristotélica da retórica
clássica, no entanto, divide-o em sete partes, assim distribuídas: I parte – introito (exórdio ou
introdução); II, III e IV partes – exposição; V e VI partes – confirmação; e VII – peroração.
No introito ou introdução, o jesuíta expõe o contundente tema do sermão:
“Temos juntamente hoje no Evangelho duas coisas que nunca podem andar juntas: a verdade
e a mentira. E por que não podem andar juntas, por isso as temos divididas: a verdade no
pregador, a mentira nos ouvintes; o pregador muito verdadeiro, o auditório muito mentiroso”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 09). Logo no início de sua prédica, Vieira provoca o auditório,
colocando-se na condição de mensageiro da verdade em uma terra onde só há mentirosos.
Essa polaridade entre pregador e ouvintes expressa a rivalidade e o clima de conflitos entre
jesuítas e colonos fazendeiros no Maranhão do século XVII.
Seus ataques verbais, se assim podemos considerar, atingiam principalmente os
colonos açorianos, portugueses, que foram para o Maranhão e não tinham interesse em
povoar, mas sim de enriquecer rapidamente e retornar à Metrópole o quanto antes. E como os
índios não representavam o mesmo “ser” para jesuítas e colonos, ambos querelavam por
razões diferentes.
26
Ver João Felipe Betendorf, Chronica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão,
1910.
77
Do alto de sua autoridade, continua Vieira a atacar o auditório e aponta que, dos
muitos modos de mentir, há três com os quais mentiram estes maus ouvintes: “Mentiram,
porque não creram na verdade; mentiram porque impugnaram a verdade; mentiram porque
afirmaram a mentira. Não crer a verdade é mentir com o pensamento; impugnar a verdade é
mentir com a obra; afirmar a mentira é mentir com a palavra” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 09).
Exercitando o conceptismo (jogo de ideias), o padre lembra aos ouvintes que “Tudo isto tinha
lhe profetizado a Cristo seu pai Davi, quando disse: In multitudine virtutis tuae mentientur tibi
inimici tui27.” (idem, p. 10), destacando os três modos pelos quais os inimigos de Cristo
mentir-lhe-iam: “mentir-vos-ão não crendo; mentir-vos-ão impugnando; menti-vos-ão
mentindo como fizeram hoje”, e faz um rol exemplificativo de cada situação, lembrando ao
auditório que Cristo lhes disse que era Filho de Deus, a quem eles chamavam pai sem
conhecê-Lo, disse-lhes ainda que os que recebessem e observassem sua doutrina viveriam
eternamente, e aqui mentiram não crendo a verdade (I). Disse-lhes mais ainda, que Abraão
desejara ver o seu dia, isto é, o dia em que havia de descer do céu à terra, e nascer homem
entre homens, e que, finalmente, O vira com grande júbilo e alegria da sua alma, mas
questionaram a Cristo como poderia ter conhecido Abraão com tão pouca idade, e aqui
mentiram impugnando a verdade (II); e , enfim, mentiram afirmando a mentira (III), porque
disseram que Cristo era samaritano e endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes28.
Vieira finaliza este exórdio destacando que “Estas são as mentiras com que os
escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar e desonrar ao Filho de
Deus” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 10), mas enfatiza que nem por isto Cristo ficou afrontado
nem desonrado, uma vez que “tudo o que disseram dele e lhe fizeram foi por inveja, por ódio,
por raiva, por vingança, e quando as causas são estas, as injúrias não injuriam, as afrontas
desafrontam, as desonras honram” (idem, p.11). Nesta passagem, o jesuíta se vale de antíteses
bem trabalhadas para ilustrar as causas pelas quais as mentiras contra Cristo não injuriam, não
afrontam e não desonram, e, como é característico em seus sermões, adverte ao auditório:
“Hei também de dizer-vos uma grande injúria, uma grande afronta e uma grande desonra da
vossa terra.”, continua, “Contudo, ainda que as verdades causem ódio, espero que não haveis
de ficar mal comigo, porque hei de afrontar todos para desafrontar cada um. O discurso dirá
como. Ave Maria” (idem, p. 11).
Interessa observar que além do alvo (a mentira nestas terras), o jesuíta já anunciou
a arma do combate neste sermão, o discurso – a palavra. Não poderia haver arma melhor
27
28
Por ocasião do teu grande poder se convencerão de mentira teus inimigos (Sl. 65,3)
Tu és um samaritano, e tens o demônio. (Jo, 8, 48)
78
para um pregador como o padre Antônio Vieira do que o discurso (a oratória e a retórica),
ainda mais no Maranhão em que se sentia à vontade para ser mais um pregador do que orador.
No entanto, o cenário e o contexto exigiam do jesuíta uma postura de ataque e defesa
simultaneamente e, por estas razões, ao mesmo tempo, que ataca o auditório, “hei de afrontar
todos para desafrontar cada um”, pede que não fiquem mal com ele como forma de defesa aos
efeitos de seus ataques, assim, utiliza a palavra como espada e escudo na luta contra os
fazendeiros do Maranhão.
3.1. Metáfora do Apólogo do Diabo: Maranhão, o Reino da Mentira
Na segunda parte do sermão, a primeira da exposição, Vieira mostra aos ouvintes
sua verdadeira intenção naquele púlpito: a de pregador, e não orador. “A este Evangelho do
Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o domingo das verdades. Para mim todos
os domingos têm este sobrenome, porque em todos prego verdades, e muito claras, como
tendes visto” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 11). A expressão “muito claras” carrega uma
imagem muita rica dos “símbolos espetaculares”, que funcionam como elementos do
imaginário humano que surgem em defesa das “imagens nictomórficas” (das trevas noturnas),
conforme Gilbert Durand (1997), em sua classificação isotópica das imagens29. A mentira,
para Vieira, representa um “mal”, algo sombrio, obscuro, nebuloso: “Mal é dizer mal, mas
depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis bem, é um mal maior sobre o outro mal,
porque é estar obstinado nele” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 10).
Quando dizemos que a expressão “muito claras” está carregada do simbolismo
espetacular, pretendemos demonstrar como o jogo de claro e escuro característico do
movimento Barroco do século XVII, antes de qualquer intenção do próprio autor, era um
reflexo de um inconsciente coletivo compartilhado por uma sociedade europeia em constante
29
Gilbert Durand (1997), em seu livro As Estruturas Antropológicas do Imaginário, fundamenta uma
arquetipologia estrutural das imagens ou classificação isotópica das imagens em dois regimes do simbolismo da
imaginação humana: o Regime Diurno e o Regime Noturno. O primeiro se divide em duas partes: “As faces do
tempo”, em que predominam os símbolos teriomórficos (relacionados à animalidade), os símbolos nictomórficos
(relacionados às trevas) e os símbolos catamórficos (relacionados à queda), que expressam as três grandes
dimensões da angústia do homem diante do tempo e da morte, superadas na segunda parte “O Cetro e o Gládio”,
em que predominam os símbolos diairéticos (relacionados ao corte – espada, gládio), os símbolos ascensionais
(relacionados à subida – alto, escada) e os símbolos espetaculares (relacionados à luz – sol, céu), os remédios ou
antídotos em relação à primeira parte; o segundo também se divide em duas partes: “A descida e a taça”,
caracterizada pelos símbolos da inversão e da intimidade, e “Do denário ao pau”, caracterizada pelos símbolos
cíclicos e rítmicos.
79
transformação, mas, principalmente, impactada pelos conflitos existenciais da época como os
conflitos entre fé versus razão, perdão versus pecado, cristão versus pagão, teocentrismo
versus antropocentrismo, espírito versus corpo; dualismos e contradições que marcaram
acentuadamente as produções dos intelectuais da época: Luís de Gôngora e padre Quevedo
(Espanha), padre Antônio Vieira (Portugal), daí o fato de antíteses, oxímoros, paradoxos,
paralelismos, quiasmos, serem as figuras de linguagem mais utilizadas por esses oradores.
O jesuíta prega verdades “muito claras”, mas se só as verdades já representam
uma oposição em relação à mentira, a expressão “muito claras” acentua o caráter espetacular
destas verdades, porque as eleva ao divino, ao próprio Cristo. Essas verdades são as próprias
palavras e, segundo Durand (1997), “a palavra, homóloga da potência, é isomórfica, em
numerosas culturas, da luz e da soberania do alto” (p. 157). Assim, no sermão, a verdade e a
clareza opõem-se à mentira e à obscuridade, os primeiros pertencem ao reino da luz, os
últimos, ao reino da escuridão.
Vale ressaltar que embora o jogo de claro e escuro fosse um aspecto do Barroco
mais visível nas artes plásticas, “o Barroco literário aprecia fundir a luz à sombra, o que
traduz o conflito resultante do desejo de fundir a fé à razão” (CEREJA, 1994, p. 184), e entre
os escritores do período, Vieira merece destaque por jogar muito bem com estas oposições em
seus sermões.
Voltando ao Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, Vieira aponta as verdades
de que pretende tratar: “Por me não sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive
considerando comigo que verdades vos diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa
terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade”, continua, “Mas que verdade será esta? Não
gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade” (VIEIRA
(1654), 2008b, p. 11).
Este trecho do sermão é, talvez, a expressão mais impactante de Vieira no
Maranhão, uma vez que, historicamente, esta frase tornou-se quase um mito na vida do
maranhense. O historiador maranhense Mário Meireles (2001) lembra que temos uma história
nada feliz dos nossos dois primeiros governadores:
Não foi dos mais felizes este primeiro período do Estado colonial recém-fundado.
Com o primeiro governador, vieram mais alguns casais para a colonização; não
obstante, desenvolvimento econômico, progresso material, não houve, que ele
cuidou antes de seus interesses pessoais e os de família, e de tal maneira o fez que,
ao falecer ainda aqui, foi-lhe mandado penhorar ao espólio a importância de
Rs.3:820$726, que desviara da Fazenda Real. Com seu mau exemplo, as autoridades
inferiores, principalmente no Grão-Pará, entraram em lutas mesquinhas que
subsistiram a sua morte com a usurpação do poder pelo provedor-mor. A corrupção,
80
o suborno e até o assassínio por envenenamento, seriam armas, de ora em diante, na
disputa elas oposições.
(...)
A situação era precária, difícil, miserável, e o segundo governador não fez por
desmerecer do mau conceito do seu antecessor, chegando a ser acusado de, em
benefício de sua donataria do Cabo do Norte, ter desguarnecendo a capital,
favorecido a invasão holandesa de 1641(MEIRELES, 2001, p.192-193).
Tanto quanto seus governantes, os fazendeiros que vieram para o Maranhão
também só pretendiam enriquecer às custas da exploração do trabalho do índio e do negro e
retornar à Metrópole o quanto antes. Com tanta ambição, a mentira, a usura, a desonestidade,
entre outros vícios, ganhavam terreno nesta Capitania.
Continuando o sermão, Vieira narra o notável apólogo do Diabo, o qual atribui
aos alemães. Faremos uma breve narração deste episódio para percebemos o poder metafórico
empregado no discurso persuasivo sobre a verdade do Maranhão: “A verdade que vos digo é
que no Maranhão não há verdade” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 11). Conta a fábula que,
quando o diabo caiu dos céus, fez-se em pedaços no ar, os quais se espalharam por diversos
países e províncias da Europa, cada parte responsável por um vício característico das regiões
onde foram cair. Deste modo, a cabeça do diabo caiu na Espanha, motivo pelo qual os
hispânicos seriam furiosos, altivos, arrogantes e graves; o peito teria caído na Itália, o que
explicaria o fato de os italianos serem hábeis fabricadores de máquinas, não serem fáceis de
entender e trazer o coração sempre encoberto; o ventre caiu na Alemanha, o que seria a causa
dos alemães serem inclinados à gula e apreciarem iguarias um tanto indigestas; os pés caíram
na França, daí os franceses serem inquietos, pouco sossegados, apressados, de passos largos,
amantes dos bailes, da dança; os braços, um teria caído na Holanda, outro em Argel, e por esta
razão seriam “corsários”.
Neste momento do sermão, Vieira argumenta que, à guisa de parábola, o apólogo
é verossímil, “ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira”, e chama a
atenção dos ouvintes para a parte mais importante. O jesuíta alude àquela parte na qual atribui
a cabeça à Espanha, concluindo que, pela questão da contiguidade de fronteiras e estarem
ambos os países na mesma península, a parte que caberia a Portugal seria a língua, de acordo
com a visão dos estrangeiros a respeito e, mesmo, observando as reentrâncias do litoral
lusitano, a semelhança que tem com um perfil voltado para o Atlântico.
O grande salto desta construção retórica, não está somente na narração da fábula,
e sim, no objetivo metafórico desta em relação à mentira no Maranhão. Para tanto, o jesuíta
81
recorre ao abecedário de Drexélio30, onde cada letra corresponderia a um vício. Com isto, o
padre imaginou que, ao repartir as letras do abecedário pelos Estados de Portugal, a única
letra que caberia ao Maranhão era, sem dúvida, o M, de mentir: “E se as letras deste
abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão?
Não há dúvida, que o M. M – Maranhão, M – murmurar, M – motejar, M – motejar, M –
maldizer, M – malsinar, M – mexericar”, continua: “e, sobretudo, M – mentir: mentir com as
palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os
modos aqui se mente” (LEÃO, 2008).
O apólogo do diabo, utilizado por Vieira, corrobora a compreensão de que
“determinados hábitos ou desvios de comportamento podem efetivamente contribuir ou
originar algumas características, transmitidas pela tradição, com as quais se forma e forja-se a
identidade cultural de uma população, de uma região, até mesmo de um povo inteiro, de uma
nação” (LEÃO, 2008). Ao construir este sermão persuadindo a todos que no Maranhão, não
há verdade, apenas mentira, passa-nos um legado de sua imaginação social, que se constitui
em uma espécie de “identidade” para o maranhense, pois, “o imaginário é um cimento social,
é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma comunidade,
etc.” (MAFFESOLI, 2001).
No início deste trabalho, apontamos nossa preocupação em descobrir alguns
“mitos” que se erigiram em torno da imagem de Vieira, ao longo de apropriações –
acadêmicas ou não – da historiografia jesuítica brasileira e se de alguma forma o jesuíta teria
criado “mitos” no Maranhão. Pelo que analisamos nos sermões, percebemos que os “mitos”
que surgiram em torno do missionário estão relacionados à sua excentricidade linguística, ao
domínio da retórica e da oratória, ao uso criativo das figuras de linguagens, além dos seus
múltiplos papéis sociais desenvolvidos – sacerdote, jurista, político, pregador, entre outros.
Mas, não caberia afirmarmos, pelo menos neste momento, que Vieira criou “mitos” no
Maranhão, por outro lado, deparamo-nos com um Vieira que desenvolve uma linguagem
metafórica tão ousada quanto próxima da “linguagem mítica”, em que tenta explicar aquilo
que não podia ser explicado (CASSIRER, 2006), com toda a sua habilidade retórica e
persuasiva.
Além do apólogo do diabo, o jesuíta utilizou referências da natureza para ratificar
a sua tese: “Na Bahia, que é a cabeça desta nossa província do Brasil, acontece algumas vezes
o que no Maranhão quase todos os dias. Amanhece o sol muito claro, prometendo um
30
Jesuíta contemporâneo de Vieira, autor célebre da Companhia de Jesus que escrevia seus livros, sobretudo
tratados em latim, versando sobre os mais diversos assuntos e curiosidades, como a astrologia.
82
formoso dia,” continua, “e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover
como no mais entranhado inverno” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 12). É importante observar
como o jesuíta acentua a crítica ao Maranhão em relação à Bahia, reforçando o aspecto
hiperbólico31 do seu discurso ao se referir ao Maranhão em tom de ironia, como ele já havia
dito no introito, “espero de que não haveis de ficar mal comigo, porque hei de afrontar todos
para desafrontar cada. O discurso dirá como” (idem, p. 11).
A mesma instabilidade do tempo é retratada quando um piloto precisa usar um
astrolábio para guiar o seu navio. Como sabido, o astrolábio é um instrumento de orientação
geográfica que funciona com o uso da luz solar e era muito utilizado pelos navegantes. Para
agravar a mentira no Maranhão, o padre afirma que nestas terras até o sol mente: “de maneira
que o sol, que em toda parte é a regra certa e infalível por onde se medem os tempos, os
lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até ele mente. E terra onde até o sol
mente, vede que verdade falarão aqueles cujas cabeças e corações ele influi” (VIEIRA (1654),
2008b, p. 12).
Neste ponto do sermão, Vieira atinge fortemente os moradores do Maranhão,
independente de serem os colonos fazendeiros, os representantes do Império, os índios, os
negros, entre outros, pois, o jesuíta alude ao fato de uma causa natural influir no
comportamento e moralidade de um povo, no caso, o céu mentiroso cobre e torna os homens
mentirosos. Assim como o céu se torna este manto tenebroso, os raios solares quando incidem
sobre o homem maranhense também possuem essa energia negativa, tornando-os mentirosos.
O imaginário social do jesuíta é muito fértil, criativo e excêntrico, pois ao utilizar
as imagens do “céu” e “sol” como influências naturais para proliferação da mentira no
Maranhão, desenvolve uma hiperbolização do seu discurso que se correlaciona com os
símbolos espetaculares, representados no espírito humano, segundo Bachelard e Durand
(1997, p. 146), pela mesma operação que nos leva para luz e para o alto, para as divindades.
Logo, afirmar que até o sol e céu mentem é inverter o simbolismo universal que estas imagens
costumam representar para os diferentes povos e culturas. No entanto, ao fazê-lo, o jesuíta
confere gravidade ao fato, tornando-o, portanto, mais impactante, quanto contraditório,
porque se reverte em algo nebuloso, nefasto, sombrio. Os símbolos espetaculares (imagens do
sol, céu, luz, claridade, dourado) surgem no imaginário humano para combater os símbolos
nictomórficos (imagens das trevas noturnas, sombrias, escuras, pântanos, águas negras), mas
Vieira consegue, com a sua habilidade linguística, em uma frase, conjugar três figuras de
31
Referente à hipérbole, figura de linguagem que expressa exagero no enunciado. Ex: Chorei rios de lágrimas.
83
linguagem potenciais: a metáfora, a hipérbole e a personificação, “No Maranhão até o sol e os
céus mentem” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 09), invertendo o valor simbólico dos símbolos
espetaculares (céu e sol), pelo fato de “mentirem”, em símbolos nictomórficos (trevas
noturnas), uma vez que o céu torna-se um manto negativo tanto quanto os raios solares trazem
influências negativas também para os homens.
Não nos esqueçamos de que o discurso de Vieira é amigo das conquistas, de lutas
novas de riscos; assim, com a descoberta do Novo Mundo, surgiu, aos olhos de todos, o
mundo que as águas encobriam e impediam a luz. Logo, para o jesuíta as terras recémdescobertas estavam apenas encobertas por trevas (águas) que era preciso – era missão –
dissipar (cruzar) para que vissem a luz seus habitantes e a cristandade (fonte de luz) pudesse
vê-la (NEVES, 1997, p. 190).
O objetivo era levar o sagrado (a fé cristã) ao mundo profano (o novo mundo),
levar a luz à escuridão. O papel da Companhia de Jesus era salvar almas perdidas ou,
conforme Neves (1978), “a Companhia foi fundada para difundir a Palavra especialmente a
povos que não A conheciam – e por meio de uma socialização prolongada. Dirigem-se a
homens que não são, portanto, iguais a si – e quer transformá-los para incorporá-los à
cristandade” (NEVES,1978, p. 45).
Voltando ao sermão, Vieira encerra esta primeira parte da exposição
demonstrando que esta inconstância do tempo no Maranhão influenciava diretamente na
instabilidade do comportamento de seus moradores32, que “a donzela recolhida que está em
altura de virtuosa, amanhã acha-se murmurada pelas praças”, que “o eclesiástico que está em
altura de bom sacerdote, amanhã acha-se com reputação de mau homem”, que tudo isso
ocorre porque “os lábios são como o astrolábio, [...] Vede se é certa a minha verdade: que não
há verdade no Maranhão” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 13).
3.2 A mentira e o ócio: vícios tipicamente maranhenses
Na terceira parte do sermão, segunda da exposição, o missionário elabora uma
tese de que o clima influencia no nascimento de vícios e virtudes: “Assim como o céu com
32
Referimo-nos aos colonos fazendeiros do Maranhão, porque de forma alguma esta análise de mudança
comportamental, causada pela influência climática, poderia ser estendida ao aborígene, que já vivia nestas terras
há muitos anos em perfeita harmonia com a natureza.
84
uma virtude influi outra virtude, assim o clima, que também se chama céu, com um vício
influi outro vício” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 14). O jesuíta pretendia encontrar causas
naturais e verdadeiras para explicar como o clima e o céu do Maranhão influenciavam em
tanta mentira.
As imagens do céu e da terra se tornam elementos fundamentais para a
compreensão da tese do jesuíta: “Toda esta virtude da terra veio-lhe do céu. Influiu o céu na
terra a justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça
dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 14), e conclui, “E porque o céu influi naquela terra a justiça, por
isso influiu e nasceu nela a verdade, influi uma virtude, e nasceu outra”. Vieira constrói toda
essa argumentação para defender a tese de que a mentira, no Maranhão, nasce do ócio, ou
seja, o clima influi uma virtude, nasce outra, “o ócio é a primeira, a mentira a segunda: o ócio
a causa, a mentira o efeito” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 14).
O mesmo passa nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a inveja; se influi gula,
nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira, nasce a vingança. E
para nascer a mentira, que é o que influi? Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dáse a mentira perder. Nasce, cresce, espiga, e de um não-sei-quê, tamanho como um
grão de trigo, podeis colher mentiras aos alqueires. Estes são os dois vícios do
Maranhão, e estas as duas influências deste clima – ócio e mentira (VIEIRA (1654),
2008b, p. 11).
Vieira sabia utilizar os recursos estilísticos e literários de seu tempo como
ninguém, vejamos a gradação33 presente no fragmento: “Nasce, cresce, espiga, e de um nãosei-quê, tamanho como um grão de trigo, podeis colher mentiras aos alqueires”. O jesuíta
confere, conforme havia proposto no início da tese, um aspecto natural para o nascimento da
mentira, visto que ela nasce, desenvolve-se e se reproduz como um ser vivo. O uso da
gradação dá maior força aos argumentos e conduz a atenção dos ouvintes até um ponto alto e
decisivo de suas construções: “Não há terra no mundo que mais incline ao ócio ou à preguiça,
como vós dizeis, e esta é a semente de que nasce tão má erva” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 14).
Em seguida, o jesuíta traz ao púlpito as passagens do Evangelho em que Cristo é
chamado de samaritano e endemoninhado pelos mentirosos escribas e fariseus. O jesuíta
questiona “porque os mentirosos dizem as coisas antes de as saberem” (VIEIRA (1654),
2008b, p. 15) e lembra que Cristo era chamado de endemoninhado porque lançava demônios
de todos os corpos; e era chamado de samaritano, porque era Galileu, natural de Nazaré. Além
33
A gradação é uma figura de linguagem que consiste em dispor as ideias em ordem crescente ou decrescente.
85
disso, diziam que os samaritanos eram idólatras e apóstatas da lei, ao passo que Cristo era o
legislador e reformador dela. Então, indaga o padre: “E o povo o que dizia?”
Dizia a verdade: que Cristo era um grande profeta, que era o Rei prometido de
Israel, que era o Messias. Pois se o povo simples e sem letras conhecia e dizia a
verdade, os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios, como cuidavam e diziam
tão desatinadas mentiras? Por que os escribas e fariseus eram gente abastada e
ociosa, o povo não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhes-eis cheias de calos. Quem
trabalha, trata da sua vida; quem está ocioso, trata das alheias. Quem trabalha, como
cuida no que faz, fala a verdade, porque diz as coisas como são. O ocioso, como não
tem que fazer, mente, porque diz o que imagina. (VIEIRA (1654), 2008b, p. 15)
Com o excerto acima, o padre demonstra que a mentira nasce do ócio, que o
ocioso como não tem o que fazer, fala o que imagina, portanto, mente. Temos um ditado
popular, muito usado aqui no Brasil, que se encaixa adequadamente com a tese de Vieira:
“mente vazia, oficina do diabo” (anônimo). É evidente que, como toda tese, podemos
desenvolver uma antítese: será que toda mente vazia é oficina do diabo? Não poderia ser, ao
invés disso, oficina de Deus? De certa forma, esta tese de Vieira nos traz um debate muito
complexo o qual não pretendemos abarcar, porque inevitavelmente nos levaria a uma
discussão com várias áreas do conhecimento, principalmente, a Filosofia. Existe uma falácia
muito famosa de que os filósofos produziam em pleno ócio. É evidente que na Grécia Antiga,
o termo “negócio” estava ligado à arte de fazer negócio que implicava movimento,
desconsideravam que a atividade mental de filosofar não significa levar a “boa vida dos
deuses”. Contemporaneamente, Domenico de Masi fala sobre a necessidade do ócio criativo
como fator necessário para conter o excesso do fabricar e do fazer. Contudo, no século XVII,
trazer ao contexto tal interpretação do ócio era impossível. Sabemos, no entanto, que muitas
pessoas que trabalham (portanto, fazem negócio), também mentem, entre outras questões.
Porém, o que mais nos interessa nesta posição teórica de Vieira é sua habilidade em construir
uma tese, um discurso, ainda que contraditório aos discursos históricos, bíblicos e míticos,
que convencesse os colonos de que, em vez de ficarem inventando mentiras, procurassem
trabalhar mais e falar menos.
Ainda respaldado no evangelho, o jesuíta se utiliza do exemplo de Eva para
demonstrar que “a mentira é filha primogênita do ócio”. Assim, afirma que “É a imaginação
no ocioso como a serpente de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou a serpente coleandose mansamente sem pés, mas com cabeça; começou pela especulação, e acabou pela mentira”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 16). É importante observar a crítica que Vieira faz à imaginação,
tida, aqui, como simples ato de “inventar coisas”, ou seja, o jesuíta se utiliza da palavra em
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seu sentido mais superficial, comum – obviamente, diferente do sentido que utilizamos
quando falamos em imaginação social, termo de cunho antropológico, sociológico, histórico,
entre outras abordagens possíveis, que surge no início do século passado.
Vieira, a partir de sua imaginação criativa, reforça como a mentira se disseminou
pela humanidade desde o Gênesis: “Consentiu Eva na mentira peçonhenta: de Eva passou a
Adão, de Adão ao gênero humano. Não sucede assim às mentiras imaginadas, que vós como
bicho da seda, gerastes dentro em vós mesmos, fabricando de vossas entranhas a mortalha
para vós e o vestido para os outros?” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 16). A comparação do
homem com o bicho da seda é um bom exemplo da capacidade imaginativa e criadora do
jesuíta, que não dispensava, em seu discurso, imagens impactantes e contextualizadas que
pudessem surtir efeito no público. O bicho da seda, de suas entranhas, produz fios para a
formação de seu casulo que vão muito além do seu próprio tamanho. Assim, o jesuíta
compara esta dimensão produtiva com a produção da mentira pelo homem no mundo, tema já
discutido no item 1.4 deste trabalho.
É interessante observar que o jesuíta, talvez inconscientemente, associa a mulher
ao bicho da seda, que produz nas entranhas a mentira. Tal fato associa-se às imagens
arquetipais dos símbolos nictomórficos: a água negra e cabeleira feminina. Para Durand
(1997), a imagem da água negra constela com a cabeleira, porque “ela vai imperceptivelmente
fazer deslizar os símbolos negativos para uma feminização larvar, feminização que será
definitivamente reforçada por essa água feminina e nefasta por excelência: o sangue
menstrual” (DURAND, 1997, p. 99). Essa água negra interior apresenta um isomorfismo com
a ondulação dos cabelos, a cabeleira traz a imagem aquática, e vice-versa; estas imagens são
isomórficas também da aranha e da teia e, por conseguinte, do fio: “Fios negros que ligam o
sujeito por detrás puxando-o para baixo, fios que podem ser substituídos pelo enlace animal e,
bem entendido, pela aranha” (DURAND, 1997, p. 107) e seus isomorfismos femininos – Mãe
terrível, Mulher fatal, vampira, sereias, feiticeiras, etc.
O isomorfismo entre o fio tecido pela aranha e o fio tecido pelo bicho da seda
expressam a riqueza dos arquétipos das trevas, da mancha e do abismo, no sermão, que
conduzem a psique humana às imagens do sombrio, noturno, escuro e nefasto, ou seja, de
tudo que se opõe à luz, que nascem das águas negras, hostis, sangrentas. Assim, ainda que
produzam fios de formas e fins diferentes – a aranha faz teias para suas presas, o bicho da
seda produz um casulo para si próprio – esses fios podem se associar aos símbolos negativos
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do destino humano, como fez Vieira ao comparar a mulher (e toda a humanidade) ao bicho da
seda como fabricadores da mentira.
Em seguida, no sermão, o jesuíta destaca a passagem em que Davi afirma que
havia um homem ocioso cuja língua cuidava e imaginava maldades, pois os homens
imaginam com a língua por duas razões: “primeira, porque a sua língua não diz o que é senão
o que imagina; segunda porque quanto lhes vem à imaginação, logo o põe na língua”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 16); e fazem isso tão precipitados em afirmar quanto imaginam
“sem consideração, sem advertência, sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus, sem
meter espaço nem fazer diferença entre o imaginar e o dizer, como se tiveram a imaginação na
língua, ou a língua na imaginação, como se a língua fora a que imagina, ou a imaginação a
que fala” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 16).
Outro argumento utilizado na exposição foi “um notável preceito de Deus”, como
lembra o jesuíta: o juízo temerário. “Os falsos testemunhos formam-se na língua: os juízos
temerários formam-se na imaginação; e como da imaginação à língua há tão pouca distância,
para que não haja falsos testemunhos na língua, proíbe que não haja juízos temerários na
imaginação” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 16).
Vieira encerra esta terceira parte do sermão, a segunda exposição, retomando a
ideia central: “Senhores meus, vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita a
imaginações. Aqui se há de por o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que não há fera mais
dificultosa de enfrear que a língua. Para se por freio na língua, hão-se de meter as cabeçadas
na imaginação” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 16).
Na quarta parte do sermão, terceira da exposição, Vieira argumenta quantas
voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos, apontando ao auditório que muitos,
naquele púlpito, se consideravam estanques diante de tais afirmações. O jesuíta cita uma
parábola de Cristo e S. João, na qual S. Pedro pergunta a Cristo que havia de ser de S. João, e
Cristo responde: “Quero que fique assim” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 18), mas os apóstolos
disseram uns aos outros que S. João não havia de morrer, embora Cristo não dissesse que ele
não havia de morrer, senão que queria que ficasse assim. É o mote de que Vieira precisa para
atacar os ouvintes: “Não podia haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores ouvidos
que os dos apóstolos; e se entre dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos sucedem estas
contradições, que será quando a boca não é de Cristo, e quando os ouvidos não de S. Pedro
nem de S. João?” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 19).
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O jesuíta faz uma reflexão sobre os perigos de se ouvir com os ouvidos: “Quantas
vezes vos disseram uma coisa e percebestes outra? Quantas vezes ouvis o que não ouvis?
Quanta vezes entre a boca do outro e os nossos ouvidos ficou a honra alheia pendurada por
um fio?” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 19). Tal advertência atinge profundamente o tema do
sermão, mas o jesuíta vai mais fundo ao dizer que “Isto acontece quando os homens ouvem
com os ouvidos; mas quando ouvem com os corações, ainda é muito pior. E os corações
também ouvem? Nunca vistes corações? Os corações têm orelhas, e estai certos que cada um
ouve, não conforme tem os ouvidos, senão conforme tem o coração e a inclinação” (idem).
Essa personificação do coração demonstra mais um exemplo do potencial imagético do
jesuíta, pois traz ao púlpito a duplicidade ou contradição do coração, que pode significar
bondade (vida, amor, nobreza) ou maldade (mentira, discórdia, falso testemunho).
Seguindo esta trilha, o missionário ressalta a passagem do Velho Testamento em
que Moisés, ao descer do Monte Sinai com a lei de Deus, ouve vozes ao longe, eram os
judeus que idolatravam uma imagem de um bezerro de ouro e celebravam aquela imagem
com grandes festas. Moisés diz a Josué: “– Eu ouço cantar a coros”, Josué responde: “– Não é
senão tumulto de guerra”. Vieira questiona como pode para um parecer música e a outro,
trombetas: “A razão é clara. Moisés era religioso, Josué era soldado: ao religioso, parecem-lhe
as vozes do coro; ao soldado, de guerra. Cada um ouve conforme seu coração e sua
inclinação. Deus nos livre de um coração mal inclinado” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 19).
Assim o jesuíta deixa claro que quem ouve são os ouvidos, mas os que ouvem
bem ou mal são os corações: “Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme já
disposto o coração, assim se formam os ecos. Ainda hei de declarar isto com outra
comparação mais própria. Na fundição de Arão a temos” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 19). Cita
o missionário que querendo um fundidor formar uma imagem como a de S. Bartolomeu com
o seu diabo aos pés, faz duas formas de barro, uma do santo e outra do diabo, e “deixa aberto
um ouvido em cada uma, derrete o metal em forno, e, tanto que está derretido e preparado,
abre a boca ao forno, corre o metal, entra por seus canais no ouvido de cada forma, e em uma
sai uma imagem de S. Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão feia como
ele” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 19-20), e questiona-se que sendo o metal o mesmo, a boca,
por onde saiu, a mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo, entrando por outro faz o
diabo, como pode? O próprio jesuíta responde: “Senhores meus, todos os nossos ouvidos vão
a dar lá dentro em uma forma, que é o coração. Se o coração é forma o santo, tudo que entre
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pelo ouvido é santo; se é forma do diabo, tudo o que entra pelo ouvido é diabólico” (VIEIRA
(1654), 2008b, p. 20).
Para ratificar a argumentação anterior, o jesuíta retoma o que disseram os escribas
e fariseus a respeito de Cristo: “Agora conhecemos que trazes em ti o demônio” (VIEIRA
(1654), 2008b, p. 20), e explica que tal conceito diabólico sobre Cristo só era possível porque
tais eram as formas em que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos. “Aqueles malditos
homens eram filhos do diabo e de uns corações diabólicos, de umas formas endemoninhadas,
ainda que o metal fosse tão divino, que havia de sair senão um demônio” (VIEIRA (1654),
2008b, p. 20).
Vieira analisa o aspecto fisiológico do ouvido humano e afirma o quão notável é o
artifício, com que a natureza formou os nossos ouvidos: “Cada ouvido é um caracol, e de
matéria que tem sua dureza. E como as palavras entram passadas pelo oco deste parafuso, não
muito que quando saem pela boca, saiam torcidas” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 21). Desta
maneira justifica o mau entendimento dos escribas e fariseus em relação às palavras de Cristo.
Jesus disse: “Abraão desejou ver minha vinda ao mundo, viu-a e alegrou-se” (idem), no
entanto, lembra o jesuíta: “Isto é o que entrou pelos ouvidos dos escribas e fariseus. E o que
saiu pelas bocas? – Ainda tens cinquenta anos e vistes Abraão? – Vede como saíram torcidas
as palavras dos ouvidos à boca. Cristo disse que Abraão vira a ele, e os fariseus dizem que
dissera ele que vira a Abraão”, assim, “torceram” o nome e o verbo, àquele mudaram-lhe o
caso, a este, a pessoa, “Cristo disse o nome no nominativo, e eles puseram-no em acusativo;
Cristo disse o verbo na terceira pessoa, eles puseram-no na segunda”, continua, “Eis aqui
como saem as palavras dos ouvidos à boca, torcidas e retorcidas: torcidos os nomes, torcidos
os verbos, torcidas as pessoas, torcidos os casos. Então dizeis que dissestes o que ouvistes”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 21).
O missionário continua a exposição de seus argumentos trazendo ao cenário a
relação da quimera com a mentira, ao afirmar que a primeira mentira que surgiu no mundo foi
feita de duas verdades, como uma quimera: “Quimera é um animal fingido, composto de dois
animais verdadeiros: um monstro, meio homem, meio cavalo, é quimera; um monstro, meio
águia, meio serpente, é quimera; um monstro meio leão, meio peixe, é quimera; mas não há
tais monstros nem tais quimeras no mundo.”, continua, “De maneira que as ametades são
verdadeiras; os todos, ou monstros que delas se compõem , são fingidos. As ametades são
verdadeiras, porque há homem e cavalo, há águia e serpente, há leão e peixe; os monstros que
se compõem destas ametades são fingidos, porque não há tal coisa no mundo” (VIEIRA
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(1654), 2008b, p. 21). Com esta argumentação metafórica, Vieira ataca os mentirosos
afirmando que estes “partem duas verdades pelo meio, e, sem mudar nem acrescentar nada ao
que dissestes, de duas verdades partidas fazem uma mentira inteira” (idem), e enfatiza que de
que adianta não acrescentar nada às palavras para não mentir, se o faz do mesmo jeito
diminuindo-as: “Que importa que não acrescenteis, se diminuístes? Pior é uma verdade
diminuída, que uma mentira mui declarada, porque a verdade diminuída na essência é
mentira, e tem aparências de verdade; e mentiras que parecem verdades são as piores mentiras
de todas” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 22).
Por fim, o jesuíta encerra esta parte do sermão afirmando que não é necessário que
ouçam mal ou diminuam ou acrescentem o que ouviram para que seja mentira o que disseram,
“pode um homem dizer pontualmente o que ouviu, e ouvir pontualmente o que disseram, e
com tudo isso mentir” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 21). É o que ocorreu, diz o jesuíta, com as
testemunhas falsas, quando os judeus acusaram a Cristo diante de Pilatos, as quais disseram
que ouviram dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se desfizesse, ele o reedificaria em
três dias. Todavia, quando Cristo disse: “derribei o Templo, e em três dias o levantarei, e eles
testemunharam o que lhe ouviram, como eram testemunhas falas” (VIEIRA (1654), 2008b, p.
22), pois Cristo falava do seu corpo – o qual templo o Senhor excitou três dias depois de
derrubado, que foi no dia da ressurreição. “E como Cristo disse aquelas palavras em um
sentido, e eles as referiram em outro, ainda que as palavras eram as mesmas que tinham
ouvido, sem mudar, nem acrescentar, nem diminuir, as testemunhas eram falsas” (VIEIRA
(1654), 2008b, p. 23). Vieira destaca que basta mudar-lhes o sentido, ou intenção, das
palavras mais sãs, e “vós a interpreteis e corrompeis de maneira que de um louvor fazeis um
agravo, de uma confiança uma injúria, de uma blasfêmia, e de uma graça levantais uma tal
labareda, que se originam dela muitas desgraças.”, e finaliza, “E se isto sucede quando os
homens dizem o que ouviram, e só o que ouviram, que será quando dizem o que imaginaram,
e o que sonharam, ou que ninguém imaginou nem sonhou?” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 23).
Na quinta parte do sermão, primeira da confirmação, Vieira prossegue
demonstrando que os olhos também mentem, pois para aqueles que não possuem a boca
ociosa, nem falam mal o que ouvem, afirmam primeiro ver com os olhos, nem que para isso
os olhos não durmam quarenta noites, e que fazem isto sem descansar até aniquilar qualquer
suspeita do que vê. Quanto a isto, o jesuíta condena: “Ah! Ronda do inferno! Ah! Sentinela de
Satanás! Este mesmo, se lhe mandar o confessor que faça exame de consciência meio quarto
de hora antes de se deitar, não há de poder fazer com sono. Mas, para destruir honras, para
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abrasar casas”, continua, “estará feito um Argos quarenta noites inteiras. Não cuidem, porém,
estes malignos vigiadores, que por aí se livrarão de mentirosos. Fostes vigiastes, observastes,
vistes, dissestes, e tendes para vós que falastes a verdade? Pois mentistes muito grande
mentira. Os olhos mentem de dia, quanto mais de noite” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 23).
O jesuíta fundamenta sua argumentação utilizando a passagem bíblica do Quarto
Livro dos Reis, em que os reis de Israel (el-rei de Israel, el-rei de Judá, el-rei de Edon) saem
em campanha contra os moabitas. Estavam os exércitos para dar batalha na manhã seguinte,
quando os moabitas os avistaram e viram que pelo meio deles corria um rio de sangue.
Começaram a gritar: “- Sangue, sangue, sem dúvida que os três reis pelejaram esta noite entre
si, e mataram-se uns aos outros: vamos recolher os despejos” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 24).
Saíram correndo tumultuadamente até os arraiais dos inimigos e, despojados, eles foram os
vencidos, pois o que eles viram não era sangue: “Foi o caso que passava um rio por meio do
arraial dos três reis, e, como ao sair do sol feriram os raios na água que ia correndo, fez tais
reflexos a luz, que parecia sangue. E esta aparência de sangue [...] foi o que precipitou aos
moabitas e os levou a meterem-se nas mãos de seus inimigos (idem). Vieira enfatiza a
produção enganosa da imagem de sangue, proveniente de duas coisas claras como o sol e
água: “o sol, porque feriu com seus raios as águas, e as águas porque feridas, deram com os
reflexos aparências de sangue [...] Pois, se os olhos se enganaram nas coisas mais claras,
como se não enganarão nas mais escuras, e às escuras?” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 24).
O missionário também alude ao fato de que a pequena luz da lua e das estrelas é a
que mais cega, pois faz com que umas coisas pareçam outras. Lembra do cego que foi levado
a Cristo, o Senhor pôs-lhe as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via. Respondeu o cego: “–
Senhor, vejo os homens como árvores que andam. – Mais cego estava agora este cego que
dantes, porque dantes não via nada, agora via umas coisas por outras” (VIEIRA (1654),
2008b, p. 24). Vieira argumenta que os homens que “são de tão diferente figura e estatura,
via-os como árvores, e as árvores que estão presas com raízes na terra, via que andavam como
homens. Eis aqui o que tem ver com pouca luz. O mesmo acontece a este cegos vigiadores,
que vão estudar de noite o que hão de rezar de dia.” (idem).
Os símbolos nictmórficos são de fato muito presentes na imaginação social do
padre Antônio Vieira, pois neste trecho do sermão o jesuíta resgata as imagens da cegueira e
da lua como condutores do mal caminho, uma vez que a cegueira representa falta de luz e a
lua, pouca luz. Portanto, aquele que não vê, ou vê pouco, perde-se na escuridão (falta de
conhecimento, esclarecimento), mergulha nas trevas noturnas.
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Finalizando a sua argumentação sobre os olhos e a mentira, Vieira lembra ao
auditório que Davi admiravelmente notou que a água nas nuvens é negra, levantando em seu
imaginário social mais uma imagem nictomórfica (a água negra): “Vedes lá vir um aguaceiro
escuro mais que a mesma noite: que negrume é aquele? Não é mais que água e nuvem: a
nuvem é um volante , a água é um cristal; e destes dois ingredientes tão puro e diáfanos se faz
uma escuridade (sic) tão negra e tão espessa” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 25). Assim, o jesuíta
aponta que “Se quem vai vigiar e espreitar a vossa vida e a vossa honra levar alguma nuvem
diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um volante, por mais que a vossa vida e a
vossa honra sejam tão clara e tão pura como um cristal, há-lhe de parecer escura e tenebrosa”
(idem). Dessa maneira, termina esta parte do sermão reduzindo todo o discurso, ou discursos:
“mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem os
ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo
mente, e todos mentem” (idem).
É interessante observar que todo este conjunto de imagens nictomórficas
contrapõe-se ao verdadeiro fim do sermão: o jesuíta pretende que todos os que mentem saiam
da escuridão, das trevas noturnas e busquem a luz, a salvação de suas almas (os símbolos
espetaculares e ascensionais – a luz, o divino, a subida, o alto). Dessa maneira, o jogo
dialético do discurso de Vieira é marcado por um profundo devir: a saída das trevas e a subida
ao alto, ao divino, à iluminação espiritual, à salvação de suas almas, como propõem a seguir.
Na sexta parte do sermão, segunda da confirmação, Vieira traz uma consolação
para os colonos depois das afrontas: “Tenho acabado de provar a matéria que propus. Mas
parece-me que estais dizendo – como disse no princípio – que tenho dito muitas afrontas à
vossa terra. Porém eu digo – como também prometi – que antes a tenho desafrontado”
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 25). Para tanto, o jesuíta lhes apresenta a desafronta da mentira:
“Qual vos está melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam mentiras? Não há dúvida
que vos está melhor que sejam mentiras. Se fora verdade o que se diz, era grande afronta
vossa; mas, como tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito honrados” (idem).
O jesuíta alivia o peso das críticas e consola os fazendeiros maranhenses,
demonstrando-lhes afeto: “Hoje vos restituí vossa honra, porque provei que mentem todos os
que dizem mal de vós. Vós bem sabeis melhor que eu que tudo são mentiras; mas eu tomei
por minha conta este manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos
nos costumes da terra” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 25). O missionário lembra como se diziam
e se haviam de dizer muitos males dos apóstolos de Cristo, porque é uso do mundo dizer mal
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dos bons. Mas, para desafrontar e animar disse-lhes o Senhor: “Bem aventurados vós, quando
os homens disserem todo o mal de vós mentindo” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 26). Vieira
aponta que nesta divina sentença está a consolação e a desafronta. “Se os homens dizem mal,
falando verdade, é grande desgraça, mas se eles dizem mal mentindo, não importa nada. Por
isso disse, e quero que saibam todos, que o que nesta terra se diz são mentiras” (idem).
Após estes argumentos sobre a consolação e a desafronta, Vieira alcança um dos
pontos mais altos do sermão: a confissão dos falsos testemunhos. “É verdade que os
forasteiros a quem eu prego esta doutrina fazem um terrível argumento contra a nossa terra.
Chegam a este porto, põe os pés em terra, e, ouvindo dizer mal de todos e tudo, fazem este
discurso:”, continua, “Ou estes homens mentem, ou falam a verdade; se falam a verdade, esta
é a mais má terra de todo o mundo, pois, nela se cometem tantas maldades; e se mentem
também a terra é muito má, pois os homens têm tão pouca consciência, que levantam falsos
testemunhos” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 26). Posta a questão, o jesuíta afirma que “Este é o
argumento que parece não tem fácil solução. Mas eu respondo a uma parte e outra parte dele.
Quanto à primeira, digo que as maldades que se dizem são falsas, e que, como falsas, não se
devem crer”, e conclui, “São falsas? – insta a outra parte – logo onde os homens levantam
tantos falsos testemunhos, não pode ser senão a pior terra do mundo. Eis aí o engano e a falsa
suposição em que estão os que não têm prática interior da terra”, continua, “No Maranhão é
verdade que há muitas mentiras, mas mentirosos, isso não; muito falso testemunho, sim, mas
quem levante falso testemunho, por nenhum caso” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 26).
Para exemplificar tal argumentação, o jesuíta argumenta que nas outras terras os
homens levantam os falsos testemunhos, mas nesta terra (Maranhão) os falsos testemunhos
levantam-se a si mesmos. Se vos parece dificultosa a proposição, vamos à prova:
Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz: Padre, acuso-me
que eu desejei a morte a um homem, e o busquei para o matar, e propus de lhe fazer
todo o mal que pudesse. – E por quê? – Porque me tirou a minha honra com um
falso testemunho de que eu estava tão inocente como S. Francisco. – Irmão, perdoailhe, para que Deus vos perdoe. – Passamos adiante, chegamos ao oitavo
mandamento: – Levantastes algum falso testemunho? – Não, Padre, pecado é de que
nunca me acusei, seja Deus louvado. – Vem uma mulher, chega ao quinto: Digo a
Deus minha culpa, que eu tantos meses que tenho ódio a uma mulher, e roguei-lhe
muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da morte, e que nem desta
vida nem da outra lhe perdoava; que seus filhos visse ela mortos diante de si a
estocadas frias. – Por quê? – Porque me levantou um aleive a mim e a uma filha
minha, com que nos infamou em toda esta terra, e não me atrevo a lhe perdoar. –
Ora, senhora, estamos em Quaresma; alguma coisa havemos de fazer pelo amor de
um Deus que padeceu tantas afrontas e se pôs em uma cruz por amor de nós. –
Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar. Chega o confessor ao oitavo
mandamento. – E vossa mercê levantou algum falso testemunho? – Senhor padre,
melhor estreia me dê Deus: muito grande pecadora sou, mas nunca Deus permita
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que eu diga das pessoas o que nelas não há; se ouço alguma coisa, ajudo também,
mas levantar falso testemunho, nunca em minha vida o fiz. – Isto que aqui vos pus
em dois, acontece infinitas vezes. De maneira que no quinto todos se queixam que
lhes levantam falsos testemunhos; no oitavo ninguém se acusa de levantar falso
testemunho. Logo, bem dizia eu que nesta terra os falsos testemunhos se levantam a
si mesmos. Em suma, que temos aqui os pecados, mas não temos os pecadores;
temos os falsos testemunhos, mas não temos as falsas testemunhas. Isto é o que
posso cuidar. Mas, se acaso é o contrário, miseráveis daqueles que assim vivem!
Grande miséria é que falsos testemunhos se levantem; mas maior miséria é, que,
depois de levantados se faça deles tão pouco caso e tão pouco escrúpulo. Ou deixais
de confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não o
conhecendo: se o deixastes de confessar conhecendo-o, mentis a Deus; se o deixais
de confessar pelo não conhecer, mentir-vos a vós. E uma e outra cegueira, é bem
merecido castigo: que minta a Deus e que se minta a si mesmo, quem mentiu tão
gravemente contra seu próximo, e que de um ou de outro modo se vá ao inferno!
(VIEIRA (1654), 2008b, p. 27)
Neste excerto, Vieira explica que no Maranhão há mentiras, mas não mentirosos;
há falsos testemunhos, mas não falsas testemunhas. Tal confirmação derivava do exercício
das confissões em que todos confessavam serem vítimas de mentiras e falsos testemunhos,
mas nenhum admitia ter praticado quaisquer destes atos.
Na sétima parte do sermão, a peroração, Vieira afirma que se algum sermão não
tinha necessidade de exortação era este, pois viveis em terra muito pequena, ao contrário das
terras grandes, como Lisboa, em que as mentiras se repartem por todo o reino e por todo o
mundo. “[...] as mentiras do Maranhão não têm nem outra parte donde vir nem outra parte
para onde ir: aqui nascem e aqui ficam; e quando as mentiras todas ficam na terra, e todas vos
caem em casa, ainda por conveniência e razão de estado as haveis de lançar fora” (VIEIRA
(1654), 2008b, p. 28). O jesuíta pede ao leitor que lhe faça duas contas, as quais ele naquele
momento não podia fazer: “Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra:
quantas casas há nesta cidade, e logo reparti as mentiras, e vereis quantas cabem a cada casa!
E que será em uma semana, que será em um mês, que será em um ano?” (VIEIRA (1654),
2008b, p. 28).
O missionário ataca o auditório criticando que andem infamando e afrontado uns
aos outros, e pior ainda, mentindo e levantando falsos testemunhos: “Que dão a homem por
mentir? Que gosto se pode ter em levantar um falso testemunho? Se é por me vingar de meu
inimigo, muito maior mal me faço a mim que a ele, porque a ele, quando muito, tiro-lhe a
honra: A mim condeno-me a alma” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 29).
Ao finalizar o sermão, o jesuíta solicita ao auditório que examine muito devagar e
escrupulosamente se tem falado a verdade em alguma coisa, principalmente em matéria da
honra dos próximos, “Olhai senhores, que este é o pecado que mais facilmente se comete, e
95
com mais dificuldade se restitui” (VIEIRA (1654), 2008b, p. 29), que “as balanças em que se
pesam as consciências na outra vida são muito delicadas, e que será grande desgraça ir ao
inferno para sempre por um falso testemunho” (idem). Enfim, “O remédio está em uma
consciência muito bem examinada, em uma confissão muito bem feita, e em uma satisfação
muito verdadeira, advertindo-vos e protestando-vos da parte de Deus, que sem estas três
condições, nem nesta vida podeis alcançar a graça, nem na outra merecer a glória (idem).
É interessante observar que, entre os remédios para acabar com a mentira e o falso
testemunho no Maranhão, está a confissão, pois se um dos males do Maranhão é que há
mentira, mas não há mentirosos, há falsos testemunhos, mas não, falsas testemunhas, é
preciso que ambos, o mentiroso e a falsa testemunha, confessem-se. Assim, ficam sob o
controle da Companhia aqueles que causam problemas à colônia, e os padres podem lhe
conferir os remédios adequados para sua penitência.
Sobre a confissão, afirma Neves (1997): “À confissão, todos parecem destinados.
Todos aqueles que a puderem fazer. Mas não se dizem quais os índios que dela estarão
excluídos. O que é raro no detalhado esforço de controle (produção) de mundo dos
inacianos”, continua, “Fica suposto que as regras de batismo (imediatamente anteriores às da
confissão) valem (por antecedência e prevalência). O caráter controlador aparece como
característico do sacramento” (NEVES, 1997, p. 163-164)
De fato, há uma preocupação do jesuíta em estabelecer um senso de justiça, impor
a lei (ordem) nas relações sociais estabelecidas na colônia, e o paradigma norteador destas
relações é a verdade, por isso, este sermão é conhecido como o Sermão das Verdades.
Somente com a verdade, através da verdade, é possível construir uma sociedade produtiva,
capaz de conviver e coexistir no mundo. Por fim, para esclarecer esta ideia ao auditório, o
jesuíta fez toda uma exposição das consequências negativas da mentira.
96
Capítulo 4
Figura 05: Santo Antônio pregando aos peixes.
“Ah! Moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera
agora dizer neste caso! Abri, abri essas entranhas; vede,
vede esse coração. Mas ah! Sim, que me não lembrava!
Eu não vos prego a vós, prego aos peixes” (VIEIRA
(1654), 2008c, p. 157).
97
4. VÓS SOIS O SAL DA TERRA
O sermão de Santo Antônio (aos Peixes) é o terceiro sermão de Vieira que
escolhemos para analisar nesta tese, considerado um dos expoentes de seu sermonário no
Maranhão, proferido em 1654, três dias antes de ele embarcar misteriosamente para o Reino
para obter uma legislação justa para os índios. Após a análise dos dois sermões anteriores, a
Primeira Dominga da Quaresma e a Quinta Dominga da Quaresma, ficam evidentes as razões
pelas quais o jesuíta sentiu necessidade de partir para a corte: era preciso solicitar ao Rei leis
mais rígidas e severas contra os fazendeiros maranhenses.
Vieira esperava que aqueles sermões surtissem algum efeito sobre os fazendeiros
do Maranhão, no entanto, as atitudes e comportamentos deles continuavam os mesmos,
escravizavam e maltratavam os índios constantemente, desobedeciam às normas régias.
O Sermão de Santo Antônio (aos peixes) foi pregado no dia do festejo de Santo
Antônio no Maranhão (13 de junho). A escolha não poderia ter sido melhor, uma vez que o
padre se queixava de não ser ouvido pelos colonos fazendeiros maranhenses, tanto quanto
Santo Antônio não fora ouvido pelos homens e resolveu pregar aos peixes. Este sermão
também se divide em seis partes, assim distribuídas: I parte – introdução ou exórdio; II e III
partes – exposição; IV e V partes – confirmação; e VI parte – peroração.
4.1 O poder do sal
No Exórdio, Vieira apresenta um conceito predicável
34
, “Vós sois o sal da
Terra”, e explica as razões pelas quais a terra está tão corrupta: “Ou é porque o sal não salga,
ou porque a terra se não deixa salgar”. Assim, ou a culpa está no sal (pregadores), ou na terra
(ouvintes afronta). Se a culpa está no sal, é porque os pregadores “não pregam a verdadeira
doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar”, ou é porque “o sal não salga” e os pregadores
“dizem uma coisa e fazem outra”, ou é porque “o sal não salga” e os pregadores “se pregam a
si e não a Cristo”. Se a culpa está na terra, é porque os ouvintes “não querem receber a
34
Processo retórico da oratória barroca que consiste na interpretação fantástica de um passo da Sagrada
Escritura, com base em associações de ideias próximas ou dissemelhantes, e devidamente fundamentadas por
uma autoridade teológica confirmada.
98
doutrina”, ou querem, antes “imitar os pregadores que fazer o que dizem”, ou porque “em vez
de servir a Cristo, servem a seus apetites” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 149).
Para melhor compreensão deste conceito predicável “Vós sois o sal da terra”,
utilizaremos as contribuições do Pr. Antônio Mesquita (2011) que realizou uma pesquisa
sobre as propriedades, influência e o poder do sal.
Formado por minúsculos cristais, portanto, transparente e incolor quando puro,
pode apresentar colorações de tons cinza, amarela e vermelha, quando impuro. O sal serve
para expressar que a Igreja, como Corpo de Cristo é, acima de tudo, dinâmica e ativa, jamais
passiva. O sal tem propriedades que o faz um elemento acionador, isto é, põe em ação, em
movimento, faz funcionar. Logo, onde há sal ocorrem mudanças, transformações e nada
permanece inerte. Assim sendo, este é um dos elementos mais representativos das ações da
Igreja ao longo dos séculos (MESQUITA, 2011). Trazendo esta análise para o simbolismo
cristão, o sal é uma substância purificadora, capaz de agir como remédio que retira as
impurezas do ser humano.
Além do uso para salgar alimentos impedindo que estragassem, técnica difundida
no Egito já há cerca de 4.000 anos a.C., o sal era usado pelos gregos e romanos como moeda
em suas operações de compra e venda, originando a palavra latina salário derivada de sal, pois
parte dos vencimentos de legiões romanas era paga com sal, sendo depois incorporada ao
soldo. Se por um lado o produto se dissolve com facilidade na água, o sal de cozinha é
composto por elementos – além de mais de 99% de cloreto de potássio –, responsáveis pela
diminuição da umidade, que o torna imprestável, e o empedramento. Ainda hoje um dos
principais acessos a Roma, então capital do império chama-se Via Salaria, por onde caravanas
transportavam a riqueza para os romanos.
Na Idade Média, o sal era transportado por estradas construídas especialmente
para esse fim. Na mesma época, os europeus fizeram fortunas com o sal como tempero. Até o
século XVIII, a ordem de assento de nobres em uma mesa de banquete era indicada pelo
posição de um saleiro de prata maciça colocado na mesa. Os menos ilustres ficavam abaixo
do sal, mais distantes do anfitrião. Mesmo no final do século XIX e começo do século XX o
sal, além de ser usado como condimento e produto medicinal passou a ser uma das matériasprimas essenciais para a indústria química e têxtil.
O valor do sal é tão concentrado que basta a ingestão diária de uma colher de chá,
ou seja, 2,4g de sódio, mas alguns estudos indicam quantidade ainda menor. A presença do
sódio preserva o alimento por remover umidade e afastar bactérias. No entanto, o emprego do
99
sal vai ainda muito além, pois serve não só como remédio para eliminar infecções, preservar
alimentos, suavizar a dor, mas também pode ser usado para a limpeza doméstica e
desodorização de ambientes. Além disso, o sal é usado para derreter gelo, por meio da
diminuição do ponto de congelamento.
Saindo do aspecto medicinal e conservador do sal, podemos vê-lo também no
âmbito dos modismos religiosos pós-modernos, como, pelo xintoísmo em que é usado para
purificar coisas, enquanto os budistas o usam para afastar o mal (MESQUITA, 2011).
Todas estas informações sobre as propriedades do sal reunidas pelo Pr. Antônio
Mesquita trazem uma conclusão interessante sobre as funções desta substância: o sal serve
para conservar o são e preservá-lo da corrupção. É possível que ao apresentar o conceito
predicável, o padre Antônio Vieira talvez não conhecesse todas as funções desta substância,
mas pelos menos o primeiro sentido aqui trabalhado (O sal serve para expressar que a Igreja,
como Corpo de Cristo é, acima de tudo, dinâmica e ativa, jamais passiva) traz para discussão
um pouco da função do pregador que, neste caso, diferencia-se bastante do orador: “Assim
como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador
que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo
dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
150).
Em outros sermões, o padre Antônio Vieira traz à tona a função do sal como
elemento purificador (que retira as impurezas do mundo), como cita o douto jurista Antônio
Celso Alves Pereira em seu artigo “Vieira e a justiça tributária”, no qual lembra que o jesuíta
tem como patrono Santo Antônio a quem considera “o sal da terra”, no sermão do bom
sucesso de nossas armas, pregado na capela real em 1654:
[...] o motivo de o sermão em destaque ter como patrono Santo Antônio, para Vieira
“o melhor Filho de Lisboa, a glória de Portugal, o sal da Terra”, está no fato de que
“deparar coisas perdidas, é o gênio e a graça particular de Santo Antônio”. Para os
estranhos, diz Vieira, “ele é o recuperador do perdido; para com os seus é
conservador do que se perder”. Ele é o sal da Terra: “O sal é o remédio da
corrupção, mas o remédio preservativo; não remedeia o que se perdeu; mas conserva
o que se pudera perder, que é o de que temos necessidade. [...] Quem diz sal, diz
conservação” (PEREIRA, 2011, p. 31)
Neste sermão (sermão do bom sucesso de nossas armas), Vieira destaca duas
funções do sal: remediar e conservar. Assim, o sal pode purificar ou pode conservar, como
lembra o próprio Vieira no mesmo sermão: “á água deixando de ser água, faz-se sal, e o sal
desfazendo-se do que é, torna a ser água. Neste círculo perfeito consiste a nossa conversação e
100
restauração. Deixem todos de ser o que eram, para fazerem o que devem, tornarão a ser o que
eram. Este é em suma o espírito das nossas quatro palavras: Vós sois o sal da terra”35
(PEREIRA, 2011, p. 34).
Durand (1997) também traz à tona o valor alquímico do sal em As Estruturas
Antropológicas do Imaginário ao afirmar que o ouro, como o sal, “participam de operações
mães de todo o substancialismo” dos quais se originam as noções de “concentrado”,
“comprimido”, “extrato”, “suco”, ou seja, um místico moderno, confundindo o ouro trazido
pelos magos com o sal, faz deles símbolos da concentração, da condensação.
Interessante notar o isomorfismo que há entre esta substância como elemento
simbólico da fé católica e o plano jesuítico da implantação de centros religiosos na colônia: as
aldeias. As aldeias eram parte do plano das missões: uma rede tecida pelo deslocamento dos
jesuítas, especialmente pelo interior, em busca de encontrar, seduzir gentios para a ‘reunião’
em novos locais sob condições culturais diferentes (NEVES, 2003, p. 52-53).
“Vós sóis o sal da terra”, esse era o discurso impregnado pelo padre Antônio
Vieira, que participou e liderou missões pelo Amazonas, Maranhão e Grão-Pará. A ideia de
Aldeia estava associada à constituição de um centro religioso, da concentração, da
condensação do poder da Companhia, deslocar para melhor reunir, estratégia de defesa
político-militar e meio de tornar possível a conversão pela nucleação (NEVES, 2003, p. 53).
Para Durand (1997), “o sal e o ouro são resultado de uma concentração, são centros” (p. 263)
Segundo Neves (2003), “o discurso quinhentista no Brasil é ideológico porque é
autocentrado; é um saber que escolheu centros, sujeitos e objetos que se erigem a si mesmos
como corretos e adequados e não admitem questionamentos” (p. 70). Contra esses planos
ideológicos dos jesuítas, havia a ambição, a avareza e a luxúria dos colonos que vieram para a
colônia para enriquecer rapidamente e precisavam da mão de obra escrava indígena.
Para Brandão (1979), teriam sido os problemas do Maranhão a fonte de
inspiração, mais ainda, de vida, na obra de Vieira. “Um Vieira muito mais brasileiro, muito
mais atuante e vivo que aquele outro dos volteios barrocos, dos cultismos e conceptismos.”,
continua, “Esse Vieira maranhense, talvez para nós, de trezentos anos depois, seja de mais
difícil compreensão. Porque este é o pregador autêntico em sua função, enquanto o outro é
mais o orador preocupado com as formas” (BRANDÃO, 1979).
Embora tenha criticado bastante a ação dos pregadores e dos ouvintes, Vieira se
desvia do tema e preocupa-se apenas com a razão pela qual a terra está corrupta, partindo do
35
Este trecho foi citado por Antônio Celso Alves Pereira em seu artigo “Vieira e a justiça tributária”, extraído do
Sermão de Santo Antônio, proferido da Capela Real, em 1642.
101
princípio de que a culpa é dos ouvintes. Como na cidade de São Luís comemora-se o festejo
de Santo Antônio (do 1° ao 13° dia do mês de junho) e o sermão foi proferido no dia 13 de
junho de 1654, o jesuíta aproveitou-se do exemplo deste.
Ainda no introito do sermão, o jesuíta relata que Santo Antônio não obtinha
resultados da sua pregação e os homens até quiseram matá-lo, em praça pública. Em vez de
desistir, resolveu pregar aos peixes. Assim, Padre Antônio Vieira, sem obter resultados no
Maranhão, já que a terra continuava corrupta, resolveu, pois, igualmente a Santo Antônio,
pregar aos peixes.
Vieira faz do sermão uma grande alegoria ao dizer que os peixes ouviam o sermão
de Santo Antônio: “- Já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. – Oh!
Maravilhas do Altíssimo! Oh! Poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as
ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos
por sua ordem, com as cabeças fora d`água, Antônio pregava, e eles ouviam” (VIEIRA
(1654), 2008c, p. 150).
4.2 Os Vícios e as Virtudes dos peixes
Diferente dos outros sermões que analisamos nesta tese, o jesuíta divide o
desenvolvimento do sermão em duas partes: os louvores dos peixes e a repreensão de seus
vícios. Na primeira parte, trata do Louvor das Virtudes dos peixes. Divide-o em Louvores em
Geral (capítulo II – 1° momento da exposição) e Louvores em Particular (capítulo III – 1°
momento da confirmação).
No capítulo II do sermão, 1º momento da exposição, Vieira justifica-se porque
tem como auditório os peixes, “Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes:
ouvem, e não falam” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 151). Mas lembra que só há um desconsolo
ao pregador: “que é serem gente os peixes que se não há de converter. Mas esta dor é tão
ordinária, que já pelo costume quase se não sente” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 151-152).
Dos Louvores em Geral dos peixes, o jesuíta destaca que “vós fostes os primeiros
que Deus criou”, “entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os maiores. Que
comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos
102
peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia?” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
152)
Outra virtude que merece atenção é “aquela obediência, com que chamados
acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 153). Para
Vieira, essas virtudes são um “grande louvor verdadeiramente para os peixes, e uma grande
confusão para os homens” (idem), isto é, estas qualidades dos peixes indicam os defeitos dos
homens. Enquanto, no mar, os peixes irracionais tão quietos, tão devotos, pareciam
convertidos em homens; na terra, os homens tão furiosos e obstinados pareciam feras.
O jesuíta lembra ainda a devoção e o respeito dos peixes com os pregadores da
palavra de Deus, o qual lembra a passagem bíblica de Jonas, pregador do mesmo Deus, que
após embarcar em um navio fora jogado ao mar pelos marinheiros para ser comido pelos
peixes. “E como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens laçaram-no ao
mar a ser comido dos peixes; e o peixe que o comeu levou-o às praias de Nínive, para que lá
pregasse e salvasse aqueles homens” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 153). Na história bíblica, no
Antigo Testamento, o profeta Jonas teria sido mandado pelo Deus de Israel para profetizar ao
povo de Nínive, grande capital do Império Assírio, para persuadi-los a se arrependerem ou
seriam destruídos dentro de 40 dias (Jonas 1:1; II Reis 14:25)36. Como o Império Assírio
durante anos causou mortes ao povo de Israel, Jonas não queria cumprir o seu papel de profeta
e fugiu para Jopa em um navio, mas após o seu embarque a viagem foi surpreendida por
fortes tempestades e os marinheiros ao descobrirem um forasteiro dormindo no porão,
interrogaram-no e descobriram que este desobedecera uma ordem divina, logo, as tormentas
pelas quais passavam, tratavam-se de castigos de Deus para ele. Imediatamente, jogaram-no
ao mar, onde foi engolido por um grande peixe que o levou à Nínive. Depois disso, Jonas
cumpriu a missão ordenada por Deus. Sobre esta passagem, o jesuíta reforça que “os tiveram
entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo
à terra” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 154).
Outra virtude geral dos peixes é lembrada por Aristóteles ao dizer que “só eles,
entre todos os animais, se não domam nem domesticam” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 154).
Assim, dos animais terrestres, o cão é doméstico; o cavalo, sujeito; o boi, serviçal, o bugio,
amigo ou lisonjeiro; e até os leões e tigres com arte e benefícios se amansam; dos animais do
ar, o papagaio nos fala, o rouxinol canta, o açor ajuda e recreia. Enquanto aos peixes, “pelo
contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem
36
Cf. Bíblia Católica On-line, Antigo Testamento, livro de Jonas e do II Reis. Disponível em URL:
http://www.bibliacatolica.com.br/. Capturado em 08/01/2011.
103
nas suas grutas, e não há nenhum tão grande, que se fie do homem, nem tão pequeno que fuja
dele” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 154), ou seja, os peixes procuram viver longe dos homens,
longe das cortesanias, vivem consigo mesmos, mas como peixes na água.
Vieira cita também a passagem do grande dilúvio no tempo de Noé e lembra que
dos espécimes terrestres e aéreos escaparam dois de cada (um macho e uma fêmea), mas, e os
peixes? “Todos escaparam: antes, não só todos escaparam todos, mas ficaram muito mais
largos que dantes, porque a terra e o mar, tudo era mar” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 155).
Alega ainda que como os animais terrestres e aéreos eram mais próximos do homem, e o
dilúvio era um castigo lançado por Deus aos homens, estes animais também foram castigados
já que da companhia dos homens lhe viera todo o mal, ao passo que os peixes nada sofreram,
pois viviam longe deles.
Da mesma forma ocorreu com Santo Antônio “que quanto mais buscava a Deus,
mais fugia dos homens” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 154), “para fugir dos homens deixou a
casa de seus pais, e se recolheu ou acolheu a uma religião onde professasse perpétua clausura”
(idem), assim, mudou o hábito, mudou o nome e até a si mesmo mudou, tanto mais apartado
dos homens e mais unido de Deus.
No capítulo III, 1º momento da confirmação, ainda na primeira parte do sermão,
ao tratar dos Louvores em Particular, Vieira demonstra extrema imaginação ao associar
aspectos/características dos peixes em relação aos homens e ao divino. Ele utiliza quatro tipos
de peixes para mostrar a relação entre o homem e o divino, como os peixes se dão a estes
cuidados e os homens não pensam em tais coisas.
O primeiro é o Santo Peixe de Tobias, o qual “ia Tobias caminhando com o anjo
S. Rafael, que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de
um rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta, em ação de que o queria tragar”
(VIEIRA (1656), 2008c, p. 155), continuou, “Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse
que pegasse no peixe pela barbatana, e o arrastasse para a terra, que o abrisse e lhe tirasse as
entranhas, e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
156).
Tobias o fez dessa maneira e perguntou que virtude tinham as entranhas daquele
peixe e o anjo lhe respondeu: “o fel era bom para curar cegueira” e “o coração para lançar
fora os demônios” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 156). O pai de Tobias era cego e ao aplicar-lhe
um pequeno fel aos olhos o filho, recuperou inteiramente a visão; “e tendo um demônio,
chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias, e queimando
104
na casa parte do coração, fugiu dali o demônio, e nunca mais tornou” (VIEIRA (1654), 2008c,
p. 156). Como se vê, este peixe tem entranhas e coração, que expulsam os demônios e
simboliza o poder purificador da palavra de Deus. Por isso, Vieira diz que o vestiram de burel
e o ataram com uma corda, parecendo com um retrato marítimo de Santo Antônio.
Vieira lembra que Santo Antônio abre a boca contra os hereges, e estes
assustados, cuidavam que os queria comer, “Ah! Homens, se houvesse um anjo que vos
revelasse qual é o coração desse homem, e esse fel, que tanto vos amarga, quão proveitoso e
quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito, e lhe vísseis as entranhas”, continua,
“como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas coisas pretende
de vós e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demônios
fora de casa” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 157).
O ponto máximo desta argumentação está quando o jesuíta diferencia o peixe de
Tobias e Santo Antônio: “o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo Antônio abriu a
sua contra os que se não queriam lavar”. Dessa maneira, Vieira se coloca no papel de Santo
Antônio enquanto pregador no Maranhão e diz: “Ah! Moradores do Maranhão, quanto eu vos
pudera agora dizer neste caso! Abri, abri essas entranhas; vede, vede esse coração. Mas ah!
Sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 157).
O segundo peixe escolhido é a rêmora que “tão pequeno no corpo e tão grande na
força, que não sendo maior que um palmo, se se pega ao leme de uma nau da índia [...] a
prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 157), esta virtude o jesuíta associa ao freio da nau e leme do leme.
Assim, compara a virtude da rêmora à força da língua de Santo Antônio: “Quantos,
embarcados na Nau-Vingança, com a artilharia abocada e os bota-fogos acesos, corriam
enfunados a dar-lhe batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a rêmora da língua
de Antônio lhes não detivesse a fúria ...?” (idem, p. 158).
Visto que Vieira compara a virtude da rêmora com a força da língua de Santo
Antônio, sendo a rêmora um peixe pequeno, mas muito forte e poderoso, colocando-se o
jesuíta no papel do Santo, notamos que essa associação - força e língua - simboliza o poder da
palavra do pregador, o verdadeiro guia das almas.
O terceiro peixe é o torpedo, “está o pescador com a cana na mão, o anzol no
fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo, começa a lhe tremer braço.
Pode haver maior, mais breve e admirável efeito?” O torpedo é conhecido como um peixe que
105
produz descargas elétricas para se proteger, por conseguinte, faz tremer o braço do pescador.
Vieira compara essa virtude de “fazer tremer” com a força da palavra de Deus de fazer tremer
os pecadores: “No mar pescam as canas, na terra pescam as varas – e tanta sorte de varas –
pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões, e até os cetros pescam, e pescam
mais que todos, porque pescam cidades e reinos e inteiros” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 157).
O peixe torpedo, dessa maneira, simboliza o poder da palavra de Deus, de fazer tremer os
pecadores que pescam na terra tudo quanto encontram.
O quarto peixe é o quatro-olhos, espécime que o próprio Vieira duvidou que
existisse, já que ouvira falar pelos marinheiros, até o dia em que se certificou estar diante de
um: “Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina providência para
contigo, pois as águias, que são linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as
águias da terra, também dois, e a ti peixinho, quatro” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 159).
O jesuíta interessou-se em investigar as características daquele peixe pelas
circunstâncias do lugar: “notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco para fora do
lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal
forma, que os da parte superior olham diretamente para cima, e os da parte inferior
diretamente para baixo” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 159), e percebeu que “estes peixinhos,
que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do
mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias”
(idem, p. 160), logo, “como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as
sentinelas e deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das
aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes”
(idem).
Vieira associa a virtude do peixe quatro-olhos, que tem dois pares de olhos, uns
para cima e outros para baixo, no intuito de simbolizar o dever dos cristãos de não se deixar
guiar pelos olhos da imanência, mas que buscassem transcender, ou seja, o dever dos cristãos
em tirar os olhos da vaidade terrena, olhando para o céu, sem esquecer o inferno.
O jesuíta encerra os louvores aos peixes dando graças pelo “muito que ajudais a ir
ao céu, e não ao inferno” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 160), lembrando que “deitou-vos Deus a
bênção que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa bênção,
lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio” (idem, p. 161).
106
Na segunda parte do sermão, trata da Repreensão dos Vícios, divide-os em
Repreensões em Geral (capítulo IV – 2° momento da exposição) e Repreensões em Particular
(Capítulo V – 2° momento da confirmação).
No capítulo IV, 2° momento da exposição , que trata das Repreensões em Geral,
acusa os peixes de se comerem uns aos outros, recorrendo a um exemplo dos homens para
explicar o que eles faziam: “[...] é que vós comerdes uns aos outros”, “não só comeis uns aos
outros, senão que os grandes comem os pequenos”, “se os pequenos comeram os grandes,
bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não
bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 161). Acusaos igualmente de cegueira, vaidade e de terem a maldade, capazes de destruir aos seus
semelhantes e lembra que “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os
peixes, que se comem uns aos outros” (idem, p. 162).
Mesmo com esta repreensão, Vieira pede aos peixes que olhem para terra, onde os
tapuias se comem uns aos outros, mas muito maior açougue é o que ocorre entre os homens
brancos, “morreu algum deles: vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo.
Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os
credores, comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defuntos e ausentes” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 162). O jesuíta relata ainda aos peixes que os homens não comem uns aos outros só
quando morrem, “mas, para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes,
que também os homens se comem vivos, assim como vós (Jó 19,22)” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 162). Assim, demonstra que os homens que andam perseguidos de pleito ou
acusados de crimes também são comidos vivos: “comeu o meirinho, comeu o carcereiro,
comeu o escrivão, comeu o solicitador, comeu o advogado, comeu o inquiridor, comeu a
testemunha, comeu o julgador, e ainda não está sentenciado, e já está comido” (idem).
Vieira aponta que este defeito ou vício de se comerem uns aos outros é um ato de
maldade, típico dos homens grandes que comem os pequenos, “porque os grandes, que têm o
mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por
um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 163).
Todavia, o jesuíta adverte aos peixes que assim como os peixes grandes comem os
pequenos, há outros peixes maiores que comem os peixes grandes, “guarde-se o peixe que
persegue o mais fraco, para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele”
107
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 164). Dessa maneira, demonstra que por maior que seja o
predador, haverá sempre outro pronto a engoli-lo.
Esse vício de comer uns aos outros vai de encontro à virtude do Santo peixe de
Tobias, pois para que o homem se beneficiasse das virtudes do peixe, que estavam em suas
entranhas, era necessário que o peixe fosse grande para engoli-lo. A alegoria se completa com
o rito do engolimento de Jonas, mas Vieira mostra que, em se tratando da passagem bíblica de
Tobias, esse engolimento pode ser reduzido ao gesto de o mesmo enfiar o braço nas entranhas
do peixe, ou seja, em vez de entrar o corpo todo, entra apenas uma parte do corpo, o braço.
Este exercício metonímico é muito parecido com o processo de gulliverização apresentado
por Durand (1997):
A gulliverização integra-se, assim, nos arquétipos da inversão, subentendida que é
pelo esquema sexual ou digestivo do engolimento, sobredeterminada pelos
simbolismos do redobramento e do encaixe. É inversão da potência viril, confirma o
tema psicanalítico da regressão do sexual ao bucal e ao digestivo. Mas o grande
arquétipo que acompanha esses esquemas do redobramento e os símbolos da
gulliverização é o arquétipo do continente e do conteúdo (DURAND, 1997, p.214).
Dessa maneira, quando os peixes comem uns aos outros reproduzem o esquema
do redobramento representado pelo continente e pelo conteúdo. Ao ser engolido pelo peixe
(continente), Jonas entra em contato com a verdade divina, a purificação espiritual (o
conteúdo), e o mesmo ocorre com o Santo peixe de Tobias, a que se refere o padre Antônio
Vieira.
Ainda falando sobre os vícios e repreensões aos peixes, Vieira coloca o quanto
devem ser “repúblicos e zelosos do bem comum, e que, isto prevaleça contra o apetite
particular de cada um” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 165), para que não sejam vítimas de seu
próprio apetite, visto que lá fora há muitos inimigos “perseguidores tão astutos e pertinazes
quantos são os pescadores, que nem de dia, nem de noite, deixam de vos pôr em cerco, e fazer
guerra por tantos modos” (idem). Dessa maneira, o jesuíta pede aos colonos fazendeiros no
Maranhão que parem de perseguir não só aos seus pares, mas também aos menores (índios,
escravos), comendo-vos uns aos outros.
Outro argumento que o padre utiliza para pedir que parem de comer uns aos
outros é afirmar que “o mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e, só com o que bota
às praias, pode sustentar grande parte dos que vivem dentro dele” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
165). E ainda lembra o acontecido na Arca de Noé em que animais das mais diferentes
108
temperanças conviveram juntos sem comer uns aos outros, comendo da mesma ração do paiol
comum, que Nóe lhes repartia.
Vieira ainda faz mais uma repreensão, trata-se da cegueira dos peixes, que se
deixam fisgar por qualquer isca jogada ao mar, até um pedaço de pano no anzol: “pode haver
maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um pedaço de pano
perder a vida?” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 166). Alega, assim, que não é diferente com os
homens, quantos homens vão à guerra sem saber porque estão lutando? “Metem-se os homens
pelas pontas dos piques, dos chuços, e das espadas, e por quê? Porque houve quem os
engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 166).
Ainda tratando da cegueira dos peixes, Vieira relata que os homens do Maranhão
se deixam fisgar também por uns retalhos de pano: “Vem um mestre de navio de Portugal
com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que se já lhes passou a era
e não têm gasto, e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra...” (VIEIRA
(1654), 2008c, p. 166), demonstrando que é grande loucura dos homens a cegueira de
deixarem-se enganar ou “tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano”.
Vieira finaliza esse capítulo do sermão, afirmando que Santo Antônio nunca
praticou antropofagia social e que trocou a riqueza pela simplicidade: “sendo moço e nobre,
deixou as galas de que aquela idade tanto preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia
de cônego regrante, e, depois que se viu assim vestido,” continua, “parecendo-lhe que ainda
era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com
aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram
sisudos” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 167).
No capítulo V, 2° momento da confirmação, em que trata das Repreensões em
Particular, Vieira usa quatro exemplos de peixes que se referem a tipos comportamentais
relacionados ao homem.
O primeiro é o peixe roncador, que surpreende o jesuíta desde o dia em que
chegou à costa maranhense: “É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de
ser as roncas do mar?” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 168). Vieira associa o ronco à arrogância e
afirma que “se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza”
(idem). O jesuíta atribui a causa do ronco nos homens a duas coisas, “porque ambas incham: o
saber e o poder” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 168), “Caifás roncava de saber, Pilatos roncava
de poder, e ambos contra Cristo, mas o fiel servo de Cristo, Antônio, tendo tanto saber, como
já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o
109
ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais brasonar disso” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
169), assim, entendemos que os peixes roncadores simbolizam a arrogância do ser humano.
O segundo peixe é o pegador que “porque sendo pequenos, não só se chegam a
outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 169). Como os peixes grandes não podem virar a cabeça para
comer os pequenos, estes se pegam às suas laterais para comer os restos de comida, que
aqueles mastigam, quando pegam uma presa. Vieira associa este comportamento dos
pequenos às atitudes de pegadores na Corte, quando acompanham o vice-rei ou governadores
para as conquistas, ficam-lhes na retaguarda para garantir que lhes matem a fome e supram as
suas necessidades.
Mas o jesuíta adverte aos peixes pegadores que o destino que lhes sucede não é
dos melhores, e exemplifica que um tubarão uma vez capturado pelo anzol, depois de muita
luta para içá-lo à superfície, bate fortemente contra o convés e morre, e, enfim, morrem com
eles os pegadores. “Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este
modo de vida que escolhestes. Tomais exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós,
nem seguem, como deveram, o de Santo Antônio” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 170). Dessa
maneira, para Vieira o peixe pegador simboliza os oportunistas, e atinge grande parte dos
fazendeiros maranhenses que, à sombra dos governantes, cometiam desmandos na colônia;
mas os governantes caem e com eles os pegadores também.
Vieira solicita aos peixes que se querem chegar aos grandes que o façam, “mas
não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 170), pois como morreram os pegadores que se pegaram ao tubarão? “O tubarão
morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância
que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu: matou-o sua gula;
mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar!”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 171).
O terceiro peixe é o voador, cuja queixa não é pequena segundo o jesuíta: “Dizeime, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? [...]
Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 171). O peixe voador tem maiores barbatanas que os outros peixes, o que lhe
permite saltar para fora d`água e planar por alguns instantes no ar, mas Vieira aponta “olhai
para vossas espinhas, e para vossas escamas, e conhecereis que não são aves, e ainda, entre os
110
peixes, não dos melhores” (idem), assim, já que de peixe quis ser ave, o mesmo Deus permite
que tenhas os perigos de ave e de peixe.
Para Vieira, o peixe voador simboliza a atitude dos ambiciosos, e arremata com
um ditado popular: “Quem quer mais do que lhe convém perde o que quer e o que tem”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 172), assim, “quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que
não voe, nem nade” (idem). O jesuíta associa os peixes aos homens utilizando uma passagem
bíblica: “Simão Mago a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome;
fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que nos olhos de toda
Roma havia de subir ao céu, e, com efeito, começou a voar muito alto; porém a oração de S.
Pedro”, continua, “que se achava presente, voou mais depressa que ele, e, caindo lá de cima o
mago, não quis Deus que morresse logo, senão que nos olhos também de todos quebrasse,
como quebrou os pés” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 172). Veja-se que de queda tão alta Simão
não morreu, pois se tem pés para andar, e quer asas, pode andar e quer voar; quebrem-se-lhe
as asas, para que não voe, e também os pés, para que não ande.
O quarto e último peixe escolhido por Vieira é o polvo, considerado o traidor do
mar: “O polvo com aquele seu capelo na cabeça, com aqueles seus raios estendidos, parece
uma estrela; com aquele não ter osso, nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma
mansidão”, continua, “E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa
[...] o dito polvo é o maior traidor do mar” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 173). O jesuíta explica
que a traição do polvo consiste em se pintar ou vestir das mesmas cores daquilo a que se pega:
“Se está nos limos, fez-se verde, se está na areia, faz-se branco, se está no lodo, faz-se pardo,
e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma esta, faz-se da cor da mesma
pedra. Dessa maneira, o polvo aguarda suas presas às escondidas, e lhes lança os tentáculos
para agarrar-lhes, por isso, o jesuíta o associa ao próprio Judas, com agravantes maiores, pois,
“Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça, e mais o que
prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 173), assim, argumenta que o polvo é um peixe aleivoso e vil, de
tamanha maldade, que Judas em sua comparação é traidor menor.
Em seguida, Vieira argumenta como poderia da água, elemento tão puro, diáfano
e transparente se criar um monstro tão dissimulado, tão astuto, tão enganoso, e tão
conhecidamente traidor? “Vejo, peixes, que, pelo conhecimento que tendes das terras em que
batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo que também nelas há falsidades,
111
enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 174). Para o jesuíta, o polvo simboliza o traidor e o hipócrita.
Uma vez expostos os louvores e repreensões dos peixes, o missionário encerra
este capítulo lembrando aos peixes que também não devem se aproveitar dos bens dos
náufragos, pois ficam excomungados e malditos, como os homens que o cometem.
4.3. O grande peixe engolidor
Por fim, no capítulo VI, a Peroração, é interessante notar como as qualidades
positivas e negativas dos peixes escolhidos pelo padre são metáforas de comportamentos dos
homens da sociedade maranhense na época, mais especificamente, dos colonos fazendeiros a
quem ele buscava atingir.
Na peroração, o orador retoma os pregadores de que falava no conceito
predicável, no início do sermão, servindo-se dele próprio como exemplo, alegando que não
estava a cumprir a sua função. Alega também que ele (homens) e os peixes, nunca vão chegar
ao sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito:
“Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que
vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma
desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o
Levítico” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 175).
Conta o padre, no ritual do Levítico, que escolheu Deus certos animais para
sacrifício, entre eles, terrestres e aves, ficando excluídos os peixes, pois, aqueles podiam ir
vivos ao sacrifício, e estes geralmente não, senão mortos; “e cousa morta não quer Deus que
se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares”, “Oh quantas almas chegam àquele altar mortas,
porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas
graças a Deus de vos livrar deste perigo, [...]”(VIEIRA (1654), 2008c, p. 175-176).
Padre Antônio Vieira deixa claro que a irracionalidade, a inconsciência e o
instinto dos peixes são melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, a consciência, o
entendimento e a vontade do homem. Conclui assim, fazendo um apelo aos ouvintes e
louvando a Deus, tornando esta última parte do sermão um pouco mais ‘familiar’, para que se
estabeleça de novo a proximidade entre os ouvintes e o orador.
112
Mas lembremos que o próprio Vieira, em determinado ponto do sermão,
demonstra qual seria o melhor caminho para que essa proximidade entre ouvintes e orador de
fato aconteça: “Ah! Homens, se houvesse um anjo que vos revelasse qual é o coração desse
homem, e esse fel, que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe
abrísseis esse peito, e lhe vísseis as entranhas” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 157). O caminho
está nas entranhas do pregador, é por esse caminho que os ouvintes hão de encontrar a paz, a
justiça, a perseverança de que precisam para se tornarem seres humanos melhores. O jesuíta
ainda reforça: “Ah! Moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso!
Abri, abri essas entranhas; vede, vede esse coração. Mas ah! Sim, que me não lembrava! Eu
não vos prego a vós, prego aos peixes” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 157).
Através do discurso do jesuíta, percebemos a inversão dos polos de poder entre
ele próprio e os colonos. Ao tratar dos vícios dos peixes, ele demonstra que os colonos são
como peixes que engolem uns aos outros, ignorantes e cegos, e neste cenário ele se vê como
um peixe engolido por essa cegueira, ignorância e ambição. Mas, ao tratar dos louvores, ele se
compara ao Santo peixe de Tobias, que em suas entranhas carrega a bondade, a justiça e a
salvação dos males desta terra; o padre Antônio Vieira de peixe engolido se torna o peixe
engolidor: “Abri, abri essas entranhas; vede, vede esse coração” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
157).
Enquanto grande peixe, prega aos peixes menores (ouvintes) e se coloca na
situação do Santo peixe de Tobias, pedindo aos peixes menores que conheçam as suas
entranhas, a sua intimidade, o seu aconchego. Segundo Durand (1997), “o primordial e
supremo engolidor é, sem dúvida, o mar, como o encaixe ictiomórfico no-lo deixava
pressentir [...] é o arquétipo da descida e do retorno às fontes originais da felicidade” (p.225).
Mesmo o maior dos peixes engolidores, a baleia, torna-se engolido diante do engolidor
supremo – o mar. Por isso, Durand (1997) ratifica que o peixe é símbolo do continente
redobrado, do continente contido, por isso, o esquema do engolidor engolido conduz a uma
inversão dos grandes arquétipos do medo, transformando-os em valores benéficos, guardados
no íntimo, no aconchego do continente.
Esta análise nos leva a refletir que as imagens ictiográficas desenvolvidas pelo
padre Antônio Vieira no sermão de Santo Antônio (aos peixes) revelam o que há de mais
íntimo no imaginário social do jesuíta: o desejo de paz, aconchego, felicidade. Era isso que os
peixes menores deveriam buscar em suas entranhas. Tal ideia é justificada nos argumentos de
Neves (2004) ao afirmar que “o projeto vieiriano busca prevenir o conflito e o pecado pelo
113
acatamento geral de dispositivos que, preservando diferenças, sirvam para o estabelecimento e
reprodução de uma totalidade: o Bem, a comunhão de todos os bons em Cristo” (p. 35), sem
esquecer que esta convivência, se não tão benéfica ao colonizador (sob a ótica da exploração
da mão de obra escrava indígena), seria pedra fundamental para o projeto da Companhia, de
uma construção de terrena cidade celeste (NEVES, 2003) no novo continente.
O imaginário social do jesuíta estava impregnado deste objetivo: construir um
mundo fraterno, justo, pacífico, sagrado, em que a palavra do Rei caminhasse de acordo com
a palavra de Deus, pois como missionário da Companhia de Jesus e conselheiro oficial do Rei
D. João IV, ele era um representante tanto da Fé quanto do Império e devia, perante os
colonos maranhenses, fazer justiça a tais prerrogativas. Mas, como lembra Neves (2003), “os
obstáculos – que muitas vezes ele classificou como os de maior relevo – viriam justamente do
‘campo católico’; viriam dos colonos portugueses” (NEVES, 2003, p. 49)
O discurso de Vieira expressa, portanto, uma luta dialética entre os diferentes
papéis e funções que o jesuíta desempenhou na colônia, movido pelas contradições, rupturas e
continuidades ideológicas que os fatos sociais exigiam de suas ações – fosse como jesuíta,
pregador, orador, missionário, diplomata, jurista, entre outras faces – e se tornam objetos de
estudo complexos e verdadeiros obstáculos a uma compreensão teoricamente mais fecunda
dos textos deixados pelo sacerdote.
A imagem do peixe engolidor reforça, na imaginação social do jesuíta, as
múltiplas faces com as quais se apresentou ao cenário maranhense; por outro lado, embora
atuasse em tantos papéis, havia duas performances das quais não podia abdicar: jesuíta,
representante da Companhia de Jesus; e política, representando os interesses de El-Rei D.
João IV na colônia.
No capítulo que se segue, vamos considerar como as imagens analisadas neste
sermão, de uma forma ou de outra corroboram para a construção de imaginário social
jesuítico de padre Antônio Vieira.
114
Capítulo 5
Figura 06: Lugares por onde Vieira pregou mais tempo.
Ora, cristãos, por reverência daquele Senhor – que sendo Deus se preza de se chamar
Verdade – que façamos hoje uma muito firme e muito verdadeira resolução de não haver
paixão nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça torcer nem faltar um ponto à
verdade; quanto ao passado, que examinemos muito devagar e muito escrupulosamente se
ter-nos faltado à verdade em alguma coisa, principalmente em matéria da honra de nossos
próximos. Olhai, senhores, que este, este é o pecado que mais facilmente se comete, e com
mais dificuldade se restitui. Olhai, cristãos, que as balanças em que se pesam as consciências
na outra vida são muito delicadas, e que será grande desgraça ir ao inferno para sempre por
um falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito bem examinada, em uma
confissão muito bem feita, e em uma satisfação muito verdadeira, advertindo-vos e
protestando-vos da parte de Deus, que sem estas três condições, nem nesta vida podeis
alcançar a graça, nem na outra merecer a glória (VIEIRA (1654), 2008b, p. 11)
115
5. BUSCANDO CAMINHOS NAS TEIAS DA IMAGINAÇÃO DO PADRE ANTÔNIO
VIEIRA
Os três sermões de Vieira que analisamos nos capítulos anteriores evidenciam a
força do imaginário do jesuíta nos púlpitos proferidos no Maranhão, sem desconsiderar outros
fatores também importantes neste processo de construção de imagens, como já dissemos
anteriormente, por exemplo: ele próprio reeditou seus sermões antes de publicá-los, fato que
não podemos desconsiderar, entre outros fatores que de certa forma podem influenciar
bastante na maneira como este sermões chegaram até nós.
Por tudo que vimos, a teia de
discursos do padre Antônio Vieira é tão densa que parece mais um emaranhado de fios sem
ponta à mostra; ao encontrá-la, convida-nos a mexer como um novelo que pede para ser
desfeito.
A intenção, neste capítulo, é discutir uma possível estrutura imaginária que como
“fio condutor” permeava a capacidade imaginativa do jesuíta e conduzia a construção
dialética dos seus discursos. Levando em consideração que os objetos simbólicos, enquanto
imagens, segundo Durand (1997), embora utilizados como utensílios, não são nunca puros,
eles podem constituir tecidos onde várias dominantes (gestos reflexológicos) podem imbricarse, como, o sermão dos peixes cujo peixe (padre Antônio Vieira) pode ao mesmo tempo ser
uma imagem diurna, como símbolo teriomórfico pela impressão de mordida feroz do animal;
ou uma imagem noturna, símbolo do engolimento pelo peixe engolidor.
Essa ambivalência na imagem do peixe, símbolo teriomórfico (imagem diurna) e
símbolo do engolimento (imagem noturna) demonstra, de certa maneira, o dinamismo do
imaginário humano em suas diferentes manifestações. Para Durand (1997), é através dos
gestos reflexológicos que se torna possível “desenredar os tecidos e os nós que as fixações e
as projeções sobre os objetos do ambiente perceptivo constituem” (p. 54). Em se tratando do
padre Antônio Vieira, como podemos captar os seus gestos reflexológicos?
Visto que é impossível realizar uma observação física do objeto de estudo, restanos um outro campo de observação que também comporta as ações reflexológicas do ser
humano: a linguagem. Por isso, foi pelo discurso do jesuíta que buscamos perceber suas ações
reflexológicas diante do cenário em que atuava no Maranhão do século XVII.
Posto que estamos diante de imagens inatas, Durand (1997) propõe em sua teoria
buscar uma ordem de coisas mais simples, mais visíveis e antropologicamente palpáveis, o
116
princípio organizador de sua "geografia das imagens". O que há de mais simples e universal
do que os reflexos fundamentais para uma determinada espécie? Em As estruturas
antropológicas do imaginário (1997) ele identifica as noções de gesto ou dominante
reflexa como as matrizes elementares sobre as quais o recém-nascido - e a espécie humana constroem, progressivamente, o simbolismo. Essas matrizes são, para Durand (1997), os eixos
em torno dos quais se polarizam as estruturas antropológicas do imaginário - verdadeiros
"nós imaginais" que organizam os símbolos, seja em nível individual ou coletivo. Dito de uma
outra maneira, as dominantes reflexas:
Não são outra coisa senão os mais primitivos conjuntos sensório motores que
constituem os sistemas de “acomodações” mais originários na ontogênese e aos
quais, segundo a teoria de Piaget, se deveria referir toda a representação em baixa
tensão nos processos de assimilação constitutivos do simbolismo (DURAND, 1997,
p. 34).
A noção gesto ou dominante reflexa é extraída por Durand (1997) da reflexologia
russa
de
Betcherev.
Este,
segundo
Durand,
identifica
no
recém-nascido
três gestos ou dominantes reflexas: (a) dominante de posição ou postural, relacionada à
verticalização do corpo e à organização óculo motora; (b) dominante de nutrição, que se
manifesta no recém-nascido pelos reflexos de sucção labial e de orientação correspondente da
cabeça, deglutição e defecação; (c) dominante copulativa, relacionada à rítmica vital e à
sexualidade (DURAND, 1997). Aos gestos inconscientes das dominantes reflexas
correspondem, em uma espécie de convergência semântica, as representações constitutivas do
imaginário. Dessa forma, à dominante postural correspondem os esquemas da verticalização
ascendente
e
da
divisão
manual
ou
visual;
à dominante
digestiva correspondem
os esquemas da descida, do acocoramento na intimidade e do esconderijo; à dominante
copulativa correspondem os esquemas rítmico, dialético e progressista. Tendo como
referência
a
terminologia
reflexas correspondem,
de
segundo
sua
teoria
Durand
do
imaginário,
(1997),
a
essas dominantes
respectivamente,
as
estruturas heroica, mística e sintética do imaginário.
Assim, cruzando as imagens dos três sermões analisados nesta tese, chegamos a
algumas que refletem uma base de ações reflexológicas do padre Antônio Vieira nos três
textos. São estas imagens que visualizamos como mais recorrentes no imaginário do jesuíta e
que funcionam, dessa maneira, como fio condutor no processo de construção do seu
imaginário jesuítico no Maranhão do século XVII, visto que sofre influências do contexto e
do cenário, do tempo e do espaço locais: a imagem do soberano mago guerreiro, a imagem
117
dos vícios, a imagem dos opostos ou da contradição e as estruturas esquizomórficas (ou
heroicas) do jesuíta.
5.1. A imagem do soberano mago guerreiro
Apresentamos, desde o início desta pesquisa, um Antônio Vieira de caráter uno e
múltiplo simultaneamente, também ratificamos que, em cada sermão analisado nesta tese, o
jesuíta trata de questões diversas para defender interesses em comum: o projeto das missões,
cujo êxito e sucesso dependia dos esforços do jesuíta Superior, ele próprio, e os interesses da
Coroa, visto que como braço direito do Rei era um dos grandes representantes do Império
também.
No entanto, além desses dois papéis sociais que exercia com empenho na colônia,
Vieira possuía mais uma atuação que lhe custava caro na sua participação social no Maranhão
do século XVII: a imagem do herói/justiceiro/guerreiro. O problema é que esta imagem
depende do ponto de vista de quem participa desta justiça. Para a Coroa e a Companhia de
Jesus, Vieira fazia jus a este papel.
João Lúcio de Azevedo (1901) afirma que, em junho de 1658, entrou no
Maranhão o novo governador Dom Pedro de Mello. “Mais ditoso que seu antecessor, e, em
contraste, dissimulado, ambicioso e perverso, logrou por bastante tempo as boas graças de
Vieira” (AZEVEDO, 1901, p. 74). Interessante é que mais tarde o governador ainda mais
hábil do que o jesuíta, abandonou-o, em vez de ser, como de razão, repudiado por ele. “No
começo, por frouxidão natural e temor das intrigas na corte; mais tarde, pelo interesse de
negociações, a que os jesuítas fechavam os olhos, não lhes regateava condescendências; e só o
prospecto de maiores ganâncias o levou a mudar” (Idem).
Segundo João Lúcio de Azevedo (1901), os favores do governador “chegaram ao
extremo de possuir Vieira em mão papéis assinados em branco pelo governador, que lhe
serviam para reduzir a obediência os indivíduos recalcitrantes. Daí que se colige o poder que
o grande missionário então exerce na colônia” (AZEVEDO, 1901, p. 74).
Notamos nestas passagens de João Lúcio de Azevedo (1901) o relativo poder que
o padre Antônio Vieira exercia no Maranhão, a ponto de os representantes da Coroa que
vinham para governar a colônia, necessariamente, deverem manter uma relação harmoniosa
118
com o jesuíta, como, vemos, na expressão: logrou por bastante tempo as boas graças de
Vieira. Já as expressões no começo por frouxidão natural e temor das intrigas na corte
demonstram, primeiramente, o aspecto assustador ou ameaçador que o missionário exercia
perante os outros na colônia, mas também, o feixe de relações de poder com as quais se
comunicava o padre e que poderiam pôr abaixo qualquer pessoa da corte que se indispusesse
com ele.
Essas características de assustador/ameaçador e temível corroboram com o papel
de soberano benevolente e sacerdotal atribuído ao jesuíta por aqueles que, como ele,
defendiam o fim da escravização indígena e os maus-tratos sofridos pelo aborígene. Para
Durand (1997), a imagem do soberano mago guerreiro é ambivalente, redobrada em um
esquema separador, “porque o próprio Grande Deus apresenta-se sob dois aspectos matizados
que se tornam depressa antitéticos37” (DURAND, 1997, p. 139): “O grande Deus é Mitra, o
soberano benevolente, sacerdotal, senhor do raciocínio claro e regular, mas é também Varuna,
o guerreiro terrível, o violento, o herói inspirado” (Idem).
Para Durand (1997), “todo poderio soberano é triplo: sacerdotal e mágico por um
lado, jurídico por outro e, por fim, militar” (DURAND, 1997, p. 140). Vieira parece ter
exercido, com destreza, cada uma dessas funções: como sacerdote, foi membro da Companhia
de Jesus; como jurista, legislou sobre a escravização dos índios ao criar os cativeiros justos; e
como militar, elaborou estratégias de como combater os seus inimigos, ainda que utilizasse,
geralmente, como armas, a pena e a tinta.
Odin, Varuna, Urano são reis padres, reis magos, reis xamãs. E por detrás deste
vocábulo reencontramos as técnicas ascensionais a que Eliade consagrou um
importante livro. Odin, além do mais, parece ser o protótipo do monarca terrestre, é
chamado “Deus do chefe”, é uma divindade aristocrata reservada a certas camadas
sociologicamente rarefeitas e comparáveis aos brâmanes da Índia. O monarca é
então ao mesmo tempo mago inspirado, com prerrogativas ascensionais, soberano
jurista e ordenador monárquico do grupo, e acrescentaremos que não se podem
separar destas duas funções os atributos de executivos guerreiros (DURAND, 1997,
p. 140).
É interessante observar que estamos discutindo a imagem arquetipal do soberano
o que justifica bem a relação do jesuíta com o Rei de Portugal D. João IV à época de sua
presença no Maranhão. Veremos que Vieira apresentava-se à sociedade maranhense com ares
de monarca, pois para suportar as críticas e veleidades que sofrera dos colonos maranhenses,
só estando mesmo sob a proteção real.
37
Antitéticos é o que se refere a antítese, ou seja, figura de linguagem na qual se utiliza elementos, componentes
ou ideias contrárias.
119
João Lúcio de Azevedo lembra a revolta que o padre Antônio Vieira teve que
enfrentar em São Luís, em 1655, ao retornar do Pará das missões no Alto Amazonas. A
Câmara Municipal de São Luís acusava os jesuítas utilizando sempre as mesmas queixas e
justificações: “os resgates, e a zelosa guarda que os jesuítas faziam nas aldeias, negando aos
colonos os servos que, segundo a lei, tinham de repartir-lhes” (AZEVEDO, 1901, p. 74).
Azevedo (1901) aponta que os jesuítas procuravam se defender e alegavam
impossibilidades de tais fatos ocorrerem, visto que provavam com testemunhas suas o exato
cumprimento da lei. “As câmaras protestavam, entendendo que os religiosos se deviam
restringir a direção espiritual dos índios, deixando aos leigos a administração temporal”
(AZEVEDO, 1901, p. 74).
Os representantes da câmara não se deram por convencidos e fizeram críticas
severas aos jesuítas, principalmente, dirigidas a Vieira, com certa ironia: “Vossa Paternidade
lembre-se da promessa que os missionários fizeram a Sua Majestade de que não haviam tirar
lucro dos índios forros, nem com eles fabricar fazendas, nem canaviais”, continuam, “Já que
Deus deu a Vossa Paternidade tão grande juízo e entendimento, que nos faça mercê por
serviço de Deus e de sua Majestade, e remédio deste povo, dar-nos caminho para nos
governar bem, e passar a vida sem vaidade nem gastos excessivos ...” (AZEVEDO, 1901, p.
76).
Tais posicionamentos dos representantes da câmara no Maranhão demonstram, de
certa maneira, o poder político que cerceava as práticas sociais do padre Antônio Vieira no
seu exercício missionário. Práticas estas que causavam turbulências aos interesses dos colonos
fazendeiros e dos representantes da Coroa na colônia.
Outro ponto que não podemos deixar de discutir é o fato de o governador dispor
ao jesuíta papéis em branco assinados, corroborando o aspecto poderoso deste perante todos
na colônia, pois aqui cabe uma reflexão a respeito deste poder múltiplo de Vieira, visto que
parte desse prestígio foi conquistado com a ajuda de outros poderosos: sua proximidade,
confiança e respeito com o Rei conferiram-lhe tal fama e, consequentemente, alguns
privilégios.
Todavia, ao observarmos cautelosamente esta questão, não podemos nos
distanciar de outra habilidade muito bem desenvolvida e praticada pelo jesuíta: a oratória e a
retórica (como já mencionamos no primeiro capítulo desta tese). A linguagem constitui uma
poderosa força de poder. Em seus sermões Vieira ataca os colonos fazendeiros do Maranhão
fazendo o uso sistemático (evidentemente, resultado da formação escolástica e extrema
120
destreza de lidar com a retórica e a oratória) das figuras de linguagem (basicamente a
prosopopeia ou personificação, a metáfora, a sinédoque ou metonímia, o quiasmo ou oxímoro,
as antíteses, as símiles, a gradação, os paralelismos e as anáforas, o hipérbato e a hipérbole).
Neves (1997) afirma que “Vieira observa e legisla sobre aquilo que vem em
primeiro lugar em sua ideologia - na ideologia religiosa dominante do Ocidente”, indiferente
aos obstáculos que pudessem aparecer, o jesuíta buscava ordenar o estabelecimento das
missões nas regiões do Maranhão e Grão-Pará a qualquer custo.
Assim, levando em consideração a classificação isotópica das imagens de Gilbert
Durand, podemos apontar uma possível classificação para as imagens mais recorrentes no
imaginário social jesuítico do padre Antônio Vieira: há um predomínio do Regime Diurno,
principalmente, com as imagens ascensionais, espetaculares e diairéticas.
Para Durand (1997), o regime diurno das imagens é marcado por duas faces do
tempo: a primeira, marcada pelas imagens do medo do tempo e da morte, apresenta três
símbolos geradores: os símbolos teriomórficos, nictomórficos e catamórficos (já explicamos
isto no item 1.6 do primeiro capítulo). Em oposição aos três símbolos já mencionados no
regime diurno da imagem, configuram-se os símbolos ascensionais, espetaculares e
diairéticos. Esses três grandes temas, não só constituem os homólogos antitéticos das faces do
tempo, vistos anteriormente, como também estabelecem uma estrutura profunda da
consciência, esboço de uma atitude metafísica e moral.
Dessa maneira, os símbolos ascensionais marcam a preocupação fundamental da
simbolização verticalizante, acima de tudo, a escada levantada contra o tempo e a morte. A
ascensão repousa no contraponto negativo da queda. Logo, as constelações imagéticas que
gravitam nesses símbolos são as morais (um dos temas preferidos de Vieira), que reforçam o
sentido de retidão, elevação e todas as imagens que remetem à verticalidade, tais como a asa,
a águia, a pomba, a flecha, a cabeça, o anjo. Os símbolos ascensionais aparecem-nos
marcados pela preocupação da reconquista de uma potência perdida, de um tônus degradado
pela queda.
Já os símbolos espetaculares, em complemento ao isomorfismo ascensional,
ligam-se diretamente ao que conduz o ser humano a tudo que remete à luz. O mesmo
isomorfismo semântico agrupa os símbolos da luz e os órgãos da luz, em que a visão
transforma-se em vidência e sobredetermina a palavra.
A luz é relacionada com a
obscuridade para simbolizar os valores complementares ou alternantes de uma evolução. A
luz é símbolo de conhecimento, de vida; é expressão das forças fecundantes. A luz sucede as
121
trevas, que são por corolário, símbolo do mal, da infelicidade, do castigo, da perdição e da
morte.
Os símbolos diairéticos remetem ao aspecto dialético da transcendência, em que a
intenção profunda que os guia é a polêmica que os põe em confronto com os seus contrários.
Do mesmo modo, a luz tem tendência para se tornar raio ou gládio e a ascensão para dilacerar
um adversário vencido. Tais símbolos envolvem, ainda, os rituais de purificação em que o
herói, na busca da transcendência, purifica-se pelo batismo na água ou no fogo e pelo corte de
lâmina.
Por esses seis esquemas (e as suas respectivas estruturas esquizomórficas),
percebe-se que todo o regime diurno da representação, pelo seu fundamento diairético e
polêmico, repousa sobre o jogo das figuras e imagens antitéticas. Todo o sentido desse regime
é pensamento contra as trevas, medo da derrota, da sucumbência, da animalidade da queda, ou
seja, contra Cronos, o tempo mortal. Isso explica a persistência do padre Antônio Vieira na
sua luta contra os colonos no Maranhão. A sua responsabilidade de missionário, o seu voto de
compromisso com a Igreja e o seu espírito guerreiro compeliam-no para o projeto das
missões, levando consigo a única arma de que precisava para lutar contra as adversidades,
como soberano-mago-guerreiro: o poder da palavra.
5.2. O sentido de “vícios” para o Padre Antônio Vieira: ataque aos vícios do Maranhão
O vício, à semelhança da virtude, é um hábito. Só que, ao contrário da virtude,
caracteriza uma disposição estável para a prática de algum “mal” (OLIVEIRA, 2011b). Mas,
qual o sentido de “vício” para Vieira? Em qualquer dicionário da Língua portuguesa,
encontraremos a palavra vício com o sentido de “defeito que torna algo ou alguém inadequado
a determinado fim; imperfeição, deformidade; tendência para determinado hábito prejudicial;
disposição contumaz para o mal; costume moralmente censurável; devassidão, libertinagem;
costume ou hábito nocivo” (LAROUSSE, 2010). Aparentemente, parece-nos que Vieira
utilizou-a em todos os sentidos possíveis. No entanto, há, como já dissemos, uma forte relação
entre a moral e a virtude, portanto, uma tendência do jesuíta em considerar o vício como
“costume moralmente censurável”, “tendência para determinado hábito prejudicial”,
“disposição contumaz para o mal” ou “costume ou hábito nocivo”.
122
A temática dos ‘vícios’ era recorrente na construção dos três sermões
apresentados pelo padre Antônio Vieira. Percebemos que na construção do imaginário, o
jesuíta criava imagens que se relacionavam com algum vício que pretendia atacar. É o que
ocorre no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma quando ataca os vícios da ambição e da
ganância dos colonos que escravizavam os índios a qualquer custo. Para criticar estes vícios,
o jesuíta recorre às imagens da “alma”, reduzida analogamente à mercadoria, e do
“demônio”, personificação do lado maléfico, sombrio e desobediente dos fazendeiros do
Maranhão que não respeitavam a lei e a “vontade de Deus”, por isso, o mote38: “A que
diferente preço compra hoje o demônio as almas no Maranhão!” (VIEIRA(1653), 2008a, p.
106).
Vimos que as imagens que guiaram o trajeto imaginário do jesuíta no sermão
foram, principalmente, o valor da “alma” para o “homem” (fazendeiro) e para o “demônio”,
bases que ele utilizou para defender a sua tese sobre as tentações humanas, como a usura
desmedida dos fazendeiros em escravizar os índios para trabalharem em suas lavouras e
residências.
No mesmo sermão, Vieira fala das pragas jogadas sobre o povo egípcio e dos
perigos das tentações com as quais o demônio se mascara para nos enganar. Mostra que as
almas perdidas pela cobiça e ambição desmedidas, que cativam injustamente os índios, devem
ser castigadas, como ocorrido com o Faraó do Egito, na passagem bíblica de Moisés. No
entanto, o próprio Vieira desenvolve, no sermão, teorias ou argumentos que justifiquem a
necessidade dos cativeiros justos ou cativeiros lícitos39.
De certa maneira, o cativeiro ilícito é um dos vícios que Vieira pretendia atacar
com a construção do sermão. Pois, argumentará sobre as condições para que o índio se
tornasse um cativo, segundo as leis régias da época. Assim, classifica as populações que
tinham a possibilidade de serem escravizadas no Maranhão em três grupos: 1 - "os escravos
que já estão na cidade", que tem o direito de escolher se continuam a trabalhar ou não; 2 – "os
que vivem nas aldeias de El-Rei como livres" e 3 - os que "vivem nos sertões", de que só
poderiam ser trazidos aqueles que estivessem presos em tribos inimigas e para serem mortos,
o que justificaria a escravidão. Consequentemente, para amenizar o impasse entre os
fazendeiros e os jesuítas, Vieira criou os cativeiros justos, "Não é minha tenção que não haja
escravos, antes procurei (...) que se fizesse (...) [o] cativeiro lícito"(VIEIRA (1653), 2008a, p.
38
Mote, aqui, foi utilizado no sentido literal de “[...] 2. Dito picante ou satírico; motejo” (LAROUSSE, 2011)
39
Rever página 72 desta tese.
123
116), reconhecendo a necessidade de haver escravos que trabalhassem nas lavouras (daí a
importância da chegada do negro africano, mais tarde).
No Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, ataca os colonos maranhenses
denominando-os de mentirosos: temos a mentira. Mas, não nos esqueçamos que, como disse
Vieira, uma virtude influi e nasce outra. Logo, nasce a mentira em razão do ócio; este é causa,
aquela o efeito.
Ambos, virtude e vício, são em parte inatos e adquiridos. Inatos, quando
encontram em nós uma predisposição, às vezes, até genética ou hereditária, seja para a prática
do bem seja para a prática do mal. Adquiridos, uma vez que se desenvolvem, a virtude, em
decorrência de muito esforço; o vício, que também cria raízes profundas e até dependência
física, por concessões nossas e influências externas ou do ambiente (OLIVEIRA, 2011).
No Sermão de Santo Antônio aos Peixes, fala aos peixes, como se falasse aos
homens, e aponta os seus vícios: peixes roncadores (embora tão pequenos roncam muito –
simbolizam a arrogância e a soberba); peixes pegadores (sendo pequenos, pregam-se nos
maiores, não os largando mais – simbolizam o parasitismo); peixes voadores (sendo peixes,
também se metem a ser aves – simbolizam a presunção ou vaidade e a ambição) e por último
os peixes polvo (com aparência de santo, é o maior traidor do mar – simboliza a traição).
Tanto quanto seus governantes, os fazendeiros que vieram para o Maranhão
também só pretendiam enriquecer às custas da exploração do trabalho do índio e do negro e
retornar à Metrópole o quanto antes. Com tanta ambição, a mentira, a usura, a desonestidade,
entre outros vícios, ganhavam terreno nesta Capitania.
Lembremos, por exemplo, que no Sermão de Santo Antônio (aos peixes), Vieira
colocara como o maior traidor do mar a imagem do polvo: “Vejo, peixes, que, pelo
conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e
convindo que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito
maiores e mais perniciosas traições” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 174).
Em relação ao polvo como símbolo de traição, há na imaginação humana três
elementos em torno deste animal que contribuem para tal configuração: os pés (por isso,
conhecidos como octópodes), a água e a tinta que ele solta. Esses três elementos representam
imagens arquetipais relacionadas ao regime diurno: visto que os tentáculos do animal podem
representar a força de abraço fatal, destruidor ou de um caçador aprisionando a sua presa,
portanto, símbolos teriomórficos, e a água, principalmente, no litoral maranhense, habitat
124
natural das algas marrons e manguezais, é escura, tanto quanto a tinta que o polvo solta,
portanto, símbolos nictomórficos (da noite, das trevas noturnas).
Para Bachelard (2002), “a sombra das árvores caía pesadamente sobre a água e
parecia sepultar-se nela, impregnando de trevas as profundezas do elemento” (BACHELARD,
2002, p. 57), assim, na poética de Edgar Poe, que o filósofo cita, uma das funções da árvore é
produzir sombra da mesma forma que a sépia produz tinta. Em cada hora de sua vida a
floresta deve ajudar a noite a enegrecer o mundo. Logo, as sombras produzidas pelas árvores
enegrecem as águas claras, ao passo que, enquanto estão presas às arvores estão vivas, mas
morrem ao deixá-las; e as deixam morrendo, sepultando-se na água como numa morte mais
negra, pois torna-se presa da água. Portanto, a água que bebe a sombra, faz-se mais negra com
a sombra que engole (BACHELARD, 2002, p. 57).
Por isomorfismo, percebemos que ocorre o mesmo com a imagem do polvo criada
por Vieira no Sermão de Santo Antônio (aos peixes), ou seja, os tentáculos, a água e a tinta
representam a capacidade de camuflagem deste animal, quando se sente hostilizado. Ele solta
a tinta escura (negra) na água, impedindo que os seus predadores o vejam, facilitando a sua
fuga, por isso, a imagem de traidor. Por outro lado, quando ele é o predador, seus pés podem
representar braços muito fortes capazes de segurar sua presa. Todos os polvos são predadores
e alimentam-se de peixes, crustáceos e invertebrados, que caçam com os braços e matam com
o bico quitinoso. Para auxiliar à caça, os polvos desenvolveram visão binocular e olhos com
estrutura semelhante à do órgão de visão do ser humano, que têm percepção de cor (LOPES,
2003, p. 243).
Assim, na imagem do polvo, Vieira pretendeu criticar mais um vício da sociedade
maranhense: a presença de traidores. Não nos esqueçamos, no entanto, que dos três sermões
analisados nesta tese, o Sermão de Santo Antônio (aos peixes) é aquele no qual o jesuíta
aponta mais vícios diferenciados da sociedade maranhense, utilizando para isso as imagens
ictiográficas. Vejamos, de maneira sintética, estas imagens:
Vieira durante todo o sermão trabalha com a oposição vício versus virtude,
usando o seu conhecimento ictiográfico para criar imagens contraditórias que expressassem
tanto um lado quanto outro destes cordados40: “Antes, porém, que vos vades, assim como
ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões” (VIEIRA (1654),
2008c, p. 167). Quando analisamos este sermão no capítulo 4, apresentamos as seguintes
virtudes (ou louvores) em relação aos peixes:
40
Os peixes são organismos pertencentes ao filo Chordata (animais com corda dorsal – notocorda) e subfilo
Vertebrata (animais com crânio cartilagíneo ou ósseo; com vértebras ou arcos vertebrais) (LOPES, 2003, p. 255).
125
a) PEIXE DE TOBIAS:
- o fel sara a cegueira;
- o coração lança fora os demônios;
b) RÊMORA:
- tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder;
c) TORPEDO:
- descarga elétrica que faz tremer o braço do pescador;
d) QUATRO-OLHOS:
- dois olhos voltados para cima para se vigiarem das aves;
- dois olhos voltados para baixo para se vigiarem dos peixes.
Após apresentar os louvores, Vieira constrói imagens dos vícios relacionados
aos peixes e faz-lhes repreensões em geral, como no cap. IV (2.º momento da Exposição):
a) “(...) é que vos comerdes uns aos outros” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 161);
b) “Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os
pequenos” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 161);
c) “Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos
pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil,
para um só grande” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 161).
Após as repreensões em geral, o jesuíta desenvolve as repreensões em particular,
como: no cap. V (2.º momento da Confirmação):
a) RONCADORES
“É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas
do mar?” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 168).
b) PEGADORES
“Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade,
porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam
aos costados, que jamais os desferram” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 170).
c) VOADORES
“Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a
ser aves? (...) Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes”
(VIEIRA (1654), 2008c, p. 172).
d) POLVO
126
“E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito
polvo é o maior traidor do mar” (VIEIRA (1654), 2008c, p. 174).
Enfim, estes vícios demonstram os defeitos que os peixes apresentam e,
claramente, refletem as ações dos homens que formavam a sociedade maranhense a quem o
jesuíta pregava o sermão.
RONCADORES
- embora tão pequenos roncam muito (simbolizam a arrogância e a soberba);
PEGADORES
- sendo pequenos, pregam-se nos maiores, não os largando mais (simbolizam o
parasitismo);
VOADORES
- sendo peixes, também se metem a ser aves (simbolizam a presunção (vaidade) e
a ambição);
POLVO
- com aparência de santo, é o maior traidor do mar (simboliza a traição).
Portanto, podemos afirmar que o imaginário jesuítico do padre Antônio Vieira
apresenta formas recorrentes de representação da realidade social maranhense, como uma
estrutura que se reforça no discurso do missionário em cada sermão que profere ao público.
Percebe-se que os vícios são parte deste fio condutor que traça o imaginário do jesuíta ao
pensar o conteúdo-sentido (BAKHTIN, 1993) no universo maranhense, sem afastar-se, é
claro, do histórico-individual, que cada ato (pensamento escrito ou não) seu desencadeara
naquele contexto.
5.3 A imagem dos contrários
Outra imagem que podemos destacar na produção vieiriana são as imagens da
oposição ou da contrariedade. Estas surgem da própria natureza dialética dos discursos
retóricos do padre Antônio Vieira. Por exemplo, quando falamos no item anterior sobre as
imagens dos vícios, imprescindivelmente, o jesuíta aborda, do outro lado, as imagens das
virtudes.
127
Talvez, devêssemos afirmar que Vieira estava apenas seguindo os padrões
estéticos literários do momento histórico: o Barroco. Conhecido como a escola literária do
conflito existencial. No Barroco, os autores utilizam como figuras de linguagem essenciais: a
antítese (ideias contrárias ou opostas) e o paradoxo (uma antítese exagerada). Mas não se
pode negar que a formação escolástica de Vieira, sua maneira de ver o mundo, seu talento e
sua habilidade com a Língua Portuguesa, sua capacidade criativa contribuíram bastante para o
desenvolvimento das prédicas polêmicas e complexas do jesuíta.
Sobre esta questão, vale citar o que afirma Neves (1997):
Os sermões de Vieira não querem ser uma prática religiosa que se encerra no final
da prédica; desejam ser um ‘contraponto prático’ às ações dos que os ouvem para
além do fim de seus enunciados. Pragmático, dá um tom de negócio que supõe
sedutor ao auditório, à atitude religiosa: os negócios do mundo estão ligados
visceralmente aos negócios da alma. Valendo (veja-se a conotação também
mercantil) mais o primeiro que o segundo. Todos os negócios e valores são (estão),
pois, indissociáveis de uma atividade planetária, com novos seres, objetos, plantas e
animais. Mas onde sempre – em qualquer plano – se pode ganhar – basta desejar
(NEVES, 1997, p. 205).
Neves (1997) aponta os sermões de Vieira como algo que está para além da
simples prática religiosa, ou seja, as sua prédicas visam levar os ouvintes a contraponto
prático em que valores e negócios se fundem como uma só atividade planetária. Assim, as
imagens que o jesuíta constrói em seus sermões ganham força e vitalidade no plano simbólico
quando ele consegue atingir estes contrapontos práticos que pretende atacar.
No segundo capítulo desta tese, destacamos a importância da salvação da alma
para os jesuítas. Enfatizamos que a luta contra os fazendeiros e colonos pela libertação dos
índios resultava em um combate entre dois componentes humanos distintos e
simultaneamente complementares – a rivalidade entre corpo e alma. Não obstante,
concluímos que essa disputa, no campo simbólico, representa a luta entre os contrários: ambos
representam o exercício da dialética, a luta constante entre os opostos, o concreto (corpo) e o
abstrato (a alma), respectivamente, entre o profano e o sagrado, o impuro e puro, o pecado e
perdão.
Outro exemplo da luta entre os contrários aparece no terceiro capítulo, quando
destacamos o jogo de claro e escuro característico do movimento Barroco do século XVII.
Vimos que essa característica era um reflexo de um inconsciente coletivo compartilhado por
uma sociedade europeia em constante transformação, mas, principalmente, impactada pelos
conflitos existenciais da época como os conflitos entre fé versus razão, perdão versus pecado,
128
cristão versus pagão, teocentrismo versus antropocentrismo, espírito versus corpo; dualismos
e contradições.
Assim, o jesuíta prega verdades “muito claras”, ou seja, há uma oposição em
relação à mentira, a expressão “muito claras” acentua o caráter espetacular destas verdades,
porque as eleva ao divino, ao próprio Cristo. Como vimos no terceiro capítulo, essas verdades
são as próprias palavras; e a verdade e a clareza opõem-se à mentira e à obscuridade, os
primeiros pertencem ao reino da luz, os últimos, ao reino da escuridão.
Veja-se que o imaginário do jesuíta é dotado de um forte simbolismo da oposição,
da contrariedade, resultado do exercício dialético de seus discursos. Segue esta interpretação,
a análise da professora pesquisadora Sonia Netto Salomão (2011), da Universidade de Roma
La Sapienza, ao afirmar que
O padre Vieira articula três dimensões fundamentais de seu discurso: hermenêutica,
metafísica e estética. A hermenêutica, quando busca analisar a realidade do Novo
Mundo à luz dos velhos cânones bíblicos como recurso das Sagradas Escrituras, da
Tradição, dos decretos conciliares, das bulas pontifícias e dos escritos dos doutores
da Igreja. Tudo isso pressupondo naturalmente, o saber enciclopédico que sua
formação jesuítica assegurava no clima dos colégios da Contrarreforma. Quanto à
perspectiva metafísica, ela é inerente à matéria de que trata, manifestando-se no
esclarecimento das relações espaciais, temporais, existenciais que a compreensão
das Sagradas Escrituras propunha ao homem em sua dimensão histórica, sensível,
mas também em sua dimensão suprassensível e eterna. Finalmente, a perspectiva
estética manifesta-se quando o jesuíta objetiva, ao lado do convencimento pelo
raciocínio e pelo intelecto, persuadir por meio da construção simbólica, com a
proposição de imagens, parábolas e fábulas de grande poder sugestivo e até mesmo
emotivo (SALOMÃO, 2011, p. 71-72).
Desta classificação, é justamente a terceira dimensão a que nos interessa. Pela
ótica de Sônia Netto Salomão (2011), a dimensão estética do discurso de Vieira é a que
contém o simbólico, as imagens, ou seja, o imaginário do jesuíta. Mas, todo esse simbolismo
é marcado por uma dialética, que necessariamente traz a luta dos contrários. No entanto, não
esqueçamos que o exercício dialético resulta sempre em um devir, que também não faltava
aos discursos vieirianos.
É o que ocorre, por exemplo, quando o jesuíta resgata as imagens da cegueira e da
lua como condutores do mal caminho, uma vez que a cegueira representa falta de luz e a lua,
pouca luz; e quando finaliza a sua argumentação sobre os olhos e a mentira, lembrando ao
auditório que Davi admiravelmente notou que a água nas nuvens é negra, levantando em seu
imaginário social mais uma imagem nictomórfica (a água negra): todo este conjunto de
imagens nictomórficas contrapõe-se ao verdadeiro fim do sermão: o jesuíta pretende que
129
todos os que mentem saiam da escuridão, das trevas noturnas e busquem a luz, a salvação de
suas almas (os símbolos espetaculares e ascensionais – a luz, o divino, a subida, o alto).
Dessa maneira, o jogo dialético do discurso de Vieira é marcado por um devir: a
saída das trevas e a subida ao alto, ao divino, à iluminação espiritual, à salvação de suas
almas. Daí, que não podemos esquecer que no último sermão, que analisamos nesta tese, no
capítulo quarto, Vieira alcança o ápice de suas imagens ascensionais ao se colocar no papel de
grande peixe engolidor, porque ele mergulha no mais profundo do simbolismo da “pesca” e
vendo que não conseguia pregar aos homens, pregou aos peixes. Visto que não ouvido pelos
homens, buscou o auditório mais obediente e educado do reino animal (como ele próprio
afirma no sermão), pregou aos peixes e numa inversão do simbolismo diurno, transpõe-se
para os símbolos da inversão, no regime noturno das imagens, tornando-se o grande peixe
engolidor (o santo peixe de Tobias), em cujas entranhas carrega a bondade, a justiça e a
salvação dos males desta terra; o padre Antônio Vieira de peixe engolido se torna o peixe
engolidor: “Abri, abri essas entranhas; vede, vede esse coração” (VIEIRA (1654), 2008c, p.
157).
A ação de Vieira de pregar aos peixes e depois colocar-se como peixe-engolidor
reforça a sua posição de “sujeito” histórico-social cujas imagens representam suas práticas
sociais, ou como diria Bakhtin (1993),
Como um ato executado, um dado pensamento forma um todo integral: tanto seu
conteúdo-sentido quanto o fato de sua presença em minha consciência real – a
consciência de um ser humano perfeitamente determinado – em tempo particular e
em circunstâncias particulares, isto é, toda historicidade concreta de sua realização –
ambos os momentos (o momento do conteúdo-sentido e o momento históricoindividual) são unitários e indivisíveis na avaliação desse pensamento como minha
ação ou ato responsável (BAKHTIN, 1993, p. 21).
Percebemos que assim foram os atos de Vieira durante a sua presença no
Maranhão, atos de um ser humano determinado a atingir os seus objetivos e que,
aparentemente, nenhuma vez precisou voltar atrás em suas ações. O sujeito nunca esteve
apartado de sua condição histórica e expressou a sua percepção (os seus sentidos) com
habilidade e criatividade, ainda que preso às estruturas retóricas aristotélicas que aprendeu no
seminário.
Notamos, assim, que os discursos presentes nos sermões de Vieira no Maranhão
podem apresentar algumas estruturas profundas que, no imaginário social do missionário,
130
contribuíram para a construção de seu pensamento ideológico, político e religioso naquele
espaço e tempo (Maranhão do século XVII).
5.4 As estruturas esquizomórficas (ou heroicas) do padre Antônio Vieira: as imagens do
regime diurno
Comentamos que Gilbert Durand (1997), em sua obra As Estruturas
Antropológicas do Imaginário, divide as imagens apresentadas em seus estudos em dois
grandes regimes da imaginação humana: o Regime Diurno e o Regime Noturno. O primeiro é
caracterizado pelas estruturas esquizomórficas (ou heroicas) e o segundo, pelas estruturas
sintéticas ou místicas.
Após a análise das imagens recorrentes nos sermões do padre Antônio Vieira
proferidos no Maranhão do século XVII, notamos que há um predomínio do regime diurno,
ou seja, das estruturas esquizomórficas ou heroicas. Depois da análise das imagens mais
recorrentes no imaginário do jesuíta, temos elementos que justificam a nossa conclusão. Mas
antes, vejamos alguns aspectos do regime diurno, conforme Gilbert Durand (1997).
No regime diurno, há uma organização das imagens que divide o universo em
opostos, cujas características são as separações, os cortes, as distinções, a luz; imagens muito
comuns nos sermões do padre Antônio Vieira.
O regime diurno se caracteriza pela luta, o eterno combate entre os símbolos
teriomórficos, nictomórficos e catamórficos e os símbolos ascensionais, espetaculares e
diairéticos, tendo como representação uma vitória sobre o destino e sobre a morte, cujos
principais símbolos são:
a) símbolos de ascensão – leva para a luz e para o alto;
b) símbolos espetaculares – diz respeito à luz, ao luminoso;
c) símbolos diairéticos – refere-se à separação cortante entre o bem e o mal.
Nos sermões analisados nesta tese, encontramos muitas imagens diurnas
referentes ao imaginário jesuítico do padre Antônio Vieira, tais como, a imagem do
soberano-mago-guerreiro e a imagem do grande peixe engolidor. A partir destas duas
imagens arquetipais torna-se possível estruturar as demais imagens analisadas anteriormente
em torno delas. É o que Durand (1997) denomina de constelação de imagens. Para ele, as
131
imagens constelam, convergem entre si, “convergência que tende a mostrar vastas
constelações de imagens, constelações praticamente constantes e que parecem estruturadas
por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes” (DURAND, 1997, p. 43).
Segundo Durand (1997), “os símbolos constelam porque são desenvolvidos de um
mesmo esquema arquetipal, porque são variações sobre um arquétipo” (DURAND, 1997, p.
43), assim, convergem os símbolos em verdadeiros conjuntos simbólicos. O arquétipo que
aparece na intersecção entre as imagens do soberano-mago-guerreiro e o grande peixe
engolidor é o arquétipo do herói.
Na mitologia, habitualmente, o herói ganha a sua luta contra o monstro. (Breve me
alongarei mais a respeito deste assunto.) Mas há outros mitos em que o herói cede ao
monstro. Exemplo típico é o de Jonas e a baleia, em que o monstro marinho engole o
herói e o transporta durante uma noite inteira numa viagem do oeste para o leste,
simbolizando o suposto trajeto feito pelo sol do crepúsculo à aurora. O herói fica
mergulhado em trevas, que representam uma espécie de morte (JUNG, Carl Gustav.
O Homem e seus símbolos, 1996, p. 115).
Jung (1996) reforça a leitura mítica que fizemos da passagem de Jonas no
Capítulo 4, corroborando a mesma estrutura heroica apresentada: quando o peixe viaja a
noite inteira do oeste para o leste, ele desenha trajetória feita pelo sol do crepúsculo à aurora,
isto é, o herói sai da escuridão: a noite (o crepúsculo), o oeste, o interior do peixe; e encontra
a luz: o dia, o leste (o amanhecer, a aurora), o exterior do peixe. No sermão de Santo Antônio
(aos peixes), Tobias não foi engolido pelo grande peixe, mas teve que enfiar o braço nas
entranhas do cordado e arrancar-lhe o fel e o coração, que possuem poderes
medicamentosos: o fel sara a cegueira e o coração lança fora os demônios. Tanto o fel quanto
o coração são imagens espetaculares, pois simbolizam a ascensão, a salvação, a iluminação
daqueles que se encontravam nas trevas, na escuridão.
Fica evidente na análise dos sermões que as práticas sociais do padre Antônio
Vieira estão fortemente marcadas pela atitude heroica, o herói que luta contra o mal, contra as
forças contrárias ao estabelecimento de uma terrena cidade celeste na colônia.
O mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo.
Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, na Idade Média, no
Extremo Oriente e entre as tribos primitivas contemporâneas. Aparece também em
nossos sonhos. Tem um poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos
aparente, uma importância psicológica profunda. São mitos que variam muito nos
seus detalhes, mas quanto mais os examinamos mais percebemos o quanto se
assemelham na estrutura. Isto quer dizer que guardam uma forma universal mesmo
quando desenvolvidos por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre
si — como, por exemplo, as tribos africanas e os índios norte-americanos, os gregos
e os incas do Peru (JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus símbolos, 1996, p. 78).
132
O soberano-mago-guerreiro empunha a palavra como espada e escudo contra os
fazendeiros maranhenses. Estas três imagens palavra, espada, escudo constelam como
símbolos espetaculares e diairéticos e reforçam a luta contra as trevas, os vícios, os males,
assim, “a palavra é explicitamente associada à luz que brilha nas trevas, é homóloga da
potência, da luz e da soberania do alto” (DURAND, 1997, p. 154).
Assim, a palavra é espada porque fere os monstros, as feras, as trevas, o mal; e é
escudo porque protege o jesuíta de todos os problemas que teve de enfrentar na sociedade
maranhense do Século XVII. Enfim, o que apresentamos neste item 5.4 responde uma das
indagações que também levantamos no início da tese sobre até que ponto as práticas sociais
de Vieira teriam influenciado ou não no processo de formação da sociedade maranhense no
século XVII. Logo, este capítulo serviu basicamente para atar as pontas do trabalho proposto,
ou seja, do objetivo a que nos propusemos no início desta tese: analisar o imaginário social
jesuítico do padre Antônio Vieira durante a sua presença e práticas sociais no Maranhão do
século XVII.
133
Capítulo 6
Figura 07: Padre Antônio Vieira
Na Bahia, que é a cabeça desta nossa província do Brasil, acontece algumas vezes o que no
Maranhão quase todos os dias. Amanhece o Sol muito claro, prometendo um formoso dia, e
dentro em uma hora tolda o Céu de nuvens, e começa a chover como no mais entranhado
inverno [...]
E experiência inaudita a que agora direi, e não sei que fé lhe darão os
matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o Sol um piloto nesta cidade onde
estamos, e não no porto, onde está surto o seu navio, senão com os pés em terra: toma o
astrolábio na mão com toda a quietação e segurança. E que lhe acontece? Coisa prodigiosa!
Um dia acha que está o Maranhão em um grau, outro dia em meio, outro dia em dois, outro
dia em nenhum. E esta é a causa por que os pilotos que não são práticos nesta costa, areiam,
e se têm perdido tantos nelas. De maneira que o Sol, que em toda a parte é a regra certa e
infalível por onde se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à Terra do
Maranhão, até ele mente (VIEIRA (1654), 2008b, p. 11).
134
6
CONTRIBUIÇÕES E CONTRADIÇÕES DE VIEIRA NA FORMAÇÃO DA
SOCIEDADE MARANHENSE
Este capítulo surge da necessidade de se retomar e alinhar alguns pontos
suscitados no início da pesquisa, como de que maneira o padre Antônio Vieira e,
consequentemente, o seu imaginário social jesuítico, possam ter contribuído para alguma
transformação (social, política, econômica, cultural) na sociedade maranhense do século
XVII. No decorrer da pesquisa, ao analisarmos os sermões e as imagens mais recorrentes no
imaginário do jesuíta, apontamos algumas respostas, mas não fizemos uma reflexão mais
crítica, porque era conveniente deixá-la para este momento da tese.
Trata-se das consequências que os mandos e desmandos do padre Antônio Vieira
ocasionaram aos atores sociais do Maranhão no século XVII. Lembremos, por exemplo, do
que disse João Lúcio de Azevedo (1901) no capítulo anterior a respeito do governador Dom
Pedro de Mello: que os favores do governador “chegaram ao extremo de possuir Vieira em
mão papéis assinados em branco”, ou seja, a figura heroica de Vieira impregnava de medo e
temor alguns atores sociais representantes da Coroa e o mesmo ocorria com alguns
representantes do Clero.
As estratégias políticas do padre Antônio Vieira seguem um plano, como lembra
Neves (1979), o plano das missões. Há uma continuidade do projeto das missões, quando o
jesuíta, revestido de seu poder de soberano, mago e guerreiro impõe-se como gerenciador das
questões locais, todavia, ao notar que sua atuação perdia força e poder, retornava à fonte de
onde emanava o seu poder para revigorar-se. Era com o Rei, ou seja, com a imagem do sol
que Vieira revigorava as suas forças para combater os inimigos. Foi o que aconteceu dois dias
após proferir o Sermão de Santo Antônio aos Peixes (VIEIRA (1654), 2008c, p. 149), quando
retirou-se silenciosamente para a Corte, na intenção de conseguir a elaboração de leis mais
severas para punir os fazendeiros maranhenses que ainda ignoravam seus ensinamentos.
No entanto, mesmo retornando ao Maranhão munido de leis mais rigorosas contra
os colonos que escravizam os índios ilegalmente, tudo que Vieira conseguiu foi provocar
ainda mais a ira dos fazendeiros que se aliaram à Câmara. “Em seguida, Vieira denuncia a
conivência de alguns religiosos que, ciumentos dos jesuítas, se puseram ao lado do povo
amotinado” (BOSI, 2011, p. 42). Sobre esta questão, reitera Bosi (2011):
135
O documento real foi arrancado das portas e levou-se à Câmara uma proposta de
revogação do seu teor. Os vexames se multiplicaram. O capitão-mor procurou
embargar à força o embarque de dois padres para o Pará alegando que, sem a sua
licença, não poderiam sair de São Luís. Vieira se dispôs a parlamentar, mas foi
recebido com injúrias: “As palavras com que me recebeu foram as do cabo”.
Abusando da autoridade do cargo, o capitão acusou um padre jesuíta de ter pregado
no dia de Cinzas sem a sua vênia. Apesar do flagrante arbítrio de que era vítima,
Vieira aquiesceu cordatamente alegando tratar-se de simples inadvertência que não
iria repetir-se. Seguiram-se novas expressões desabridas da mesma autoridade, mas
respondidas com tão sensatos argumentos pelo jesuíta que “ficaram tão convencidos
todos da força da verdade que confessaram não só que tínhamos razão, se não que
era bem que todos se conformassem com aquele papel, e assim se executasse”. O
momento era oportuno para que Vieira combinasse os seus dotes de missionário e
diplomata. Ele o fez com galhardia. Pregou no domingo seguinte, que era o
primeiro da Quaresma, o chamado Sermão das tentações, provando que o colono
responsável por manter cativeiros ilícitos estava condenado ao inferno e propondo
que todas as questões pendentes fossem resolvidas por uma junta constituída por
autoridades civis e eclesiásticas (BOSI, 2011, p. 42-43).
Dessa vez, o jesuíta encontrou inimigos declarados não só na Câmara, mas ainda
teve que se deparar com outros religiosos (de outras ordens) que o provocavam e desafiavam.
O cenário político não era nada pacato e ameno, visto que Vieira teve que lutar sozinho contra
todo o poder político local: o capitão-mor, os outros religiosos (que não tinham que obedecerlhe), a Câmara, os fazendeiros e outros colonos.
Vieira valia-se dos poderes da Fé (da Igreja) e do Império (do Estado) para
construir a necessária mediação entre os atos humanos e os dogmas religiosos. Como
corrobora Bosi (2011), “os resultados foram, ao menos a curto prazo, satisfatórios. Não
poucos proprietários liberaram os índios, cuja condição de escravos se provou ilegal. Aos
forros prometeu-se que padeceriam salário de duas varas de pano por mês” (BOSI, 2011, p.
43).
No entanto, como ocorrera nos primeiros anos da missão, todo o período seguinte
foi marcado por desavenças crescentes entre os moradores representados pelos camaristas de
São Luís (BOSI, 2011, p. 69). Rapidamente espalhou-se o boato de que a Ordem Régia (de 25
de julho de 1653, trazida pelo Capitão-Mor do Maranhão) fora trama dos jesuítas, que
queriam tirar os índios das casas dos brancos para levá-los às suas aldeias e servirem-se deles.
Fizeram-se abaixo assinados (como diríamos hoje) contra o dispositivo do Rei, e,
depois de assinado o documento pelas pessoas gradas, pelo clero e por superiores de
algumas Ordens religiosas, exigiam que os jesuítas também o subscrevessem.
Negando-se os padres a isso, o povo se amotinou e se ajuntou diante do Colégio,
com armas na mão e aos gritos: “Padres da Companhia, fora! Fora! Inimigos do bem
comum! Metam-nos em duas canoas rotas!” O tumulto cresceu tanto que foi
necessário acudir o Governador com três companhias do presídio. Acalmaram-se os
ânimos com a declaração que fizeram os padres de que não tinham vindo ali para
libertar os índios, mas para cuidar das almas dos moradores, e só lhes negavam
136
aquilo que julgavam, em consciência, não lhes podia de nenhum modo pertencer
(SOUZA, 1977, p. 67).
Os moradores, no entanto, não se deram por satisfeitos, espalharam-se calúnias e
inventaram-se fatos para provar que os padres lhes tiravam os índios. Por esta razão, no
domingo seguinte, o padre Antônio Vieira pregaria o Sermão da Primeira Dominga da
Quaresma, que já analisamos neste trabalho.
Quando falamos de contribuições de Vieira à sociedade maranhense, pensamos
em que implicações as práticas sociais do jesuíta poderiam resultar no contexto político,
econômico, social da época. Observamos, a priori, que não podemos afirmar que se
desencadearam grandes mudanças no contexto histórico (mais amplo) em função do jesuíta,
todavia, pelo menos o cenário fora modificado (especificamente o curto espaço de tempo na
colônia antes de retornar a Portugal), período em que colonos e fazendeiros amotinaram-se
com os representantes da Câmara para se voltarem contra os jesuítas, atitude surpreendente
para a Companhia.
O jesuíta retornou a Portugal, a 17 de outubro de 1653, com a expedição de outra
lei de El-Rei, com a qual revogava a anterior e os capítulos da liberdade, deixando a porta
aberta aos cativeiros injustos (questão que já discutimos anteriormente neste trabalho, no
segundo capítulo).
Em 9 de abril de 1655, Vieira obteve nova lei que se resumia em três itens:
1)
Aos índios gentios não se faça guerra ofensiva sem ordem de Sua Majestade,
nem se lhes faça injúria, violência ou moléstia alguma, e somente se possam resgatar
deles os escravos que forem legitimamente cativos;
2)
Os índios cristãos e avassalados, que vivem nas aldeias, não possam ser
constrangidos a servir mais que no tempo e forma determinada pela lei, e no mais
vivam como livres que são, e sejam governados nas suas aldeias pelos principais de
sua nação, e pelos párocos que deles têm cuidado;
3)
Os missionários façam as missões ao sertão com tal independência dos que
governam, que estes não possam impedir ditas missões, antes lhes deem todo o favor
e ajuda para elas, e escolta dos soldados que for necessária, quando se houver de
fazer por passos perigosos. A escolha dos cabos será feita pelos missionários
(SOUZA, 1977, p. 69)
No retorno ao Maranhão, entregou ao Governador André Vidal de Negreiros o
texto da lei para que fosse executada, mas tais disposições só acalmaram os ânimos da
população por um curto momento (cinco anos), calma mais aparente que real, entrecortada de
reclamações, de que vieram os distúrbios de 1661, não dominados pelo novo Governador, D.
Pedro de Melo, que se deixou envolver pelos amotinados e resultou na expulsão do padre
Antônio Vieira do Estado.
137
Sobre esta questão afirma João Francisco Lisboa (1976):
Com a substituição do governador André Vidal de Negreiros, afrouxou a proteção
dos jesuítas; o povo começou a murmurar contra a abusiva acumulação que faziam
os padres da jurisdição temporal e espiritual, e por fim rompeu em revolta declarada,
tanto no Maranhão como no Pará, e prendeu e expulsou os padres, sem executar o
próprio superior. Atingindo pouco depois a maioridade, e entrando no pleno
exercício da soberania El-rei D. Afonso VI, o padre Antônio Vieira de todo decaiu
da graça, e chegou até a ser desterrado da corte (LISBOA, 1976, p. 213).
Uma das fortes contradições nas práticas jesuíticas de Vieira no Maranhão está
relacionada ao posicionamento que o missionário tomara mediante a escravização do negro,
visto que o jesuíta intrépido defensor dos índios não se valeu sobre a igualdade dos filhos de
Deus e a liberdade da “lei natural” para impugnar a escravidão dos africanos.
O jesuíta, apesar de ideologicamente defender a liberdade do negro, também via,
na escravidão deste, a única alternativa para resolver os problemas causados com os colonos
maranhenses por causa da escravização dos índios. Os fazendeiros precisavam de mão de obra
nas lavouras e os jesuítas precisavam de almas para “salvar” (catequizar). Neste ínterim, a
chegada do escravo negro trazido da África solucionava parcialmente o problema, daí o
posicionamento do jesuíta favorável e justificável à escravização do negro, como fizera no
sermão XX da série “Maria, Rosa Mística”.
Outra contradição do jesuíta que merece destaque está relacionada à sua
inconformidade perante algumas ordens de seus superiores, como, na carta ao padre Francisco
Avelar, de 28 de fevereiro de 1658,
Ordenou-me o padre provincial e o padre visitador que alimpasse os meus papéis em
ordem à impressão, para com os rendimentos dela ajudar a sustentar a missão; e para
isto estou desocupado do ministério dos índios, que era o que eu cá vinha buscar.
Quando estava em Lisboa, em França e em Holanda, com as comodidades das
impressões das livrarias, e de quem me escrevesse e ajudasse, nunca ninguém pôde
acabar comigo que me aplicasse a imprimir; e mais oferecendo-me el-rei os gastos, e
rogando-me que o fizesse! E agora no Maranhão, onde falta tudo isto, e na idade em
que estou, que me ocupe em emendar borrões e fazer tabuadas! Veja V. Revma.
Quanto pode a obediência; e pode tanto que não só o faço, mas chega a me parecer
bem que o mandem fazer. Não há maior comédia que a minha vida, e quando quero
ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus ou zombar do mundo, não
tenho mais que olhar para mim (VIEIRA, 2011, p. 131).
Após a saída de Vieira do Maranhão, um outro padre assume o seu lugar nas
questões da Companhia de Jesus e no papel de intermediador dos interesses da Coroa: o padre
Bettendorff. Segundo Souza (1977), “Bettendorff, também na corte, estava em contato direto
138
com o Rei, que o atendia e recebia amiúde. Da Bahia, o padre Antônio Vieira mandava suas
sugestões, reparos e correções aos projetos elaborados” (SOUZA, 1977, p. 76).
Como podemos notar, o padre Antônio Vieira ainda era peça fundamental no
projeto das missões no Norte da colônia, uma vez que mesmo estando na Bahia, ou na Corte,
era sempre requisitado para opinar e sugerir medidas que dirimissem os problemas ocorridos
no Maranhão.
Em Bosi (2011), encontramos uma boa alusão sobre como Vieira deveria sentir-se
ao fim de sua carreira na condição de missionário:
[...] o Vieira diplomata, o Vieira conselheiro do rei, o Vieira missionário e o Vieira
confiante nas profecias de Bandarra frustou-se em todos os seus desígnios, como se
de pouco ou nada valesse ser previdente e atento Às conjunturas que são a face
mesma do presente. O passado prefigurava alegoricamente o aqui-e-agora, mas
parecia que a Providencia se obstinava em adiar a hora da sua realização. Os
cuidados continuavam cada vez mais numerosos e molestos, e os inimigos
triunfavam de todos os lados: colonos cúpidos, capitães-mores violentos,
governadores falsos, inquisidores implacáveis, cortesãos invejosos, populacho
insolente, paulistas ávidos e soberbos, confrades intrigantes e desleais, reis distantes
e ingratos. O agir, o admoestar, o propor, o prevenir, o manobrar – de que valiam se
os desígnios do Altíssimo não os confortavam? A vontade férrea deveria ceder afinal
aos ardores da imaginação. Que eram os sonhos senão as relíquias dos cuidados? Em
vez da ação de incerto resultado, que viesse a esperança, virtude que os céus sempre
abençoaram. A certeza do cumprimento das profecias tangia para as saudades do
futuro as vozes de um passado grávido das mais belas promessas. Dessa fé
inabalável nascia e renascia ao longo de cinqüenta anos de trabalho febril A chave
dos profetas (BOSI, 2011, p. 117).
Enfim, após muitos esforços na tentativa de instaurar uma terrena cidade celeste
(NEVES, 2003) no Maranhão, percebemos que o jesuíta obteve muitas decepções e
obstáculos, mas ainda tinha imaginação criativa e engenhosa capaz de produzir a sua defesa
contra a Inquisição, de 1662 a 1667, logo após sair expulso do Maranhão.
Em 1669, o missionário recupera o seu prestígio na Corte, com a honraria de
pregador régio subindo ao púlpito mais de seis vezes. “Renascia sob a roupeta do jesuíta o
homem político. Vieira procurava, nessa altura da vida, granjear o valimento seguro do
príncipe regente, e foi com lisonjas demasiadas que o fez, mas sem resultados duradouros”
(BOSI, 2011, p. 89). Neste mesmo ano, foi à Roma a pretexto de acompanhar o processo de
canonização do padre Inácio de Azevedo, que viajando para o Brasil com 39 jesuítas, fora
trucidado ao largo das Canárias por corsários calvinistas. Bosi (2011) alerta que entre os
biógrafos há consenso de que o verdadeiro intento do jesuíta seria conseguir, junto ao
Vaticano, a revisão e anulação da sentença do Santo Ofício.
139
Passou seis anos em Roma e, em 1675, volta a Portugal com o estado de saúde já
agravado ao longo dos anos, a ponto de se ter ausentado da capital pontifícia mais de uma vez
para restabelecer-se perto do mar à procura de melhores ares, o que justificaria a partida
definitiva da Itália.
Estando em casa, não teve a paz que tanto desejava. Suas disputas com o Tribunal
da Inquisição deixaram-lhe muitos inimigos e mesmo estando juridicamente isento pelo breve
de Clemente X, Vieira acabaria sofrendo todo tipo de intriga por parte dos religiosos e
familiares do tribunal que já o tivera em suas mãos (BOSI, 2011, p. 97).
Foram anos difíceis para o jesuíta que foi pouco e mal recebido justamente por D.
Pedro, que o alijou da posição de confessor e conselheiro, mostrando-se ingrato com quem o
apoiara tão firmemente na hora difícil da sucessão de seu irmão Afonso. Não bastasse tal
desamparo, sofreu humilhações e disabores, pois não subiu ao púlpito nem uma vez, mesmo
sendo o maior pregador português de todos os tempos.
As dificuldades continuaram, uma vez que nem mesmo a epígrafe que compusera
para colocar na lápide do túmulo de D. João IV foi aceita pelos que a encomendaram. Por
estas e outras razões, Vieira preferiu retomar o ofício de missionário no Brasil, onde estaria a
salvo das intrigas da corte e da animosidade do Santo Ofício.
Vieira passou, então, os últimos anos de sua vida na Bahia (1681-1697) em uma
residência campestre que ficava a cerca de meia légua da cidade, a Quinta do Tanque, chácara
aprazível onde poderia cumprir seu confessado desejo de viver retirado do mundo.
Mas,
mesmo tão distante de Portugal, não tardou a se ver incomodado com as notícias trazidas pela
frotas que atracavam no porto da Bahia.
Ainda que enfermo e em meio a tantos percalços, o jesuíta não desleixou o
trabalho de rever e, em alguns casos, reescrever os sermões, que foi enviando regularmente à
impressão, perfazendo doze tomos até o seu último dia de vida.
Aos 89 anos de idade, no dia 28 de julho de 1697, morre o padre Antônio Vieira
em uma cela do Colégio da Bahia na primeira hora do dia. E, assim, como não há um dia bom
para nascer, nem um dia bom para morrer, cala-se em definitivo aquele que, à semelhança do
Batista (o profeta), muito “clamou no deserto”.
Mesmo depois de morto, o simbolismo espetacular e ascensional tão presente nos
sermões do padre, permitiram-lhe brilhar mais uma vez, como cita Bosi (2011) de acordo com
os registros de André de Barros: “No mesmo ponto e hora da noite em que expirou, acendeu o
céu uma nova estrela ou facho luminoso, que foi visto sobre o colégio e notada dos de fora”
140
(p. 113). Diz Bosi a respeito: “Essa não foi, porém, a única luz que cintilou depois da sua
morte. Deixo a palavra a João Lúcio, em geral mais sóbrio do aquele primeiro e cândido
biógrafo41: “Em 1720 extraíram-se da sepultura, na igreja do Colégio para, no mesmo se
inumar outro cadáver, e se guardaram aqueles em um caixão de madeira.”, continua,
“Observou-se no ato, e passados anos, fazendo-se exame dos despojos à solicitação de André
de Barros, se verificou que a parte Côncava do crânio era semeada de partículas brilhantes,
como de metal em que a luz faiscava” (BOSI, 2011, p. 113).
Enfim, mesmo depois de morto, Vieira mantém o seu brilho (seria um morto vivo
eternamente!). Nos espaços do mundo, acadêmicos ou não, seu nome ecoa ao longo do tempo,
ou como no dizer de Bosi (2011): “O estalo na cabeça do rapazinho, a faísca de luz no crânio
do morto que não morre: a lenda diz a seu modo o que ficou nos pósteros como imagem
luminosa do gênio do padre Vieira” (BOSI, 2011, p. 113).
41
Bosi se refere ao André de Barros, citado anteriormente.
141
7 CONCLUSÃO
Nesta conclusão, me proponho a fazer algumas considerações produzidas durante
os capítulos e que merecem ser revisitadas. Embora saiba que não devo me repetir, mas sim
incorporar o sentido de conclusão, tal qual ela se apresenta no contexto de uma tese. Mesmo
assim, é provável que ocorram “repetições das repetições”. Isso é quase inevitável.
Certeza certa, bem ao estilo do mestre Rosa, creio que eu já cheguei, é que às
vezes, a gente carece mesmo é de uma boa dose de loucura para chegar a um objetivo. E meu
objetivo, trabalhar a imaginação social jesuítica do padre Antônio Vieira, foi uma peleja do
começo ao fim.
Dentro de mim, havia a convicção do quão difícil seria falar sobre Vieira e suas
diversas facetas não é tarefa fácil. Analisar os seus sermões, cartas e profecias é ainda mais
difícil. No entanto, discutimos, nesta pesquisa, algumas questões sobre a imaginação social
jesuítica de Vieira no Maranhão do século XVII, a partir de seus sermões, destacando as suas
continuidades ou rupturas em relação ao projeto maior de colonização portuguesa no Brasil:
as grandes missões de catequização do ameríndio.
Visto que a nossa pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social, reforçamos que a análise feita sobre o padre Antônio Vieira neste trabalho
trilhou a linha do imaginário social, história e cultura, priorizando o sujeito “Antônio Vieira”,
numa perspectiva bakhtiniana. Nesta esteira, deparamo-nos com múltiplos Vieiras, sem
sustentarmos esta complexidade em detrimento do uno (Vieira em si mesmo), autêntico,
único, ou mono. De fato, a multiplicidade dos seus trabalhos, em sua quase totalidade não
decorre de uma concepção de escola medieval ou de imitação de modelos, porém de
existência multiplicada em atividades diversificadas e das múltiplas facetas que a sua alma
angustiada apresentava ao mundo. É difícil perceber se o jesuíta escrevia mais para si próprio
ou para o leitor, mas “com seu bom senso, era capaz de diagnosticar com perspicácia os males
que seu país enfrentava. Tinha também coragem suficiente para receitar os remédios que lhe
pareciam apropriados”, continua, “mas que, por contrariarem os interesses de grupos
poderosos, quase nunca eram bem recebidos” (BESSELAAR, 2002, p. 33).
São estas formas de construção da realidade de sua época que muito contribuíram
para o interesse em pesquisar os discursos de Vieira. Como já dissemos, esses discursos
142
revelam o imaginário social de uma determinada época, através de um sujeito histórico,
extremamente excêntrico, fértil em criações, que conferem a esdrúxula riqueza literária a seu
exercício jesuítico.
Confesso que, em determinados momentos desta pesquisa, cheguei a me
perguntar sobre a importância do Pe. Antônio Vieira para as pesquisas científicas da
atualidade, ou seja, por que estudá-lo? E para quê? Mas à medida que a análise dos sermões
foram acontecendo, acabei por encontrar as respostas do objeto de estudo. Percebi o quanto
Antônio Vieira foi um dos grandes intelectuais do século XVII e ainda, mesmo após quatro
séculos, ainda tem muito a nos ensinar, pois é objeto de estudo de muitos pesquisadores nas
mais diversas áreas do conhecimento. Uma constatação disso ocorreu na solenidade de
comemoração Quatrocentos Anos de Nascimento do Padre Antônio Vieira42, promovida pela
UERJ, em 2009 (um ano de atraso, mas aconteceu!), em que se reuniram pesquisadores do
Brasil e de outros países (Portugal, Espanha, Itália) para apresentarem suas pesquisas.
Esta pesquisa trouxe-nos uma grande contribuição em termos de aprendizado
científico e realização pessoal (como professor de literatura, sempre gostei dos sermões do pe.
Antônio Vieira). Ao analisá-los, como pesquisador, foi preciso realizar um exercício teórico e
prático do distanciamento do objeto de estudo para não interferir nas análises exigidas pelo
rigor científico de uma tese de doutoramento.
Por outro lado, são entraves teóricos como este – o distanciamento do objeto –
que nos levam a pensar outros pontos polêmicos da nossa história, como, por exemplo, a
escravidão indígena e africana no século XVII. Tema polêmico, se visto pelo “olhar” da
contemporaneidade, principalmente, após a abolição da escravatura na segunda metade do
século XIX, porém, fato histórico comum para o século XVII, em que tal prática consistia
apenas em uma continuidade ritualística43 do colonizador sobre o colonizado.
Por esta razão, não podíamos analisar a postura do padre Antônio Vieira diante
destes temas com a lente da contemporaneidade. Antes, foi preciso tentar deslocar-se no
tempo e no espaço para as condições em que ele vivia. É justamente por esta percepção do
tempo e espaço àquela época que percebemos que, mesmo com os notáveis poderes que
possuía, Vieira exerceu uma mudança no cenário político, social, econômico, cultural do
42
Este evento culminou com a publicação de dois volumes sobre a apresentação destes trabalhos, os quais cito
na referência desta tese: OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de (org.). Antônio Vieira: 400 anos. Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2011a.; e JOBIM, José Luís; Peloso, SILVANO. Descobrindo o Brasil: sentidos da literatura e da
cultura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
43
Que se refere ao “rito”, “prática ritual”, elemento que se repete constantemente como práticas cíclicas que vão
e voltam a cada ano.
143
Maranhão no século apenas momentâneo, naquele intervalo de tempo em que chegara à
colônia, e ainda temido por alguns, pôde demonstrar o galardão que lhe fora conferido pela
Coroa e pela Igreja.
Analisando sua conduta, constatamos que Vieira nada tinha de lerdo nem de
medroso; pelo contrário, sempre agiu com destreza e tomou as providências que achava
necessário para alcançar os seus objetivos, como na carta que dirigiu a D. João IV, datada do
Maranhão, em 20 de maio de 1653, na qual pede encarecidamente que sejam enviados
missionários, pois a indigência moral e religiosa tanto dos portugueses quanto dos índios era
extrema, situação agravada pela cobiça e violência dos primeiros, que resultava no desejo de
vingança dos últimos.
É nesse ínterim que surgem os sermões proferidos no Maranhão e que nos
serviram de base para investigação nesta pesquisa: as imagens mais recorrentes na presença
de Vieira no Maranhão do século XVII. Nos capítulos 2, 3 e 4, analisamos estes sermões na
intenção de perceber o imaginário jesuítico do padre; no capítulo 5 BUSCANDO
CAMINHOS NAS TEIAS DA IMAGINAÇÃO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA,
apresentamos essas imagens como espécie de fio condutor no imaginário do missionário e
apresentamos uma possível estrutura deste imaginário na sua presença no Maranhão.
Assim, surgiram as imagens do soberano mago guerreiro, dos vícios, da
contrariedade e do arquétipo do herói como imagens recorrentes na imaginação social do
jesuíta ao construir os seus sermões. Todas essas imagens estão interligadas entre si, como
vimos, mas não representam de maneira geral a sociedade maranhense da época, uma
sociedade eivada de vícios que necessitava urgentemente de intervenção heroica para inverter
este quadro negativo. Elas representam a forma como o padre Antônio Vieira enxergava essa
sociedade e, de maneira particular, a imaginação social do jesuíta em suas práticas sociais. É
por isso, que percebemos, nas imagens que afloraram de seus sermões, um predomínio do
esquema esquizomórfico (ou heroico) do imaginário.
Por outro lado, ainda sobre o comando da Companhia de Jesus, o jesuíta já
demonstrava situações de enfraquecimento político perante os seus rivais (fazendeiros, a
Câmara e colonos), como nas discussões que travava com a Câmara, como demonstramos no
capítulo anterior, Capítulo 6 CONTRIBUIÇÕES E CONTRADIÇÕES DE VIEIRA NA
FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MARANHENSE.
O padre Antônio Vieira deixou-nos uma grande contribuição através de suas
cartas, seus sermões e profecias. Era conhecido, no século XVII, por sua atuação política e
144
religiosa no Brasil e em Portugal, por sua produção textual complexa e laboriosa e por sua
influência na vida cultural e literária em outros países. Foi, é, e provavelmente será objeto de
estudo em diversos trabalhos acadêmicos nas mais variadas áreas do conhecimento – história,
historiografia, literatura, sociologia, filosofia, etc. – visto que Vieira ainda é um ícone, ou
símbolo iconográfico44 que, como tal, possibilita múltiplas interpretações e análises de seu
imaginário, deixando-nos, sem dúvida, um legado de conhecimentos a serem desvendados
ainda por muitos outros pesquisadores.
Enfim, quando iniciamos esta pesquisa, imaginávamos que as práticas sociais e
políticas do padre Antônio Vieira poderiam ter ocasionado um impulso ou empurrão nas
possíveis mudanças das práticas sociais dos maranhenses; transformando-a, principalmente,
nos aspectos econômico e político, fato que não se deu nem por um século à frente, porque o
Maranhão permaneceu com as mesmas condições de província – causava despesas e
problemas à Coroa.
No século XVII, as práticas sociais desempenhadas por Vieira apresentaram
resultados positivos, pelo menos por um curto prazo. Independente disto, é inegável a
contribuição que os seus sermões e suas missivas deixaram para os estudos do imaginário
social jesuítico na colonização maranhense do século XVII. Atente-se para o fato de que
houve outros jesuítas, antes e depois de Vieira, que realizaram grandes trabalhos em nome da
Companhia de Jesus, como o padre Luís Figueira, o padre Benedito Amodei, padre Lopo do
Couto, padre Bettendorff, padre Antão Gonçalves, padre João Valadão, entre tantos outros,
mas quando se trata de abordar a produção sermonística, a diplomacia jesuítica, a persuasão
política e retórica, parece-nos que ninguém conseguiu superar o padre Antônio Vieira, eis por
que ele se destaca no que se refere aos sermões proferidos no Maranhão do século XVII.
Apesar dos inúmeros trabalhos já publicados sobre o jesuíta, esta pesquisa
possibilitou-nos conhecer um pouco mais, sob a ótica do imaginário, a produção sermonística
de Vieira, as imagens mais recorrentes em sua produção, sua capacidade criativa e imaginária,
sua habilidade retórica e o seu imaginário social jesuítico no Maranhão do século XVII,
desvendando um tema recorrente na historiografia jesuítica brasileira que trata do papel
desempenhado pelos jesuítas na tentativa de construção de “uma terrena cidade celeste”
(NEVES, 2003) no novo mundo (Brasil colônia) e, particularmente, das práticas sociais
44
Para Durand (1988), o símbolo iconográfico é a imagem pintada, esculpida etc., constituído de múltiplas
redundâncias: “cópia” redundante de um lugar, de um rosto, de um modelo, com certeza, mas também da
representação pelo espectador daquilo que o pintor já representou tecnicamente. O símbolo ... jamais é explicado
de uma vez por todas, mas deve ser sempre decifrado de novo, assim como uma partitura musical nunca é
decifrada de uma vez por todas, mas exige uma execução sempre nova (DURAND, 1988, p. 18).
145
(sobretudo, políticas, religiosas, ideológicas, jurídicas) do padre Antônio Vieira – suas
implicações e rupturas no Maranhão seiscentista – sob o olhar do imaginário social.
Tentamos desenvolver os objetivos desta pesquisa com prudência e cuidado
científicos, como se costuma exigir dos trabalhos acadêmicos em nível de doutoramento.
Como apresentamos nesta tese, o imaginário social é uma área de estudo que se assenta bem
com os estudos de psicologia social, ambas as áreas de conhecimento tem muito a contribuir
uma com a outra. Além do mais, focalizamos o imaginário social jesuítico do padre Antônio
Vieira, o que conferiu à pesquisa aspectos de análise histórico e culturais, além dos sociais.
Quando eu disse, lá no início da conclusão, que “mais certeza tenho agora de que
falar sobre o padre Antônio Vieira e suas diversas facetas não é tarefa fácil”, referia-me à
grande responsabilidade de falar sobre ele, expressar a grande missão que é fechar uma tese
como esta, a qual contribuiu em vários aspectos para ampliar minha compreensão do sujeito
Vieira a partir de seu imaginário social no Maranhão do século XVII. Percebi que, à medida
que o tempo ia passando, a luz que eu procurava para iluminar as minhas ideias e
pensamentos se tornava cada vez mais forte, porque à proporção que buscava conhecer o
Vieira, sábio, profeta, diplomata, orador, que termina a vida como um ermitão (mas, sempre
se guiando pelo caminho da luz); ele próprio me dava respostas às minhas indagações e,
assim, apontava os caminhos para chegamos até aqui. Enfim, foi preciso deixar o objeto falar,
apresentar-se, mostrar-se, para que eu pudesse aprender que ele ainda tem muito a dizer se
para isso nos empenharmos em decifrá-lo. Eu ousei me habilitar e torço para que outros se
habilitem.
Concluindo, acredito ter alcançado o ponto mais próximo do que eu mesmo
esperava deste trabalho. Elegi prioridades, busquei fontes bibliográficas que me ajudassem a
registrar da melhor forma o objeto da tese e imagino tê-lo conseguido. Há, no entanto, o risco
de não agradar aos que esperavam ler uma tese tecnicamente perfeita. Estou ciente de que me
exponho, agora, da maneira mais lúcida possível para ouvir de vocês o registro de suas
declarações.
146
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s1600/Vieira-Sermao-de-Santo-Antonio-1671.jpg
Figura 05
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http://lh5.ggpht.com/_KWYLcDJ_gF4/SgkoCO2nMYI/AAAAAAAAGHc/eGZqtWOSoWg/
Grandes.Livros.Episodio.6.Sermao.de.Santo.Antonio.aos.Peixes.2.jpg
Figura 06
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http://4.bp.blogspot.com/_lpKl1GkwcA/TLCC5NrMJFI/AAAAAAAAABM/QJAZdSNwK4s/s1600/Vieira-Sermao-deSanto-Antonio-1671%5B1%5D.jpg
Figura 07
Disponível em URL:
http://www.overmundo.com.br/uploads/banco/multiplas/1249357625_3padre_antonio_Vieira
_1.jpg
154
ANEXOS
155
ANEXO A - Sermão da Primeira Dominga da Quaresma
Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.
§I
Oh que temeroso dia! Oh que venturoso dia! Estamos no dia das tentações do
Demônio, e no dia das vitórias de Cristo. Dia em que o Demônio se atreve a tentar em campo
aberto ao mesmo Filho de Deus: Si Filius Dei es: que homem haverá que não tema ser
vencido? Dia em que Cristo com três palavras venceu e derribou três vezes ao Demônio, oh
que venturoso dia! A um inimigo três vezes vencido quem não terá esperanças de o vencer?
Três foram as tentações com que o Demônio hoje acometeu a Cristo: na primeira ofereceu: na
segunda aconselhou: na terceira pedi. Na primeira ofereceu: Die ut lapides isti panes fiant:
que fizesse das pedras pão; na segunda aconselhou: Mitte te deorsum: que se deitasse daquela
torre abaixo: na terceira pediu: Si cadens adoraveris me: que caído o adorasse. Vede que
ofertas, vede que conselhos, vede que petições! Oferece pedras, aconselha precipícios, pede
caídas. E com isto ser assim, estas são as ofertas que nós aceitamos, estes os conselhos que
seguimos, estas as petições que concedemos. De todas estas tentações do Demônio, escolhi só
uma para tratar; porque para vencer três tentações, é pouco tempo uma hora. E quantas vezes
para ser vencido delas basta um instante! A que escolhi das três, não foi a primeira, nem a
segunda, senão a terceira e última; porque ela é a maior, porque ela própria desta terra em que
estamos. Não debalde a reservou o Demônio para o último encontro, como a lança de que
mais se fiava; mas hoje lha havemos de quebrar nos olhos. De maneira, cristãos, que temos
hoje a maior tentação: queira Deus que tenhamos também a maior vitória. Bem sabeis que
vitorias, e contra tentações, só as dá a graça divina; peçamo-la ao Espírito Santo por
intercessão da Senhora; e peço-vos que as peçais com grande afeto, porque nos há de ser hoje
mais necessária que nunca. Ave Maria.
§II
HAEC OMNIA TIBI DABO, SI CADENS ADORAVERIS ME
156
Que ofereça o Demônio mundos, e que peça adorações! Oh quanto temos que
temer: oh quanto temos que imitar nas tentações do Demônio! Ter que temer, e muito que
temer, nas tentações do Demônio, cousa é mui achada e mui sabida: mas ter nas tentações do
Demônio que imitar? Sim; porque somos tais os homens por uma parte, e é tal a força da
verdade por outra, que as mesmas tentações do Demônio, que nos servem de ruína, nos
podem servir de exemplo. Estai comigo.
Toma o Demônio pela mão a Cristo, leva-O a um monte mais alto que essas
nuvens, mostra-Lhe dali os reinos, as cidades, as cortes de todo o mundo, e suas grandezas e
diz-Lhe desta maneira: Haec omnia libi dabo, si cadens adoraveris Me: Tudo isto te darei, se
cá, Demônio, sabes o que dizes, ou o que fazes? É possível que promete o Demônio um
mundo por uma só adoração? É possível que oferece o Demônio um mundo por um só
pecado? É possível que não lhe parece muito ao Demônio dar um mundo só por uma alma?
Não; porque a conhece, e só quem conhece as cousas, as sabe avaliar. Nós, os homens, como
nos governamos pelos sentidos corporais, e a nossa alma é espiritual, não a conhecemos; e
como não a conhecemos, não a estimamos, e por isso a damos tão barata. Porém o Demônio,
como é espírito, e a nossa alma também espírito, conhece muito bem o que ela é; e como a
conhece, estima-a, e estima-a tanto, que do primeiro lanço oferece por uma alma o mundo
todo; porque vale mais uma alma que todo o mundo. Vede se as tentações do Demônio que
nos servem de ruína, nos podem servir de exemplo. Aprendamos sequer do Demônio a avaliar
mais uma alma que todo o mundo. E é tão manifesta verdade esta, que até o Demônio,
inimigo capital das almas, a não pode negar.
Mas já que o Demônio nos dá doutrina, quero-lhe eu dar um quinau. Vem cá,
Demônio, outra vez. Tu sábio? Tu astuto? Tu tentador? Vai-te daí, que não sabes tentar. Se tu
querias que Cristo se ajoelhasse diante de ti, e souberas negociar, tu O renderas. Vais-Lhe
oferecer a Cristo mundos? Oh que ignorância! Se quando Lhe davas um mundo, Lhe tiraras
uma alma, logo O tinhas de joelhos a teus pés. Assim aconteceu. Quando Judas estava na
Ceia, já o Diabo estava em Judas: Cum Jam diabolus misisset in cor, ut traderet eum Judas.
Vendo Cristo que o Demônio Lhe levava aquela alma, põe-se de joelhos aos pés de Judas,
para lhos lavar, e para o converter. Senhor meu, reparai no que fazies: não vedes que o
Demônio está assentado no coração de Judas? Não vedes que em Judas está revestido o
Demônio, e Vós mesmo o dissestes: Unus ex vobis diabolus est? Pois será bem que Cristo
esteja ajoelhado aos pés do Demônio? Cristo ajoelhado aos pés de Judas, assombro é, pasmo
157
é; mas Cristo ajoelhado, Cristo de joelhos, diante do Diabo? Sim. Quando Lhe oferecia o
mundo, não o pôde conseguir: tanto que Lhe quis levar uma alma, logo O teve a seus pés.
Para que acabemos de entender os homens cegos, que vale mais a alma de cada um de nós que
todo um mundo. As cousas estimam-se e avaliam-se pelo que custam. Que Lhe custou a
Cristo uma alma, e que Lhe custou o mundo? O mundo custou-Lhe uma palavra: Ipse dixit, et
facta sunt: uma alma custou-Lhe a vida, e o sangue todo. Pois se o mundo custa uma só
palavra de Deus, e a alma custa todo o sangue de Deus; julgai se vale mais uma alma que todo
o mundo. Assim o julga Cristo e assim o não pode deixar de confessar o mesmo Demônio. E
só nós somos tão baixos estimadores de nossas almas, que lhas vendemos pelo preço que vós
sabeis. E só nós somos tão baixos estimadores de nossas almas, que lhas vendemos pelo preço
que vós sabeis. Espantamo-nos que Judas vendesse a seu Mestre e a sua alma por trinta
dinheiro; e quanto há que andam rogando com ela ao Demônio por menos de quinze! Os
irmãos de José eram onze, e venderam-no, por vinte dinheiros; saiu-lhe por menos de dous
dinheiros a cada um. Oh se considerarmos bem os nadas, por que vendemos a nossa alma?
Todas as vezes que um homem ofende a Deus mortalmente, vende a sua alma: Venumdatus
est, ut faceret malum, diz a Escritura falando de Acab8. Eu, cristãos, não quero agora, nem vos
digo que não vendais a vossa alma, porque sei que a haveis de vender; só vos peço que,
quando a venderdes, que a vendais a peso. Pesai primeiro o que é uma alma, pesai primeiro o
que vale e o que custou; e depois eu vos dou licença que a vendais embora. Mas em que
balanças se há de pesar um alma? Nas balanças do juízo humano não; porque são mui falsas:
Mendaces filii hominum in stateris9. Pois que em que balanças logo? Cuidareis que vos havia
de dizer que nas balanças de São Miguel, o Anjo, onde as almas se pesam? Não quero tanto:
digo que as peseis nas balanças do mesmo demônio, e eu me dou por contente. Tomai as
balanças do demônio na mão; ponde de uma parte o mundo todo, e da outra uma alma, e
achareis que pesa mais a vossa alma que todo o mundo. Haec omnia tibi dabo, si cadens
adoraveris Me: Tudo isto te darei, se me deres a tua alma. Não lhe atirou com menos bala a
Cristo que com o mundo inteiro. Mas já que vos dou licença para vender, ponhamos este
contrato do demônio em prática, e vejamos se é bom o partido.
Suponhamos primeiramente que o demônio no seu oferecimento falava verdade, e
que podia e havia de dar o mundo; suponhamos mais que Cristo não fosse Deus, senão um
puro homem, e tão fraco, que pudesse e houvesse de cair na tentação. Pergunto: se este
homem recebesse o mundo todo, e ficasse senhor dele, e entregasse sua alma ao demônio,
ficaria bom mercador? Faria bom negócio? O mesmo Cristo o disse noutra ocasião: Quid
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prodest homini si mundum universum lucretur: animae vero suae detrimentum patiatur?10
Que lhe aproveita ao homem ser senhor de todo mundo, se tem sua alma no cativeiro do
demônio? Oh que divina consideração! Alexandre Magno e Júlio César foram senhores do
mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no Inferno, e arderão por toda a eternidade.
Quem me dera agora perguntar a Júlio césar e a Alexandre Magno que lhes aproveitou terem
sido senhores do mundo todo, e se acharam que foi bom contrato dar a alma pelo adquirir.
Alexandre, Júlio, foi bom serdes senhores do mundo todo, e estardes agora onde estais? Já
que eles me não podem responder, respondei-me vós. Pergunto: Tomáreis agora algum de vós
ser Alexandre Magno? Tomáreis ser Júlio César? Deus nos livre. Como! Se foram senhores
de todo o mundo? É verdade, mas perderam as suas almas. Oh cegueira! E para Alexandre,
para Júlio César, parece-vos mau dar a alma por todo o mundo; e para nós parece-vos bem dar
a alma pelo que não é mundo, nem tem de mundo o nome? Sabeis de que nasce tudo isto? De
falta de consideração; de não tomardes o peso à vossa alma. Quid prodest homini?11 Que
aproveitaria ao homem lucrar todo o mundo e perder a sua alma? Aut quam dabit homo
commutationem pro anima sua? Oh que cousa há no mundo pela qual se possa uma alma
trocar?
Todas as cousas deste mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela
fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que
se trocar. E sendo que não há no mundo cousa tão grande, por que se possa trocar a alma, não
há cousa no mundo tão pequena e tão vil por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma
verdade de Sêneca, que por ser de um gentio folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini
se isso vilius: Não há cousa para conosco mais vil que nós mesmos. Revolvei a vossa casa,
buscai a cousa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem
comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado,
e não o vendeis muito bem vendido? Pois se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não
quereis dar, senão pelo que vale; a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus
Cristo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu
a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo, e como o vosso cavalo? Se vos
perguntam acaso por que não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não
quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque a haveis de queimar, e
porque há de arder eternamente.
Ora, cristãos, não seja assim: aprendamos ao menos do Demônio a estimar nossa
alma. Vejamos o que o Demônio hoje fez por uma alma alheia, para que nós nos corramos e
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confundamos do pouco que fazemos pelas próprias. Vai-se o Demônio ao deserto,está-se nele
quarenta dias e quarenta noites, como se fora um anacorenta; e em todo este tempo esteve
vigiando, e espreitando ocasião, e tanto que a teve, não deixou pedra por mover para a
conseguir. Vendo que não lhe sucedia, parte para Jerusalém, e sendo tão inimigo de Deus, vaisão templo, para persuadir a Cristo que se arrojasse do pináculo: Mitte te deorsum: estuda
livros, alega Escrituras, interpreta salmos: Scriptum est enim, quiaangelis offendas ad lapidem
pedem tuum. Resistindo também aqui, e vencido segunda vez o Demônio, nem por isso
desmaia: corre vales, atravessa montes, sobe ao mais alto de todos; e só por ver se podia fazer
cair a Cristo, não repara em dar de uma só vez o mundo todo. E que o Demônio faça tudo isto
por uma alma alheia; e que façamos nós tão pouco pela própria! Que se ponha o Demônio
quarenta dias em um deserto para me tentar; E que eu nos quarenta dias da Quaresma não
tome um quarto de hora de retiro para lhe saber resistir! Que vigie o Demônio e espreite todas
as ocasiões que uma vez perdidas, não se podem recuperar! Que cá o Demônio ao templo de
Jerusalém distante tantas léguas, para me despenhar ao pecado; e que tendo eu a igreja à
porta, não me saiba ir meter em um canto dela, como o publicano , para chorar meus
pecados! Que sagrados; e que eu não abra um só espiritual, para que Deus fale comigo, já que
eu não sei falar com ele! Que o Demônio vencido a primeira e segunda vez, insista, e não
desmaie para me render; e que se comecei acaso alguma obra boa, à primeira dificuldade
desista, e não tenha constância e nem perseverança em nada! Que o Demônio para me fazer
cair, desça vales para me levantar, tendo dado tantos para me perder! Finalmente, que o
Demônio para granjear minha alma não repare em dar no primeiro lanço o mundo todo. E que
eu estime a minha alma tão pouco, que bastem os mais vis interesses do mundo para entregar
ao Demônio! Oh miséria! Oh cegueira!
A que diferente preço compra hoje o Demônio as almas do que oferecia por elas
antigamente! Já nesta nossa terra vos digo eu! Nenhuma feira tem o Demônio no mundo onde
lhe saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os reinos do mundo por uma
alma: no maranhão não é necessário ao Demônio tanta bolsa para comprar todas: não é
necessário oferecer mundos: não é necessário oferecer reinos: não é necessário o Diabo com
um rujupar de pindoba, e dous tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos: Si cadens
adoraveris Me. Oh feira tão barata! Negro por alma; e mais negra ela que ele! Esse negro será
teu escravo esses poucos dias que viver: e a tua alma será minha escrava por toda a
eternidade, enquanto Deus for Deus. Este é o contrato que o Demônio faz convosco; e não só
lho aceitais, senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima.
160
§III
Senhores meus, somos entrados à força do Evangelho na mais grave, e mais útil
matéria, que tem este estado. Matéria, em que vai, ou a salvação da alma, ou o remédio da
vida; vede se é grave e se é útil. É a mais grave, é a mais importante, é a mais intrincada, e
sendo a mais útil, é a mais gostosa. Por esta última razão de menos gostosa, tinha eu
determinado de nunca vos falar nela; e por isso também de não subir ao púlpito. Subir ao
púlpito para dar desgosto não é de meu ânimo,e muito menos a pessoas a quem eu desejo
todos os gostos, e todos os bens. Por outra parte subir ao púlpito e não dizer a verdade é
contra o ofício, contra a consciência; principalmente em mim, que tenho dito tantas verdades,
e com tanta liberdade, e a tão grandes ouvidos. Por esta causa resolvi trocar um serviço de
Deus por outros: e ir-me doutrinar os índios por essas aldeias.
Estando nesta resolução até quinta-feira, houve pessoas, a que não pude perder o
respeito, que me obrigara, a que quisesse pregar na cidade esta Quaresma. Prometi-o uma vez,
e arrependi-me muitas; porque me tornei a ver na mesma perplexidade. É verdade que no
juízo, sempre a minha boa intenção pare que estava segura. Pergunto-vos: Qual é o melhor
amigo: aquele que vos avisa do perigo, ou aquele que por vos não dar pena, vos deixa perecer
nele? Qual o médico é mais cristão: aquele que vos avisa da morte, ou aquele, que por vos não
magoar, vos deixa morrer sem sacramentos? Todas estas razões tinha por mim, mas não
acabava de me deliberar. Fui na sexta-feira pela manhã dizer missa por esta tenção, para que
Deus me alumiasse, e me inspirasse o que fosse mais glória sua; e ao ler da Epístola me disse
Deus o que queria que fizesse, com as mesmas palavras dela. São de Isaías no capítulo 58.
Clama, ne cesses: quase tuba exalta covem tuam, et annuntia populo meu scelera
meo scelera eorum. Brada, ó pregador, e não cesses; levanta a tua voz como trombeta,
desengana o meu poço, anuncia-lhes seus pecados, e diz-lhe o estado em que estão. Já o
pregão do rei se lançou com tambores: agora diz Deus, que se lace o seu com trombetas:
Quasi tuba exalta covem tuam. Não vos assombre, senhores, o pregão, que como é pregão de
Deus, eu vos prometo que seja mais brando, e mais benigno, que o do rei. E senão, vede as
palavras que se seguem: Me etenim de die in diem quaetunt, et scire vias meãs volunt: quase
gens, quae justitiam feceritjudicium Dei sui non dereliquerit. E sabes por que quero que
desenganes este meu povo, e por que quero que lhe declares seus pecados? Porque sãos uns
homensm, diz Deus, que me buscam todos os dias, e fazem muitas cousas em meu serviço, e
161
sendo que têm grevíssimos pecados de injustiças, vivem tão desassustados, como se estiveram
minha graça Quase gens, quae justitiam fecerit. Pois, Senhor, que desengano é o que hei de
dar a esta gente, e que é o que lhe hei de anunciar da parte de Deus?
Vede o que dizem as palavras do mesmo texto: Nonne hoc est magis jejunium,
quod elegi? Dissolve colligationes impietdimitte eos, qui congracti sunt, líberos. Sabeis,
cristãos, sabeis nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum que quer Deus de vós esta
Quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e
oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão: estes são os que Deus me manda que vos
anuncie: Annuntia populo scelera eorum. Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos
desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado
de condenação e todos ides direitos ao Inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo
com eles se não mudardes de vida.
Pois, valha-me Deus! Um povo inteiro em pecado? Um povo inteiro ao Inferno?
Quem se admira disto, não sabe que cousa são cativeiros injustos. Desceram os filhos de
Israel ao Egito, e depois da morte de José cativou-os El-rei Faraó, e servia-se deles como
escravos. Quis Deus dar liberdade a este miserável povo, mandou lá Moisés e não lhe deu
mais escolta que uma cara. Achou Deus que para pôr em liberdade cativos, bastava uma vara,
ainda que fosse libertá-los de um rei tão tirano como Faraó, e de uma gente tão bárbara como
a do Egito. Não quis Faraó dar liberdade aos cativos; começam a chover as pragas sobre ele.
A terra se convertiam em raios e em coriscos: todo o Egito perecendo! Sabeis quem traz as
pragas às terras? Cativeiros injustos. Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses?
Quem trouxe a praga das bexigas? Quem trouxe a fome e a esterilidade? Estes cativeiros.
Insistiu e apertou mais Moisés, para que Faraó largasse o povo; e que respondeu Faraó? Disse
uma cousa e fez outra. O que disse foi: Nescio Dominum, et Israel non dimittam: Não
conheço a Deus; não hei de dar liberdade aos cativos. Ora isso me parece bem; acabemos já
de vos declarar. Sabeis por que não dais liberdade aos escravos mal havidos? Porque não
conheceis a Deus. Falta de fé é causa de tudo. Se vós tivéreis verdadeira fé, se vós crereis
verdadeiramente na imortalidade da alma, se vós crereis que há Inferno para toda a eternidade
da alma; bem me rio eu que quisésseis ir lá pelo cativeiro de uma tapuia. Com que confiança
vos parece que disse hoje o Diabo: Si cadens adoraveris Me? Com a confiança de lhe ter
oferecido o mundo. Fez o Demônio este discurso: Eu a este homem ofereço-lhe tudo; se ele é
cobiçoso e avarento, há de aceitar; se aceita, sem dúvida me adora idolatrando; porque a
cobiça e avareza são a mesma idolatria. É sentença expressa de São Paulo: Avaritiam, quae
162
est simulacrorum servitus. Tal foi a avareza de Faraó em querer reter, e não dar liberdade aos
filhos de Israel cativos, confessando juntamente que não conhecia a Deus: Nescio Dominum,
et Israel non dimittam. Isto é o que disse.
O que fez foi que fugindo todos os israelitas cativos, sai o mesmo rei Faraó com
todo o poder de seu reino para os tornar ao cativeiro; e que aconteceu? Abre-se o mar
Vermelho, para que passassem os cativos a pé, enxuto ( que sabe Deus fazer milagres para
libertar cativos). Não cuideis que mereceram isto os hebreus por suas virtudes; porque eram
piores que essas tapuias; eram seiscentos mil homens, só dous entraram na Terra da
Promissão: mas é Deus tão favorecedor de liberdades, que o que desmereciam por maus,
alcançavam por injustamente cativos. Passados à outra banda do mar Vermelho, entra Faraó
pela mesma estrada, que ainda estava aberta e o mar de uma outra parte como em
muralhas,caem sobre ele e sobre o seu exército as águas, e afogaram a todos. O que aqui
reparo, é o modo com que conta isto Moisés no seu cântico: Operuit eos maré: submersi sunt
quase plumbum in aquis vehementibus. Extendisti manum tuam, et devoravit eos terra: que
caiu sobre eles, e os afogou o mar, e os comeu e engoliu a terra. Pois se os afogou o mar,
como os tragou a terra? Tudo foi; aqueles homens, como nós, tinham corpo e alma; os corpos
afogou-os a água; porque ficaram no fundo do mar: as almas tragou-as a terra: porque
desceram ao profundo do Inferno. Todos ao Interno, sem ficar nenhum; porque onde todos
perseguem, e todos cativam, todos se condenam. Não está bom o exemplo? Vá agora a razão.
Todo homem que deve serviço ou liberdade alheia, e podendo-a restituir, é certo
que se condena: todos, ou quase todos os homens do Maranhão devem serviços e liberdades
alheias, e podendo restituir, não restituem; logo, todos ou quase todos se condenam. Dir-meeis que ainda que isto fosse assim, que eles não o cuidavam, nem o sabiam; e que a sua boa-fé
os salvaria. Nego tal; sim cuidavam, e sim sabiam, como também vós o cuidais, e o sabeis; e
se o não cuidavam, nem o sabiam, deveram cuidá-lo e sabê-lo. A uns condena-os a certeza, a
outros a dúvida, a outros a ignorância. Aos que têm certeza, condena-os o não saberem,
quando tinham obrigação de saber. Ah se agora se abriram essas sepulturas, e aparecera aqui
algum dos que morreram neste infeliz estado, como é certo que ao fogo das suas labaredas
havíeis de ler claramente esta verdade! Mas sabeis porque Deus não permite que vos apareça?
É pelo que Abraão disse ao rico avarento, quando lhe pedia que mandasse Lázaro a este
mundo: Habent Moysen, et prophetas: não é necessário que vá de cá do Inferno quem lhe
apareça, e lhe diga a verdade; lá tem a Moisés, e a lei: lá tem os profetas e doutores. Meus
irmãos, se há quem duvide disto, aí estão as leis, aí estão os letrados, perguntem-lhes. Três
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religiões tendes neste estado, onde há tantos sujeitos de tantas virtudes, e tantas letras,
perguntai, examinai, informai-vos. Mas não é necessário ir às religiões; ide à Turquia, ide ao
Inferno, porque não pode haver turco tão turco na Turquia, nem Demônio tão endemoninhado
no Inferno, que diga que um homem livre pode ser cativo. Há algum de vós só com o lume
natural que o negue? Pois em que duvidais?
§IV
Vejo que me dizeis. Bem estava isso, se nós tivéramos outro remédio; e com o
mesmo Evangelho nos queremos defender. Qual foi mais apertada tentação, a primeira ou a
terceira? Nós entendemos que a primeira; porque na primeira estava Cristo com fome de
quarenta dias, e ofereceu-lhe o Demônio pão; na terceira ofereceu-lhe reinos e monarquias: e
um homem pode viver sem reinos e monarquias: e um homem pode viver sem reinos, e sem
impérios, mas sem pão para a boca, não pode viver; e neste aperto vivemos nós. Este povo,
esta república, este estado, não se pode sustentar sem índios. Quem nos há de ir buscar um
pote de água, ou um feixe de lenha? Quem nos há de fazer duas covas de mandioca? Hão de ir
nossas mulheres? Hão de ir nossos filhos? Primeiramente não são estes os apertos em que vos
hei de pôr, como logo vereis; mas quando a necessidade e a consciência obriguem a tanto,
digo que sim, e torno a dizer que sim; que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos, e que
todos nós nos sustentássemos dos nossos braços; porque melhor é sustentar do suor próprio
que do sangue alheio. Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos capas se
torceram,haviam de lançar sangue! A samaritana ia com um cântaro buscar água à fonte, e foi
tão santa como sabemos. Jezabel era mulher de el-rei Acab, rainha de Israel, e foi comida de
cães, e sepultada no Inferno, porque tomou a Nabot uma vinha, que não lhe chegou a tomar a
liberdade. Pergunto: qual é melhor, levar o cântaro à fonte, e ir ao Céu como a samaritana; ou
ser senhora, servida, e rainha, e ir ao Inferno como Jezabel? Melhor era que nós Adão, e tinha
ofendido a Deus com menos pecados, e devia ao trabalho de suas mãos o bocado de pão que
metia na boca. Filho de Deus era Cristo, e ganhava com um instrumento mecânico o com que
sustentava a vida, que depois havia de dar por nós. Faz isto por nós o mesmo Deus; e nós
desprezar-nos-emos de fazer outro tanto por guardar a sua lei?
Direis que os vossos chamados escravos são os vossos pés e mãos; e também
podereis dizer que os amais muito, porque os criastes como filhos, e porque vos criam os
vossos. Assim é; mas já Cristo respondeu a esta réplica: Si oculus tuus scandalizat te, amputa
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illum. Não quer dizer Cristo que arranquemos os olhos, nem que cortemos os pés e as mãos;
mas quer dizer que se nos servir de escândalo aquilo que amarmos como os nossos olhos, e
aquilo que havemos mister como os pés e as mãos, que o lancemos de nós, ainda que nos
doía, como se o cortáramos. Quem há que não ame muito o seu braço e a sua mão? Mas se
nela lhe saltaram herpes, permite que lha cortem, por conservar a vida. O mercador, ou
passageiro, que vem da Índia, ou do Japão, muito estima as drogas que tanto lhe custaram lá;
mas se a vida periga, vai tudo ao mar, para que ela se salve. O mesmo digo no nosso caso. Se
para segurar a consciência, e para salvar a alma, for necessário perder tudo, e ficar como um
Jó, perca-se tudo.
Mas, bom ânimo, senhores meus, que não é necessário chegar a tanto, nem a
muito menos. Estudei o ponto com toda a diligência, e com todo o afeto; e seguindo as
opiniões mais largas e mais favoráveis, venho a reduzir as cousas a estado, e com muito
grandes interesses podem melhorar suas conveniências para o futuro. Dai-me atenção.
Todos os índios deste estado, ou são os que vos servem como escravos, ou os que
moram nas aldeias de el-rei como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural, e ainda
maior liberdade, os quais por esses rios se vão comprar ou resgatar (como dizem) dando o
piedoso nome de resgate a uma venda tão forçada e violenta, que talvez se faz com a pistola
nos peitos. Quanto àqueles que vos servem, todos nesta terra são herdados, havidos, e
possuídos de má-fé, segundo a qual não farão pouco (ainda que o farão facilmente) em vos
perdoar todo o serviço passado. Contudo, se depois de lhs ser manifesta esta condição de as
liberdade, por serem criados em vossa casa, e com vossos filhos, ao menos os mais
domésticos, espontânea e voluntariamente vos quiserem servir e ficar nela, ninguém,
enquanto eles tiverem esta vontade, os poderá apartar de vosso serviço. E que se fará de
alguns deles que não quiserem continuar nesta sujeição? Estes serão obrigados a ir viver nas
aldeias de el-rei, onde também vos servirão na forma que logo veremos. Ao sertão se poderão
fazer todos os anos entradas, em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem (como se
diz) em cordas, para ser comidos; e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro.
Assim serão também cativos todos os que sem violência forem vendidos como escravos de
seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o estado, o
ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das quatro religiões,
carmelistas,franciscanos, mercenários, e da Companhia de Jesus. Todos os que deste juízo
saírem qualificados por verdadeiramente cativos, se repartirão aos moradores pelo mesmo
preço por que foram comprados. E os que não constar que a guerra em que foram tomados,
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fora justa, que se fará deles? Todos serão aldeados em novas povoações, ou divididos pelas
aldeias que hoje há; donde, repartidos com os demais índios delas pelos moradores, os
servirão em seis meses do ano alternadamente de dous em dous, ficando os outros seis meses
para tratarem de suas lavouras e famílias. De sorte que nesta forma todos os índios deste
estado servirão aos portugueses; ou como própria e inteiramente cativos, que são os de corda,
os de guerra justa, e os que livre e voluntariamente quiserem servir, como dissemos dos
primeiros; ou como meios cativos, que são todos os das antigas e novas aldeias, que pelo bem
e conservação do estado me consta que ,sendo livres, se sujeitarão a nos servir e ajudar a
metade do tempo de sua vida. Só resta saber qual será o preço destes que chamamos meios
cativos, ou meios livres, com que se lhes pagará o trabalho do seu serviço. E matéria de que se
rirá qualquer outra nação do mundo, e só nesta terra se não admira. O dinheiro desta terra é
pano de algodão, e o preço ordinário por que servem os índios, e servirão cada mês, são duas
varas deste pano, que valem dous tostões! Donde se segue que por menos de sete réis de cobre
servirá um índio cada dia! Cousa que é indigna de se dizer, e muito mais indigna, de que por
não pagar tão leve preço, haja homens de entendimento, e de cristandade, que queiram
condenar suas almas, e ir ao inferno.
§V
Pode haver cousa mais moderada? Pode haver cousa mais posta em razão que
esta? Quem se não contentar e não satisfizer disto, uma de duas: ou não é cristão, ou não tem
entendimento. E senão, apertemos o ponto, e pesemos os bens e os males desta proposta.
O mal é um só, que será haverem alguns particulares de perder alguns índios, que
eu vos prometo, que seja mui poucos. Mas aos que nisto repararem pergunto: Morreram-vos
já alguns índios? Fugiram-vos já alguns índios? Muitos. Pois o que faz a morte, por que o não
fará a razão? O que faz o sucesso da fortuna, por que o não fará o escrúpulo da consciência?
Se vieram as bexigas e vo-los levaram todos, que havíeis de fazer Havíeis de ter paciência.
Pois não é melhor perde-los por serviço de Deus que perde-los por castigo de Deus? Isto não
tem resposta.
Vamos aos bens, que são quatro, os mais consideráveis. O primeiro é ficardes com
as consciências seguras. Vede que grande bem este. Tirar-se-á este povo do estado de pecado
mortal; vivereis como cristãos, confessar-vos-eis como cristãos, morrereis como cristãos,
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testareis de vossos bens como cristãos; enfim, ireis ao Céu, não ireis ao Inferno menos
certamente, que é triste cousa.
O segundo bem é que tirareis de vossas casas esta maldição. Não há maior
maldição numa casa, nem numa família, que servir-se com suor e com sangue injusto.. Tudo
vai para trás; nenhuma cousa se logra; tudo leva o Diabo. O pão que assim se granjeia, é como
o que hoje ofereceu o Diabo a Cristo; pão de pedras, que quando se não atravessa a garganta,
não se pode digerir. Vede-o nestes que tiram muito pão do Maranhão, vede se o digeriu
algum, ou se se lhe logrou algum? Houve quem se lhe atravessou na garganta, que nem
confessar-se pôde.
O terceiro bem é, que por este meio haverá muitos resgates, com que se tirarão
muitos índios; que doutra maneira não os haverá. Não dizeis vós que este estado não se pode
sustentar sem índios? Pois se os sertões se fecharem, se os resgates se proibirem totalmente,
mortos estes poucos índios que há, que remédio tendes? Importa logo haver resgates, e só por
este meio se poderão conceder.
Quarto, e último bem; que feita uma proposta nesta forma, será digna de ir às
mãos de Sua Majestade, e de que Sua Majestade a aprove e a confirme. Quem pede o ilícito e
o injusto, merece que lhe neguem o lícito e o justo; e quem requer com consciência, com
justiça,e com razão, merece que lha façam. Vós sabeis a proposta que aqui fazíeis? Era uma
proposta que nem os vassalos a podiam fazer em consciência, nem os ministros a podiam
consultar em consciência, nem o rei a podia conceder em consciência. E ainda que por
impossível el-rei tal permitisse, ou dissimulasse, de que nos servia isso, ou que nos
importava? Se el-rei permitir que eu jure falso, deixa de ser pecado? Se el-rei permitir que eu
furte, deixará o furto de ser pecado? O mesmo passa nos índios. El-rei poderá mandar que os
cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição. Se tal
proposta fosse ao reino, as pedras da rua se haviam de levantar os homens do Maranhão. Mas
se a proposta for licita, se for justa, se for cristã, as mesmas pedras se porão de vossa parte, e
quererá Deus que não sejam necessárias pedras, nem pedreiras. Todos assinaremos, todos
informaremos, todos ajudaremos, todos requereremos, todos encomendaremos a Deus, que ele
é o autor do bem, e não pode deixar de favorecer intentos tanto de seu serviço. E tenho dito.
§VI
167
Ora, cristãos, e senhores da minha alma, se nestas verdades e desenganos que
acabo de vos dizer; se nesta minha breve proposta breve proposta consiste todo o vosso bem,
e toda a vossa esperança espiritual e temporal; se só por este caminho vos podeis segurar nas
consciências; se por este caminho vos podeis salvar, e livrar vossas almas do Inferno; se o que
se perde, ainda temporalmente, é tão pouco, e pode ser que não seja nada; e as conveniências
e bens que daí se esperam, são tão consideráveis e tão grandes; que homem haverá tão mau
cristão, que homem haverá tal mal entendido, que homem haverá tão esquecido de Deus, tão
cego, tão desleal, tão inimigo de si mesmo, que se não contente de uma cousa tão justa, e tão
útil, que a não queira, que a não aprove, que a não abrace? Por reverencia de Jesus Cristo,
cristãos,e por aquele amor com que aquele Senhor hoje permitiu ser tentado, para nos ensinar
a ser vencedores das tentações; que metamos hoje o Demônio debaixo dos pés, e que
vençamos animosamente esta cruel tentação, que a tantos nesta terra tem levado ao Inferno, e
nos vai levanto também a nós. Demos esta vitoria a Cristo, demos este pesar ao Inferno,
demos este remédio à terra em que vivemos, demos esta honra à nação portuguesa, demos este
exemplo à cristandade, demos esta fama ao mundo.
Saiba o mundo, saibam os hereges e os gentios, que não Se enganou Deus, quando
fez aos portugueses conquistadores e pregadores de Seu santo nome. Saiba o mundo que ainda
há verdade, que ainda há temor de Deus, que ainda há alma, que ainda há consciência, e que
não é o interesse tão absoluto, e tão universal senhor de tudo, como se cuida. Saiba o mundo
que ainda há quem por amor de Deus e a sua salvação, meta debaixo dos pés interesses.
Quanto mais, senhores, que isto não é perder interesses, é multiplicá-los, é acrescentá-los, é
semeá-los, e dá-los à usura. Dizei-me, cristãos,se tendes fé; os bens deste mundo, quem é que
os dá; quem é que os dá; quem é que os reparte? Dizeis-me, que Deus. Pois pergunto: qual
será melhor diligencia para mover a Deus a que vos dê muitos bens, servi-Lo, ou ofendê-Lo?
Obedecer e guardar a Sua lei, ou quebrar todas as leis? Ora tenhamos fé, e tenhamos uso de
razão.
Deus para vos sustentar e para vos fazer ricos não depende de que tenhais uma
tapuia mais, ou menos. Não vos pode Deus dar maior novidade com dez enxadas que todas as
vossas diligencias com trinta? Não é melhor ter dous escravos, que vos vivam vinte anos, que
ter quatro que vos morram ao segundo? Não rendem mais dez caixas de açúcar que cheguem
a salvamento a Lisboa que quarenta levadas a Argel, ou Zelândia? Pois se Deus é o Senhor
das novidades da terra; se Deus é o Senhor dos ventos, dos mares, dos corsários, e das
navegações; se todo o bem ou mal está fechado na mão de Deus; se Deus tem tantos modos, e
168
tão fáceis de vos enriquecer, ou de vos destruir; que loucura e que cegueira é cuidar que
podeis ter bem algum, nem vós, nem vossos filhos, que seja contra o serviço de Deus? Façase o serviço de Deus, acuda-se à alma e à consciência, e logo os interesses temporais estarão
seguros: Quaerite primum regnum Dei, et justitiam ejus, et haaec omnia adjicientur vobis.
Mas quando não fora, nem se seguraram por esta via nossos interesses, faça-se o
serviço de Deus, acuda-se à consciência, acuda-se à alma, e corte-se por onde se contar, ainda
que seja pelo sangue e pela vida.
Dizei-me, cristãos, se vos víreis em poder de um tirano que vos quisesse tirar a
vida pela fé de Cristo; que havíeis de fazer? Dar a vida, e mil vidas. Pois o mesmo é dar a vida
pela fé de Deus que dá a vida pelo serviço de Deus. Não há mais cruel tirano que a pobreza e
a necessidade; e padecer às mãos deste tirano, por não ofender a Deus, também é ser mártir,
diz Santo Agostinho. Nada disto há de ser necessário, como já vos tenho dito; mas quem é
cristão verdadeiro, há de estar com este animo, e com esta resolução.
Senhor Jesus. Este é o animo, e esta é a resolução, com que estão de hoje por
diante estes vossos tão fieis católicos. Ninguém há aqui que queira outra mais que servir-Vos;
ninguém há que tenha conveniência mais que de estar eternamente obediente, e rendido a
vossos pés. A Vossos pés está a fazenda; a Vossos pés estão os interesses; a Vossos pés estão
os escravos; a Vossos pés estão os filhos; a Vossos pés está o sangue; a Vossos pés está a
vida; para que corteis por ela e por eles, para que façais de tudo e de todos o que for mais
conforme à Vossa santa lei. Não é assim, cristãos? Assim é, assim o digo, assim o digo e
prometo a Deus em nome de todos. Vitória, pois, por parte de Cristo, vitória, vitória contra a
maior tentação do Demônio. Morra o Demônio, morram suas tentações, morra o pecado,
morra o Inferno, morra a ambição, morra o interesse; e viva a consciência, viva a alma, viva a
lei de Deus, e o que ela ordenar, viva Deus, e vivamos todos; nesta vida com muita
abundancia de bens, principalmente os da graça; e na outra por toda a eternidade os da glória:
Ad quam nos, etc.
169
ANEXO B – Sermão da Qunita Dominga de Quaresma
Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax. (1)
§I
Temos juntamente hoje no Evangelho duas coisas que nunca podem andar juntas; a verdade
e a mentira. E por que não podem andar juntas, por isso as temos divididas; a verdade no
pregador, a mentira nos ouvintes, o pregador muito verdadeiro, o auditório muito mentiroso.
Uma e outra coisa disse Cristo aos escribas e fariseus, com quem falava. O pregador muito
verdadeiro: Si veritatem dico vobis (2); auditório muito mentiroso: Ero similis vobis, mendax
(3).
De três modos – que há muitos modos de mentir – mentiram hoje estes maus
ouvintes. Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram, porque impugnaram a verdade;
mentiram, porque afirmaram a mentira. Não crer a verdade é mentir com o pensamento;
impugnar a verdade é mentir com a obra; afirmar a mentira é mentir com a palavra. Tudo isto
lhe tinha profetizado a Cristo seu pai Davi, quando disse: In multitudine virtutis tuae
mentientur tibi inimici tui (4). De muitos modos mostrareis eficazmente a verdade de vosso
ser, mas vossos inimigos vos mentirão também por muitos modos; mentir-vos-ão não crendo;
mentir-vos-ão impugnando: mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram. Disse-lhes Cristo
que era Filho de Deus verdadeiro, a quem eles chamavam Pai sem o conhecerem; disse-lhes
que os que recebessem e observassem sua doutrina viveriam eternamente, e aqui mentiram
não crendo a verdade: Si veritatem dico vobis, quare non creditis mihi (5). Disse-lhes mais,
que Abraão desejara ver o seu dia, isto é, o dia em que havia de descer do Céu à terra, e
nascer homem entre os homens, e que, finalmente, o vira com grande júbilo e alegria da sua
alma, e aqui mentiram impugnando a verdade: Quinquaginta annos nondum habes, et
Abraham vidisti (Jó. 8,57)? Tu não tens ainda cinquenta anos, e viste Abraão? – E o bezerro
que vós dissestes que vos livrara do Egito, quantos anos tinha? Não era nascido e gerado
naquele mesmo dia? O ditame com que o tivestes por Deus era falso, mas a suposição com
que entendestes que em Deus podia haver duas gerações, uma antes e outra depois, era
verdadeira. Respondeu Cristo: Antequam Abraham fieret, ego sum (Jó. 8,58): Antes que
Abraão fosse, eu já era. – Mas este era, declarou-o pela palavra Ego sum: eu sou para que
170
entendessem que era aquele mesmo Deus, que quando se definiu a Moisés disse: Ego sum qui
sum (Êx. 3,14): Eu sou o que sou porque no eterno não há passado, nem futuro: tudo é
presente. Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo era samaritano e
endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes (6). E para mentirem duas vezes em
uma mentira, repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que tinham dito e alegando-se a si
mesmos: Nonne bene dicimus nos?(7) Mal é dizer mal, mas depois de o haverdes dito,
dizerdes ainda que dizeis bem, é um mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado nele.
Estas são as mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram,
caluniaram e quiseram afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o Senhor lhes disse: Ego
hononfico Patrem meum, et vos inhonorastis me (8). Mas, posto que a Sabedoria eterna fosse
caluniada e injuriada por semelhante gente, nem por isto ficou afrontado nem desonrado
Cristo, porque tudo o que disseram dele e lhe fizeram foi por inveja, por ódio, por raiva, por
vingança, e quando as causas são estas, as injurias não injuriam, as afrontas desafrontam, as
desonras honram. Não está muito honrado Cristo? Dizei-o vós. Ora eu, que pregarei neste dia,
em que tanto se espera o assunto dos pregadores? Hei também de dizer-vos uma grande
injúria, uma grande afronta e uma grande desonra da vossa terra. Contudo, ainda que as
verdades causam ódio, espero que não haveis de ficar mal comigo, porque hei de afrontar
todos para desafrontar a cada um O discurso dirá como. Ave Maria.
§II
Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis mendax (9).
A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o
domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque em todos
prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não sair, contudo, do que hoje
todos esperam, estive considerando comigo que verdades vos diria, e, segundo as notícias que
vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será
esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade.
Cuidavam e diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo reinavam
diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava Apolo, que em
Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de outras. Se o império da
mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua
171
corte a mentira. Todas as terras, assim como tem particulares estrelas, que naturalmente
predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios, a que geralmente são
sujeitas. Fingiram a este propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo
caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas
províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo
caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que
o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a
entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que
esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a
taça. Dizem que os pés caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados,
apressados no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas,
um caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio – ou nos veio – o serem corsários.
Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a
aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade,
que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a
parte dela que nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações
estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um
abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos
estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhao? Não há dúvida, que o M. M –
Maranhão, M – murmurar, M – motejar, M – maldizer, M – malsinar, M – mexericar, e,
sobretudo, M – mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os
pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as
duas moedas correntes desta terra (10), mas tem uma diferença, que as novelas armam-se
sobre nada e os novelos armam-se sobre muito para tudo ser moeda falsa.
Na Bahia, que é a cabeça desta nossa província do Brasil, acontece algumas vezes
o que no Maranhão quase todos os dias. Amanhece o Sol muito claro, prometendo um
formoso dia, e dentro em uma hora tolda o Céu de nuvens, e começa a chover como no mais
entranhado inverno. Sucedeu-lhe um caso como este a D. Fradique de Toledo, quando veio a
restaurar a Bahia no ano de 1625. E tendo toda a gente da armada em campo para lhe passar
mostra, admirado da inconstância do clima, disse: En el Brasil hasta los cielos mientem. Não
sei se é isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um homem, que ser tão bom como o
Céu da Terra em que vive? Outra Terra há em Europa, na qual eu estive há poucos anos, em
que se experimentaram cada dia as mesmas mudanças, pelas quais Galeno não quis curar nela;
172
porém, ali há outra razão, porque como a Terra tem jurisdição sobre o céu, segue o Céu as
influências da terra. Mas o que se disse do Brasil por galanteria, se pode afirmar do Maranhão
com toda a verdade. E experiência inaudita a que agora direi, e não sei que fé lhe darão os
matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o Sol um piloto nesta cidade onde
estamos, e não no porto, onde está surto o seu navio, senão com os pés em terra: toma o
astrolábio na mão com toda a quietação e segurança. E que lhe acontece? Coisa prodigiosa!
Um dia acha que está o Maranhão em um grau, outro dia em meio, outro dia em dois, outro
dia em nenhum. E esta é a causa por que os pilotos que não são práticos nesta costa, areiam, e
se têm perdido tantos nelas. De maneira que o Sol, que em toda a parte é a regra certa e
infalível por onde se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à Terra do
Maranhão, até ele mente. E Terra onde até o Sol mente, vede que verdade falarão aqueles
sobre cujas cabeças e corações ele influi. Acontece-lhes aqui aos moradores o mesmo que aos
pilotos, que nenhum sabe em que altura está. Cuida o homem nobre hoje que está em altura de
honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está em
altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas praças. Cuida o eclesiástico que está
em altura de bom sacerdote, e amanhã acha-se com reputação de mau homem. Enfim, um dia
estais aqui em uma altura, e ao outro dia noutra, porque os lábios são como o astrolábio. É
isto assim? A vós mesmos o ouço, que eu não o adivinhei. Vede se é certa a minha verdade:
que não há verdade no Maranhão.
§III
Ora, eu me pus a especular a causa por que o clima e o Céu desta Terra influi tanta
mentira, e parece-me que achei a causa verdadeira e natural. Assim como o Céu com uma
virtude influi outra virtude, assim o clima, que também se chama céu, com um vício influi
outro vício. Ponhamos o exemplo na verdade, que é a virtude contrária da mentira: Veritas de
Terra orta est (SI. 8,12), diz Davi: A verdade nasceu da terra. – E logo advertiu que a Terra
de que falava não era toda a terra, senão a sua... Et Terra nostra dabit fructum suum (11). Mas
donde lhe veio aquela Terra – que era a de Promissão – donde veio uma virtude tão singular
no mundo, que nascesse dela a verdade? O mesmo profeta o disse: Veritas de Terra orta est,
et justitia de coelo prospexit (12). Toda esta virtude da Terra veio-lhe do céu. Influiu o Céu na
Terra a justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça
dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A
173
mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes: ou vos rouba, ou vos condena.
A verdade não: a cada um dá o seu, como a justiça. E porque o Céu influi naquela Terra a
justiça, por isso influiu e nasceu nela a verdade, influiu uma virtude, e nasceu outra.
O mesmo passa nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a inveja, se influi
gula, nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira, nasce a vingança. E para
nascer a mentira, que é o que influi? Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dá-se a mentira a
perder. Nasce, cresce, espiga, e de um não-sei-quê, tamanho como um grão de trigo, podeis
colher mentiras aos alqueires. Estes são os dois vícios do Maranhão, e estas as duas
influências deste clima – ócio e mentira. – O ócio é a primeira influência, a mentira a
segunda: o ócio a causa, a mentira o efeito. Não há Terra no mundo que mais incline ao ócio
ou à preguiça, como vós dizeis, e esta é a semente de que nasce tão má erva. Ouvi a S. Paulo.
Fala o apóstolo da Ilha de Creta, que é a Cândia que hoje vai conquistando o turco, e diz
assim: Cretenses semper mendaces, ventres pigri: (13) os cretenses têm dois vícios, que
sempre se acham neles: mentirosos e preguiçosos. Pudera dizer mais, se falara da nossa ilha e
de toda esta terra? Digam-no os naturais. Nem a sua diligência nem a sua verdade o pode
negar. Não há gente mais mentirosa nem mais preguiçosa no mundo. Deitados na sua rede:
Ventres pigri; ouvidos nas suas palavras: semper mendaces. Mas como estas virtudes vêem do
céu, como são influências do clima, pegaram-se também aos portugueses. Falta a verdade,
porque sobeja a ociosidade. Dai-me vós homens ociosos, que eu vo-los darei mentirosos. E se
não, vamos ao Evangelho.
As mais desfechadas mentiras, que nunca se ouviram nem imaginaram, foram as
que hoje lhe disseram a Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas quais o mesmo Senhor lhes
chamou mentirosos: Ero similis vobis mendax (Jó. 8,55). Disseram que era samaritano e
endemoninhado. E não só o disseram esta vez, como advertiu Orígenes, mas assim o diziam
publicamente; Nonne bene dicimus nos, quia samaritanus es tu, et daemonium habes? (14) E
notai o que disseram mais abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus est tu, et daemonium
habes (15) (Jó. 8, 52): Agora conhecemos que és samaritano e endemoninhado. – Pois, se
agora o conhecestes, como o dizíeis dantes? Porque os mentirosos dizem as coisas antes de as
saberem. Mas, tornemos à substância da mentira. Cristo lançava os demônios de todos os
corpos, e eles chamam-lhe endemoninhado; Cristo era galileu natural de Nazaré, e chamamlhe samaritano. E se o diziam pela religião e pelos costumes, os samaritanos eram idólatras e
apóstatas da lei, e Cristo era o legislador e reformador dela. Estas eram as mentiras que
diziam os escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia a verdade: que Cristo era um grande
174
profeta, que era o Rei prometido de Israel, que era o Messias. Pois, se o povo simples e sem
letras conhecia e dizia a verdade, os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios, como
cuidavam e diziam tão desatinadas mentiras? Porque os escribas e fariseus eram gente
abastada e ociosa, e o povo não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhas-eis cheias de calos. Quem
trabalha, trata da sua vida; quem está ocioso, trata das alheias. Quem trabalha, como cuida no
que faz, fala verdade, porque diz as coisas como são. O ocioso, como não tem que fazer,
mente, porque diz o que imagina.
Esta é a razão por que a mentira é filha primogênita do ócio. Vede como se forma
dentro em vós mesmos este monstruoso parto. Quem está ocioso não tem mais que fazer que
pôr-se a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação, da imaginação a suspeita, da suspeita a
mentira. É a imaginação no ocioso como a serpente de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso,
entrou a serpente coleando-se mansamente sem pés, mas com cabeça; começou pela
especulação, e acabou pela mentira. Começou pela especulação: Cur praecepit vobis Deus
(16); e acabou pela mentira, e duas mentiras: Nequaquam moriemini: eritis sicut dii (17).
Consentiu Eva na mentira peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão ao gênero humano.
Não sucede assim às mentiras imaginadas, que vós, como bicho da seda, gerastes dentro em
vós mesmos, fabricando de vossas entranhas a mortalha para vós e o vestido para os outros?
Meterá a língua a tesoura; e sem tomar as medidas à verdade, vós lhes cortareis de vestir. Por
que cuidais que se dizem tantas coisas mal feitas? Por que se fizeram? Não, que a mim me
consta do contrário. E porque se imaginaram, e tanto que vieram à imaginação, já estão na
prancha da língua.
Que bem o disse Davi: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua (SI. 51, 4): Todo
o dia a vossa língua estava cuidando e imaginando maldades (18). Tota die: todo o dia. Vede
se era ocioso aquele de quem falava Davi: todo o dia não tinha outra coisa que fazer. E que
fazia? Estava a sua língua cuidando e imaginando maldades. Não sei se reparais na
impropriedade das palavras. O cuidar, o imaginar; é obra do entendimento, não é da língua: a
língua fala, o entendimento imagina. Pois, se a imaginação está no entendimento, como diz
Davi que estes fabricadores de maldades imaginavam com a língua: Tota die iniquitatem
cogitavit lingua tua? Falou Davi com esta que parece impropriedade, para declarar com toda a
propriedade o que queria dizer. Não diz que imagina com a língua, porque a língua imagine,
que isso não pode ser; mas diz que imaginam com a língua, por duas razões: primeira, porque
a sua língua não diz o que é senão o que imagina: segunda, porque quanto lhes vem à
imaginação, logo o põe na língua. O mesmo Davi: Cogitaverunt et locuti sunt iniquitatem
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(19). Em imaginando a maldade, logo a dizem, sem outra causa para a dizerem mais que a sua
maldade, sem outro fundamento mais que a sua imaginação. Por isso lhes chama o profeta
verba praecipitationis (20), tão precipitados em afirmar quanto imaginam sem consideração,
sem advertência, sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus, sem meter espaço nem fazer
diferença entre o imaginar e o dizer, como se tiveram a imaginação na língua ou a língua na
imaginação, como se a língua fora a que imagina, ou a imaginação a que fala: Cogitavit
injustitiam lingua tua. Quantas vezes se diz do honrado e da bonrada, do inocente e da
inocente o que nunca lhes passou pela imaginação? Mas basta que o maldizente o imagine ou
o queira imaginar, para o pôr na conversação e na praça, e o afirmar com tanta certeza, como
se o lera em um Evangelho. Deus nos livre de tais línguas, e muito mais de tais imaginações,
porque se a vossa honra lhes entrou na imaginação, nenhum remédio tendes: não há de parar
aí, há de passar à língua: Cogitaverunt, et locuti sunt (21).
Daqui entendereis a razão de um notável preceito de Deus, que por uma parte
parece rigoroso, e por outra, menos necessário. Proíbe Deus, sob pena de pecado mortal e de
inferno, que ninguém tenha juízo temerário do seu próximo. Juízo temerário é cuidar eu e
julgar mal de meu próximo dentro do meu pensamento. Pois, se o meu juízo fica dentro do
meu pensamento, e não sai fora, nem pode fazer bem nem mal ao próximo, por que o proíbe
Deus com tanta severidade? Primeiramente notai e adverti quão estimada é, e quão delicada
para com Deus a honra e a reputação de cada um de nós. Nem cá dentro no meu
entendimento, nem cá dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal reputado. Zela
Deus e cria a vossa honra e a vossa reputação, até de mim para comigo. Vede quanto criará e
sentirá que passe aos ouvidos, e ande pelas bocas de uns e outros. Daqui nasce a razão por que
Deus proíbe tão rigorosamente os juízos temerários. Não quer que haja juízos temerários, para
que não haja falsos testemunhos. Os falsos testemunhos formam-se na língua: os juízos
temerários formam-se na imaginação; e como da imaginação à língua há tão pouca distância,
para que não haja falsos testemunhos na língua, proíbe que não haja juízos temerários na
imaginação. Não se contentou Deus com meter o inferno entre a imaginação e a língua, com
um preceito de pecado mortal, mas meteu outra vez o inferno entre o entendimento e a
imaginação, para que com estes dois muros de fogo tivesse defendida a nossa honra das
nossas línguas. E, contudo, isto não basta. Por quê? Porque em se passando a primeira
muralha, está vencida a segunda; em chegando à imaginação, já está na língua: Cogitaverunt,
et locuti sunt.
176
Senhores meus, vivemos em uma Terra muito ociosa, e por isso muito sujeita a
imaginações. Aqui se há de pôr o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que não há fera mais
dificultosa de enfrear que a língua. Para se pôr o freio na língua, hão-se de meter as cabeçadas
na imaginação. Nos vossos engenhos, para que não corra a levada, pondes o resisto no açude.
O primeiro a quem mentis é a vós. Não mentiram as línguas a todos se as imaginações não
mentiram a cada um. Aqui é que se há de pôr o resisto. Jó, que conhecia muito bem a simpatia
das potências com os sentidos, dizia: Pepigi faedus cum oculis meis, ut ne cogitarem de
virgine: (22) Fiz concerto com os meus olhos, para estar seguro dos meus pensamentos. –
Concertai-vos com os vossos pensamentos, se quereis estar seguro das vossas línguas. Mas
porque dais entrada a quanto quereis no pensamento, por isso dizeis tantas coisas que nunca
passaram pelo pensamento.
§IV
Vejo que estão agora alguns no auditório mui contentes, dizendo consigo que isto
não fala com eles, porque é verdade que não são mudos, e que quando se acham em
conversação também falam nas vidas alheias; mas que não são homens que digam o que
imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não mente. Ora, estai comigo. Se vós
soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos, não houvéreis de dizer
isso, ainda que fôreis mui verdadeiros. Quero-vos pôr o exemplo na melhor boca e nos
melhores ouvidos do mundo. Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser de S. João.
Respondeu o Senhor: Sic eum volo manere (Jo. 21, 22): Quero que fique assim. – Isto é o que
Cristo disse. E os apóstolos que disseram? Exiit sermo inter fratres, quod discipulus ille non
moritur: Começaram a dizer uns com os outros que S. João não havia de morrer. – E
acrescenta o Evangelista: Et non dixit Jesus non moritur sed sic eum volo manere (Jo. 21,23):
E Cristo não disse que ele não havia de morrer, senão que queria que ficasse assim. – Pois, se
Cristo o não disse, como o disseram os apóstolos? Eles, é certo que não quiseram dizer uma
coisa por outra, mas desde a boca aos ouvidos são tantas as voltas que dão as palavras, ou no
que soam, ou no que significam, que o que na boca de Cristo é ficar, nos ouvidos dos
apóstolos é não morrer. Não podia haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores
ouvidos que os dos apóstolos; e se entre o dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos
sucedem estas contradições, que será quando a boca não é de Cristo, e quando os ouvidos não
são de S. Pedro nem de S. João? Quantas vezes vos disseram uma coisa e percebestes outra?
177
Quantas vezes ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a boca do outro e os nossos
ouvidos ficou a honra alheia pendurada por um fio? E queira Deus que não ficasse enforcada.
Isto acontece quando os homens ouvem com os ouvidos; mas quando ouvem com os
corações, ainda é muito pior. E os corações também ouvem? Nunca vistes corações? Os
corações também têm orelhas, e estai certos que cada um ouve, não conforme tem os ouvidos,
senão conforme tem o coração e a inclinação.
Enquanto Moisés estava no Monte Sinai recebendo a lei de Deus, pediram os
judeus a Arão que lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o primeiro dia da dedicação
daquela imagem, celebraram-no eles com grandes festas. Desce do monte Moisés com Josué,
ouviram as vozes ao longe: disse Moisés: – Eu ouço cantar a coros; disse Josué: – Não é
senão tumulto de guerra (Êx. 32, 18). Aqui temos choros castrorum (23). Se as vozes eram as
mesmas, como a um parecem música e a outro parecem trombetas? A razão é clara. Moisés
era religioso, Josué era soldado: ao religioso, parecem-lhe as vozes do coro; ao soldado, de
guerra. Cada um ouve conforme o seu coração e a sua inclinação. Deus nos livre de um
coração mal inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há de dizer que ouviu uma carta de
excomunhão. Os que ouvem são os ouvidos, mas os que ouvem bem ou mal são os corações.
Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme está disposto o coração, assim
se formam os ecos. Ainda vos hei de declarar isto com outra comparação mais própria. Na
fundição de Arão a temos.
Quer um fundidor formar uma imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu com
o seu diabo aos pés. Que faz para isto? Faz duas formas de barro, uma do santo e outra do
diabo, e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois disto derrete o seu metal em um forno,
e, tanto que está derretido e preparado, abre a boca ao forno, corre o metal, entra por seus
canais no ouvido de cada forma, e em uma sai uma imagem de S. Bartolomeu muito formosa,
noutra uma figura do diabo, tão feia como ele. Pois, valha-me Deus, que diferença é esta? O
metal era o mesmo, a boca por onde saiu a mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo,
entrando por outro ouvido faz um diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão nas
formas que estão lá dentro. Onde estava a forma do diabo, saiu um diabo; onde estava a forma
do santo, saiu um santo. Senhores meus, todos os nossos ouvidos vão a dar lá dentro em uma
forma, que é o coração. Se o coração é forma do santo, tudo o que entra pelo ouvido é santo;
se é forma do diabo, tudo o que entra pelo ouvido é diabólico.
Querei-lo ver? Olhai para o nosso Evangelho. Disse Cristo aos escribas e fariseus:
Ego honorifico Patrem meum (Jó. 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non quaero gloriam meam
178
(ibid. 50): Eu não busco a minha glória: Si quis sermonem meum servaverit, mortem non
videbit in aeternum (ibid. 51): Se alguém guardar os meus preceitos, viverá eternamente. –
Ouvidas estas palavras, quem não diria, quando menos, que era um santo quem as dizia,
principalmente tendo provado a sua doutrina com tantos milagres? E os escribas e fariseus
que disseram? Nunc cognovimus quia daemonium habes (ibid.52): Agora conhecemos que
trazes dentro em ti o demônio. – Pois, também de umas palavras tão santas e tão divinas
formam estes homens um conceito tão diabólico? Sim, também, porque tais eram as formas
em que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos. Aqueles malditos homens eram filhos do
diabo, como Cristo lhes disse nesta mesma ocasião: Vos ex patre diabolo estis (24) – e de uns
corações diabólicos, de umas formas endemoninhadas, ainda que o metal fosse tão divino, que
havia de sair senão um demônio: daemonium habes? Isto sucedeu às palavras de Cristo, para
que vejamos o que pode suceder às demais. É verdade que as formas não são todas umas.
Assim como sai um diabo e outro diabo, pode sair também um S. Bartolomeu; mas, ainda
assim, o melhor é não entrar por ouvidos de homens, posto que as formas não sejam do diabo,
senão do santo, porque se a forma é do diabo, ficais diabo, e se é de S. Bartolomeu, ficais
esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos da boca e ouvidos humanos que não deixasse
neles, quando menos, a pele.
Notável é o artifício, com que a natureza formou os nossos ouvidos. Cada ouvido
é um caracol, e de matéria que tem sua dureza. E como as palavras entram passadas pelo oco
deste parafuso, não é muito que quando saem pela boca, saiam torcidas. Tornemos às de
Cristo hoje. Disse o Senhor aos seus ouvintes: Abraham exsultavit ut videret diem meum vidit,
et gavisus est (Jó. 8,56): Abraão desejou ver minha vinda ao mundo, viu-a, e alegrou-se. –
Isto é o que entrou pelos ouvidos dos escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas bocas?
Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jó. 8, 57)? Ainda não tens cinqüenta
anos, e viste Abraão? – Vede como saíram torcidas as palavras dos ouvidos à boca. Cristo
disse que Abraão vira a ele, e os fariseus dizem que dissera que ele vira a Abraão: Et
Abraham vidisti. Assim torceram o nome, e mais o verbo. Ao nome mudaram-lhe o caso, e ao
verbo a pessoa. Cristo disse o nome em nominativo, e eles puseram-no em acusativo; Cristo
disse o verbo na terceira pessoa, e eles puseram-no na segunda. De Abrabam vidit, formaram
Abraham vidisti. Eis aqui como saem as palavras dos ouvidos à boca, torcidas e retorcidas:
torcidos os nomes, torcidos os verbos, torcidas as pessoas, torcidos os casos. Então dizeis que
dissestes o que ouvistes.
179
Mais sucede nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos são dois, e a
boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai pela boca uma mentira.
Parece coisa de trejeito, mas é tão certa, que a primeira mentira que se disse no mundo foi
desta casta: uma mentira feita de duas verdades. Antes que vo-la diga, quero-vos mostrar
como isto pode ser. Quando quereis dizer que fulano é grande mentiroso, dizeis que é uma
quimera. Mas que coisa é quimera? Mui poucos de vós deveis de o saber. Quimera é um
animal fingido, composto de dois animais verdadeiros: um monstro, meio homem, meio
cavalo, é quimera; um monstro, meio águia, meio serpente, é quimera; um monstro, meio
leão, meio peixe, é quimera; mas não há tais monstros nem tais quimeras no mundo. De
maneira que as ametades são verdadeiras; os todos, ou monstros que delas se compõem, são
fingidos. As ametades são verdadeiras, porque há homem e cavalo, há águia e serpente, há
leão e peixe; os monstros que se compõem destas ametades são fingidos, porque não há tal
coisa no mundo. Isto mesmo fazem os mentirosos: partem duas verdades pelo meio, e, sem
mudar nem acrescentar nada ao que dissestes, de duas verdades partidas fazem uma mentira
inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos primeiros pais, e foi a primeira mentira
que no mundo se disse: Cur praecepit vobis Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi
(Gên. 3,1)? Por que vos mandou Deus – diz o diabo a Eva – que de todas as árvores, quantas
há no paraíso, não comêsseis? – Há tal mentira como esta? E foi feita de duas verdades. Deus
deu a nossos primeiros pais uma permissão e um preceito: a permissão foi: comei de todas as
árvores; o preceito foi: não comais desta árvore. E que fez o diabo? Do comei de todas as
árvores, tomou o de todas as árvores, e do não comais desta árvore, tomou o não comais, e,
ajuntando o não comais com o de todas as árvores, disse que mandara Deus que de todas as
árvores não comessem. Pode haver maior mentira? Pois foi grudada de duas verdades.
Defendei-vos lá agora das vossas mentiras, com dizer que dissestes as mesmas palavras que
ouvistes e que não acrescentastes nada. Que importa que não acrescenteis, se diminuístes?
Pior é uma verdade diminuída, que uma mentira mui declarada, porque a verdade diminuída
na essência é mentira, e tem aparências de verdade; e mentiras que parecem verdades são as
piores mentiras de todas.
Mas por que acabemos de uma vez com as mentiras de ouvidas, para que seja
mentira o que dizeis, não é necessário que ouçais mal nem que diminuais ou acrescenteis o
que ouvistes: pode um homem dizer pontualmente o que ouviu, e ouvir pontualmente o que
disseram, e com tudo isso mentir. Quando os judeus acusaram a Cristo diante de Pilatos,
buscavam diversos falsos testemunhos, e nenhum concluía. Ultimamente, diz o Evangelista
180
que vieram duas testemunhas falsas, as quais disseram que ouviram dizer a Cristo que, se o
Templo de Jerusalém se desfizesse, ele o reedificaria em três dias. Para inteligência deste
testemunho havemos de saber que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém, e achando que
nele estavam comprando e vendendo, fez um azorrague das cordas que ali estavam, e a açoites
lançou fora os que compravam e vendiam. Espantados eles da resolução de Cristo, disseram
que lhes desse algum sinal do poder com que fazia aquilo. Respondeu o Senhor: Solvite
templum hoc, et in tribus diebus excitabo illud (25). Pois, se Cristo disse, derribei o Templo, e
em três dias o levantarei, e eles testemunharam o que lhe ouviram, como eram testemunhas
falsas: Venerunt duo falsi testes?(26) O Evangelista o declarou: Ille autem dicebat de templo
corporis sui (Jó. 2,21): Falava do templo do seu corpo – o qual templo o Senhor excitou três
dias depois de derrubado, que foi no dia da ressurreição. E como Cristo disse aquelas palavras
em um sentido, e eles as referiram em outro, ainda que as palavras eram as mesmas que
tinham ouvido, sem mudar, nem acrescentar, nem diminuir, as testemunhas eram falsas.
Cuidais que para mentir e para dizer testemunhos falsos é necessário mudar, diminuir ou
acrescentar as palavras que ouvistes? Não é necessário nada disso: basta mudar-lhes o sentido,
ou a intenção, ainda que as não entendais, porque haveis supor que as podem ter, e mais
quando as pessoas são tais – como era a de Cristo – que podem falar com mistério. Quantas
vezes se dizem as palavras sinceramente com uma tenção muito sã, e vós as interpretais e
corrompeis de maneira que de um louvor fazeis um agravo, de uma confiança uma injúria, de
uma galantaria uma blasfêmia, e de uma graça levantais uma tal labareda, que se originaram
dela muitas desgraças. E se isto sucede quando os homens dizem o que ouviram, e só o que
ouviram, que será quando dizem o que imaginaram, e o que sonharam, ou que ninguém
imaginou nem sonhou?
§V
Também contra este segundo discurso há quem cuide que está adargado. Dizem
alguns, ou diz algum: não sou eu daqueles, porque a mim nunca me saiu pela boca coisa que
me entrasse pelos ouvidos: para afirmar, hei de ver com os olhos primeiro; e se para isso for
necessário que os olhos não durmam quarenta noites, estando vigiando a uma esquina, hei-o
de fazer sem descansar, até ver averiguada a minha suspeita. Ah! ronda do inferno! Ah!
sentinela de Satanás! Este mesmo, se lhe mandar o confessor que faça exame de consciência
meio quarto de hora antes de se deitar, não o há de poder fazer com o sono. Mas, para destruir
181
honras, para abrasar casas, estará feito um Argos quarenta noites inteiras. Não cuidem, porém,
estes malignos vigiadores, que por ai se livrarão de mentirosos. Fostes, vigiastes, observastes,
vistes, dissestes, e tendes para vós que falastes verdade? Pois mentistes muito grande mentira.
Os olhos mentem de dia, quanto mais de noite. Grande caso! No Livro quarto dos Reis,
capítulo terceiro (4 Rs. 3, 22): Saíram em campanha contra os moabitas el-rei de Israel, el-rei
de Judá e el-rei de Edon. Estavam ainda os exércitos para dar batalha na manhã seguinte: eis
que, ao romper do Sol, olharam os moabitas para os arraiais dos inimigos, e viram que pelo
meio deles corria um rio de sangue. Começaram a aclamar com grande alegria: – Sangue,
sangue, sem dúvida que os três reis pelejaram esta noite entre si, e mataram-se uns aos outros:
vamos a recolher os despojos. – Saíram os moabitas correndo tumultuariamente; mas eles
foram os despojados e os vencidos, porque o sangue que viram, ou se lhes afigurou que
viram, não era sangue. Foi o caso que passava um rio por meio dos arraiais dos três reis, e
como ao sair do Sol feriram os raios na água que ia correndo, fez tais reflexos a luz, que
parecia sangue. E esta aparência de sangue, tão enganosamente visto, e tão falsa, e tão
facilmente crido, foi o que precipitou aos moabitas, e os levou a meterem-se nas mãos de seus
inimigos. Se reparais no caso, as duas coisas mais claras que há no mundo são o Sol e a água.
Os nossos provérbios o dizem: Claro como a água, claro como a luz do Sol. E quais foram as
coisas de que se formou aquele engano nos olhos dos moabitas, com que cuidaram que o rio
era sangue? Uma coisa foi o Sol, e outra coisa foi a água: o Sol, porque feriu com seus raios
as águas, e as águas porque, feridas, deram com os reflexos aparências de sangue. De sorte
que se enganaram os olhos nas duas coisas mais claras que há no mundo. Pois, se os olhos se
enganaram nas coisas mais claras, como se não enganarão nas mais escuras, e às escuras? De
dia, engana-vos o Sol, e, de noite, quereis-vos desenganar com as trevas?
Dir-me-eis que havia lua e estrelas quando vistes. Essa pequena luz é a que cega
mais, porque faz que umas coisas pareçam outras. Trouxeram um cego a Cristo, pôs-lhe o
Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via? Respondeu o cego: Video homines velut
arbores ambulantes (Mar. 8,24): Senhor, vejo os homens como árvores que andam. – Mais
cego estava agora este cego que dantes, porque dantes não via nada, agora via umas coisas por
outras. Os homens que são de tão diferente figura e estatura, via-os como árvores, e as árvores
que estão presas com raízes na terra, via que andavam como homens. Eis aqui o que tem ver
com pouca luz. O mesmo acontece a estes cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que
hão de rezar de dia: Video homines velut arbores ambulantes. O cego de Cristo, figurava-selhe que os homens eram árvores, e estes cegos do diabo, figura-se-lhes que as árvores são
182
homens. Põem-se a espreitar, vêem uma árvore em um quintal: eis lá vai um homem. A árvore
está tão pregada pelas raízes que dois cavadores a não arrancarão em um dia, e ele há de jurar
aos Santos Evangelhos, que viu entrar e sair aquele vulto; arbores ambulantes. Oh! Maldito
oficio! oh! infernal curiosidade! Já se os olhos levarem alguma nuvenzinha, como sempre
levam, ou de desconfiança, ou de ódio, ou de inveja, ou de suspeita, ou de vingança, ou de
outra qualquer paixão, aí vos gabo eu: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Notou Davi
admiravelmente que a água nas nuvens é negra. Vedes lá vir um aguaceiro escuro mais que a
mesma noite: que negrume é aquele? Não é mais que água e nuvem: a nuvem é um volante, a
água é um cristal; e destes dois ingredientes tão puros e tão diáfanos se faz uma escuridade tão
negra e tão espessa. Se quem vai vigiar e espreitar a vossa vida e a vossa honra levar alguma
nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um volante, por mais que a vossa
vida e a vossa honra seja tão clara e tão pura como um cristal, há-lhe de parecer escura e
tenebrosa: Tenebrosa aqua in nubibus aeris (27). Finalmente, reduzindo todo o discurso, ou
discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque
mentem os ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas,
porque tudo mente, e todos mentem.
§VI
Tenho acabado de provar a matéria que propus. Mas parece-me que estais dizendo
– como disse no princípio – que tenho dito muitas afrontas à vossa terra. Porém eu digo –
como também prometi – que antes a tenho desafrontado. E senão, pergunto: Qual vos está
melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam mentiras? Não há dúvida que vos está
melhor que sejam mentiras. Pois isto é o que eu tenho dito. Se fora verdade o que se diz, era
grande afronta vossa; mas, como tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito
honrados. Hoje vos restituí vossa honra, porque provei que mentem todos os que dizem mal
de vós. Vós bem sabeis melhor que eu que tudo são mentiras; mas eu tomei por minha conta
este manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos nos costumes da
terra. Dos apóstolos de Cristo se diziam e se haviam de dizer muitos males, porque é uso do
mundo dizer mal dos bons. E o Senhor, para os desafrontar e animar disse-lhes esta divina
sentença: Beati eritis cum maledixerint vobis homines, et dixerint omne malum adversum vos
mentientes (Mt. 5,11): Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o mal de vós
mentientes: mentindo. Nesta palavra está a consolação e a desafronta. Se os homens dizem
183
mal, falando verdade, é grande desgraça, mas se eles dizem mal mentientes: mentindo, não
importa nada. Por isso disse, e quero que saibam todos, que o que nesta Terra se diz são
mentiras. O mentiroso conhecido há de se entender às avessas, e entendido às avessas, nem
afronta, nem mente, porque diz verdade. E assim haveis de entender tudo o que ouvis.
Guarde-vos Deus de que o mentiroso diga bem de vós, porque é sinal que sois o contrário do
que ele diz. Essa foi a razão porque Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe
mandou que calasse, porque, como o diabo é pai da mentira, em dizer que era Filho de Deus
dizia que o não era. E esse foi também o modo geral com que o mesmo Senhor hoje se
desafrontou de todas as injúrias que os escribas e fariseus lhe tinham dito, qualificando-os por
mentirosos: Ero similis vobis mendax (28).
É verdade que os forasteiros a quem eu prego esta doutrina fazem um terrível
argumento contra a nossa terra. Chegam a este porto, põem os pés em terra, e, ouvindo dizer
mal de todos e de tudo, fazem este discurso: Ou estes homens mentem, ou falam a verdade; se
falam verdade, esta é a mais má Terra de todo o mundo, pois, nela se cometem tantas
maldades; e se mentem também a Terra é muito má, pois os homens tem tão pouca
consciência, que levantam tantos falsos testemunhos. – Este é o argumento que parece não
tem fácil solução. Mas eu respondo a uma e outra parte dele. Quanto à primeira, digo que as
maldades que se dizem são falsas, e que, como falsas, não se devem crer. São falsas? – insta a
outra parte – logo onde os homens levantam tantos falsos testemunhos, não pode ser senão a
pior Terra do mundo. Eis ai o engano e a falsa suposição em que estão os que não têm prática
interior da terra. No Maranhão é verdade que há muitas mentiras, mas mentirosos, isso não;
muito falso testemunho, sim, mas quem levante falso testemunho, por nenhum caso. Pois,
como pode isto ser? Como pode ser que haja falsos testemunhos, sem haver quem os levante?
Eu vo-lo direi. Nas outras terras os homens levantam os falsos testemunhos; nesta Terra os
falsos testemunhos levantam-se a si mesmos. Se vos parece dificultosa a proposição, vamos à
prova. Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz: padre, acuso-me que
eu desejei a morte a um homem, e o busquei para o matar, e propus de lhe fazer todo o mal
que pudesse. – E por quê? – Porque me tirou a minha honra com um falso testemunho de que
eu estava tão inocente como S. Francisco. – Irmão, perdoai-lhe, para que Deus vos perdoe. –
Passamos adiante, chegamos ao oitavo mandamento: – Levantastes algum falso testemunho?
– Não, padre, pecado é de que nunca me acusei, seja Deus louvado. – Vem uma mulher,
chega ao quinto: Digo a Deus minha culpa, que eu há tantos meses que tenho ódio a uma
mulher, e roguei-lhe muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da morte, e
184
que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava; que seus filhos visse ela mortos diante de si a
estocadas frias. – Por quê? – Porque me levantou um aleive a mim e a uma filha minha, com
que nos infamou em toda esta terra, e não me atrevo a lhe perdoar. – Ora, senhora, estamos
em Quaresma; alguma coisa havemos de fazer por amor de um Deus que padeceu tantas
afrontas e se pôs em uma cruz por amor de nós. – Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar.
Chega o confessor ao oitavo mandamento. – E vossa mercê levantou algum falso testemunho?
– Senhor padre, melhor estréia me dê Deus: muito grande pecadora sou, mas nunca Deus
permita que eu diga das pessoas o que nelas não há; se ouço alguma coisa, ajudo também, mas
levantar falso testemunho, nunca em minha vida o fiz. – Isto que aqui vos pus em dois,
acontece infinitas vezes. De maneira que no quinto todos se queixam que lhes levantam falsos
testemunhos; no oitavo ninguém se acusa de levantar falso testemunho. Logo, bem dizia eu
que nesta Terra os falsos testemunhos se levantam a si mesmos. Em suma, que temos aqui os
pecados, mas não temos os pecadores: temos os falsos testemunhos, mas não temos as falsas
testemunhas. Isto é o que posso cuidar. Mas, se acaso é o contrário, miseráveis daqueles que
assim vivem! Grande miséria é que os falsos testemunhos se levantem; mas maior miséria é,
que, depois de levantados, se faça deles tão pouco caso e tão pouco escrúpulo. Ou deixais de
confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não o conhecendo: se o
deixastes de confessar conhecendo-o, mentis a Deus; se o deixais de confessar pelo não
conhecer, mentis-vos a vós. E uma e outra cegueira, é bem merecido castigo: que minta a
Deus e que se minta a si mesmo, quem mentiu tão gravemente contra seu próximo, e que de
um ou de outro modo se vá ao inferno!
§VII
Senhores meus, se algum sermão não tinha necessidade de exortação era este.
Só vos digo, como a homens e como a cristãos, que não só por consciência, mas
por conveniência se deve aborrecer a mentira e amar a verdade. Por conveniência, porque
viveis em uma Terra muito pequena. Em toda a parte fazem muito mal as mentiras, mas nas
terras grandes têm saca e têm muito por onde se espalhar; nas terras pequenas, todas ali ficam.
Em Lisboa muita mentira se diz, mas repartem-se as mentiras por todo o reino e por todo o
mundo. Chegou navio de Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do veneziano, nas do
tártaro, nas do polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros príncipes e potentados de
Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se; umas caem em Constantinopla, outras em
185
Veneza, outras em Roma, outras na Toscana, Sabóia, etc. Vem navio do Norte, fala-se em elrei de França, no imperador, no sueco, no parlamento de Inglaterra, nos Estados de Holanda e
Flandres: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se por Paris, por Londres, por Viena de
Áustria, por Amsterdão, por Estocolmo, etc. Partem também os nossos correios todos os
sábados, e levam grande cópia das mentiras por todo o reino e o mesmo é das frotas do Brasil
e da Índia; porém as mentiras do Maranhão não têm nem outra parte donde vir nem outra
parte para onde ir: aqui nascem e aqui ficam; e quando as mentiras todas ficam na terra, e
todas vos caem em casa, ainda por conveniência e razão de estado as haveis de lançar fora. E
se não, fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não posso fazer. Uma é:
quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra: quantas casas há nesta cidade, e
logo reparti as mentiras, e vereis quantas cabem a cada casa! E que será em uma semana, que
será em um mês, que será em um ano?
Pois, se tudo isto vos fica em casa, e é força que assim seja, não é muito pouca
razão de estado, e muito grande sem-razão, que vos andeis levantando falsos testemunhos,
que vos andeis infamando e afrontando uns aos outros? Não fora muito melhor serdes todos
muito amigos, muito conformes, amardes-vos todos, honrardes vos todos, autorizardes-vos
todos, e poupardes todos desgostos? Há outros pecados que parece que os pode desculpar o
gosto ou o interesse; mas o mentir e o levantar falso testemunho? Que dão a um homem por
mentir? Que gosto se pode ter em levantar um falso testemunho? Se é por me vingar de meu
inimigo, muito maior mal me faço a mim que a ele, porque a ele, quando muito, tiro-lhe a
honra: a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por reverência daquele Senhor – que sendo
Deus se preza de se chamar Verdade – que façamos hoje uma muito firme e muito verdadeira
resolução de não haver paixão nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça torcer nem
faltar um ponto à verdade; quanto ao passado, que examinemos muito devagar e muito
escrupulosamente se ter-nos faltado à verdade em alguma coisa, principalmente em matéria da
honra de nossos próximos. Olhai, senhores, que este, este é o pecado que mais facilmente se
comete, e com mais dificuldade se restitui. Olhai, cristãos, que as balanças em que se pesam
as consciências na outra vida são muito delicadas, e que será grande desgraça ir ao inferno
para sempre por um falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito bem
examinada, em uma confissão muito bem feita, e em uma satisfação muito verdadeira,
advertindo-vos e protestando-vos da parte de Deus, que sem estas três condições, nem nesta
vida podeis alcançar a graça, nem na outra merecer a glória.
186
(1) Se disser que o não conheço serei como vós, mentiroso (Jo. 8,55).
(2) Se eu vos digo a verdade (Jo. 8,46).
(3) Serrei como vós, mentiroso (Jo. 8,55).
(4) Por ocasião do teu grande poder se convencerão de mentira os teus inimigos (Sl. 65,3).
(5) Se eu vos digo a verdade, por que me não credes (Jo. 8,46)?
(6) Tu és um samaritano, e tens o demônio (Jo. 8,48).
(7) Não dizemos nós bem (Jo. 8,48)?
(8) Eu dou honra a meu Pai, e vós a mim desonrastes-me (Jo. 8,49).
(9) Se disser que o não conheço serei como vós, mentiroso (Jo. 8,55).
(10) A moeda corrente nesta terra são novelos de fio de algodão.
(11) E a nossa terra produzirá o seu fruto (Sl. 84,13).
(12) A verdade nasceu da terra, e a justiça olhou desde o céu (Sl 84,12).
(13) Os de Creta sempre são mentirosos, ventres preguiçosos (Tit. 1,12).
(14) Não dizemos nós bem que tu és um samaritano e que tens demônio (Jo. 8,48)?
(15) A Vulgata (Jo. 8, 52) traz apenas: Nunc cognovimus quia daemonuim habes.
(16) Por que vos mandou Deus (Gên. 3,1)?
(17) Bem podeis estar seguros que não morrereis de morte; sereis como uns deuses (Gên.
3,4s).
(18) A Vulgata traz injustitiam e não inquitattem (Sl. 51,4).
(19) Cogitaram e falaram iniqüidade (Sl. 72,8).
(20) Palavras de precipitação (Sl. 51,6).
(21) Cogitaram, e falaram (Sl 72,8).
(22) Fiz concerto com os meus olhos de certamente não cogitar nem ainda em uma virgem (Jó
31,1).
(23) Coros de música no campo dos exércitos (Cânt. 7,1).
(24) Vós sois filhos do diabo (Jo. 8,44).
(25) Desfazei este templo, e eu o levantarei em três dias (Jo. 2,19).
(26) Chegaram duas testemunhas falsas (Mt. 26,60).
(27) Água tenebrosa nas nuvens do ar (Sl. 17,12).
(28) Serei semelhante a vós, mentiroso (Jo. 8,55).
187
ANEXO C – Sermão de Santo Antônio aos Peixes
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
§I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e
chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é
impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos
nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o
sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os
ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal
não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é
porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não
deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto
verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de
fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga,
Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut
mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o
pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil
para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não
pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a
cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e
de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar,
que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas
temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo Antônio, que hoje celebramos, e
a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
188
Pregava Santo Antônio em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que
nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia
fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não
tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande Antônio? Sacudiria o pó dos
sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas Antônio com os pés descalços não podia
fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que
faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria
porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele
peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o
auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se
ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os
peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a
ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e
postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, Antônio pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de Santo Antônio sobre o Evangelho, dê-nos
outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo
Antônio vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo
Antônio foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há
muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar
como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja
tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo Antônio em Arimino, que é força
segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde,
de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que
mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a
corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem
tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo Antônio, voltar-me da terra ao mar, e
já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me
ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina
maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte
com a costumada graça. Ave Maria.
§II
189
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos
têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera
desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta
dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje
em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos
homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como
vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e
preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do
vosso pregador Santo Antônio, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é
louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para
preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem
seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum,
reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione:
«Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e
louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz
que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in
vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender.
Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois
pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos
vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos,
que experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer
que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A
vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro
que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais
dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros
nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis,
universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os
maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres
com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés,
cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit
190
Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como
singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e
outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó
peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os
lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro
louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados,
acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção
com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo Antônio. Oh grande louvor
verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens
perseguindo a Antônio, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque
lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus
erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e
suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso
(como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e
para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão
quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham
convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso
de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o
uso sem a razão.
Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos
pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o
fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou
aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os
homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às
praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes
ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede,
peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram
entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo
à terra.
Mas porque nestas duas ações teve maior parte a onipotência que a natureza
(como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e
próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não
191
domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o
boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e
benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem
connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as
grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento.
Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos,
lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão
pequeno que não fuja dele. Os autores comumente condenam esta condição dos peixes, e a
deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não
condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza,
era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e
familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus
familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o
rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça
o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão
de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem
formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se
o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os
leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com
grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis
só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de
toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes
memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os
animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros
animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos
peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que
dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos
os animais da terra e todas as aves, porque não morreram também os peixes? Sabeis porquê?
Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos,
tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles.
Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes,
assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas
192
com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um
castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos
homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou
distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o
mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os
que andavam longe ficaram livres.
Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande
filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os
homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio – e foi este um dos benefícios
de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais
buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus
pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o
deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente
Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si
mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não
fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios
irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual
nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro
deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
§III
Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que
vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera
de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de
vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão
celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro
nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a
verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e
descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande
peixe com a boca aberta em ação de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o
anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe
tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e
193
perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar,
respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração para lançar fora os
demônios: Cordis eius particulam, si super carbones ponas, fumus eius extricat omne genus
daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim
o disse o anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego,
aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um
demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e
queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demônio e nunca mais tornou. De sorte que
o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demônios de casa a Tobias,
o moço. Um peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais?
Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato
marítimo de Santo Antônio.
Abria Santo Antônio a boca contra os hereges, e enviava-se a eles, levado do
fervor e zelo da fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravamse com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo que
vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso
e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é
certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e
convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demônios fora de
casa.
Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demônios
perseguis vós?! Só uma diferença havia entre Santo Antônio e aquele peixe: que o peixe abriu
a boca contra quem se lavava, e Santo Antônio abria a sua contra os que se não queriam lavar.
Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri,
abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos
prego a vós, prego aos peixes.
Passando dos da Escritura aos da história natural, quem haverá que não louve e
admire muito a virtude tão celebrada da rêmora? No dia de um santo menor, os peixes
menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele
peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de
um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu
próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover,
194
nem ir por diante? Oh se houvera uma rêmora na terra, que tivesse tanta força como a do mar,
que menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo!
Se alguma rêmora houve na terra, foi a língua de Santo Antônio, na qual, como na
rêmora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus
omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao
leme da nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente
a virtude da rêmora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a
virtude e força da língua de Santo Antônio. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto
é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio?
Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de Antônio quanta força
tinha, como rêmora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na
nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se
iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de Antônio, como rêmora,
não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a
tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia
abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou
deitariam a pique se a rêmora da língua de Antônio lhes dão detivesse a fúria, até que,
composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos,
navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as
costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que
levavam e do que iam buscar, se a língua de Antônio os não fizesse parar, como rêmora, até
que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau
Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite,
enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou
em Sila, ou em Caribes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rêmora da língua de
Antônio os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa,
enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se vêem e
choram na terra tantos naufrágios.
Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor
ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a
que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de
vista; mas isto tem as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o
195
pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca
o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável
efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do
anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.
Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem
dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo
o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que
pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de
pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que
fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o
instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de
varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam, e
pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que,
pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos
homens e tivera a língua de Santo Antônio, eu os fizera tremer.
Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo Antônio, e
às palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a
seus pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo, restituíram o que
podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram
de vida e de ofício e se emendaram.
Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não
sei se foi ouvinte de Santo Antônio e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a
mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem
não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de quando em
quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os
Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e
achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus,
lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias, que
são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também
dois; e a ti, peixezinho, quatro.
Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar.
Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras
196
vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há
tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o
abismo de seus juízos!
Filosofando, pois, sobre a causa natural desta providência, notei que aqueles
quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como
os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham
direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova
arquitetura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são
perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves
marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobroulhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima, para
se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem
dos peixes.
Oh que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem
empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele
peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para
cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo,
lembrando-me que há Inferno. Não me alegou para isso passo da Escritura; mas então me
ensinou o que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, ne videant
vanitatem. «Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»
Pois David não podia voltar os seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele
queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o
podia fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo
«tudo é vaidade»: Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de
David a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro
Mundo em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu,
ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus
aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão pequeno.
Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou
fim a vossos louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao
Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e
todas as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os
verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles com que o
197
mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de
ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os
banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos
justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo
Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto
que na semana só dois se chamam vossos, nenhum dia vos é vedado. Um só lugar vos deram
os astrólogos entre os signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que
têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade
entre todos é própria do Espírito Santo: Spiritus Domini foecundabat aquas.
Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor
vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei
que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs
sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são
sustento de pobres. Os solhos e os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos
reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo
os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do deserto,
multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se peixes mortos, que
sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão os vivos! Crescei,
peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua bênção.
§IV
Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi
também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A
primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande
escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros,
senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os
pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os
grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai
como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt,
sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser
como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da
mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma
198
pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos
homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego
aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai,
peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os
matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os
Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os
Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às
praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem
quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer
e como se hão de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comêlo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no
os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico,
que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma
mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que
lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda
o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se
comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de
sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que
também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare
persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente,
vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Jó destes?
Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai
quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, comeo o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o
julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O
triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda
em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos
modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne
cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis?
«Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido
aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama
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maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A
maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que
comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras, pelo que
vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas
palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua
plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os
comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os
grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer
os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros:
Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como
os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que
para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses
no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto
é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come
com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem
fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem,
em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais
todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando
de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os
maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os
cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão
também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.
Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem
castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo
as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e
quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos
miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e
aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em
comer e devorar os pequenos. Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que,
seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem
ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá
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chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça
tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:
Vos quibus rector maris, atque terrae
Ius dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis dominus minatur.
Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: «Governador
do mar e da terra»; para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens
na terra, observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não
façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio,
quando, falando convosco, disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem:
«Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais
forte», que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre,
como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens
de dentes, que o há de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também
Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris. Mas não bastam, peixes, estes exemplos
para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os
pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes?
Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que de aqui por
diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite
particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão
diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos
perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de
noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós
se emalham e entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as
linhas, contra vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes
que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que
tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a
dentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e
comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão
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perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome.
Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos,
quando vos pregava Santo Antônio? Pois continuai assim, e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos
sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito
largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte
dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não
estatuto da natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do Mundo não se
comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies se multiplicassem. O
mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois
de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo
dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião
a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram
essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé
lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta
temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo
natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós
também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.
Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em
muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens
experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe
um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até
tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que,
assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e
mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida? Dir-meeis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro
exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê?
Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os
vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade?
Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou
branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se
chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao
peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O
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que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano
tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os
homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa
resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há
exércitos, nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo
mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os
homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um
mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro
sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos
moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe
mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam
engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e
lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana,
ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os
coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios,
nem as tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e
despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro
está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois
retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à
cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doiradas,
vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar
com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardesvos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo Antônio, que pouco o
pode enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que
aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante;
e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha,
trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou
ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
§V
203
Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E
começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores
e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns
peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um
alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso
mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem
muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer
roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro,
a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou
contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha,
eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu
naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele
havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele
fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar.
Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo
no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal
descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non
potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim,
«e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas
assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece,
irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe?
Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza.
Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os
peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm
comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber
que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado no campo,
desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim
teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar
com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus,
sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a
Santo Antônio. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque
ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos
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roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de
Cristo, Antônio, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos
experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais
blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.
Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi
debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se
houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de
que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros
maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que jamais os desferram. De alguns
animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para
se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto
como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca
sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome. Este modo de vida,
mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que
o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não
parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se
arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos
ignorantes, desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os
que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que
aos pegadores do mar.
Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas,
tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes
ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessase furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alálo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e
morrem com ele os pegadores. Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo
pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o
Anjo a José no Egito, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos
todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt enim qui quaerebant
animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino, eram Herodes e todos os seus,
toda a sua família, todos os seus aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna.
Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em
morrendo o tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt
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qui quaerebant animam Pueri. Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e
enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não
tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo Antônio.
Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem
adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que «eu só me quero pegar
a Deus». Assim o fez também Santo Antônio; e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede
como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual dos
dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e
o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a Antônio. Mas Antônio também se fez menor,
para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal,
seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que
Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a
ele: Si ego me quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E posto
que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos
devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se
amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a
Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas
as aves do céu descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à
sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi
cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos
grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.
Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele
peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não
comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o
tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a
maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado
original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a
nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que
outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água,
e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar.
Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me,
voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus
para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois
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peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e
conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dirme-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois
porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda
mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros
peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou a
fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio
navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando.
Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a
sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar
por cima das entenas e cair morto! Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não
basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes,
peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o
mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são
redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o
teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés
amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem
peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e
eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não
quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do
fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a
queimar as asas.
À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer
mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo
virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a
arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro
filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com
efeito começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou
mais depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão
que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés. Não quero que repareis no
castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também
estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de
uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim, diz S.
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Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e
mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito
ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer
asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés,
para que não ande. Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se
contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou
no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.
Oh alma de Antônio, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque
soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo
ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram dadas duas grandes asas de
águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para quê? Ut volaret in desertum:
«Para voar ao deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande
maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta
sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao
deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas,
as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo Antônio. Deram-se à alma de
Santo Antônio duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural
tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para
descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse,
por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso santo
pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais
para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as
para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos,
estareis mais seguros.
Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão
polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio.
O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma
brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão
santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o
dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir
ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no
camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são
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verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no
lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, fazse da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição,
vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio
engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera
mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que
abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz
as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às
escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros,
e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso
e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!
Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e
tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse
o Profeta por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in
nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro
elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana e transparente,
em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie,
se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão
fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor! Vejo, peixes, que pelo
conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais respondendo e
convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito
maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis
aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a
calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o
posso negar. Mas ponde os olhos em Antônio, vosso pregador, e vereis nele o mais puro
exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou
engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser
português, não era necessário ser santo.
Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito,
como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal
terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares.
Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa
muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que
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advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se
aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos. Esta pena de
excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus
por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta
lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a
definhar, até que acabam miseravelmente. Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que
na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se
Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos
outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata,
e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que
seja ele o que morra primeiro que os demais? Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda
no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a
moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares.
E quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os
homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem
morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na
garganta. Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os
homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta;
porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E
posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo
apressam a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm
dos bens dos naufragantes.
§VI
Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E
para que vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de
uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o
Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que lhe
haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes
totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna
de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre,
que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os
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peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não,
senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares.
Também este ponto era muito importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles.
Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar,
estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque
melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser
sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o
sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.
Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor
me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo,
peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o
vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as
palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós
não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a
vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que
fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou.
Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o
não ofendestes; eu espero que o hei de ver; mas com que rosto hei de aparecer diante do seu
divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora
melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas obrigações, disse a Suma
Verdade, que «melhor lhe fora não nascer homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os
que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentaivos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.
Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a
Deus, os grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos
uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos
distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura;
louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários à vida; louvai a Deus,
que vos deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu
entre vós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos
sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus,
enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no
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princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. Amém. Como não sois capazes de
Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.