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Revista Online FADIVALE
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
2005
1
Revista Online FADIVALE
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
Governador Valadares - 2005
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
Núcleo de Capacitação Científica
Rua: Arthur Bernardes, 533 – Centro
35010-020 – Governador Valadares – MG
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e-mail: [email protected]
Ficha Técnica
Revisão
Maria Augusta Moreira
Tradução
Adriana M. G. Nunes Oliveira
Capa
Geciléia Aparecida Caetano e Júnior Stambassi
Editoração Eletrônica
Júnior Stambassi
Os artigos publicados são de exclusiva responsabilidade dos seus autores.
Ficha Catalográfica
Revista Online FADIVALE – Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
Ano 01, nº 1, 2005 – Governador Valadares.
Periodicidade: anual
1. Direito . I . FADIVALE – Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce.
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Revista Online FADIVALE - 2005
Revista Online FADIVALE
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
SCCE - Sociedade Civil Cultura e Educação (mantenedora)
Fundadores
Afonso Teixeira Lages
Edgard Fontes Resende
Hermírio Gomes da Silva
Altino Machado D’Oliveira
Fulgêncio Pimenta Figueiredo
Sigefredo Marques Soares
Tito Guimarães
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
Diretor
Alcyr Nascimento
Vice-Diretor
Célio Edgard Simões Fontes de Resende
Diretor Financeiro
Altino Machado D’Oliveira Jr.
Coordenador do Curso de Graduação
Amarildo Lourenço Costa
Coordenadora de Extensão
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Coordenador de Pós-Graduação
Márcio Hubner Destro
Núcleos
Núcleo de Assistência Jurídica Cível
Núcleo de Criminologia, Penal e Execução Penal
Núcleo de Direito do Trabalho e Previdenciário
Núcleo de Direito do Estado
Núcleo de Capacitação Científica
Núcleo de Orientação Didático Pedagógica
Núcleo de Monitoria
Núcleo de Estágio Supervisionado
Central de Defesa dos Direitos do Idoso “Aurita Machado”
Ambulatório - Escola Geriátrico “Aurita Machado”
Conselho Científico
Antônio Lima dos Santos
Cármine Antônio Savino Filho
Jane Ribeiro Silva
João Baptista Herkenhoff
José Alfredo de Oliveira Baracho
Luiz Henrique Urquhart Cadermatori
Vicente Barreto
Conselho Editorial
Alzira Eça de Argolo Faustino
Amarildo Lourenço Costa
Ary Constant Soares
Bruno Timóteo Dutra
Denílson Mascarenhas Gusmão
Eneá de Stutz e Almeida
Eugênio Guimarães
Marcílio Evangelino Pimenta
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Mirian Célia Gonçalves de Almeida
Ronaldo Marinho
Rosângelo Rodrigues de Miranda
Sandra Lúcia Rodrigues de Carvalho
Teodolina Batista da Silva Cândido Vitório
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Sumário
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA
DA SOCIEDADE CONJUGAL.................................................................................................9
Alexsandra Cristina da Silva Belechian
Francisco Shimabukuro Júnior
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO.........................................................................33
Carmen Alcântara Silva
Ronaldo Marinho
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO..........................................................51
Elianne Maria Meira Rosa
TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL..................................................................67
Fabriny Neves Guimarães
PRINCIPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE
A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA.........................79
José Maurício Cantarino Villlela
AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O
PENSAMENTO PÓS-MODERNO.........................................................................................95
Karla Cristine Coelho Lamounier
Denílson Mascarenhas Gusmão
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO............................109
Lorimar M. Piazarolo Azevedo
O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO................135
Lucas Abreu Barroso
6
A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE.........................................155
Márcia Moreira de Morais
Amarildo Lourenço Costa
LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO....................................189
Pedro Carlos Sampaio Garcia
RESENHA
CONOSCERE ROSMINI DE UMBERTO MURATORE.......................................................213
Antônio Lima dos Santos
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Revista Online FADIVALE - 2005
Apresentação
A Revista Online da Fadivale trilha, com passos firmes, o caminho da
maturidade. A robustez e pertinência dos artigos desta primeira edição online,
produzidos com o signo da fidelidade ao Direito – em transformação, para não
dizer em ebulição - e sua interface com outras ciências, conferem certificado de
competência aos projetos de pesquisa e produção científica desta Instituição, coordenados, de forma brilhante, pelo Núcleo de Capacitação Cientifica - NCC.
Um dos maiores, senão o maior desafio das academias é, justamente,
oferecer a efetiva contribuição, do modo que lhe couber, à vida das pessoas do seu
entorno. Às Escolas de Direito, especificamente, lança-se o desafio de apresentar
à comunidade, por diferentes mecanismos de inserção social o Direito, não como
um emaranhado e distante cipoal de normas, mas o Direito que abre veredas, que
projeta a luz da cidadania sobre as trevas a que, injustamente, confinaram milhões
de brasileiros, postos à margem da justiça, em sua acepção mais ampla.
O Direito que, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, abandona
o academicismo e vai para as filas dos hospitais públicos, para as angústias
familiares, para o sofrimento do trabalhador explorado, para o inferno prisional
e para a degradação ambiental sem olvidar, por certo, a reflexão acerca das
questões de ordem jus-filosófica que envolvem a vida em sociedade.
Assim, a edição da Revista da Fadivale que ora apresentamos, mais do
que as outras edições – que foram igualmente brilhantes, lança luzes do saber
jurídico sobre importantes vieses da vida social.
Além disso, visita com a percuciência de seus autores, temas da mais
elevada relevância, como as cláusulas gerais no Direito Civil, em artigo de autoria
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da aluna Karla Lamounier, orientada pelo Mestre Denílson Gusmão, classificada
em primeiro lugar no III Concurso de Monografia Jurídica da FADIVALE.
Em destaque, ainda, artigo que enfrenta, com notável lucidez, o assunto
“avaliação institucional”, e, ao final da Revista, resenha do Prof. Antônio Lima
dos Santos acerca da obra “Conoscere Rosmini: Vita, pensiero, spiritualità”, que
abordam temas de inquestionável ligação com o Direito.
Uma sensação sobreleva à leitura desta nova edição: estamos avançando. Avançando, a propósito, num momento em que há uma latente sensação
de que a sociedade retrocede quanto aos valores que lhe são mais essenciais.
Nisso, uma esperança: onde brilha a luz, desaparecem as trevas. Que esta edição
da Revista da Fadivale ajude a projetar mais uma luz no caminho da Justiça.
Amarildo Lourenço Costa
Coordenador de Curso
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS
NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA
SOCIEDADE CONJUGAL
Alexsandra Cristina da Silva Belechian*
Francisco Shimabukuro Júnior*
Resumo
Abstract
A pesquisa ora apresentada propõe responder ao
questionamento de ser ou não possível a indenização
de danos porventura sofridos quando da ruptura do
casamento em face da não-existência de um dispositivo
específico a respeito. Para isso trouxe sucinta análise
do instituto da responsabilidade civil em que o dano
ressarcível é aquele causado por um agente que agiu
com dolo ou culpa e que trouxe reais prejuízos a um
bem tutelado pelo Direito, material ou moral. Os danos
porventura ocorridos na separação/divórcios culposos
podem ser indenizados se analisados sob o prisma da
responsabilidade civil, segundo o qual um dano ocasionado por outrem que agiu dolosa ou culposamente é
ressarcível, não havendo perdão tácito. A esta conclusão
se chegou ainda que, se analisado o casamento como
uma instituição ou como um contrato de tipo especial,
regido pelo Direito de Família, por si só, não permite
aos interessados fazerem modificações volitivas. E,
mesmo não tendo um dispositivo específico, pode-se
usar hermenêutica de aplicação dos dispositivos da
inexecução do contrato e ainda uma comparação com o
Direito alienígena cujo dispositivo também não existe.
This essay offer for consideration to answer the question of if it is possible or not the indenization for moral
damages suffered by changing from a marriage dissociation due to the fact that there is no specific rule
about it. Therefore it shows a brief analysis of the civil
responsibility where the damage can be compensated
for the one who did it, independently if he or she wanted
to cause it an due to that brought real material or moral
injuries to a virtue protected by Law. The damages by
chance occurred at the separation or divorce when they
happened with no purpose of it can be indemnified
when analyzed trough the point of view of civil responsibility, in which on a damage caused by someone
else whether wanting or not is restorable, with no tacit
forgiveness. We can also conclude that analyzing the
marriage as an institution or a sort of special contract
governed by Family Law, by itself doesn’t allow the
interested ones to make volitive changes. And even
with no specific rule, we can use the hermeneutic of
rules applying of the non execution of the contract and
also a comparation to the foreign law that, in some
countries also doesn’t have this particular rule.
Palavras-chave
danos morais, responsabilidade, indenização.
Keywords
moral damages; responsibility; indemnification.
Sumário
1 INTRODUÇÃO. 2 INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA SEPARAÇÃO E NO DIVÓRCIO COM CULPA.
2.1 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À REPARAÇÃO CIVIL POR DANOS MORAIS NA SEPARAÇÃO E DIVÓRCIO
COM CULPA. 2.1.1 Argumentos favoráveis à indenização por danos morais na separação e no divórcio.
2.1.2 A consagração constitucional do dano à personalidade como argumento favorável à reparação civil
dos danos conseqüentes da separação ou divórcio. 2.1.3 Jurisprudência e doutrina. 2.1.4 O direito francês
2.1.5 O Projeto de Lei 4245/2001 que tramita na Câmara dos Deputados. 3 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
* Aluna classificada em 2º lugar no III Concurso de Monografia Jurídica da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE),
realizado em 2003.
** Professor orientador. Especialista em Direito Civil e do Trabalho. Advogado.
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1 INTRODUÇÃO
A sociedade conjugal é constituída visando à sua perenidade. No entanto, há fatores anteriores ou posteriores ao casamento que o levam à sua ruptura.
Juridicamente, a dissolução da sociedade conjugal se dá pela morte
de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação
judicial ou pelo divórcio (art. 1571 do Código Civil).
Certamente, essa ruptura trará conseqüências dolorosas para as partes. Ainda é certo que há conseqüências patrimoniais e extra-patrimoniais.
2 INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA SEPARAÇÃO E NO DIVÓRCIO
COM CULPA
Atualmente, no Direito Brasileiro, o cônjuge que deu causa à ruptura
do casamento responde pela obrigação alimentar, caso o outro consorte dela
necessite; pode vir a perder a guarda dos filhos, embora o interesse destes seja
consultado, predominando a decisão que melhor irá beneficiar a criação dos
filhos, e ainda responde pela sucumbência da ação (BIGI, 1992, p. 46).
No entanto, para a maioria da doutrina e jurisprudência, exaure-se aí
a obrigação do consorte que deu causa à separação culposa. Contudo, adotando-se este silogismo, quando há o cometimento de ato ilícito com prejuízo ao
outro consorte, o cônjuge causador da lesão queda-se inocente, sem a obrigação de indenizar o dano causado pela prática do ato ilícito (BIGI, 1992, p. 46).
Todavia, algumas manifestações favoráveis à reparação por dano moral,
nestes casos, já se fazem sentir presentes por alguns doutrinadores e na jurisprudência, ainda que continuem omissos os textos legais (CAHALI, 2000a, p. 851).
2.1 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À REPARAÇÃO CIVIL POR DANOS
MORAIS NA SEPARAÇÃO E DIVÓRCIO COM CULPA
Listam-se aqui três argumentos contrários à tese de ressarcimento dos
danos morais decorrentes da separação e divórcio:
a) O ressarcimento, nesses casos, é contrário aos bons costumes.
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
Segundo este posicionamento, não há de se pleitear a reparação
moral, quando acontecer separação culposa porque, quando se trata de
relações familiares, a indenização seria fonte de lucro, a qual iria romper
com os bons costumes.
Decidindo-se que haveria vantagens em indenização de relação
familiar, naquele caso, indenização por dissolução de união estável, tal foi
a decisão do então desembargador Eliseu Gomes Torres do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul:
o sentimento que deve unir duas pessoas que encetam uma união
- casamento ou união estável - deve ser sempre o amor. Há, é certo, outros: interesse econômico, paixão carnal, vantagens profissionais, mas o sentimento prevalente e nobre a presidir tudo é o
amor. Cessado este, a manutenção da união é mera questão temporal. Quando o amor cessa, uma das conseqüências inevitáveis é
a separação. Da inicial, infere-se que o autor sente-se moralmente diminuído porque a mulher o traiu com um de seus amigos e
companheiro de festas. É a velha questão do macho ferido, que
confunde sua honra com a da companheira. Só que, antanho, o
macho vingava-se, matando a mulher amada ou seu parceiro. Hoje,
o traído quer reparação financeira para a honra ferida. No fundo de
tudo, mais do que a intenção do ressarcimento, o que emana destes autos é o ciúme. Não há como deixar de lembrar as palavras de
Shakespeare, Otelo, Ato III, na fala do lago: “Meu senhor, livrai-nos
do ciúme. É um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio
pasto de que se alimenta. Somente o monstro de olhos verdes poderia alimentar esta demanda” (WELTER, 2000, p. 344).
b) Não há na legislação brasileira um dispositivo para regular este tipo
de demanda
De fato, no ordenamento jurídico não há pronunciamento do legislador
favorável à tese de reparação:
ora, como é sabido, nosso legislador fez-se insensível à admissibilidade de qualquer forma de indenização por perdas e danos,
fundada na conduta faltosa de um dos cônjuges como causa da
dissolução da sociedade conjugal, exaurindo a sanção no encargo
alimentar, quando o caso (CAHALI, 1999, p. 379).
c) A prestação de alimentos pelo cônjuge apenado cumulada com a
indenização violaria o princípio do non bis in idem:
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A legislação brasileira preceitua que a prestação de alimentos é, atualmente, o único encargo imposto ao cônjuge responsável pela separação ou divórcio:
omissos os textos legais, nosso direito, discretamente, partilha do
entendimento de que bastaria a imposição do encargo alimentar
em favor do inocente, como forma bastante para ressarcir o prejuízo sofrido pela dissolução da sociedade conjugal de que foi responsável o cônjuge culpado (CAHALI, 2000a, p. 851).
Pela legislação, a dívida de alimentos é o único instituto previsto na Lei,
suficiente para indenizar o dano porventura causado pelo cônjuge responsável
pelo rompimento do matrimônio. Por isso, seria considerado bis in idem cumular
outro tipo de indenização.
d) O casamento não é um contrato de obrigações e como tal, não pode
sofrer as regras determinantes para o rompimento dos contratos.
Essa tese, cujo relator foi o Desembargador Marlan de Moraes Marinho,
em sede de apelação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, citou-se, no
corpo do acórdão, o Professor da Universidade de Direito de Lisboa, Eduardo
dos Santos, in Direito de Família, para quem o contrato de casamento, ainda que
esteja submetido à livre vontade das partes, tem regras especiais, e estas pretensões volitivas não podem “estipular condições ou termos, nem opor cláusulas ou
modos, nem disciplinar as relações conjugais de maneira contrária à lei”. Por isso,
os litígios e controversas que ocasionam sua dissolução “não podem ser solucionadas com regras próprias das obrigações” (WELTER, 2000, p.131).
Argumenta, ainda, que não há possibilidade de ressarcimento de danos não-patrimoniais em razão da dissolução do casamento pelo divórcio, não
sendo nova a discussão. Cita ainda aqueles que admitem tal possibilidade, apenas quando há disposição expressa em lei (como na França e Portugal) e aqueles que, considerando o casamento um simples contrato, à semelhança dos
contratos patrimoniais, a admitem com fundamento nas regras gerais da responsabilidade civil. De acordo com Santos (apud WELTER, 2000, p. 131-132):
não se pode, no exame da questão, por isso, deixar de considerar
a discussão interminável que se trava em torno da natureza jurídica
do casamento, especialmente as teorias institucionalistas, para as
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
quais o casamento não é um mero contrato, mas uma instituição.
Fundamentalmente, uma situação jurídica, cujas regras ou quadros
estão previamente fixados pelo legislador. O casamento seria, assim,
uma instituição. Os nubentes seriam livres de se submeter, ou não,
à instituição, mas, uma vez a ela submetidos, teriam de aceitá-la tal
qual ela é, sem possibilidade de modificar as regras que a regem.
2.1.1 Argumentos favoráveis à indenização por danos morais na separação e no divórcio.
a) Resposta à tese de que o ressarcimento é contrário aos bons costumes
Invoca-se a apologia de Wilson de Melo Silva para quem o dano moral,
seja ele dor física, sensação emocional ou dor moral, se resume em dores. A
dor moral vai além das dores físicas, estas resultam de uma lesão a bem imaterial, ofendendo a integridade física e a dor moral, uma dolorosa sensação dos
sofrimentos íntimos (SILVA, 1983, p. 332).
Dentre as objeções dos danos morais, ainda quando discutida a sua
indenizabilidade, a mais relevante era a dificuldade de se avaliar, em dinheiro,
os danos morais e a, tida por muitos, conseqüente indecorosa compensação
em pecúnia. No que concerne ao Direito de Família a mesma argüição vem à
tona: seria imoral e enriquecimento ilícito o indenizar o dano, quando se trata de
parente, ou, quando o dano foi causado pelo cônjuge?
As argumentações contrárias à indenização foram as mesmas de outrora,
quando se concebia, ironicamente, que uma pessoa não teria escrúpulos, quando,
por um cadáver, se estendia as mãos “angariativas” (SILVA, 1983, p. 359).
A suspeita era se seria possível quantificar a dor em dinheiro, valores de substâncias diferentes. Argumentando, pergunta-se se seria justo deixar
sem reparação alguma a dor de, por exemplo, um pai que viesse perder o seu
filho por um homicídio proveniente de acidente de carro (SILVA, 1983, p. 361).
Em conclusão, tem-se que o dano moral tem reparação diversa do dano
patrimonial, pois aquele não se pode mensurar economicamente. Os bens materiais são reparados levando-se em conta a lesão, expressa em moeda, dada a
natureza da coisa material. Mas, a dor moral não tem equivalente econômico, no
sentido da perfeita igualdade entre esses valores. Aliás, a reparação patrimonial
só é satisfatória, quando há trazido o bem in natura de volta ao lugar. Destarte,
isso nem sempre é possível. Aí, então, reparação, ainda que no campo patrimo14
nial, não é perfeita. Como sê-lo nos danos morais? A resposta foi dada pelos
mestres Wilson de Melo Silva e José de Aguiar Dias quando arremataram: o dinheiro vem como um sucedâneo para promover a reparação indireta das lesões.
Não substitui o dano moral pelo dinheiro, mas o objetivo é atenuar os efeitos do
dano na vítima, uma compensação. Não se ressuscita o parente morto, nem por
isso deve ficar indene a família do defunto (SILVA, 1983, p. 360).
o dinheiro obtido como indenização não faz com que a vítima obtenha o mesmo bem objeto do agravo, mas permite-lhe refazer,
na medida do possível, sua situação espiritual anterior à lesão que
a perturbou, e seria evitada, enfim, aquela impunidade quando o
agravo fosse o resultado de um ato que não se enquadre como
delito do direito penal (SANTOS, 2001, p. 60).
b) Réplica ao argumento de que não há na legislação um dispositivo
para regular esta espécie de demanda
A tese de que não há na legislação um dispositivo para regular esta
espécie de demanda é debatida pela evolução dos costumes da sociedade, que
determinará jurisprudência e dispositivos futuros. Assim, no caso do concubinato não havia lei expressa, mas os tribunais já outorgavam direitos aos concubinos, antes da legislação atual (WELTER, 2000, p. 133). Cabe à jurisprudência e
à doutrina acompanhar o desenvolver das transformações sociais, aplicando-as
no caso concreto, até que se transformem em Direito Positivo.
Destarte, há na legislação regras gerais de responsabilidade civil.
Diante de um ilícito que cause dano a outrem, comprovado o nexo causal, haverá para o lesado o direito à indenização. Assim, como não aplicar este princípio
ao Direito de Família e, em especial, aos danos que porventura gerarem a ruptura prematura do casamento?
Este argumento da falta de legislação específica foi chamado de “frio
e formal” por José de Castro Bigi.
Segundo Bigi (1992, p. 50), se não se aplicar à norma geral da responsabilidade civil preceituada no Código Civil, haverá cometimento de injustiça para
com o lesado. Deste modo, se um terceiro causa dano a outrem, há para ele o
dever de indenizar, como no caso de agressão, que deixa a vítima incapacitada
para o trabalho, porque sendo esse outrem o cônjuge dessa vítima, deixaria ele
de indenizar, pelo simples fato de ser casado com ela? Pergunta o mestre.
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
c) Pensão alimentícia versus reparação. A prestação de alimentos pelo
cônjuge apenado é único dispositivo existente na legislação brasileira.
Nos termos do art. 19 da Lei 6.515/77 e do art. 1704 do Código
Civil, a única prestação devida no direito brasileiro, em razão da separação
ou divórcio, é a pensão alimentícia. Esses alimentos constituem direito do
cônjuge que não deu causa ao rompimento do vínculo matrimonial e, se dela
houver necessidade. O parágrafo único do art. 1704 ainda permite que tal
dever também recaia sobre o cônjuge não-responsável pela separação “ se
o cônjuge culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em
condição de prestá-los, nem aptidão para o trabalho [...]”
A controvérsia se instaura ao tratar da natureza jurídica desse direito alimentar, se seria uma obrigação alimentar apenas, ou também se
possuiria caráter indenizatório.
Iniciando sua defesa em prol da tese de que os alimentos não têm
natureza indenizatória completa, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos
Santos lembra parecer de Moacir Porto, a quem chamou de “fervoroso defensor da natureza indenizatória” da pensão alimentícia. Afirma Moacir Porto
(apud SANTOS, 1999, p. 155):
a dívida de alimentos de que cuida o art. 19 da Lei de Divórcio
é, na verdade, uma indenização por ato ilícito, que se cumpre
sob a forma de pensão alimentar. Uma reparação pecuniária
pela dissolução prematura e reprovável da sociedade conjugal,
por culpa de um dos cônjuges.
Sem embargo de que a maioria dos autores declara ser a pensão alimentícia de caráter puramente alimentar, Moacir Porto, juntamente com Tito
Fulgêncio (apud SANTOS, 1999, p.156) e Orlando Gomes a consideram indenizatória. Este último considera injustificável o condicionamento legal da obrigação à necessidade do cônjuge inocente (GOMES, 2001, p. 285-289).
Yussef Said Cahali noticia que a legislação francesa acolhe o duplo
aspecto dos alimentos, embasado no art. 301 do Código de Napoleão: “uma
constituiria reparação e outra, pena privada: a pensão representaria a pena, enquanto a condenação em perdas e danos representaria a reparação” (CAHALI,
1999, p. 378). As perdas e danos, como tais, não seriam suscetíveis de revisão,
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ainda que fixadas em consideração às necessidades do cônjuge credor.
João Claudino de Oliveira e Cruz (apud SANTOS, 1999, p.157) e Yussef
Said Cahali (1999, p. 388) estão em posição conciliatória a ambas as teses, pois
concebem a pensão alimentícia com caráter indenizatório e alimentar:
reconhecido que a doutrina da natureza mista da pensão devida ao desquitado é a que melhor corresponde ao sistema do direito brasileiro, impende considerar que a pretensão alimentícia
do cônjuge não responsável pela separação somente se legitima se dela necessitar (Lei do Divórcio, art. 19), fixando então
o Juiz a pensão devida segundo os parâmetros do art. 400 do
CC (art. 1704, do NCC): na proporção das necessidades do
reclamante e dos recursos do cônjuge obrigado.
Se não houver necessidade de alimentos, o cônjuge, que seria credor, não a receberá. Mas e, se algum dano lhe adveio dessa separação,
ficará ele sem o direito subjetivo da indenização, ainda que a melhor doutrina
argumente que todo dano deve ser reparado?
Sendo insuficiente a prestação de alimentos para sanar dano moral porventura existente, mister se faça a reparação, ainda que haja pensão alimentícia:
“Afora os alimentos, que suprem a perda de assistência direta, poderá ainda ocorrer
a indenização pelo dano sofrido pelo cônjuge inocente” (PEREIRA, 2001, p. 155).
A diferença entre alimentos e a indenização em reparação aos danos
morais sofridos pelo cônjuge está em que aqueles só são exigidos ao cônjuge
que deles prove a necessidade, e a indenização por reparação pode ser exigida independentemente da situação econômica do prejudicado. “A indenização,
ademais, tem caráter definitivo: não pode ser suprimida, aumentada ou diminuída, enquanto que a pensão alimentar é essencialmente variável, precisamente
pelo fato de atender às necessidades do alimentário e às condições econômicas do alimentante” (DIAS ,1983, p. 401-402).
d) Princípio da instituição versus contrato de casamento. Contra a tese
de que o casamento não é um contrato de obrigações e, como tal, não pode
sofrer as regras das obrigações
O casamento é um contrato sui generes, de Direito de Família. A ruptura do casamento tem sanções outras, dirimidas por este instituto, portanto, os
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
danos morais vêm a ser distinta figura, não abrangida por este contrato especial. Considerando um contrato especial, ainda assim, há lugar para a reparação
dos danos morais na separação/divórcio culposos:
hoje em dia, não se pode mais dizer que “o eventual descumprimento dos deveres do casamento não se resolve em perdas e danos, como nas obrigações, porque dá ensejo à separação judicial
e posterior divórcio, figuras do Direito de Família, que já trazem
em si sanções outras, específicas, em detrimento do cônjuge culpado”, isso porque, segundo tranqüila doutrina e jurisprudência,
não vigoram, desde a Constituição Federal de 1988 e das Leis nºs
7.841/89 e 8.408/92, as disposições da Lei do Divórcio quanto à
aplicação de sanções patrimoniais, ao invés de indenização por
dano moral, pelo seguinte: 2-a) a obrigação de prestar alimentos
é controvertida no direito brasileiro, na medida em que respeitável corrente doutrinário-jurisprudencial alberga a teoria objetiva
da obrigação alimentar, isto é, não mais se inquire da culpa, e sim
apenas da necessidade da pensão alimentícia; 2-b) a partilha do
patrimônio é efetivada de acordo com o regime de bens, escolhido
antes do casamento, sendo de todo impertinente o exame da culpa
pela separação, pois a partilha é “realizada com a adoção de critérios objetivos definidos por lei”; 02-c) a culpa não mais interfere na
guarda dos filhos, de vez que, há muito tempo, vige o princípio da
prevalência dos interesses dos menores, pelo que, em tese, o cônjuge culpado pela separação pode permanecer com a guarda dos
filhos; 02-d) a culpa também não tem nenhuma ingerência no nome
dos cônjuges, a contar da Lei nº 8.408/92, que alterou o parágrafo
único do artigo 25 da Lei do Divórcio, ou, segundo tese que edificamos, os separandos ou divorciandos, em qualquer caso, deverão
adotar o nome de solteiro (WELTER, 2000, p. 133).
Conforme Azevedo (apud SANTOS, 1999, p. 166), o casamento é
um contrato, embora sui generes, especial e de Direito de Família, portanto, a reparação dos danos é do tipo contratual: “Os princípios gerais, que
regem a extinção dos contratos, se aplicam, em regra, à dissolução e à
terminação da sociedade conjugal”.
Há outra corrente para a qual a indenização por dano moral por lesões
oriundas da separação ou divórcio tem origem na responsabilidade extracontratual, vez que o contrato de casamento é sui generis, ou mesmo, uma instituição
do Direito de Família. A culpa, neste caso, decorre de um ato antijurídico ou de
um dano civil de necessária reparação (BIGI, 1992, p. 51).
Deste modo, partindo-se do pressuposto de que o casamento é uma instituição e como tal não cabível a regra dos contratos, tem-se que é possível a repa18
ração, pelo princípio geral da reparabilidade. No Direito Brasileiro, a regra máxima
da reparabilidade civil está contida nos artigos 186 e 927, do Código Civil.
Transcreve-se posição do Juiz de Direito, prolator da sentença, objeto de exame pelo acórdão do Tribunal do Rio Grande do Sul, na qual também
se pleiteava, cumulativamente, a indenização por danos morais oriundos da
separação com culpa:
abstraída da discussão a natureza jurídica do casamento - se contrato, se instituição – importa ele um relacionamento complexo, gerando direitos e obrigações para os cônjuges, cujo inadimplemento
culposo acarreta o dever de indenizar, em tese. O ilícito o é dentro
ou fora do contrato e o dano dele decorrente é componível através
de perdas e danos. Atente-se para o exemplo do marido que, por
sevícias praticadas na pessoa da mulher, causa a ela incapacidade, parcial ou total, temporária ou permanente. Parecem inexistir
dúvidas de que a sevícia poderá dar causa não só à dissolução
da sociedade conjugal como, também, à composição dos prejuízos
sofridos pela vítima (REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1982, p. 180).
2.1.2 A consagração constitucional do dano à personalidade como argumento favorável à reparação civil dos danos conseqüentes da separação ou divórcio
Preceitua o inciso X, do art. 5o, da Carta Magna: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito
à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Vê-se que a finalidade essencial de considerar os direitos da pessoa
humana é resguardar sua dignidade.
Embora não suscetíveis de avaliação pecuniária, quando violados, tais
ofensas são pressupostos de obrigação de indenização por danos morais.
Embora a matéria pertença ao Direito Civil, o constituinte brasileiro,
já antes da aprovação do Novo Código Civil, também dedicara um inciso à indenização por danos causados à personalidade, dada a moderna doutrina que
sustenta que os danos morais devam ser ressarcidos (BIGI, 1992, p. 49).
Cita-se aqui José de Castro Bigi, para quem a indenização do dano moral é passível de indenização resultante da exegese do texto constitucional, em
que o constituinte deixa claro que o direito brasileiro segue a orientação moderna
em seu inciso X, do art. 5o, onde eventuais prejuízos à vida privada, à intimidade,
à honra e a imagem das pessoas são indenizáveis (BIGI, 1992, p. 49).
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
E, finalmente, tem-se que o Código Civil de 2002 dedicou um Capítulo
aos Direitos da Personalidade, com reparabilidade dos danos a estes direitos,
do qual vale destacar, para a matéria em estudo, o artigo 12, que literalmente
permite reclamar perdas e danos aos prejuízos à personalidade: “Art. 12. Podese exigir que cesse a ameaça ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar
perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”
O Direito moderno, portanto, tende a tutelar todos os elementos,
potencialidades e expressões da personalidade humana, inclusive a vida
sentimental e a determinação sobre os sentimentos próprios, “que exclui às
outras pessoas de ilicitamente lesarem os seus sentimentos existentes ou
de instilarem sentimentos juridicamente censurados ou ainda de atentarem
contra a sua estrutura afetiva” (SANTOS, 1999, p. 150). E esse é o campo
onde mais se têm manifestado violações por parte dos danos que originam
a separação e o divórcio.
2.1.3 Jurisprudência e doutrina
A maioria da doutrina e jurisprudência não admite a indenização por
danos morais oriundos de danos ao cônjuge “inocente” quando da separação
e divórcio. Isso se deve porque não há manifestação legal no direito brasileiro,
mas já se fazem surgir pareceres favoráveis na jurisprudência e doutrina.
a) Na doutrina
A Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) não estabelece qualquer sanção ao
cônjuge que deu causa à separação. Dessa forma, desprezou fortes argumentos doutrinários a favor da tese.
Por outro lado, José de Aguiar em argumento em prol do dano moral,
também o defendia quando da violação dos deveres conjugais:
a violação das obrigações derivadas do casamento é, indubitavelmente, falta contra a honestidade. O que se verifica por parte de quem dá,
por seu procedimento, causa à separação de corpos, desquite ou divórcio, acarretando prejuízo moral ou material ao outro cônjuge, como
o marido que, negligente ao estado de saúde da mulher, permite que
se desenvolva moléstia que a acomete (DIAS, 1983, p. 401).
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Yussef Said Cahali para fortalecer a idéia de que nas relações familiares podem ocorrer danos que ensejam ação de indenização, cita Felipe Haddad
(apud, CAHALI, 2000a, p. 665).
para Luiz Felipe Haddad, “na esfera jurídico-familiar podem, às vezes, aparecer hipóteses de reparação de dano moral em determinados atos ilícitos e crimes praticados por um cônjuge contra outro, que
sejam alheios ao problema da ruptura do compromisso diretamente,
e se equivalham a qualquer ato danoso praticado por qualquer indivíduo contra outro indivíduo. O marido que, covardemente, espanca
a mulher a ponto de aleijá-la ou lhe acarretar minusvalia neuropsíquica, causa, é certo, dano moral a ela (podendo causar dano estético se lesar sua beleza física). A mulher que espalha perante a
sociedade que o marido é impotente ou que não é o verdadeiro pai
de seus filhos estará certamente inflingindo-lhe dano moral. Nesses
casos, o fato extrapola o problema da quebra de compromisso, para
se enquadrar em pura agressão à dignidade da pessoa.
Assim, o dever geral de respeito à pessoa persiste ainda que dissolvido o vínculo conjugal e em razão dessa dissolução, quando a mesma se verificar por motivo de infração grave dos deveres conjugais imputada ao cônjuge
culpado, haverá direito à reparação.
Para o autor, o ato ilícito pode ser projetado duplamente em seus efeitos
“como representativo de infração dos deveres conjugais, posto como causa da dissolução do casamento e como causa de responsabilidade civil da regra geral do art.
159 do C. Civil (art. 186 do atual C. Civil de 2002) ( CAHALI, 2000a, p. 669).
a.1) O Parecer do Promotor Belmiro Pedro Welter
O promotor Belmiro Pedro Welter defende a tese da admissibilidade
da indenização do dano moral na ação de separação judicial, especificando as
premissas para sua aplicação.
Concordando com a corrente minoritária, admite a indenização por dano
moral tanto na união estável quanto na separação judicial litigiosas e, ainda frisa,
com culpa, por grave infração dos deveres do casamento ou conduta desonrosa,
podendo o pedido ser cumulado, ou não, desde que observado o seguinte:
a) tanto o pedido de indenização quanto o de separação judicial por
dano moral devem ser ajuizados logo após a ocorrência da conduta culposa,
para que não haja presunção de perdão do cônjuge ofendido, que impede o
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
exercício do direito indenizatório, pois o transcurso do tempo conspira contra o
pedido de tutela jurisdicional embasado na causa da separação;
b) é exclusiva do cônjuge ou convivente inocente a demanda indenizatória de dano moral. Se recíproca a culpa, inviável o pedido, já que ambos são
responsáveis;
c) o pedido de indenização, nestes casos, só é discutível havendo
litígio e culpa em que se discute a grave infração aos deveres do casamento ou
conduta desonrosa; e
d) “a conduta do cônjuge culpado deve ser tipificada como crime,
ofensiva à integridade moral do cônjuge ofendido, produzindo dor martirizante
e profundo mal-estar e angústia, na medida em que somente uma grave ofensa a bem jurídico, que o legislador elevou à categoria criminosa, é que poderá
resultar em indenização de dano moral, devendo-se formatar corte vertical nas
demais condutas - não criminosas - as quais apenas são causas à dissolução
da separação judicial, divórcio e união estável” (WELTER, 2000, p. 134).
b) Na jurisprudência
A jurisprudência já o admite, dizia Cahali (2000a, p. 851): “já se pronunciam, porém, em nossa jurisprudência, algumas manifestações favoráveis à
indenização dos danos sofridos pelo cônjuge inocente, em razão da causa que
provocou a dissolução da sociedade conjugal”.
Um dos primeiros pronunciamentos a respeito do assunto foi obtido
em acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, através
da apelação cível 36.016, publicada na Revista dos Tribunais - de junho de
1982, p.179-186.
Neste caso, tratava-se de um casal, cujo motivo de separação foram
as sevícias cometidas pelo marido e injúria grave.
O Desembargador Athos Gusmão Carneiro, embora tendo o voto vencido, pronunciou: “Tenho em que a agressão física acarreta ao injustamente
agredido um dano moral, aliás, muito mais relevante, em se tratando de agressão de um cônjuge contra o outro. E esse dano moral, creio, impende seja ressarcido” (REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1982, p. 185).
Naquela ocasião, os desembargadores, em entendimento contrário ao
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desembargador Athos Gusmão Carneiro, decidiram não dar provimento à apelação porque não houve comprovação de reflexos no patrimônio da esposa, argumentando que o dano moral indenizável, conforme parecer já superado hoje,
deveria ter esse reflexo econômico. O autor do voto vencido declarou: “ Tenho
reiteradas vezes me manifestado favoravelmente à indenização do dano moral,
do dano moral puro, eis que não há discrepância maior a respeito da indenizabilidade do dano moral com reflexos patrimoniais” (op. cit., p. 182).
Em 1995, pela Apelação Cível 220.9433-1/1, da 4a. Câmara Cível
do TJSP foi o marido condenado a pagar indenização à mulher, por tê-la acusado injuriosamente de prática de adultério, que não restou provada. Agindo
de má-fé, imputou à esposa adultério com um vizinho que estava na casa
por ocasião em que o marido mesmo ali se encontrava presente. O recurso
foi provido em razão da “dor moral” sofrida pela consorte em conseqüência
da ofensa à honra (SANTOS, 1999, p. 164).
Em acórdão de outubro de 1996, houve outra decisão favorável à indenização por danos morais ao marido, por constituir ofensa à dignidade pessoal, uma
vez que sua esposa simulou gravidez e a difundiu na sociedade, quando começaram suas desavenças conjugais (Julgado pela 6a. Câmara Cível de Direito Privado
do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Cível nr. 272.2221.1/2).
Em 25.06.2001 o Superior Tribunal de Justiça se manifestou a favor
da tese de reparação dos danos morais advindos dos motivos ensejadores de
separação. Tratava de apelação de separação judicial litigiosa ajuizada pela
ex-consorte. A autora casou-se com o demandante no Líbano e, vindo para o
Brasil, o réu a tratava com violências físicas e vexames inclusive em público,
razão que a levou ao pedido de separação. Em primeira instância, foi reconhecida a procedência da ação, reconhecida a guarda dos filhos e fixada a pensão.
Em segunda instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou à esposa o
direito por danos morais, entendendo tratar-se de caso de desamor, em que
não justificaria a indenização. A autora recorreu ao Superior Tribunal de Justiça,
embasada na tese de descumprimento da lei civil (BRASIL, 2003).
Seja lá como for, acho eu que, à vista do sistema brasileiro, o pedido aqui é juridicamente possível. Compartilho o modo de compreensão exposto pelo então Desembargador Athos Carneiro. À semelhança da lei francesa, se a separação é pronunciada por culpa
exclusiva de um dos esposos, o culpado responderá pela obrigação
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INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NA DISSOLUÇÃO CULPOSA DA SOCIEDADE CONJUGAL
de ressarcir danos morais, desde, obviamente, que satisfeitos os
pressupostos da reparação. Parece-me que tal não desavém da
orientação do Superior Tribunal, daqueles pronunciamentos que
deram origem à Súmula 37, ao ver dos acórdãos que lhe servem de
referência. Ministro Nilson Naves.
No mesmo acórdão, o Ministro Carlos Alberto Menezes:
a relação matrimonial não desautoriza o deferimento da indenização por dano moral, desde que presentes os seus pressupostos. Se existe um comportamento injurioso diante da lei brasileira, causando a ruptura do casamento, diante das atitudes
dominadoras do marido que provocaram a instabilidade psíquica
da mulher, a indenização é cabível. O comportamento dito injuriosos é, a meu sentir, no cenário dos autos, suficiente para
lastrear a condenação por dano moral (BRASIL, 2003, p. 8).
2.1.4 O direito francês
O Direito Francês exerceu forte influência no Direito de Família
Brasileiro, destacando-se a Lei do Divórcio de 1977, que teve como base a Lei
75-617, de 11.07.1975 (CAHALI, 2000a, p. 854), embora dali não se extraia a
doutrina da indenização por perdas e danos, conforme abaixo se verá, motivada
pelos danos advindos da separação e o divórcio.
A jurisprudência francesa, a partir da II Guerra Mundial, foi gradativamente criando o entendimento de que danos sofridos pelo cônjuge que resultaram em separação ou divórcio são indenizáveis. Primeiramente, podiam
pleitear perdas e danos, desde que não decorridos do divórcio. Após, admitiram
a indenização do dano decorrente do descumprimento dos deveres conjugais
(REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1982, p. 181).
O artigo 301, da Lei de 11.06.1975 preceitua não só sobre a pensão alimentar como sobre perdas e danos pelas lesões advindas das causas que levam à separação ou divórcio (CAHALI, 1999, p. 378). Traz-se a
tradução de Cahali:
art. 301. Independentemente de todas as outras reparações devidas pelo esposo contra o qual o divórcio foi pronunciado, os
juízes poderão conceder ao cônjuge que obteve o divórcio as
perdas e danos pelo prejuízo material ou moral a ele causado
pela dissolução do casamento.
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Cahali acrescenta que a nova instituição tomou o nome de prestation compensatoire, embora ainda permaneça a pensão alimentar em certas
hipóteses, coexistindo com a compensação compensatória (CAHALI, 1999,
p. 179). Essa prestacion compensatoire objetivava ressarcir as disparidades
trazidas pela ruptura do casamento na vida dos cônjuges (SANTOS, 1999,
p. 21). Essa prestation compensatoire, porém, não pode ser revista, salvo
casos especialmente graves.
O art. 301 separava a indenização alimentar, decorrente do desaparecimento do dever de auxílio, pela dissolução do matrimônio, da indenização
por danos morais e materiais decorrentes do ato injurídico que deu causa à
separação (BIGI, 1992, p.47).
O Desembargador Túlio Medina Martins informa, no já citado acórdão
do TJRS, que a lei francesa, que estabeleceu a reparação dos prejuízos oriundos da ruptura do matrimônio, dispõe que:
independente de todas as demais reparações devidas pelo esposo
contra o qual foi pronunciado o divórcio, o juiz pode conceder ao
cônjuge inocente as perdas e danos pelo prejuízo material e moral a ele causado pela dissolução do matrimônio (REVISTA DOS
TRIBUNAIS, 1982, p. 181).
Poder-se-ia questionar se a prestacion compensatoire, do Direito
Francês, seria de possível aplicação no Brasil. A prestação compensatória objetiva manter o equilíbrio anterior, a condição de vida antes da ruptura prematura
do matrimônio em razão de culpa de um dos consortes, como pena privada,
ao mesmo tempo em que constitui a reparação por perdas e danos, quando
configura a reparação dos prejuízos (CAHALI, 2000a, p. 861). Essa reparação,
diferentemente da pensão, não é suscetível de revisão.
A prestacion compensatoire não pode ser aplicada diretamente no
Brasil, pois a prestação alimentar, conforme legislação brasileira, não tem caráter indenizatório, mas apenas de subsistência alimentar ao cônjuge que dela
necessite. Vigora-se, também como regra geral, que somente violação a direitos pode possibilitar a indenização, quando causador de danos.
A prestacion compensatoire só pode ser analisada em comparação ao Direito Nacional para análise da reparação nos ilícitos provindos da
ruptura matrimonial.
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A doutrina francesa, atualmente, fundamenta-se em dois artigos
que permitem indenização por danos morais na separação e no divórcio: o
art. 266 e o art. 1382.
O art. 266 do Código Civil Francês, modificado pela Lei 75-617 de
11.07.1975 está assim redigido (apud SANTOS, 1999, p. 23).
Art. 266. Quand lê divorce est prononcé aux torts exclusives de l´un
des époux, celui-ce peut étre condamné à des dommages-intérêts
en réparation du prejudice matériel ou moral que la dissolution du
mariage fait subir à son conjoint.
Ce dernier ne peut demander dês dommages-intérêts qu´a
l´occasion de l´action em divorce.1
O art. 266 contém regra para os prejuízos causados diretamente da
ruptura do casamento, e o art. 1382 trata dos danos ocasionados pela violação
grave dos deveres conjugais.
Assim, o citado art. 266 traz como pressuposição que o divórcio tenha
sido pronunciado pela culpa exclusiva do cônjuge infrator. É necessário comprovar dano advindo da própria ruptura do vínculo matrimonial, por culpa de um
consorte. Requer, mais, que essa reparação seja pleiteada na própria ação de
divórcio. Esses danos morais podem ser o “sofrimento ocasionado pela ruptura
do casamento” e a “solidão em que se encontra o consorte divorciado para educar os filhos”. Esses danos serão ressarcidos pela própria prestação compensatória do art. 270 do Código Civil Francês (SANTOS, 1999, p. 24).
Por outro lado, o art. 1382 se baseia na indenização seja fundamentada em lesões oriundas da própria causa do divórcio, ou seja, do descumprimento de dever conjugal, como por “violência física”, “atentado à dignidade”, recusa
à coabitação” e “adultério”. Portanto, a reparação tem cabimento no divórcio
decretado e na sua causa culposa (SANTOS ,1999, p. 24-25).
Essa fixação de perdas e danos, segundo a autora, também pode ser
cumulada com a prestação compensatória (art. 301), mas dela difere, ainda, pois
não é feita sob o binômio, possibilidade/necessidade, mas visa reparar danos
acarretados ao cônjuge e, com caráter definitivo, não pode sofrer revisão, bem
como, não é um prolongamento do dever de assistência material do casamento.
1 Quando o divórcio é pronunciado por culpa exclusiva de um dos esposos, este pode ser condenado à indenização em reparação do
prejuízo material e/ou moral que a dissolução do casamento causou ao seu cônjuge. Este último só pode pedir essa indenização na
ocasião da ação de divórcio.
26
2.1.5 O projeto de Lei 4245/2001 que tramita na Câmara dos Deputados
A tradição legalista brasileira faz com que a omissão do texto dê margens a interpretações divergentes, havendo jurisprudência e doutrina discordantes. Porém, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei de autoria
do Deputado Bispo Rodrigues visando inserir no artigo 5o da Lei 6.515/77 um
parágrafo que dispõe:
Art. 5o...............................
§ 4o Nos casos mencionados no caput, a indenização por danos morais poderá ser requerida nos autos da separação judicial
(BRASIL, Câmara dos Deputados, 2003).
A proposta é trazer a possibilidade legal de cumular pedido de indenização em uma ação de separação litigiosa. O projeto obteve parecer da
Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, em 01.09.2003.
Assim, vislumbra-se a preocupação do legislador em atender os reclames de boa parte da doutrina.
3 CONCLUSÃO
O casamento é o vínculo jurídico pelo qual se dá a constituição de uma
família. Geralmente era identificado como instituição, porém, com a lei do divórcio, pôde ser lhe dada a natureza contratual, com características e modalidades
especiais, com base na admissibilidade de sua dissolução.
A união do homem com a mulher sob a égide da lei faz com que ambos
tenham deveres e obrigações recíprocos, que já elencados no repertório Civil
de 1916, permanece no Código Civil/2002.
Descumpridos esses deveres ou causando danos, têm surgido decisões que acolhem o pedido de indenização pela parte prejudicada, embora este
posicionamento continue sendo adotado por uma minoria.
A indenização por danos morais não obteve imediata acolhida no mundo do Direito. Isso se depreende do estudo da monografia do mestre Wilson de
Melo Silva que cotejou ensinamentos e pensamentos das diversas posições,
contra e a favor, do ressarcimento do dano moral.
Hoje, esta discussão já se encontra superada, sobretudo após a
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Constituição de 1988 que, em seu artigo 5 o, inciso X, inseriu o dano moral
como fator desencadeante da reparação. Seguiu-se a posição moderna dos
demais países, segundo a qual o dano moral deve ser indenizado com pecúnia, admitindo a indenização do dano moral puro, não havendo necessidade
de uma lesão também patrimonial.
A questão da indenização do dano moral na legislação brasileira também passa por esta fase de discussão, no que tange à indenização dos danos
advindos da relação familiar, especialmente, quando o vínculo matrimonial se
rompe, gerando a separação e o divórcio.
É certo que a ruptura do casamento quase sempre é dolorosa, se não
para ambos, pelo menos para um cônjuge. A dor, física ou moral, deve ser compensada ainda que com indenização pecuniária. Veja-se que o argumento da
imoralidade de tal afirmação não procede, pois o dinheiro passa a ser um sucedâneo para sanar a dor, para proporcionar cicatrização, bem-estar às lesões,
quando permite ter acesso a instrumentos capazes de propiciar abrandamento
dos sofrimentos causados pela angústia.
Por outro lado, seria escandaloso que alguém causasse dano a outrem, ainda que moral, e não sofresse nenhum tipo de sanção.
Argumenta-se que o cônjuge culpado já é apenado com os alimentos
e que tal dever já tem aspecto de punição e reparabilidade. Mas isto não se dá
porque no Direito Brasileiro, apesar de autores como Mário Moacir Porto, Orlando
Gomes e Tito Fulgêncio conceberem a pensão alimentícia com caráter indenizatório, esta não tem este aspecto, vez que respeitável corrente doutrinário-jurisprudencial acolhe a teoria objetiva da obrigação alimentar, isto é, não mais se inquire
da culpa, e sim apenas da necessidade da pensão alimentícia, já preconizada na
Lei do Divórcio, art. 19: O cônjuge responsável pela separação judicial prestará
ao outro, se dela necessitar, a pensão que o juiz fixar“ (grifo nosso).
Desta forma, o cônjuge responsável só é devedor em caso de necessidade do outro consorte, quando não pode promover a subsistência, por si
mesmo, em razão de motivo físico, mental ou de qualquer outra inaptidão para
o trabalho. Os alimentos não devem ser havidos por pena. Se o credor deles
não necessita, não há aplicação da penalidade ao cônjuge responsável pela
separação, porque a pensão alimentícia responde ao binômio, necessidade/
possibilidade. A necessidade é fator preponderante para a concessão. Além do
28
mais, os alimentos podem ser modificados, embasados no mesmo binômio. A
indenização por perdas e danos ou por dano moral não tem essa possibilidade
modificativa, pois que o “quantum” é preestabelecido, geralmente por arbitramento, podendo ser devido em parcelas.
Ainda sobre as sanções civis ao cônjuge responsável pela separação, há a partilha, resolvível por lei, em que pertine regime de bens adotado
no casamento, a questão extrapatrimonial da perda da guarda dos filhos, em
que se importa acima do questionamento da culpa, o interesse dos filhos e
o problema do nome, que, em qualquer caso, com as exceções do parágrafo
único do art. 25 da Lei do Divórcio, os separados adotam o nome do solteiro.
Afora essas medidas repressivas não há outra na legislação brasileira, mormente quando diz respeito a perdas e danos ao cônjuge lesado. Tais sanções são inadequadas ou até inócuas. Quando a ruptura da vida conjugal se
deu por fato antijurídico causador de lesão, não são essas penas suficientes
para reparar todo e qualquer dano. Analisado o fato concreto e comparado
à luz da teoria geral da responsabilidade civil, ressalvadas as comprovações
causais, todo dano deve ser indenizado. Sente-se que há carência legislativa
por faltar um dispositivo que também permita a reparação dos danos oriundos da dissolução do casamento.
Por isso, na falta desse dispositivo legal, posiciona-se aqui a favor da
aplicação das regras do instituto da responsabilidade civil à citada dissolução,
porém, já visualizando a hipótese de surgir um dispositivo pelo já citado projeto
de Lei 4245/2001 de autoria do Deputado Bispo Rodrigues, bem como de alguns posicionamentos doutrinários.
Ademais, pode-se conceber o casamento como um contrato, ainda que
especial e de Direito de Família. Se se tem como premissa que o casamento é
um contrato, faz-se possível afirmar que o descumprimento dos deveres conjugais, ensejando a dissolução culposa da sociedade, impõe a indenização, pois
todo contrato descumprido deve suportar perdas e danos do inadimplemento.
Por outro lado, não considerado contrato, o matrimônio rompido por
culpa de um dos cônjuges, que tornou a vida insuportável por causar lesões ao
outro, deve ser passível de reparação conforme os princípios gerais da responsabilidade extracontratual.
Ressalva-se que, em princípio de discussão da indenização do dano
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moral, chegou-se a propagar que esse dano só seria reparável se, por via reflexa, também atingisse os bens materiais. Tal foi o posicionamento dos desembargadores, cujos votos foram definitivos no acórdão já citado do TJRS.
Divergente foi o então Desembargador, em voto vencido, Athos
Gusmão Carneiro, que se manifestou favorável à indenização do dano moral
puro, dizendo ser discrepante indenizar o dano moral somente quando presentes os reflexos patrimoniais.
O dano moral puro, conforme atual e aceitável hermenêutica, deve ser indenizado ainda que não haja esse reflexo patrimonial, exigido pela outra corrente.
É importante não se olvidar que os elementos da responsabilidade
civil como a existência do fato ilícito e o nexo causal devem ser provados.
A conseqüência que a lesão causou à subjetividade, se apenas moral, é
evidente pelo próprio fato que deu origem ao dano. Tal não há de se falar
se ocorreu perda do apetite sexual, conseqüências físicas ou até problemas
psicológicos, como a síndrome do pânico, que são passíveis de perícia técnica. Mas, quando o dano moral é puro, as conseqüências são aferidas do
fato que é a base do pedido de indenização.
Assim, sendo morais os danos, as lesões surgem da própria ofensa,
desde que grave e apta a produzi-los. Por isso, deve-se pleitear a indenização em pequeno lapso temporal, analisada a situação concreta, para afastar
a possibilidade de perdão tácito. De qualquer forma, o dano causado por
qualquer pessoa, também pelo cônjuge, é indenizável a teor do que dispõe
o artigo 186 do Código Civil Brasileiro. Há de se lembrar também posicionamento contrário em que não há necessidade da culpa exclusiva como único
objeto a ser analisado pelo juiz.
O Brasil é um dos poucos países do mundo em que o responsável pela
dissolução culposa do matrimônio “não sofre penalidade de espécie alguma”, exceto a pensão alimentícia, partilha de bens e a guarda dos filhos, que, embora alguns a vejam como penalidades, não o são, pelos motivos já expostos. E, embora
não tenha dispositivo expresso no Brasil, deve-se começar a exigir do culpado a
reparação do dano moral, possível, mormente após a Constituição de 1988, que
engloba qualquer lesão à intimidade ou à personalidade. Ademais, a reparabilidade exigida pela exegese dos artigos do Código Civil já traz o entendimento e
quem (qualquer pessoa) causar o dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
30
REFERÊNCIAS
Ata da 17ª Reunião do Fórum Permanente sobre o Direito de Família Realizada
no IX Núcleo Da Emerj, em São João De Meriti, no dia 18 de junho de 1999, às
13 Horas. Disponível em: <http://www.emerj.rj.gov.br/forum/forum_dire_fam/
ata_17.htm>. Acesso em: 22 de set. 2003.
BIGI, José de Castro. Dano moral em separação e divórcio, Revista dos Tribunais,
São Paulo, maio de 1992, 479p, v.679. BRASIL, Câmara dos Deputados, <http://
www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=27339>. Acesso em: 20
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33
2
Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
A NOVAÇÃO NO
DIREITO DO TRABALHO
Carmen Alcântara Silva*
Ronaldo Marinho**
Resumo
Abstract
O Código Civil, no seu artigo 360, trata da figura
da Novação, traduzindo esta na extinção de uma
obrigação pela formação de outra, destinada a substituí-la. Trata-se de modo extintivo não satisfatório,
operando-se como conseqüência de ato de vontade
das partes. O contrato de trabalho, com origem no
Direito Civil, busca deste utilizar-se, subsidiariamente, consoante preleciona o artigo 8º da Consolidação
das Leis do Trabalho, nos casos de omissão desta.
Questiona-se, portanto, se há a possibilidade de acontecer o instituto da Novação, de figura eminentemente
civilista no transcorrer de um pacto laboral, ou seja,
se existe a extinção de uma obrigação preexistente
através da conversão de uma dívida por outra para
extinguir a primeira, no Direito do Trabalho.
The Civil Code, in its article 360, care for Illustration of innovation, translating this in the extinction
of an obligation by the formation of another, destined
to replaced it. It is an extinct manner not satisfactory, operating itself as a consequence of wish act
of the parts. The working contract, with origin in
the Civil law, search of this use, subsidiary, consonant predict the article 8th of the Consolidation of
the Laws of Work, in the omission cases of this. It
questions, therefore, if there is the possibility to happen Innovation`s Institute, of illustration eminently
civilian in the elapse of a pact laboral, in other words,
there is the extinction of preexist obligation through
the conversion of a debt for other to extinguish the
first, in the Right of Work.
Palavras-chave
novação; alteração; contrato de trabalho;
obrigação; nova.
Keywords
innovation; alteration; working contract;
obligation; new.
1 INTRODUÇÃO. 2 DESENVOLVIMENTO. 3 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Sumário
* Aluna participante em 2003 do III Concurso de Monografia Jurídica da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE).
** Orientador. Professor da FADIVALE. Especialista em Direito Público. Mestre em Direito Público pela Universidad
Autônoma do Paraguay. Advogado.
34
1 INTRODUÇÃO
A obrigação, tomada num sentido amplo, é uma extensão tamanha
que impossível será dissociá-la da vida. Qualquer que seja a esfera ou campo
da vivência do homem, aí estará sempre presente o dever, razão pela qual
pode-se afirmar que a obrigação é substrato não apenas do Direito, mas de
todas as ciências sociais.
O contrato de emprego, como qualquer outra pactuação contratual,
pode também ser alterado, embora a lei vede a modificação prejudicial, que pode
ocorrer diretamente ou indiretamente, mesmo com o assentimento do empregado,
consoante apregoa o artigo 468, da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho,
que comina a nulidade do ato infringente.
De outro lado, o artigo 2o, da CLT mostra o poder diretivo do empregador
que permite mudar as condições contratuais.
O contrato de trabalho segue o princípio da autonomia da vontade das
partes, do respeito às condições ajustadas (pacta sunt servanda). Assim, os
pactos devem ser mantidos e têm que possuir a prevalência da norma de ordem
pública ou cogente, imperativa.
O presente estudo tem por escopo fazer uma verificação se no transcorrer das alterações contratuais, subjetivas ou objetivas, ocorridas no Direito do
Trabalho, sucede o efeito da novação, dentro de um contrato de trabalho.
2 DESENVOLVIMENTO
Interessante pergunta é se o Direito do Trabalho comporta a Novação.
Primeiramente, cumpre definir o que seja novação, suas espécies e
seus efeitos:
De Plácido e Silva (1990, p. 254-255) define o termo como “derivado do
latim novatio, de novare (fazer novo, inovar), literalmente, quer significar o que é
feito, novo ou feito outra vez, em substituição ao que existia antes”.
Nos primórdios, o direito romano era essencialmente formalista; a obrigação, uma vez contraída, devia ser executada tal qual havia sido avençada,
sem qualquer alteração até o seu cumprimento final.
Dada a natureza pessoal e solene do contrato, não havia possibilidade
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Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
de alterá-lo, tanto no que diz respeito ao seu objeto quanto às pessoas que dele
participavam, impedindo assim, a transmissão da obrigação.
Com o progresso, inúmeras foram as dificuldades oriundas desse
modo de conceber o vínculo obrigacional, porque a transmissão de créditos
e débitos se tornou imprescindível. E, como o único meio de se conseguir
tal transmissão era extinguindo-se a obrigação anterior pela criação de uma
nova relação negocial que a substituísse, surgiu, então, o instituto da novação
que, devido ao seu caráter liberatório, foi considerado pelos romanos como
um modo de transferir a obrigação.
Atualmente, o instituto da novação é regulada pelos critérios do Código
Civil pátrio, nos artigos 360 a 367, Lei 10.406 de 10/01/2002.
É o artigo 360, do Código Civil, quem preconiza suas possibilidades de
surgimento, verbis:
Dá-se a novação :
I – quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir
e substituir a anterior;
II – quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com
o credor;
III – quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído
ao antigo, ficando o devedor quite com este.
Pode-se conceituar, assim, sinteticamente a novação, como a conversão de uma obrigação em outra.
Portanto, novação nada mais é que um ato que, substituindo uma obrigação existente por uma nova, opera, ao mesmo tempo, a criação de um vínculo
obrigatório e a extinção de um outro.
A sua eficácia repousa sobre uma vontade de extinguir um crédito pela
criação de um novo, sendo, por isso, decisiva a vontade do credor da obrigação
primitiva. A segunda obrigação é como que o cumprimento da primeira, sendo
um meio liberatório, uma forma de extinção do direito de crédito.
Para que haja novação é necessária uma modificação substancial
na obrigação antiga, tão substancial que a faça extinguir, substituindo-a por
uma obrigação nova.
Não é, assim, uma transformação da obrigação anterior, como pensam muitos, pois, com isso, excluiria o caráter extintivo da novação.Tampouco,
pode-se afirmar ser a novação a extinção da obrigação anterior para dar lugar
36
à segunda, como querem outros; a obrigação é diferente da primeira quanto ao
fundo e quanto à forma. Ela se distingue ou pelo conteúdo da obrigação, ou pela
diversidade de um de seus sujeitos, ou pelas garantias acessórias.
Surge, assim, uma obrigação, não para transformar a outra e sim, para
extinguí-la.
A nova obrigação é que extingue a precedente, não como equivalente
a pagamento, mas por substituição. Não é pagamento, pois, se assim fosse,
implicaria inteira extinção do vínculo jurídico, enquanto que na novação perdura, embora sob forma diferente; é uma extinção relativa, porque a essência da
novação é ser liberatória e obrigatória.
O professor Limongi (1997, p. 68) ensina que :
a força extintiva da novação tem seu quê de análogo com a que
decorre da dação em pagamento. Ambos são meios liberatórios que
emanam da vontade do credor em consentir na mudança da prestação. Na novação, porém, pouco importa que a nova dívida seja paga
ou não. O essencial é que o ato mesmo da novação tenha validade
jurídica. A nova dívida é obrigação nova para todos os efeitos do
vínculo jurídico. Da antiga dívida só fica o traço apagado, uma
ligação ambígua do efeito com a causa, pois que seu objeto
pode ser diverso; a proteção das cláusulas e garantias pode ser
mais ou menos eficaz. Diversas obrigações reunidas podem fundir-se
para formarem o objeto ou causa única da novação.(grifo nosso).
Não se exige, portanto, a identidade de ambas as prestações das relações obrigacionais; a nova deverá trazer um elemento novo, que justifique a
novação. E o elemento novo pode dizer respeito à prestação, às partes (a substituição do credor ou do devedor) ou ainda à causa da obrigação.
Na visão moderna sobre novação, não é obedecida mais nenhuma
forma especial.
Opera-se, portanto, pelo desaparecimento de uma obrigação existente, mediante a constituição de uma nova, que a substitui, havendo assim, uma
substituição e não uma transferência do conteúdo material de uma para outra,
pressupondo a diversidade substancial das obrigações.
Infere-se daí que a novação não extingue uma obrigação preexistente
para criar outra nova, mas cria apenas uma nova relação obrigacional, para extinguir a anterior. A sua intenção é criar para extinguir. Constitui, assim, um novo
vínculo obrigacional para cessar o precedente; mas extinguir substituindo-o, de
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Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
modo que não há uma satisfação instantânea do crédito, visto que o credor não
recebe a prestação devida, mas, simplesmente, adquire outro direito de crédito
ou passa a exercê-lo contra outra pessoa.
Para Diniz (2002, p. 281):
a novação é modo extintivo da obrigação, mas seu mecanismo é
diverso do pagamento. O pagamento é cumprimento exato da prestação convencionada, que satisfaz o credor inteiramente; já a novação
faz desaparecer o vínculo anterior, sem que se efetue a prestação a
que o devedor se obrigara, pois surge outro liame obrigacional, em
substituição ao preexistente.
Em síntese, novação vislumbra um processo de simplificação, uma
vez que não há necessidade de ocorrer duas operações distintas: criação de
nova obrigação e extinção do vínculo obrigacional precedente. Esse resultado é
obtido com um só ato; é oriunda de um ato único. Não se trata de extinção com
a contemporânea constituição, nem de extinção em virtude de constituição, mas
de extinção mediante constituição. Extinção e constituição não representam dois
momentos jurídicos distintos, mas sim um único, ocasionando, simultaneamente,
a causa extintiva e geradora de obrigação.
Por conseguinte, duplo é o conteúdo essencial desse instituto: um
extintivo, atinente à antiga obrigação e outro gerador, concernente à nova. Não
mais ocorre aquela transformação, mas apenas substituição, pois a obrigação
atual substitui a anterior.
Os civilistas, ao examinarem o instituto da novação, apresentam uma
série de condições essenciais que o compõem.
Alguns doutrinadores relacionam maior número, outros menor, de pressupostos que o caracterizam.
Diniz (2002, p. 281-286), preleciona, em suma, os principais requisitos
da novação:
1) A existência de uma obrigação anterior, que se extingue com a constituição de uma nova, que a substitui (obligatio novanda);
2) A criação de uma obrigação nova, em substituição à anterior, que
se extinguiu;
3) O elemento novo (aliquid novi);
4) A intenção de novar (animus novandi);
5) A capacidade e legitimação das partes interessadas.
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Elencados os requisitos, apreendemos no Código Civil pátrio, nos
artigos 360 a 367, duas hipóteses de novação: a real ou objetiva e a subjetiva ou pessoal.
Haverá a novação objetiva ou real quando houver alteração no objeto
da relação obrigacional, ou seja, quando ocorre mudança do objeto da prestação
entre as partes, mantendo-se as mesmas partes do contrato. Isso ocorre, por
exemplo, quando o credor de uma obrigação de dar, concorda em receber do
devedor uma prestação de fazer ou vice-versa.
Portanto, a mudança deve ocorrer: a) no objeto principal da obrigação;
b) em sua natureza; c) na causa jurídica.
Exige-se que a mudança atinja a substância da obrigação, isto é,
que a nova dívida seja incompatível com a sobrevivência da antiga. Não
implicam novação a oposição de um termo ou sua eliminação nem a remissão parcial de uma dívida.
Ainda a mesma autora (2002, p.288) nos ensina que :
a subjetiva ou pessoal, por sua vez, subdivide-se em novação subjetiva
passiva e a subjetiva ativa. O elemento novo diz respeito aos sujeitos
da relação obrigacional, alterando ora o sujeito passivo (devedor), ora
o ativo (credor). Essa mudança do devedor pode-se dar de dois modos:
pela delegação e pela expromissão. Pela delegação, a substituição do
devedor será feita com o consentimento do devedor originário, pois é
ele quem indicará uma terceira pessoa para resgatar o seu débito, com
a anuência do credor, previsto no art. 360, inciso II do Código Civil.
Assim, a delegação implicará uma novação, quando um terceiro (delegado) consentir em se tornar o devedor perante o delegatário (credor), que o
aceitará, constituindo-se uma nova obrigação entre ambos e extinguindo-se a
obrigação existente entre o delegante e o delegatário (devedor e credor) e entre
o delegante e o delegado (devedor e terceiro).
De outra forma, não caracteriza novação, mas, apenas, delegação, se
o destinatário se limita a aceitar a obrigação do delegado, sem renunciar aos
seus direitos contra o delegante.
Portanto, o delegatário passará a ter dois devedores em lugar de um. Tratase de delegação imperfeita, pois a perfeita é a que contém efeitos novatórios.
Já a novação é a delegação perfeita, que é um encargo cometido
pelo devedor a um terceiro, a fim de por ele pagar ao credor aquilo que lhe é
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Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
devido, encargo esse de que resulta a liberação (desobrigação) do devedor
originário em face do credor.
Configurará novação subjetiva passiva, então, por expromissão, quando
um terceiro assumir a dívida do devedor primitivo, substituindo-o sem o assentimento deste, desde que o credor anua com tal mudança. Nesse caso, haverá
duas partes: o credor e o novo devedor, por ser dispensável o consentimento do
devedor originário, conforme apregoa o artigo 362 do Código Civil, sendo que a
expromissão rege-se pelos mesmos princípios que dominam a delegação perfeita
e a novação, exigindo o consentimento do credor e do expromitente.
É necessário, portanto, que este deva manifestar a vontade de querer
obrigar-se em substituição ao devedor, ao passo que o primeiro – o credor
– deverá exteriorizar o ânimo de novar, consentindo na exoneração do primeiro
devedor, pois, se isso não ocorrer, ter-se-á uma ad promissio e não uma expromissão, dando lugar a uma fiança ou ao acréscimo de uma nova responsabilidade,
pelo aumento de mais um devedor.
Ocorrerá, em suma, novação subjetiva quando o elemento novo diz
respeito aos sujeitos da obrigação, alterando ora o sujeito passivo, ora o ativo.
Maria Helena Diniz (1999, p.736), leciona que ter-se-á esse instituto, quando:
a) na novação passiva, quando se tiver a intervenção de um novo
devedor, pela delegação ou expromissão. Pela delegação, a substituição do devedor será feita com a anuência do devedor primitivo,
que indicará uma terceira pessoa para resgatar o seu débito, com o
que concorda o credor;
b) na ativa, o credor originário, por meio de nova obrigação, deixa a
relação obrigacional e um outro o substitui, ficando o devedor quite
para com o antigo credor.
Assim, a razão dessa peculiaridade consiste em ser a novação um
pagamento – uma liberação do contrato quanto ao devedor primitivo – que, diferentemente dos contratos obrigatórios, não é governado pelo princípio res inter
alios acta, aliis nec prodest nec nocet.
Podemos dizer, então, que a novação tem duplo efeito: ora se apresenta
como força extintiva, porque faz desaparecer a antiga obrigação, ora como energia
criadora, por criar uma nova relação obrigacional, nos contratos.
Exerce, portanto, concomitantemente, uma dupla função: pela sua força
extintiva, é ela liberatória, e como força criadora, é obrigatória.
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Nessa concepção, importa-nos antever, em quais possibilidades caberiam em sede de Direito do Trabalho. Para tanto, sem prejuízo de demais
estudos, ater-se-á o presente trabalho, a analisar a possibilidade da novação,
instituto eminentemente civilista dentro do direito trabalhista, o que se fará em
confrontação com as formas de possibilidade de estipulação do contrato de trabalho, prevista no artigo 444 da CLT e as condições de alteralibilidade previstas
no artigo 468 do mesmo instituto legal.
Pelo artigo 444/CLT, é possível a livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao
trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das
autoridades competentes.
Por sua vez, o artigo 468, também da CLT, prevê a possibilidade de
alteração do contrato de trabalho, por mútuo consentimento e, ainda assim, desde
que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado.
Em todos os dois institutos, vemos regras rígidas, que de alguma forma
“engessam” a possibilidade de modificações nos contratos de trabalho; porém, é de
se perguntar: poderia, por força do artigo 444/CLT, ser inserida cláusula no contrato
de trabalho prevendo a novação? Para Moraes Filho (1976, p. 114-115), a possibilidade não é de toda descartada ao que argumenta, cautelosamente, poder, dentro
do período prescricional, vir a ser anulada por ação própria na Justiça do Trabalho,
a partir do momento que acarrete prejuízo direto ou indireto ao empregado.
No mesmo sentido, Moraes (1976, p. 114-115), indicando ser a novação,
de difícil aplicação ao Direito do Trabalho, vez que pressupõe a substituição de um
dos obrigados ou a extinção da obrigação anterior, através de nova obrigação.
Entretanto, os mestres citados foram sucintos.
Por nosso Código Civil, contrariamente a outros países que a retiraram,
a novação continua em vigor, conforme acima se transcreveu.
Resta, pois, analisar, dentro do artigo 360 de nossa Lei Civil, a possibilidade de cabimento do instituto tratado, dentro do Direito do Trabalho, função
esta de que nos ocuparemos doravante.
Quanto aos incisos I e III do supracitado artigo, não se visualiza a possibilidade da novação em sede de Direito do Trabalho, pois não seria inteligente
pensar na firmação de um novo contrato de trabalho que abrangesse o anterior,
mesmo porque, uma de suas características é o trato sucessivo, ou seja, as
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Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
inovações ou mudanças a ele se incorporam; ele se efetua através de uma série
de prestações diferenciadas no tempo.
No caso do inciso III, restaria ainda uma possibilidade, se por esforço
de consciência, fosse considerado que os herdeiros do trabalhador viessem a
substituí-lo no recebimento das parcelas rescisórias. Como se disse, por um
esforço de consciência, porque não se visualizaria aí, a “obrigação nova”, mas
uma decorrência simples e pura de uma mesma obrigação anterior.
No que diz respeito ao inciso II, esta talvez seja a possibilidade mais
previsível e possível no Direito do Trabalho, em sua primeira parte, já que por
força do artigo 10 celetizado, a mudança na estrutura jurídica da empresa não
afetará o direito adquirido.
Se por um lado, o artigo 10 trata dos direitos adquiridos, por outro, o
artigo 448 do mesmo diploma legal, cuida de proteger os contratos em curso.
Assim, mesmo que haja substituição do quadro societário, mudança no objetivo social, de endereço, fusão, incorporação, ou qualquer outra
mudança importante na estrutura jurídica da empresa, haverá alteração de
devedores sim, conforme preceitua a primeira parte do inciso, mas esta
mudança nunca dará quitação integral ao devedor antigo, que responderá
plenamente perante aqueles empregados, que estavam ligados à empresa
durante sua gestão. Daí concluir-se que, pela primeira parte do inciso II
mencionado, é possível a novação, restando prejudicada sua parte final,
por não coadunar-se com o direito laborista.
Dentro do questionamento proposto, resta dizer que, mesmo inserida cláusula contratual no contrato de trabalho firmado, isentando o empregador em caso de transmissão por qualquer forma, de suas cotas dentro da
empresa, ainda assim, seria ele responsabilizado pelo passivo trabalhista,
dentro de sua responsabilidade.
Não se esqueceu, todavia, de que o empregador é sempre a empresa,
e não seus diretores, e, por isso mesmo, é que fez o legislador, constar daqueles
institutos legais (art. 10 e 448 da CLT) norma específica, garantidora dos direitos
dos empregados em quaisquer situações.
Ainda quanto à parte primeira do indigitado inciso, é de verificar-se
que a novação se dará, em qualquer dos casos de “encampação” de uma
empresa por outra.
42
Como se vê, mesmo não sendo impossível, é difícil a percepção da
novação plena.
Entretanto, cumpre-se ainda analisar a novação sob duas outras formas:
a novação objetiva e a novação subjetiva.
Por novação objetiva, entende-se aquela em que se opera entre os
anteriores credor e devedor para substituição da dívida anterior por outra dívida,
que extingue a primitiva (SILVA, p. 255).
Este tipo de novação torna-se improvável no Direito do Trabalho.
Difícil é sua possibilidade. No entanto, algumas possibilidades poderão
ser aceitas, como no caso do empregador que não fornece as guias de Seguro
Desemprego (SD) – obrigação de fazer de caráter infungível, já que somente
por ele pode ser cumprida – ao empregado demitido, frustrando-lhe um direito
constitucional, atraindo, pois, para si, o empregador, um preceito cominatório ou
mesmo a conversão desta obrigação em uma obrigação de dar, consoante o art.
247 do Código Civil (incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor
que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível).
Estamos diante de uma perfeita novação, ou seja, a dívida – obrigação de dar (entregar), as guias CD/SD – sendo substituída por outra
– obrigação de indenizar.
Por outro lado, a novação subjetiva é a denominação técnica dada às
novações, que resultam da substituição de pessoas nas obrigações anteriores.
É a novação pessoal (SILVA, p. 256); esta sim, de mais fácil visualização em
sede do direito trabalhista.
Como exemplo, traz-se à tona o inserto no § 2o do artigo 483 da CLT:
no caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é facultado
ao empregado rescindir o contrato de trabalho.
Vê-se a faculdade atribuída ao empregado, vez que se o negócio continuar, pelos sucessores do empregador falecido, pode o empregado, por sua
vez, continuar seu contrato de trabalho.
Neste caso, diferentemente das sociedades, o empregador se confunde
com a empresa, pois que ele é ela mesma.
Martins (2001, p. 483) informa: “se a empresa individual encerra sua atividade, o empregado está automaticamente despedido; porém se alguém continua
com o negócio, ao empregado fica a faculdade de rescindir ou não o contrato”.
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Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
Ora, em alguém – que pode ser sucessor ou não – continuando um negócio
que se confundia com a própria pessoa, como seria o exemplo de uma cabeleireira, e
o empregado desta, permanece ligado àquela, estaria aceitando a novação subjetiva,
em que uma pessoa substitui a outra em sua dívida, assumindo todo o seu passivo.
De outra sorte, levando-se em consideração que a pessoa jurídica é um
ente “personalizado”, ou seja, individualizado, no caso mesmo de existir uma fusão,
tem-se a novação, dado que a nova entidade surgida assumirá todo o passivo daquelas extintas, e, neste caso, por força da situação existente, obrigatoriamente se
verificará a novação na plenitude do inciso II do artigo 360 da Lei Civil, visto que todo
o patrimônio daquelas empresas extintas serão incorporados pela que surge.
À guisa de colaboração ao presente ensaio, poder-se-ia falar em novação “plena” e “não plena”.
Dar-se-ia a novação plena, quando, substituídas dívidas ou pessoas,
as substitutas honrassem os compromissos das substituídas, satisfazendo todo
o crédito trabalhista, e a novação não plena, quando as substitutas não cumprissem aqueles compromissos, pendendo de um mandamus judicial.
Destarte, finalizando o presente trabalho, tem-se que não se mostraria
prudente a inserção de cláusula novatória em contrato de trabalho, mas que esta
não está de todo descartada, haja vista hoje estar perdendo conceito, o princípio
do pacta sunt servanda, em favor da teoria da imprevisão, e, como dito alhures,
o contrato de trabalho sendo de trato sucessivo, estaria à mercê das variações,
mormente num mundo volátil e ágil como é hoje o do capital e trabalho, sem óbice
às substituições de credores que aqui não mencionamos, e que são possíveis
na ocorrência do factum principis.
Fator outro que nos leva a tal pensamento é o momento atual vivido, em
que a Constituição Federal de 1988 privilegia a flexibilização, sendo certo que,
por isso mesmo, os entes detentores de tal poder – leia-se Sindicatos – poderão
vir a ter o poder de inserir, nos contratos de trabalho, tais cláusulas novatórias.
Isto é uma possibilidade apenas, mas que deve começar a ser pensada.
3 CONCLUSÃO
Assim, a par de tudo que se viu, podemos afirmar que a figura da
novação dá duplo efeito num contrato: com a força extintiva, ela é liberatória
44
e com sua força criadora, é obrigatória.
Contudo, não ocorrendo o ânimo de novar, a segunda obrigação confirma, simplesmente, a primeira.
Assim, o instituto da novação somente poderá ocorrer quando houver
alteração de alguma das partes (subjetiva) ou mudança de algum conteúdo
de um contrato (objetiva).
Sendo, portanto, o Direito Civil fonte subsidiária do Direito do Trabalho,
poderá existir, por diversas vezes, pelo menos em tese, a possibilidade do surgimento dessa figura no Contrato de Trabalho. Basta, a título de experimentação,
analisar o âmbito das mutações de um contrato a termo, transformado, automaticamente, para indeterminado. Isso se daria por circunstâncias de desrespeito,
pelo empregador, do prazo de sua vigência, em primeiro lugar, no caso que não
seja pactuado nas estritas hipóteses legais de contratação (serviço cuja natureza
ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo, atividade empresarial
de caráter transitório, contrato de experiência, hipóteses previstas por legislação
extravagantes à CLT, inclusive Lei 9.601/98). Em segundo lugar, no caso em que
seja pactuado por lapso temporal superior ao parâmetro máximo lançado pela
legislação. Em terceiro lugar, que seja prorrogado (expressa ou tacitamente) mais
de uma vez, ou mesmo que submetido a uma única prorrogação, e esta se dê por
além do prazo legal permitido. E, por último, se o pacto for seguido por outro contrato a prazo, antes de seis meses da conclusão do primeiro, desde que, é claro,
este não tenha se expirado em virtude da execução dos serviços especializados
ou especificados motivadores da contratação primitiva, ou tenha se extinguido pela
realização dos acontecimentos que ensejaram a contratação a termo.
No entanto, dissemos que isso pode existir, em tese, e que, essas
regras como por exemplo: a quebra de pactuação, temporalidade, prorrogação
e/ou sucessividade de contratos empregatícios a termo não justificam a identificação da figura celetista com a civilista da Novação, isto porque a alteração do
contrato a termo para indeterminado é de caráter imperativo.
Assim, tem que se ter em mente que, se não existir a extinção das obrigações
anteriores do pacto a termo, elas somente confirmarão um novo tipo contratual: o do
indeterminado. Além disso, não deriva tal modificação da vontade das partes, e sim,
de determinação legal, a menos que se queira adotar a nomenclatura para designar
um tipo legal específico e diferenciado de novação Trabalhista (Novação ex lege).
45
Revista Online FADIVALE - 2005
A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
Já as alterações das condições do trabalho e a alteração consensual de
um contrato de trabalho são chamadas pelos doutrinadores como figura da novação
tácita, porque exige-se uma mudança radical do objeto e da causa debendi.
Mas é preciso não perder de vista a natureza do contrato e da relação que
dele se origina para evitar aplicação apressada dos princípios do direito comum.
As alterações das condições de trabalho, muitas vezes, não afetando
substancialmente a obrigação primitiva, apenas a modificam sem extingui-la.
O empregado, como o empregador, toleram essas modificações, quase sempre de caráter transitório, sem que haja a intenção de extinguir as condições ajustadas,
substituindo-as por outras. São alterações que se prendem, no comum dos casos, ao
exercício do jus variandi pelo empregador, inexistindo o animus novandi.
Mas, isso não significa que o contrato de trabalho não admita Novação
Tácita. Havendo divergência entre a nova obrigação e a precedente – requisito
da novação objetiva – as circunstâncias dirão da intenção das partes, constituindo
assim, um dos elementos dos quais poderá o juízo induzir a existência do animus
novandi, tacitamente manifestado, através do comportamento das partes, e a
permanência, a continuidade da alteração no curso da prestação.
A relação jurídica do trabalho é uma relação de débito permanente e a modificação das condições de trabalho que perdura revela, salvo manifestação expressa
em contrário, a intenção de novar. Assim sendo, haverá a figura da Novação.
Ao examinar a alteração subjetiva passiva do contrato de trabalho, ou
a sucessão trabalhista, configuração clássica da impessoalidade inerente do
empregador (como no caso de fusão, incorporação, cisão e outros correlatos) o
novo titular passa a responder, imediatamente, pelas repercussões presentes,
futuras e passadas dos contratos de trabalho que lhe foram transferidos.
Os ativos e passivos trabalhistas – toda a história do contrato de trabalho
– transferem-se em sua totalidade ao novo empregador. Trata-se, assim, de efeitos jurídicos plenos, envolvendo tempo de serviço, parcelas contratuais do antigo
período, pleitos novos com relação ao período iniciado com a transferência etc.
Portanto, o enquadramento da figura civilista da Novação na alteração
subjetiva, nesses casos - consoante os artigos 10 e 448, da CLT - conduzem à
perda ou distorções de alguns elementos característicos importantes da figura
do Código Civil, comprometendo a sua validade. Percebe-se que a Novação é
inquestionavelmente estranha ao instituto desses artigos.
46
É que não se nota a intenção de novar a obrigação, como também, a
sucessão trabalhista opera efeitos imperativamente, até mesmo contra a vontade
dos titulares das empresas ou estabelecimentos envolvidos. E, nem se verifica
no instituto trabalhista extinção da obrigação anterior.
Além disso, a novação civilista exige, regra geral, consentimento expresso do credor, ao contrário do verificado na área laboral.
Portanto, a sucessão de empregadores surge, desse modo, com caráter próprio, inassimilável, de princípio, a qualquer figura clássica do Direito Civil.
O instituto laboral não se enquadra no instituto civilista da novação, tendo esta
natureza própria.
Consiste, portanto, esta figura da sucessão trabalhista na conjugação de
duas operações distintas mas combinadas – transmissão de crédito e assunção
de dívida – que se realizam ambas, no mesmo momento, em decorrência da lei
(ope legis).Trata-se de uma imposição de crédito e de débito, ajustável por inteiro
à relação de emprego, que é de trato sucessivo, com tendência a permanecer.
A alteração subjetiva passiva no caso de falecimento do empregador
– constituído em empresa individual – tem como conseqüência a possibilidade
de o trabalhador rescindir o contrato de trabalho.
Segundo a doutrina, esse tipo de ruptura apenas exime o empregado do
ônus do clássico pedido de demissão (concessão de aviso ao empregador, por
exemplo, sob pena de desconto rescisório) ou de permanência na empresa. Existirá,
nesse caso, a alteração unilateral – jus variandi, por parte do empregado.
Ao proceder ao exame, se existe ou não a possibilidade de se falar em
sucessão trabalhista, quando tenha havido a alienação de, apenas, parte de um
negócio, que não possa ser considerada uma unidade econômico-produtiva, ou de
máquinas e coisas vendidas como bens singulares, é de se entender que nessa
hipótese, não havendo transferência do estabelecimento, não há sucessão, no
sentido de ficar os empregados obrigados a aceitarem o novo empregador.
A mudança de empregador, nesse caso, resultaria de uma simples
Novação subjetiva, porque toda novação é voluntária. Além de ressaltar o respeito à dignidade da pessoa do trabalhador, que é a essência do próprio Direito
do Trabalho, insurge-se contra a idéia de ser ele cedido, como engrenagem de
máquina, juntamente com a cessão de coisas singulares. Não se admite que,
sob o novo empregador, reedite-se a figura medieval do servo da gleba.
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A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
Ao proceder a análise das alterações objetivas de um contrato do trabalho, tem que se ter em mente que os mesmos espelham as mutações sucessivas
dos empreendimentos econômicos das empresas frente à economia do País e,
na maioria delas, pode-se vislumbrar o instituto da Novação..
Portanto, o contrato de trabalho é pacto de execução sucessiva estabelecido para durar no tempo, sujeito a certas mudanças, no interesse de ambas
as partes. É que o funcionamento das empresas não suporta a estagnação.
O empregado, por sua vez, não tem o direito de alterar as estipulações,
salvo com autorização do empregador.
Do lado da empresa as mutações possíveis têm de permanecer entre
dois limites: o de seu interesse, o ius variandi, e frente a frente, o direito de
resistência do empregado, o jus resistantie, exigindo que sejam respeitadas as
cláusulas e vantagens estipuladas, quando da contratação e todas as que, mesmo
não contratadas, lhe tenham sido concedidas tácita ou expressamente, tenham
ou não valor econômico, e mesmo quando personalíssimas.
A intangibilidade refere-se sobretudo às cláusulas importantes do contrato do trabalho. Quanto mais importantes, mais inatingíveis de alteração.
Partidários da flexibilização das normas trabalhistas entendem que ela
não existirá, enquanto o artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho não tiver
um parágrafo que autorize o contrato coletivo ou convenção coletiva a alterar as
normas vigentes entre as partes, adaptando-as às necessidades da competitividade
das empresas; é o que falávamos antes, da possibilidade da novação.
Pode ocorrer que o empregado e o empregador façam acordos bilaterais, desde que não entrem em conflito com as normas já existentes como, por
exemplo, a não existência de sindicato da categoria numa determinada região,
como é o caso dos jornalistas de Minas Gerais, cujo sindicato existe só em Belo
Horizonte. Não existindo sindicato no interior, os profissionais só podem trabalhar até a 5a hora e, o que exceder é considerado como horas extras. As partes
podem pactuar, entre si, a respeito das horas trabalhadas a partir da 6a hora, que
elas sejam transformadas em folgas, num tipo de banco de horas. Neste caso,
haverá a figura da Novação.
Assim sendo, nas alterações objetivas, existirá sempre a possibilidade
da Novação, desde que as partes não infrinjam alguma norma imperativa.
No Processo do Trabalho, podemos trazer como exemplo as recla48
mações movidas contra o empregador por doméstico. A jurisprudência tem
concluído que a mulher do réu pode comparecer ao juízo como parte legítima
passiva, para praticar os atos processuais necessários à defesa. Existirá,
assim, a figura da novação.
Quanto às mutações ocorridas no pólo passivo, alguns doutrinadores
entendem que não há Novação, pois são oriundas de normas cogentes. Portanto,
é decorrente da vontade unilateral do reclamante, quanto ao chamamento à lide no
processo de cognição, nos casos, por exemplo, de subsidiariedade, solidariedade
etc., como também, no processo de execução no caso de fraude contra credores.
Quanto ao objeto, ocorrerá sempre novação, quando acontecer uma
transformação da obrigação por outra nova, como é o caso muito comum na
mudança de obrigação de fazer em dar, no caso de entrega de algum documento
sob penalidade de transformação em pecúnia.
Dessa forma, após ter analisado algumas ocorrências do instituto da
novação, como também, a sua aplicabilidade no Direito do Trabalho, pode-se
concluir, através deste breve e não esgotável estudo, a possibilidade de sua
existência de forma parcial na área trabalhista.
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A NOVAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
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51
3
Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
DIREITOS HUMANOS
NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
Elianne Maria Meira Rosa*
Resumo
Abstract
O presente artigo pincela, de forma singular, valioso
debate relativo aos “Direitos Humanos na era da
globalização”. Resgata suas origens, remontando-se
ao antigo Egito, Mesopotâmia e Índia, localizando o
assunto também em legislações e obras históricas,
tais como o Código de Hamurábi, Antígona e outras. Destaca o pensamento de filósofos de ontem
e de hoje, a exemplo de Cícero Recasens Siches,
Norbeto Bobbio e Hannah Arendt, que representam
o ícone da matéria em destaque. Traça as linhas
mestras concernentes aos Direitos de “Primeira,
Segunda e Terceira Gerações”, conferindo ainda
especial realce à Internacionalização dos Direitos
Humanos frente ao fenômeno da globalização.
The present article paints, of singular, valuable form
relative debate to the “Human Rights in the globalization age origins, repairing to the old Egypt, Mesopotamia and India, also locating the subject in legislations and historical works, such as Hamurabi’s Code,
Antigona and another. It highlights philosophers’
yesterday’s and today’s thought, like Cícero Recasens
Siches, Norbeto Bobbio and Hannah Arendt, who
represent the icon of the matter in highlight. It traces
the master lines concerning to the “First, Second, and
Third Generations”, still checking special highlight
to the Internationalization of the Human Rights front
to the phenomenon of the globalization.
Palavras-chave
direitos humanos; globalização; dignidade; ética;
democracia.
Keywords
human rights; globalization; dignity; ethics;
democracy.
Sumário
1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 2 DIREITOS HUMANOS DE PRIMEIRA E SEGUNDA GERAÇÃO.
2.1 DIREITOS HUMANOS DO PÓS-GUERRA (TERCEIRA GERAÇÃO). 2.2 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS. 3 DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
* Aula Magna ministrada na Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE) em 02.03.2004. Profª Titular da Cadeira de
Direito Internacional Público e Ética Geral e Profissional da Universidade Braz Cubas em Mogi das Cruzes – SP. Doutora em Ciências
jurídicas pela Universidade Del Museo Social Argentino (UMSA) – Argentina.
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1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
As origens dos direitos individuais do homem remontam ao antigo
Egito, Mesopotâmia e Índia. No Código de Hamurabi, podem ser identificadas
algumas normas relativas aos direitos individuais, como o direito à propriedade,
à dignidade, à vida e, ainda, normas protetivas de direitos individuais oponíveis
aos próprios governantes.
Contudo, foram os gregos aqueles que apontaram a existência de um
direito primevo, originário mesmo, que nasce numa perspectiva universal, a partir
de princípios gerais que são reconhecidamente válidos, em todos os tempos, por
todos os homens, e que brotam do mais íntimo da natureza humana.
Quando Antígona, na tragédia de Sófocles, com as suas próprias mãos,
espalha terra sobre o cadáver de seu irmão Polinice, o rebelde, desafiando o rei
Creonte, está realizando a justiça com fundamento “nas leis divinas, nunca escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir de ontem ou de hoje; são eternas,
sim! E ninguém pode dizer desde quando vigoram”.
Mata-Machado (1986, p. 59) sustenta que:
o estudo da evolução histórica do direito natural encontra suas raízes
no período mítico da civilização, quando as instituições morais e
jurídicas se confundem com as regras do culto, como a indicar a sua
raiz profunda com a natureza das coisas.
Foi a segunda geração de sofistas, representada por Hípias, Licófron e
Alcidamas quem resgata o direito natural da sua condição de critério de solidez
e constância às regras de conduta impostas pela cidade, para modelo de transformação e adaptação do direito vigente (MATA-MACHADO, 1986, p. 61).
Para os estóicos, o direito natural é confundido com a “lei geral do universo” e se aplica a todas as criaturas. Esta influência irradia-se para o direito
romano e, mais tarde, entre os filósofos e pensadores cristãos.
Na antigüidade clássica, encontramos em Cícero (apud MATA-MACHADO, 1986, p. 63). o grande representante do direito natural, especialmente em
De legibus quando afirma:
o que nos interessa, neste discurso, não é o modo de prevenir cautelas processuais ou a maneira de despachar uma consulta qualquer...
devemos abraçar, nesta dissertação, o fundamento universal do direito
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Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
e das leis, de modo que o chamado direito civil fique reduzido, diríamos, a uma parte de proporções bem pequenas. Assim haveremos de
explicar a natureza do direito, deduzindo-a da natureza do homem.
Bobbio (1992, p. 17) considera que esta percepção jusnaturalista de que
certos direitos estão acima de qualquer refutação, porque derivam diretamente
da natureza do homem, revelou-se muito frágil como fundamento absoluto de
direitos irresistíveis. E esclarece o grande mestre de Turim que são bem poucos
os direitos fundamentais do homem que não se encontram em concorrência com
outros direitos também considerados fundamentais, com exceção de alguns (o
direito de não ser escravizado e o de não sofrer tortura), porque não se pode atribuir um novo direito a uma categoria de pessoas, sem suprimir um velho direito,
que beneficiava uma outra categoria de pessoas (BOBBIO, 1992, p. 20).
Com efeito, o grande problema da atualidade para Bobbio não se trata de
saber qual é a natureza ou a origem dos direitos do homem, senão o de descobrir
qual é o modo mais seguro de impedir que, apesar das solenes declarações,
eles sejam violados (BOBBIO, 1992, p. 25).
Na percepção de Siches (1973, p. 540), a idéia-força dos direitos do homem
repousa na dignidade da pessoa humana e esta característica é peculiar à cultura
cristã: em Jesus Cristo, como redentor de todos os homens e de todos os povos.
A idade moderna resgata os fundamentos da dignidade da pessoa humana, quando repudia o absolutismo político, a ingerência da Igreja no Estado e, por
fim, o trabalho escravo. Os ideais cristãos nunca foram postos tão à prova quanto
no Estado moderno, nas lutas contra o totalitarismo, na defesa da democracia
como o locus da cidadania e, portanto, o espaço político da sociedade.
A reflexão de Bobbio ensina que, seguramente, na cronologia dos
direitos fundamentais, a proteção à liberdade pessoal vem depois do direito de
propriedade. A esfera da propriedade foi sempre mais protegida que a esfera da
pessoa. (BOBBIO, 1992, p. 123).
Rousseau inverte esta preferência, pois, ao contrário de Locke, repele o
direito de propriedade como direito fundamental, razão pela qual os revolucionários
americanos, os “pais da pátria”, se ajustaram mais ao pensamento do segundo,
não repelindo, contudo, os fundamentos lançados na obra do ilustre genebrino.
É, portanto, o critério rousseauniano de soberania que surge, no
século XVIII, como critério informador do Estado moderno, quando afirma
54
que a soberania reside no povo e é, pela sua natureza, una e inalienável, que
redefine a sociedade com base nos direitos fundamentais da pessoa humana. Não resta a menor dúvida de que a natureza indivisível e inalienável da
soberania tem como valor-fonte a pessoa humana e como postulado a liberdade: L’homme né libre, et partout il est dans les fers. Com esta afirmação,
Rousseau abre o Capítulo I, Do Contrato Social.
Rousseau identifica e compreende, como ninguém, que a liberdade
se constitui em um bem único e precioso do homem, e que lhe pertence na
condição de um direito originário e imprescritível. A proposta do Contrato
Social é o de um pactum societatis em oposição ao pactum subjeccionis,
consoante o preceito hobbesiano.
Lafer (1988, p. 122) afirma que a explicação contratualista se ajusta à
passagem de um Direito baseado no status para o Direito baseado no indivíduo,
numa sociedade baseada no mercado e na competição.
O contratualismo opera a transição do Estado absolutista para o Estado
de Direito e transita pela preocupação com o individualismo, o que acaba por estabelecer limites para a ação do todo em relação ao indivíduo, e resulta na divisão
dos poderes, conforme lição clássica de Montesquieu (LAFER, 1988, p. 122).
E, assim, o Estado de Direito nasce e passa a fazer parte integrante
da história moderna, e aponta a titularidade da soberania no povo – é o poder
constituinte originário, conforme Sièyes.
A proclamação dos Direitos do Homem de 1789 impõe um novo paradigma, cuja essência é a dignidade da pessoa humana.
Contudo, a reflexão arentiana sobre as verdades evidentes, defendidas por Jefferson, quando redigiu a Declaração da Independência dos EUA,
leva-nos a repensar na igualdade como um atributo da natureza – daquilo
que é dado por ser phisis – ou na possibilidade de ser a polis por meio do
nomos, que faz surgir à ordem igualitária, sendo esta, portanto, um construído
convencional (LAFER, 1988, p.124- 125).
Siches (1978, p. 550) atribui ao pensamento da Idade Moderna o
resgate da idéia cristã de dignidade da pessoa individual como centro e fim
de toda a cultura [...] Aquela expressão kantiana de que, neste mundo, todas
as coisas têm um preço – quer dizer um valor relativo ou instrumental -, exceto o homem que não tem preço, porque tem dignidade, quer dizer por que
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Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
se constitui em um fim em si mesmo, um substrato para a realização de um
valor absoluto: o valor moral.
A herança da Revolução Francesa supõe a existência de um divisor de águas
para os direitos do homem, marcado também pelos Bill of Rights de algumas colônias
americanas. As Declarações de Direitos do Homem do século XVIII constituem-se,
sem dúvida, nas matrizes dos Direitos Humanos de primeira geração.
O significado histórico da Declaração Francesa para os Direitos do Homem não escapa a Furret (apud BOBBIO, 1992, p.128-129), que desenvolveu
um estudo crítico da Revolução, quando reconhece que: “a manifestação mais
espetacular da restituição do contrato social foi a Declaração dos Direitos do
Homem, já que constitui a base de um viver associado”.
A transição que se opera na Idade Moderna da perspectiva ex parte
principis para a perspectiva ex parte populi consagra definitivamente uma conquista política a serviço da sociedade civil. Todo esse esforço se opera no sentido
de contemplar o ideal liberal clássico de construir uma sociedade autônoma em
relação ao Estado, cuja ação seria limitada ao máximo.
Arendt (1989, p. 324) situa a Declaração dos Direitos do Homem, no
fim do século XVIII, como um marco decisivo na história.
significava que doravante o Homem e não Deus nem os costumes
da história, seriam a fonte da lei. Independente dos privilégios que
a história havia concedido a certas camadas da sociedade ou a
certas nações, a declaração era ao mesmo tempo a mostra de que
o homem se libertava de toda a espécie de tutela e o prenúncio
de que já havia atingido a maioridade.
A primeira emenda americana acrescenta aos demais direitos individuais já consagrados um direito coletivo que se constitui no direito de associação,
permitindo a formação dos partidos políticos e dos sindicatos.
2 DIREITOS HUMANOS DE PRIMEIRA E SEGUNDA GERAÇÃO
As Constituições modernas acabaram por recepcionar em seus textos
duas classes de direitos que não se anulam, ao contrario, se somam: os direitos
individuais e os direitos sociais. Geralmente, os direitos individuais vêm em
primeiro plano, com a função asseguradora da autonomia e independência da
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pessoa humana, limitando o poder do Estado, em seguida, os direitos sociais que
procuram garantir-lhes a eficácia por meio de uma ação positiva do Estado.
Nessa mesma linha, Siches (1978, p. 601) considera que uma segunda
geração de direitos deva ser acrescentada ao direito de liberdade, que são os
direitos sociais, econômicos e culturais [...]; este grupo de direitos tem por objeto
as atividades positivas do Estado. Definidos, portanto, como direitos subjetivos públicos, uma vez que são oponíveis ao próprio Estado (direito ao trabalho, à saúde,
habitação, educação, lazer, à previdência social, ao desenvolvimento etc.).
Deve-se entender, contudo, que o titular destes direitos continua
a ser a pessoa na sua individualidade, tal qual ocorre com os Direitos do
Homem de primeira geração.
Após a Primeira Guerra Mundial, ocorre a constitucionalização e a
internacionalização dos Direitos Sociais com a sua recepção em alguns textos
constitucionais e a criação da OIT em 1919. Com o advento dos direitos sociais
ocorre um alargamento do Estado, ao contrário daquilo que fundamentava a
teoria liberal de restrições dos seus fins.
A Constituição Mexicana de 1917 inaugura o constitucionalismo social,
quando o indivíduo passa a ser membro da comunidade social, com direitos que
lhe assegurem sua dignidade e com obrigações impostas pelo interesse individual
e pelas exigências do bem comum. Outras importantes constituições se seguiram a esta: a Constituição de Weimar (1919), a Constituição das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (1918), a Constituição da Estônia (1920), a Constituição
da Polônia (1921), a Constituição Italiana, Carta del Lavoro (1927), e assim sucessivamente, tanto na Europa quanto na América Latina.
Ao contrário do Estado liberal, que pregava o primado da personalidade
humana no individualismo, o Estado social possibilita ao cidadão o direito de viver
sua individualidade, mas sob o primado do bem comum.
2.1 DIREITOS HUMANOS DO PÓS-GUERRA (TERCEIRA GERAÇÃO)
Após a Segunda Guerra Mundial, há uma tendência irreversível de
identificar os Direitos do Homem com o direito dos povos. Arendt (1989, p. 325)
explica que, tanto na Europa quanto na África, seres humanos deixavam de
ter um governo próprio, que não restava nenhuma autoridade para protegê-los
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DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
e nenhuma autoridade disposta a garanti-los. Ela estava convencida de que,
tanto para os apátridas quanto para as minorias, a perda dos direitos nacionais
era idêntica à perda dos Direitos Humanos e que a primeira levava à segunda
(ARENDT, 1989, p. 325-326).
Referindo-se ao abandono pelo qual passaram os sobreviventes dos
campos de extermínio nazistas, a autora de Origens do Totalitarismo afirma:
o conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência
de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em
que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela
primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as
outras qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram
humanos (ARENDT, 1989, p. 333).
Piovesan (2002, p. 40) refere-se a uma concepção contemporânea
de Direitos Humanos, que se desenvolveu, a partir de 1948, com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que foi reiterada com a Declaração de Direitos
Humanos de Viena de 1993.
A partir da ruptura provocada pelos desdobramentos da Segunda Guerra
Mundial, surge uma percepção generalizada de necessidade de reconstrução dos
direitos humanos à luz dos princípios da universalidade e da indivisibilidade.
Abandona-se, definitivamente, a idéia de que a proteção dos direitos
humanos se reduz à matéria exclusiva dos Estados, para uma percepção universalista baseada nos princípios da cooperação e da solidariedade. Este novo
paradigma passa a informar toda a normatização moderna no âmbito dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
O processo de alargamento do rol de direitos fundamentais, na explicação de Ramos (2001, p. 32), explicita a sua não-tipicidade e evidencia uma
herança do jusnaturalismo, na medida em que protege um direito fundamental
pelo seu conteúdo e não por constar de um rol de constitucional.
Os direitos humanos passam a ser protegidos a partir de uma perspectiva ético-valorativa, e percebe-se a existência de um princípio da não-tipicidade
dos direitos fundamentais ou de sua inexauribilidade, pois a eles podem ser
acrescidos novos direitos fundamentais (RAMOS, 2001, p. 33).
A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da inexauribilidade
dos direitos fundamentais em seu art.5o, § 2o e faz remissão a outros direitos
58
fundamentais não constitucionalizados, prevendo que o regime jurídico dos direitos humanos previstos na Constituição seja aplicável a todos esses direitos
também (RAMOS, 2001, p. 33).
Lafer (1988, p. 189) aponta a Carta das Nações Unidas (1945) como
um marco jurídico para os direitos humanos, em razão de apresentar um direito
novo “axiologicamente sensível à tradição kantiana e, por isso mesmo, crítico
da tradição maquiavélica hobbesiana”. O autor justifica esta afirmação e trata da
inserção dos Direitos Humanos nos temas globais quando diz:
na cena internacional contemporânea, no campo dos valores, o mapa
do conhecimento da tradição kantiana detecta a inserção operativa
de uma razão abrangente da humanidade através da inclusão na
agenda internacional, dos assim chamados temas globais. É o caso,
por exemplo, de meio ambiente e direitos humanos que inauguram,
respectivamente, no Rio de Janeiro em 1992, e em Viena em 1993,
a série das grandes conferências multilaterais da ONU pós-Guerra
Fria, sobre temas globais (LAFER, 1988, p. 186-187).
2.2 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A partir deste marco de internacionalização dos direitos humanos, que
ocorreu com a Declaração de 1948, fortaleceu-se a idéia de que a proteção dos
direitos humanos não pode reduzir-se ao domínio reservado do Estado, consoante
afirma Piovesan (2002, p. 42) que alerta para duas importantes conseqüências:
1- a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida
em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol
da proteção dos direitos humanos; ou seja permitem-se formas
de monitoramento e responsabilização internacional, quando os
direitos humanos forem violados.
2 - a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de direitos
(PIOVESAN, 2002, p. 43).
É oportuno lembrar que, há muitos séculos, houve uma importante contribuição dos religiosos e pensadores espanhóis Francisco de Vitória (Relecciones
Teológicas -1480-1546) e Francisco Suarez (De Legibus ac Deo Legislatore - 15481617) na formação do Direito Internacional, fundada na convicção da universalidade,
ou seja, em uma comunidade internacional constituída de seres humanos.
59
Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
A noção de uma comunidade internacional que transcende os limites
da República Christiana foi muito bem descrita por Suarez, nos idos dos séculos
XVI/XVII, nesta passagem:
embora cada cidade independente, cada república, cada reino
constitua por si uma comunidade perfeita formada pelos seus
membros, cada uma destas comunidades é também, de certa
forma, membro do conjunto que é o gênero humano. Pois estas
comunidades não podem bastar-se a si próprias, sem necessitar de
auxílio recíproco, de associação de união, quer para o bem-estar
e utilidade de todas, quer por necessidade ou carência moral [...]
(GONÇALVES e QUADROS, 2000, p. 22-23).
Com efeito, parece-nos clara a convicção, por parte dos formadores do
Direito Internacional, de que os Direitos do Homem se sobrepõem ao arbítrio de
cada Estado individualmente.
Trindade (2003, p. 3) explica que, nesta mesma linha de pensamento,
se incluem Grócio (De jure Belli ac Pacis -1625), Pufendorf (De Jure Naturae et
Gentium – 1672) e Christian Wolf (Jus Gentium Scientifica Pertractatum – 1749) e
que, “lamentavelmente, estas reflexões vieram a ser suplantadas pela emergência
do positivismo jurídico, que personificou o Estado, dotando-o de ‘vontade própria’
reduzindo os direitos dos seres humanos aos que o Estado a estes concedia.”
E, mais à frente, complementa:
o próprio direito internacional, ao reconhecer direitos inerentes a todo
o ser humano, desautoriza o arcaico dogma positivista que pretendia
autoritariamente reduzir tais direitos aos ‘concedidos’ pelo Estado.
O reconhecimento do indivíduo tanto como sujeito de direito interno
como do direito internacional, dotado em ambos de plena capacidade processual, representa uma verdadeira revolução jurídica, à
qual temos o dever de contribuir . Esta revolução vem enfim dar
um conteúdo ético às normas tanto do direito público interno como
do direito internacional (ANNONI, 2002, p. 7).
No período que se segue à Segunda Guerra Mundial e, especialmente
após a Declaração Universal dos Direitos Humanos na ONU, em 1948, outro
documento de grande importante na tutela dos direitos da pessoa humana foi
a Carta da OEA (subscrita em 1948, entra em vigor em 13-12-1951), que proclama, de modo genérico, o dever de respeito aos direitos humanos por parte
do Estado-membro da organização. Desdobra-se e amplia-se com o sistema
60
interamericano de proteção aos direitos humanos, que é composto por quatro
diplomas normativos principais: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem, a Carta da Organização dos Estados Americanos, a Convenção
Americana de Direitos Humanos e, finalmente, o Protocolo de San Salvador,
relativo aos direitos sociais e econômicos (RAMOS, 2001, p. 55).
Um verdadeiro plus a todos esses documentos, resultado dos grandes
avanços logrados, consoante Trindade (2003, p. 16) foi o reconhecimento do
direito de petição individual perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
previsto no art. 44 da Convenção, in verbis:
qualquer pessoa ou grupo de pessoas, entidades não governamentais legalmente reconhecidas em um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que
contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção
por Estado parte.
As condições de admissibilidade da petição encontram-se descritas na
Convenção Americana de Direitos Humanos, da seguinte forma: esgotamento de
recursos locais, ausência do decurso de prazo de seis meses para a representação,
ausência de litispendência internacional e ausência de coisa julgada internacional.
Após inúmeras resistências, finalmente, com a aprovação do Protocolo
n. 11, a Corte Européia, com sede em Estrasburgo, igualmente reconhece ao indivíduo acesso direto a um tribunal internacional (jus standi) como sujeito do Direito
Internacional dos Direitos Humanos (Protocolo n. 11, em vigor a partir de 1998).
O reconhecimento do locus standi in judicio às vítimas de violações
de Direitos Humanos pelos Estados constitui a verdadeira consagração e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e a sua condição de sujeito de
direitos na ordem internacional nos séculos XX e XXI.
Quando deu o seu voto no caso Castillo Petruzzi versus Peru, Cançado
Trindade ponderou:
[...] é pelo livre e pleno exercício do direito de petição individual
que os direitos consagrados na Convenção [Americana sobre Direitos Humanos] se tornam efetivos. O direito de petição abriga,
com efeito, a última esperança dos que não encontram justiça no
nível nacional. Não me omitiria nem hesitaria em acrescentar,permitindo-me a metáfora, que o direito de petição individual é
indubitavelmente a estrela mais luminosa no firmamento dos
direitos humanos (TRINDADE, 2003, p. 26).
61
Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
Outras iniciativas corajosas inspiradas na defesa dos direitos humanos vêm
se desenvolvendo no âmbito da jurisdição internacional. A mais recente foi a aprovação do Estatuto de Roma, em 17 de julho de 1998, que estabeleceu a criação do TPI
– Tribunal Penal Internacional, que passou a vigorar a partir de março de 2003.
O TPI nasceu cinqüenta anos após o famoso Tribunal de Nuremberg,
e como jurisdição penal permanente, veio responder a uma expectativa antiga
da comunidade internacional.
Os crimes sob a jurisdição do TPI, conforme seu art. 5o , inciso I,
são: a) crime de genocídio; b) os crimes contra a humanidade; c) os crimes
de guerra; d) o crime de agressão.
O Brasil ratificou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que
incorpora a característica de uma jurisdição penal complementar às jurisdições
penais nacionais, conforme disposto em sua exposição preambular.
3 DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO
No plano internacional, a temática dos direitos humanos, especialmente
após a Segunda Guerra Mundial, assume lugar de destaque e, seguramente,
teve força suficiente para refrear o ímpeto de abuso de poder e violações aos
direitos fundamentais no âmbito dos Estados.
A Declaração da ONU, aprovada em 10 de dezembro de 1948, é a pedra
angular de toda a legislação contemporânea em termos de direitos humanos.
Em seu Preâmbulo, seguido de 30 artigos, este documento revela postulados
sobre os quais devem erguer-se as legislações futuras, comungando de um
ideal comum, que é a primazia dos direitos fundamentais da pessoa humana.
O texto da Declaração foi apropriadamente estruturado para detalhar os direitos
fundamentais civis, culturais, econômicos, políticos e sociais, dos quais devem
desfrutar todas as pessoas em todos os países.
Para o Direito Internacional, a Declaração de 1948 é a matriz inspiradora
de toda a legislação subseqüente e, apropriadamente definida como a soft-law, a
partir da qual se desenvolveu a hard-law, especialmente dos dois grandes Pactos
de 1966: sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e sobre Direitos Civis e
Políticos (TRINDADE, 2003, p. 636), os quais foram precedidos pela Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial,
62
de 1965, em vigor a partir de 1966.
Seguem-se outros documentos da maior importância como: Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação da Mulher,
de 1979; Convenção contra a Tortura, de 1984; Convenção sobre os direitos
da Criança, de 1989 etc.
Destaca-se, entretanto, para Lafer (1988, p. 637), a Conferência de
Viena, de 1993, que representa, em matéria de direitos humanos, democracia e
paz, “o melhor de uma ilustrada lógica de globalização, pós-guerra fria, na qual
desapareceram a confrontação ideológica e a bipolaridade”.
Uma tendência que veio se formando na consciência universal e teve
seu amadurecimento na década de oitenta acabou por forçar o reconhecimento
de direitos humanos de terceira geração.
Este grupo de direitos diz respeito às reivindicações jurídicas dos desprivilegiados, grupos humanos como a família, o povo, a nação, coletividades
regionais ou étnicas e a própria humanidade (LAFER, 1988, p. 131).
Comparato (1998, p. 647) destaca que:
a Declaração de Viena de 1993 enfatizou o inter-relacionamento entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos, e introduziu
a noção de desenvolvimento sustentado, ao afirmar que o ‘direito
ao desenvolvimento deve ser realizado de modo a harmonizar o
desenvolvimento com as necessidades de preservação do meio
ambiente da atual e futuras gerações’ sublinhando que o despejo
ilícito de produtos tóxicos e perigosos constitui séria ameaça à
vida e à saúde das populações.
O saldo positivo desta importante Convenção inclui a resolução de
dificuldades conceituais, conforme assegura Piovesan (2002b, p. 81):
que sempre envolveram os direitos humanos, como a questão da
universalidade; da legitimidade do monitoramento internacional de
violações; a da inter-relação entre direitos humanos, o desenvolvimento e a democracia; a do desenvolvimento e a interdependência
de todos os direitos fundamentais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, apresenta-se bastante evidente uma grande evolução dos direitos humanos, no plano internacional, no período compreendido entre o final da
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Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
Segunda Guerra Mundial, a criação da ONU e a Declaração de 1948, evoluindo
até a I Conferência de Direitos Humanos, realizada em Teerã, em 1968, e, mais
recentemente, a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em 1993,
após a Guerra Fria, que reafirma a indivisibilidade dos direitos humanos.
Observe-se, ademais, a necessidade de ser levada em conta uma
questão presente na vida contemporânea do Estado-nação, que é o fenômeno
da Globalização assimétrica, a qual une e, ao mesmo tempo, fragmenta as
relações internacionais. No bojo deste fenômeno, crescem outros, que são
as instâncias de poder não estatais que gravitam em torno dos Estados, mas
se situam, mais das vezes, além do seu alcance de ação reguladora, quais
sejam: o terrorismo internacional, o narcotráfico, a volatilidade do sistema
financeiro mundial, cada vez mais interdependente por causa da tecnologia
e do comércio internacional, o nível de exigência dos órgãos de crédito como
o FMI e o Banco Mundial, entre outros.
Destaque-se, ainda, um fator de grande relevância que é a prevalência do poder econômico no domínio das empresas e não dos Estados
– das 100 maiores economias do mundo, 51 são empresas transnacionais
e 49 são Estados nacionais.
Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2001, refere-se à
necessidade do mundo desenvolvido fazer parte de uma reforma das instituições
internacionais que governam a globalização:
se formos abordar as preocupações legítimas daqueles que expressam descontentamento com a globalização, se formos fazer
com que a globalização funcione para bilhões de pessoas para as
quais não funcionou, se formos fazer com que a globalização com
uma faceta humana tenha sucesso, então nossas vozes deverão
ser levantadas (STIGLITZ, 2002, p. 303).
O desenvolvimento não é algo abstrato e o concerto das Nações Civilizadas baseado no Direito Internacional, nos fundamentos da democracia e no
respeito à dignidade da pessoa humana, mostrou-se ser a única fórmula capaz
de gerenciar a paz entre os povos da terra, na história moderna.
O resgate ético no plano das relações multilaterais, formulações baseadas em um núcleo irremovível de profundo conteúdo axiológico e o compromisso
com as origens culturais dos povos vêm se tornando um imperativo na ordem
64
internacional. Uma releitura da Carta das Nações Unidas, escrita em 1945, já
seria um bom começo.
Um dos maiores pensadores contemporâneos, Huntington (1996, p.
409), faz uma afirmação e, em seguida, uma pergunta: “de um modo geral, a
modernização melhorou o nível material de civilização em todo mundo. Mas será
que ela também melhorou as dimensões moral e cultural de Civilização?”
Concordamos com Lafer (1988, p. 200), quando conclui em sua obra
Comércio, Desarmamento e Direitos Humanos:
os direitos humanos, como valores fundamentais da convivência
coletiva, logicamente correlacionados, com a democracia no plano
interno e a paz no plano internacional, na lição de Norberto Bobbio,
podem ser considerados como um ‘adquirido axiológico’ de alcance
universal. Este ‘universal’, dadas as rupturas e descontinuidades
que caracterizam o processo histórico, é fugidio. Indica o melhor
caminho e aponta que o seu descumprimento leva, para recorrer
à metáfora de Bobbio sobre o papel da razão, a becos sem saída.
Vigiar a sua inexauribilidade é uma tarefa intelectual e política que
representa, no meu entender, um inarredável “dever ser” de conduta,
nas sempre incertas veredas do “Grande Sertão” do mundo.
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Revista Online FADIVALE - 2005
DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
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3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
67
4
Revista Online FADIVALE - 2005
TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL
TUTELA ANTECIPADA
NA EXECUÇÃO PENAL
Fabriny Neves Guimarães*
Resumo
Abstract
A falência do sistema prisional preocupa e é um
problema que assola a nossa sociedade diante do
enorme percentual de reincidência. É necessário
buscar alternativas para curar as feridas desse sistema de forma a conter a perniciosidade do descaso
do poder público. Por isso, buscamos no nosso ordenamento jurídico alternativas para salvar direitos
daqueles que, apesar de condenado, se encontram
vitimizados pelo sistema carcerário nacional.
The failure of the prison system worries and it is a
problem that devastates our society in front of the
enormous relapse percentile. It is necessary to seek
options to cure the wounds of this form of system to
contain the danger of the negligence of the public
power. Because of this, we seek in our alternative
juridical work to save the right of those who, in despite of convict, they are victimized by the national
prison system.
Palavras-chave
tutela antecipada; execução penal; direito público
subjetivo; réu.
Keywords
anticipated guardianship; penal execution;
subjective public right; defendant.
Sumário
1 INTRODUÇÃO. 2 O CARÁTER RESSOCIALIZADOR DA PENA. 3 A PENA E A LEI DE EXECUÇAO PENAL
BRASILEIRA. 4 OS BENEFÍCIOS DA LEP COMO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DO SENTENCIADO. 5 A TUTELA
ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL. 5.1 O ARTIGO 273 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 5.2 APLICAÇÃO
SUBSIDIÁRIA DO ART. 273 DO CPC À LEI DE EXECUÇÃO PENAL: ANALOGIA. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
* Professor da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. Membro do Núcleo de Criminologia e Execução Penal da FADIVALE. Advogado.
68
1 INTRODUÇÃO
Vivemos em um Estado Democrático de Direito onde a dignidade da
pessoa humana é princípio constitucional sensível. Ao lado disso, também se faz
necessário lembrar que estamos em um país subdesenvolvido, onde o EstadoAdministração é insuficiente, inoperante e omisso. Surge daí a necessidade de
buscar instrumentos para viabilizar o exercício de direitos e garantias constitucionais do cidadão. Esta tarefa não é difícil, quando se procuram no próprio direito
mecanismos que possam dar satisfação aos interesses individuais. No entanto,
são necessárias ousadia, perseverança e coragem, acreditando sempre que é
possível colocar o direito em favor do direito.
Com este pensamento e diante da cruenta realidade carcerária do nosso
país, verdadeira mazela estatal, afirmamos que medidas de eficácia imediata
introduzidas em determinado ramo do direito podem perfeitamente caminhar em
socorro a outros. Assim, defendemos a aplicação subsidiária na execução penal
do instituto da tutela antecipada, prevista no direito processual civil.
2 O CARÁTER RESSOCIALIZADOR DA PENA
No século XVIII, grande foi o movimento no sentido de se descobrir a
quem pertencia o direito de punir e qual seria a finalidade da pena. Neste contexto, aparece Cesare Beccaria, precursor da Escola Clássica Italiana, pugnando
pela humanização das penas, fazendo severas críticas ao sistema então vigente.
Sua obra “Dos delitos e das penas”, segundo relato dos historiadores, publicada
em 1764, tornou-se um marco fundamental para o direito penal universal. Com
pensamento jusnaturalista e contratualista, Beccaria revolucionou, insurgindo-se
contra penas infamantes impostas pelo Estado. A este pertence o jus puniendi,
mas a pena jamais deveria ser aplicada com ideal de vingança, exigindo respeito
aos direitos fundamentais do homem. Partiu da idéia de que a finalidade da pena é
de apenas se evitar que o criminoso cause novos males e que os demais cidadãos
o imitem, sendo tirânica toda punição que não se funde na absoluta necessidade
(FRAGOSO, 1993, p. 40). As inovações trazidas por Beccaria foram seguidas
pela Escola Clássica, atingindo seu ápice com Francesco Carrara, que procurou
realizar estudo científico do direito penal, pugnando pela pena retributiva.
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Revista Online FADIVALE - 2005
TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL
É evidente que todo pensamento teórico precede de uma análise
científica que lhe sirva de base. Assim, tais tendências humanitárias entraram
em crise pela ausência de um método científico de se analisar o crime (fato) e
sua resposta (pena), pois considerá-los como entidades jurídicas abstratas sem
qualquer consideração sobre o delinqüente foi por demais uma heresia.
Surge daí a Escola Positiva, que teve início na Itátlia com Cesare Lombroso, passando a analisar o crime como ação humana e, conseqüentemente,
considerando o criminoso como realidade social e biológica. Dentre seus fundadores destacou-se Enrico Ferri e Raffaele Garofalo.
Mas entendemos que a solução para o problema da pena em sua essência retributiva veio da Alemanha, paralela a todas as pesquisas realizadas
pelas escolas acima aludidas, em estudos realizados por Immanuel Kant seguido
pelo também filósofo Hegel. Galvão, analisando as duas doutrinas, afirma que o
segundo transformou em fundamento jurídico o fundamento ético do primeiro:
utilizando a idéia de valor e de método comparativo, percebeu que
o crime é uma ação humana motiva da por um querer, que deve ser
considerado como manifestação da racionalidade individual, e a pena
constitui a conseqüência jurídica do crime, de equivalente grandeza.
Entende que o critério de Talião, contudo, não dignifica o criminoso
como ser racional e não se apresenta capaz de estabelecer aproximação para a igualdade de grandezas (GALVÃO, 1999, p. 39).
Percebe-se assim que todo aquele movimento iniciado na Itália por
Beccaria encontrou sua fundamentação na doutrina alemã. Em síntese: o homem
é um ser racional, e, como tal, deve ser tratado. Com penas infames, tem-se o
homem como um animal desprovido da capacidade de entender e se arrepender
do fato praticado. Cria-se assim a necessidade de penas humanas capazes de
levar o criminoso a raciocinar sobre o delito perpetrado e se regenerar. Pensar
diferente seria refutar a nossa própria existência e a de um direito natural que, por
excelência, é eterno, imutável e universal, sendo o mesmo em todos os tempos,
desde o princípio, agora e sempre.
3 A PENA E A LEI DE EXECUÇAO PENAL BRASILEIRA
Em extrema obediência à essência do direito natural, o ordenamento jurídico brasileiro recebeu em 1984 a Lei Federal nº 7.210, instituindo a
70
Lei de Execução Penal (LEP), cujo artigo 1º dispõe que “a execução penal
tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado
e do internado” (grifo nosso).
Com tal finalidade, a lei prevê ao sentenciado assistência material, à
saúde, jurídica, educacional, social, religiosa, ao trabalho, bem como lhe exigindo
deveres, impondo-lhe direitos e benefícios.
Sem dúvidas, tal instituto é uma maravilha, uma verdadeira preciosidade do nosso ordenamento jurídico, embora seja cotidianamente arranhada com
veemência pela mídia, numa exposição empírico-persuasiva, um verdadeiro
sofisma contagiante que pode levar a um inconseqüente movimento social, exigindo de nossos representantes a elaboração de leis casuísticas, e podendo gerar
catástrofes jurídicas, a exemplo do que se deu com a lei 8.930/94, que erigiu o
homicídio qualificado e homicídio simples praticado em atividade típica de grupo
de extermínio à categoria de crime hediondo, estes rotulados na Lei 8.072/90.
É oportuno salientar que as mazelas não existem na Lei de Execução
Penal (LEP), tampouco em decorrência dela, e sim, por inércia do nosso Estado.
Não se vê casa de albergado, profissionais devidamente treinados para lidar
com os encarcerados, prisões com espaço físico suficiente, enfim: a nossa preciosidade jurídica, a pérola da esperança do condenado é arremessada em um
lamaçal fétido de omissões, indiferenças e desrespeito, numa manifesta ofensa
ao princípio da dignidade humana.
Quanto aos benefícios que levam paulatinamente o sentenciado ao
contato com a sociedade estão a forma progressiva do regime de cumprimento
de pena, saídas temporárias e livramento condicional.
Para tanto, estão tais benefícios vinculados ao cumprimento de requisitos de ordem objetiva e subjetiva. O primeiro se refere ao tempo de cumprimento
da pena imposta; já o outro, à conduta do condenado durante a execução. Nestes
dois requisitos, por mera ilação, constata-se que no objetivo é feito um cálculo
matemático, e, no subjetivo, é uma avaliação pessoal, ab initio, realizada pela
administração do estabelecimento prisional e, em segundo momento, por profissionais técnicos especializados.
Porém, cumpridos os requisitos de natureza objetiva e subjetiva, passase ao cumprimento dos requisitos formais. Inicia-se aqui, de forma lamentável,
71
Revista Online FADIVALE - 2005
TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL
uma batalha a ser enfrentada pelo sentenciado. Não basta a demonstração de
lapso temporal cumprido e informações da administração carcerária sobre o bom
comportamento do sentenciado. Em alguns destes benefícios, inicia-se um ritual
exigido pela LEP, que se demonstra moroso na manifestação de diversos órgãos
e autoridades chamados a intervir e, enquanto não se esgota, o sentenciado não
usufrui de seu direito. A demora chega a tanto que pode o sentenciado fazer jus
a outro benefício sem ter gozado o primeiro. Talvez isto venha explicar um pouco
as rebeliões constantes nos presídios.
4 OS BENEFÍCIOS DA LEP COMO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DO
SENTENCIADO
Direito subjetivo é entendido como a faculdade ou prerrogativa de
colocar o direito em defesa de seus interesses ou interesses de outrem.
Quando este direito é posto de forma a se exigir contra o Estado, ou seja,
o direito individual é um dever do Estado, temos o chamado direito público
subjetivo. Assim, os benefícios previstos na LEP são plenamente exigíveis
contra o Estado, dando-se com a demonstração do preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos do condenado.
Na realidade forense, ao que nos parece, os benefícios trazidos pela
LEP são interpretados como favores ao sentenciado. De certo que, quando se
fala em benefício, este pode ser sinônimo de favor. Porém, em seu aspecto jurídico-legal, esses benefícios não são simples favores, gentilezas que dependem
da boa, má ou nenhuma vontade de quem os analisa e/ou os concede, mas sim,
constituem direito público subjetivo do sentenciado.
Na prática, percebe-se que os requisitos formais se sobrepõem aos
outros dois, que, por si sós, constituem o aludido direito público subjetivo. O
formalismo exacerbado deixa para trás o essencial. O processo passa a um
amontoado de papéis mais importante que o direito da pessoa ali envolvida. Este
formalismo, fato gerador da morosidade na fruição do direito, quando associado
a outros, tais como falta de pessoal e de recursos, coloca em risco a segurança
jurídica, pois, se o direito público é plenamente exigível, também é prontamente
desfrutável. Deve-se exigir apenas que o Estado, caso não esteja pronto a satisfazer tal interesse, abstenha-se, para não reprimir sua fruição.
72
5 A TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL
5.1 O ARTIGO 273 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Com redação que lhe foi dada pela lei 8952/94, o artigo 273 do Código
de Processo Civil assim dispõe:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou
parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde
que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da
alegação e:
I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou
II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto
propósito protelatório do réu.
O dispositivo visa assegurar a efetividade do direito. Ressalte-se que
no inciso I, o legislador inteligentemente prevê a hipótese de dano irreparável, a
ser entendido como aquele em que, quando ocorrer o resultado final, dando-se
com o julgamento do pedido, tornar-se-á ineficaz por ter perdido o seu objeto.
Busca-se com os benefícios da LEP, de forma gradual, a reinserção
social do apenado na sociedade. O objeto do pedido em tais benefícios cingese à contemporaneidade, quando do cumprimento da pena. Não se tem como
conceder ao sentenciado benefício tal, após o cumprimento da pena. Assim, caso
não venha em tempo hábil, há o dano irreparável.
Ainda com arrimo no aludido dispositivo, é certo que depende da demonstração de outros requisitos no pedido: existência de prova inequívoca e
convencimento da verossimilhança.
Em sede de execução penal, a prova inequívoca a ser demonstrada cingese ao cumprimento do lapso temporal exigido (requisito objetivo), óbvio nos autos da
execução penal. Quanto ao comportamento durante a execução da pena (requisito
subjetivo), este também é facilmente perceptível pela informação da administração
do estabelecimento prisional, onde estiver custodiado o sentenciado.
Feita a prova inequívoca, passamos ao convencimento da verossimilhança, do latim verus similis (verus = verdade + similis = semelhante), a ser
entendido como semelhante à verdade. No caso em estudo, demonstrados
os requisitos de ordem objetiva e subjetiva, não se tem como semelhante à
verdade, mas a própria verdade.
73
Revista Online FADIVALE - 2005
TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL
Como já expendido anteriormente, entendidos como direito público subjetivo do réu os benefícios tratados na LEP, em que o Estado, caso não esgote
em tempo hábil o requisito formal previsto na Lei, deve, para não inviabilizar o
exercício desse direito pertencente ao sentenciado, abster-se, para facilitá-lo.
Todavia não há que se dispensar tal exigência, mas exigi-la em tempo oportuno.
Havendo impossibilidade, deve o juiz da execução penal antecipar a tutela, desde
que preenchidos os requisitos para sua concessão.
A teor do que dispões o § 2º do citado artigo, só não pode ser concedida a antecipação da tutela, quando houver irreversibilidade do provimento
antecipado, o que não se aplica aos casos em estudo. É oportuno salientar que
o juiz pode, a qualquer tempo, revogá-la ou modificá-la. Quando do cumprimento
do requisito formal exigido pela lei, caso fique constatado que o réu não tenha
aptidão para fruir daquele benefício, volta-se ao status quo ante, sem qualquer
prejuízo. Frise-se, o prejuízo, de forma imutável, só ocorre na impossibilidade do
sentenciado usufruir de seu benefício durante a execução da pena.
5.2 APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO ART. 273 DO CPC À LEI DE EXECUÇÃO
PENAL: ANALOGIA
Tecidas as considerações do tópico anterior, surge o questionamento
da possibilidade de aplicação subsidiária do art. 273 do CPC a LEP.
A Lei de introdução ao código de processo civil, aplicável a todos os
ramos do direito, assim dispõe:
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com
a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
É manifesta a omissão da LEP no que tange à antecipação dos efeitos
da tutela nos benefícios nela previstos.
Analogia é um princípio jurídico segundo o qual a lei estabelecida
para um determinado fato ao outro se aplica, embora não regulado, dada a
semelhança em relação ao primeiro.
A analogia é um procedimento de integração. Nos dizeres de Paulo
Nader (1992, p. 206):
a integração é um processo de preenchimento das lacunas existentes
74
na lei, por elementos que a própria legislação oferece ou por princípios jurídicos, mediante operação lógica e juízo de valor. A doutrina
distingue a auto-integração, que se opera pelo aproveitamento de
elementos do próprio ordenamento, da hetero-integração, que se faz
com aplicação de normas que não participam da legislação, com a
hipótese, por exemplo, do recurso às regras estrangeiras. A integração
se processa pela analogia e os princípios gerais do direito.
E continua:
se há divergências doutrinárias quanto às lacunas jurídicas, do ponto
de vista prático vigora o postulado da plenitude da ordem jurídica,
pelo qual o Direito Positivo é pleno de respostas e soluções para
todas as questões que surgem no meio social. Por mais inusitado
e imprevisível que seja o caso, desde que submetido à apreciação
judicial, deve ser julgado à luz do direito vigente.
Nesta linha, o Código de Processo Penal em seu art. 3º assim prescreve:
Art. 3º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e
aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais
de direito (grifo nosso).
Note-se que, ao se referir à interpretação extensiva e aplicação analógica, o Código dispôs sobre lei processual penal e não somente a ele próprio.
Quanto à LEP, é de se entender que, quanto ao direito, possui natureza
mista, de caráter formal e material. É de direito formal, por reunir atos judiciais
tendentes à aplicação do direito constituído, sendo este entendido como direito
material, a ser aplicado por aquele ao caso concreto. De sua natureza, é impossível não se imaginar que a LEP permita a analogia.
Ainda para ilustrar tal possibilidade, nos valemo-nos do art. 197 da tão
referida lei. Este dispositivo prevê o recurso cabível na execução penal, limitando-se
somente a dizer que “das decisões proferidas pelo juiz caberá recurso de agravo,
sem efeito suspensivo”. Quanto ao recurso, nada mais foi dito pela lei, tampouco
por lei posterior. Assim, o recurso existe, mas para ele não se delineou qualquer
procedimento, ficando ao intérprete a necessidade de fazê-lo. A questão se pôe assaz tormentosa. Alguns entendem subsidiariamente aplicáveis as regras do recurso
em sentido estrito previsto no Código de Processo Penal, com obediência ao art. 2º
da LEP. Já outros opinam pela aplicabilidade do agravo de instrumento do Código
de Processo Civil, sendo este o entendimento de Mirabete (1992, p. 458).
75
Revista Online FADIVALE - 2005
TUTELA ANTECIPADA NA EXECUÇÃO PENAL
Em ambos os sentidos já decidiram os tribunais:
STJ:
é da competência do Juízo das Execuções o julgamento de pedido de
progressão de regime prisional, sendo o recurso cabível da decisão o
agravo, sem efeito suspensivo (art. 194 e 197, Lei de Execução Penal,
com aplicação análoga dos art.s 522 a 529 do CPC) (RSTJ 23/105).
TARS:
negado por sentença pelo magistrado da execução penal o benefício
do livramento condicional, cabe o recurso de agravo. Inteligência do
art. 197 da Lei de Execução Penal. Enquanto não regulado pelo CPP
em elaboração, aplicam-se, analogicamente, ao mencionado agravo,
as regras do CPC do agravo de instrumento (JTAERGS 59/34).
TJRS:
Como o agravo de execução não foi disciplinado pela nova Lei de
Execução Penal, a jurisprudência, por analogia, tem adotado o
mesmo procedimento do recurso em sentido estrito, por ser este,
sob muitos aspectos, mais favorável ao condenado em face do
juízo de retratação (RT 631/303).
Contudo, não está em discussão qual entendimento seria o mais acertado. As linhas acima transcritas servem somente para demonstrar a possibilidade
de suplementar a LEP através de analogia, valendo-se tanto da lei adjetiva penal
como da lei adjetiva civil e, sendo admissível em relação a esta última, conseqüentemente, mostra-se possível a aplicação da tutela antecipada prevista no
artigo 273 do Código de Processo Civil.
Entende-se assim que a deficiência estatal jamais poderá ser capaz de
tolher os direitos e garantias individuais postos em favor do condenado, haja vista
que ao julgador é possível suplementar a lei de execuções penais com institutos
de eficácia imediata nela não previstos.
6 CONCLUSÃO
Pelas considerações acima expostas, fica patentemente demonstrado
que a aplicação da tutela antecipada em fase de execução penal somente depende do entendimento do julgador em atender o direito público subjetivo do réu ao
76
invés de se prender ao formalismo legal não atendido pelo Estado, emperrando
assim a fruição dos direitos do sentenciado.
Quanto ao formalismo legal, nosso ordenamento jurídico deu satisfatório avanço quando da edição da lei 10.7992, de 1º de dezembro de 2003, a
qual dispensa o parecer da Comissão Técnica de Classificação e do Conselho
Penitenciário em casos de progressão de regime e livramento condicional, respectivamente, vinculando tais benefícios somente ao parecer do Ministério Público
e do defensor do sentenciado. Dessa alteração flui o exame de consciência do
legislador, reconhecendo a ineficiência estatal. Contudo, ainda é possível a tutela
antecipada, quando o julgador, no caso, o juiz da execução, poderá concedê-la
sem aquele formalismo que ainda se prevê na novel lei e em outros benefícios
que exigem um enorme ritual ainda é exigido. E, com certeza, tendo seus pleitos
atendidos em tempo oportuno, a população carcerária não terá a necessidade
de chamar atenção das autoridades através de fugas e motins.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei no. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.
Código penal, código de processo penal, Constituição Federal. Organizado
por Anne Joyce Angher. 3.ed. São Paulo: Rideel, 2003.
______. Lei no. 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos,
nos termos do artigo 5o, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras
providências. Código penal, código de processo penal, Constituição Federal.
Organizado por Anne Joyce Angher. 3.ed. São Paulo: Rideel, 2003.
______. Lei no 8.930, de 06 de setembro de 1994. Dá nova redação ao art. 1º
da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos,
nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras
providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legbras>. Acesso em:
20 mar. 2004.
______. Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003.Altera a Lei nº 7.210, de 11 de
junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro
de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/legbras>. Acesso em: 20 mar. 2004.
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Revista Online FADIVALE - 2005
______. Decreto-Lei nº 3689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo
Penal. Código de processo penal. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva
com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos
Santos Windt e Luiz Eduardo Alves Siqueira. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
______. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Código
de processo civil. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração
de Antônio Luiz de Toledo Pinto e Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt. 13. ed.
São Paulo: Saraiva, 1998.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 14. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1993.
GALVÃO, Fernando; GRECO, Rogério. Estrutura jurídica do crime. Belo Horizonte: Mandamentus, 1999.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal: comentários à lei 7.210, de 11 de
julho de 1984. 5. ed. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 1992.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
78
79
5
Revista Online FADIVALE - 2005
PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU
CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA
PENAL E O FATO DESCRITO NA
DENÚNCIA OU QUEIXA
José Maurício Cantarino Villlela*
Resumo
Abstract
O presente artigo tem por finalidade dar ênfase à
importância do momento em que o julgador examina
os fatos delituosos descritos na petição inicial penal
e a sua equivocada classificação, e bem assim à
verificação diante do caderno probatório produzido,
de circunstância elementar não declarada explícita
ou implicitamente na peça inaugural. A partir deste
estudo, buscou-se conectar a atividade do Magistrado
sobre as situações jurídicas processuais mencionadas
como forma de assegurar o princípio constitucional
da amplitude de defesa e do contraditório, bem como
do próprio sistema acusatório.
The present article has the purpose of giving emphasis
to the importance of the moment in which the judge
examines the delict facts described in the penal initial
petition and its mistaken classification, and the verification in front of the produced probatory notebook,
of not declared explicit elementary circumstance or
implicitly in the inaugural piece. From this study
on, it sought to connect magistrate’s activity on the
processual mentioned juridical situations as form of
assuring the constitutional principle of the defense
amplitude and of the contradictory, as well as of the
accusatory system.
Palavras-chave
princípio; congruência; defesa; contraditório;
sentença penal.
Keywords
principle; congruity; defense; contradictory;
penal sentence.
Sumário
INTRODUÇÃO. 1 IMPUTAÇÃO E SENTENÇA PENAL. 1.1 SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA E O CÓDIGO
PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO. 2 AMPLITUDE DO DIREITO À DEFESA. 3 CORREÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO
LEGAL CONTIDA NA DENÚNCIA OU QUEIXA. 3.1 CORREÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO LEGAL PROCEDIDA
PELOS TRIBUNAIS. 4 CIRCUNSTÂNCIA ELEMENTAR NÃO DECLARADA EXPLICITA OU IMPLICITAMENTE
NA PEÇA INICIAL. 4.1 EMENDATIO LIBELLI SEM ADITAMENTO. 4.2 EMENDATIO LIBELLI COM ADITAMENTO.
5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
* Professor da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE). Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais.
80
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo enfocar as diretrizes que o Juiz deve
adotar, em face dos fatos delituosos narrados na petição inicial penal e sua errônea
capitulação, bem como em relação à presença nos autos de prova de circunstância
elementar, não declarada explícita ou implicitamente na peça inaugural.
Tais aspectos são observados tendo como finalidade conformá-los aos
princípios constitucionais da amplitude do direito de defesa e do contraditório.
Os institutos apresentados serão analisados, individualmente, em que
serão apontadas as respectivas peculiaridades, características e vantagens.
Para tal desiderato, ingressaremos em aspectos processuais atinentes à
matéria e suas respectivas conseqüências, confrontando-os com o ordenamento
constitucional e infraconstitucional vigente no Brasil.
Por derradeiro, haveremos de enunciar as conclusões sobre os temas
examinados, enfatizando a necessidade do Magistrado, por ocasião da prolação da sentença penal, efetuar um melhor exame sobre os fatos noticiados e
as provas produzidas durante o desenvolvimento da relação processual, como
forma de assegurar a amplitude do direito à defesa, o contraditório e o princípio
da correlação entre a sentença e os fatos narrados.
1 IMPUTAÇÃO E SENTENÇA PENAL
O objeto da persecução penal, da ação penal, pública ou privada e,
por conseqüência, do judicium, é a imputação, esta possui como elemento
essencial a descrição do fato delituoso, pois apenas se imputa a alguém
aquilo que está descrito.
Com efeito, imputar é atribuir a alguém a prática de um fato delituoso.
Assim, podemos afirmar que tanto a notícia do crime como a acusação
contêm uma definição penal provisória dos fatos, correspondendo ao enquadramento desses fatos na descrição típica contida em norma penal incriminadora.
Destarte, como nos ensina Marques (1997, p. 223) “a sentença condenatória nada mais é que a imputação certa e provada como prius e fundamento
das sanções jurídicos-penais” .
A sentença proferida em sede penal também deve ser clara e precisa,
81
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PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
devendo-se evitar ambigüidades e incertezas, bem como conter-se nos limites
da pretensão estatal, não podendo dar o que não foi pedido, nem mais do que
se pediu, nem tampouco deixar de decidir sobre parte do pedido.
1.1 SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA E O CÓDIGO PROCESSUAL PENAL
BRASILEIRO
Na exposição de motivos que acompanha o atual Código de Processo
Penal, ao se falar em sentença, o então Ministro Francisco Campos registra que
o vigente Diploma Processual repudia a proibição de sentença condenatória ultra
petitum ou condenação in pejus.
Verifica-se que o atual sistema prestigia, com maior ênfase, o interesse
geral e a defesa social, permitindo a punição maior, quando, no desenvolvimento
da relação processual, contata-se ser mais grave a infração penal praticada do
que aquela descrita na petição inicial penal.
No sistema processual penal anterior, permitia-se apenas que, colhida
a prova, por ocasião da sentença, fosse procedida a desclassificação da infração
penal que melhorasse ou mantivesse a situação do denunciado.
Contudo, havia a proibição quando a desclassificação fosse exasperar a
situação do denunciado, o que acabava acarretando a improcedência da pretensão punitiva estatal ou o decreto de nulidade do processo e, por conseqüência,
gerando situações de impunidade.
A respeito do tema, vale lembrar os ensinamentos do mestre Espínola
Filho (1980, p. 80):
no regime anterior, a desclassificação, para melhorar a situação do
réu, como no último exemplo, e noutros do mesmo jaez, era freqüente,
sendo admitida, e não raro efetivada, a que em nada alterava a punição ( desclassificação de estupro, para defloramento, e vice-versa,
no gráu mínimo a pena ).
Repelida, porém, quando exasperava a situação do acusado, que via
não raro, beneficiado, espetacularmente, porque o seu crime era mais
grave que o capitulado na denúncia, mas não o aí definido; e,, muita
vez, essa estranha situação importava no monstruoso resultado da
impunidade, por não ser possível o oferecimento de nova denúncia.
Hoje, o sistema, felizmente é outro. O interesse público, a defesa
social não são mais sacrificados, justamente quando se verifica ser
mais séria a infração cometida, digna a punição mais rigorosa do
que, a-princípio, parecia.
82
Sem embargo da orientação supracitada, percebemos que há posicionamentos doutrinários que divergem de tal orientação, sustentando que o atual
Código de Processo Penal não repudiou a proibição de sentença condenatória
ultra petitum, mas manteve-o, tanto que determinou que se adotassem determinadas providências ( artigo 384 e parágrafo ), sendo que, o que foi repudiado é
a proibição do princípio da livre dicção do direito.
Na mesma linha de pensamento, lição do Professor Fernando da
Costa Tourinho:
as hipóteses previstas nos arts. 383 e 384, caput, do CPP não são,
a rigor, de condenação in pejus e, sim, como diz Frederico Marques,
de consagração do princípio da jura novit curia ( cf. elementos, cit., p.
192 ), não tendo, assim, razão o Min. Francisco Campos, ao salientar,
na Exposição de Motivos que acompanha o CPP, que este repudia a
proibição da sentença condenatória ultra petitum ou “condenação in pejus”. O que o Código repudiou foi a proibição do princípio da livre dicção
do direito objetivo ( jura novit curia ) em toda e qualquer hipótese. Sim,
antes do atual Código de Processo, como o Promotor não podia retificar
a classificação feita na denúncia para impor ao réu sanção mais grave,
então, o Juiz era obrigado a julgar nulo o processo ou improcedente a
ação penal, conforme o caso. E o Promotor deveria apresentar nova
denúncia, se ainda não estivesse extinta a punibilidade pela prescrição
ou outra qualquer causa (TOURINHO, 1990, p. 54).
Na verdade, em harmonia com o princípio da correlação, encontramos consagrado, no Processo Penal Brasileiro, o princípio jura novit curia,
em outras palavras, o princípio da livre dicção do direito – o juiz conhece o
direito- encontrando-se inserido na regra do narra mihi factum dabo tibi jus (
narra-me o fato e te darei o direito ).
2 AMPLITUDE DO DIREITO À DEFESA
Destarte, resulta dos princípios enunciados acima que o réu deve se defender dos fatos narrados e individualizados e não da capitulação contida na peça
inicial penal (denúncia ou queixa). Como bem disse Tornaghi (1981, p. 176): “não
cabe ao acusador proclamar em que dispositivo legal o réu incidiu; isso é matéria
de julgamento e, portanto, é ao juiz que compete enquadrar o fato na lei.”
A importância da correspondência que deve existir entre a sentença e
o fato descrito pela acusação representa a própria garantia dos princípios cons83
Revista Online FADIVALE - 2005
PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
titucionais da amplitude de defesa e do contraditório a que tem direito o réu.
Os princípios supracitados conferem ao denunciado a segurança de que
não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de se defender dos
fatos narrados na inicial; do contrário, o julgamento é nulo, por violar o direito de
defesa e por corresponder à verdadeira condenação sem denúncia.
Na verdade, estaríamos violando o próprio sistema acusatório, que
tem como característica principal o fato de que ninguém pode ser levado a
juízo sem uma acusação.
Na legislação processual penal pátria, cuidam da matéria os artigos 383,
384 caput e parágrafo único e 385, todos do Código de Processo Penal Brasileiro.
3 CORREÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO LEGAL CONTIDA NA DENÚNCIA OU
QUEIXA
O art. 383 dispõe que: “o juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa
da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que em conseqüência, tenha
de aplicar pena mais grave.”
É importante observar que o aludido dispositivo encontra correspondente
na Legislação Processual Penal Italiana (Codice de Procedura Penale da Itália)
de 1930, em seu art. 477, senão vejamos:
na sentença o juiz pode dar ao fato definição jurídica diversa da
enunciada, na denúncia ou no decreto de citação, e impor a pena
correspondente, ainda que mais grave, bem como aplicar medida
de segurança, desde que a competência para conhecer do crime
não seja de juiz superior ou especial.
Pelo que se vê, o mencionado art. 383 consagra o que a doutrina chama
de emendatio libelli, isto é, a mera correção da equivocada capitulação contida
na denúncia ou queixa, sem alterar a situação fática.
Esta regra nos leva a compreender que, em ambas as fases da persecução penal, as adequações típicas, realizadas pela Autoridade Policial e
pelo Promotor de Justiça, terão sempre características de provisoriedade, pois
é o juiz que, por ocasião da sentença, dará ao fato imputado a qualificação
jurídica correta, estabilizando o seu enquadramento legal, com o trânsito e
julgado da sentença penal.
84
Segundo o professor Marques (1997, p. 224): “na notícia do crime há
uma imputação possível, que se transforma em provável quando da acusação,
e que se torna certa, ao ser proferida a sentença condenatória.”
Portanto, podemos afirmar que, desde que os fatos estejam perfeitamente descritos na petição inicial penal, a capitulação errônea do crime
feita pelo órgão do Ministério Público não obstaculiza o juiz. Este, apoiado
no artigo 383 da Lei Processual Penal, proferirá sua decisão, emendando a
errônea capitulação, declarando qual o direito aplicável ao caso concreto,
sem se falar em surpresa para a defesa.
Desta situação podemos extrair três hipóteses: a) a pena não se altera;
b)modifica-se a pena para melhor; c) modifica-se a pena para pior.
Na primeira hipótese, o Promotor de Justiça, de forma expressa, descreve um fato, que se amolda ao art. 168, caput do CP, todavia classifica o evento
invocando o artigo 155, “caput” do mesmo estatuto.
Nesse caso, demonstrado que o fato imputado foi o verdadeiro, o juiz
pode dar-lhe na sentença, a definição de apropriação indébita, pelo que a pena
não se altera, pois tanto o delito de furto simples como o de apropriação indébita
possuem penas abstratamente iguais.
Na segunda hipótese, o Promotor de Justiça, de forma expressa, descreve um fato, que se enquadra ao art. 155, caput do CP, mas classifica o delito
como roubo. Nada obsta que o juiz faça uso do artigo 383 do Código de Processo
Penal, desclassificando o delito e condenando o réu nas penas do art. 155, caput
da Lei Penal Brasileira, acarretando a aplicação de pena mais leve.
No último caso, o Promotor de Justiça descreve o evento que se amolda
ao crime de roubo, mas o classifica como furto simples.
Da mesma forma, o juiz, ao proferir a sentença, poderá proceder a corrigenda na classificação, condenando o acusado nas penas do crime de roubo,
ainda que resulte em exasperação das penas.
Observa-se que as circunstâncias assinaladas são de simples
corrigenda da peça inicial (emendatio), sem que tenha havido inovação em
relação aos fatos imputados.
Nunca é demais repisar que a regra contida no dispositivo supracitado
também se aplica à ação penal privada, em qualquer de suas modalidades,
tendo em vista a própria leitura do artigo 383, onde se faz menção de aplica85
Revista Online FADIVALE - 2005
PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
bilidade no caso de queixa.
3.1 CORREÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO LEGAL PROCEDIDA PELOS TRIBUNAIS
Ressalte-se que a mera corrigenda da capitulação contida na denúncia
ou queixa pode ser realizada em segundo grau de jurisdição, conforme disposto
no art. 617 do Código de Processo Penal, não podendo, porém, ser agravada
a situação do réu no que tange a sua pena (quantidade, qualidade e espécie),
quando haja recurso exclusivo da defesa.
Cabe salientar que a permissão contida no art. 617 da Lei Processual Penal no que pertine a emendatio libelli, não se estende às hipóteses
do artigo 384 e parágrafo único do mesmo Diploma Legal, o que se deduz
da própria leitura do assinalado dispositivo e da súmula 453 do Supremo
Tribunal Federal:
não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do
Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica
do fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida
explícita ou implicitamente na denúncia.
A proibição da reformatio in pejus deve ser observada também, quando eventual nulidade ocorrida no processo não for argüida pela acusação em
recurso interposto, não podendo ser reconhecida pelo Tribunal, quando o seu
reconhecimento possa prejudicar o réu.
O tema enfocado já se encontra sumulado, Súmula 160 do STF: “é nula
a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso
da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.”
E, por fim, é vedada a chamada reformatio in pejus indireta, isto é,
quando uma sentença for anulada em virtude de recurso interposto somente
pela defesa, não se permitindo que, por ocasião do novo julgamento, a situação
do réu venha a ser agravada, não abrangendo a soberania do Júri, mas o seu
presidente continua impedido de aumentar a pena.
Tal orientação não deve prevalecer, se o decreto de nulidade ocorrer
em virtude de incompetência absoluta, quando, então, o Juíz competente terá
plena liberdade na dosimetria da pena.
86
4 CIRCUNSTÂNCIA ELEMENTAR NÃO DECLARADA EXPLICITA OU IMPLICITAMENTE NA PEÇA INICIAL
Na abordagem desenvolvida acima, percebe-se como elemento principal
e identificador da emendatio libelli, o fato de que, após a apreciação das provas,
não surge nenhuma elementar nova, isto é, inexiste alteração da situação fática,
apenas o juiz entende que deve adotar uma definição jurídica diversa da contida
na denúncia ou queixa, sem sair dos limites da imputação.
Contudo, outra situação ocorre, quando, colhida a prova, o juiz constata
a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em virtude de prova existente
nos autos de circunstância elementar, não declarada explicitamente na peça
inicial, ou nem mesmo ali subentendidas.
Desta situação podem surgir três hipóteses:
A primeira diz respeito ao aspecto de que a nova circunstância elementar
não irá alterar a pena.
A segunda, a nova circunstância elementar irá diminuir a pena.
A terceira, a circunstância elementar irá acarretar a imposição de pena
mais grave.
Como circunstância elementar, expressão utilizada pelo Código, devemos entender como significando os elementos essenciais, que integram o
tipo penal fundamental ou básico, bem como as circunstâncias especiais ou
específicas, que se agregam ao tipo penal básico (qualificadoras, causas de
aumento e diminuição de pena).
As agravantes e atenuantes ficam afastadas do âmbito de incidência
da aludida expressão, uma vez que podem ser conhecidas pelo juiz, ainda que
não alegadas, consoante o disposto no 385 do Código de Processo Penal.
Quando, no entanto, as circunstâncias genéricas agravantes e atenuantes integrarem o próprio tipo penal fundamental ou qualificador ou crimes privilegiados, não se aplica a regra do artigo 385 do Código de Processo Penal.
O Diploma Processual Penal Brasileiro disciplina o procedimento a ser
observado pelo magistrado, quando do surgimento do fato novo, que não estava
contido de forma expressa ou implícita na petição inicial penal, sendo as duas
primeiras hipóteses tratadas pelo artigo 384, caput, e, a última, pelo parágrafo
único do mesmo dispositivo legal. Senão vejamos:
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PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
art. 384 - se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição
jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de
circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na
denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa,
no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser
ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único – se houver possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de
circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente,
na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a
defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser produza prova,
podendo ser ouvidas até três testemunhas.
4.1 EMENDATIO LIBELLI SEM ADITAMENTO
A providência contida no caput do art. 384 do Estatuto Processual
Penal será efetivada, quando o juiz, em virtude de prova existente nos autos
de circunstância elementar, não contida explícita ou implicitamente na denúncia, verifique a possibilidade de nova definição jurídica, de molde a minorar
ou permanecer inalterada a pena.
Neste caso, a nova elementar modifica o fato para outro de igual ou de
menor gravidade, não havendo exigência de aditamento da peça inicial, devendo
o juiz baixar os autos a cartório para que a defesa, no prazo de 08 (oito) dias,
se manifeste acerca da nova situação surgida nos autos e, se quiser, produza
prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas.
Cumpre observar que o procedimento adotado pelo Código visa
resguardar o direito de defesa do acusado ou querelado, que se acha tutelado por via constitucional, posto que, surgindo fato novo, é necessário que
sobre ele se manifeste a defesa.
Sustentam que a regra contida no art. 384, caput da Processual Penal
Pátria, autoriza que o juiz amplie o âmbito de imputação com o surgimento de novas
circunstâncias elementares, desde de que estas não agravem a situação do réu.
O pronunciamento jurisdicional consistente na determinação da
baixa do processo deve ocorrer de maneira singela e sem qualquer tipo de
aprofundamento e avaliação prévia, preocupando-se apenas em apontar a
circunstância elementar, que surgiu durante a instrução do processo. Podese, ainda, alterar a definição jurídica do fato, sendo que do referido despacho
não cabe qualquer recurso.
88
Segundo o professor Espínola Filho (1980, p. 102-103), referindo-se ao
pronunciamento do juiz na hipótese supracitada, afirma que:
bastante será que o juiz, justificando, previamente, a possibilidade da
alteração, em têrmos, é óbvio, que não traduzam um prejulgamento
irremediável, baixe o processo, a fim de que a defesa, no prazo de
oito dias, fale e, se quiser, produza prova.
A doutrina assevera que a regra contida no caput do art. 384, também
se aplica aos crimes de ação penal privada; em outras palavras, se durante a
instrução do processo, surgir prova de circunstância elementar, não descrita
explicita ou implicitamente na queixa, que modifique o crime para outro de igual
ou menor gravidade, o juiz baixará o processo à defesa para as providências
mencionadas no aludido dispositivo.
Na hipótese de mutatio libelli sem aditamento, caso a nova infração
penal não mantiver nenhuma relação de conexão ou continência com aquela da
qual o réu ou querelado se defendeu, deve o juiz adotar o disposto no artigo 40
da Lei Processual Penal Brasileira.
De outro lado, se a nova infração penal guardar relação de conexão
ou continência com a anteriormente classificada, nada obsta que, apesar
da ausência de obrigatoriedade legal, seja feito o aditamento espontâneo
pelo órgão do Ministério Público, recomeçando todo o procedimento com
relação a essa infração penal.
No caso do aditamento espontâneo, não há interrupção do prazo prescricional, de modo que, dependendo da hipótese, convém que se aplique, por
analogia, o disposto no artigo 80 do Código de Processo Penal.
Cumpre registrar algumas circunstâncias que possam advir do não atendimento ao procedimento previsto no art. 384, caput, do Código de Processo Penal.
Vejamos:
Caso o Órgão do Ministério Público, por ocasião das alegações finais,
manifeste-se no sentido de que se dê nova qualificação jurídica ao fato, o que
é atendido pelo Juiz ao proferir a sentença, deixando, porém de adotar as providências assinaladas no art. 384, caput do Estatuto Processo Penal, a referida
sentença é nula, posto que viola o direito de defesa do réu.
A.1 – Diante de tal circunstância, o réu poderá interpor recurso, com o
intuito de argüir a nulidade ou requerer sua absolvição.
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PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
Havendo a sustentação da primeira tese e o respectivo acolhimento pelo
Tribunal, este cassará a sentença, determinando que outra seja proferida, antes
que o Juiz observe a prescrição contida no art. 384, caput do Código.
No caso da defesa recorrer, pedindo a absolvição do acusado e o
Tribunal reconhecer que as circunstâncias elementares da nova figura típica
não se encontram implícita ou explicitamente descritas na denúncia, ainda
que esteja certo que a infração penal praticada tenha sido aquela narrada
na petição inicial penal, ou pela qual o denunciado foi condenado, não terá
outra saída, senão, absolvê-lo.
Isso porque, segundo se infere da leitura do art. 617 do Código de
Processo Penal e nos termos da Súmula 453 do Supremo Tribunal Federal,
não se aplica a 2° instância o disposto no art. 384 e parágrafo único do Código
de Processo de Penal.
B – Na hipótese de interposição de recurso apenas pela acusação,
em que seja suscitada a tese da nulidade, esta poderá ser admitida pelo órgão
“ad quem”, instante em que cassará a sentença e determinará o retorno dos
autos ao órgão jurisdicional de primeiro grau, a fim de que, após o cumprimento
das exigências contidas 384 do Estatuto Processual Penal, nova sentença seja
proferida.
B.1 – Caso o Órgão do Ministério Público, por ocasião das alegações
finais, requeira ao Juiz uma nova qualificação ao fato, visando a uma condenação
por crime menor ou igual, em face de circunstância elementar não contida expressa
ou implicitamente na peça de ingresso, conseqüências diversas podem ocorrer.
A primeira, se o Juiz indefere o requerimento Ministerial, proferindo sentença absolutória, sem atender as determinações do art. 384, caput, do Código de
Processo, ainda que haja recurso de apelação por parte da acusação, no sentido de
que o réu seja condenado pelo crime diverso da denúncia e, mesmo que o Tribunal
reconheça tal situação, não poderá dar provimento ao apelo, posto que, conforme
já dito, não se aplica na segunda instância as providências do art. 384.
Com efeito, a ocorrência deste aspecto processual poderá acarretar
situação de impunidade, gerando risco para segurança e interesse público, mas
que pode ser evitado, se, em momento anterior à prolação da sentença, o Ministério Público apresente aditamento voluntário, uma vez que não há vedação
em nossa Legislação Processual para a aludida providência.
90
Nesse caso, sendo o aditamento voluntário rejeitado pelo juiz, poderá
ser interposto Recurso em sentido estrito, com fundamento no art. 581, inciso I,
do Estatuto Processual Penal, viabilizando ao Tribunal o reexame da matéria.
A segunda diz respeito ao fato de que, se o julgador não se manifestou
sobre a tese da acusação articulada, quando do oferecimento das alegações
finais, proferindo sentença absolutória e, em conseqüência, havendo recurso do
Ministério Público, suscitando cerceamento de defesa, o Tribunal poderá anular
a sentença, no intuito de que a tese levantada pelo órgão de acusação seja
apreciada pelo órgão jurisdicional de primeira grau.
Na verdade, alguns doutrinadores sustentam que, na ação penal pública,
é admitido que o Ministério Público adite a denúncia antes da sentença, ainda
que modifique o crime para outro de igual ou de menor gravidade, sobretudo
porque não haveria prejuízo para a situação do réu.
Pela leitura do art. 384, caput do Código, conclui-se que a providência descrita no aludido dispositivo também se aplica às ações penais
exclusivamente privadas.
4.2 EMENDATIO LIBELLI COM ADITAMENTO
Por outro lado, se durante a instrução processual, houver possibilidade de uma nova definição jurídica, que importe aplicação de pena mais grave,
em razão do surgimento de circunstância elementar não contida explicita ou
implicitamente na denúncia, o MM. Juiz deve observar as diretrizes do art. 384,
parágrafo único do Estatuto Processual Penal Brasileiro.
Por conseguinte, o órgão jurisdicional de primeiro grau deverá baixar
o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia, se, em
virtude desta, houver sido instaurado o processo em crime de ação pública,
abrindo-se, em seguida, o prazo de três dias à defesa, a qual poderá oferecer
prova, arrolando até três testemunhas.
No caso de ação penal exclusivamente privada, o Ministério Público
não poderá aditar a queixa para acrescentar fato na mencionada ação penal,
podendo fazê-lo somente em relação à queixa subsidiária, pois, embora tenha
sido iniciada pela vítima, em face da inércia do Ministério Público, não se transformou em privada, permanecendo a sua natureza pública.
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PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
Em se tratando de crime de ação penal de iniciativa privada, havendo
interesse por parte do querelante, no sentido de aditar a queixa, poderá fazê-lo,
desde que não tenha ocorrido a decadência ou perempção.
A despeito de tal afirmativa, há corrente doutrinária e jurisprudêncial
que não admite tal possibilidade, alegando que o dispositivo processual penal
foi claro no sentido de excluir a possibilidade do aditamento na ação penal
de iniciativa privada.
Da mesma forma que o caput do art. 384, no momento em que o Juiz
determinar a baixa dos autos para o aditamento, deve-se manifestar de forma
a não antecipar o seu julgamento, mas deverá indicar em quais circunstâncias,
em virtude das provas colhidas, pode-se alterar a classificação legal.
O despacho do Juiz, determinando a baixa dos autos a cartório, tanto
para as providências do caput como do parágrafo único do art. 384 do Código
de Processo Penal, encerra um juízo de mera possibilidade, pois, quando da
sentença, com ou sem as novas provas, o Julgador pode entender que o fato
apurado nos autos se enquadra mais à primitiva capitulação.
Na hipótese do Ministério Público recusar o aditamento, afirmam que, por analogia, o Juiz pode aplicar a regra contida no art. 28 do Código de Processo Penal.
Cabe salientar que, se o Juiz condenar o réu em crime mais grave,
sem que se observem as exigências do parágrafo único do art. 384 do Código,
algumas situações podem ocorrer.
A primeira refere-se ao fato de que o Ministério Público pode recorrer pedindo a condenação do réu nos termos da denúncia, sem suscitar qualquer nulidade.
Neste caso, entendendo o Tribunal que o delito cometido foi aquele
narrado na peça inicial, poderá dar provimento ao recurso.
Entretanto, se o Tribunal entender que a infração penal praticada foi
aquela considerada na sentença, poderá apenas absolver o acusado, uma vez
que é vedado o reconhecimento da nulidade não argüida no recurso da acusação
e, nem se admite a aplicação do parágrafo único do artigo 384 do Código no
segundo grau de jurisdição.
A segunda situação diz respeito ao aspecto em que, havendo recurso
da acusação ou da defesa, no sentido de argüir a nulidade, o tribunal poderá
reconhecê-la, cassando a sentença, para que outra seja proferida, depois de
atendidas as formalidades do parágrafo único do dispositivo já assinalado.
92
Cumpre observar que, antes do Juiz adotar qualquer das providências
já assinaladas, deve verificar se o fato descrito na denúncia corresponde à classificação a ele dada pelo autor.
Caso a definição legal apresentada pelo Ministério Público esteja incorreta, o Magistrado deverá corrigi-la, como preceitua o disposto no artigo 383 do
Estatuto Processual Penal Brasileiro, para, a seguir, avaliar se a nova classificação
do crime, decorrente da prova colhida, transforma-o em mais grave, ou de igual
ou de menor gravidade, aplicando conforme a hipótese, o caput ou o parágrafo
único do art. 384 do Código.
A respeito, lição do Professor Weber Martins Batista:
assim, antes de tomar qualquer das providências mencionadas,
deve o juiz verificar se a classificação do fato está correta. Se não
estiver, deve corrigi-la, como o estabelece o art. 383, já mencionado.
A seguir, verificará se a nova classificação, decorrente da prova
nova, torna-o mais grave, ou de igual ou de menor gravidade, e
aplicará, conforme a hipótese, o caput ou o parágrafo único do art.
384 ( BATISTA, 1996, p. 169 ).
5 CONCLUSÃO
O tema analisado é um dos mais tormentosos no Processo Penal
Brasileiro, constituindo-se com freqüência em causa de nulidade processual e
situações de impunidade.
É de fundamental importância que o Magistrado, quando da análise dos
requisitos da denúncia ou queixa, bem como do exame sobre as provas produzidas,
não se distancie dos fatos narrados na petição inicial penal, posto que são efetivamente os fatos imputados ao réu, que traçarão os limites da res judicanda.
Conforme enunciado, a sentença não pode ultrapassar os lindes da
acusação, pois o juiz só pode condenar o réu pelo fato a ele imputado, sendo
que o fato a ele atribuído é efetivamente aquele que está descrito na inicial, ainda
que não corresponda à qualificação legal atribuída pela acusação.
À vista do que já se fez ressaltado por inúmeras vezes nos itens anteriormente arrazoados, é imperativo que haja correspondência entre a sentença penal
e o fato contestado, e não entre a decisão e a capitulação dada à causa petendi.
A par dessa inafastável exigência, a qual o Julgador está vinculado
como forma de assegurar o princípio constitucional da amplitude de defesa e do
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PRÍNCÍPIO DA CONGRUÊNCIA OU CORRELAÇÃO ENTRE A SENTENÇA PENAL E O FATO DESCRITO NA DENÚNCIA OU QUEIXA
contraditório, deve continuar observando-a pelos mesmos fundamentos quando, em face das provas produzidas durante a instrução processual, verificar a
possibilidade de uma nova definição jurídica do fato, em virtude de circunstância
elementar não contida explícita ou implicitamente na peça inicial.
Enfim, observadas as análises enunciadas durante o desenvolvimento
desse trabalho, pode-se afirmar que, na verdade, não apenas se estará resguardando o princípio da correlação entre a sentença e os fatos contidos na petição
inicial penal, mas também os princípios da ampla defesa e do contraditório.
Por derradeiro, o tema analisado acima está estritamente ligado ao sistema acusatório, que possui como característica principal, a circunstância de que
ninguém pode ser levado a juízo sem uma acusação – nemo in iudicium tradeur
sine accusatione, daí a nomenclatura Sistema Acusatório, que evolui de uma estrutura acusatória liberal-individualista para uma sistemática publicista, com visível
tendência de assegurar cada vez mais os direitos e garantias individuais.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Weber Martins. Direito penal e direito processual penal. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1996.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal anotado. 6. ed. Rio
de Janeiro: Editora Rio, 1980.
GOMES NETO, F. A teoria e prática do código de processo penal. São Paulo:
José Konfino Editor, 1958. v.2.
GRINOVER, Ada Pelegrini. As Nulidades do Processo Penal, 5º Edição, São
Paulo: Malheiros Editores, 1996.
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999.
JESUS, Damásio E. de. Código de processo penal anotado. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 1998.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas:
Bookseller Editora, 1997. v. 2.
94
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 1996.
ROSA, Inocêncio Borges da. Processo penal brasileiro. Porto Alegre: Oficina
Gráfica da Livraria do Globo, Barcelos, Bentoso e Cia, 1992. v. 2.
TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
1981. v. 2.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 1989.
VILAS BOAS, Alberto. Código de processo penal anotado e interpretado.
Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
95
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Revista Online FADIVALE - 2005
AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO
AS CLÁUSULAS GERAIS NO
DIREITO CIVIL E O
PENSAMENTO PÓS-MODERNO
Karla Cristine Coelho Lamounier*
Denílson Mascarenhas Gusmão**
Resumo
Abstract
As cláusulas gerais constituem-se instrumento
metodológico empregado pelo legislador com a finalidade de permitir o trânsito de valores na norma,
perspectiva manifestada na pós-modernidade. Caracterizam-se pela linguagem vaga, genérica e aberta.
Sua interpretação é inovadora e criativa, de acordo
com a conjetura sócio-cultural, sendo esta atividade
interpretativa facultada aos operadores do direito,
especialmente ao juiz, no caso concreto.
The general clauses they constitute methodological
instrument used by the legislator with the purpose of
allowing the values traffic in the norm, perspective
manifested in the post-modernity. They characterize
by the vacancy, generic and opened language. Its
interpretation is innovative and creative, according
to the partner-cultural conjecture, being this interpretative activity allowed to the operators of the right,
especially to the judge, in the concrete case.
Palavras-chave
cláusulas gerais; metodologia; valor; cultural;
interpretação.
Keywords
general clauses; methodology; value; cultural;
interpretation.
Sumário
1 INTRODUÇÃO. 2 CONCEITUAÇÃO E DEFINIÇÃO INICIAL. 3 CONTEXTO JURÍDICO. 3.1 DA ERA DOS DIREITOS À ERA
DA CONCREÇÃO. 3.2 DOS MICROSSISTEMAS À CODIFICAÇÃO SISTEMATIZADA. 4 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DIREITO CIVIL. 5 O PAPEL DAS CLÁUSULAS GERAIS NA PÓS-MODERNIDADE. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
* Aluna classificada em 1o lugar no III Concurso de Monografia Jurídica da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE),
realizado em 2003.
** Professor Orientador. Especialista em Sociologia. Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa – MG.
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1 INTRODUÇÃO
As transformações sociais ocorrem a todo tempo e podem ser tomadas
como verdadeiro fenômeno de ebulição, na medida em que, pouco a pouco,
aquecem e transformam os modelos que se concebiam, passando-se a outro,
diverso, sem, contudo, perder a própria natureza.
A importância da análise dessas transformações está na própria importância de se analisar o homem. É ele quem se desenvolve, reúne-se, produz,
consome, pensa, evolui, cria, transforma, destrói, regride, enfim, modifica a
realidade a sua volta.
No universo da ordem social, o direito busca a paz, a justiça e a
segurança das relações jurídicas. Para tanto, interagem normas e aplicadores do direito.
A partir do desejo de atualizar a norma e dar-lhe eficácia capaz de
projetar-se no tempo, seja diante da diversidade de situações concretas, seja
diante da multiplicidade de alterações de costumes e de pensamento, os legisladores do Código Civil, que foi sancionado em 2002, inseriram no texto legal
as cláusulas gerais.
As cláusulas gerais constituem-se uma das inovações do Código, dentre
outras que lhe dão sustentabilidade e justificativa.
Conseqüentemente, importa analisar sua proposta. Nesse intuito é que
se procura demonstrar, através de explanações breves e objetivas, as faces da
metodologia das cláusulas gerais.
Necessária se faz também, a análise do contexto e dos modelos nos
quais se fundou o legislador ao optar por essa técnica legislativa. Dessa maneira,
torna-se possível compreender, além da simples conceituação, os objetivos e a
justificativa da escolha por um código aberto.
Impossível seria esgotar o assunto, pois o presente estudo tem caráter
prospectivo.
Os caminhos pelos quais as cláusulas gerais irão percorrer no ordenamento brasileiro, a perspectiva em que foram inseridas no Código Civil de 2002
dependem do estudo e do conhecimento daquilo que as mesmas se propõem:
a absorção das transformações sociais.
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AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO
2 CONCEITUAÇÃO E DEFINIÇÃO INICIAL
As cláusulas gerais constituem-se importante técnica legislativa. Têm
a faculdade de conferir ao texto legal conteúdo capaz de ser explorado além da
narrativa nele prevista.
Quando o legislador adota a técnica das cláusulas gerais, prescreve
não as condutas, mas insere na lei valores que se definem pela hermenêutica,
funcionando como um elástico a ser estendido pelo intérprete diante do caso
concreto, de acordo com o contexto social.
Sob o ponto de vista de comparação, as cláusulas gerais são antagônicas às normas fattispecie, que prevêem modelos de condutas tipificadas os quais
se enquadrem em fatos reiterados e, assim, prevejam a normatização do fato. Em
contraposição, as cláusulas gerais não prevêem condutas, apenas consagram
os valores que hão de regular a matéria que preceituam.
Segundo Martins-Costa (apud AGUIAR JÚNIOR, 2003):
[...] do ponto de vista de técnica legislativa, a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma
linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, fluida ou vaga,
caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a
qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato para que, à
vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas
jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização
pode estar fora do sistema.
Martins-Costa e Branco (2002, p.118), em seus estudos, faz a alusão dos
Códigos modernos como as “janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que
o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extrajurídicos – e avenidas, bem
trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais”.
Com isso, lança posicionamento contemporâneo supranacional da matéria.
Sob a perspectiva da modernidade que imprime ao ordenamento jurídico
brasileiro, as cláusulas gerais podem ser conceituadas de forma a relacioná-las à
capacidade prospectiva que possuem, o que foi bem definido por Mello (2002, p. 4):
as cláusulas gerais importam em avançada técnica legislativa de
enunciar, através de expressões semânticas relativamente vagas,
princípios e máximas que compreendem e recepcionam a mais
variada sorte de hipóteses concretas de condutas tipificáveis, já
ocorrentes no presente ou ainda por se realizarem no futuro.
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3 CONTEXTO JURÍDICO
3.1 DA ERA DOS DIREITOS À ERA DA CONCREÇÃO
Muitos estudiosos filiam-se à corrente do historiador Norberto Bobbio,
que considera e nomeia o século XX, como a Era dos Direitos.
Ao debruçar-se sobre a história daquele século, verifica-se que, paulatinamente, através de muitas lutas, o homem conquistou e consagrou muitos direitos. Mesmo que esta luta tenha sido, muitas vezes, até inconsciente do caminho
que se alcançaria, sabe-se que o homem conseguiu verdadeira proclamação de
seus direitos, sejam individuais, coletivos, sociais ou difusos. Ao buscar libertarse, ao buscar melhores condições, ao arriscar-se por mudanças, deu-se força e
expressão àquilo que se passou a ser reconhecido e tutelado como direito, mais
importante ainda, como direitos do homem.
Entretanto, apesar da afirmativa dos direitos, o Positivismo conquistado
encontrou entraves em realizar-se efetivamente. O direito brasileiro só conhece
a operabilidade enunciada, não havendo como, por exemplo, no direito inglês a
experiência e a jurisprudência como precedente para decisões, que conferem,
em razão dos costumes, maior liberdade ao julgador.
Nesse sentido, registram alguns doutrinadores como Gustavo Teppedino, que se o século XX foi denominado Era dos Direitos, o século XXI tem a
oportunidade de ser reconhecido pela Era da Concreção dos Direitos (TEPPEDINO, 2002, p. XXI).
Descortina-se um horizonte aberto pelo Código Civil de 2002, enriquecido por seu espírito, que se instrumentaliza através do estudo das cláusulas gerais.
Se a Constituição da República de 1988 já trazia e enumerava como direitos e
garantias fundamentais, individuais, sociais e coletivas as prerrogativas do Estado
Democrático de Direito, o Código Civil de 2002, através das cláusulas gerais e de
toda sua sistemática, possibilita a aplicabilidade desses direitos, efetivando-se o
que Miguel Reale batizou de operabilidade e de concretude.
Com propriedade Martins-Costa e Branco (2002, p. 122) afirmam:
a concretude, ou concreção jurídica, significa “a correspondência
adequada dos fatos às normas segundo o valor que se quer realizar”.
Em outras palavras constitui “a obrigação que tem o legislador de
não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera,
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AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO
mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situado”. É dimensão
da operabilidade porque, viabilizando a “ética da situação” pela
concreção dos modelos abertos, logra-se a constante alteração do
significado e do conteúdo de uma disposição codificada sem alterar
a sua letra, evitando, assim, os males da inflação legislativa e da
rigidez que, marcando o modelo dos Códigos oitocentistas, ensejaram o seu distanciamento do “direito vivente”.
Daí então, uma das justificativas para a escolha de uma normatização
em um corpo codificado e sistematizado.
3.2 DOS MICROSSISTEMAS À CODIFICAÇÃO SISTEMATIZADA
Desde a superação de temas tratados pelo Código Civil de 1916 e da
necessidade de serem regulados assuntos por ele não abordados, diversas
legislações especiais foram publicadas, constituindo-se o que a doutrina cuidou
de chamar de microssistemas.
A nomenclatura realça que tais leis tratam de cada micro assunto,
podendo ser citadas como exemplos no Direito de Família a Lei do Divórcio, a
Lei de Alimentos, a Lei da União Estável, dentre outras, todas regulando temas
pertinentes às relações de família.
Com bastante propósito Silva (2003) lançou o debate sobre a forma
de legislar:
a manifestada assistematização que restou demonstrada propõe
aos operadores do Direito grande inquietação. Qual a solução?
Restaurar as ruínas do Código Civil, como um sistema fechado, absoluto em si mesmo, onde se pretenda encontrar todas as soluções
para todos os problemas do hoje e do porvir? Ou, como sugere o
Professor Haroldo Valladão, instituir um código próprio apenas para
o Direito de Família e Sucessões, na pretensão de esgotar toda a
possibilidade de hipóteses jurídicas? 15 Talvez, embora sem tanto
ceticismo, seguirmos a caminho dos microssistemas, como enfatiza
Orlando Gomes? 16 Mas que modelo de microssistemas será este
e que relação estabelecerá com um virtual eixo central?
Desde já quero adiantar que as respostas para estas questões estão
em construção
No ambiente em que cresciam e eram largamente utilizadas, diversos
juristas passaram a defender a desnecessidade da nova codificação ou recodificação. Atribuíram aos microssistemas inúmeras vantagens, que se destacam,
100
principalmente, pela maior facilidade e velocidade em sua elaboração e aprovação, pela natureza de leis especiais, em contraposição às leis ordinárias e, pela
possibilidade de serem elaboradas e revistas, na medida em que se fizessem
necessárias às alterações em função das mudanças na sociedade.
Mello (2002, p. 4) bem observa que:
[...] é possível imaginar-se e implantar-se um sistema de direito privado baseado na codificação que reúne, sistemática e ordenadamente,
todo (ou quase todo) o conjunto normativo.
É verdade que a celeridade das transformações sociais, à primeira
vista, conduz a uma reflexão em sentido contrário tendente a incentivar as mudanças sucessivas e paulatinas de microssistemas
legislativos em ordenamentos esparsos.
Mas essa afirmação só é válida se pensarmos a codificação do direito
nos moldes daqueles idealizados para séculos passados
Com a promulgação da Constituição da República em 1988, o Projeto
de Código Civil perdeu muito do interesse jurídico, por não ser ainda visível a
transformação da cultura jurídica conexa aos impactos da Constituição de 1988
nas relações de direito privado e, por via de conseqüência, houve a necessidade
de uma recodificação. De igual maneira, na Europa Continental, as leis especiais
passaram a regular setores de grande importância no ordenamento, em razão de
as disciplinas do Código terem se tornado cada vez mais ultrapassadas.
Mas então, como se justifica a codificação Civil de 2002? Novamente,
Teppedino (2002, p. 21) responde:
o legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta
(standarts) delineados à luz dos princípios que vinculam o intérprete,
seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas
pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos
normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da
pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que
se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto
de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o
preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto.
Passados quase 15 anos da promulgação do texto constitucional,
muito se desenvolveram a doutrina, a cultura jurídica e a consciência sobre
os direitos do homem em meio ao povo. Necessário registrar que este movimento de disseminação dos paradigmas constitucionais se opõe, em muitos
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Revista Online FADIVALE - 2005
AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO
termos ao modelo de codificação que antes se experimentava. As codificações
(restringem-se aqui as nacionais e de mesmo padrão de origem) conhecidas
como códigos “totais” ou “totalizadores” buscavam a perfeição nas formas e
na linguagem – trata-se do modelo oitocentista ou parnasianista. Contudo, os
códigos totais, preocupados com o fenômeno da fattispecie, acabaram por se
tornarem verdadeiros códigos fechados, pela previsão tipificada de um modelo
de conduta, o qual se cercava de rigidez. Historicamente, o fato se justifica por
serem tais codificações dirigidas a um grupo determinado: a burguesia hegemônica, que domina este período, essencialmente, capitalista.
Martins-Costa (apud MELLO, 2002, p. 4) adverte àqueles que teimam
em não admitir a evolução que o novo Código Civil baseado em cláusulas gerais
representa, in verbis:
no universo craquelé da pós-modernidade não tem sentido, nem
função, o Código total, totalizados e totalitário, aquele que, pela
interligação sistemática de regras casuísticas, teve a pretensão de
cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos devidos
na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida
civil em um mesmo e único corpus legislativo, harmônico e perfeito
em sua abstrata arquitetura. Mas se falta sentido hoje a esse modelo
de Código, isto não significa que nenhum modelo de Código possa
regular as relações jurídicas da vida privada.
Em paradoxo ao ambiente individualista da fase capitalista, preocupada
com a propriedade e a autonomia de vontades, a Constituição da República de
1988 consagrou os direitos ligados ao homem, em sua essência e em sociedade,
enquanto ser humano e enquanto coletividade, o que confere socialidade, função
social, eticidade, boa-fé e equivalência às relações entre particulares.
A principal justificativa para a codificação civil de 2002 encontra-se
na necessidade de haver um eixo central para regular a vida civil. Um código
civil não tem qualquer pretensão de substituir ou sobrepor-se à Constituição,
por outro lado, ele dá operabilidade aos preceitos daquela. A lei civil é a lei
dos particulares, é a forma de conduta e atividade dos particulares perante
a ordem pública. Por isso, a necessidade de se recodificar, para que haja
segurança e unidade do sistema. Garante-se, com isso, a observação a diretrizes de conteúdo filosófico e valorativo.
O Código Civil de 2002 adotou pressupostos metodológicos, verdadei102
ra inovação técnica no direito brasileiro, em especial, as cláusulas gerais que
conferem atribuições à jurisprudência. Em complementariedade, o legislador
fatalmente editará leis especiais, que acompanhem a mutabilidade de alguns
assuntos; contudo, tais leis interligam-se aos valores e diretrizes postas no eixo
central, o sistema codificado.
4 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
Remonta a 5 de outubro de 1988 a inauguração daquilo que se chama
de Constitucionalização do Direito Civil. Compreender o que este fenômeno representa está além de epistemologicamente lançar matérias cíveis ao status de direito
constitucional. Por isso, a importância de compreender a natureza fenomenológica
desse movimento. O fenômeno de constitucionalização não se constitui, necessariamente, de uma resposta, solução ou saída, mas, a conseqüência direta e evolutiva
de fenômenos históricos e sociais que, pela faticidade impressa na vida cotidiana,
acabam por exigir a conseqüente regulamentação e consagração jurídica.
A superação dos códigos totais, oitocentistas, casuísticos e fechados
na forma, os quais traduzem a hegemonia burguesa, revela, na verdade, a substancial superação do Estado de direito, cujos paradigmas são marcados pela
exacerbação do racionalismo e do patrimonialismo.
A florescência de novos modelos sociais trouxe o desenvolvimento da
concepção jurídica de pessoa. O pensamento contemporâneo ou pós-moderno
não procura mais definir o que seja a dignidade da pessoa humana, mas encontrar o seu conteúdo material.
O desafio do mundo jurídico não está em tornar a dignidade humana
mens legis, pois já o é - constitucionalmente. Mas o desafio está em efetivá-la
materialmente. Se o pensamento contemporâneo superou o racionalismo, o
individualismo e o patrimonialismo, de outro lado, em paralelo à dignidade da
pessoa, está o Estado Liberal. Sob a ótica do liberalismo, assite-se à massificação das comunicações, aos avanços tecnológicos e à biomedicina, que criam
situações e relações levadas à apreciação jurídica e, sobretudo, que requerem
regulamentação pela insegurança social que promovem.
E é este homem do direito atual que relê que efetivamente restou
de perene, após o desmoronamento de uma secular estrutura de
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AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO
dogmas, afastando de si a segurança da fossilização e da estagnação de conceitos e de normas para admitir a abertura de castelos
– ou de prisões – em prol da atenção às transformações geradoras
da crise, em favor da vivificação dos valores da vida e dos anseios
do homem de hoje, este ser de incansável movimento e de infinitos
sonhos. Sua vivacidade, sua inteligência ímpar, sua aguda percepção
dos fenômenos, sua supremacia na escala biológica, tudo isso que o
colocou em pé, uma primeira vez, prossegue agigantando-se em seu
espírito, não lhe conferindo paz, serenidade ou repouso, mas, antes,
incitando-o eternamente a caminhar além, a esmiuçar segredos e a
constranger costumes ancestrais. (HIRONAKA, 2003, p.104)
Nessa travessia, diversos estudos e correntes vêm modelar tendências e concepções. É necessário, contudo, avaliar as transformações de forma
sistemática, salientando que os princípios de direito civil, em consequência do
tratamento constitucional, requerem destaque valorativo do significado profundo,
axiologicamente considerado da constitucionalização do direito civil
5 O PAPEL DAS CLÁUSULAS GERAIS NA PÓS-MODERNIDADE
A superação dos modelos da modernidade pelo pensamento pósmoderno é algo que demanda transformações sociais profundas, decorrentes
da mudança em concepções filosóficas estruturais. Se vai ser ou não possível
satisfazer tal demanda, não há como prever. Na verdade, a superação dos modelos da modernidade incide frontalmente sobre a superação do próprio capital,
considerado não somente de forma abstrata, mas, substancial.
A principal justificativa desta luta social que se trava termina por
confundir-se com as características do pensamento pós-moderno. A pósmodernidade traz resposta a problemas que o direito não soluciona, como
a justiça social, o bem comum e a personalidade, o abandono do formalismo
jurídico, desagregando as regulamentações e constitucionalizando o direito
privado. Teoricamente, percebe-se certa oposição à razão, marcada pela
incerteza jurídica e relativização dos interesses públicos e, principalmente,
de conceitos. Este fenômeno se dá pela idéia de efetivação dos direitos do
homem, pela concretude da dignidade humana. A luta da pós-modernidade e
da modernidade pode ser equacionada como capital x pessoa. O novo código
civil traz uma proposta à solução destas novas questões, mas o sucesso da
104
mesma é tarefa futura. Inauguralmente, cabe-nos compreender tal proposta e
alargar suas possibilidades dentro de suas potencialidades.
Compreendidas as diretivas basilares que a pós-modernidade traz consigo e que, paulatinamente, desenvolvem-se, importa compreender o significado
das cláusulas gerais e sua operabilidade.
A evolução da jurisprudência do Brasil terminou por destacar a dialética
entre a norma e o fato, característica do próprio direito, enquanto fenômeno histórico-social, que acompanha e se transforma nesta cadeia evolutiva por meio
da relativização dos seus conceitos.
Procura-se minimizar, assim, no tempo que corre, as alterações
valorativas profundas por que passou o direito civil. Elas estão a
significar, ao revés, no que tange às aludidas historicidade e relatividade de conceitos e institutos, a necessidade absoluta e urgente
de compreensão do Direito não mais como um instrumento de mera
racionalização de movimentos históricos que lhe são externos e anteriores, mas como um fenômeno dialético e essencialmente social.
Compreender o direito como um fenômeno social significa vê-lo como
fruto da interação do dado normativo com as demandas sociais e
culturais que se transmudam a cada dia, forjando-o e alternando-o
a todo tempo (TEPEDINO, 2003, p. 121).
O fato é que a constitucionalização do direito civil é inegável. Surgiu timidamente, como forma interpretativa e ganhou espaço maior, expresso através das
cláusulas gerais, uma vez que as mesmas permitem a oxigenação da norma.
Partindo-se dos princípios e valores consagrados na Constituição da
República, o legislador há de reconhecer que a técnica legislativa casuística não
é capaz de fazer frente aos avanços sócio-econômicos, sendo inviável a tentativa
de regulamentar todas as novas situações jurídicas.
Por esse motivo, então, justifica-se a opção por cláusulas gerais, as
quais devem ser interpretadas em associação ao conteúdo valorativo definido
pela Constituição, evitando-se o perigoso subjetivismo do intérprete.
Cabe ressalvar que à cultura jurídica incumbe definir qual o conteúdo
valorativo das cláusulas gerais, assim como, a cultura jurídica soube definir
diversos outros conceitos indeterminados como se registram, por exemplo, os
conflitos de vizinhança, bem-estar do menor e outros.
Enfim, bem mais que modismo da Exegese, a Constitucionalização do
direito civil através das cláusulas gerais é alteração significativa da ordem pública,
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AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL E O PENSAMENTO PÓS-MODERNO
na medida exata em que dá à pessoa humana absoluta prioridade em razão de
ser a dignidade humana fundamento da República, bem como, o trabalho e a
livre iniciativa e os objetivos de solidariedade social e igualdade.
6 CONCLUSÃO
O ponto de partida da discussão que se trava frente às perspectivas
marcadas pelo Pós-modernismo gira em torno da cadeia de mudanças, transformações sociais, fenômenos históricos e culturais e da evolução do Direito
interno e externo.
O legislador do Código Civil de 2002 utilizou-se de inovações técnicas
para propiciar à codificação a eficácia necessária diante da volatilidade social.
Tais técnicas propõem-se a viabilizar uma nova sistemática que seja capaz de
regulamentar a vida privada.
Dentre as inovações técnicas e metodológicas inseridas no Código Civil, deu-se ênfase especial, no presente trabalho, ao papel das cláusulas gerais.
Como inicialmente se propôs, a exposição do tema permitiu o seu conhecimento
que propicia sua utilização em toda sua potencialidade.
As cláusulas gerais são um dos reflexos do espírito do Código Civil.
A atualidade reclama a atualização e modernização da lei. Na esfera
civil, as alterações jurídicas se processaram e estão se processando com o Código Civil de 2002 e sua diretriz filosófica, que se torna operável através, dentre
outras técnicas, das cláusulas gerais.
Contudo, não há como afirmar que a sociedade experimentará as inovações do Código Civil de 2002 porque o caráter aberto das cláusulas gerais não garante o uso de suas prerrogativas como potencialmente as mesmas se propõem.
Na realidade, as cláusulas gerais poderão, muitas vezes, ser interpretadas timidamente, não só por se constituírem um instrumento de modus
operandi não impositivo, mas, essencialmente, porque seu uso reclama bem
mais que a atividade interpretativa, reclama do jurista um posicionamento ativo,
criativo, audaz, voltado para os princípios proclamados pela Constituição. Em
outras palavras, a dificuldade está em dar operabilidade, em realmente tornar
concretos os objetivos da República, o que importa em substancial transformação social e promoção da pessoa humana. Mais uma vez, está o homem
106
diante da batalha com o capital, fenômeno histórico, mas que tem na dignidade
da pessoa humana seu ideário.
A disseminação dos estudos sobre o Código Civil e de suas cláusulas
gerais permite que a comunidade jurídica conheça suas prerrogativas, seu funcionamento, enfim sua proposta: substantivar o Direito.
Passo a passo, a sociedade terminará por vivenciar a operabilidade,
eticidade, socialidade e concretude propostas pelo Código.
Na perspectiva histórica, lançou-se a atenção sobre os efeitos das cláusulas gerais, já que as mesmas terminam por dar ao aplicador da norma a possibilidade de efetivação dos princípios e preceitos constitucionais, que, há muito tempo,
careciam de maior regulamentação para atingirem concretude e eficácia.
Nesta esteira, é que se assistirá ao quadro de transformações pelas
quais também os Poderes do Estado vão atravessar, na medida em que as transformações necessariamente provocarão pressão no sistema de freios e contrapesos entre os entes federados. O fato é que a sociedade estará atenta aos possíveis
conflitos e as possíveis tentativas de contenção através da publicidade dos atos
públicos e da visibilidade proporcionada pelos meios de comunicação.
Sobre estas, ou outras trilhas, constrói-se a História, e se transformam
o homem e o Direito.
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MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio
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TEPEDINO, Gustavo; et al. A parte geral do novo código civil. Rio de Janeiro:
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Revista Online FADIVALE - 2005
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL –
DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
Lorimar M. Piazarolo Azevedo*
Resumo
Abstract
Reconhecida como atividade inerente ao ato de
pensar a universidade, a Avaliação Institucional
se estabelece no cenário da educação superior
como suporte indispensável ao enfrentamento das
contradições que configuram a crise de identidade
das Instituições de Ensino Superior (IES), frente às
políticas de um Estado avaliador e a necessidade de
uma atuação consistente e coerente com as demandas
sociais da atualidade. Partindo da constatação de que
a utilização do termo institucional nos processos de
auto-avaliação das IES não tem correspondido, na
maioria dos casos, ao seu verdadeiro significado, este
estudo reúne reflexões que procuram redimensionar
o conceito de Avaliação Institucional, identificando
como fatores determinantes da institucionalidade
desse processo a sua vinculação ao Plano Institucional
de Desenvolvimento e à tomada de decisões.
Recognized as inherent activity to the act of thinking
the university, the Institutional Evaluation establishes
in the scenery of the superior education as indispensable support to the facing of the contradictions that
configure the identity crisis of the Higher education
Institutions (IS), front to the policies of an appraiser
Estate and the need to a consistent and coherent performance with the social demands of the actuality.
Leaving of the verification that the utilization of the
institutional term in the auto-evaluation processes
of the has not been corresponding, in most cases, to
its true meaning, this study gathers reflections that
search to expand the concept of Institutional Evaluation, identifying as determinate factors of institutional of this process and its link to the Institutional
Plan of Development and to make decisions .
Palavras-chave
avaliação institucional; qualidade educacional;
planejamento; tomada de decisão.
Keywords
institutional evaluation; educational quality;
planning; make decision.
Sumário
1 INTRODUÇÃO. 2 RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL. 3 SOBRE O CONCEITO DE
QUALIDADE EDUCACIONAL. 4 POLÍTICAS PÚBLICAS DE AVALIAÇÃO DAS IES. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
* Pedagoga e professora da Pós-Graduação da FADIVALE. Mestre em Educação pela UNIMEP – Piracicaba/SP.
110
1 INTRODUÇÃO
Os desafios, quaisquer que eles sejam, nascem sempre de perplexidades produtivas.
(Boaventura Sousa Santos)
No início do século XXI, quando o conhecimento se sobrepõe como
fonte de poder e de vantagens competitivas, exigindo um repensar sobre a
educação superior brasileira, a Avaliação Institucional ganha status privilegiado
como mecanismo de apropriação e ressignificação de sua identidade, tanto por
interesse das próprias instituições, quanto por exigência das políticas públicas
de adaptação da educação aos desafios atuais.
À medida que diversas propostas de Avaliação Institucional se tornam
mais próximas pelas leituras de experiências de instituições renomadas como,
por exemplo, a UNICAMP, UFRJ e UnB, é possível constatar algumas limitações
e dificuldades da maioria dos modelos propostos para concretizar a dimensão
global e integradora da Avaliação Institucional. Partindo, quase sempre, da avaliação de cursos, o processo avaliatório geralmente não consegue avançar para
além da dimensão acadêmico-pedagógica, fazendo emergir algumas questões
como desafios a serem investigados e superados.
Por que é comum um reducionismo na maioria dos processos de
Avaliação Institucional, predominantemente dedicados à avaliação de cursos,
dificultando o alcance da verdadeira dimensão institucional formalizada como
finalidade em diversas propostas nesta área? Que concepções de Avaliação
Institucional, contidas nas propostas avaliatórias das instituições educacionais, limitam o processo, desacreditando-o e camuflando a sua dimensão
institucional? Responder estas questões, à luz de referenciais que permitam
compreender e explicar esse reducionismo e, mais do que isto, possam
enriquecer o processo de Avaliação Institucional, tornando-o mais amplo e
coerente com o seu significado, é o objetivo deste estudo.
As concepções identificadas nas categorias de análise confirmam que
a Avaliação Institucional, inserida na perspectiva da possibilidade de clarear
caminhos para a ação docente, discente e administrativa, só deixará de ser um
registro formal da realidade da instituição, como fim em si mesma, se considerada
e assumida pelos gestores institucionais como força impulsionadora de ações a
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
serviço da consolidação da identidade da universidade ou da faculdade. Portanto,
como eixo norteador de toda a organização escolar e como contraponto para a
proposta homogeneizadora do Estado, oferecendo subsídios para a compreensão, integração e redimensionamento do Projeto Polítco-Pedagógico e do Plano
Institucional de Desenvolvimento das IES.
Constituindo, pois, o objeto de investigação deste estudo, a Avaliação
Institucional será o referencial para uma compreensão mais profunda e crítica
das concepções que dão sustentação à prática avaliatória na universidade ou
nas faculdades, permitindo indicar a que distância do ideal proposto a experiência
das instituições se encontram.
Partindo de uma análise mais genérica sobre as concepções de Avaliação Institucional segundo a legislação vigente e a pesquisa bibliográfica centrada
em publicações de diversos estudiosos nesta área, será construído o embasamento teórico necessário à ampliação e consolidação deste conceito, tanto no
ponto de vista acadêmico daqueles que militam no cotidiano das instituições
quanto no contexto das políticas públicas de avaliação das IES.
Parafraseando Sguissardi (2000, p. 43), “sem pretensão de ser utópico
e longe de um otimismo ingênuo”, este estudo visa oferecer aos dirigentes educacionais e àqueles diretamente envolvidos com o processo avaliatório, subsídios
relevantes para a reestruturação ou elaboração de um projeto que possibilite a
implementação de uma Avaliação Institucional mais próxima e coerente com o real
significado deste termo, nos moldes das orientações e recomendações emanadas
de renomados autores que dão sustentação teórica à proposta em questão.
A intenção é abrir espaço para que gestores, agentes e sujeitos do
processo avaliatório possam se situar nesta área, promovendo, inclusive, uma
re-avaliação de seus projetos. Inclui-se, neste contexto, a possibilidade de inferências sobre alternativas para a implementação de um processo de Avaliação
Institucional mais fidedigno ao que o termo institucional pressupõe e com maior
validade para a consolidação da identidade da universidade ou da faculdade.
A conclusão deste estudo conduz à reflexão sobre a responsabilidade
e o compromisso institucional no estabelecimento de propostas de avaliação de
sua eficiência, produtividade e relevância social, capazes de ajudar a universidade
ou a faculdade a melhor cumprirem a missão que a sociedade historicamente
lhes confia, ou seja, a formação de cidadãos autônomos e solidários, com a
112
necessária competência diante dos desafios do mundo globalizado.
Procurando manter a distância necessária para a elaboração de um
texto despido de preconceitos e parcialidade, mais próximo da neutralidade
e da objetividade científica, este estudo é sustentado por transcrições e
descrições de documentos identificados no interior do texto e na bibliografia
referenciada, ressalvando-se a afirmação de Ristoff (2000, p. 124) ao alertar
que “[...] a neutralidade lingüística é obviamente uma fantasia. Não existe,
por mais que queiramos, declaração, afirmação ou descrição absolutamente
neutra ou imparcial”. Mesmo porque as possibilidades de maior fidedignidade
das informações não absolvem a autora de um olhar circundado de subjetividade na análise e interpretação do objeto de investigação.
Em que pesem, entretanto, tais dificuldades de distanciamento, a autenticidade e a transparência do estudo realizado poderão ser atestadas pelos documentos
que o subsidiaram e pela intenção de proporcionar ao leitor informações fidedignas e
ao encontro de suas necessidades e interesses sobre a Avaliação Institucional.
2 RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL
É consenso nacional, hoje, no âmbito da educação superior, a necessidade de se promover a Avaliação Institucional. Necessidade reconhecida tanto pelo
Estado quanto pelas próprias instituições, diretamente afetadas pelas constantes
mudanças que vêm ocorrendo no contexto das políticas educacionais. Mesmo
não havendo acordo quanto à maneira pela qual esta avaliação deve ocorrer e,
menos ainda, sobre como seus resultados podem vir a ser eventualmente utilizados, é certo que muitos esforços vêm sendo feitos para ampliar a discussão
sobre o assunto.
Para Sguissardi (1997, p. 45),
avaliar o ensino superior e a universidade é preciso e urgente, mas é
necessário saber-se, antes, de que avaliação se está falando. Para
tanto, impõe-se de antemão o exercício da crítica às diferentes propostas de avaliação, nesta época de tantos apelos e urgências fundadas
em princípios e conceitos tidos como de validade universal.
Análises de experiências de Avaliação Institucional em universidades
brasileiras, publicadas em bibliografia nesta área, permitem constatar que mais
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
do que ganhos, julgamentos baseados em realidades fragmentadas e leituras
reduzidas de fenômenos descontextualizados, têm provocado equívocos irreparáveis e descrédito na relevância de muitas propostas deste gênero. Na maioria
dos casos, limitando-se à avaliação de cursos, os processos avaliatórios não
têm refletido a verdadeira dimensão do termo institucional.
Não se pode desconsiderar a importância da avaliação de cursos como
componente básico da avaliação institucional, oferecendo subsídios indispensáveis ao aperfeiçoamento dos programas e dos docentes. Há de se reconhecer, entretanto, as suas limitações quando privilegia a dimensão acadêmica do
processo avaliatório, negligenciando as dimensões política e administrativa e
impedindo uma visão mais globalizante da instituição.
Não há mais dúvidas hoje de que, por mais avançados que sejam os
objetivos ou funções da avaliação, as informações obtidas a partir de seus resultados são subsídios valiosos para apoiar e tornar o processo decisório mais justo
e racional. Pode-se assumir que a Avaliação Institucional é, para a universidade ou
para a faculdade, um processo orientado para a tomada de decisões, agregando
valores indispensáveis à garantia da qualidade dos serviços por elas prestados
É certo, também, que não há como planejar a instituição sem, paralelamente avaliá-la. Mais ainda, é ao planejamento que a Avaliação Institucional melhor serve. Considerada no processo de desenvolvimento institucional
como um dos componentes do paradigma gerencial, a Avaliação Institucional
passa a incorporar a práxis administrativa, associando-se ao planejamento e
ao gerenciamento compartilhado como uma ferramenta independente, porém
estreitamente interligada ao processo de consolidação e fortalecimento da
identidade da instituição.
Por ser instrumento essencial para atestar a qualidade do ensino e da
educação, sempre amparada num projeto social mais amplo, a Avaliação Institucional deve ultrapassar os limites de uma visão individualizada de desempenho
profissional, sustentando-se em indicadores que balizem a missão da instituição
e os fins da educação.
Amorim e Souza (1994, p. 128) retratam a importância desta visão
globalizante do processo de Avaliação Institucional quando afirmam:
é o projeto institucional concreto, resultado da interação e das relações
entre grupos e setores da própria instituição e desta com o Estado e a
114
sociedade civil, que retrata os princípios e os parâmetros da proposta
de avaliação. [...] Portanto, o sistema de avaliação integra a proposta
educacional que se pretende implementar em dado contexto.
Indo além, ao definir sistema como um todo integrado cujas propriedades
essenciais surgem das relações entre suas partes e pensamento sistêmico como
a compreensão de um fenômeno dentro de um todo maior, Capra (1996, p. 39)
reforça a necessidade de uma mudança de paradigma em relação ao sistema
avaliatório institucional ao afirmar que:
um sistema vivo é determinado de diferentes maneiras pelo seu padrão de organização e pela sua estrutura. O padrão de organização
determina a identidade do sistema (suas características essenciais);
a estrutura, formada por uma sequência de mudanças estruturais,
determina o comportamento do sistema .
Assim, compreendida como um sistema vivo, a organização escolar
superior atua como uma “rede de relações” entre suas diversas estruturas
constituintes, responsáveis pela definição de sua identidade. É função, pois,
do processo avaliatório, a “realimentação” da rede maior que é a organização
escolar, ajudando-a a consolidar e a recriar, continuamente sua identidade,
desenvolvendo “ações catalizadoras” capazes de aumentar a capacidade de
reações e de criatividade em cada uma de suas estruturas.
Também é função da rede escolar, através de seus Planos Institucionais
e de seus Programas Educacionais, regular a si mesma por meio de múltiplos
laços de realimentação do processo avaliatório. Pode-se considerar que o PDI é
o “padrão” de organização que determina a identidade da instituição, enquanto
a avaliação é uma das suas “estruturas” determinantes.
Considerar, pois, cada estrutura da organização escolar como parceira
na concretização da missão institucional é privilegiar o caráter formativo da avaliação, colocando-a como cooperadora e facilitadora na dinâmica da mudança e
do desenvolvimento da instituição.
Dias Sobrinho (2000, p. 112), ao considerar a integração como a categoria central da avaliação institucional, alerta que:
a universidade é uma totalidade complexa que não resulta da justaposição de partes desconectadas [...]. A totalidade é a síntese da integração
de sentidos das diversas partes que a compõem. As análises parciais,
115
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
as descrições de elementos isolados, as quantificações devem ser
entendidas como recursos para compreensão molar ou global, na qual
os componentes tecem uma rede de significações articuladas.
Percebe-se neste enfoque que a Avaliação Institucional, integrada ao
PID é potencialmente mais eficaz, tanto para a definição de diretrizes e políticas institucionais quanto para o escalonamento de necessidades. Avançando
para além da dimensão pedagógica, a avaliação passa a ser entendida como
uma atividade integrante do cenário de continuada renovação que se exige
de uma instituição, servindo-lhe de instrumento para tomada de decisões que
favoreçam o cumprimento do seu compromisso científico e social, reforçando
sua identidade e sua vocação.
Se esta é a caminhada que a atualidade tem indicado como a mais adequada para o enfrentamento dos desafios da educação, emerge, desta visão, a necessidade de uma mudança de olhar, superando formas cristalizadas de avaliações
parciais que inviabilizam a sua utilização nos processos de tomada de decisões.
3 SOBRE O CONCEITO DE QUALIDADE EDUCACIONAL
Que a qualidade é um critério indispensável a ser considerado em
qualquer processo de avaliação, não há dúvida. O problema é encontrar-se um
consenso em torno do conceito que melhor a represente no âmbito de toda a
comunidade universitária, sem, contudo, perder-se de vista o fim último da instituição enquanto organização escolar e, portanto, educativa.
Questões como: - O que é uma instituição universitária de qualidade?
– O que é um professor de qualidade? – O que é um ensino de qualidade? – O
que é uma produção científica de qualidade?, são questões que precisam ser
refletidas à luz de um referencial que expresse a identidade da instituição, tanto
no contexto local e regional, quanto no contexto nacional.
Por mais que a palavra qualidade tenha sido explorada e, conseqüentemente, desgastada no âmbito de várias instituições sob o pretexto de atendimento
aos novos desafios da atualidade e de evidência da competência institucional,
é inegável o reconhecimento de que esta é uma palavra-chave no contexto da
Avaliação, embora utilizada e interpretada sob diferentes perspectivas, nem
sempre coerentes com a proposta avaliatória.
116
Pode-se dizer que a qualidade é um conceito valorativo, no sentido de
que expressa as preferências de um conjunto de pessoas e multidimensional, no
sentido de que a mesma instituição pode ser avaliada ao mesmo tempo quanto
a qualidades distintas, reconhecendo as singularidades de cada IES.
Segundo Schwartzman (1988, p. 21), a principal função dos processos
avaliatórios é trazer a questão da qualidade para o primeiro nível das preocupações de todos os que se interessam e participam da vida das instituições. Para
este autor, um dos resultados mais significativos da análise dos diferentes sentidos do termo qualidade é que ela pode levar a importantes diferenciações das
funções e papéis a serem legitimamente desempenhados pelas instituições.
Ao definir a avaliação institucional como processo sistemático de busca
de subsídios para melhoria e aperfeiçoamento da qualidade da instituição, Isaura Belloni (23ª Reunião da Anped 2000) acrescenta que qualidade é o nível de
aceitabilidade ou adequação de uma atividade ou produto, definido por vários
setores internos e externos.
Percebe-se, assim, que a qualidade é uma construção social, variável
conforme os interesses dos grupos organizados dentro e fora da universidade,
devendo ser buscada na dinâmica integradora das diversas esferas e estruturas
internas e nas relações entre estas e a sociedade externa.
Cristovam Buarque propõe uma redefinição do conceito de qualidade de
maneira a incorporar, de um lado, a criatividade presente no ineditismo de cada
trabalho e, de outro, uma sintonia dos trabalhos com o objetivo da modernidade
e da contribuição para a soberania da sociedade. Nota-se aqui que a qualidade
é, acima de tudo, um conceito político. É um conceito pelo qual se busca desenvolver e introduzir políticas que se pretende alcançar, tanto do ponto de vista das
próprias instituições (dimensão intrínseca da qualidade, sustentada pelos grupos
acadêmicos), quanto do ponto de vista do Estado e da sociedade (dimensão extrínseca da qualidade, balizada pelas políticas públicas de educação superior).
Quando Míriam Limoeiro Cardoso afirma que a avaliação é função de um
modelo ou de um projeto de universidade e de sociedade, o conceito de qualidade
que a universidade deve buscar ultrapassa os limites do particular para encontrar
o seu padrão de referência no conjunto da instituição que se pretende ser e da
sociedade que se quer construir. Dessa forma, tanto o Plano de Desenvolvimento da Instituição quanto a função social da Universidade enquanto organização
117
Revista Online FADIVALE - 2005
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
educativa, têm papel relevante na determinação do conceito de qualidade que
conduzirá o processo de Avaliação Institucional.
Neste sentido, entende-se que a qualidade que se busca na IES, caracterizada por sua dimensão multifacetária, deve ser definida por um processo democrático de discussão dialógica, onde avaliadores e avaliados se assumem como
co– responsáveis pela construção coletiva da instituição que almejam ter. Só assim
é possível conduzir o processo de avaliação de maneira formativa, mais voltado para
o auto–aperfeiçoamento, pelo qual os próprios participantes possam se entusiasmar,
se envolver e atuar no sentido de promoverem as melhorias necessárias.
Ao definirem indicadores de qualidade das variáveis extraídas das funções e atividades da IES, é importante que avaliadores e avaliados selecionem,
também, os critérios valorativos destes indicadores. Assim, é mister avançar para
além da concepção instrumental ou técnica da qualidade, conciliando indicadores
que representem a concepção subjetivo – interpretativa e a concepção crítico
– emancipatória, considerando que a qualidade aqui defendida deve retratar não
apenas os conceitos da comunidade científica e acadêmica mas incluir a visão
de toda a sociedade, a quem a IES deve prestar contas.
Para que isso se concretize, é preciso reconhecer, como Libâneo (2001,
p. 6) que:
na busca da qualidade democrática, o paradigma economicistaempresarial resolve pouco. A escola não é uma empresa, o aluno
não é um cliente e nem meramente um consumidor. A qualidade é
um conceito implícito aos processos formativos e ao ensino, implica
educação geral, voltada para a cidadania, para a formação de valores,
para a valorização da vida humana em todas as suas dimensões. Isso
não leva a educação escolar a eximir-se do seu contexto político e
econômico, nem sequer de suas responsabilidades de preparação
para o trabalho; mas, também, não pode estar subordinada e a serviço
exclusivo do modelo econômico.
Este é um alerta e um cuidado especial sobre o tipo de informação relevante para o conhecimento da realidade acadêmica que a Avaliação Institucional
se propõe a revelar. Refletir essa realidade, de forma fidedígna, é compromisso
da Avaliação Institucional, uma vez que a análise da vida cotidiana da escola pode
também mostrar e explicar o movimento social que esta instituição articula.
Outra característica interessante a ser observada na construção do conceito de qualidade diz respeito ao enfoque metodológico do processo de avaliação
118
sobre o qual este conceito se direcionará. Sônia Maria Duarte Grego (1995, p.
29-40), alerta que processos de orientação tecnicista utilizam-se de indicadores
estatísticos do desempenho e visam o controle e monitoramento externo desses
resultados, tendendo a arrefecer o entusiasmo e a extinguir um dos mais valiosos
aspectos da avaliação, os conduzidos pelos próprios indivíduos e grupos dentro da
instituição e voltados para o auto-aperfeiçoamento, além de estimularem o corporativismo e a dissimulação de dados, em detrimento do compromisso com a almejada
qualidade. Por sua vez, processos democráticos de auto-avaliação favorecem uma
concepção de qualidade que implica o compromisso dos próprios participantes em
refletir sobre seu próprio trabalho e atuar no sentido de modificá-lo.
Portanto, sendo um processo complexo, a avaliação institucional não pode
ser encarada como um procedimento meramente técnico de mensuração da performance da universidade quanto às suas funções de pesquisa, ensino e extensão. A
qualidade que se busca pela avaliação exige que se estabeleça, legitimamente, as
múltiplas dimensões e os critérios sobre os quais ela deve ser investigada.
É importante ressaltar que os conceitos de eficiência e eficácia, traduzidos em efetividade institucional como critério relevante da qualidade almejada,
exigem a determinação de padrões de análise, sustentados em indicadores
quantitativos e qualitativos, devidamente combinados e complementares.
Assim, apesar das limitações das metodologias quantitativas, é reconhecido que elas desempenham funções importantes em qualquer processo avaliatório.
Elas fornecem evidências que permitem aos avaliadores irem além das impressões
ou informações incompletas incorporando nos processos avaliatórios, o acervo de
conhecimentos e informações já existentes a respeito; permitem controlar, de alguma forma, a tendência a corporativismos que pode existir em qualquer processo de
avaliação, dando condições para a obtenção de resultados mais fidedígnos. Segundo
Schwartzman (1988, p. 21-46), a vantagem dos métodos quantitativos é que eles
permitem a realização de comparações sistemáticas e a análise estatística de relações e efeitos que geralmente se perdem na análise qualitativa diferenciada.
Por sua vez, os métodos qualitativos, vistos como o extremo oposto dos
métodos quantitativos, têm a vantagem de incluir uma grande riqueza de informações e percepções que muitas vezes escapam dos formulários padronizados. Eles
também permitem uma interação contínua e proveitosa entre avaliadores e avaliados. Entretanto, pela ausência de critérios e padrões externos de referência, correm
119
Revista Online FADIVALE - 2005
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
o risco de nâo refletirem senão as pré-concepções iniciais dos avaliadores.
Fortemente presente nas formulações governamentais, a ênfase quantitativa é um fator a considerar mas pode ser incapaz de dar o preciso diagnóstico das
dificuldades da instituição para mudar e melhorar a sua “qualidade substantiva, ou
seja, a sua capacidade de atuar como agente alavancador de mudanças pessoais
e sociais que promovam a qualidade de vida” (GOLDBARG, 1998, p. 56).
Parece que a conjugação destes dois procedimentos, aliados a outros
que a instituição julgar apropriados, possibilitarão maior fidedignidade e credibilidade ao processo de avaliação institucional.
Neste sentido, o paradigma científico emergente, entendido como um
conhecimento prudente para uma vida decente conduz à necessidade de se
estabelecer, através do processo avaliatório institucional, uma estreita relação
entre a dimensão científica (simbolizada na objetividade e padronização dos
instrumentos de construção de dados para a avaliação) e a dimensão políticosocial deste processo (simbolizada na consideração das especificidades, tanto
dos sujeitos quanto das realidades avaliadas em relação ao compromisso social
da instituição). Assim, numa perspectiva de transição e complexidade histórica,
este paradigma emergente se apresenta como uma alternativa para a garantia
da qualidade institucional e validade da avaliação.
É certo que todo processo de avaliação está comprometido com um
determinado tipo de sociedade e de educação e a leitura que se fará dele refletirá a sua finalidade. Desta forma, indagar a pretexto do que é que se avalia,
a quem interessa avaliar tudo e todos, qual a lógica que orienta o processo e
as conseqüências dessas opções, constitui o princípio básico para se entender e garantir a legitimidade da avaliação institucional. Se o discurso interno
pode ser considerado viciado e o externo inadequado, talvez a confluência de
ambos [...], represente a fórmula mais madura para avaliar a especificidade do
trabalho universitário (GOERGEN, 2000, p. 17).
4 AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE AVALIAÇÃO DAS IES
Apesar dos discursos inovadores, ditos modernizantes ou pós-modernos nos processos avaliatórios e trabalhando com a concepção de avaliação
como resultado, como uma mercadoria que expõe a instituição ao consumo
120
da clientela e que tem por objetivo comparar instituições através de conceitos
ou notas tornadas públicas, o Estado tenta impor avaliações que se constituem em verdadeiros controles sobre as IES, ferindo a liberdade acadêmica
e a autonomia dos processos avaliatórios.. Para Sguissardi, subordinar os
serviços públicos essenciais, no caso a educação (grifo nosso) aos ditames
do capital para recuperar-lhes e garantir-lhes a eficiência e a qualidade foram
as palavras de ordem que se impuseram até hoje.
Considerando-se que a propagada eficiência está atrelada à lógica
do capital e, portanto, do lucro, a sustentabilidade no mercado passa a ser a
questão central nas preocupações das instituições educativas, públicas ou privadas, relegando-se a segundo plano os seus reais compromissos enquanto
formadoras, construtoras de conhecimentos e agentes de transformação social.
Sob a perspectiva neoliberal, infere-se que a crise de qualidade se assenta na
improdutividade das IES e deve ser resolvida mediante uma decidida reforma
administrativo-gerencial. que, mais do que equilibrar custos-benefícios, garanta
a competitividade nacional e internacional.
Desta forma, as IES se vêem diante de questões que afetam profundamente sua identidade e sua função competindo, portanto, à avaliação, papel de
destaque na identificação e contextualização destas questões.
Ao reconhecer que a eficiência e a produtividade têm para a educação
significados distintos daqueles que esses termos recebem no mundo econômico,
Dias Sobrinho (2000, p. 103) afirma que:
a IES tem como fundamento de sua existência a formação de cidadãos, ou seja, pessoas com grande capacidade técnica e espiritual
para promover os valores de sua sociedade. É nessa perspectiva que
devem ser avaliados a eficiência, a produtividade, os rendimentos,
enfim, todas as categorias performativas.
Entendendo que a avaliação deve ajudar a instituição a melhor cumprir a missão que a sociedade historicamente lhe confia, não se deve esquecer
que uma IES de qualidade preserva uma razoável capacidade de respostas
imediatas, mas nunca se descuida de uma postura analítica e crítica em relação
ao seu próprio papel. Antes de ser instrumento para o sucesso do indivíduo na
sociedade, compete-lhe habilitá-lo para o serviço à sociedade.
O conhecimento das políticas públicas em educação, essencialmente for121
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
muladas por meio de leis, decretos e outras formas de regulamentação governamental
é de fundamental importância para que se possa avaliar, corretamente, o seu impacto
sobre as instituições educacionais e sobre o dia-a-dia da vida acadêmica.
Analisando algumas dessas regulamentações governamentais, especificamente aquelas ligadas à política de avaliação da educação superior
no Brasil, nas duas últimas décadas, pode-se percebê-las como típicas de um
Estado avaliador e legitimadas no contexto internacional no qual a epistemologia
de mercado reforça o circuito capitalista hegemônico.
Verifica-se, no contexto histórico brasileiro, que a década de oitenta
foi pródiga em iniciativas de avaliação das universidades, tanto por iniciativas
próprias, quanto pelo governo, especificamente em relação à graduação. Este
período foi marcado, principalmente pelo aprofundamento das discussões, no
meio acadêmico, sobre a necessidade de uma reforma que possibilitasse um
novo direcionamento para o papel referente à natureza da instituição universitária e seu compromisso social. Questões foram levantadas pelo governo
pedindo esclarecimentos sobre o que pensa a universidade, o que de fato
ela faz e para onde vai sua produção.
Ganhou destaque neste período, o Programa de Avaliação da Reforma
Universitária – PARU, iniciado em 1983 e que representou a primeira tentativa
abrangente, realizada pelo MEC e direcionada ao conjunto do sistema de educação superior (universidades e instituições isoladas,, públicas e privadas). Sob
a responsabilidade da CAPES, a intenção anunciada era a de um diagnóstico da
situação da educação superior pós-reforma universitária, detectando objetivos
alcançados e dificuldades encontradas, numa ação conjunta envolvendo setores
da educação superior e segmentos da sociedade.
Apesar do número representativo de IES que fizeram parte do PARU,
nem a primeira etapa prevista pelo Programa foi concluída, sob a argumentação
crítica de que os questionários dirigidos aos professores mostravam as desproporções no direcionamento das perguntas (2/3 delas referindo-se ao ensino, à
pesquisa, à extensão e apenas 1/3 tratando da política de pessoal docente e
gestão das IES), além dessas questões parecerem responsabilizar o professor
pela crise que a universidade brasileira se encontrava Pouco tempo depois o
PARU foi desativado sob a alegação da CAPES de ampliá-lo e aliá-lo ao Projeto
de acompanhamento e Avaliação do Desempenho Gerencial e Acadêmico das
122
IES aos Projetos de Cooperação Técnico-Institucional e de Estudos de Custos
e Alocação de Recursos nas IES Federais.
Em 1984, a SESu apresentou uma proposta oficial objetivando conhecer mais detalhadamente a realidade específica dos cursos de graduação das
universidades federais para posterior direcionamento de recursos concedidos
por ela às instituições participantes. Criticada pela deficiência dos instrumentos
de avaliação que não forneciam dados necessários para uma caracterização
completa da realidade dos cursos e, portanto, não permitiam a elaboração de
um quadro geral ou comparativo das instituições, além de estabelecer um curto
período de tempo para a coleta de dados, implicando uma amostra pequena e
arbitrária de dados e dificultando a análise a respeito da qualidade dos cursos e
das instituições envolvidas, a SESu reconheceu que os mecanismos utilizados
não foram os mais adequados e solicitou que a comunidade acadêmica revisse
objetivos e estabelecesse as estratégias para a retomada dos trabalhos.
Uma proposta alternativa de avaliação, voltada para o sistema de educação superior, elaborada por um Grupo de Consultores na área de Educação
propunha que a sistemática de avaliação deveria envolver o MEC/SESu, assumindo a função diagnóstica do processo através da verificação dos pontos fortes
e falhos para seu aprimoramento e as IES assumindo a função somativa, através
da constatação de produtos finais previstos e não previstos.
Ignorando as sugestões do Grupo de Consultores universitários, em
dezembro de 1985 o MEC criou o Programa Nova Universidade - PNU, de apoio
às atividades de graduação de todas as IES públicas e privadas, com o objetivo de reverter a situação atual em que se encontrava o ensino de graduação,
mais voltado para o credencialismo do que para a efetiva capacitação humana,
profissional e técnico-científica. A participação das instituições se concretizaria
mediante apresentação de projetos de pesquisa, inclusive na área de Acompanhamento e Avaliação Institucional cujos indicadores da qualidade institucional
deveriam ser revelados pelo desempenho gerencial, administração universitária,
cooperação técnica interuniversitária, cooperação técnica internacional, avaliação
de custo/aluno, custo/pesquisa, modelos de alocação de recursos, financiamento
e avaliação de desempenho orçamentário.
Análises da estratégia do PNU, que aprovou e financiou 784 dos
3000 projetos apresentados, concluíram que as verbas necessárias à manu123
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
tenção das universidades existiam e estas é que eram mal gerenciadas. Mais
uma vez, a transferência de responsabilidades do Estado para as IES sobre
a ineficiência do sistema educacional superior provocaram reações no meio
acadêmico e a descontinuidade do programa, apontando para questões de
ordem política que refletem as concepções ideológicas norteadoras da atual
ordem estabelecida pelo governo brasileiro.
Embora, ainda, tenha havido algumas experiências isoladas e precursoras de avaliação institucional na década de oitenta, como os casos da UnB
(1986), da USP(1987), da UFMG (1989) e da UNICAMP (1990), foi apenas em
1993 que as universidades brasileiras voltaram a aceitar e a discutir a idéia de
avaliação institucional. O Programa de Avaliação Institucional das Universidades
Brasileiras -PAIUB, apresentado em 1994 como proposta nacional de avaliação
do ensino superior brasileiro alavancou este processo de reflexão.
Instituído pelo Ministério da Educação, em 1993, sob a responsabilidade
da Secretaria de Educação Superior – SESu, o PAIUB teve como suporte uma
Comissão Nacional de avaliação composta por representantes da própria SESu,
de associações como a Associação Nacional de Instituições Federais de Ensino
Superior (ANDIFES), a Associação Brasileira de Universidades Estaduaus e
Municipais (ABRUEM), a Associação Nacional de Universidades Particulares
(ANUP) e a associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas (ABESC). Além
disso, compunha esta equipe um Comit///ê Assessor, formado por especialistas
na área e indicados pelos diversos setores representativos.
Apesar do reconhecido sucesso do PAIUB como o programa mais sólido
e consensual, representando a iniciativa mais concreta e democrática da política de
ensino superior ao privilegiar a autonomia e a liberdade acadêmica sob os princípios
de legitimidade e participação voluntária, respeito à identidade institucional, não premiação ou punição, globalidade, comparabilidade e continuidade, ele acabou sucumbindo-se à lógica e interesses da ordem estabelecida. Apresentando em sua proposta
de coleta de informações, uma metodologia baseada em indicadores quantitativos
captados em uma série histórica, via sistema burocrático-informatizado da instituição
e uma concepção de qualidade sustentada em índices quantitativos padronizados
nacionalmente como indicadores de excelência universitária, desconsiderando as
especificidades e o contexto de cada instituição, o PAIUB gerou discussões no meio
acadêmico, principalmente no âmbito das IES particulares, revelando contradições
124
epistemológicas e filosóficas nele contidas e demonstrando que seus objetivos e
intenções não correspondiam aos princípios inicialmente propostos.
Com a mudança de governo, a sua continuidade foi desacelerada. Sob a
alegação de insuficiente resposta esperada deste programa, na verdade, o MEC não
encontrou, no PAIUB, sustentação para processar o ajuste das instituições ao tipo de
instituição necessário ao seu projeto neoliberal. Como no caso do PARU, já citado,
a pretexto da necessidade de reestruturação e adequação de sua estrutura aos propósitos e interesses da nova política de educação superior e diante da mobilização
das universidades para a sua manutenção, o PAIUB passou a integrar, formalmente,
o conjunto de medidas do Decreto 2026/96 que estabeleceu os procedimentos para
o processo de avaliação de cursos e das instituições de ensino superior.
Compondo e complementando o conjunto de ações legais nesta área,
foi criado o Exame Nacional de Cursos. A Lei nº 9.131, de 24 de novembro de
1995 estabeleceu, em seu art.3º, a exigência de avaliações periódicas das
instituições e dos cursos de nível superior, fazendo uso de procedimentos
e critérios abrangentes dos diversos fatores que determinam a qualidade e
a eficiência das atividades de ensino, pesquisa e extensão, com vistas ao
credenciamento e recredenciamento periódicos das instituições de educação
superior, inclusive universidades, e reconhecimento dos seus cursos. O parágrafo primeiro do mesmo artigo da lei estabelece a exigência de que, entre
os procedimentos e critérios abrangentes, inclua-se a realização de “exames
nacionais” destinados a “aferir os conhecimentos e competências adquiridos
pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de graduação”.
Para o MEC, o exame visava verificar a aquisição de conhecimentos e habilidades básicas do formando, qualquer que fosse a sua inserção
social ou geográfica. Dessa forma se teria elementos comparativos para que
as instituições e os formandos se situassem em relação ao referencial estabelecido em cada área. As bases comuns de conhecimentos e habilidades
estabelecidas para o exame, e a comparabilidade propiciada pela aplicação
de instrumentos equivalentes para todos os alunos permitiriam, ao longo
do tempo, ir acumulando conhecimentos que serviriam de referência para a
avaliação do desempenho dos cursos, instituições e sistemas.
Entretanto, esta não foi a concepção da União Nacional dos Estudantes, da ANDIFES, do CRUB, da ANUP, da ANDES, da ABMES e de outras
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
associações de classe que o consideraram inadequado, ineficaz e inviável para
qualificar a formação e a capacidade técnica de um profissional. A avaliação ao
final do curso, através de um conjunto de questões objetivas e padronizadas
nacionalmente, de caráter somativo e classificatório, baseou-se em resultados
de excelência questionáveis, referendados pelo projeto neoliberal, ignorou a diversidade regional dos cursos e não correspondeu à globalidade das atividades
da instituição que vão muito além do ensino. Além disto, infelizmente, contribuiu
para a exclusão de egressos no mercado de trabalho, classificando-os como
profissionais de primeira ou segunda categoria em função da nota obtida no
exame e que necessariamente não refletia a sua qualificação.
É evidente, também, que o Exame Nacional de Cursos, como processo
autoritário, refletia as características de um Estado mínimo avaliador, ferindo a autonomia didático-pedagógica, científica e administrativa das IES, projetando um ranking
das instituições de ensino superior, com punições às mal colocadas e premiação às
que estivessem em primeiro lugar, transferindo para os alunos e para as instituições,
a responsabilidade do sucesso ou do fracasso profissional. O curso superior passou
a ser uma mercadoria de consumo, de adestramento profissional para atender a demanda de qualificação para o mercado, em atendimento a exigências internacionais
de racionalização dos gastos públicos e imposição da ordem estabelecida.
A avaliação do ensino pelo “provão”, com base no conceito de qualidade intrinsecamente ligado à produtividade enquanto quantidade e totalmente
desvinculado do projeto institucional, que confere a cada universidade a sua
identidade própria, é um mecanismo que não encontrou legitimidade no meio
acadêmico, visto por este como pretexto para o Estado, através do MEC, justificar à sociedade as medidas para atender aos organismos internacionais, reais
gestores da educação nos países periféricos.
No dizer de Sguissardi (1997, p. 52-53):
fica evidente, tanto pelos documentos oficiais mais importantes quanto
por pronunciamentos dos titulares do MEC nos últimos 10 a 15 anos,
que as propostas oficiais de avaliação se fundam invariavelmente,
apesar da linguagem mais ou menos disfarçada, na idéia de eficiência,
de produtividade, correspondentes à concepção neoliberal de modernização ou simplesmente à lógica do capital no desenvolvimento da
sociedade contemporânea.
Evidencia-se neste processo histórico de políticas de avaliação do
126
ensino superior, a descontinuidade dos programas, eminentemente marcados
por critérios eficientistas, impostos de fora para dentro e influenciados por exigências de cunho sócio-econômico transnacionais, refletindo o caráter regulador
das propostas avaliatórias do Estado no sentido de ajustar a educação superior
aos determinismos do mercado e aos conceitos de produtividade, excelência e
competitividade do modelo neoliberal, além de reduzir a IES a locus de produção
tecnológica e profissionalização de indivíduos, no sentido utilitário do termo.
É inegável que um sistema nacional de avaliação do ensino superior
é necessário para que o Estado possa conhecer melhor a realidade das IES no
país e estabelecer sua política de educação de forma a garantir a democratização
das oportunidades de acesso e a eqüidade na distribuição dos recursos públicos.
Importa, entretanto, respeitar as instituições estimulando e valorizando processos
de auto-avaliação e utilizando seus resultados para subsidiarem intervenções que
assegurem a qualidade institucional e contribuam para elevar o seu padrão de
excelência, contrariamente ao que vinha ocorrendo com a indevida exploração
dos resultados do exame nacional de cursos.
idealmente, um sistema nacional de avaliação deveria ser coordenado por algum tipo de comissão, ou conselho, de forte base acadêmica
e profissional, formada por pessoas ativas e de prestígio nas associações profissionais, sociedades científicas e principais universidades
do país. [...] É importante, ainda que alguns princípios básicos sejam
mantidos durante todo o processo. O primeiro é que a avaliação
deve ser voluntária, ou seja, só entram no processo de avaliação os
cursos cujas autoridades responsáveis concordarem em participar.
O segundo é que a avaliação deve ser feita de recursos do Ministério [...]. Terceiro, que diferentes setores e áreas do conhecimento
podem trabalhar em ritmos distintos, eventualmente adotar também
formatos distintos (SCHWARTZMAN, 1988, p. 21-46).
Se o ideal de Schwartzman ainda não é uma realidade em sua totalidade, principalmente quanto ao princípio da voluntariedade, alguns de seus
postulados parecem tomar forma na mais nova proposta do Estado para avaliação das IES, editada como Medida Provisória nº 147, de 15 de dezembro de
2003. Segundo o art. 1º desta medida:
fica instituído o Sistema Nacional de Avaliação e Progresso do Ensino Superior, com a finalidade de avaliar a capacidade institucional, o processo
de ensino e produção do conhecimento, o processo de aprendizagem e a
responsabilidade social das instituições de ensino superior avaliadas.
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
Pelo que se percebe, tanto a dimensão totalizadora da Avaliação, quanto
os indicadores da qualidade institucional foram definidos nesta nova proposta,
que também assegura no seu art. 2º o caráter público de todos os processos e
procedimentos, o respeito à identidade e à diversidade de cursos e instituições,
a participação do corpo discente, docente e técnico-administrativo, bem como
da sociedade civil, por meio de suas representações.
Porém, em face deste sistema hegemônico contraditório que, de um
lado, defende um Estado fraco e uma sociedade regulada pela mão invisível
do mercado e, por outro lado, orienta-se pela presença de um Estado forte em
certas áreas, sobretudo no que se refere a valores, condutas e tipo de conhecimento que sustentem seus propósitos, é indispensável que as IES, por intermédio da auto-avaliação institucional, assumam uma postura crítico-reflexiva
acerca de sua missão e de seus compromissos com a ciência e a sociedade,
fazendo valer sua própria identidade como contraponto ao caráter controlador
à instabilidade das exigências legais.
5 CONCLUSÃO
Haveria um olhar que pudesse reunir, a um só tempo, o olhar sensível e o inteligível e que nos permitisse, mesmo habitando o mundo
e as coisas, penetrar no para além ou no íntimo do sensível? Que
nos permitisse ir para além do real sem nega-lo? Que englobasse
a visão da ciência e da filosofia? [...] Que olhar é esse?
(Neidson Rodrigues)
Estabelecidos os parâmetros da Avaliação Institucional nas dimensões
do ideal e do legal, é possível extrair da confrontação entre estas dimensões,
subsídios para uma visão mais crítica desse processo complexo, mas indispensável à sobrevivência institucional.
Tomando como ponto de partida os princípios de globalidade, integração e diversidade, defendidos pelos autores que fundamentam teoricamente
este estudo, apreende-se que qualquer projeto de avaliação que vise alcançar
a dimensão institucional precisa contemplar, como variáveis a serem avaliadas,
além daquelas inerentes às atividades-fim da universidade, também aquelas
relacionadas às atividades-meio que dão sustentação à academia. Enquanto no
ensino, na pesquisa e na extensão parecem ser mais evidentes o que, como e
por que avaliar, devido à enorme quantidade de experiências já consolidadas de
128
avaliação de cursos, incluindo aquelas feitas pelas Comissões de Especialistas
do MEC e pelo ENC, na área administrativa da universidade a posição se inverte.
Poucas são as IES que conseguiram efetivar um diagnóstico mais abrangente,
que levasse em consideração o projeto institucional concreto, seu modelo de
gestão e as condições de operacionalização das atividades por elas desenvolvidas. Nem mesmo as avaliações estabelecidas pelo Estado levam em conta estas
variáveis, uma vez que o contexto sócio-histórico e as políticas institucionais,
componentes do quadro das diversidades acadêmicas, não estão enquadrados
nos padrões oficiais de avaliação. Entretanto, são nessas peculiaridades que a
identidade universitária se revela e a instituição se faz reconhecida.
Como processo orientador de tomada de decisões, não se pode desconsiderar que a Avaliação Institucional se encontra atrelada à função administrativa da universidade, exigindo daqueles que a assumem, posturas éticas e
comprometidas com a transparência e a melhoria continuada da instituição. Caso
contrário, ao invés de contribuir para o aprimoramento e o crescimento da universidade, a Avaliação Institucional poderá tornar-se instrumento de poder cujos
efeitos perversos, segundo Santos Filho (1999, p. 178) podem ser traduzidos
em homogeneização institucional (definição de critérios únicos e iguais para a
avaliação de diferentes indicadores), preocupação maior com o que a universidade faz mais do que como está fazendo e, sobretudo, tendência à criação de
sistemas de administração mais hierárquicos e centralizados. Para este auto
fluidez e flexibilidade organizacional são tradições que as universidades precisam
salvaguardar neste século, fazendo uso de metodologias alternativas de avaliação
institucional, sempre amparadas numa gestão democrática e colegiada.
Outro aspecto a se considerar é que, na perspectiva do planejamento
estratégico, onde a liderança administrativa envolve o estabelecimento de direção
para a organização, corre-se o risco de imposição de indicadores de qualidade
referendados apenas pelo atendimento às necessidades imediatas do mercado,
centrados numa concepção instrumentalizada de qualidade.
Sustentando a defesa de uma gestão fundamentada na ciência da
educação como alternativa para a definição de indicadores de avaliação mais
próximos da concepção crítico-emancipatória da qualidade universitária, Silva
Jr. (1993, p. 74) alerta para a necessidade de o administrador identificar-se com
a própria condição de educador, ao afirmar:
129
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AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
se o administrador da educação já não se identifica necessariamente
com a própria condição de educador, ou seja, se ele é “da administração” e não “da educação”, suas decisões não serão inspiradas nem
pela ciência prática da educação, que desconhece, e nem pela práxis
educacional em que não se reconhece. [...] A administração é “condição para” e, como tal, é determinada pelo fim a que se destina.
Diante das exigências educacionais contemporâneas de flexiblidade
mental, inserção crítica na realidade, domínio de informação como condição para
o conhecimento e inclusão social, a Avaliação Institucional se apresenta como
um convite e um desafio permanente à reflexão e à construção de uma nova
cultura educacional fundamentada, principalmente, na competência solidária que
propicie o aprender uns com os outros.
Compreendida como espaço de construção/reconstrução de idéias e
de práticas institucionais, a Avaliação Institucional se presta a mediar o conflito
entre a IES que se é, a que se deseja ser e a que se espera que ela seja, favorecendo a síntese entre estas três proposições, sem perder de vista o que Dilvo
Ristoff (1997, p. 75) enfatiza:
quero – neste momento em que, às portas de um novo século, estamos vivendo o processo de redefinição do que a universidade deve
ser – lembrar que o compromisso da Universidade, mais por natureza
do que por convenção, vai além do compromisso de treinar recursos
humanos ou de preparar os “bárbaros altamente qualificados” de que
nos fala Miller. Nosso compromisso é o de contribuir para a formação
do homem, do ser humano, em sua totalidade. [...] A profissão é tão
somente um aspecto do ser humano, ajuda a completá-lo e é, por
isso mesmo, necessária. Confundir a profissão com o ser humano,
entretanto, é como achar que o soldado nada mais é do que a farda,
o químico nada mais do que um tubo de ensaio, o matemático nada
mais que uma equação, o professor nada mais do que uma lição.
Ao ocupar o espaço de mediadora do processo de recuperação e consolidação da identidade institucional, a Avaliação acentua a necessidade de se
apoiar no projeto educacional da IES como seu objeto de investigação, buscando
nele as variáveis sobre as quais o processo avaliatório deverá incidir, plenamente
convicta de que, no âmbito da academia, não há mais certezas absolutizadas, implicando um comprometimento com a razão crítica conectada aos fins institucionais
e ao contexto social e cultural que envolve a instituição. Por isso, uma proposta
de Avaliação Institucional nos moldes que se defende neste estudo, requer um
130
planejamento global da instituição, que busque um aperfeiçoamento contínuo nas
concepções vigentes do trabalho na academia, tanto pedagógicas quanto gerenciais e técnico-administrativas, e contemple as transformações necessárias para
o alcance dos fins da instituição e a garantia de sua legitimidade social.
Se, de um lado, a IES deve satisfazer as necessidades do setor
produtivo e de serviços quanto à demanda de força de trabalho qualificado,
por outro, e mais importante, a IES deve resguardar a sua função de criação
e formação da consciência crítica da sociedade mediante a transmissão e a
difusão de conhecimentos científicos gerados pela academia, num processo
integrado de ensino, pesquisa e extensão. Como dar conta desta dualidade de
função preservando a coerência com a sua identidade? Três aspectos, segundo
Brunet (1997, p. 88-89), merecem atenção especial da Avaliação Institucional
para garantia desta coerência: - a natureza dos serviços educacionais, que fundamentalmente devem ser vistos como serviços sociais a serem avaliados, em
que medida foram prestados e até que ponto corresponderam às expectativas
que a sociedade tem em relação a esses serviços; - as características dos
produtos finais, que implica a consideração da muldimensionalidade da ação
educativa sobre os sujeitos do processo e da complexidade de avaliação dos
efeitos dessa ação, uma vez que uma mesma ação acadêmica pode produzir,
simultaneamente, múltiplos efeitos de diferentes natureza; - a forma de organização das instituições, compreendendo a avaliação das diversas funções e
tarefas que contribuem para a consecução dos objetivos e produtos da IES.
Assim sendo, é necessário que a avaliação ultrapasse o enfoque tecnicista de produção de dados, visando identificar e discutir, pelo debate democrático,
questões que estão além das aparências, mas que não podem ser minimizadas
num processo de Avaliação institucional, tais como: - quais as principais dificuldades para a consolidação ou reconstrução da identidade da universidade? – como
o poder se distribui internamente na universidade? – de que modo interesses
corporativos dificultam avanços na construção de uma política acadêmica? – como
os setores externos à universidade têm participado e interferido na realidade interna da instituição? Ou seja, são estes e outros aspectos relacionados à cultura
organizacional e às funções da universidade no contexto da educação superior
no país e da sua inserção social que deverão ser considerados, pela avaliação,
como indicadores de eficiência, eficácia e qualidade institucional.
131
Revista Online FADIVALE - 2005
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL – DESATANDO “NÓS” DO PROCESSO
Estes questionamentos induzem à reflexão sobre os fundamentos
da competência institucional, sobre a qual Valdemar Sguissardi (1997, p. 50)
assim se refere:
na perspectiva de um sistema de avaliação institucional acadêmicocrítico, que supere os limites da reprodução da ordem, a competência
deveria referir-se à capacidade e habilidade de contribuir para se
ultrapassar as demandas imediatas do mercado de trabalho, para
se desenvolver a capacidade de pensar criticamente e de produzir
conhecimento, liberto dos controles burocráticos e do poder. De outro
modo, “a competência continua sendo peça-chave para a reprodução
do status quo e a sua conseqüente manutenção legitimada”
Pelo que se percebe, a competência institucional não se restringe ao pronto
atendimento aos padrões legais de qualidade determinados pelas políticas governamentais; é, sobretudo, resultante de um esforço coletivo e contínuo de concretização
do compromisso social da IES, especialmente em sua região de abrangência.
Outro aspecto destacado por José Dias Sobrinho é o da titularidade do
processo de Avaliação Institucional. A quem serve a Avaliação Institucional? A
resposta não é tão simples quanto parece. Nas entrelinhas de propostas auto
considerados institucionais, pode-se perceber um conjunto de procedimentos
voltados, basicamente, ao atendimento dos parâmetros de eficiência e produtividade determinados pelas políticas do Estado, com vistas ao reconhecimento
de cursos, sem a preocupação com a totalidade do processo e muito menos com
a sua dimensão formativa, no sentido de apontar alternativas para as correções
de rumo necessárias à consolidação da identidade da instituição.
No exercício da crítica e da reflexão sobre a Avaliação Institucional há
de se considerar, sobretudo, os processos de socialização e apropriação dos
seus resultados, traduzidos em relatórios orais ou escritos, cuja produção é a
comprovação material de que a avaliação foi feita e de que o esforço avaliativo
não foi em vão (RISTOFF, 2000, p. 113).
Entretanto, parece comum que os relatórios aos quais se refere o autor
acabem sendo apenas o cumprimento de mais uma formalidade para compor os
processos de reconhecimento de cursos, sem a devida e necessária discussão
pelos seus maiores interessados. Para quem avaliar?
ao governo interessa a avaliação do desempenho, na busca da
constatação se os investimentos feitos no ensino superior estão
132
sendo bem utilizados. E ao sabor das mudanças dos mandatários
varia o enfoque dado ao processo.
A sociedade, como um todo, clama pela avaliação das IES, por
considerar insatisfatório o seu papel na atualidade. Questiona
sua eficiência no ensino, reclama por pesquisas mais aplicadas
às realidades sociais; se são gratuitas quer mais vagas, se são
pagas quer mais qualidade.
Mas, sem dúvida, a maior interessada é a própria instituição. É ela
que necessita conhecer-se, rever seu papel, saber de sua qualidade
(COELHO, 1996, p. 27).
Certo é que interessa a Avaliação Institucional a todos que, direta ou
indiretamente, constituem a comunidade acadêmica, como sujeitos em interação,
num movimento de busca contínua de caminhos que apontem para uma tomada
de decisão plenamente comprometida com o cumprimento da missão institucional.
Caso contrário, será mera formalidade e perda de tempo.
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135
8
Revista Online FADIVALE - 2005
O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
O CONTRATO DE SEGURO
E O DIREITO DAS RELAÇÕES
DE CONSUMO
Lucas Abreu Barroso*
Resumo
Abstract
Este artigo analisa o contrato de seguro na perspectiva do Direito das Relações de Consumo. Partindo da dicotomia seguro social e seguro privado,
adentra na dogmática jurídica civil do instituto e
na nova vertente principiológica que a norteia,
culminando na defesa do segurado no âmbito do
Código de Defesa do Consumidor.
This article analyses the insurance contract in light
of Consumer Law, by examining the dichotomy between State social security and private insurance.
The division is considered within the private law
context and its new guiding principles from the new
Civil Code. The article concludes with an analysis
of the contract for insurance in the context of the
Consumer Defence Code.
Palavras-chave
seguro; contrato de seguro; função social do contrato
de seguro; direito civil; direito do consumidor.
Keywords
insurance; contract for insurance; social role of the
contract for insurance; civil law; consumer law.
Sumário
1 O INSTITUTO DO SEGURO. SEGURO SOCIAL E SEGURO PRIVADO. 2 O CONTRATO DE SEGURO. 3 FUNÇÃO
SOCIAL DO CONTRATO DE SEGURO. 3.1 A DOGMÁTICA DA FUNÇÃO SOCIAL E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA. A
INSERÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL COMO PRINCÍPIO NA ÓRBITA CONTRATUAL. 3.2 A NOVA DIMENSÃO QUE SE
IMPÕE: JUSTIÇA CONTRATUAL. 4 O SEGURADO COMO TITULAR DE INTERESSE OU DIREITO METAINDIVIDUAL.
5 O CONTRATO DE SEGURO NO ÂMBITO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. REFERÊNCIAS.
* Mestre em Direito pela UFGO. Doutorando em Direito na PUC/SP. Professor da PUC/MG. Professor da Pós-graduação da FADIVALE.
136
1 O INSTITUTO DO SEGURO. SEGURO SOCIAL E SEGURO PRIVADO
A intensificação das relações inter-humanas em seus aspectos políticos,
econômicos e sociais, que acompanhou a sociedade de consumo, logo fez notar
profundas alterações no comportamento e nas condições que se estabelecem
na vida cotidiana nos dias presentes, a exigir mecanismos eficazes de proteção
à pessoa humana em suas contingências e em seu patrimônio.
Houve um aumento significativo dos riscos decorrentes da industrialização, dos transportes, das atividades laborais, da degradação causada ao meio
ambiente etc., que afetam indistintamente todas as classes sociais. Passos (2000,
p. 12) afirma, com muita precisão, que “o risco se fez integrante do próprio modo
de ser da sociedade contemporânea”.
E com ele aumenta a probabilidade da ocorrência de danos, a que se
tenta minorar os efeitos, conquanto na grande maioria dos casos seja impossível
evitá-los. Evidencia-se, pois, a necessidade de segurança nas relações jurídicosociais, o que se dá pela busca cada vez maior de uma cobertura para os fatos
futuros contra os quais as pessoas demonstram ser impotentes e, com isso, em
razão de que desejam a todo custo resguardar-se.
Meilij (1992, p. 1) lembra que “esta situación, que no es novedosa y se hunde
en los límites de la historia, hizo que el hombre ensayara en todo momento diversos
métodos que le permitieran hacer frente a las contingencias dañosas [...]”.
Neste contexto, a idéia do seguro é posta como “uma espécie de rede
jurídico-econômica que nos protege contra os riscos a que estamos expostos”
(CAVALIERI FILHO, 2000, p. 86), resultado da evolução que experimentou o
pensamento econômico que
permitió la adopción de un mecanismo más adecuado, por el
cual, mediante el aporte de una suma relativamente reducida, el
sujeto potencial del daño obtenía de otra persona el derecho a ser
indemnizado por el que pudiere ser el resultado del acaecimiento
de un siniestro (MEILIJ, 1992, p. 2).
Com efeito, o instituto do seguro, enquanto meio capaz de oferecer a
segurança enunciada, revigora-se hodiernamente e não apenas no sentido exclusivamente individual como antes concebido. A par do contrato que se estabelece
entre as partes no campo do Direito Privado, o seguro público progressivamente
137
Revista Online FADIVALE - 2005
O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
passa a ocupar lugar de destaque nas preocupações dos governos.
Assim, o seguro passou a ser classificado em dois grupos: seguro público
e seguro privado. O primeiro destinado “à proteção das classes trabalhadoras, sendo sua característica básica a obrigatoriedade” (FUNENSEG, s./d., p. 9); é operado
pelo Estado. O segundo, operacionalizado “por empresas privadas de seguro”
(FUNENSEG, s./d.); pode ou não ser obrigatório, e ter, ainda, caráter social.
Por outro lado, o Estado assume o papel de ordenador da seguridade ou
segurança social (seguridad social, securité sociale, sicurezza sociale, social security),
amparada no mutualismo (CAVALIERI FILHO, 2000, p. 88)1 e expressão dos direitos
de cooperação, conceitos estes também inerentes aos seguros privados.
Isto porque, inexiste, a rigor, materialmente, distinção na configuração das
formas de seguro encontráveis no Direito. O seguro público e o seguro privado identificam-se no tocante à natureza jurídica, distinguindo-se primordialmente em razão
do “‘sistema de gestão’ a que eles se acham submetidos” (SILVA , 2000, p. 35).
Vale ressaltar que o mutualismo consiste na “reunião de um grupo de
pessoas, com interesses seguráveis comuns, que concorrem para formação de
uma massa econômica, com a finalidade de suprir, em determinado momento, necessidades eventuais de algumas daquelas pessoas” (FUNENSEG, s./d, p. 3).
No tocante aos direitos cooperativos, temos que sobre os mesmos se
estruturam os direitos “de natureza comunitária, como os seguros” (SILVA, 2000,
p. 33), apartados substancialmente dos direitos subjetivos, estando muito mais
afetos aos direitos potestativos2. Todavia, observando a lição de Karl Larenz apud
Ovídio A. Baptista da Silva (2000) também “distinguem-se destes pelo fato de
não serem direitos apenas no interesse próprio, mas ‘direitos orgânicos’, na
medida em que possibilitam, não a formação exclusiva de uma relação jurídica
para o titular, porém sua cooperação para a formação de uma vontade coletiva.
Eles estão sujeitos a limitações derivadas do dever de fidelidade do associado
perante os demais, bem como perante à associação ou corporação”.
1 Cavalieri Filho afirma que o mutualismo é “o elemento econômico do seguro. [...] ... sua base econômica”.
2 Acerca da definição desta espécie de direito transcrevemos Andrade (1964. v. 1. p. 12): “...o poder conferido ao respectivo titular
tende à produção de um efeito jurídico mediante uma declaração de vontade do titular, só de per si, com ou sem formalidades, ou
integrada por uma ulterior decisão judicial”; Lemos Filho (1999, p. 29), citando Giuseppe Messina: “...poteri (v. Potere), in virtù dei
quali il loro titolare può influire su situazioni giuridiche preesistenti mutandole, estinguendole o creandone nuove mediante un’attività
própria unilaterale (atto reale, negozio giuridico o istanza o ricorso amministrativo)”; e, Silva (2000, p. 33): “...direitos potestativos,
em verdade, são poderes que o respectivo titular tem de formar direitos, mediante a simples realização de um ato voluntário e sem que
se exija do obrigado o cumprimento de uma prestação correspondente. [...] ...o obrigado ao invés de prestar, satisfazendo a obrigação,
apenas submete-se à vontade do titular do direito”.
138
Destarte, no entendimento do citado autor alemão, ainda de acordo com
Silva (2000) os “direitos de participação ou direitos à colaboração” consubstanciam-se em “faculdades3 dependentes”, ligadas ao status de participante de uma
determinada coletividade juridicamente protegida.
O seguro, desta forma configurado, justifica plenamente sua inserção no
campo das preocupações do Poder Público, seja assumindo seu gerenciamento
(como no caso do seguro público), seja pela intervenção estatal e pelo dirigismo
contratual (em se tratando do seguro privado), fatores que o colocam como instituto
pertencente à seara do chamado Direito Social (VENOSA, 1997, p. 268 e 273).
Nestes termos, o seguro está destinado a exercer a imprescindível tarefa
de socialização dos riscos, dos danos e do dever de indenizar. Sua operabilidade
depende de profissionais especializados, conhecedores das vicissitudes e peculiaridades de sua gestão e na atuação neste setor econômico e jurídico.
Cumpre lembrar, por oportuno, que o trabalho em tela tem por escopo
a análise do seguro privado, notadamente do contrato que o rege e a problemática que encerra sua alocação na dinâmica das relações de consumo e do ramo
jurídico que as envolve, o Direito do Consumidor.
2 O CONTRATO DE SEGURO
Para Pereira (1999, p. 301) o seguro “é o contrato por via do qual uma
das partes (segurador) se obriga para com a outra (segurado), mediante o recebimento de um prêmio, a indenizá-la, ou a terceiros, de prejuízos resultantes de
riscos futuros, previstos” (CC/16, art. 1.432; CC/02, art. 757).
Evidenciam-se, pois, as partes que o integram: segurador e segurado.
Àquele, “compete pagar a quantia estipulada para a hipótese de ocorrer o risco
previsto no contrato” (GOMES, 2000, p. 410-411); a este, “assiste o direito de
recebê-la, se cumprida a sua obrigação de pagar a contribuição prometida, que
se denomina prêmio” (GOMES, 2000, p. 411).
Afora as partes, o contrato de seguro tem ainda como elementos
3 Lemos Filho (1999, p. 19) em abordagem a respeito das faculdades jurídicas, diz que “as faculdades são, afinal, as conseqüências
do direito que integram”, destacando que “desse conceito decorre: a) a faculdade não tem vida própria; b) a faculdade sucede logicamente do direito; c) a faculdade pode deixar de ser exercida sem afetar a existência do direito”, reforçando seu posicionamento na
doutrina de San Tiago Dantas, para quem “as faculdades jurídicas decorrem das normas que atribuem efeitos jurídicos a certos atos
praticados pelo homem”.
139
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O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
o interesse segurável (objeto do contrato de seguro) 4, o risco5 (“resultante
de um evento futuro, possível e incerto” (FUNENSEG, s./d., p. 4)), o prêmio
(prestação devida pelo segurado ao segurador, em virtude da assunção dos
riscos por parte deste) e a apólice (que consiste “no instrumento do contrato
de seguro” (GOMES, 2000, p. 411 e 413).
Não se pode descurar em mencionar, embora não constituam elementos
do contrato em análise, o dano, o sinistro e o beneficiário, eis que indispensáveis
à melhor compreensão do mesmo. O dano é o prejuízo pessoal (físico, psíquico
ou moral) ou material (patrimonial), decorrente de deterioração sofrida pela pessoa em relação a si ou a seus bens. O sinistro, por sua vez, é a ocorrência do
evento a produzir determinado dano. Beneficiário “é quem efetivamente receberá
da seguradora a importância relativa ao prejuízo; tanto pode ser beneficiário o
próprio segurado como uma terceira pessoa, dependendo sua indicação de
cláusula contratual” (MARTINS, 1999, p. 357).
O contrato de seguro possui requisitos subjetivos, objetivos e formais.
Os subjetivos referem-se às partes contratantes. Somente pode ser
segurador a pessoa jurídica. Por ser “atividade empresária” (PEREIRA, 1999, p.
304), a atuação no campo dos seguros está “reservada às sociedades anônimas,
à sociedades mútuas e às cooperativas” (PEREIRA, 1999); a estas últimas sendo
facultado operar apenas no caso de seguros agrícolas e de acidentes do trabalho.
Destaca-se, ainda, que têm “capacidade de segurador as instituições de previdência
social, relativamente aos seus associados ou à categoria laboral nelas compreendidas” (PEREIRA, 1999) e o Estado, no que concerne ao seguro público relacionado à Previdência Social. A legislação impõe também, a título de requisitos, uma
série de exigências de observância peremptória quanto à formação, composição
e condições para funcionamento dessas instituições, bem como quanto a seus
sócios. Para a posição de segurado é requerida, basicamente, a capacidade civil,
devendo-se averiguar disposições legais que geram peculiaridades em torno do
mesmo, sobretudo no tocante à obrigatoriedade de contratar seguro.
Os requisitos objetivos estão vinculados ao objeto. Como salientado
anteriormente, o contrato de seguro tem como objeto o interesse segurável,
4 “ [...] é, justamente, através do interesse segurável que se calcula a indenização visada pelo seguro. Deve ser lícito, em relação ao
segurador, muito embora às vezes constitua um ato ilícito, em relação a terceiros” (MARTINS, 1999, p. 357).
5 Cavalieri Filho (2000, p. 88) diz que o risco “é o elemento material do seguro”.
140
respaldado no risco a que se visa proteger. Pereira (1999, p. 305) adverte que,
não obstante, “nos seguros privados tenham as partes a faculdade de escolher
a espécie ou a combinação de espécies a seu aprazimento, exigências legais
são impostas, que não podem ser derrogadas pelos pacta privata”. Outro
aspecto de destaque no tocante ao objeto do contrato de seguro diz respeito
à verificação de sua licitude, haja vista que esta espécie contratual, a par da
exigência normativa de que a validade dos negócios jurídicos em geral requer
objeto lícito (CC/16, art. 82; CC/02, art. 104), comporta “ilícitos especiais”6. A
ilicitude eiva de nulidade toda forma de manifestação negocial e, não diferentemente, o fenômeno se repete no contrato de seguro.
Por requisitos formais entende a maior parte da doutrina a exigência de
que o contrato de seguro seja celebrado por escrito – o que, na verdade, revela
uma imprecisão terminológica, a considerar que todo contrato reveste uma forma,
mesmo que verbal,7 por ser a forma elemento essencial, na categoria dos estruturais, do contrato –, divergindo aquela principalmente no sentido de precisar se
a formalidade especial (escrita) é requerida como da substância do mesmo ou se
a título de prova de sua realização. A questão resume-se em saber se se trata de
forma ad substanciam ou ad probationem, pois daí decorrerão ou não os regulares
efeitos que do contrato de seguro se espera. Enzo Roppo (1988, p. 98-99), ao
aclarar a distinção verificável entre ambas, forma ad substantiam e ad probationem,
preleciona: naquela, a ausência da formalidade especialmente exigida “...impede
que o contrato se forme validamente e produza os seus efeitos...”; nesta, “...a falta
de forma [especial] ... não preclude a válida formação do contrato e a regular produção dos seus efeitos, mas torna-se apenas mais difícil, para quem nisso tenha
interesse, prová-los e fazê-los valer em juízo...”. Em razão de acarretar a nulidade do
contrato, em ocorrendo sua inobservância, a forma ad substantiam actus ou constitutiva é, assim, vinculada ou necessária para a validade do contrato (MISSINEO,
1973, p. 144-145); a forma ad substantiam integra o direito substancial (material),
configurando-se em um ônus imposto à autonomia das partes (MESSINEO, 1973,
6 Pereira (1999) “[v. g.] como o seguro por mais do que valha a coisa segurada, ou a pluralidade de seguros sobre o mesmo bem
(seguro cumulativo), com exceção do de vida”.
7
Bessone (1997, p. 108): “ [...] a forma é essencial a todo e qualquer contrato, desde que este, para tornar-se socialmente eficaz,
necessita sempre representar-se exteriormente, identificando-se, e ao demais, a distinção entre os negócios formais e os não formais
somente quer significar que há atos com forma taxativa ou solene e atos com forma livre, não determinada previamente pela lei, sem
afirmar, entretanto, que existam atos sem uma forma qualquer”.
141
Revista Online FADIVALE - 2005
O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
p. 148). Por outro lado, a forma ad probationem tantum é prescrita para facilitar
a prova, consubstanciando-se em instituto voltado ao direito processual (MESSINEO, 1973), e, além da mencionada finalidade, serve, ainda, como “un limite
alla valutazione discrezionale da parte del giudice, chiamato a decidere su una
controversia relativa all’atto” (MESSINEO, 1973). Entendemos, sem embargo das
abalizadas opiniões divergentes encontráveis na doutrina nacional e estrangeira,
que a forma especial no contrato de seguro constitui-se forma ad probationem,
direção esta, aliás, sinalizada pelo art. 758, CC/02.
O contrato em questão é classificado como bilateral, oneroso, aleatório, consensual, formal (nos moldes aqui explanados), de execução continuada
e de adesão. Vejamos o significado de cada uma das características jurídicas
que reveste. É bilateral “ou sinalagmático porque depende da manifestação de
vontade de ambos os contratantes, que se obrigam reciprocamente” (VENOSA,
1997, p. 269). Oneroso, “por criar vantagens, ou expectativa de vantagens patrimoniais para ambas as partes” (MARTINS, 1999, p. 360). Aleatório, pois “o
evento previsto, que constitui o risco, pode acontecer ou não” (MARTINS, 1999).
Consensual, haja vista que basta o consentimento recíproco das partes para a
sua conclusão, em contraposição ao contrato real, que exige, ainda, a entrega
efetiva, ou tradição, da coisa que tem como objeto para atingir sua validade.
Cabe salientar neste ponto o que foi dito há pouco acerca da forma no contrato
de seguro. De execução continuada, subdivisão dos contratos de duração, como
todos “aqueles em que a prestação é única, mas ininterrupta” (GOMES, 2000, p.
79). E de adesão, categoria dos contratos com cláusulas predispostas, porque
“o consentimento manifesta-se [...] por simples adesão às cláusulas que foram
apresentadas pelo outro contratante. [...] A outra parte, o aderente, somente tem
a alternativa de aceitar ou repelir o contrato” (VENOSA, 1997, p. 29).
Outra característica relacionada ao contrato de seguro que não se pode
relegar em discorrer, mesmo que sucintamente, é a boa-fé, conquanto a ela
subordinado8. Cavalieri Filho (2000, p. 90) preleciona que a mesma constitui a
“alma do seguro” e, igualmente, “seu elemento jurídico”. Uma das raras ocasiões
em que o diploma civil de 1916 mencionava expressamente ser determinado ins-
8 Diniz (1997, p. 923): “o contrato de seguro é um contrato de boa-fé, pois, por exigir uma conclusão rápida, requer que o segurado tenha uma
conduta sincera e leal em suas declarações a respeito do seu conteúdo e dos riscos, sob pena de receber sanções se proceder com má-fé”.
142
tituto regido pela boa-fé é quando disciplina o contrato de seguro (art. 1.443), não
obstante sabermos que esta deve estar presente em toda e qualquer estipulação
contratual, como é regra geral do CC/02 (art. 422).
O contrato de seguro, no mercado securitário brasileiro, contempla uma
diversidade de tipos (espécies) de interesses seguráveis, cuja classificação os
insere em um dos três grandes ramos de operação – vida, saúde e ramos elementares: “os dois primeiros referem-se aos seguros voltados para pessoas [v. g.,
seguro de vida (individual ou em grupo), seguro saúde] e os ramos elementares,
por sua vez, aos seguros de bens [e. g., seguro de automóveis, seguro incêndio]
e serviços [p. e., seguro transporte]” (FUNENSEG, s./d., p. 9).
3 FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE SEGURO
3.1 A DOGMÁTICA DA FUNÇÃO SOCIAL E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA. A INSERÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL COMO PRINCÍPIO NA ÓRBITA CONTRATUAL
Há muito que o relativo à função social logra relevância na seara jurídica,
por envolver a questão aspectos políticos, econômicos e sociais, notadamente
no que concerne à propriedade. As desigualdades latentes no convívio em sociedade, ao longo da história, passaram a requerer soluções que fossem capazes
de reduzir o quadro de injustiças existente em cada época, principalmente, em
virtude do descompasso entre o que preceituava a lei e o que se verificava na
realidade social. Não é diferente, pois, em nossos dias.
Os reclamos emergentes do meio social requerem a adoção de medidas
que sejam capazes de modificar o atual estado de incertezas e falta de eqüidade
nas relações entre os indivíduos, “refazendo-se, de alguma forma, as matrizes
filosóficas do Direito” (HIRONAKA, 2000, p. 101). Hironaka (2000), após enunciar
essa premissa, acrescenta:
a doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matrizes, importando em limitar institutos de conformação nitidamente
individualista, de modo a atender aos ditames do interesse coletivo,
acima daqueles do interesse particular, e importando, ainda, em
igualar os sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada
um deles cabe seja igual para todos.
A noção individualista que permeou o mundo jurídico na maior parte de
sua história, desde a era romana, e que impregnou o Direito a partir do final do
143
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O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
século XVIII, fruto dos ideais da Revolução Francesa, tinha de ser combatida,
sobrepondo-se o interesse coletivo ao individual.
Nesse sentido, novas concepções afloraram, pautadas nas observações
da realidade vigente à época e também no passado, fazendo com que surgisse “ao
lado do direito individual, já em insustentável declínio, o chamado ‘direito social’,
e com ele, renasce a doutrina da função social” (HIRONAKA, 2000, p. 102).
A Doutrina Social Cristã, corroborando esse pensamento, em diversas
oportunidades, manifestou-se acerca da problemática que encerra a função
social, contribuindo decisivamente para a sua consolidação.
Influenciadas pela tendência filosófica apregoada por São Tomás de
Aquino, um dos expoentes da Doutrina Social da Igreja (ou Cristã), notabilizaram-se diversas encíclicas papais de cunho notoriamente sociais, consagrando
a dogmática da função social: Rerum Novarum, de Leão XIII (1891); Quadragesimo Anno, de Pio XI (1931); Mater et Magistra, de João XXIII (1961); Populorum
Progressio, de Paulo VI (1967), entre outras.
A doutrina da função social, dada a dimensão que alcança, ao compatibilizar o direito e a realidade fática nas relações inter-humanas, expande-se
além do direito de propriedade, alcançando, igualmente, outros institutos dentro
do contexto do direito privado.
Assim chegando aos contratos9, imprimiu uma nova ordem destinada a
condicionar a autonomia privada e a liberdade contratual. Estas devendo ser postas
dentro dos limites dos reclamos que afluem da sociedade e das normas jurídicas
plantadas no intuito de limitá-las. Trata-se do dirigismo contratual, provocado pela
intervenção estatal, bastante difundido no direito da atualidade. Por meio dele se
restringe o campo da liberdade individual, substituindo-se as normas de caráter
francamente individualistas por normas de ordem pública (cogentes).
Maria Fernandes Novaes Hironaka bem sintetiza a noção aqui apresentada: “não é difícil, por fim, inferir-se a concepção de que também o contrato,
assim como a propriedade, possui uma função social, que lhe é inerente e que não
pode, absolutamente, deixar de ser observada” (HIRONAKA, 2000, p. 110).
9 Pereira (1999, p. 5): “aquele que contrata projeta na avença algo de sua personalidade. O contratante tem a consciência do seu direito
e do direito como concepção abstrata. Por isso, realiza dentro das suas relações privadas um pouco da ordem jurídica total. Como
fonte criadora de direitos, o contrato assemelha-se à lei, embora de âmbito mais restrito. Os que contratam assumem, por momento,
toda a força jurígena social. Percebendo o poder obrigante do contrato, o contraente sente em si o impulso gerador da norma de
comportamento social, e efetiva este impulso”.
144
Os contratos agrários, desde a edição do Estatuto da Terra (Lei n.
4.504/64) e do Decreto n. 59.566/66, encontram-se conforme essa nova orientação jurídica. Mas não apenas as relações contratuais no âmbito jurídico-agrário
devem estar imbuídas pelo elemento motivador do princípio em tela. O que se
objetiva é a sua extensão a toda a órbita contratual.
Como assinala Lisboa (1997, p. 104), “uma nova fase despontou no
horizonte contratual, quando o interesse do hipossuficiente aderente passou a
ser tutelado via dirigismo econômico, embasando-se tal proteção em princípio de
ordem pública intrinsecamente ligado a interesses de toda a comunidade”.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), inspirado dentro
dos novos parâmetros ora plantados para efeito de debate, não se descurou de
tal perspectiva, ao estabelecer no art. 1º, que suas normas visam proteger a
ordem pública e o interesse social. Nery Júnior tece o seguinte comentário em
torno dos ditames delineados no mencionado dispositivo legal:
[...] as regras ortodoxas do Direito Privado não mais atendem à
ordem pública de proteção do consumidor... [...] Daí a necessidade
de criar-se um microssistema informado por modernas técnicas de
implementação de regras de ordem pública modificadoras da então
ordem jurídica privada vigente no Brasil, em atendimento aos preceitos universais que reclamam seja feita defesa mais efetiva dos
direitos dos consumidores (GRINOVER, 1999, p. 433-434).
Não olvidou também a comissão elaboradora e revisora do novo Código
Civil a questão relativa ao princípio da função social do contrato. O professor
Miguel Reale, na qualidade de supervisor dos trabalhos, ao submeter ao então
Ministro da Justiça, Armando Falcão, o anteprojeto, que resultou, após ser encaminhado ao Congresso Nacional pelo Presidente Ernesto Geisel, através da
mensagem n. 160/75, composta das exposições de motivos elaboradas pelo
mencionado Ministro de Estado e pelo referido supervisor, no Projeto de Lei n.
634/75, assim se manifesta na exposição de motivos de sua autoria:
por outro lado, firme consciência ética da realidade sócio-econômica norteia a revisão das regras gerais sobre a formação dos
contratos e a garantia de sua execução eqüitativa, bem como as
regras sobre resolução dos negócios jurídicos em virtude de onerosidade excessiva, às quais vários dispositivos expressamente se
reportam, dando a medida do propósito de conferir aos contratos
estrutura e finalidade sociais. É um dos tantos exemplos de aten145
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O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
dimento da “socialidade” do Direito ... Nesse contexto, bastará, por
conseguinte, lembrar alguns outros pontos fundamentais, a saber: ...
c) Tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo
hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida
em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os
valores primordiais da boa fé e da probidade. Trata-se de preceito
fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita
compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das
normas particulares à concreção ética da experiência jurídica.
O entendimento acima transcrito resultou na redação do art. 421, CC/02:
“a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social
do contrato”. Deste modo, vinculará a atuação de todos os operadores do Direito,
impondo de maneira definitiva o ponto fundamental que disciplina no ordenamento
jurídico de nosso país.
3.2 A NOVA DIMENSÃO QUE SE IMPÕE: JUSTIÇA CONTRATUAL
Não há como conceber o contrato em nossos dias impregnado por
noções individualistas que exprimem inexoravelmente a ideologia do liberalismo
econômico. A inserção de novos parâmetros na seara contratual é necessidade
que se impõe na consecução da eqüidade entre os contratantes.
Donnini (1999, p. 6) com muita precisão observa a nova dimensão que
deve ser aposta na relação jurídica contratual:
independentemente da análise da evolução do contrato, pode-se afirmar
que o modelo liberal, que continua a existir na relação entre particulares,
não mais atende às aspirações da sociedade atual, visto que não se
pode mais admitir que uma relação contratual iníqua, celebrada com
ausência de boa-fé e com prestações desproporcionais suportadas
por uma das partes, seja considerada válida, sob o argumento de que
existe a autonomia privada e as partes são livres para contratar. Aliás,
há muito tempo que esse modelo liberal de contrato causa perplexidade
àqueles que buscam a justiça, pois situações absolutamente desiguais
e desproporcionais, que causam prejuízos a um dos contratantes, eram
consideradas legais, embora evidentemente imorais.10
As modificações estruturais pelas quais passou a sociedade contemporânea, principalmente, as de natureza econômica, inseridos nesse contexto
10 Donnini (1999, p. 6-7) acrescenta, citando Paulo Luiz Lôbo Neto: “de fato, esse modelo liberal de contrato ‘é inadequado aos atos
negociais existentes na atualidade, porque são distintos os fundamentos, constituindo obstáculo às mudanças sociais. O conteúdo
conceptual e material e a função do contrato mudaram, inclusive para adequá-lo às exigências de realização da justiça social, que
não é só dele mas de todo o direito’”.
146
a globalização e o avanço que o uso da tecnologia veio ocasionar nos meios de
produção, na circulação de riquezas e nas relações entre os indivíduos, o que deu
feição diferenciada ao contrato, propugnam pelo redimensionamento de conceitos até então vigentes na teoria contratual, condicionando o instrumento de sua
realização, o contrato, aos reclamos sociais envolvidos no processo descrito.
Marques (1998, p. 84), atenta a essas transformações, tendo como paradigmas a industrialização e os contratos de massa, que tornaram insuficientes
as regras contidas no direito contratual, não adequadas aos contornos atuais da
sociedade no limiar do terceiro milênio e provocando a exploração do economicamente mais fraco por aqueles que detêm o poder econômico, manifesta que
isso acabou “desmentindo a idéia de que assegurando-se liberdade contratual,
estaríamos assegurando a justiça contratual”.
Aliás, ao comentar a concepção liberal de que a liberdade contratual
conduz à justiça no contrato Roppo (1988, p. 37) tece o seguinte comentário:
mas desta forma esquece-se que a igualdade jurídica é só igualdade
de possibilidades abstractas, igualdade de posições formais, a que
na realidade podem corresponder – e numa sociedade dividida em
classes correspondem necessariamente – gravíssimas desigualdades
substanciais, profundíssimas disparidades das condições concretas de
força económico-social entre contraentes que detêm riqueza e poder
e contraentes que não dispõem senão da sua força de trabalho.
Destarte, aderimos ao entendimento de Lisboa (1997, p. 109) para quem
“o negócio jurídico é fato jurídico e, portanto, fenômeno social que deve ter função
socialmente dirigida à circulação de riquezas (função social do contrato)”.
O contrato de seguro, por desempenhar nos dias atuais, dentro da sociedade tal como configurada, o relevante papel de socialização dos riscos, dos danos e
do dever de indenizar, não pode, definitivamente, arredar-se dessa diretriz, estando
condicionado ao integral cumprimento da função social que tem a realizar.
Não deve servir apenas de instrumento de acumulação de riqueza
para seus operadores, tendentes a cada vez mais valorar os riscos de que
por meio dele se visa resguardar, a fim de justificar o conseqüente aumento
do prêmio, e a diminuir gradualmente a cobertura contra as contingências
sócioeconômicas dos contratantes/segurados.
A legislação, impondo, à medida da necessidade, a devida intervenção em sua regulação e operacionalização, a doutrina, firmando as proposi147
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O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
ções teóricas aqui anunciadas e defendidas, e a jurisprudência, coibindo os
abusos do poder econômico e de direito verificáveis nas relações jurídicas
securitárias, farão valer de forma extensiva o ideal de justiça contratual também ao contrato de seguro.
4 O SEGURADO COMO TITULAR DE INTERESSE OU DIREITO METAINDIVIDUAL
Como corolários das noções acima externadas os direitos inerentes ao
segurado são suscetíveis de elevação à condição de metaindividuais ou coletivos lato sensu, ou seja, daqueles que estão acima dos interesses meramente
individuais, dependendo sua tutela e proteção de cada caso concreto e do tipo
de ofensa aos interesses daquele.
Vale ressaltar, recordando Mazzilli (1999, p. 39), que os direitos metaindividuais “são interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não
chegam a constituir interesse público”.
A classificação dos interesses ou direitos metaindividuais como difusos,
coletivos stricto sensu e individuais homogêneos entre nós é dada pelo art. 81, parágrafo único, I a III, do Código de Defesa do Consumidor, ao estatuir, in verbis:
Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos
deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja
titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com
a parte contrária por uma relação jurídica base.
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos
os decorrentes de origem comum.
Os direitos difusos, então, são aqueles que ultrapassam o plano dos
interesses de cada pessoa de per si (transindividual), caracterizando-se por sua
indivisibilidade, isto é, seu objeto diz respeito a todos quantos deles se beneficiem, possuindo titulares indeterminados, cuja relação entre estes tem origem
em uma situação de fato.
Por direitos coletivos entende-se também os transindividuais e indivisíveis, contudo pertencentes a titulares determinados ou determináveis (grupo,
148
categoria ou classe de pessoas), sendo o liame entre os mesmos ou com a
contraparte estabelecido a partir de uma “relação jurídica base”.
Os individuais homogêneos são “interesses individuais, cujo titular é identificável e cujo objeto é divisível e cindível. Caracteriza-se pela natureza comum,
similar, semelhante entre todos os titulares” (SMANIO, 1999, p. 93). Tem, portanto,
titulares determinados ou determináveis, e advêm de origem comum11.
Os consumidores de seguros por vezes são lesados em seus direitos
de forma individual, como ocorre quando a seguradora se nega a pagar o valor
a que entende o segurado fazer jus diante do pactuado. Suponhamos a hipótese
de abalroamento de veículos em que o segurado requer perda total e a seguradora diz tratar-se de dano parcial. A defesa de seus interesses será, da mesma
forma, exercida em juízo individualmente.
Em outras circunstâncias, porém, os segurados podem ser atingidos
coletivamente em seus direitos. Imaginemos o reajuste da mensalidade de seguro saúde acima dos índices oficiais. A proteção dos interesses dos segurados,
neste caso, está apta a ser exercida pelos meios de tutela inerentes aos direitos
coletivos, v. g., através de ação civil pública ou coletiva.
Por fim, aos segurados cabe defender-se, ainda, por meio das ações coletivas, quando estiverem diante de interesse individual homogêneo. Citamos a título de
exemplo os contratantes de certo tipo de seguro, em determinada seguradora, que
recebem as respectivas apólices sem a devida especificação dos riscos cobertos,
ou mesmo, da qual não conste uma ou mais de suas cláusulas obrigatórias.
5 O CONTRATO DE SEGURO NO ÂMBITO DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
Resta nítida a alocação do contrato de seguro na seara jurídica contratual de consumo, regida pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 46 a 60).
Ainda mais se observarmos o disposto no § 2º, do art. 3º, deste mesmo
diploma legal: “Serviço é qualquer atividade fornecida ao mercado de consumo,
mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito
11 Grinover (1999, p. 724). Ao comentar os interesses ou direitos individuais homogêneos como decorrentes de origem comum,
Kazuo Watanabe elucida a dimensão que se deve imprimir à expressão: “‘Origem comum’ não significa, necessariamente, uma
unidade factual e temporal”.
149
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O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (grifo
nosso). E é claro que, realizando-se a atividade securitária através de contrato,
este estará sujeito ao disciplinamento inerente às relações consumeristas.
Todavia, cumpre agora verificar as implicações provenientes da natureza
jurídica do contrato de consumo e, conseqüentemente, do contrato de seguro.
Os contratos de consumo apresentam as seguintes características:
a) predisposição unilateral, pois é o prestador do serviço que estabelece os termos do ajuste, independentemente da participação do
consumidor; b) generalidade, porque não se encontra nesse tipo de
contrato especificações relativas para cada consumidor contratante;
c) inalterabilidade, uma vez que discordando de alguma das cláusulas
não tem força o contratante para modificá-la ou retirá-la do contrato
e d) adesão, pois o contratante deve se vincular expressamente aos
termos do contrato elaborado de forma unilateral pelo prestador de
serviços (LAZZARINI; LEFÈVRE, 1999, p. 105).
Como decorrência imediata do tipo de contrato de que se utilizam (de
adesão12), os contratos de consumo e, dentre eles, o de seguro, realizam-se por
meio das chamadas cláusulas gerais dos contratos13, que consistem em
estipulações feitas por um dos futuros contratantes, denominado
predisponente ou estipulante (unilateralidade), antes, portanto, do
início das tratativas contratuais (preestabelecimento), que servirão para reger os negócios do estipulante relativos àquela área
negocial (uniformidade), sendo que o intento do predisponente é
no sentido de que o futuro aderente aceite os termos das cláusulas
sem discutir seu conteúdo e alcance (rigidez), e, ainda, que essa
forma de contratação possa atingir indistintamente o contratante
que quiser aderir às cláusulas gerais (abstração), vale dizer, que
possa haver circulação em massa desses formulários onde estão
contidas as cláusulas gerais para que as contratações se dêem em
massa” (GRINOVER, 1999, p. 448).
A autora portuguesa Lopes (1997, p. 25), ratificando nosso entendimento,
assim se manifesta:
as cláusulas dos contratos de seguro inseridas nas Condições Ge-
12 O Código de Defesa do Consumidor, art. 54, caput, preceitua: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas
pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços sem que o consumidor possa
modificar substancialmente o seu conteúdo”.
13 Bianca (1987, v. 3. p. 340) assim as conceitua: “[...] sono le clausole che un soggetto, il predisponente, utilizza per regolare uniformemente
i suoi rapporti contrattuali”.
150
rais e Especiais das respectivas Apólices, porque elaboradas, pelas
seguradoras, sem prévia negociação individual, com os respectivos
destinatários, cabem efectivamente no conceito de ‘clausulas contratuais gerais’ previsto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 446/85.
A questão decisiva que ensejam as cláusulas predispostas no contrato
de adesão é a de se evitar a ocorrência de cláusulas abusivas que atinjam negativamente o consumidor. O também jurista português Santos (s./d., p. 180),
destaca neste tocante o item 5 da exposição de motivos do retrocitado DecretoLei n. 446/85 de seu país, que em parte transcrevemos:
em última análise, as padronizações negociais favorecem o dinamismo do tráfico jurídico, conduzindo a uma racionalização ou normalização e a uma eficácia benéficas aos próprios consumidores. Mas
não deve esquecer-se que o predisponente pode derivar do sistema
certas vantagens que signifiquem restrições, despesas ou encargos
menos razoáveis ou iníquos para os particulares.
E foi justamente isso que buscou evitar o art. 51, do Código de Defesa do Consumidor, ao eivar de nulidade as cláusulas contratuais que atentem contra os interesses
e direitos dos consumidores, sendo certo que o rol ali descrito é exemplificativo, por
não contemplar todas as formas pelas quais podem se manifestar. Ressalte-se que
as cláusulas abusivas não se restringem aos contratos de adesão,
mas a todo e qualquer contrato de consumo, escrito ou verbal, pois
o desequilíbrio contratual, com a supremacia do fornecedor sobre o
consumidor, pode ocorrer em qualquer contrato, concluído mediante
qualquer técnica contratual. O CDC visa a proteger o consumidor
contra as cláusulas abusivas tout court e não somente o aderente
do contrato de adesão (GRINOVER, 1999, p. 489).
Há que se observar, finalmente, os princípios gerais a que estão subordinados os contratos de consumo, neles incluído o contrato de seguro, apostos
no Código de Defesa do Consumidor: boa-fé (art. 51, IV) e in dúbio pro consumidor14 (art. 47). Integra este elenco, a nosso ver, o princípio da função social do
contrato, conforme amplamente exposto alhures.
14 Adaptação à disciplina jurídica do Direito do Consumidor do princípio interpretatio contra proferentem, segundo o qual, havendo
dúvida quanto ao sentido atribuído à cláusula contratual, esta será interpretada a favor do contratante que não a inseriu no contrato
(Código Civil italiano, art. 1.370).
151
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O CONTRATO DE SEGURO E O DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
Márcia Moreira de Morais*
Amarildo Lourenço Costa**
Resumo
Abstract
O direito de propriedade, objeto de garantia constitucional,
antes visto como direito individual inviolável, sofreu ao longo
da história e, principalmente, durante os últimos séculos,
grande evolução conceitual. A concepção individual e absoluta cedeu lugar ao pensamento social e democrático. No
Brasil, de certa forma tardiamente, a Constituição Federal de
1988, seguida pelo Código Civil de 2002, diante da tendência
democrática inerente ao uso e ocupação do solo, sedimentou
o entendimento de que só se protegerão as propriedades que
cumpram sua função social, que, no texto máximo, ora figura
como princípio fundamental ora como princípio da ordem
econômica. Frente a atual situação vivida pelas cidades brasileiras, incide a recente Lei do Desenvolvimento Urbano,
autodenominada Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257, de 10
de julho de 2001, regida, fundamentalmente, pelo princípio
jurídico-constitucional da função social da propriedade
urbana, que se torna efetivo com a real aplicação do importante instrumento de política urbana, o plano diretor,
elaborado e fiscalizado pela efetiva participação popular
no processo de administração pública.
The property right, object of constitutional warranty,
before seen as inviolable individual right, it suffered along
the history and, mostly, during the last centuries, great
conceptual evolution. The individual and absolute conception gave way place to the social and democratic thought.
In Brazil, in a way lately, the Federal Constitution of 1988,
followed by the Civil Code of 2002, in front of the inherent
democratic tendency to the use and occupation of the soil,
it formed sediment of understanding that only will protect
the properties that use their social function, which, in the
maximum text, sometimes illustration as fundamental principle sometimes as principle of the economic order. Front
the current situation lived by the Brazilian cities, it happens
the recent Law of the Urban Development, autodenominated
Statute of the City, Law number 10.257, of 10 of July 2001,
governed, fundamentally, by the juridical-constitutional
principle of the social function of the urban property, which
becomes effective with the real application of the important
instrument of urban politics, the director plan, elaborated
and fiscalized by the effective popular participation in the
process of public administration.
Palavras-chave
princípio; função social da propriedade urbana; estatuto da cidade; plano diretor; participação popular.
Keywords
principle; social function of the urban property; statute
of the city; director plan; popular participation.
Sumário
1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITO DE PROPRIEDADE: NOÇÕES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA. 2.1 O SURGIMENTO
DA PROPRIEDADE PRIVADA TERRITORIAL. 2.2 REVISÃO HISTÓRICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE
PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO. 2.3 O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E O DIREITO DE PROPRIEDADE.2.4
O NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E O DIREITO DE PROPRIEDADE. 3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.
3.1 A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL COMO DIREITO FUNDAMENTAL. 3.2 A PROPRIEDADE E SUA
FUNÇÃO SOCIAL COMO PRINCÍPIO DA ORDEM ECONÔMICA. 4 O DIREITO URBANÍSTICO E O AMBIENTE
URBANO BRASILEIRO. 4.1 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA. 4.2 A URBANIZAÇÃO
ACELERADA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS. 5 O ESTATUTO DA CIDADE. 5.1 O MUNICÍPIO E A
APLICABILIDADE DO ESTATUTO DA CIDADE. 5.2 ESTRUTURA BÁSICA E DIRETRIZES GERAIS DO ESTATUTO DA
CIDADE. 5.3 OS INSTRUMENTOS DE INTERVENÇÃO NO USO E OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO. 5.4 DO PLANO
DIRETOR. 5.5 A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PLANEJAMENTO URBANO. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
* Aluna classificada em 3o lugar no III Concurso de Monografia Jurídica da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE), realizado em 2003.
** Professor Orientador. Mestre em Direito pela Universidade Autônoma de Assunção – Paraguai. Advogado do Município de Gov. Valadares.
156
1 INTRODUÇÃO
A noção atual do que compreende o direito de propriedade rompe
drasticamente com o individualismo exacerbado a que estamos ou estávamos
acostumados, pelo menos até a promulgação da Constituição Federal de 1988
e posteriormente a aprovação do Código Civil de 2002.
A concepção formada ao longo da história e herdada pelo ordenamento
jurídico brasileiro a partir do direito romano e posteriormente do código napoleônico, no sentido de que a propriedade é direito real subjetivo intocável, podendo-se
dela usar, dispor, gozar e reivindicar de quem quer que a possua injustamente,
sofreu nesse último século uma grande revolução conceitual. Formulou-se, em
seu redor, uma condição inarredável de constante busca da adequação social
do seu uso e gozo, anteriormente intocável.
A Constituição Federal de 1988 num contexto histórico totalmente divergente e avançado em termos científicos, tecnológicos e culturais, daquele de que
dispunha o legislador de 1916 ao promulgar o primeiro Código Civil brasileiro, rompeu
com a visão individual e capitalista que de forma linear o texto civil empregava.
Coadunando-se com os princípios e objetivos fundamentais eleitos em
nosso “Estado Democrático de Direito”, a Carta Política atual traçou instrumentos
que visam levar a outros rumos a situação sócio econômica brasileira, costumeiramente tão mesquinha e cruel.
Preocupou-se de forma clara e precisa com o melhor aproveitamento
da propriedade privada; assegurou-a, mas desde que cumprida a sua função
social; impôs sanções administrativas a serem aplicadas diante do mau uso da
propriedade, seja ela urbana ou rural; e ainda, inovou com um capítulo inteiro
destinado à política urbana, em que sedimentou o princípio da função social da
propriedade urbana, objeto de estudo desta monografia.
A necessidade de implantação de tão importante princípio, juntamente
com novos instrumentos de política pública urbana, adveio diretamente das mudanças ocorridas no Brasil, sobretudo, a partir da década de 30, decorrentes, em
especial, da Revolução Industrial e do crescimento econômico e populacional
brasileiro, que tiveram maior incidência a partir daquele momento histórico.
O ramo do direito incumbindo de gerenciar tais distorções urbanas, de
regular a melhor qualidade de vida e a construção estética das cidades brasileiras,
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Revista Online FADIVALE - 2005
A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
é o novíssimo Direito Urbanístico, que foi sedimentado pela Constituição Federal
de 1988. Tal ramo se baliza pelos preceitos advindos do princípio jurídico da função social da propriedade urbana, que ganhou regulamentação com a recente
implantação do Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257 de 10 de julho de 2001.
Este trabalho visa, desta forma, em que pese estarmos diante de um
princípio já sedimentado pela Constituição Federal e pelo autodenominado Estatuto da Cidade, a um estudo quanto à efetividade de tal princípio, especialmente,
à luz do Estatuto da Cidade. Questiona-se se o princípio que permeia o Estatuto
e que subordina as propriedades urbanas a seu cumprimento tem sido efetivo
naquilo que lhe compete; vale dizer, ordenar as políticas públicas, especialmente,
a municipal, e buscar o melhor aproveitamento do zoneamento e planejamento
urbano, preservando, para tanto, o meio ambiente natural com vistas a uma sadia
qualidade de vida dos habitantes urbanos. Esse é, primordialmente, o guia que
rege a problemática desenvolvida nesta monografia.
É nesse panorama que se analisará a efetividade do princípio jurídicoconstitucional da função social da propriedade urbana, ordenador do Estatuto da
Cidade, diante do atual contexto demográfico, político e ambiental das cidades
brasileiras, verificando a aplicabilidade do instituto e a eficiência dos meios de
que lança mão para o alcance do interesse social.
O termo efetividade, in casu, portanto, é utilizado no sentido de o princípio constitucional em tela ser ou não aplicado na medida de sua, agora, real
possibilidade de utilização pelos municípios brasileiros.
A metodologia de pesquisa utilizada foi, predominantemente, a sustentação teórica do tema em apreço, analisando, brevemente, a evolução histórica do
mesmo e abordando o posicionamento legal atualmente empregado pelos condutores da política urbana brasileira, buscando inferir sobre a efetividade do princípio
da função social da propriedade urbana, especialmente voltado para o Estatuto da
Cidade, buscando para tanto, apontamentos e opiniões doutrinárias.
2 DIREITO DE PROPRIEDADE: NOÇÕES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A propriedade, direito real por excelência, direito subjetivo padrão, ou
“direito fundamental”, à luz dos critérios informativos da civilização romano-cristã,
mais se sente do que se define. A idéia de “meu e teu”, a noção de assenhora158
mento de bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de conhecimento ou
do desenvolvimento intelectual. Não é apenas o homem intelectualmente bem
formado que a percebe. Os menos cultos, os espíritos mais rudes e até crianças têm dela a noção inata, defendem a relação jurídica dominial, resistem ao
desapossamento, combatem o ladrão. Todos “sentem” o fenômeno propriedade
(PEREIRA, 2001, p. 60-66).
Ao conceituá-la, porém, emergem as dúvidas, e por isso têm sido objeto
de investigações de historiadores, sociólogos, economistas, políticos e juristas.
Procuram todos fixar seu conceito, determinar sua origem, caracterizar seus
elementos, acompanhar sua evolução, enfim, justificá-la ou combatê-la.
Mas é certo que o conceito e a compreensão do direito de propriedade, até atingir a concepção moderna de propriedade privada, sofreram, desde
a antigüidade, inúmeras influências no curso da história da humanidade, vez
que é decorrência direta da organização política de determinado povo em
determinado contexto histórico.
2.1 O SURGIMENTO DA PROPRIEDADE PRIVADA TERRITORIAL
Apesar da dificuldade de se precisar o momento em que surge a primeira
forma de propriedade territorial, segundo algumas fontes, a noção de propriedade
imobiliária data da Lei das XII Tábuas. Nesse primeiro período romano, o indivíduo recebia uma porção de terra que devia cultivar, mas, uma vez terminada a
colheita, a terra voltava a ser coletiva. Paulatinamente, fixava-se o costume de
conceder sempre a mesma porção às mesmas pessoas, ano após ano. Nesse
sentido, arraigou-se no espírito romano a propriedade individual e perpétua. A
propriedade grega e a romana encontravam-se ao lado de duas outras instituições:
a religião doméstica e a família, ambas com íntima relação entre si.
Aos poucos, a propriedade perdeu o caráter unitário e exclusivista com
as diferentes culturas bárbaras, modificando-se os conceitos jurídicos. O território,
mais do que nada, passou a ser sinônimo de poder.
A partir do Século XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis
que definam a propriedade. A Revolução Francesa recepciona a idéia romana
e o Código de Napoleão, como conseqüência, traça a conhecida concepção
extremamente individualista do instituto no art. 544: “a propriedade é o direito de
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso
proibido pelas leis e regulamento.”
Essa concepção absoluta e individualista trazida pelo Código de Napoleão se modelou no Código Civil Francês e repercutiu em todos os ordenamentos
do mundo, inclusive recepcionado pelo Código Civil Brasileiro de 1916.
O exagerado individualismo perdeu sua força no século XIX com a
revolução com, o desenvolvimento industrial e com as doutrinas socializantes.
Passou-se, então, a ser buscado um sentido social na propriedade.
No Brasil, diante da sistemática vigente até a Lei de Terras, editada
em 18 de setembro de 1850, não havia uma distinção clara entre posse e
propriedade, e nesse mesmo diapasão, eram exercidos os direitos da Coroa
Portuguesa sobre a colônia, cujo poder fundamental era o de conceder sesmarias e não, propriamente, o de exercer as tradicionais faculdades dominiais
(usar, gozar, dispor, reivindicar).
Pelas razões acima, pode-se vislumbrar na Lei de Terras um dos primeiros marcos da “modernização” do sistema jurídico brasileiro, pois, a partir
dela, emerge a noção de posse, a de propriedade, que foram consagrados com
a edição do Código Civil brasileiro em 1916.
Na declaração dos direitos do Homem e do cidadão de 1789, mais
precisamente em seu artigo 17, ficou consagrado que a propriedade é um direito
inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição
de justa e prévia indenização.
2.2 REVISÃO HISTÓRICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE
NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
A Constituição Imperial, ou Lex Maxima, de 1824, em seu artigo 179,
inciso XXII, determinou a inviolabilidade do direito de propriedade e, caso fosse
necessário, a desapropriação desta pelo Poder Público, que indenizaria o proprietário: “é garantido o direito de propriedade em toda sua plenitude”.
Sem muita alteração, a primeira Constituição Republicana (1891) tratou
da presente questão em seu artigo 72, § 17, como segue: “O direito de propriedade
mantém-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade
160
ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.
Com a Constituição Federal de 1934, temos uma mudança significativa,
pois, pela primeira vez, há a inserção do Princípio da Função Social da Propriedade, como vemos em seu artigo 113, inciso XVII : “é garantido o direito de
propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo,
na forma que a lei determinar”.
Referido artigo mantém o direito de propriedade de forma absoluta.
Entretanto, não poderá o proprietário exercê-lo de forma ilimitada, deverá, a
partir de então, considerar a função sócioeconômica do bem. Fica claro o repúdio ao individualismo econômico. É a consagração do interesse público sobre
o individual.
A Constituição Federal de 1937, mais precisamente em seu artigo 122,
seguiu a mesma linha da anterior. Entretanto, o princípio anteriormente aludido
fora suprimido, tendo em vista, como se sabe, a motivação da realização desta,
então, nova carta Constitucional.
Ademais, na Constituição de 1946, o citado princípio voltou, de forma
consagradora, conforme se nota no artigo 141, § 16, o qual mencionava que a
propriedade estava condicionada ao interesse social, inclusive com a possibilidade de o imóvel ser desapropriado por interesse social.
A Constituição Federal de 1967 manteve o direito de propriedade, bem
como a Função Social da Propriedade. Tal assertiva tem resguardo no artigo 157,
inciso II. A seu turno, a Emenda Constitucional nº 01, de 16.10.69, manteve inalterada a previsão e o princípio supramencionado, em seu artigo 160, inciso III.
A Constituição Federal de 1988 conservou, por óbvio, o dispositivo a
respeito do Princípio já consagrado, como bem expresso em seu art. 5º, inciso
XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”. Assim, a propriedade passa,
ou inicialmente tenta, para uma função maior de equilíbrio social e não meramente
sob o ponto de vista econômico. Destarte, o acúmulo infundado e improdutivo de
bens é de plano considerado anti-social, ou ainda, anticonstitucional.
2.3 O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E O DIREITO DE PROPRIEDADE
O Código de Napoleão, como dito alhures, definia propriedade como “o
direito de gozar e dispor das coisas de maneira mais absoluta, desde que dela
161
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos”.
Seguindo a mesma tendência, o Código Civil brasileiro de 1916, em seu
art. 524, mencionava que a propriedade é “o direito de usar, gozar e dispor de
seus bens, e de reavê-los de quem quer que injustamente os possua”.
Esta definição posicionou a propriedade privada no Brasil com os mesmos
atributos da propriedade romana – jus utendi, fruendi et abutendi – dentro da dogmática tradicional. O direito de propriedade é um direito subjetivo patrimonial.
O que predominava aí era o conceito supra-individualista dos direitos
subjetivos e, em especial, o direito de propriedade. Ao longo de sua evolução
histórica, através das fases que demarcaram a posição ideológica dominante, o
que o CC de 1916 recebeu foi a concepção de um direito absoluto, no qual se
projetava fundamentalmente a personalidade do “dono”.
Com efeito, não obstante estruturar a propriedade com seus contornos
individualistas, e usar a mesma terminologia tradicional, quase quiritária, o Direito
Civil se viu obrigado a incorporar a tese da “função social da propriedade”, que
penetrou na nossa sistemática desde a Constituição de 1946, nele subsistindo
sacramentado no art. 5º, XXIII e no art. 170, III, da Carta de 1988.
Com a edição da Constituição Federal de 1988, que determina em seu
art. 3º os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, tornou-se
incompatível o uso do preceito antiquado de propriedade definida no citado artigo
524 do CC/1916.
Passou-se, então, à leitura de todos os textos do CC à luz dos preceitos
constitucionais vigentes, uma vez que não se concebe um direito de propriedade
que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva
paralelamente a ela.
2.5 O NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E O DIREITO DE PROPRIEDADE
Com relação ao Novo Código Civil brasileiro, seguindo a orientação constitucional vigente, encontram-se presentes em várias passagens as dicções e princípios
que afastam o individualismo histórico, buscando não somente coibir o uso abusivo da
propriedade, como também inseri-la no contexto de utilização para o bem comum.
Desta forma, a propriedade não é mais considerada como antigamente,
elevada à condição de direito ilimitado e inatingível. O legislador da Constituição
162
Federal de 1988 proclamou, de maneira veemente, que o uso da propriedade
deve ser condicionado ao bem-estar social (art. 5.º, XXII e XXIII).
Isto significa que a propriedade, atualmente, não ostenta aquela concepção individualista do antigo Código Civil, conforme se vira. Cada vez mais,
tem-se afirmado a sua função social, no sentido de deixar de ser instrumento de
ambição e desunião dos homens, para se tornar fator de progresso, de desenvolvimento e de bem-estar de todos.
Da mesma forma, o novo Código Civil contempla a “função ambiental”
como elemento marcante do direito de propriedade ao prescrever que tal direito
“deve ser exercitado em consonância com suas finalidades sociais e econômicas
e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição
do ar e das águas.” (art. 1.228, §1º)
Sem deixar de ser privada, a propriedade socializou-se, devendo oferecer à coletividade uma maior utilidade dentro da concepção de que o social
orienta o individual. Note-se, ainda, que a função social da propriedade não se
limita à propriedade rural, mas também à propriedade urbana.
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O termo princípio vem do latim princípium que significa início, começo,
ponto de partida. Ensina Cretella Júnior (1988, p.129) que: “no âmbito da filosofia, princípio é o fundamento ou a razão para justificar por que é que as coisas
são o que são”. E acrescenta que, como origem, ponto de partida, “princípios de
uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas, que condicionam
todas as estruturas subseqüentes”.
Assim como as regras, os princípios são normas jurídicas. Porém, os
princípios exercem, dentro de um ordenamento jurídico, um papel diferente dos
das regras, uma vez que aqueles são normas gerais dentro de um sistema normativo. O que não ocorre com as regras, visto que descrevem fatos hipotéticos,
regulam, direta ou indiretamente, as relações jurídicas que se encaixam perfeitamente nas molduras típicas por elas descritas hipoteticamente.
Ademais, serve o princípio como limite de atuação do jurista. Explicase: no mesmo passo em que funciona como vetor de interpretação, o princípio
163
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
tem como função limitar a vontade subjetiva do aplicador do direito, vale dizer,
os princípios estabelecem balizamentos dentro dos quais o jurista exercitará sua
criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso
concreto. (BARROSO, 1998, p. 202-203)
Em relação aos princípios jurídicos-constitucionais, entende Silva (2003,
p. 93) que são:
princípios constitucionais gerais informadores da ordem jurídica
nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro,
constituem desdobramentos (ou princípios derivados) dos fundamentais, como o princípio da supremacia da constituição e o conseqüente
princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o princípio
da isonomia, o princípio da autonomia individual, decorrente da
declaração dos direitos, [...] e os chamados princípios garantias ( o
do nullum crimen sine lege e da nulla poena sine lege, o do devido
processo legal, o do juiz natural, o do contraditório entre outros, que
figuram nos incisos XXXVIII a LX do art. 5º).
3.1 A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A Carta Política de 1988, ao passo que inscreve o direito de propriedade
dentre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXII), condiciona sua garantia
ao cumprimento de sua função social (art. 5º XXIII). Ratificando, ainda, a nova
estrutura desse direito arrola como princípio da ordem econômica (art. 170, II e
III) a propriedade e sua função social.
A matéria não é nova, uma vez que a Constituição anterior de 1967 já
denotava a preocupação do legislador com a função social da propriedade, nos
termos de seu art. 160, III. O que difere, substancialmente, a vigente Constituição
da citada Carta Política revogada é que o texto atual inclui a matéria no âmbito
dos direitos e garantias fundamentais.
Fundamenta-se esta disposição nos princípios fundamentais da República, que têm na dignidade da pessoa humana regra basilar, fixada pelo art. 1º da
Carta Magna. Tal preceito deve ser interpretado em consonância com o art. 3º, que
fixa, dentre os objetivos fundamentais da República, a erradicação da pobreza e
da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.
Dessarte, a tutela social dos incisos XXII e XXIII do art. 5º, colocados,
como visto, dentre os direitos e garantias fundamentais individuais, a impregnar
toda a Constituição e o ordenamento jurídico vigente, garantem a propriedade
164
desde que atendida a sua função social.
Limitando-se ao novel tratamento concedido pela Constituição Federal
de 1988 à propriedade e à função social da mesma, temos que, em meio aos
problemas contemporâneos à elaboração da Carta, a Assembléia Constituinte
não fugiu do problema das invasões e disputas por terras, uma vez que em vários de seus dispositivos se dedicou expressa ou tacitamente à função social da
propriedade. Quais sejam, art. 5º, XXIII, art. 153,§4º, art. 156, §1º, art. 170, III,
art. 182, §2º, art. 184, art. 185 parágrafo único e art. 186.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a Constituição foi minuciosa
ao conceituar a função social da propriedade, tanto rural (art. 186) como
urbana (art. 182,§2º).
A Carta foi imperiosa ao atribuir a desapropriação do imóvel que não
cumpra a sua função social (art. 184). Foi, inclusive, punitiva, ao atribuir efeitos
tributários gravosos pelo fato de a propriedade não cumprir a sua função social
(art. 153, §4º e art. 156, §1º). E ainda incluiu a função social da propriedade
entre os princípios gerais da atividade econômica (art. 170). E, por último, como
já bem frisado, inovou, inserindo a função social da propriedade como direito e
garantia individual (art. 5º, XXIII).
E as conseqüências desse dispositivo constitucional alocado no título II
da Constituição Federal de 1988 - dos direitos e garantias fundamentais -, dentro
da hermenêutica constitucional, sobre a legislação infraconstitucional e, em última
análise, no tocante às decisões judiciais, são de ordem prática.
O primeiro é que os direitos e deveres individuais são cláusulas pétreas
do ordenamento constitucional brasileiro, não admitindo emenda tendentes à sua
abolição, conforme art. 60, §4º que determina: “não será objeto de deliberação a
proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV. os direitos e garantias individuais”.
Assim, chega-se à inevitável conclusão de que a função social da propriedade não pode ser alterada ou suprimida de nossa Carta Magna.
O segundo efeito é que as normas de direitos e deveres individuais têm
aplicação imediata, de acordo com a ordem do art. 5º, §1º, que reza: “as normas
definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, sendo,
portanto, a função social da propriedade um dever imediato do proprietário, não
requisitando qualquer legislação ordinária ou complementar para ser exigido,
pelo Estado, primeiro legitimado a cobrar o seu cumprimento e impor as sanções
165
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
tributárias ou desapropriatórias diante do seu descumprimento.
E, por último, o terceiro efeito é que, ao inserir a função social da propriedade entre os direitos e deveres individuais, a Constituição criou dever ao
proprietário para que este dê aproveitamento adequado do que lhe pertence.
A função social da propriedade é, portanto, dever do proprietário (art.5º,
XXIII), é dever imediato (art. 5º, §1º) e ainda, dever irrevogável (art. 60, §4º, IV).
3.2 A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL COMO PRINCÍPIO DA ORDEM
ECONÔMICA
A Constituição mexicana de 1917 foi a primeira a estabelecer regras e
princípios da atividade econômica. No Brasil, sob a influência alemã estampada
na Constituição de Weimar, instituiuram-se na Constituição de 1934 regras e
princípios da ordem econômica.
Atualmente, o Título VII da Constituição Federal de 1988 é que trata da
ordem econômica e financeira, dividindo-se em quatro capítulos distintos: disciplina, em primeiro lugar, os princípios gerais da atividade econômica (capítulo I); em
segundo lugar disciplina a política urbana (capítulo II); na seqüência, pormenoriza
a política agrícola, fundiária e a reforma agrária (capítulo III) e, em última análise,
preconiza, em um só artigo legal, o sistema financeiro nacional (capítulo IV).
Como conseqüência dos objetivos traçados pelo art. 170, caput, da Constituição Federal, vale ressaltar a garantia de existência digna a todos e a realização
da justiça social. A respeito do assunto, preleciona Carvalho (1999, p. 455):
dentro do modo capitalista de produção, tais objetivos constituem um
desafio, pois tendo o lucro como fator predominante, com a conseqüente acumulação e concentração da riqueza, o sistema capitalista
gera gritantes desigualdades sociais, difíceis de serem evitadas sem
a intervenção do Estado. Por outro lado, o socialismo radical elimina
a propriedade privada e esmaga, a pretexto de promover a igualdade,
as liberdades fundamentais. Assim, a operacionalização dos preceitos
constitucionais programáticos, através da atuação do Executivo e
da intervenção legislativa, é que irá propiciar a plena realização dos
objetivos a que se propõe a Constituição econômica, devendo-se a
todo custo evitar o capitalismo selvagem e o socialismo radical.
Assim, o estatismo ou a intervenção direta do Estado na economia só se
166
justifica na medida em que “se busque condicionar a ordem econômica ao cumprimento de seu fim, de assegurar a existência digna a todos, conforme os ditames
da justiça social e por imperativo de segurança nacional” (SILVA, 2003, p. 777).
A função social da propriedade a que aludia o art. 160, III, do texto constitucional revogado e, disposta atualmente no art. 170, III da Constituição Federal
de 1988, é autorizativa da intervenção administrativa na propriedade. Desta forma,
o Estado, como agente normativo e regulador da ordem econômica, detém instrumentos coercitivos e sancionatórios no caso de descumprimento de seus objetivos
e princípios norteadores, como o são, a propriedade e sua função social.
Visou-se, com os princípios da ordem econômica, à humanização do
capitalismo exacerbado, buscando a imposição do social aos institutos econômicos, em conformidade com os princípios fundamentais preconizados no art. 1º
da Constituição Federal de 1988 e ainda dos objetivos fundamentais dispostos
no art. 3º do mesmo ordenamento supremo, almejando, com isso, a imposição
da ordem na vida econômica e social.
Desta maneira, o direito de propriedade, como princípio da ordem econômica, não pode ser considerado puro direito individual, relativizando-se seu
conceito e significado, uma vez que os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: “assegurar a todos a existência digna,
conforme os ditames da justiça social”. Dessarte, a propriedade que, ademais,
tem que atender a sua função social, fica vinculada à consecução daquele fim.
4 O DIREITO URBANÍSTICO E O AMBIENTE URBANO BRASILEIRO
Sem dúvida, embora a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da propriedade imóvel, a moradia e o uso adequado do
solo urbano passaram a ser assunto de grande influência no século XX,
agravada nesse início de século XXI pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações.
A irregularidade apresentada pela ocupação ilegal do solo assume
múltiplas faces e diversas tipologias. São favelas resultantes da ocupação de
áreas privadas que se encontravam vazias à espera de valorização; favelas em
áreas públicas resultantes da ocupação de áreas doadas ao Poder Público por
loteamentos; cortiços improvisados em casarões deteriorados e sem as mínimas
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
condições de habitabilidade; loteamentos clandestinos e irregulares; conjuntos
habitacionais ocupados e sob ameaça de despejo, etc.
E uma das mais nefastas conseqüências desse processo de produção
irregular das cidades é a degradação ambiental dos cenários urbanos. A falta
de acesso regular a um espaço nas cidades leva a população carente a buscar
alternativas junto ao mercado imobiliário ilegal, que atua quase sempre em áreas
ambientalmente vulneráveis, loteando áreas de preservação ambiental como
encostas, topos de morros e matas nativas.
Diante desse contexto surgiu um novo ramo do direito, o Direito Urbanístico, que começou a se firmar nas três últimas décadas, para consolidar-se
com a Constituição Federal, em 1988, e com o Estatuto da Cidade, em 2001.
E o seu objeto é justamente a ordenação do solo urbano e, por conseguinte, da propriedade imobiliária urbana, por meio da sua conformação a uma
função social que garanta o pleno exercício do direito à cidade por todos os
seus habitantes (MATTOS, 2002).
Mukai (2002, p. 19) conceitua o Direito Urbanístico como sendo:
o conjunto de regras através das quais a administração, em nome
da utilidade pública, e os titulares do direito de propriedade, em
nome da defesa dos interesses privados, devem coordenar suas
posições e suas respectivas ações com vistas à ordenação do território urbano.
Esse novíssimo ramo do direito veio firmar-se com a recente implantação
do Estatuto da Cidade, estabelecendo normas de ordem pública e interesse social
que regulam o uso da propriedade urbana, descrevendo diretrizes e sanções à
propriedade urbana que não atenda ao interesse social local.
4.1 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA
A discussão sobre o direito de propriedade se perde no tempo. Vários
autores têm tecido teorias que buscam, de variadas formas, explicar a origem e
o fundamento deste direito. Portanto, o tema não é novo e nem revolucionário.
Na vigente Constituição Federal, o direito de propriedade está expressamente constituído no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais em seu
168
artigo 5º, incisos XXII e XXIII, que determinam, respectivamente: “é garantido o
direito de propriedade” e que “a propriedade cumprirá sua função social”.
A Constituição Federal de 1988 trouxe pela primeira vez um capítulo
especial destinado à política urbana. E mais: condicionou a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Município, ao pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade.
Ressalte-se que o art. 182 da Constituição Federal de 1988 diz, expressamente, “desenvolvimento urbano”. Ora, essa expressão nos leva a indagar: o
que é ambiente urbano para o legislador pátrio?
Socorre-se ao art. 32, § 1º do Código Tributário Nacional, quando disciplina o Imposto Predial e Territorial Urbano, para identificar como o legislador
infraconstitucional conceitua e classifica o que seja zona urbana.
Art. 32 – [...]
§1º - Para os efeitos deste imposto, entende-se por zona urbana a
definida em lei municipal, observado o requisito mínimo da existência
de melhoramento indicados em pelo menos dois dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:
I – meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II – abastecimento de águas;
III – sistema de esgotos sanitários;
IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para
distribuição domiciliar;
V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3
(três) quilômetros do imóvel considerado.
A princípio, a zona urbana dentro de qualquer Município se aparta, se
separa da zona rural, devido a dois dos melhoramentos acima mencionados
pelo art. 32, §1º do CTN e, em segundo lugar, pelos equipamentos urbanos e
comunitários, que são definidos pela Lei de parcelamento do solo urbano.
Gasparini (2001, p. 28), assim define solo urbano:
por solo urbano, esclareça-se, há de ser entendido aquele compreendido (encerrado) pelas zonas urbanas (área reservada para o
crescimento das cidades e vilas, adjacente ou não à zona urbana),
definidas por lei municipal. Essas zonas, para fins de parcelamento,
receberam da nova Lei o mesmo tratamento jurídico, pois, em ambas,
e somente nelas, podem ser projetados e implantados loteamentos e
desmembramentos para fins urbanos. Essas zonas são constituídas
por imóveis (terrenos) e é sobre esses que incidirão ou não normas
dessa Lei quando seu proprietário pretender parcelá-los, mediante
loteamento ou desmembramento.
169
Revista Online FADIVALE - 2005
A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
Como se vê, somente a Lei Municipal poderá e deverá definir a zona
urbana, na qual estão incluídas as áreas loteadas e as não loteadas, constituindose estas últimas na zona de expansão urbana. Excluídas, portanto, por definição
legal, das áreas loteadas mais as áreas que deverão ser loteadas em breve, está
a zona rural, destituída totalmente dos equipamentos urbanos e comunitários.
Incidindo sobre a zona urbana e as de expansão urbana está o objeto do
presente estudo, vale dizer, o princípio da função social da propriedade urbana, que
vem qualificado no artigo 182, § 2.º da Constituição Federal, quando estipula que
tal princípio é cumprido, quando atende às exigências fundamentais de ordenação
da cidade, expressas no Plano Diretor, instrumento da política de desenvolvimento
urbano, obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes.
Conforme o art. 182 da Constituição Federal, a política de desenvolvimento urbano deve ser executada pelo município, a quem cabe elaborar o Plano
Diretor, no qual, mediante lei específica para área, poderá impor ao proprietário
do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a obrigação de “dar
uma função social” à sua propriedade.
A Constituição Federal de 1988, não há dúvidas, reescreveu a concepção de direito de propriedade, unindo a idéia de função social à noção de
direito subjetivo. Ou seja, a função social é parte do conteúdo do direito de propriedade, ainda que se reconheça não ser conteúdo exclusivo. Assim, ainda que
haja divergências doutrinárias sobre a verdadeira extensão da “função social”, é
pacífico que a Constituição Federal veio exterminar com a concepção histórica
preconizada no art. 524 do CC de 1916.
4.2 A URBANIZAÇÃO ACELERADA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS SOCIAS E
POLÍTICAS
Em meio a uma tendência progressista a todo custo, o modelo das cidades
atuais é produto da Revolução Industrial, a chamada revolução científico-tecnológica,
ocorrida na segunda metade do século XIX e que configuraria o mundo, já na passagem para o século XX, tal qual hoje o conhecemos, dotado de todas as tecnologias,
novos inventos e de novas formas de trabalho próprio da economia industrial.
Embalado pela citada Revolução, o Brasil, sobretudo a partir da década
de 30, sofreu um intenso processo de urbanização – quando uma ínfima parcela
170
da população brasileira vivia em cidades – que veio provocando inovações e
drásticas transformações socioeconômicas no espaço territorial brasileiro.
Movidos pelo sentimento inovador de que as cidades lhes trariam
melhores condições humanas de sobrevivência, os trabalhadores migraram em
grande escala do campo para as cidades brasileiras.
Atualmente, a transnacionalização do capital financeiro – fenômeno
conhecido como globalização – não fez senão, na chamada era pós-industrial,
acentuar e acelerar o processo de migração e de concentração populacional
na zona urbana brasileira.
Ocorre que, apesar da diminuição na significativa taxa de migração rural-urbana que ocorreu no final do século passado, as mazelas produzidas pelo
processo de urbanização acelerada, ocorrido numa época marcada pelo intenso
desenvolvimento industrial e econômico do país, trouxe conseqüências políticas e
sociais graves que produziram e continuam produzindo uma grande exclusão política
e segregação social da maior parte da população, que não tem acesso a uma boa
infra-estrutura urbana e ao aconselhável índice de desenvolvimento humano.
O crescimento descontrolado das cidades brasileiras, a migração constante e maciça do campo para o meio urbano, desacompanhado de planejamento
e de políticas sociais consistentes e eficazes, tudo isso sob o fruto perverso de
uma injusta distribuição da riqueza nacional, reforça a tendência que aponta
para grandes aglomerações humanas com fossos internos e externos, urbanos,
metropolitanos e regionais.
Os cenários não são promissores, mas as razões de sua existência
tampouco são metafísicas e intangíveis. Ao contrário, são bem concretas, reais
e de materialidade histórica não duvidosa.
5 O ESTATUTO DA CIDADE
Como ressaltado alhures, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma grande inovação em matéria urbanística, de maneira
que instituiu-se novo paradigma legal em relação à propriedade, até então
regulada, exclusivamente, pela idéia individualista do diploma civil de 1916.
Ocorre que, mesmo após a vigência da Carta Magna de 1988, o entendimento
prevalecente era o de que as normas constitucionais que dispunham sobre a
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Revista Online FADIVALE - 2005
A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
política urbana, careciam de regulamentação por uma lei federal específica,
pelo que não tinham aplicabilidade imediata.
Esse entendimento intimidava as ações e gestões de alguns Municípios
e quase sempre esbarravam nas decisões judiciais proferidas por nossos Tribunais, de sorte que os instrumentos disponibilizados pela Constituição atinentes
à política urbana não puderam ser aplicados de modo eficaz pela inexistência
de Lei Federal que os regulasse.
Somente após, aproximadamente, 13 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, que instituiu capítulo especial à Política Urbana – artigos 182
e 183 – criando, de tal forma, uma nova ordem urbanística para o Brasil, é que foi
aprovada em 10 de julho de 2001, a Lei n.º 10.257, autodenominada Estatuto da
Cidade, que veio regulamentar citado capítulo da atual Carta Política brasileira.
Tem-se assim que, de certo modo tardiamente, o Estatuto da Cidade veio a
lume dotado de prerrogativas e de boas perspectivas, no intento de abrandar o caos
urbano que há muito já se acha implantado nas principais cidades do Brasil.
5.1 O MUNICÍPIO E A APLICABILIDADE DO ESTATUTO DA CIDADE
Acolhendo reivindicações de grandes municipalistas como Hely Lopes
Meirelles, a Constituição Federal de 1988 modificou profundamente a posição
dos Municípios brasileiros na Federação, uma vez que os considerou componentes da estrutura federativa brasileira. Assim o fez em dois dispositivos: no art.
1º, quando declara que a República Federativa do Brasil é formada pela união
indissolúvel de Estados e Municípios e do Distrito Federal; e no art. 18, quando
preconiza que a organização político-administrativa da República Federativa
do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
ressaltando-se a autonomia concedida a todos os entes.
É importante ressaltar aqui as idéias do historiador francês Fustel de
Coulanges, numa das mais antigas obras sobre a origem das cidades e do
direito, “A Cidade Antiga”. Na metade do século XIX, definia cidade como uma
associação religiosa e política das famílias e das tribos, que se transforma em
organização municipal (COULANGES, 1965, p. 91-93).
Como se vê, antes mesmo de se falar em urbanismo ou direito urbanístico, o eminente historiador já mencionava a expressão organização municipal,
172
que detém uma definição fundamental para se entender a cidade, sua amplitude,
desenvolvimento econômico social e, principalmente, o seu planejamento. Em
verdade, tal expressão é nuclear para o urbanismo, pois, se uma cidade não
estiver organizada, esta não será cidade, outrossim, será um amontoado de
casas, prédios e construções.
Diante disso, buscando instituir o planejamento urbano, ao Município
foi, pela Constituição Federal de 1988, delegada competência para promover o
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano(art. 30, VIII); para legislar sobre assuntos
de interesses locais (art. 30, I); e para suplementar a legislação federal e estadual
no que couber (art. 30, II).
Com isso, a União, depois de obrigada constitucionalmente, transferiu
formalmente a todos os municípios brasileiros o dever-poder de fiscalizar o cumprimento da função social da propriedade urbana. E, com a entrada em vigor do
Estatuto da Cidade, tal prerrogativa municipal ganhou novos rumos.
Dessarte, o Estatuto da cidade trouxe novos instrumentos, que no dizer
de Baptista (2001, p. 406), vieram:
municiar as administrações municipais de ferramental indispensável
ao cumprimento da missão constitucional de execução da política
de desenvolvimento urbano; matéria que atinge oitenta por cento da
população brasileira que hoje vive nas cidades.
[...]
o Estatuto da cidade veio suprir uma imensa lacuna, para dotar os
Municípios de instrumentos adequados no enfrentamento dos grandes e graves problemas urbanos, nas áreas de educação, saúde,
segurança, habitação, saneamento básico, transporte público, infraestrutura, meio ambiente, lazer e recreação; sempre objetivando
condições condignas de vida nas cidades.
Não apenas pelos novos dispositivos provenientes do EC, mas pela
própria autonomia que o Município ganhou na federação brasileira com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o poder público municipal tem um papel
fundamental na gestão e organização do espaço urbano. Assim, o Município, para
o implemento de uma política urbana eficaz, deve implantar, paulatinamente, as
medidas legais trazidas pelo Estatuto, sob pena de se ver inalterada a situação
caótica que vive a cidade brasileira.
Contudo, essa responsabilidade não pode, nem deve, estar centralizada
173
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
apenas na administração pública, mas sim, obrigatoriamente, também, deve ser
dividida com a sociedade civil, como se verá adiante.
5.2 ESTRUTURA BÁSICA E DIRETRIZES GERAIS DO ESTATUTO DA CIDADE
De um modo geral, o Estatuto da Cidade formaliza-se em 58 artigos,
estes divididos em cinco capítulos distintos: I – Diretrizes gerais; II – Dos instrumentos da política urbana; III – Do plano diretor; IV – Da gestão democrática da
cidade; e V – Disposições gerais.
Primeiramente, tratou-se das diretrizes gerais da política urbana e, dispôs, no parágrafo único do art. 1º, que, para todos os efeitos, a lei é denominada
Estatuto da Cidade, estabelecendo normas de ordem pública e interesse social,
que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança
e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Já em seu art. 2º arrola como princípios informadores, o da função
social da cidade e da propriedade urbana. Rodrigues (2002, p.16), ao comentar este último, disciplina:
com a função social do imóvel urbano, a esta obrigação, a este dever de não fazer nada que perturbe e a propriedade de um legítimo
proprietário, foi acrescentado um direito. O direito da restante da
população exigir um comportamento ativo do proprietário, possuidor
ou mero detentor de um imóvel urbano, que o utilize e o explore convenientemente. O que vale dizer, o direito de propriedade ou posse de
bem imóvel urbano impõe ao seu titular um dever de utilizá-lo, agindo
em conveniência com o restante da população, para que esta, em
contrapartida, possa ser omissa ao respeitar o exercício desse direito.
Noutras palavras, a ação social de um obriga a omissão coletiva dos
demais, para que aquele possa ser exercida convenientemente.
O art. 2º, ainda, enuncia em 16 incisos, diretrizes gerais através das
quais se realizará a política urbana, cumprindo, desse modo, o disposto no art.
182 da Constituição Federal. “São importantes regras, na medida em que permitem o correto entendimento das disposições supervenientes consignadas ao
longo dessa lei” (GASPARINI, 2002, p. 13).
Assim, como preleciona Mukai (2001, p. 2):
a lei estabelece os objetivos da política urbana, a serem atingidos
174
por meio da ordenação do uso e da ocupação do solo urbano, da
expansão do território urbano e da função social da propriedade.
Contempla os casos de abuso do direito de tal função, entre eles
a especulação imobiliária.
5.3 OS INSTRUMENTOS DE INTERVENÇÃO NO USO E OCUPAÇÃO DO
SOLO URBANO
Como dito acima, diante da necessidade de munir os municípios de
institutos jurídicos e políticos, que possibilitassem alcançar o aconselhável
desenvolvimento urbano, foram disponibilizados pelo Estatuto da Cidade novos
instrumentos a serem utilizados pela política urbana implantada pelo poder
público municipal. Antes, porém, de tecer anotações acerca do que sejam e
como funcionam tais instrumentos, conceitua-se o termo “Política Urbana”, na
lição de Gasparini (2002, p. 5), como:
o conjunto de intervenções municipais legais e materiais e de
medidas materiais interventivas no espaço urbano promovidas
por terceiros coordenador pelo Município visando aquelas e estas
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana.
Assim, visando ao alcance das diretrizes norteadas pelo princípio da
função social da propriedade urbana, regulamentaram-se institutos já previstos
na Constituição Federal, mas que ainda não possuíam meios de execução.
Tais instrumentos sofrem, por alguns doutrinadores, ataques de inconstitucionalidade, mas, como um todo, a Lei não é dotada deste vício, embora, sob
o enfoque direto de alguns institutos, pode-se de alguma maneira atribuir-lhes
vícios de inconstitucionalidade.
a) Do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios
As três primeiras sanções instituídas pelo Estatuto da Cidade à propriedade descumpridora de sua função social são o parcelamento, a edificação ou
a utilização compulsória. Com isso, o Município deve promulgar lei específica,
para área incluída no Plano Diretor, onde regule a aplicação de tais sanções que
incidirão compulsoriamente no solo urbano não utilizado, subutilizado ou mal
175
Revista Online FADIVALE - 2005
A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
utilizado, fixando prazos e condições para a incidência dos mesmos.
O poder público procederá à notificação do proprietário para cumprimento da obrigação inicialmente lhe imposta e não poderá deixar de providenciar a
averbação da notificação no cartório de registro de imóveis competente, visando,
desta forma, ao alcance de futuras alienações da propriedade descumpridora
da ordem urbanística preestabelecida. Sendo certo que, após a averbação, os
novos adquirentes continuarão com a obrigação de parcelar, edificar ou, doutro
modo, utilizar a propriedade inócua, enfim, de dar-lhe uma função social.
Deste modo, visa-se coibir a retenção de terrenos urbanos ociosos à
espera de aumento do valor de venda, ou seja, deseja-se barrar o comum índice
de especulação imobiliária urbana, que prejudica o alcance do interesse público
e social intensamente superior ao interesse privado.
b) Do Imposto Predial e Territorial Urbano Progressivo no Tempo
Diante do descumprimento das obrigações iniciais impostas ao proprietário, para parcelar, edificar ou utilizar propriedade que não esteja cumprido com sua função social, para reprimir a ociosidade, o município aplicará a
progressão do IPTU no tempo, aumentando-se sua alíquota progressivamente
por cinco anos. Isso ocorre mediante a fixação de valor atribuído à alíquota
a ser aplicada a cada ano, que será regulada em lei municipal específica de
área incluída no plano diretor, observando que a majoração não poderá ser
superior ao dobro do valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota
máxima de 15% (quinze por cento).
O art. 8º do EC disciplina que no caso de não cumprimento da obrigação,
após cinco anos de incidência do IPTU progressivo no tempo, pode-se manter
a cobrança máxima até que se cumpra a obrigação imposta.
Mukai (2001, p. 11) assevera que: “trata-se, portanto, de tributação
extrafiscal de finalidade punitiva, com progressividade no tempo”. Quanto mais
tempo se passar, mais caro será o imposto, e menos suportável será a espera
de valorização do imóvel.
Importante destacar que a tributação progressiva no tempo do IPTU
impede a concessão de anistia ou isenções, mesmo porque, como diz o citado
176
mestre, não se trata de contribuição fiscal, mas sim, de sanção aplicável à propriedade que descumpra seu papel coletivo.
c) Da Desapropriação Com Pagamento em Títulos
Após a imposição das sanções compulsórias: parcelamento, edificação, utilização e, ainda, da incidência do IPTU progressivo no tempo, sem que,
diante disso, o proprietário ou possuidor dê à propriedade ociosa uma função
social, o poder público poderá desapropriar o imóvel, mediante pagamento
de indenização a ser efetuado com títulos da dívida pública, resgatáveis em
até 10 anos.
Assim, diante da inércia do titular do domínio ou da posse frente às obrigações impostas, pode-se expropriar o imóvel inócuo. Aconselha-se, para tanto,
que a Administração local consulte a sociedade envolvida, para justificar a melhor
escolha: a cobrança do IPTU progressivo no tempo e assim, continuar sem o cumprimento da função social da propriedade ociosa, ou optar por expropriar o imóvel
e aliená-lo na forma da legislação pertinente ou lhe dar uma função social.
d) Da Usucapião Especial de Imóvel Urbano
A usucapião especial de imóvel urbano será conferida ao homem ou
à mulher, ou a ambos, independentemente de estado civil. O essencial é que o
imóvel esteja sendo utilizado para moradia individual ou da família, e ainda, que
o beneficiário não seja possuidor de outro imóvel urbano ou rural.
O Estatuto cria duas regras importantes, ao possibilitar que o herdeiro,
desde que, ao tempo da sucessão, resida no imóvel, continue na posse de seu
antecessor; e institui a figura da usucapião coletiva, esta última visando à regulamentação da ocupação conjunta, indiscriminada e indeterminada (condomínio),
de áreas com mais de 250m², por famílias de baixa renda.
Nesta esteira o Estatuto aduz:
art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros
quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são
susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
A sentença que declara a usucapião coletiva deve ser objeto de registro
no Cartório de Registro de Imóveis. Declarará igual fração ideal para cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que ocupe, ressalvando-se
a hipótese de acordo escrito entre os condôminos, onde estabeleça frações
ideais diferenciadas.
Visa-se com este instituto à regularização das áreas urbanas ocupadas de
maneira irregular, onde amontoados de construções e pessoas convivem com total falta
de infra-estrutura urbana, ou, doutro modo, condições subumanas de sobrevivência.
e) Da Concessão de Uso Especial Para Fins de Moradia
Esta seção foi inteiramente vetada pelo Presidente da República no ato
sancionatório. Para uns com, e, para outros, sem fundamentos jurídicos.
O Presidente da República baseou-se primeiramente no princípio da independência e harmonia dos poderes, uma vez que o Legislativo não pode atribuir
ao Executivo a obrigação de instituir ônus real sobre imóvel público, já que, in casu,
estaria exercendo papel administrativo, o que violaria o princípio retro mencionado,
previsto de forma inequívoca no art. 2º da Constituição Federal de 1988.
Em segundo lugar, fundamentou seu veto na imprescritibilidade ou inalienabilidade dos bens públicos, o que significa a impossibilidade de instituir a concessão
de uso especial para fins de moradia, vez que se trata de ônus real aplicável a bem
público, que, a rigor, é essencialmente inalienável, ainda que onerosamente.
O veto impede a utilização desta concessão na regularização fundiária
das favelas implantadas em áreas públicas. Diante disso, nobre doutrinadora urbanística demonstra sua irresignação frente ao veto ofertado em sede da seção
VI do Estatuto da Cidade:
na verdade, o que parece estar por trás do veto aos arts. 15 a 20 é a
falsa compreensão de que, por meio da aprovação e regulamentação da
concessão de uso especial para fins de moradia, estar-se-ia propiciando, por vias transversas, a usucapião de terras públicas, expressamente
vedado no ordenamento jurídico em vigor. Essa idéia, entretanto, não
178
merece acolhida, pois até o mais incauto estudante de Direito consegue distinguir direito de posse – segurança da posse, portanto –, que
se pode ter pela concessão de uso especial, e direito de propriedade
– que se atinge por usucapião (MATTOS, 2002, p. 750).
Nesta hipótese, fica demonstrada a perda de ótima possibilidade de se
regularizarem as encostas e áreas públicas invadidas pela população carente.
f) Do Direito de Superfície
Conceitua-se o instituto do Direito de superfície, segundo Ricardo Lira,
citado por Mukai (2001, p. 18) como “o direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob terreno alheio”.
O que significa dizer que o proprietário, sem perder tal condição, pode conceder
a outra pessoa, o direito de utilizar o solo, o subsolo e o espaço aéreo de seu
imóvel, por tempo determinado ou indeterminado.
Registram-se em cartório, mediante escritura pública – gratuita ou onerosa – as condições de utilização do terreno, desde que estejam em conformidade
com a legislação urbanística aplicável ao imóvel.
É um importante meio de se atender ao princípio da função social da
propriedade urbana, e observe-se que é o único instituto que se opera entre
particulares, não havendo interferência do poder público na sua aplicação.
g) Do Direito de Preempção
Direito de preempção, segundo Gasparini (2002, p. 129) indica:
restrições ao poder de disposição que o proprietário tem sobre a
coisa móvel ou imóvel, na medida em que deve, antes da alienação
do bem que lhe pertence, oferecê-lo, em igualdade de condições, a
certa pessoa, conforme determinado em lei ou cláusula contratual.
De outro lado, é o direito que assiste a uma pessoa de ser colocada,
consoante determinado por lei ou contrato, em primeiro lugar na
satisfação de seus interesses, quando outras desejam disputar sua
primazia. É instituto tradicional do direito civil.
Pelo Estatuto da Cidade, o poder público municipal, mediante promulgação de legislação especial, terá preferência na compra de imóvel urbano, as179
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
segurado o seu valor de mercado, desde que tal terreno esteja situado em área
previamente definida na legislação pertinente e atenda as finalidades instituídas
pelo ordenamento legal pertinente, embasado no Plano Diretor.
O art. 26 do EC disciplina as hipóteses em que o direito de preempção
será exercido pelo poder público municipal, dentre outras, quando houver necessidade de regularização fundiária; execução de programas e projetos habitacionais
de interesse social; constituição de reserva fundiária; etc.
O proprietário deverá notificar ao Município sobre sua intenção de alienar
o imóvel, que manifestará no prazo máximo de 30 (trinta) dias sua intenção de
compra. E é interessante notar que, em caso de compra realizada pelo Município, a mesma não está sujeita a procedimento licitatório, uma vez se tratar de
inexigibilidade de licitação, cujo fundamento é o caput do art. 25 da Lei Federal
8.666/93 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
h) Da Outorga Onerosa do Direito de Construir
A outorga onerosa do direito de construir consiste no estabelecimento
de um coeficiente de aproveitamento de terreno, a partir do qual a autorização
para construir passa a ser concedida de forma onerosa. Permite ao poder público a cobrança pela utilização mais intensa da infra-estrutura urbana instalada
(HILDEBRAND, 2001, p. 11).
A outorga do direito de construir ocorre, portanto, na possibilidade
de o proprietário do imóvel obter a elevação do coeficiente de aproveitamento
básico1 adotado ou alteração de uso, em troca de contrapartida a ser prestada
pelo beneficiário.
Desta forma, diante da existência de muitos terrenos urbanos, que
ficam supervalorizados, porque a lei permite a construção por várias vezes na
área do terreno, criou-se o instituto sob exame ou, como alguns preferem, solo
criado. Com o solo criado, todos os terrenos deverão ter um coeficiente de aproveitamento básico, em que, quem desejar construir acima deste deverá pagar,
e os recursos provenientes da cobrança serão destinados ao bem coletivo, em
consonância com a finalidade advinda do Estatuto da Cidade.
1 Coeficiente de aproveitamento básico é igual relação entre a área edificável e a área do terreno.
180
A Lei municipal específica preverá os cálculos para a cobrança, a contrapartida e os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga.
Os recursos advindos do recebimento efetuado pelo poder público
em razão da outorga serão aplicados às seguintes finalidades: regularização
fundiária; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;
constituição de reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão
urbana; implantação de equipamentos urbanos comunitários; etc.
i) Das Operações Urbanas Consorciadas
O Estatuto é bem claro ao disciplinar as operações urbanas consorciadas, dispondo no §1º do art. 32, o seguinte conceito:
considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a
participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes
e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área
transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a
valorização ambiental.
Assim, o Município, com a participação dos moradores, usuários e proprietários, empregará medidas e intervenções em determinada área da cidade,
com o fim de atingir a proteção ambiental e a melhoria social; tudo isso, mediante
elaboração prévia de um plano de operação urbana consorciada.
j) Da Transferência do Direito de Construir
O proprietário de imóvel urbano, privado ou público, poderá exercer seu
direito de construir em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, tal direito. Essa situação será prevista no plano diretor ou em legislação urbanística dele
decorrente, quando o imóvel for considerado necessário para fins de implantação
de equipamentos urbanos e comunitários, de preservação, em caso de imóvel
tombando, ou que sirva a programas de regularização fundiária, urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social.
O Estatuto da Cidade com este instrumento de política pública tentou
amenizar o prejuízo sofrido pelo particular em benefício da coletividade, conce181
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
dendo ao mesmo a faculdade de transferir seu direito de construir ou aliená-lo.
l) Do Estudo do Impacto de Vizinhança
Lei Municipal própria definirá os empreendimentos e atividades privadas
ou públicas, em área urbana, que dependerão de elaboração do estudo prévio
do impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento.
O EIV tem por finalidade contemplar os efeitos positivos e negativos do
empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente
na área e suas proximidades (art. 37).
Segundo Mukai (2001, p. 31) o EIV destina-se:
a permitir que os órgãos competentes da prefeitura examinem a adequação do empreendimento no respectivo local e entorno, com relação
aos aspectos do sistema viário e de transportes, produção de ruídos
e resíduos sólidos, capacidade de infra-estrutura instalada, etc.
Deve-se discutir, segundo os incisos do art. 37 do Estatuto da Cidade,
o adensamento populacional; os equipamentos urbanos comunitários; o uso e
ocupação do solo; a valorização imobiliária; a geração de tráfego e demanda
por transporte público; a ventilação e a iluminação; a paisagem urbana e o
patrimônio natural e cultural.
5.4 DO PLANO DIRETOR
O plano diretor é instrumento fundamental na execução de uma boa
política urbana. Como a própria Constituição Federal aduz, ao disciplinar a
política urbana brasileira – art. 182 e 183 – a propriedade urbana só cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor. Entretanto, foi acrescentado, pelo Estatuto da
Cidade, que deve ser assegurado o atendimento das necessidades dos cidadãos
quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades
econômicas, seguidas as diretrizes formalizadas pelo art. 2º do Estatuto, cujo
conteúdo conduz toda a Lei Federal em comento e deve, por este motivo, ser
182
observado na elaboração e implantação do plano diretor.
Desta feita, é com base neste instrumento que se efetivam as diretrizes
a serem seguidas pela política urbana a ser aplicada num Município, ou seja, a
função social da propriedade urbana só ganha contornos práticos com a aplicação
das disposições apresentadas pelo plano diretor.
Pelo que se dessume do art. 182, §1º, da Carta Magna de 1988, o plano
diretor deve ser aprovado pela Câmara Municipal nas cidades que detenham mais
de 20.000 (vinte mil) habitantes. Nesta linha, além de frisar a exigência da norma
máxima, o Estatuto da Cidade ainda exige a implantação do plano nas cidades
integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder
Público municipal pretenda utilizar os instrumentos de parcelamento, edificação
ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo, e a desapropriação
com pagamentos mediante títulos da dívida pública; ou ainda, nas cidades integrantes de áreas de especial interesse turístico; e por fim, nas inseridas em
área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto
ambiental de âmbito nacional ou regional.
Nada obstante as condições fixadas para a incidência obrigatória do
plano diretor, traçadas pela Constituição e elastecidas pelo Estatuto, as cidades
que não se enquadrarem nas exigências mencionadas, mas que, mesmo assim,
pretendam instituir seu plano diretor, não há embaraço algum para sua elaboração e efetiva implantação. O ideal, inclusive, é que todas as cidades utilizem tal
instrumento na execução do desenvolvimento e na expansão urbana.
Em todas as hipóteses, segundo o art. 40, § 3º do Estatuto da Cidade,
o plano diretor deverá ser revisto a cada dez anos, sendo que, as cidades que
ainda não o possuem terão um prazo de 05 (cinco) anos, a contar da entrada
em vigor do Estatuto, para o aprovarem.
O plano diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento
e expansão urbana faz parte do processo de planejamento municipal, devendo,
portanto, englobar todo o território do Município.
Importa anotar, ainda, que é de fundamental importância a observância
desta lei na elaboração do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias
e da Lei Orçamentária Anual, os quais devem incorporar as diretrizes e as prioridades elencadas pelo plano diretor(art. 40, §1º).
183
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
Ressalte-se, ainda, que os Poderes Legislativo e Executivo municipais
devem garantir a plena participação popular no processo de elaboração, fiscalização
e implementação do plano diretor (art. 40, § 4º), uma vez que ninguém melhor para
discutir os problemas da infra-estrutura urbana, de que seus próprios moradores.
Porém, com relação a este tema, há a necessidade de o analisar em sintonia com
o capítulo da gestão democrática da cidade, objeto da próxima abordagem.
Assim, o plano diretor no dizer de Pinheiro (2002, p.14):
é um pacto estabelecido pelos administradores municipais com a população da cidade, após a discussão dos problemas e da explicitação dos
interesses divergentes ou conflitantes, um pacto que tem por objetivo a
construção de uma cidade melhor para nós e para as gerações futuras.
Só será possível transformar a cidade com a cooperação de todos:
governo, iniciativa privada e sociedade como um todo.
Em última análise, o art. 42 do Estatuto da Cidade aponta para o conteúdo mínimo de um plano diretor, qual seja, a delimitação das áreas urbanas,
onde poderão ser aplicados os instrumentos de intervenção no uso do solo
urbano e o sistema de acompanhamento e controle. Sendo esta última exigência fundamental na operacionalização da lei e suas diretrizes, sem os quais, a
mesma se tornaria inócua.
5.5 A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PLANEJAMENTO URBANO
Da Gestão Democrática das Cidades
O Estatuto da Cidade consagrou, especialmente, em três de seus
cinqüenta e oito artigos, a participação da população no desenvolvimento e
na aplicação da política urbana, sendo conferido ao seu capítulo IV o tema
da gestão democrática da cidade.
Com efeito, diante da atual tendência democrática participativa, o Estatuto da Cidade, em seus arts. 43 a 45, prevê que, na gestão democrática da cidade,
deverá imperar a democracia direta, não se desvencilhando da representativa,
ao contrário, unindo as duas formas harmoniosamente, instituindo, para tanto,
a utilização de diversos instrumentos para consecução de tal fim, quais sejam,
foros de discussão, debates, audiências públicas, assembléias, conferências
184
sobre assuntos de interesses urbanos, iniciativa popular de projetos de lei e de
planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Dispõe, ainda, em seu art. 44, sobre a institucionalização da gestão
orçamentária participativa, as condições de realização de debates, audiências
e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes
orçamentárias e do orçamento anual. Tais condições são de obediência obrigatória
para a aprovação dos citados instrumentos pela Câmara Municipal.
A elaboração do plano diretor, sua implantação e execução efetiva
dependem, como mencionado alhures, de plena participação política, que
será efetuada em foros de discussões que visem à consulta popular direta,
na busca da implantação da democracia participativa no processo de desenvolvimento e expansão urbana.
Destarte, o Poder Público municipal deverá, através de audiências
públicas, submeter todas as alterações que pretenda introduzir no plano
diretor, bem como a política habitacional que pretenda desenvolver, ao crivo
prévio da população envolvida.
Portanto, a ampla participação política, a ser utilizada pelos administradores públicos na institucionalização da gestão municipal, em alguns casos
obrigatoriamente, sob pena de incorrer nas disposições da lei de improbidade
administrativa, conforme o art. 52 do EC, é a melhor alternativa na busca do melhoramento da atual situação política que envolve o ambiente urbano brasileiro,
atualmente, dotado de extrema injustiça e nefasta segregação social.
6 CONCLUSÃO
Com vistas a questionar o alcance social do Estatuto da Cidade, sua efetividade e, conseqüentemente, a efetividade dos paradigmas introduzidos por seu
princípio norteador, o da função social da propriedade urbana, este trabalho analisa
mediante, predominantemente, estudo teórico das disposições legais atinentes ao
tema proposto, os instrumentos e a aplicabilidade da política urbana.
Percebe-se, do texto, que o direito de propriedade experimentou grande
evolução conceitual no século passado. Ocorreu o abandono gradual da percepção da realidade jurídica sob um prisma liberal, individualista, e a adoção de
uma perspectiva mais social e coletiva.
185
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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE
O Direito de propriedade só é assegurado mediante o cumprimento de sua
função social, conforme lhe acomete o texto constitucional, em duas passagens distintas, ora como princípio fundamental, ora como princípio da ordem econômica.
Diante do grande desenvolvimento urbano ocorrido nas últimas décadas
e do aparecimento e crescimento da ciência urbanística, frente ao desastroso
processo de uso e ocupação do solo urbano, implementaram-se discussões
quanto ao ambiente urbano brasileiro, motivadas pelo princípio da função social
da propriedade urbana, tendo como conseqüência lógica a preocupação com o
meio ambiente urbano, ou seja, com a função sócio ambiental da propriedade.
Assim, o desafio que envolve as cidades brasileiras nesse início de
século, envolve questões jurídicas, sociais, políticas e culturais, as quais, com
a promulgação do Estatuto da Cidade e suas diretrizes, indicam que a tarefa de
planejar a cidade passa a ser uma função pública, que deve ser compartilhada
pelo Estado com a sociedade – co-partícipes na observância e na aplicabilidade
dos instrumentos de política urbana.
Não apenas pelos dispositivos constitucionais ou infraconstitucionais,
que implementam a participação popular na gestão pública, mas pela própria
autonomia que o Município ganhou na federação brasileira com a promulgação
da Constituição Federal de 1988, o poder público municipal tem um papel fundamental na gestão e organização do espaço urbano.
Contudo, essa responsabilidade não pode, nem deve estar centralizada
apenas na Administração Pública, mas sim, obrigatoriamente, tem que ser dividida
com a sociedade civil. Nesse sentido, a elaboração da legislação urbana deve ser
fruto de um processo coletivo capaz de, ao final, agregar e refletir todas as forças
e segmentos da cidade. De outra forma, como já ocorre, prevalecerá o interesse
dos grupos economicamente mais poderosos, cujo único interesse é o lucro.
Deste modo, todos os instrumentos disponibilizados pelo Estatuto da
Cidade todas as diretrizes formuladas e, ainda, a previsão da gestão democrática
da cidade, trazem como pressuposto, como fundamento nuclear, a clara visão do
direito de propriedade subordinado ao cumprimento do princípio da função social
da propriedade urbana. Em todos os dispositivos legais do EC, está consagrado o
implemento da justiça social, como finalidade primordial ao alcance da dignidade
da pessoa humana, da igualdade, da cidadania e da soberania popular.
Desta forma, a plena efetividade do princípio da função social da
186
propriedade urbana e, conseqüentemente, do Estatuto da Cidade, norteado
por aquele, fica condicionada diretamente a uma elaboração transparente,
com a real participação popular, de um plano diretor voltado para a situação
fática de cada ambiente urbano.
Através do plano diretor e com uma forte política pública implementada
pela Administração municipal, responsável direta pelo desenvolvimento urbano, e
com a utilização inafastável de seu poder de polícia na aplicação dos instrumentos
disponibilizados pelo Estatuto da Cidade, na incidência das sanções às propriedades urbanas que não cumpram sua função social, ter-se-á uma efetiva implantação
e aplicabilidade do Estatuto da Cidade, ainda modestamente utilizado.
O Estatuto da Cidade é, desta forma, um promissor instrumento que mune
os Municípios na execução da política urbana, visando à melhoria das condições
estruturais das cidades brasileiras. Empregado com sabedoria pelos administradores públicos, com certeza, é um célebre ordenamento legal, o qual só se tornará
efetivo e, conseqüentemente, efetivará o seu princípio norteador, objeto do presente
estudo, quando a consciência popular estiver totalmente voltada para o processo
que envolve a Administração Pública, e, nesta hipótese, efetivamente participar
dos processos de elaboração e execução dos instrumentos de política urbana.
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
LIMITES DO PODER NORMATIVO
DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Pedro Carlos Sampaio Garcia*
Resumo
Abstract
O presente trabalho aborda relevantes questões
acerca dos “Limites do Poder Normativo da Justiça
do Trabalho”. Conceitua aludido poder, definindo-o
como a oportunidade da Justiça do Trabalho criar
norma nova, abstrata e genérica, na busca de soluções para conflitos econômicos ou de interesse entre
categorias de trabalhadores e empregadores. O artigo
trata de maneira específica das lides não resolvidas
pela negociação direta nem pela arbitragem. Exclui
os dissídios coletivos de natureza jurídica e os que
tratam da aplicação da lei de greve, em que a atividade
é eminentemente jurisdicional. Relaciona o assunto
com o art. 114, § 2o da CF, bem como aos princípios da
Justiça e da Eqüidade. Ao concluir, propõe a “extinção” da delimitação material do poder normativo da
Justiça do Trabalho e a adoção de uma interpretação
justa da norma genérica em cada caso concreto.
The present work boards important matters concerning to the “Limits of the Normative Power of Justice of
Work”. Judges referred to, defining it as the opportunity of Justice of Work create norm new, abstract and
generic, in the solutions search for economic conflicts
or of interest among workers’ categories and employers. The article care for specific way of lides not solved
by the direct negotiation neither by the arbitration. It
excludes the collective dissensions of juridical nature
and the ones that care for the application of the strike
law, in which the activity is eminently jurisdictional.
It relates the subject with art. 114, § 2nd of CF, as well
as to the principles of Justice and of the Justness. when
concluding, it proposes the “extinction” of the material delimitation of the normative power of Justice of
Work and the adoption of a just interpretation of the
generic norm in each concrete case.
Palavras-chave
limites; poder; Justiça do Trabalho.
limits; power; Justice of the Work.
Keywords
Sumário
1 INTRODUÇÃO. 2 DEFINIÇÃO DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO. 3 BREVE HISTÓRICO
DO PODER NORMATIVO. 4 OS LIMITES DO PODER NORMATIVO NO SISTEMA CONSTITUCIONAL ANTERIOR A
1988. 5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. 6 A JURISPRUDÊNCIA. 7 PODER NORMATIVO – JURISDIÇÃO OU
LEGISLAÇÃO – O PROBLEMA DA EQÜIDADE. 8 CONCLUSÃO – PODER NORMATIVO – ATIVIDADE JURISDICIONAL
OU LEGISLATIVA – SEUS LIMITES MATERIAIS. REFERÊNCIAS.
* Professor de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho do Complexo Jurídico Damásio de Jesus – SP. Juiz Titular
do Trabalho da 2.ª Região - SP.
190
1 INTRODUÇÃO
Não é propósito deste estudo definir o poder normativo da Justiça do
Trabalho, examinar sua natureza e discutir sua conveniência em nosso sistema
como meio de solução dos conflitos coletivos de trabalho. A tarefa da qual se
procurará desincumbir é a de estudar seus limites materiais, diante das modificações introduzidas pela Constituição Federal de 1988, quando trata desse poder,
especialmente, em razão das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal
delimitando seu alcance.
Esse intento, no entanto, exige que se verifiquem, ainda que superficialmente, questões que concernem à natureza jurídica do poder normativo, pois seu
enquadramento como atividade própria do Poder Judiciário ou do Legislativo influi,
sem dúvida, na sua delimitação material. No presente estudo, dar-se-á ênfase
especialmente à utilização da eqüidade nas decisões normativas, conceito-chave
para a investigação a que se propõe.
Não será exagero, assim, fazer uma resumida distinção da atuação da
Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos, bem como um breve relato do surgimento do poder normativo em nosso sistema constitucional, para estabelecer
com clareza qual o objeto deste estudo. É necessário não confundir o chamado
poder normativo com outras competências específicas da Justiça do Trabalho,
quando soluciona conflitos coletivos, pois nem sempre, nessa intervenção, esse
ramo especializado do Judiciário está no exercício de um poder normativo.
2 DEFINIÇÃO DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A diferenciação doutrinária é por demais conhecida. A intervenção da
Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos se faz por meio de sentenças proferidas em dissídios coletivos, que se distinguem em dissídios de natureza jurídica e
econômica. São jurídicos os “conflitos fundados em norma preexistente em torno
da qual divergem as partes, quer para sua aplicação, quer para sua interpretação”
(NASCIMENTO, 1982, p. 238).
Sua finalidade é a interpretação do Direito, mas sempre diante de
um caso concreto. Como lembra Vidal Neto (1983, p. 154), em sua monografia sobre o poder normativo da Justiça do Trabalho, “é a declaração da
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
existência ou inexistência de uma relação jurídica. Trata-se de uma ação
de natureza declaratória perfeitamente compatível com os princípios processuais comuns”. São ações coletivas declaratórias, inseridas na atividade
jurisdicional própria do Poder Judiciário. Não se faz referência ao ainda ao
campo do poder normativo.
Nos dissídios coletivos, muitas vezes, a Justiça do Trabalho se vê na
necessidade de examinar atos de trabalhadores e empregadores relacionados
ao direito de greve. A greve é, por definição, um movimento coletivo de paralisação do trabalho. A abusividade no exercício desse direito, a ação patronal
ilegal impedindo-o, a necessidade de manutenção de serviços essenciais à
população são matérias que decorrem da natureza coletiva desses conflitos.
Adequado, assim, o exame dessas questões em sede de uma ação coletiva,
ainda que se possa dissentir das regras relacionadas à competência funcional
originária para o conhecimento do dissídio coletivo decorrente de greve. Novamente é Pedro Vidal NETO quem destaca que “a hipótese é de ação coletiva
de natureza declaratória. Não se trata de interpretação de lei em tese, mas
de interpretação da lei frente a um caso concreto: uma determinada greve”
(VIDAL NETO, 1983, p. 149). A sentença, no caso, é meramente declaratória,
caracterizando típica atuação do poder jurisdicional da Justiça do Trabalho.
Também aqui não se ingressa no terreno do poder normativo.
É nos chamados dissídios coletivos de natureza econômica que se pode
falar em poder normativo da Justiça do Trabalho. Como preleciona o eminente
Ministro Orlando Teixeira Costa, essa competência normativa é “o poder atribuído
pela Constituição (art. 114) à Justiça do Trabalho, para conciliar e julgar dissídios coletivos de natureza econômica, estabelecendo normas e condições para
todos os integrantes de categorias empregada e empregadora afins, quando as
mesmas, manifestando antagonismos e divergências, recusam-se a resolvê-los
mediante negociação coletiva ou arbitragem” (COSTA, 1989, p. 1.286).
Nos dissídios coletivos de natureza econômica, denominação nem
por todos aceita, pois restritiva quanto à abrangência da matéria ali debatida,
a Justiça do Trabalho não realiza típica atividade jurisdicional. Sabe-se que
a jurisdição se caracteriza pela aplicação do direito já existente a um caso
concreto. Como ensina o nosso grande processualista Cândido Rangel Dinamarco, ao tratar dos escopos da jurisdição,
192
dessa destinação do poder estatal sub specie jurisdictionis, decorre
uma característica muito visível, que é a sua aplicação a casos concretos. Não é mais lícito pensar nessa concreção como manifestação
de restrições individualistas ao exercício da jurisdição (se bem seja
assim a estrutura fundamental da sua disciplina positiva ainda em
tempos atuais), mas parece indubitável que a jurisdição não tem
vocação às generalizações ou ao abstrato, como é próprio da função
legislativa (DINAMARCO, 1987, p. 164).
Não é hora de debater tão polêmico conceito, nem de aprofundar qual
o papel do juiz no exercício da atividade jurisdicional. Mas qualquer que seja a
corrente doutrinária, não se nega à jurisdição sua função típica de aplicadora e
não criadora do direito. Quando no exercício do poder normativo, no entanto, a
Justiça do Trabalho foge desse papel, pois cria direito novo, cria norma nova,
abstrata e genérica, buscando a solução de conflitos econômicos ou de interesse
entre categorias de trabalhadores e empregadores.
Nesse trabalho, portanto, ao falar dos limites do poder normativo da
Justiça do Trabalho, tratar-se-á apenas do exercício dessa atividade específica
de criação de novas condições de trabalho na solução dos conflitos coletivos
de natureza econômica, que não são resolvidos pela negociação direta e pela
arbitragem. Estão fora dessa análise os dissídios coletivos de natureza jurídica
e os que tratam da aplicação da lei de greve, em que a atividade da Justiça do
Trabalho é eminentemente jurisdicional.
3 BREVE HISTÓRICO DO PODER NORMATIVO
O poder normativo da Justiça do Trabalho nasceu junto com ela, ainda
na sua fase administrativa. Faz parte do processo de implantação da legislação
trabalhista de nítido caráter corporativista, que tanto entusiasmava o novo governo no início da década de 1930. Como bem assevera Pinto (1998, P. 351), o
corporativismo nas relações de trabalho era:
peça fundamental da integração Estado/empresa, envolvendo o trabalho, fator essencial ao desenvolvimento desta última. Por isso, o
traço mais forte do nosso modelo legislativo saiu da Carta del Lavoro
italiana, de 1927, que consolidou a autorização ao Judiciário para
criar condições de trabalho, fundando-se no princípio da eqüidade
que deveria presidir a solução dos conflitos de interesses entre as
categorias profissionais e econômicas.
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Já com a criação, por Lindolfo Collor, primeiro Ministro do Trabalho do
Brasil, em 1932, de Comissões Mistas de Conciliação entre empregados e empregadores, e do Conselho Nacional do Trabalho, buscava-se uma solução para
os conflitos coletivos de trabalho. Em 1936 foi remetida mensagem presidencial
à Câmara dos Deputados com o anteprojeto de criação da Justiça do Trabalho,
que deu origem à famosa polêmica entre Oliveira Viana, um dos responsáveis
pela elaboração do projeto, e Waldemar Ferreira, seu relator na Comissão de
Constituição e Justiça, que tinha como um dos pontos mais controvertidos exatamente a previsão de competência normativa para o órgão que se criava.
O Dec.-lei n. 1.237, de 1939, deu organização à Justiça do Trabalho,
como órgão administrativo, prevendo a competência normativa para os Conselhos Regionais do Trabalho, no julgamento de dissídios coletivos. O art. 94 do
mencionado Dec.-lei balizava o conteúdo dessas decisões ao estabelecer que
na falta de disposição expressa de lei ou de contrato, as decisões da
Justiça do Trabalho deverão fundar-se nos princípios gerais do direito,
especialmente do direito social, e na eqüidade, harmonizando os interesses dos litigantes com os da coletividade, de modo que nenhum
interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
É a primeira referência legal à solução dos conflitos de interesse pela
Justiça do Trabalho, que não se limita a um juízo legal, podendo a autoridade
decidir por um juízo de eqüidade.
Em 1946, a Constituição que redemocratizou o País incorporou a Justiça
do Trabalho ao Poder Judiciário, mantendo o que já havia sido estabelecido no
Dec.-lei n. 9.797, do mesmo ano. Na Carta de 1946, definiu-se a competência
da Justiça do Trabalho para conciliar e julgar dissídios individuais e coletivos
do trabalho, com expressa previsão, no seu art. 123, § 2.º, de um poder normativo, nos seguintes termos: “A lei especificará os casos em que as decisões
nos dissídios coletivos poderão estabelecer normas e condições de trabalho”.
A competência normativa é agora expressa, ainda que condicionada à previsão
da legislação ordinária.
A Constituição Federal de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, manteve
integralmente o texto da Carta de 1946, substituindo apenas o vocábulo “casos”
pela palavra “hipóteses”. A Justiça do Trabalho manteve sua competência para
estabelecer novas condições de trabalho, quando autorizada pela lei ordinária.
194
Na Constituição Federal de 1988, significativa alteração sofreu a regra
que previa essa competência normativa. O art. 114 do novo texto constitucional
dispõe sobre a competência da Justiça do Trabalho na solução dos conflitos
coletivos de trabalho dizendo, no seu § 2.º, que:
recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem,
é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo,
podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições,
respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de
proteção ao trabalho.
A modificação é significativa. O poder normativo, exercido nos casos
especificados pela lei, passaria apenas a respeitar as disposições convencionais
e legais mínimas. Alargou-se o poder normativo da Justiça do Trabalho, que agora
tem apenas um limite mínimo a ser respeitado, ou permanece ele ainda limitado
por outros parâmetros fornecidos pelo ordenamento jurídico? É essa a questão
que esse trabalho passa a enfrentar.
4 OS LIMITES DO PODER NORMATIVO NO SISTEMA CONSTITUCIONAL
ANTERIOR A 1988
Não parece haver dúvida de que o poder normativo da Justiça do Trabalho,
nas Constituições de 1946 e 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, sofria limitações
da lei ordinária. A referência era expressa no texto constitucional, pois o legislador
ordinário iria especificar em que hipóteses a Justiça do Trabalho poderia criar novas
normas e condições de trabalho no julgamento dos dissídios coletivos.
Há que se considerar, no entanto, como bem registra o Ministro Orlando
Teixeira da Costa, que “essas hipóteses jamais foram sistematicamente enumeradas por qualquer lei, o que levou os Tribunais a um esforço de pesquisa e de
exegese, para encontrar a autorização legislativa quanto ao uso dessa competência [...]” (COSTA, 1989, p. 1.287). Em raras oportunidades se encontrava lei
tratando da matéria, podendo ser lembrada a regra do art. 766 da CLT, quando se
refere a “dissídios sobre estipulação de salários”, como um desses casos isolados
em que o poder normativo podia ser exercido por expressa autorização da lei. Na
maioria dos casos, no entanto, a competência normativa era desenvolvida por
um esforço de interpretação a fim de descobrir a autorização legal necessária.
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Essas dificuldades fizeram com que a doutrina apresentasse concepções
diversas sobre a limitação do poder normativo àquela época. Aproveitando-se
do estudo aprofundado da matéria realizado pelo Professor e Magistrado Pedro
Vidal Neto, verifica-se que parte considerável da doutrina tinha a convicção de
que o âmbito de atuação do poder normativo da Justiça do Trabalho era o mesmo
das convenções coletivas. Cita o Professor Pedro Vidal Neto o entendimento de
Rezende Puech, para quem havia identidade do campo de ação da convenção
coletiva e da sentença normativa, pois ambas cobriam a mesma lacuna. Sustentava esse entendimento o papel desempenhado pelos dois mecanismos de
solução dos conflitos coletivos de trabalho, já que a sentença normativa era o
sucedâneo da convenção coletiva malograda. Dessa forma, aquilo que poderia
ser objeto de convenção coletiva também poderia ser objeto de decisão da Justiça
do Trabalho. A autorização legal se encontrava exatamente na obrigatoriedade
da negociação coletiva (art. 616 e parágrafos) para a instauração do dissídio
coletivo (VIDAL NETO, 1983, p. 146-149).
Essa interpretação foi contestada por doutrinadores como Wilson de
Souza Campos Batalha, Eduardo Gabriel Saad e Antonio Lamarca, que apresentavam concepção restritiva do poder normativo. Para Batalha, o poder normativo
estava restrito às chamadas cláusulas salariais, como as de reajustes e suas
cláusulas acessórias, concernentes à data-base, aos critérios aplicáveis aos
empregados admitidos posteriormente, à data de vigência e outras da mesma
natureza. Segundo Batalha (apud VIDAL NETO, 1983, p. 148) à Justiça do Trabalho “não foi deferida competência para fixar normas além das normas legais
e, muito menos, para modificar ou alterar cláusulas dos contratos existentes ou
do direito consuetudinário laboral”.
Lamarca, lembra Vidal Neto (1983, p. 148), é taxativo: “o poder normativo da Justiça do Trabalho limita-se à cláusula salarial, porquanto o legislador
não editou lei regulamentadora, senão da parte salarial”. Havendo política salarial
estabelecendo índices oficiais de reajustes salariais, o poder normativo é meramente administrativo e se restringe a atos homologatórios de índices oficiais.
A posição intermediária parece que acabou prevalecendo na doutrina
e na jurisprudência. O próprio Professor Pedro Vidal Neto é defensor dessa
concepção, observando não ser possível a decisão da Justiça do Trabalho, de
caráter heterônomo, ter a mesma extensão que o poder negocial das partes:
196
as partes podem ajustar validamente a concessão de número indefinido de benefícios de toda a sorte, não conferidas ao trabalhador
por lei. Não se vê com que fundamento a sentença normativa poderia impor benefícios cuja obrigatoriedade não é estatuída pela
própria lei e que não tenham sido voluntariamente acatadados
(VIDAL NETO, 1983, p. 147).
Por outro lado, lembra o eminente Professor, nem toda autorização
legal está expressa no ordenamento jurídico. Afirmando que o poder normativo
é uma modalidade do poder jurisdicional comum, quando orientado para o preenchimento das lacunas do ordenamento jurídico e, fazendo uso da chamada
doutrina dos poderes implícitos, Vidal NetO (1983, p. 151) delimita a amplitude
do poder normativo da Justiça do Trabalho com o seguinte enunciado:
à Justiça do Trabalho cabe dar eficácia às normas trabalhistas em
vigor, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com suas
finalidades e com os princípios do ordenamento jurídico; em conseqüência, tem competência para dispor as normas complementares
necessárias à efetiva atuação do direito positivo vigente.
Trata-se de um comando implícito da norma, que podia ser revelado
pelo poder normativo, visando concretizar direitos previstos no ordenamento
que encontravam obstáculos para serem concretizados. É o esforço hermenêutico ressaltado por Orlando Teixeira da Costa, servindo o poder normativo
para realizar o direito objetivo.
A jurisprudência forneceu exemplos, demonstrando a preponderância
desse entendimento. A estabilidade provisória da mulher gestante foi consagrada em sentenças normativas como meio para assegurar à trabalhadora o
gozo da licença-maternidade prevista na lei. A fixação do adicional de horas
extras na sentença normativa também era admitida até pelo Supremo Tribunal Federal, em razão de a lei utilizar a expressão “pelo menos”, quando
estabelece os percentuais para o trabalho extraordinário. A estabilidade ao
menor em idade de alistamento militar, ao trabalhador acidentado, o abono
de falta ao estudante nos dias de exames escolares e a comunicação escrita
do motivo da dispensa são exemplos da aceitação do critério intermediário
defendido pela maior parte de nossos doutrinadores.
O poder normativo passou, assim, a ser exercido como mecanismo de
integração da lei, por autorização implícita desta. Seus limites eram indefinidos, mas
197
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
poderíamos dizer que, ao contrário do que estabelecia a Constituição então vigente,
eram eles muito mais negativos do que positivos, não se admitindo a competência
normativa da Justiça do Trabalho, apenas quando houvesse clara restrição legal.
5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Sensível mudança na compreensão do poder normativo da Justiça do
Trabalho surgiu com a redação do § 2.º do art. 114 da atual Constituição Federal.
Como já visto, o novo preceito autoriza a Justiça do Trabalho a criar novas condições de trabalho, respeitados os patamares mínimos fixados em lei ou convenção
coletiva. A modificação causou repercussão imediata na doutrina.
O Ministro Orlando Teixeira da Costa, no artigo já citado, considera que
o esforço hermenêutico exigido pela Constituição anterior
agora não se faz mais necessário, pois o texto constitucional não
subordinou o estabelecimento de ‘normas e condições’ à existência de qualquer especificação de lei precedente. Concedeu, pura
e simplesmente, à Justiça do Trabalho, o poder de estabelecer
normas e condições, exigindo apenas, afora obediência às limitações inerentes ao princípio da harmonia e independência dos
poderes, respeito às disposições convencionais ou legais mínimas
de proteção ao trabalho (COSTA, 1989, p. 1288).
Lembra ainda o Ministro do TST que não há sequer restrição quanto à
natureza da norma, podendo a Justiça do Trabalho no exercício dessa competência excepcional estabelecer novas condições de trabalho e normas de natureza
contratual, obrigando os sindicatos que participam do processo.
O mais novo Ministro do TST, Ives Gandra da Silva Martins Filho, também considera superada a disputa hermenêutica existente até 1988. Afirma Ives
Gandra que, pela nova redação do art. 114, § 2.º, da Constituição Federal, “o poder normativo da Justiça do Trabalho saiu fortalecido e, de certa forma, ampliado,
uma vez que não sujeito, quer à limitação da lei ordinária ao seu exercício, quer à
interpretação castrativa levada a cabo pelo Pretório Excelso” (MARTINS FILHO,
1989, p. 199-200). Para o ex-Procurador e atual Magistrado, os limites do poder
normativo são fixados pelos patamares constitucional e legal, que estabelecem os
direitos mínimos do trabalhador, e pelo teto que representa a justa retribuição ao
capital, de que trata o art. 766 da CLT. Do limite ao teto, degraus serão ultrapassados
198
como resultado da atividade do Magistrado do Trabalho, baseada na eqüidade e
no bom-senso, que decidirá como legislador, sem se apoiar em norma jurídica.
Assevera Ives Gandra que:
nesse sentido, no período inicial de implantação da nova ordem
constitucional, em que muitos dispositivos constitucionais carecem
da legislação que os tornem aplicáveis, mormente na orla trabalhista,
teremos um poder normativo da JT ainda mais amplo, pois inexistindo
as leis complementares (que seriam limitações ao exercício desse
poder), caberá aos tribunais trabalhistas realizarem a integração das
normas constitucionais de eficácia limitada, no âmbito das categorias
para as quais estabelecerem novas condições de trabalho (MARTINS
FILHO, 1989, p. 200-201).
Ainda que continue não admitindo a atividade de caráter legislativo da
Justiça do Trabalho no exercício do poder normativo, Pedro Vidal Neto reconhece que as novas disposições constitucionais a respeito da matéria alargaram o
campo de atuação da Justiça do Trabalho nos dissídios coletivos de natureza
econômica. Lembrando as concepções doutrinárias anteriores à Carta de 1988,
afirma Neto (1989, p. 160-162) que “a luz do novo texto constitucional torna-se
extreme de dúvidas que as decisões normativas poderão regular toda a matéria
pertinente às convenções coletivas de trabalho”. Sua limitação estaria apenas
nos patamares mínimos fixados em lei ou convenção coletiva, observando
Neto (1989, p. 160-162) que, dentro desses limites, deve o poder normativo
“ser informado por critérios de oportunidade e conveniência, assim como pelas
exigências da eqüidade”.
Para o então Ministro Corregedor do Tribunal Superior do Trabalho, Luiz
José Guimarães Falcão, também houve um alargamento do campo de atuação
normativa da Justiça do Trabalho. Diz o Magistrado que:
examinando-se os dispositivos da atual Constituição, nota-se claramente que o Constituinte de 1988 decidiu alterar substancialmente
o sistema anterior substituindo o poder normativo condicionado e
restritivo por outro mais livre e amplo. Fosse a intenção instituir um
poder normativo condicionado não precisaria alterar o texto da Constituição anterior (FALCÃO, 1989, p. 12).
Busca o Ministro Guimarães Falcão distinguir a atividade legislativa
como algo diverso do poder normativo, para caracterizá-la como nítida atuação
199
Revista Online FADIVALE - 2005
LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
jurisdicional da Justiça do Trabalho, afirmando que:
a função legislativa do Congresso Nacional configura os direitos e
condições legais mínimos de proteção. A partir desse piso, a Constituição autoriza a função normativa da Justiça do Trabalho, com
fundamento na eqüidade, desde que o poder se exerça estritamente
nos limites da instituição de normas e de condições de trabalho [...]
(FALCÃO, 1989, p. 13).
Esse mesmo entendimento, com pequenas discrepâncias, aparece em
vários outros doutrinadores, podendo-se mesmo afirmar que é preponderante
a posição de que houve um alargamento da competência normativa da Justiça
do Trabalho. Mas juristas de renome se posicionaram de forma contrária. Arion
Sayão Romita é o mais contundente entre eles. Para o Professor do Rio de
Janeiro, “não é exato que, para o poder normativo da Justiça do Trabalho, à luz
da Constituição de 1988, o céu é o limite” (ROMITA, 1989, p. 909). Diz Romita
que “realmente, a Constituição explicitou o mínimo, mas esse procedimento não
autoriza a ilação de que ela deixou de consagrar limite máximo para o exercício
da competência normativa”.
Segundo sua concepção, o poder normativo da Justiça do Trabalho
continua a ter limites mínimos e máximos. Os mínimos, expressamente referidos
no texto constitucional. Os máximos acham-se implicitamente fixados por fontes
materiais e formais. As fontes materiais são representadas por valores constitucionalmente consagrados, como o direito de propriedade, da livre iniciativa e da
livre concorrência. As fontes formais encontram-se nos arts. 5.º, II, e 49, XI, da
Constituição Federal. O primeiro assegura o direito fundamental de que ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
O segundo estabelece que o Congresso Nacional deve zelar pela preservação
de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes. Resulta da interpretação desses dois preceitos que, havendo texto de lei
regulando determinada matéria, a competência normativa respeitará o comando
legal, não podendo ampliar nem reduzir a garantia ali estabelecida. Na ausência
de texto legal, afirma ROMITA, haverá o intérprete que concluir pela impossibilidade
do exercício do poder normativo, diante de duas considerações essenciais:
o Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito (Constituição,
art. 1.º) e este, como se sabe, é o Estado que se submete à lei (lei
em sentido formal); b) no exercício da competência normativa, o Ju200
diciário Trabalhista não pode, sem violação da ordem constitucional,
usurpar a atribuição legislativa do Poder respectivo, ante o respeito,
que se lhe exige, ao disposto no art. 2.º da Constituição, segundo o
qual os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si
(ROMITA, 1989, p. 909).
Encerra Romita (1989, p. 910-911), observando que o poder normativo deve ser exercido “com respeito à lei e nos limites impostos pela lei”.
Também Otávio Bueno Magano considera o poder normativo da Justiça
do Trabalho, na nova ordem constitucional, limitado ao ordenamento jurídico.
Definindo essa competência especializada como típica atividade jurisdicional,
pois do contrário estaria o Poder Judiciário invadindo área do Poder Legislativo,
Magano afirma que a Constituição de 1988 apenas extinguiu a compartimentação
do campo de atuação do poder normativo que antes existia. Não há mais que
esperar o legislador ordinário indicar qual a matéria possível de ser decidida pela
Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos. A descompartimentalização
não significa, contudo, mudança na natureza da atividade, a cargo
da Justiça do Trabalho, que continua a ser jurisdicional. Mais pormenorizadamente há de se dizer que, ao julgar dissídios coletivos de
natureza econômica, cabe-lhes apenas aplicar normas latentes do
ordenamento jurídico (MAGANO, 1991, p. 1.028).
São os comandos implícitos da lei, que embasavam a atuação normativa
da Justiça do Trabalho ainda no sistema constitucional anterior a 1988. Faz o
Professor Magano, inclusive, uma analogia com o poder regulamentar do executivo, que jamais pode confrontar a lei, lembrando estudo feito nesse sentido
pelo Ministro do TST, Manoel Mendes de Freitas.
Com efeito, o Ministro Manoel Mendes de Freitas, em interessante trabalho, faz uma análise comparativa do poder normativo da Justiça do Trabalho e
do poder regulamentar do Chefe do Executivo, lembrando que o decreto regulamentar está, na hierarquia das normas, em posição inferior à da lei, não podendo
conter disposições que a contrariem ou que tenham conteúdo inovador. No uso
do poder regulamentar, o Chefe do Poder Executivo limita-se a torná-las mais
claras e, portanto, de execução mais fácil. Quando se trata de um regulamento
autônomo, a atividade do Chefe do Executivo é caracteristicamente criadora,
destinando-se aos espaços vazios da lei.
Observa o Ministro do TST que é semelhante a natureza do poder nor201
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
mativo da Justiça do Trabalho. Destacando que essa atividade normativa continua
limitada, pois não pode ser exercida contra a lei, lembra o Magistrado que “o poder
normativo da Justiça do Trabalho é excepcional, como o é, também, o poder normativo do Chefe do Poder Executivo da União, eis que envolvem ambos exercício
de atribuições que são típicas do Poder Legislativo. Basta, pois, que se considerem
as razões da separação dos poderes do Estado, para que se compreenda logo
que é impossível o confronto entre os dois Poderes, quando idêntica a matéria
versada na atividade normativa de ambos (FREITAS, 1991, p. 651).
Para o Ministro Manoel Mendes, no entanto, há um grande espaço
regulamentador para a atuação normativa da Justiça do Trabalho. Trata-se
de uma atividade:
com discreto conteúdo criador, na qual o juiz do trabalho, pelo seu
conhecimento especializado e contato permanente com os conflitos
do trabalho, fica em ótima posição para completar a legislação trabalhista, explicitando-a e tornando-a ainda mais adequada às áreas
específicas de cada categoria no período de interesse da decisão
normativa (FREITAS, 1991, p. 653).
6 A JURISPRUDÊNCIA
Com a Constituição Federal de 1988, imediatamente, Tribunais Regionais do Trabalho passaram a atuar como verdadeiros legisladores, animados
pela corrente doutrinária, que viu nas modificações do texto constitucional uma
ampliação da atividade normativa da Justiça do Trabalho, limitada agora apenas pelos patamares mínimos da lei e das convenções coletivas. Os benefícios
concedidos em sentenças normativas foram inúmeros, muitos se referindo a
matérias expressamente reguladas em lei.
O Tribunal Superior do Trabalho, muito em razão de pressões da classe
empresarial e do próprio Executivo, vinha limitando a concessão desses benefícios, com base mais em argumentos de oportunidade e conveniência do que
em entendimentos restritivos quanto à atuação do poder normativo pela Justiça
do Trabalho. Apenas a título de exemplo desse posicionamento do TST, veja-se
a Ementa do Acórdão da SDC 0005/95, no RO do DC n. 112.888/94.3, de 6 de
fevereiro de 1995, cujo Relator foi o próprio Ministro Manoel Mendes de Freitas,
na qual a mais alta Corte trabalhista entendeu que:
202
não se afina com as funções específicas da Justiça do Trabalho, ainda que no exercício do Poder Normativo (art. 114 da Carta Magna),
a tarefa de descobrir qual o índice correto, justo, equânime, para o
reajuste dos salários dos trabalhadores. No período de indexação
da economia, limitavam-se os Tribunais Trabalhistas à aplicação
dos índices oficiais. A partir da Lei n. 8.030/90 e terminado o período
de indexação, cabe às partes interessadas estabelecer o reajuste,
mediante negociação coletiva ou valendo-se da arbitragem, sob pena
de a Justiça do Trabalho estar contribuindo para a volta à indexação e
para o desestímulo à composição direta. Recurso ordinário provido para
afastar-se o reajuste com base no IPC (ACÓRDÃO, 1995, p. 821).
Percebe-se nessa decisão do TST a preocupação com a indexação
salarial e com a composição direta entre as partes, sendo esses os fundamentos apresentados para a limitação do exercício do poder normativo. Não havia,
ainda, na jurisprudência, uma clara tomada de posição no tocante aos limites
materiais da atuação normativa da Justiça do Trabalho, tendo em vista a ordem
constitucional estabelecida pela Carta de 1988.
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, a partir de 1996, quando do
julgamento do RE n. 197911/PE, pela sua 1.ª Turma, que teve como relator o
Ministro Octávio Gallotti, fixou diretrizes diversas daquelas até então obedecidas
nas decisões da Justiça do Trabalho. Entendeu a mais alta Corte do País ser a
decisão da Justiça do Trabalho, em sua competência normativa, fonte subsidiária
do direito, suscetível de operar apenas no vazio legislativo, sujeita à supremacia
da lei formal. Não pode a sentença normativa invadir reserva legal específica,
assegurada na própria Constituição, nem tampouco contrariar dispositivo constitucional ou legal, ainda que estabelecendo vantagens aos trabalhadores.
A 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n.
114836/MG, cujo relator foi o Ministro Maurício Correa, adotou posição ainda
mais restritiva, pois decidiu que a competência normativa apenas pode ser
exercida, quando a lei expressamente permitir, sob pena de exorbitar a Justiça
do Trabalho de suas funções constitucionalmente definidas, invadindo área de
atuação do Poder Legislativo.
O Supremo Tribunal Federal, ao assim decidir, adotou a concepção
restritiva do poder normativo da Justiça do Trabalho, com certeza, entendendo
ser preciso compatibilizá-lo com a necessidade de preservar a competência
legislativa do Congresso Nacional. Cabe, no entanto, ressaltar que esse enten203
Revista Online FADIVALE - 2005
LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
dimento contraria a tese ampliativa do poder normativo, defendida pela maior
parte da doutrina e por muitos de nossos Tribunais Regionais, controvérsia que,
mesmo diante das recentes decisões do STF, temos certeza, não terminará tão
facilmente no âmbito da Justiça do Trabalho.
Por essa razão, para completar esse trabalho, cumpre tentar encontrar
fundamentos para melhor definir a delimitação material do poder normativo da
Justiça do Trabalho, que nos permitam concluir se está correta a orientação de
nossa mais alta Corte, ou se é certa a tese daqueles que defendem um poder
normativo amplo. Para tanto, não há como deixar de examinar a exata natureza
dessa atividade excepcional da Justiça do Trabalho.
7 PODER NORMATIVO – JURISDIÇÃO OU LEGISLAÇÃO – O PROBLEMA
DA EQÜIDADE
Os defensores da tese ampliativa do poder normativo partem do pressuposto de que essa atividade da Justiça do Trabalho é tipicamente jurisdicional, não
havendo assim nenhuma invasão da esfera própria de atuação do Poder Legislativo.
O Professor Pedro Vidal Neto, na sua monografia sobre o tema já citada várias
vezes durante este estudo, é quem mais busca ressaltar o conteúdo jurisdicional
do poder normativo, afirmando, ainda, antes da Constituição Federal de 1988,
que o poder normativo é “ato jurisdicional destinado à colmatação de lacuna do
ordenamento jurídico. Lacuna originária, intencionalmente deixada pelo legislador
constituinte” (VIDAL NETO, 1983, p. 145). Logo a seguir, acrescenta Neto que:
trata-se de lacuna intencional, técnica, cujo preenchimento deve ser
feito mediante a utilização do poder normativo dentro dos limites
do ordenamento jurídico e dos princípios e valores nele inerentes.
Dessarte, para preencher tais lacunas, o juiz atua enquanto juiz,
valendo-se dos processos idôneos à interpretação e integração do
direito (VIDAL NETO, 1983, p. 145).
Entre esses processos de interpretação e integração do direito, o Professor da USP faz especial referência à eqüidade, ressaltando que o “julgamento
por eqüidade não difere nos dissídios individuais e nos coletivos. Autorizado a
decidir por eqüidade, o juiz fica investido de um poder discricionário [...]” (VIDAL
NETO, 1983, p. 135). Lembra ainda Pedro Vidal Neto que a discrição judiciária,
204
assim como a administrativa, está sujeita ao controle de legalidade e ao controle
de abuso ou desvio de poder.
Após a promulgação da Carta Magna de 1988, em que o texto constitucional foi alterado no tocante ao poder normativo da Justiça do Trabalho, Vidal
Neto voltou ao tema no também já mencionado artigo publicado na revista LTr,
reiterando a sua posição de que a ampliação dos limites materiais dessa atuação
especial da Justiça do Trabalho não modifica sua natureza tipicamente jurisdicional.
Citando o art. 5.º, LICC, da Constituição Federal e os arts. 8.º e 766 da CLT, reforça
o autor que “salta aos olhos que esses dispositivos, mais do que normas legais são
princípios de justiça, é dizer, de eqüidade. De resto, é cediço que a competência
normativa é uma jurisdição de eqüidade” (VIDAL NETO, 1989, p. 160-161).
A referência à eqüidade, como mecanismo próprio de interpretação e
integração do ordenamento jurídico, é afirmação corrente na doutrina, como justificadora da natureza jurisdicional da atividade normativa da Justiça do Trabalho.
Apenas para lembrar, recorre à eqüidade o Ministro Luiz José Guimarães Falcão,
no texto acima destacado, quando diz que a Constituição autoriza essa atuação
normativa “com fundamento na eqüidade”. Ives Gandra da Silva Martins Filho,
também na obra aqui citada, ainda que reconheça um certo conteúdo legislativo
no exercício do poder normativo, igualmente recorre à eqüidade para fundamentar
a atuação do Juiz do Trabalho nos conflitos coletivos econômicos de trabalho.
Irani Ferrari, jurista que também vem dedicando estudo a esse tema,
igualmente defende a concepção ampliativa do poder normativo da Justiça do Trabalho, limitado, na Constituição de 1988, pelas disposições legais e convencionais
mínimas, devendo esse poder especial ser exercido de acordo com os princípios
gerais do Direito, dos usos e costumes, da analogia e da eqüidade. Destaca Ferrari
(1993, p. 266-267) que “a ênfase, contudo, estará no exercício legítimo e razoável
do juízo de eqüidade, já apresentado por Aristóteles como uma forma ‘superior’
de justiça [...]”. Logo adiante, o autor assinala que “o poder normativo, existente
somente na Justiça do Trabalho, age flexibilizando o direito coletivo, através da
aplicação precípua da eqüidade, apesar dos riscos da arbitrariedade e da incerteza,
a fim de contornar a predeterminação normativa que por vezes se mostra inadequada e, portanto, injusta” (FERRARI, 1993, p. 266-267). Conclui Ferrari (1993),
observando que “o eqüitativo é o justo, embora, às vezes, contrarie o justo legal,
este quase sempre firmado para atender interesses ou conveniências particulares
205
Revista Online FADIVALE - 2005
LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ou de grupos, deixando-se de parte o bem-comum que é o escopo de toda lei”.
A eqüidade, portanto, seria o grande suporte do poder normativo da
Justiça do Trabalho, fornecendo a ele elementos caracterizadores de uma atividade jurisdicional. Utilizando-se desse mecanismo especial de interpretação e
integração do ordenamento jurídico, o Juiz do Trabalho atuaria sem escapar dos
limites constitucionais da atividade própria do Poder Judiciário, o que afastaria
os obstáculos que alguns colocam ao poder normativo por considerá-lo invasor
da esfera de atuação do Poder Legislativo.
Essas considerações a respeito da eqüidade não podem, no entanto, ser
acolhidas sem alguma reflexão. Há mesmo uso da eqüidade nas sentenças normativas da Justiça do Trabalho, quando normas genéricas e abstratas são criadas pelo
juiz, ainda que para aplicação no âmbito de determinadas categorias profissionais e
econômicas? A eqüidade é de fato um instrumento adequado ao exercício do poder
normativo da Justiça do Trabalho? A resposta a essas indagações obriga a um rápido
estudo a respeito desse instituto, muito discutido na filosofia do Direito.
A idéia da eqüidade como uma forma de encontrar a justiça, ou da eqüidade
como uma forma superior de justiça, é estudada desde a Grécia antiga. Aristóteles é
o grande formulador de seu conceito, até hoje repetido, pois não suplantado por mais
ninguém. Vale a pena ir à fonte e estudar os ensinamentos do Estagirita. Para Aristóteles (1989, p. 90) fazendo a distinção entre os conceitos de eqüidade e justiça,
a eqüidade, mesmo sendo superior a um certo tipo de justiça, é, em
si mesma, justa; quero dizer, que não é superior à justiça, no sentido
de que ela representaria uma realidade diferente. Assim, justo e
eqüitativo são uma só e mesma coisa, são ambos bons, ainda que o
eqüitativo o seja de maneira superior.
Prossegue o grande filósofo grego esclarecendo que:
se a eqüidade é assim, é porque a lei é sempre uma disposição
universal e, em certos domínios, é impossível falar corretamente,
permanecendo no plano universal; onde, pois, se deve promulgar
uma disposição universal, sem que haja a possibilidade de o fazer
corretamente, a lei toma em consideração o que se decide na maioria
dos casos, sem ignorar a margem de erro de que está enferma.
E logo a seguir Aristóteles (1989) ensina que:
quando, portanto, a lei coloca uma regra universal e aparece
206
inesperadamente um caso particular que se lhe escapa, é, então,
legítimo – na medida em que a disposição tomada pelo legislador
é insuficiente e errada por causa do seu caráter absoluto – aplicar
um correctivo, para abviar a esta omissão, promulgando o que o
legislador teria no seu lugar e que teria previsto na lei, se tivesse
tido conhecimento prévio do caso.
Vale a pena a longa citação quando se trata de Aristóteles. Necessário
se faz, no entanto, completá-la, com a afirmação mais conhecida do filósofo sobre
o tema, feita logo a seguir, no mesmo texto, quando observa que:
a eqüidade é justa e melhor que uma determinada justiça; mas não é
em sentido geral, mas apenas naquilo em que, pela sua formulação
absoluta, pode enfermar de erro. A natureza essencial da eqüidade
é de ser um corretivo aplicado à lei, na medida em que a sua universalidade torna esta incompleta.
Não há na história da ciência do Direito, nas mais variadas correntes
filosóficas e doutrinárias, quem apresente concepção muito divergente dessa
formulada por Aristóteles a respeito da eqüidade. S. Tomás de Aquino (apud
DINIZ, 1981, p. 210), filósofo conhecido por retomar muitos dos conceitos de
Aristóteles a respeito da Justiça, destaca que a lei não pode abranger todos
os casos, pois os atos humanos são particulares e contingentes, podendo
variar no infinito, nada podendo fazer o legislador a não ser legislar, tendo
em vista o que sucede com maior freqüência. Em certos casos, diz Tomás de
Aquino (apud DINIZ, 1981, p. 210), quando o caso concreto foge à finalidade
da lei, “seria um mal observar a lei estabelecida; nem seria, ao contrário, bom,
pondo de parte suas palavras, observar o que reclamam a idéia de justiça e
a utilidade comum. E com isso se harmoniza a Epieiqueia, a que se chama
de eqüidade”. É a ponte que Tomás de Aquino estabelece entre os princípios
da razão e as necessidades concretas da vida social.
O filósofo do Direito, Giorgio Del Vecchio, normalmente identificado à
corrente de pensamento neokantiana, também sustenta que o caráter genérico
do Direito permite o surgimento de dificuldades na aplicação da norma jurídica
ao caso concreto. Lembra que o intérprete não deve ficar parado ante a letra da
lei, e sim, buscar, por um trabalho especial de aplicação e interpretação, o significado intrínseco da norma, o seu sentido próprio. Da mesma forma, acrescenta
o jurista italiano que o intérprete deve ir fundo ao caso concreto a que a norma
207
Revista Online FADIVALE - 2005
LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
se aplicará. É nesse momento que se justifica o uso da eqüidade. “A eqüidade”,
afirma Del Vecchio (1979, p. 378-379):
não quer a infração da norma, mas a sua adaptação às diversas circunstâncias de fato, pois só assim satisfará o seu fim e a sua função.
Além disso, sempre que faltar norma aplicável, surgirá, em nome
da eqüidade, a exigência imposta ao juiz de estabelecer uma nova
norma, adequada ao caso não previsto pelo legislador.
Se examinarmos o que diz um jurista que se afasta da lógica racional
do Direito para defender uma lógica do razoável, que Miguel Reale (1990,
p. 28) prefere chamar de lógica do plausível, vamos verificar em Chaim Perelman definições praticamente idênticas para a eqüidade. Perelman busca
demonstrar que a regra de justiça é uma regra formal, o que já se chamou
de justiça estática, pois de conformidade com a regra estabelecida ou com
o precedente reconhecido, sejam eles quais forem. A regra de justiça, por
exigir a uniformidade, conduz à previsibilidade e à segurança. Permite o
funcionamento coerente e estável da ordem jurídica. Mas, lembra Perelman
(1996, p. 164-166), isto não basta para satisfazer a nossa necessidade de
justiça. Ensina o filósofo que:
a eqüidade pode prevalecer sobre a segurança e o desejo de evitar
conseqüências iníquas pode levar o juiz a dar nova interpretação à lei,
a modificar as condições de sua aplicação. Mesmo recusando ao juiz
o direito de legislar, é-se obrigado a deixar-lhe, em nosso sistema, o
poder de interpretação. Graças ao uso que dele fizer, o juiz poderá, em
certos casos, não se contentar com a interpretação tradicional e com a
aplicação correta da lei, em conformidade com a regra de justiça.
Entre nós, o grande civilista Miguel Maria de Serpa Lopes esclarece em
seus comentários à Lei de Introdução ao Código Civil que a eqüidade se apresenta
no plano jurídico com tríplice função: a eqüidade na elaboração das leis, na aplicação
do Direito e na sua interpretação. A eqüidade na elaboração da lei não é matéria que
se relacione à atuação do Poder Judiciário. Nesse caso, a eqüidade atua “como uma
noção idealista, imperando no espírito do legislador para o fim de se cristalizar em
normas condizentes com as necessidades sociais, com o equilíbrio dos interesses”
(LOPES, 1943, p. 187). É a idéia do eqüitativo como uma noção genérica e abstrata
de justiça. Mas não é dessa eqüidade que cuida a ciência jurídica, e sim, como lembra
Serpa Lopes, da eqüidade na aplicação e na interpretação das leis.
208
O ilustre jurista assevera que o problema da eqüidade aparece sob o
aspecto de um aparente conflito entre sua noção e o direito positivo, cujo enunciado seria o seguinte: “o direito positivo é corporificado sob a forma universal
da norma jurídica e esta, muitas vezes, pode se encontrar em conflito com os
princípios justos, aplicada à particularidade de um dado caso” (LOPES, 1943, p.
287). Ensina Lopes (1943, 188) que o conflito, no entanto, é apenas aparente,
“pois no fundo, direito e eqüidade se polarizam numa só direção idêntica. Se o
direito representa as justas exigências coletivas, a eqüidade o completa, tendo
em vista as circunstâncias individuais”. Não é um campo para o livre arbítrio
do juiz, pois, quando utilizada como um elemento interpretativo, a eqüidade
“deve buscar o sistema que preside a lei, a própria idéia de lei e mais particularmente do instituto aplicável ao caso particular, em conformidade com os
dados morais, econômicos, e não inspirações interiores, nascidas puramente
do sentimentalismo do intérprete” (LOPES, 1943, p. 204).
Como se verifica em todas essas definições da eqüidade, serve ela ao
aplicador do Direito para buscar justiça no caso concreto. A eqüidade, como método de aplicação e interpretação do Direito, ajusta-se como instrumento próprio de
atuação do Poder Judiciário, nos seus objetivos de encontrar na norma genérica
uma solução justa para o caso particular. É mais um meio de concreção do Direito
e individualização da norma. Como bem lembra a Professora Maria Helena Diniz,
não é a eqüidade “uma licença para o arbítrio puro, mas uma atividade condicionada
às valorações positivas do ordenamento jurídico” (DINIZ, 1981, p. 230).
O legislador, sim, age com liberdade, com absoluta discricionariedade.
Seus limites estão na Constituição Federal, obra aliás criada por ele. O legislador
faz opções axiológicas, escolhe caminhos, estabelece regras genéricas a serem
obedecidas no âmbito de sua vigência temporal e territorial. Se usa da eqüidade,
não é desta tratada na filosofia e ciência do Direito, mas apenas daquela relacionada a uma idéia abstrata de equilíbrio.
O juiz, não. Sua liberdade não é a mesma, o que é próprio do poder que
exerce. A eqüidade lhe fornece apenas mais um mecanismo para melhor revelar
o direito existente e nunca para criá-lo arbitrariamente. Pois a eqüidade, como
demonstra Diniz (1981, p. 231), “é um ato judiciário e não legislativo. É poder
conferido ao magistrado para revelar o direito latente [...]”, compatibilizando a
norma genérica ao caso particular.
209
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LIMITES DO PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
8 CONCLUSÃO – PODER NORMATIVO – ATIVIDADE JURISDICIONAL OU
LEGISLATIVA – SEUS LIMITES MATERIAIS
Diante do breve estudo feito no tópico anterior a respeito da eqüidade
como mecanismo de aplicação e interpretação do Direito, é lícito afirmar que
não há uso da eqüidade no exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho,
especialmente dentro da concepção ampliativa de seus limites, defendida por
parte da doutrina após a Carta de 1988. O caráter genérico e abstrato da sentença normativa, típico de uma lei, não se compatibiliza com a idéia de justiça
para o caso concreto, própria da eqüidade. Na sentença normativa, a Justiça
do Trabalho cria direito novo, com eficácia genérica no âmbito das categorias
envolvidas no conflito de trabalho. Age o Juiz do Trabalho, nesse caso, movido
por argumentos de oportunidade e conveniência, com o arbítrio de um legislador.
Não busca temperar nem impor um corretivo à lei genérica na sua aplicação a
um caso concreto, pois, na atuação normativa, o Juiz do Trabalho cria a regra
genérica, que depois será ou não bem aplicada.
A doutrina, na realidade, vem utilizando a eqüidade como um suporte para
defender a alegada natureza jurisdicional do poder normativo da Justiça do Trabalho.
Mas a incompatibilidade dessa atividade legislativa do Poder Judiciário com o uso
da eqüidade como mecanismo de aplicação e interpretação do Direito me parece
evidente, o que revela bem como o poder normativo efetivamente escapa dos limites
próprios de atuação jurisdicional a que deveria se ater a Justiça do Trabalho.
Tais considerações a respeito da eqüidade constatam a absoluta necessidade de limitação material do poder normativo, para impedir que ele invada
a esfera de atuação do Poder Legislativo, respeitando assim nosso sistema
constitucional, que preserva a separação de poderes, ou melhor, a separação
de funções no exercício do poder estatal, pois, na realidade, esse poder é único.
Reconhe-se mesmo o acerto das posições defendidas pelo Professor Arion Sayão
Romita, no artigo destacado, no sentido de que o poder normativo não pode ser
exercido, onde haja expressa definição legal, nem mesmo para assegurar mais
vantagens aos trabalhadores, como também não pode ser exercido no silêncio da
lei, pois não pode o juiz legislar. A bem da verdade, não há nenhum espaço para
o poder normativo no nosso sistema constitucional, nem naqueles chamados comandos implícitos da lei, pois também aí o Juiz do Trabalho não usa da eqüidade,
210
já que não decide casos particulares, e sim, elabora, com meros argumentos de
oportunidade e conveniência, normas genéricas e abstratas, invadindo o campo
de atuação assegurado pela Constituição Federal ao legislador.
Por essa razão, a posição adotada pelo STF no estabelecimento de
limites ao poder normativo da Justiça do Trabalho corrige os exageros da concepção ampliativa defendida por parte da doutrina e não resolve o problema maior,
pois, sempre que a Justiça do Trabalho estabelecer norma genérica e abstrata na
solução dos conflitos econômicos de trabalho, estará legislando e não julgando,
invadindo o território do Poder Legislativo, definido na Constituição Federal.
Chega-se à conclusão de que a verdadeira solução para a delimitação
material do poder normativo da Justiça do Trabalho é a sua simples extinção,
compatibilizando a atividade desse ramo do Poder Judiciário aos limites do exercício do poder jurisdicional, ainda que em ações coletivas como nos dissídios
coletivos de natureza jurídica, quando, então sim, adotando mecanismos de
aplicação e interpretação do Direito, inclusive a eqüidade, a Justiça do Trabalho
procurará na norma genérica a solução justa para o caso concreto.
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212
213
11
Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
CONOSCERE ROSMINI
De UMBERTO MURATORE
MURATORE, Umberto. Conoscere Rosmini. Vita, pensiero, spiritualità. 2. ed.
Itália: Edizioni Rosminiane, 2002.
Antonio Lima dos Santos*
O livro CONOSCERE ROSMINI: Vita, pensiero, spiritualità, da autoria de
UMBERTO MURATORE, embora de caráter popular, tem como possíveis leitores,
segundo o autor, mesmo o estudante de grau superior, o universitário que realiza
uma pesquisa de tese ou pós-graduação sobre Rosmini. O autor, sacerdote do
Instituto da Caridade (rosminiano), doutorado em filosofia pela Universidade Católica do Coração de Jesus, de Milão, além de profundo conhecedor de tudo que
se refere ao grande filósofo italiano do século XIX, ANTÔNIO ROSMINI SERBATI,
é também diretor do Centro internacional de estudos rosminianos (Stresa)
A obra, além da apresentação e fartos dados bibliográficos através dos
32 volumes da edição oficial e de dezenas de outros dos escritos de Rosmini e
outros autores, é constituída de doze longos capítulos sabiamente subdivididos
em secções, os quais procuramos apresentar sucintamente como segue.
A VIDA
Antônio Rosmini nasceu em Rovereto, pequena cidade trentina, aos 24
de março de 1797, numa família de profunda fé cristã. Durante a adolescência,
adverte claramente a vocação para o sacerdócio que viverá com empenho e
coerência à imitação de Cristo.Os estudos teológicos os efetuará em Pádua. Em
Milão, Rosmini aprofunda o contexto político da Itália dos oitocentos; entrelaça
relações profundas com letrados e políticos do seu tempo. Cultiva com profun* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma - Itália. Autor do livro FILOSOFANDO COM O MESTRE,
Editora Vozes, traduzido no México, e de várias outras publicações.
214
do sentimento de humanidade as amizades, valor que levará adiante por toda
a vida. Aos 20 de fevereiro de 1828 ele funda, no Sagrado Monte Calvário de
Domodossola, a família rosminiana: o Instituto da Caridade.Poucos anos depois
assume a direção espiritual das Irmãs da Providência.
Da parte do Papa Pio VIII, ele recebe a incumbência de, através de
seus escritos e pelo uso da razão, conduzir os homens a Deus. Em sua profunda
investigação filosófico-religiosa, Rosmini procura todos os caminhos para que o
diálogo entre a fé e a razão seja possível e frutífero.
Com extraordinária sensibilidade para com o problema educacional,
ele institui as primeiras Escolas de Formação Docente destinadas a todos os
chamados à difusão das escolas populares no Piemonte e na Lombardia.
Vive e sofre na própria carne, com as perseguições, as conseqüências de
seu amor à Igreja, cujas “cinco chagas” de então procurava curar e pelo seu amor à
Itália ainda retalhada e sofrendo, entre outras, a influência opressora da Áustria.
Morre em Stresa no dia 1º de julho de 1855, depois de uma intensa
produção de obras de caráter espiritual, filosófico e teológico. A Villa Bolongaro,
última morada de Rosmini, é hoje um Centro de Estudos de seu pensamento;
ali se reúnem estudiosos italianos e estrangeiros.
O PROBLEMA DO CONHECIMENTO
Rosmini via a filosofia como no vértice de uma pirâmide, abrangendo, no
âmbito de seus conceitos universais, todas as ciências particulares, respondendo
assim aos porquês que as sustentam e elas não atingem.
Rosmini achou por bem iniciar sua investigação filosófica a partir dos
problemas que fascinavam a atenção dos filósofos do seu tempo, os problemas
relativos ao homem e, de maneira especial, os ligados ao problema do valor
do conhecimento e da origem das idéias. Na sua obra monumental, em quatro
volumes, Nuovo saggio sull´origine delle idee, ele, como o título sugere, lançouse à pesquisa nesse campo tão importante. Havia os dogmáticos que julgavam
poder atingir todas as verdades através da filosofia, de vez que se conheciam
algumas; os céticos, pelo fato de não poderem conhecer integralmente toda a
verdade, negavam poder conhecer pelo menos uma parte. O empirismo inglês,
o sensismo francês e mesmo o idealismo de Kant estavam bem longe de satis215
Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
fazer a necessidade de um fundamento sólido para nossas certezas. Nenhum
desses sistemas tinha condições de se livrar do subjetivismo, de apresentar algo
de tão objetivo que se impusesse ao homem, de tal modo que este, mesmo a
contragosto, tivesse de aceitar-lhe as características de imutabilidade, eternidade,
necessidade; uma como luz que iluminasse o homem, estivesse na maior união
com ele de tal modo que sem ela não passasse de um simples animal.
Esse algo de tão sagrado, tão objetivo, Rosmini encontrou e apresentou
para todos e tal é a idéia do ser na sua indeterminação absoluta, idéia sem a qual
não existe conhecimento intelectual de nada, porque todas as idéias se resolvem
na idéia de ser pois, por exemplo, pedra, árvore, animal, homem tudo é ser, embora cada ente em particular seja ser a seu modo.Uma característica do ser é
poder se apresentar como determinado, mas ficando inalterável em si mesmo,
como as imagens dos montes na superfície da água de um lago não alteram a
água. Em nossa mente brilha a luz da idéia do ser e nós espontaneamente a ela
juntamos certas determinações: da pedra, da árvore e assim por diante.
A propósito, Rosmini trata demoradamente do sentido fundamental, isto
é, aquela sensação vaga que temos de todo o nosso corpo e que, ao ser atingida
pelos vários seres exteriores, modifica-se de acordo com as impressões recebidas,
dando origem a nossos conhecimentos sensíveis; estes em si mesmos, e a não
ser sob a luz da idéia do ser, não têm condições para serem vistos como seres.
Agora, um problema importantíssimo: E de onde vem a idéia do ser na
sua indeterminação absoluta? Rosmini descarta todas as explicações dadas pelos
sensualistas ou quem quer que veja nos dados dos sentidos a origem dessa idéia
absolutamente objetiva, inalterável, de uma universalidade sem limites, pois os
dados fornecidos pelos sentidos – imagens visuais, sons, odores, gostos, sensações tácteis – são todos limitados, mutáveis, ligados intrinsecamente a nossa
sensibilidade. Mesmo Kant, com suas famosas categorias, apresenta-nos uma
explicação inválida para a origem das idéias e, particularmente, da idéia base
todas, a idéia do ser, porque suas categorias não passam de condições para
nosso conhecimento, são oriundas do próprio homem, e não algo que a ele se
imponha, como uma luz e servindo de apoio objetivo, firmíssimo sobre o qual se
possa estabelecer inclusive o mundo das ciências.
Assim, na linha de grandes filósofos do passado, como Platão, S. Agostinho, São Boaventura, admite Rosmini que a idéia do ser, não podendo vir dos
216
sentidos, nem da subjetividade do ser humano, só pode se originar do próprio Ser
absoluto, Deus, sem que por isso o tenhamos de ver em sua essência, - como
ensinava Malebranche – e sim, como uma iluminação especial, algo como o
sermos iluminados por um raio do sol, sem que por isso vejamos o próprio sol.
ANTROPOLOGIA E PSICOLOGIA
Rosmini, que ansiava por levar os homens a Deus, através da razão,
compreendeu que o caminho para isso estava em se interessar pelos problemas
que atraíam os pensadores de seu tempo. Daí seu interesse pela antropologia e
pela psicologia, atento, porém, para não seguir na trilha daqueles que apresentavam o ser humano apenas como fisiologia, nem na daqueles que o apresentavam
apenas como razão.Além disso, a sua meta era uma antropologia filosófica, com
vistas na fundamentação de um comportamento adequado do homem dentro do
horizonte total do ser.
Para Rosmini, o ser humano é algo do mais sublime que possamos
conceber: ente dotado de um corpo extenso e de uma alma com, digamos, dois
pólos, um atingindo esse mesmo corpo (sentimento fundamental) e outro atingindo
aquele “raio”da face de Deus: a idéia do ser indeterminado.
A verdadeira e incomparável dignidade do ser humano, bem como sua
imortalidade, originam-se justamente da idéia do ser indeterminado.
O ser humano, ainda no seio materno, no momento em que sente como
uma urgência de ascensão ao nível superior a que se destina, é atingido pelo
dito raio divino, a idéia do ser indeterminado, que se faz assim sua forma, pelo
fato de o tornar um animal inteligente. Ele, dotado como é de corpo, irá também
conhecer os outros corpos, pelas diversas modificações que recebe do sentimento
fundamental que tem do seu.
Para Rosmini, o ser humano não é apenas “uma inteligência servida
por órgãos” (Platão), nem apenas “um animal racional” (Aristóteles), e sim “um
sujeito animal dotado da intuição do ser ideal-indeterminado e da percepção
do próprio sentimento fundamental corpóreo e capaz de agir segundo a animalidade e a racionalidade.”
De acordo com Rosmini, num como eco do animismo e do hilozoísmo,
todos os elementos da matéria do universo são animados, a saber, possuem uma
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Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
vida e uma sensibilidade próprias; de outra forma, por exemplo, não poderiam
tais elementos ser percebidos como contínuos.
A CIÊNCIA MORAL
A moral não visa apenas a perfeição de alguma faculdade humana, como
a pintura, a medicina, por exemplo, mas a perfeição do ser humano todo, isto é,
da pessoa. Alguém pode ser um excelente pintor e um homem mau e, vice-versa,
um homem bom e um mau pintor. Considerada como arte, a moral é a arte de
fazer boas as ações humanas e isso levando em conta o fim último do homem.
A pintura, por exemplo, visa apenas ser eficaz com relação a produzir um belo
quadro e será boa moralmente caso ajude o homem a ser bom moralmente.
A moral apresenta também a característica de se impor como tal,
sem condições, como bem o observa Kant, pois ela fixa o olhar nas verdades
eternas, impassíveis. O dever se impõe por si mesmo, sem considerações
extrínsecas a ele.É autônomo.A falha de Kant está em que ele colocou o
fundamento dessa imposição absoluta no próprio homem, em algo de subjetivo, não objetivo, indispensável para a soberania absoluta da moral. Esse
fundamento, como ensina Rosmini, é a idéia do ser indeterminado, de vez
que a estrutura de todas as leis é composta de idéias e estas se reduzem
afinal a tal idéia, necessária, eterna, imutável.
A moral, contudo, oferece ao filósofo apenas a ciência, não a vivência,
que ele terá de procurar com a adesão da vontade ao bem moral conhecido.
A primeira lei moral, pelo que vimos anteriormente, deve ser constituída
pela idéia do ser universal, da qual necessariamente nos servimos para produzir
todos os juízos morais. Ela é assim constituída: “Segue no teu agir a luz da razão”. Essa luz, como frisa Rosmini, não é a própria razão, com sua reconhecida
limitação e fragilidade, mas o seu lume, a sua luz, que nós o sabemos, é a idéia
do ser. Desta idéia, a moral recebe a sua incomparável dignidade e, de vez que
a mesma surge dentro do homem, ainda antes do nascimento deste, como algo
que se impõe imune a qualquer manipulação, por isso, ela paira acima de qualquer raça,sexo, cultura. Assim, o que quer que seja de subjetivo, apresentado
sob qualquer rótulo, como utilidade, prazer, interesse, economia nada disso pode
fundamentar uma moral digna desse nome.
218
O bem moral, contudo, exige ainda um elemento essencial: a vontade,
o amor, para que haja adesão pessoal ao bem conhecido pela inteligência. Assim
sendo, como todo ser é de algum modo bom, a lei moral que ordena seguir a luz
da razão, que é o ser, alarga-se num abraço universal a todos os seres, a todos
os bens, através do “amor universal”.
Como o ser é a lei fundamental da moral, e ele apresenta graus de perfeição, participando uns mais do ser e outros menos, por isso, os seres devem ser
procurados, amados de acordo com sua participação no ser, os fins mais do que
os meios. Então o homem, “porque participa do ser ideal infinito”, será procurado,
amado como fim e não como meio.Conseqüentemente, todos os demais entes
serão amados como meios de perfeição do homem e, este, “como caminho para
o último termo absoluto que é Deus”.
Assim podemos estabelecer amplamente o princípio geral da moral,
como propõe Rosmini: “reconhece praticamente o ser na ordem em que ele te
é apresentado pelo intelecto”. O pecado, o mal moral não será propriamente
uma negação, mas um amor desordenado, que se volta para uma nova ordem,
subjetiva, contraposta à ordem interna objetiva que não se quer aceitar.
A PEDAGOGIA
Os transtornos políticos, sociais e econômicos contemporâneos
(restauração após a queda napoleônica, o aparecimento das fábricas), com
desalentadora influência também nas famílias, levaram Rosmini, além de se
empenhar na educação da juventude por meio de escolas de diversos tipos,
também a escrever sobre a pedagogia. Num sentido geral, ele foi permanente
formador de homens; aqui contudo, nos referimos à educação dos jovens,
que ele quer harmônica e global.
A mentalidade enciclopédica difundida pelo iluminismo encorajava a
aprendizagem de uma bagagem desordenada de noções, com máxima preocupação com os saberes e, praticamente nenhuma, com o aperfeiçoamento
pessoal dos alunos. Rosmini reagiu contra uma orientação tão desastrosa
e, firme no princípio, que o fim último do ser humano é a união com o Ser
absoluto, afirmava desassombradamente que “a educação ou é religiosa,
ou, então, não é sequer educação”. Todo ensino, portanto, devia orientar-se
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Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
por aquele princípio supremo. Ele tinha em mente este conceito: “somente
grandes homens podem formar outros grandes homens”.
Matérias do ensino seriam: teologia (objeto: Deus; com dogma, moral, e os
meios necessários à salvação, tendo a Bíblia como base); antropologia (história, filosofia, ciências humanas); cosmologia (natureza: matemática, ciências naturais).
Como método, ele privilegia o dedutivo, para o aluno poder passar do
conhecido para o desconhecido, entendendo-se isso, porém, com discernimento
para as adaptações necessárias.
Ele atribui tamanha importância aos mestres que chega a dizer: “Daí
bons mestres e as escolas mal localizadas e mal divididas se tornarão boas”.
Mestres que conhecem os alunos, ensinam com dedicação fazem com que o
coração sinta aquilo que o intelecto aprende e a ação o manifeste. Sua sensibilidade de mestre fez com que Rosmini se interessasse também pela idade dos
alunos, com vistas à educação, e escrevesse a respeito.
Rosmini insiste no direito universal da aprendizagem e do ensino. O
próprio governo só pode impedir o direito de ensinar aos “mestres” ineptos
pela ignorância, a desonestidade, a violência. Ele privilegia as escolas de
caráter gratuito, e apresenta as outras como toleráveis, sob vigilância, para
não se desviarem pela ganância.
O DIREITO
A filosofia do direito é a ciência da justiça, pois esta constitui a raiz e a
essência de todas as leis.Assim, o princípio supremo da lei é o mesmo da justiça:
“reconhece praticamente todos os seres na sua ordem”.
Rosmini define o direito como “A faculdade de fazer aquilo que é agradável, sob a proteção da lei moral que impõe aos outros respeito à mesma.”
Trata-se, portanto, de um poder agir, mas dentro dos limites fixados pela lei.
O dever é anterior ao direito; este emana daquele; dessa forma, não
existe direito para a imoralidade.
Uma vez fixa a essência do direito, é preciso encontrar um princípio
válido para a derivação dos direitos particulares. Esse princípio é a propriedade, o fato de alguém ser dono ou se tornar dono de alguma coisa. Exemplo de
propriedade: o fato de sermos donos de nossas próprias faculdades. O direito
220
envolve, pois, ser proprietário de algo e como a violação dessa posse é causa
de sofrimento para o dono, tal violação é contra a lei moral.
Há direitos racionais (ou naturais) e direitos positivos.
A propriedade que a pessoa tem sobre sua natureza é conatural ao
homem e a que ela tem sobre os bens exteriores é adquirida. Ninguém, contudo,
pode ter direito ao que lhe é inútil ou cuja posse prejudica o tecido social.
Todo direito goza de inviolabilidade; esta se radica na dignidade da
pessoa e esta na lei moral a qual, por sua vez, se radica na objetividade do ser,
imune que é de todas as maldades e limites espaço-temporais.
Contra Hegel, e indiretamente contra Marx, Rosmini defende os direitos
dos indivíduos, diante da sociedade, do Estado.Estes são para a pessoa e não
o contrário. Rosmini não hesita: se for necessário, dissolva-se a sociedade civil
para salvar os indivíduos, fim e não meio da sociedade.
Como todos os seres humanos se unem a Deus e em Deus pela
idéia do ser indeterminado, eles constituem já com esse fato uma sociedade, a teocrática, ainda rudimentar, a qual depois se concretiza aperfeiçoada,
mediante a Encarnação, na Igreja, com direitos, estes, inalienáveis, entre
outros, de existir, crescer, possuir.
Em vista das características próprias de cada sexo, segundo os planos de
Deus, surge a sociedade doméstica, de início apenas conjugal (marido e mulher)
normalmente após parental(filhos). Temos assim, a união sexual, que no caso do
ser humano, só é realmente digna, se for uma doação total, plena, fruto do amor.
Será sociedade indissolúvel, de um para uma e vice-versa, exclusivamente.Sobre
os filhos, os pais têm direitos com relação à natureza, não à pessoa deles, que
devem favorecer para que consiga o autodomínio dentro da lei moral.
Acontece, porém vários chefes de família, aceitarem livremente que a
conservação e regulamentação dos seus direitos seja confiada a uma cabeça apenas, individual ou coletiva: o governo. E eis uma terceira sociedade: a civil. Esta é
meio com relação às outras duas e não fim das mesmas; não é fonte de direitos
como aquelas, mas apenas regula os direitos já presentes. Sua finalidade é o bem
comum ou de todos, e subordinadamente a este, o bem público e o privado.
Em se tratando das eleições, Rosmini acha que cada cidadão deve poder
votar igualitariamente em se tratando da administração dos direitos pessoais (Tribunais de justiça), pois cada um é pessoa; em se tratando, porém, da administração
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Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
das propriedades (deputados), o voto deveria ser como nas sociedades por ações:
cada um deveria votar de acordo com a proporção da quantidade dos bens-direitos,
possuídos. Aí entra a atenção ao fato de sermos também natureza.
Os bens da sociedade civil, segundo Rosmini, são seis: população, riqueza, autoridade civil, forças armadas, ciência, virtude. Compete à virtude equilibrar
harmonicamente os demais elementos, porque sem isso, um pode prejudicar o
outro, como, por exemplo, o rico é propenso a lançar mão do poder.
Rosmini reconhecia os méritos do iluminismo e da Revolução Francesa
no tocante à reivindicação dos direitos individuais, sufocados na ignorância pelo
princípio medieval de que todo o poder vem do Alto diretamente para os governantes.Para ele a autoridade vem sim do Alto, mas sim no sentido de provir da
lei moral, na qual se enraíza todo direito, toda autoridade, e, portanto, descendo
realmente de Deus através do ser ideal que dita as normas da justiça.
Ele, e não sem razão, via nas democracias liberais nascentes o mesmo
perigo de atropelamento dos direitos individuais, uma vez que os representantes
escolhidos pelo povo, passassem a governar sem atenção ao princípio de que
todo poder vem do Alto, no sentido por ele explicado.
A POLÍTICA
É tarefa da filosofia política determinar, no seio da sociedade e dentro
dos limites da moral e do direito, a distribuição dos bens úteis ao homem.
Na história das civilizações, como por exemplo, a romana, deparamos
três etapas: a união que fortifica, a força para florescer e expandir-se, o desaparecimento pela corrupção.
Para um futuro de progresso e civilidade de suas nações, os políticos devem ser homens de visão, capazes de distinguir entre as exigências substanciais
e as acidentais da sociedade e isso meditando constantemente sobre a história
dos grandes povos ao tempo em que observam as vicissitudes do próprio povo.
O progresso tecnológico não pode ser separado do progresso espiritual.
Para Rosmini, utopistas de seu tempo eram tanto os conservadores que
tentavam parar a evolução social, na esperança de dias melhores, dentro dos paradigmas do passado, como os revolucionários que abraçavam qualquer veleidade
de mudança. A meta deve ser conseguir uma situação em que haja satisfação dos
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espíritos, mesmo quando não haja ainda o equilíbrio desejado entre os seis bens
(população, riqueza, governo, força, ciência, virtude). Absurdo, por outro lado, seria despertar na população desejos que não podem ser satisfeitos, levando-a um
surdo rancor, de conseqüências incalculáveis. A doutrina política do “perfeitismo”,
presente no socialismo ingênuo, crê que o sacrifício das liberdades de hoje levará
ao bem estar futuro; os seus seguidores olham apenas o consentimento exterior das
massas, descuidando-se do contentamento, da aceitação interior dos indivíduos,
o que leva à derrocada das sociedades aparentemente prósperas. A derrocada do
nazismo, do fascismo e do comunismo dá razão a Rosmini.
Rosmini abomina os partidos nascidos para atenderem aos interesses de grupos.
Quanto à Itália, ele desejava que se tornasse um Estado unitário, fruto,
porém, de uma federação de Estados italianos, conservando assim a unidade e
as diferenças regionais e culturais.
É justo que cada país tenha sua constituição, esta, porém, não estruturada de modo que os governantes se tornem na realidade senhores absolutos
do poder, como no tempo da sociedade senhoril medieval e não civil dos tempos
modernos. Por isso, é necessário haja tribunais políticos de justiça.
Os Estados europeus modernos precisam conservar suas raízes cristãs,
das quais lhes advieram os mais belos frutos de que se gloriam. O cristianismo é
fonte de auto-reforma constante. O cristianismo, descerrando as cortinas para o
sobrenatural, alarga os horizontes do conhecimento, fortalece a vontade pela graça,
mostrando nos bens terrenos meios e não fins para o desenvolvimento humano; longe
de impedir o acréscimo dos mesmos, ensina o melhor meio para que se conservem
e sirvam à pessoa humana. Rosmini é tido como um dos assim chamados católicos
liberais, pois bate sempre na tecla das liberdades individuais: direito de associação, de
criação de empresas administradas por indivíduos, auxiliados, não porém substituídos
pelo Estado. E assim por diante. “O maior benefício que se pode fazer ao homem
não é dar-lhe o bem, e sim que de tal bem-seja ele o autor para si mesmo”.
A ARTE
O pensamento rosminiano sobre o belo deve ser procurado no Saggio
sull´idilio e sulla nuova litteratura italiana, obra de sua juventude, e no capítulo
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Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
Della bellezza, da Teosofia, obra inacabada da sua maturidade.O segundo
escrito é como uma explanação do primeiro.
Segundo Rosmini, a beleza está na ordem e esta consiste na proporção
entre as partes. No seu tempo, com o nascimento do romantismo, criticava-se o
comportamento do classicismo como sendo desfavorável ao belo, uma vez que
se fixava na objetividade dos fatos; os seguidores do classicismo ou sistema
histórico, por sua vez, achavam que os partidários do romantismo se afastavam
da verdade, com narrações fantásticas. Rosmini encontra a solução do impasse
na “poética cristã”; segundo esta basta que os fatos sejam verossímeis, para que
o artista não se alheie da verdade.
Alguns pensamentos: O mal pode figurar na obra de arte, contanto que
seja para realçar a beleza do bem e não como um aliciamento para o mesmo mal.
Há belezas que comovem superficialmente e há outras que atingem o ser humano
em todo o seu interior. O cristianismo abriu inesperadas perspectivas para a literatura, para a arte. A literatura cristã se apresenta como a manifestação da Divina
Providência no Universo.A apreensão do belo se aperfeiçoa com a educação.
A contemplação da beleza provoca um aplauso interior de nossas faculdades à
mesma beleza e, no Céu, a inteligência da criatura, repleta do Criador, comovida e
entusiasmada diante do esplendor do universo, aplaude a Inteligência incriada.
A TEOSOFIA
Frisamos, antes de tudo, que Teosofia rosminiana não tem nada a ver
com as várias doutrinas teosóficas dos últimos decênios do século XIX, mesclas
de sabor oriental de filosofia e religião, misticismo e ascética. Posto isto, observamos que os objetos do conhecimento humano são: a idéia(ideologia), a alma
inteligente, ou ser humano (psicologia), já estudados, e o ente, objeto justamente
da teosofia. Esta, segundo Rosmini, é o resultado de um esforço intelectual com
vistas à formulação de uma síntese de todos os conhecimentos sobre o ente,
concebida como um sistema em que cada conceito particular conduza ao ser
universal e este, aos conceitos particulares, assim como um barqueiro tem uma
visão geral do lago, mas à medida que conhece as partes deste, mais o conhece
como todo e este conhecimento enriquece o conhecimento das partes. Na teosofia todo objeto de pesquisa é tratado sob o ponto de vista da totalidade do ser
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e como não é possível compreender a fundo nenhuma das três secções dessa
ciência sem encontrar constantemente seu fundamento definitivo, Deus; daí a
razão da mesma ser chamada de teosofia, doutrina sobre Deus.
A idéia e a alma humana já foram estudadas; resta agora estudarmos o
ser, em toda a sua extensão, através da teosofia. Esta encara o ente em si mesmo,
na sua pura essência ideal (ontologia); no seu termo real e pleno (teologia natural);
no seu termo real e inadequado, finito (cosmologia). Rosmini levou a termo somente
a ontologia; sobre as outras duas partes nós temos apenas fragmentos.
A ontologia aborda, entre outros assuntos, o da unicidade e, ao mesmo
tempo multiplicidade do ser. Há vários seres, mas cada um é ser. Assim é, ensina
Rosmini, porque o ser é em si mesmo virtualmente uno e múltiplo, como se pode
observar na própria idéia do ser indeterminado que é uno, mas determinável,
fazendo-se vários sem deixar de ser uno.
A raiz da multiplicidade do ser se encontra nas suas três formas, ou
modos. Ele, de fato, embora um, se encontra sob estas três formas: ideal (como
cognoscibilidade pura); real (como existência concreta de cada ente); moral
(harmonia, síntese, não simples soma das outras duas formas). As três formas
estão compresentes no ser e necessariamente uma evoca a outra.Observando
no conjunto, de fato, nenhuma idéia existe sem uma mente real que pense nela;
nenhuma mente real existe que não esteja unida a uma vontade, fonte do ser
moral. É a lei do sintesismo do ente. Mais: no ato moral temos a presença tanto
da lei ideal quanto da adesão real da vontade. Temos aqui a circuminsessão
recíproca das três formas.
Na teologia natural estudamos que nossa mente é iluminada pela idéia
do ser indeterminado: eterno, infinito, imaterial, o qual, porém, não é Deus, pois
Deus é pessoa, um ser que age e não apenas uma luz objetiva parada diante
dos olhos de nossa mente.Assim Rosmini está longe de ser ontologista, pois não
ensina que vemos a Deus naturalmente; nem panteísta, pois não confunde o infinito com suas criaturas finitas. O ser ideal é uma propriedade de Deus despojada
da existência de Deus, vista apenas com a mente, como quando pensamos em
Deus como bom, poderoso, sábio.
Quanto às provas da existência de Deus, Rosmini aceita as clássicas
a posteriori, mas prefere a prova a partir da presença do ser indeterminado
em nossa mente.
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Revista Online FADIVALE - 2005
RESENHA
Uma vez conhecidas as três formas ou modos do ser, mas supondo-se
antes a revelação da Santíssima Trindade, tem-se um auxílio válido para obter
um certo conhecimento imperfeitíssimo desse mistério divino e o caminho aberto
para compreender como negá-lo seria fechar as portas à própria teosofia, zênite
do conhecimento filosófico.
Pelo ato criador de Deus, aquilo que não tem ainda o ser, passa a
tê-lo e, uma vez feito isso, Deus conserva as suas criaturas no ser. Ele é puro
ato; pela criação, ele causa algo fora de si; mistério profundo, do qual Rosmini
procura conseguir pálida visão pensando que num primeiro momento, por assim
dizer, Deus focaliza fora da existência, mas apenas na idealidade, o seu Verbo,
segunda pessoa da Trindade. Temos assim o ser indeterminado de que participamos; é o ser inicial.Num segundo momento, Deus “imagina” os vários entes
finitos que podem constituir termos do ser inicial. Num terceiro e último momento,
nós temos a síntese divina, em que “Deus une o ser inicial com as limitações
reais imaginadas. ”Eis a criação, cujo fim último é Deus, que será reconhecido e
amado pelo homem iluminado pelo clarão da idéia do ente indeterminado”. Unido
intimamente ao Criador pela dito clarão, o homem tem condições de enaltecer
a santidade, o poder e a sabedoria de Deus.
O magnífico trabalho de UMBERTO MURATORE detém-se, ainda, na
apresentação do pensamento rosminiano no campo da TEOLOGIA, A DOUTRINA
ESPIRITUAL, e a VIDA CONSAGRADA, assuntos que, tratados exclusivamente
sob o ponto de vista da doutrina católica, nos contentamos apenas com nomear,
levando em conta o público a que de preferência se dirige a Revista da FADIVALE,
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce.
E, concluindo com o mesmo autor, podemos afiançar que “Rosmini
permanece, de acordo com o ponto de vista, não atual e simultaneamente atual:
morto para quem não tem mais nenhuma confiança na capacidade de razão
humana para descobrir a verdade; vivo e estimulante como nunca, para os que
querem reencontrar o caminho perdido das verdades incompletas, e, no entanto,
sempre objetivas”.
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Revista Online FADIVALE - 2005
COLABORADORES
A Revista da Fadivale é uma publicação da Faculdade de Direito do Vale
do Rio Doce (FADIVALE), com periodicidade anual, que tem como objetivo a
divulgação de trabalhos, ensaios, resenhas e artigos de caráter técnico-científico
da área de direito e ciências afins.
Os trabalhos oferecidos para serem publicados, sempre que os editores
julgarem necessário, serão submetidos à apresentação dos membros do Conselho
Editorial. A estes será dado o direito de recusar determinadas colaborações, explicitando
os critérios utilizados na avaliação, ou fazer sugestões quanto à estruturação e redação
para tornar mais prática a publicação e manter a uniformidade editorial.
FORMA DE APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS
a) originalidade (de autoria do próprio autor);
b) preferencialmente com abordagem interdisciplinar;
c) quantidade mínima de laudas: 12;
d) quantidade máxima de laudas: 30;
e) fonte: Arial 12;
f) tamanho da folha: A-4;
g) espaço entre as linhas: 1,5, e margem 3 cm à esquerda e superior e 2 cm à direita e inferior;
Deverão também conter:
h) título e nome completo do autor, com breve referência acadêmica e profissional;
i) um resumo de no máximo dez (10) linhas, capaz de transmitir uma idéia rápida e clara do
conteúdo e das conclusões do trabalho, logo abaixo do título;
j) no máximo cinco (05) palavras-chave logo após o resumo;
l) um abstract, que é o resumo em inglês, e as cinco palavras-chave também em inglês;
m) sumário, que será lançado logo após o resumo e o abstract e as palavras-chave;
n) as referências devem seguir as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT
– NBR 6023/02) e deverão ser colocadas, no fim do artigo, em ordem alfabética.
o) as citações devem ser feitas no texto, utilizando o sistema autor-data (NBR 10520/02), ou
seja, “Almeida (2000, p. 8)” ou “Almeida (2000)”. As citações em língua estrangeira deverão
ser acompanhadas de sua respectiva tradução;
p) as notas de rodapé serão utilizadas para notas explicativas e numeradas em ordem
seqüencial, colocada na página em que estiverem as chamadas;
q) as tabelas devem conter número, título e fonte completa; os gráficos, além de número, título
e fonte, devem vir acompanhados dos dados que os geraram;
r) melhores informações sobre a publicação na Revista da Fadivale pesquisar o material
disponibilizado na home page da instituição.
Os trabalhos devem ser enviados, até o dia 2 de maio de 2005, para
o Núcleo de Capacitação Científica (NCC), numa versão impressa e outra em
disquete, na Rua Arthur Bernardes, 533 – 1o andar – Fone: 3271-2004 – Ramal
241. CEP.: 35010-020 E-mail – [email protected].
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