V. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 2177

Transcrição

V. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 2177
V. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 2177-1383.
EDITORIAL
Uma nova edição é apresentada, e a FIDES atinge sua 4ª edição.
A linha editorial com fortes cores de jusfilosofia e envolta em conexões com
elementos das ciências sociais dá à Revista um vigor energizante, que nos estimula a propagar
a necessidade dessa agradável e proveitosa interação.
Passado mais um semestre, a Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da
Sociedade, nascida em 14 de fevereiro de 2010, encontrou novos desafios e alçou novos voos,
despertando nos membros de seu Conselho Editorial um sentimento incessante de buscar ir
além.
A FIDES busca promover gradual mudança de cultura no ambiente acadêmico no
que diz respeito à diversificação das fontes de referência na pesquisa. Artigos científicos
jusfilosóficos não devem ser produzidos exclusivamente com base em livros. A riqueza de
ideias presentes em artigos de revistas e jornais, em músicas e poesias, em documentos da
história e da cultura, e até nas simples conversas de nosso cotidiano, tudo pode e deve ser
objeto do olhar jusfilosófico.
Nesse sentido, algumas novidades são apresentadas neste semestre. A primeira delas
foi a adoção do fluxo contínuo das submissões. Pela primeira vez, a Revista esteve aberta à
submissão de trabalhos pelos cinco meses seguintes à publicação de seu último número. É
mais uma vantagem advinda da escolha do meio eletrônico como veículo de editoração.
Nada mais gratificante, porém, que o apoio que passamos a receber de estudantes
oriundos de outras IES do Brasil: nossos colaboradores! Atendendo à universalidade do
conhecimento e buscando fomentar a amistosidade entre as mais diversas instituições e a
divulgação de nossos trabalhos, selecionamos e iniciamos uma verdadeira parceria com
quatro estudantes dos Estados da Bahia, da Paraíba (dois) e do Rio de Janeiro. A eles nosso
muito obrigado.
E nosso Conselho Científico continuou a crescer, mantendo-se o elevado nível de
nossos avaliadores: nossas boas-vindas aos novos avaliadores!
A edição ora apresentada compõe-se, como de praxe, de três seções básicas: artigos
iniciais de autoria dos professores do Conselho Científico, textos de leitura rápida e
agradável, uma seção de artigos científicos convidados e a seção de artigos científicos que
foram objeto de avaliação em processo editorial.
Por fim, considerando que a formação de um profissional, em especial do Direito,
deve ser multidisciplinar e aberta a novas leituras – uma verdadeira exigência nos dias atuais
– trazemos uma seção especial, intitulada “Literatura e Direito”, na qual publicamos o conto
“Esoterismo” do Prof. Edilson Pereira Nobre Júnior e a croniqueta “Música e Direito” do
Prof. Ivan Lira de Carvalho.
Sejam bem-vindos a essa nova edição!
Uma boa leitura!
Natal/RN, 31 de outubro de 2011.
Conselho Editorial
SUMÁRIO
ARTIGOS INICIAIS
A PEDRA, O PAPEL E A TESOURA
Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave
A CONDIÇÃO DEMOCRÁTICA
Antônio Basílio Novaes Thomaz de Menezes
O NOVO MÉTODO DA ADMINISTRAÇÃO DO RISCO NO PROCESSO
Fábio Wellington Ataíde Alves
6-7
8-10
11-14
ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS
TEORIAS INSTITUCIONALISTAS E O ESTUDO DO DIREITO NUMA ABORDAGEM
DESENVOLVIMENTISTA CONSTITUCIONAL
Patrícia Borba Vilar Guimarães
A ESFERA PÚBLICA COMO ELEMENTO CENTRAL DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA
Ronaldo Pinheiro de Queiroz
15-22
23-40
ARTIGOS CIENTÍFICOS
LIBERDADE E ESPAÇO PÚBLICO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH ARENDT
Alfran Marcos Borges Marques
41-59
AUTORIDADE E FUNDAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO: UMA ANÁLISE ARENDTIANA
Ana Luiza de Morais Rodrigues
60-72
A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19/1998: A IMORALIDADE INFILTRADA NA
REFORMA ADMINISTRATIVA
Débora Daniele Rodrigues e Melo
73-92
INFLUÊNCIA DO ESTOICISMO SOBRE MARCO TÚLIO CÍCERO E O PENSAMENTO
JURÍDICO ROMANO
Françoise Dominique Valéry
93-104
DE QUE LADO ESTÃO OS DIREITOS HUMANOS?
Helena Cristina Aguiar de Paula
105-115
OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS DE PERELMAN: A CONSTRUÇÃO DE UMA
NOVA RETÓRICA JURÍDICA
Lauro Ericksen Cavalcanti de Oliveira
116-127
A LEGITIMIDADE DO CARÁTER PREVENTIVO GERAL DA PENA: UMA DISCUSSÃO
DE SUAS SOLUÇÕES
Lucas Duarte de Medeiros
Lucas José Bezerra Pinto
128-141
AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA DISCRIMINAÇÃO
POSITIVA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL
Nathália Maria Ariston Trindade
142-162
A POLÍTICA DE PESCA SUSTENTÁVEL (LEI Nº 11.959/2009) E A ÉTICA: ENTRE
EXCELÊNCIA, DEVER E UTILIDADE
Raphael Ramos Monteiro de Souza
163-176
LITERATURA E DIREITO
ESOTERISMO
Edilson Pereira Nobre Júnior
A MÚSICA QUE TOCA DIREITO
Ivan Lira de Carvalho
177-179
180-181
FIDΣS
Recebido 30 out. 2011
Aceito 30 out. 2011
A PEDRA, O PAPEL E A TESOURA
Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave
Todos se lembram daquela brincadeira de infância, similar ao “par ou ímpar”, na
qual ao invés de “1” ou “2”, duas crianças escolhem um entre três elementos (pedra, tesoura
ou papel), e revelam sua escolha ao mesmo tempo para verificar quem ganhou. No confronto
entre pedra e papel, o papel vence pois envolve a pedra; entre tesoura e papel, a tesoura ganha
já que corta o papel; e finalmente, entre pedra e tesoura, vitória da pedra que quebra a
tesoura.
Percebe-se que nenhum dos três elementos é imbatível: a tesoura sucumbe à pedra,
que por sua vez sucumbe ao papel, o qual sucumbe à tesoura, formando um círculo de “caça e
caçador” em que não há um elemento “super-poderoso”.
Pois bem. Com a tripartição das funções estatais é mais ou menos a mesma coisa:
executivo, legislativo e judiciário têm suas funções principais e atuam, reciprocamente, como
limitadores dos abusos efetivados pelos demais no exercício dessas funções.
pedra e o judiciário a tesoura. Cada um tem sua função principal (embrulhar – fazer leis;
quebrar – executar as leis; e cortar – julgar se as leis estão sendo corretamente aplicadas) e seu
agente limitador natural (v.g.: o princípio da legalidade estrita da administração pública – o
legislativo limita a atuação do executivo quando determina as ações possíveis do executivo;
ao mesmo tempo, o executivo tem poder de veto com relação às leis elaboradas pelo
legislativo; o judiciário, por sua vez, avalia se a atuação do executivo se deu de maneira
correta).
É um esquema simples e que vem sendo estruturado desde Aristóteles, passando por
Locke e Maquiavel, para que não haja arbítrio no exercício do poder. O poder centralizado em
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Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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Para visualizar melhor, podemos supor que o legislativo seja o papel, o executivo a
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uma única pessoa (ou órgão) fica sujeito a uma única fonte de tomada de decisão, o que
aumenta imensamente as chances de exercício arbitrário.
Para demonstrar a veracidade da assertiva, basta pensarmos em situações cotidianas,
como duas crianças e um bolo de chocolate. Se a mesma criança partir o bolo e escolher o
pedaço que lhe caberá, as chances de divisão desigual são grandes (em especial se esta criança
gostar muito de bolo de chocolate!). Agora se uma das crianças parte e a outra escolhe a parte
que lhe cabe, certamente as chances de haver uma divisão mais justa aumentam.
A ideia de repartição das funções do Estado é exatamente esta, ou seja, aumentar as
chances de exercício regular destas funções, sem exageros, injustiças ou arbítrio (tudo o que
um dos atores faz é fiscalizado pelo outro – e não por si mesmo). Cada uma das funções
estatais tem poder de veto sobre a outra, viabilizando o equilíbrio e a regular execução das
tarefas que lhes são afetas.
O cenário que vemos hoje no Brasil, entretanto, não é bem este. Para voltar à
brincadeira da pedra, do papel e da tesoura, o que temos é um esquema em que a pedra é
porosa, o papel esfarela e a tesoura tem corte à laser... ou seja, um legislativo que não faz o
seu papel, um executivo que deixa a desejar e um judiciário que se apodera de funções
estranhas à sua e as realiza sem que haja um elemento natural de limitação.
Imagine uma enorme tesoura rasgando um frágil guardanapo de papel... Ou sendo
“ameaçada” por uma pedra pome, que se esfarela ao tocar o metal – parece evidente a
ausência de equilíbrio nesta situação...
O sistema atual de poder de veto entre as funções estatais é estático, ou seja, há uma
pré-definição de quem fiscaliza quem, e quando um dos fiscais falha, não há um substituto
o ativismo judicial, já que o judiciário tem se imiscuido nos espaços não trabalhados pelas
funções típicas.
Fica a questão: será que ainda existe a possibilidade de se reencontrar o equilíbrio
neste esquema de três personagens (executivo, legislativo e judiciário)? Ou a solução seria
encontrar novos pontos de limitação, como Ministério Público e Conselho Nacional de
Justiça?
Talvez esteja na hora de pensarmos em pontos dinâmicos de equilíbrio, adaptáveis às
diversas situações da sociedade complexa, e não estáticos como os atuais, que demandam
sempre um lento e doloroso processo de alteração legislativa para se ajustarem ao corpo social
e terem, de fato, alguma serventia.
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capaz de suprir sua lacuna, dando ensejo aos ativismos das demais funções. Atualmente temos
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FIDΣS
Recebido 17 out. 2011
Aceito 27 out. 2011
A CONDIÇÃO DEMOCRÁTICA
Antonio Basílio Novaes Thomaz de Menezes
Quando uma onda de rebeliões se levanta e varre regimes totalitários a exemplo da
Tunísia, do Egito, do Yemen e mais recentemente da Líbia na chamada “Primavera árabe”,
nós ocidentais somos impelidos a nos questionar sobre o significado da liberdade e do estado
de direito num regime democrático, ainda que desconsideremos a seqüencia dos eventos que
nesse mesmo período sacudiram a Europa em Londres, Madrid e Athenas ou os Estados
Unidos, com a “ocupação de Wall Street”. A invenção da Democracia pela civilização
ocidental caracteriza uma equação de princípios que põe em jogo as ordens do individual e do
coletivo nas figuras do Direito e da Liberdade.
O fato é que os princípios do Direito e da Liberdade constituem uma equação que
tem caracterizado a Democracia como um modelo de sociedade perseguido ao longo dos
últimos séculos pelo Ocidente. Um ideal que, apesar das diferenças histórico-culturais,
expressa sempre uma equação desses termos, objeto de uma demonstração cabal: não há
a relação entre os princípios da Liberdade e do Direito, como termos da equacionados pela
Democracia, também descreva uma experiência histórica em particular, ou seja, um conjunto
de condições específicas que traduzem as variáveis atinentes a cada sociedade.
A crença na Democracia compreende o pleno estado de direitos do indivíduo e da
coletividade, aos quais é garantido o exercício da liberdade, legitimado como princípio
fundamental de um regime de governo até aqui inultrapassável. Assim, longe de questionar a
importância da Democracia para a nossa sociedade, gostaria de apresentar uma pequena
hipótese que considero relevante, na medida em que ela abre a possibilidade de uma
“refutação de princípio” do verdadeiro significado democrático. Qual seja? A idéia de que a
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Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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sociedade democrática sem a combinação de estado de direito e liberdade individual. Embora
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FIDΣS
Democracia caracteriza uma antinomia, quando os princípios do Direito e da Liberdade são
postos em relação no quadro das condições históricas da sociedade contemporânea. Isto é, a
existência da Democracia nos dias de hoje pode ser negada ou afirmada, simultaneamente, e
com a mesma força de argumento, nas condições de funcionamento da nossa própria
sociedade, a depender do equilíbrio entre as esferas públicas e privadas no que concerne ao
jogo dos interesses relativos ao Direito e a Liberdade e a conseqüente legitimidade das
pretensões.
Comecemos então por definir os termos da discussão, afastando qualquer ilusão
histórica de uma transposição do passado em termos de significado. O conceito de
Democracia tal como modernamente entendemos em quase nada se assemelha aquele que
historicamente lhe deu origem na Grécia. O princípio de isonomia perante a lei, considerado
hoje universal, era dado apenas a alguns poucos com o status de cidadão. E o exercício do
direito, compreendia tão somente aqueles, iguais entre si, sendo exercido por eles e sobre eles
como um instrumento de coesão. Não havia a noção de liberdade individual e a condição de
indivíduo estava subsumida a da coletividade, sendo esta última diferenciada em torno do
direito de cidadania que se reporta a força de coerção da norma na ordem da cultura. Com
isto, a democracia grega era uma forma de governo de poucos para poucos, contrastando com
o sentido universalizante que temos hoje. Embora nas suas condições históricas, esta forma de
democracia apresentasse na sua existência um caráter bem mais homogêneo na sua base
sócio-cultural, e, portanto, uma maior equidade jurídica do que na concepção moderna atual.
A relação entre Democracia, Direito e Liberdade, tal como entendemos
modernamente encontra-se bem próxima aquela exposta no século XVIII, no “Contrato
liberdade do indivíduo e a vontade geral instancia a qual o individuo submete os seus
interesses ao coletivo como expressão da sua autonomia, demonstra que não há como se
prescindir de uma melhor circunscrição do pressuposto da nossa hipótese senão aquela posta
em termos da assimetria entre os princípios da Liberdade e do Direito nos pilares de
sustentação da democracia moderna.
Vejamos, de um lado, a liberdade do individuo se afirma frente aos limites coletivos
impostos pelo Direito, em relação à figura regulatória do Estado que é legitimada pela
sociedade. De outro, a garantia do Direito, considerada como base e forma de legitimação da
sociedade, constitui-se na expressão da força reguladora do Estado, ou do direito coletivo
sobre a liberdade individual, dentro da democracia moderna.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Social” de Rousseau. O paradoxo entre a vontade individual e o interesse coletivo, ou a
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FIDΣS
Sob esta ótica há uma clara tensão entre os princípios do Direito e da Liberdade, do
aspecto particular e universal, do individual e do coletivo. Tensão esta que se reproduz nas
esferas de legitimação do Estado, dos estratos sociais, políticos e econômicos, dos interesses
de grupos e indivíduos no campo de configuração das relações democráticas. Direito e
Liberdade demarcam dimensões distintas na sociedade contemporânea, desenhando um
conflito permanente na ordem social, seja na obstacularização da prevalência dos interesses
individuais ou de grupos no âmbito do Direito, seja na persecução daqueles na própria
constituição ordem jurídica, a partir da condição primeira da Liberdade. Tudo vai depender
das condições dadas, de tal modo que podemos retomar os acontecimentos já citados da
“Primavera árabe” e da “ocupação de Wall Street” como exemplo da forma ambígua que a
defesa da Democracia assume quando tratamos dos seus princípios gerais de fundamentação.
Nesses termos, a “Primavera árabe” caberia o reclame do princípio da Liberdade na
percepção da Democracia como condição primeira da persecução das liberdades individuais e
dos interesses de grupos na própria constituição ordem jurídica. E na mesma medida, outro
reclame do mesmo princípio, a prevalência absoluta dos interesses individuais e de grupos, é
alvo de intensos protestos na “ocupação de Wall Street” em defesa da Democracia.
Contrariamente, a obstacularização dessa prevalência dos interesses individuais ou
de grupos no âmbito do Direito, legitima o regime político de países árabes, como Egito e
Tunísia, em torno das leis de proteção da ordem e do Estado, numa linha de argumentação do
princípio limitador dos interesses e de grupos semelhante aquela do movimento de “ocupação
de Wall Street” que exige uma retomada da Democracia como controle político do Estado. De
modo que, a antinomia da idéia Democracia como modelo orientador da sociedade
os casos junto com todo um conjunto de possíveis variáveis que se colocam a interpolação das
perspectivas.
Pensada a partir dos princípios conflitantes do Direito e da Liberdade, a Democracia
é suscetível das suas formas de legitimação, isto é, da possibilidade do primeiro legitimar a
negação da segunda, e simultaneamente, esta última negar os pressupostos de universalidade e
equidade daquele. Assim, aquilo que inicialmente caracteriza uma antinomia na própria
condição democrática, se constitui na possibilidade de existência da mesma como um espaço
que revela o jogo de forças entre o individual e o coletivo, consubstanciado no quadro de uma
tensão insuperável de princípios, do qual depende a própria legitimação da sociedade no
exercício democrático efetivo.
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contemporânea constitui uma equação de termos os quais devem ser considerados em ambos
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FIDΣS
Recebido 16 out. 2011
Aceito 27 out. 2011
O NOVO MÉTODO DA ADMINISTRAÇÃO DO RISCO NO PROCESSO
Fábio Wellington Ataíde Alves
O advento da Lei 12.403/11 já rendeu um bom número de reflexões em torno da
nova sistemática das medidas cautelares no processo penal. Contudo, diante de tantas
mudanças, tem ficado de fora a análise do significado do novo método na administração do
risco penal.
Para esse efeito, amadurecendo as diversas formas de vida em sociedade, o
capitalismo regulamentador salienta o aumento da política criminal de intervenção, muito
bem representada pelas novas tecnologias de controle da referida lei. Como nota Crawford
(2009, p. 817), a regulação leva a cabo um projeto de controle do futuro e superação das
incertezas. A questão problemática disso tudo radica nos processos de decisões produzidas
num contexto de medo, frente à crise dos outros métodos tradicionais de intervenção
educativa (ATAÍDE, 2010, p. 223).
Seja como for, a administração de risco não mais se limita ao âmbito da teoria da
certo que a prisão perdeu o poder de ressocializar, o fato é que ela nunca deixou de ser o
método mais eficaz de administrar o risco também do processo penal.
No iminente colapso das agências de controle, alertou-se o legislador para
reexaminar e, com ou sem razão, expandir seu projeto de governo penal. Essas circunstâncias
criaram assim um completo programa de administração do risco no País. O Estado de BemEstar penal amplia a burocracia diluindo o controle por meio de novos mecanismos.
Seguindo a classificação proposta por Clear e Cadora (2009, p. 31), os programas
penais de risco podem ser divididos em três grupos de estratégias. A primeira abrange os
métodos de redução de risco, que interagem a lei penal com projetos biopolíticos voltados

Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz de Direito do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
pena, havendo indicações evidentes de que este fenômeno também ocorre no processo. Se é
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FIDΣS
diretamente à mudança do sujeito. A base central desta técnica reside no fundamento de que o
desvio pode ser útil à coletividade, na medida em que se acredita na capacidade de
ressocializar o desviante, dando-lhe um novo comportamento adequado à sociedade. Sem
dúvida, as dificuldades na descoberta das causas da criminalidade tornam dificeis um modelo
corretivo como esse.
A segunda estratégia abrange o gerenciamento de risco, em razão do qual não se
procura mudar ninguém, porém apenas administrar os fatores de risco que o indivíduo
precipita. Como exemplo temos o caso da Lei n. 11.900/09, que alterou o Código de Processo
Penal para permitir que o juiz determine o interrogatório do réu preso por sistema de
videoconferência para o fim de “prevenir risco à segurança pública” (art. 185, § 2º, inc. I).
A respeito do gerenciamento, sugere-se pensar o crime a partir dos processos de
interação, ou em outras palavras, a compreensão do gerenciamento depende da aceitação da
transgressão como uma combinação entre a interação de um ator e uma situação (COHEN,
1968, p. 99). Analisa-se, portanto, o indivíduo e a situação como um episódio de risco único.
Isto é, não se considera o indivíduo transgressor isolodamente, mas ele e as múltiplas
condições externas que precipitam a infração e fazem do crime um agir normal (COHEN,
1968, p. 199).
Entendidas nesses termos as amplas situações nas quais se insere o indivíduo, o
gerenciamento de risco pode acontecer por meio de programas de auxílio profissional;
monitoramento eletrônico; proibições de sair de determinados perímetros; toques de recolher;
fornecimento controlado de drogas para dependentes químicos; acompanhamento psicológico
para portadores de patologias etc. A passo lentos, o regime aberto, a suspensão condicional do
surtir efeitos concretos e tampouco reformaram as velhas práticas burocráticas, enquanto
muito fizeram para aperfeiçoá-las. As medidas cautelares dos incs. I, II, III, IV, VIII e IX do
art. 319, CPP, realçam o caráter no gerenciamento do risco no processo.
É um fato claro que as duas primeiras estratégias mencionadas
dificilmente
eliminam o risco. Por isso, a Administração penal recorre a um terceiro método, o do controle
de risco. Devo dizer que esta estratégia suprime o risco (ROSAL BLASCO, 2009, p. 32). Na
melhor ou pior das hipóteses, age contundentemente por meio de ações sobre o corpo ou a
liberdade do indivíduo, inocuizando o comportamento transgressor. São exemplos de controle
a pena privativa ou o emprego de drogas que eliminam a libido de psicopatas sexuais. Da
mesma maneira, já na linha do processo, figuram como formas de controle o recolhimento
domiciliar noturno; a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza
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processo e o sursis foram exemplos mal acabados de gerenciamento que não conseguiram
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FIDΣS
econômica ou financeira e a internação provisória do inimputável quando existir risco de
reiteração do injusto (art. 319, incs. V, VI e VII, CPP).
O mais incrível é saber que o Estado muito se preocupa em mostrar para a sociedade
o seu empenho nas falsas técnicas assistencialistas, enquanto menos admite sujar as mãos
com gestão ou controle. O sistema penal parece com uma máquina difícil, cujas partes mais
traiçoeiras não são sequer mencionadas às crianças, ainda que constantemente manipuladas
pelos adultos.
Se fosse permitido uma análise evolutiva, poderíamos concluir que as agências
punitivas enfatizaram inicialmente as estratégias de controle, após o que se abriram aos
métodos de redução e em seguinda ao gerenciamento do risco. Estas duas primeiras técnicas
nunca foram capazes de produzir os efeitos desejados porque negaram a autonomia do
indivíduo e, o que é pior, sucumbiram – em menor ou maior grau – ao desejo de mudar o
homem, ignorando os processos de interação, ou seja, desconhecendo o seu ambiente e as
situações nas quais se insere.
Até aqui foi possível perceber que o gerenciamento e o controle do risco tratam-se
das estratégias com mais chances de desenvolvimento no sistema penal. E por isso precisam
guardar correspondência entre si, de modo que não se imponha no processo penal uma medida
de controle cautelar quando à pena do crime seja reservada apenas uma solução de mero
gerenciamento. Contudo, ainda cumpre compreender que a aplicação das medidas depende
diretamente da interação entre o sujeito e situações concretas, isto é, do estudo do sujeito e a
sua relação com o ambiente e outros indivíduos. Por mais que se defenda o Direito Penal do
fato, muitas saídas nos levam ao tipo de pessoa à qual devemos dar um tratamento.
trazidas pela Lei 12.403/2011 se preparam para não apenas ocupar mas criar um novo espaço
teórico multidisciplinar para os penalistas. E assim o inimigo pode restaurar-se em novas
facetas. Por mais que se afirmem os avanços, o futuro das novas ferramentas de gestão da
ordem ainda não reserva coerência com todos os fundamentos teóricos aqui expostos. Por
isso, são exigidas pesquisas que redescubram não somente a teoria do risco no processo, mas
a sua relação com a teoria da pena e o ambiente de realidade onde serão executadas penas e
medidas cautelares.
De fato, o risco refunda o processo na medida em que o abre ao escopo da aferição
da personalidade do agente não somente para cumprir o fim da pena, mas para atender ao
controle do risco na sociedade. Sob vários aspectos, a virada punitivista somente aparenta
resolver o problema do encarceramento massificado. Precisamos não esquecer que mesmo
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Neste momento, quando o controle não se resume à pena privativa, as novas medidas
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FIDΣS
após a adoção de medidas despenalizadoras nos sistemas angloamericanos, houve crescimento
das taxas de encarceramento, sugerindo que as alternativas à prisão podem não evitar a
expansão do modelo punitivista (MATTHEWS, 2009, p. 180). Por outras palavras, fica a
advertência de que o eventual fracasso nos métodos de gerenciamento de riscos da Lei
12.403/11 incidirá sobre as taxas de reincidência, o que recria um refluxo às soluções
partidárias do controle (populismo penal). Nomeadamente, a prisão se renovará.
REFERÊNCIAS
ATAÍDE, Fábio. Colisão entre Poder Punitivo do Estado e Garantia Constitucional da
Defesa. Curitiba: Juruá, 2010.
CLEAR, Todd; CADORA, Eric. Risk and Communitiy Practice. In: STENSON, Kevin;
SULLIVAN, Robert R. (Coord.). Crime, Risk and Justice: the Politics of Crime Control in
Liberal Democracies. Cullompton: Willan, 2001.
COHEN, Albert K. Transgressão e Controle. Trad. de Miriam L. Moreira Leite. São Paulo:
Livraria Pioneira, 1968.
CRAWFORD, Adam. Governing Through Anti-Social Behaviour: Regulatory Challenges to
Criminal Justice. British Journal of Criminology, Oxford, n. 49, p. 810–831, 2009.
MATTHEWS, Roger. The Myth of Punitiveness. Theoretical Criminology, London,
Thousand Oaks e New Delhi. Vol. 9(2), p. 175–201, 15. jul. 2009. Disponível em:
<www.sagepublications.com>. Acesso em: 05 ago. 2011.
ROSAL BLASCO, Bernardo del. ¿Hacia el Derecho Penal de la Postmodernidad?. Revista
Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, Granada, n. 11-08, p. 1-64, 2009. Disponível
em: <http://criminet.ugr.es/recpc>. Acesso em: 20 mar. 2011.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Disponível em: <bjc.oxfordjournals.org>. Acesso em: 30 set. 2010.
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FIDΣS
Recebido 17 set. 2011
Aceito 27 out. 2011
TEORIAS
INSTITUCIONALISTAS
E
O
ESTUDO
DO
DIREITO
NUMA
ABORDAGEM DESENVOLVIMENTISTA CONSTITUCIONAL
Patrícia Borba Vilar Guimarães
RESUMO
Esse trabalho realiza uma breve abordagem teórica das contribuições
de teorias institucionalistas para a caracterização conceitual do Direito
e Desenvolvimento.
Sugere algumas concepções de eficácia
sociológica do direito, baseado na caracterização
da nossa
principiologia constitucional e sua influência na construção,
interdisciplinar, de um Estado desenvolvimentista na atualidade
brasileira.
Palavras-chave:
Direito
e
desenvolvimento.
Teorias
1 INTRODUÇÃO
Esse trabalho parte da premissa segundo a qual existem propostas teóricas
consistentes para a caracterização do Direito ao Desenvolvimento, ancoradas em pensadores
econômicos e políticos (BARRAL in BARRAL, 2005, p. 40), para além dos esquemas
tradicionais do direito. Sustenta o fato inquestionável de que alguns dos aspectos mais
relevantes para a caracterização de um modelo de desenvolvimento no século atual são, dentre
outros, a liberdade política e econômica e a existência de “instituições críveis e eficientes”
(BARRAL in BARRAL, 2005, p. 56), que têm sua origem no direito.

Professora adjunta do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Doutora em Recursos Naturais, pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
institucionalistas. Principiologia constitucional.
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FIDΣS
Entretanto, alguns dos problemas de efetividade do direito brasileiro, segundo uma
visão sociológica-jurídica, e que seriam fatores impeditivos do desenvolvimento nacional,
poderiam ser atribuídos ao senso comum dos juristas – que os remete a um distanciamento do
contexto econômico e político, acentuado por uma crença exagerada no poder das normas e na
valorização de uma retórica do direito. Somadas a estes fatores, estariam as falhas na estrutura
regulatória – os custos de transação 1, e o comprometimento da falta de planejamento,
transparência e liberdade na implementação de políticas públicas.
Este esquema teórico encontra fundamentação em abordagens neo-institucionalistas
de autores dedicados às análises desenvolvimentistas e à relação com o direito, na definição
das regras do jogo e na mudança institucional2. As mesmas fornecem sólida base analítica
para avaliar as repercussões da credibilidade e eficiência regulatória das instituições que
atuam na salvaguarda dos direitos e, em especial na realidade brasileira, dos direitos
constitucionalmente assegurados.
Um traço que marca a interpretação da Constituição é que ela representa o estatuto
jurídico do sistema político, fazendo-se indispensável o sopesamento dos valores políticos
expressos em Princípios - sejam positivados constitucionalmente ou Princípios gerais do
direito - que serão conformadores da interpretação das regras constitucionais.
A doutrina do direito e desenvolvimento orienta e explica as práticas correntes
daqueles que procuram modificar o sistema legal, em nome do desenvolvimento. Seu
Observa-se que o direito e o desenvolvimento situam-se na confluência entre a
economia, o direito e as instituições, que, sustentam os autores, possuem existência autônoma,
1
Este autor se refere aos custos de transação como “aqueles nos quais incorrem os agentes econômicos para
efetivarem determinados negócios”, incluindo-se os mecanismos regulatórios (BARRAL in BARRAL, 2005, p.
55).
2
Cf. CAROTHERS, Thomas (Ed.), 2006; DAM, Kenneth W., 2006; TRUBEK; SANTOS, 2006; SEN, 2000.
3
Tradução livre de “Law and development doctrine orients and explains the current practices of those who seek
to change legal systems in the name of development” (TRUBEK; SANTOS, 2006. p.3).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
pensamento se traduz na representação esquemática3:
16
FIDΣS
mas influenciam-se mutuamente, na caracterização de espaços de interpretação e aplicação.
Como estatuto jurídico do político, a aplicação e interpretação da Constituição, sustentamos,
beneficiam-se dessa interação.
A problemática do desenvolvimento e sua relação com a principiologia
constitucional encontram farto material de análise no cenário nacional e serão analisadas e
relacionadas a seguir.
2 O DESENVOLVIMENTO COMO PRINCÍPIO NA ORDEM CONSTITUCIONAL
NACIONAL
Os princípios constitucionais são direcionados para a sistematização de questões
fundamentais do Estado Nacional. No tocante à interpretação constitucional, a repercussão
destes princípios se prestaria também para a fixação de valores fundamentais da Constituição,
enquanto documento escrito, representativo da intenção a ser impressa na invocação dos
mesmos. Esta invocação independe de interpretações subjetivistas ou objetivistas, como têm
sido denominados os teóricos exegetas que buscam ora a vontade da lei constitucional, ora
uma maior objetividade e adaptabilidade deste texto, com base em elementos textuais ou em
técnicas diversas de interpretação. Faz-se necessário apontar a distinção básica entre
princípios, ditos constitucionais, dos demais princípios úteis na interpretação do Direito como
um todo, e dispersos nos mais variados tipos de documentos legais.
Na Constituição brasileira citam-se expressamente princípios, como os: da
soberania popular, dignidade da pessoa humana, defesa da livre-iniciativa, este inserido no
título próprio “Da Ordem Econômica”; e do pluralismo político.
Entretanto, é importante salientar que todos os princípios referidos como
econômicos “não possuem apenas a conotação econômica, como ocorre com a proteção do
meio-ambiente, que é uma inspiração muito mais ampla, sendo o aspecto econômico apenas
uma das abordagens possíveis” (TAVARES, 2006, p. 126). Independentemente da fixação
destas diretrizes interpretativas, os princípios possuem uma dimensão de valor que os coloca
acima das demais normas e que estabelece uma ordem de interpretação distinta quando estes
elementos de mesmo peso se acham envolvidos numa mesma questão.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
manutenção e perpetuidade do Pacto Federativo, concepção de Estado democrático de Direito,
17
FIDΣS
Sob o prisma jurídico, em nosso país há uma pauta constitucional na qual, embora
haja uma enunciação de direitos sociais básicos, estes reclamam efetivação para que seja
configurado um ambiente de desenvolvimento, uma vez que o mesmo é descrito pelo texto
como princípio constitucional, no qual se pode observar a abrangência destes conceitos 4.
No mesmo sentido, a dignidade da pessoa humana tanto é adotada pela Constituição
Federal como fundamento da República, quanto como fim da Ordem Econômica. Constitui a
dignidade, expressa na Carta, o núcleo essencial dos direitos humanos, juntamente com o
direito à vida, e que não se situa apenas no campo dos direitos fundamentais. Isso significa
que as relações econômicas devem ser dinamizadas tendo em vista a promoção da existência
digna de que todos devem usufruir.
Este tema remete ao conceito de Constituição dirigente, que Gilberto Bercovici
define como “a constituição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade”. Neste
sentido a Constituição brasileira vem definir os “fins e programas de ação futura, no sentido
de melhoria das condições sociais e econômicas da população” (BERCOVICI, 1999, p. 36).
3 UMA CONCEPÇÃO APLICADA DE DIREITO E DESENVOLVIMENTO
A idéia de desenvolvimento em nosso país, portanto, implica numa dinâmica social
constante, posto que se trata de um processo que visa elevar os níveis social, econômico e
cultural da sociedade. Desenvolvimento não se confunde com crescimento, um processo
descrito de forma quantitativa, mas sim qualitativa, como têm se referido diversos
um processo complexo, de caráter econômico e político, que envolve inúmeras instituições
públicas e privadas, além da base legal adequada, no favorecimento da gestão pública.
As políticas públicas daí decorrentes devem não só tentar cumprir estas prioridades
de valores. O direito ao desenvolvimento passaria a admitir uma correlação entre a proteção
dos direitos fundamentais e, nitidamente, os direitos sociais 5. Neste contexto, garantir o
desenvolvimento implica também na instituição de políticas públicas direcionadas para tal
fim, justificadas e fundamentadas no art. 3º, II da Constituição, como princípio constitucional.
4
BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III –
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
5
Cf. SILVA, 2004.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
economistas contemporâneos. Desenvolvimento, conforme descrito constitucionalmente, é
18
FIDΣS
Há uma geração recente de juristas que compartilham da importância da adoção de
visões multidisciplinares nos enfoques dos fenômenos jurídicos, como forma de conferir-lhes
amplitude diante de seus atributos de eficácia social. Esta constatação vai de encontro aos
anseios do legislador constituinte, que estatuiu no sentido de que um dos objetivos
fundamentais da República Federativa Brasileira é o de garantir o Desenvolvimento nacional.
Este preceito pode ser qualificado, de acordo com a teoria constitucional, como princípio
impositivo e norma-objetivo.
Historicamente, o direito ao desenvolvimento foi incluído na terceira geração de
Direitos Humanos. Ao estabelecermos relações entre a necessidade de desenvolvimento, com
seus desdobramentos econômicos e sociais,
e a necessidade de proteção dos direitos
fundamentais assegurados pelo texto constitucional, evidencia-se o pressuposto de situações
em que a ocorrência de casos difíceis demandará, além das tradicionais técnicas
interpretativas, a utilização de técnicas que valorizem a principiologia constitucional na
tentativa de assegurar a efetividade do mesmo texto. Em nosso contexto, especialmente
quando trata da Ordem Econômica Constitucional, assumem grande importância as normasobjetivo descritas na Constituição do país, ainda mais quando se trata de uma ordem
econômica inserida no sistema capitalista, pois estas surgem quando o preceito jurídico passa
a ser dinamizado como instrumento de governo e conseqüentemente de políticas públicas e
não apenas com fins de ordenação 6.
Outra peculiaridade da interpretação constitucional concerne ao fato de que, mesmo
estas normas possuindo uma maior densidade em relação às regras infraconstitucionais,
aquelas, entretanto permitem, por ocasião da sua concretização, uma atualização constante do
que o intérprete constitucional está condicionado por sua cultura jurídica, suas crenças
políticas, filosóficas e religiosas, sua inserção sócio-econômica, enfim, todos os fatores que
integram sua personalidade.
Uma das principais referências ao direito e desenvolvimento surgiu com a
“Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento”7, com dez artigos que ressaltam aspectos
orientadores dos processos de desenvolvimento globais – enfatizando a tolerância e
6
Cf. GRAU, 2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Adotada pela
Revolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986.
7
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Direito. Além deste fato, a norma jurídica será a expressão de uma ideologia, no momento em
19
FIDΣS
autonomia - e ao mesmo tempo reconhecendo que o desenvolvimento é um processo
abrangente, de natureza econômica, social, cultural e política 8.
A construção teórica de Amartya Sen também remete à consideração de elementos
de caracterização do direito ao desenvolvimento, muito além dos aspectos econômicos, ao
fazer referência à necessidade de atendimento de necessidades mais amplas dos indivíduos, do
respeito à condição da mulher e sua participação relevante e diferenciada na sociedade, da
participação popular, aspectos focados e essenciais na caracterização contemporânea do papel
do Estado relacionada ao desenvolvimento.
Existe farto material e produção teórica consistente acerca da relação entre o direito,
as instituições por ele criadas e o desenvolvimento. A definição de marcos teóricos que
sustentem a relação entre o direito e desenvolvimento, portanto, necessita ser trabalhada nos
contextos acadêmicos e de aplicação de conteúdo jurídico, como um exercício de busca da
efetividade do direito, mediante a aproximação do contexto fático do universo mais amplo e
interdisciplinar que envolve análises econômicas, políticas e sociais, e levando-o ao cotidiano
dos destinatários da norma constitucional.
REFERÊNCIAS
BARRAL, Welber. Direito e Desenvolvimento: um Modelo e Análise. In: ______. (Org.).
Direito e Desenvolvimento: Análise da Ordem Jurídica Brasileira sob a Ótica do
BERCOVICI, Gilberto. A Problemática da Constituição Dirigente: Algumas Considerações
sobre o Caso Brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, n.142, p. 35-51
abr./jun., 1999.
CAROTHERS, Thomas (Ed.). Promoting the Rule of Law Abroad: in Search of
Knowledge. Washington, D.C.: Carnegie Endowment for International Peace, 2006.
8
Especificamente no artigo 6 do documento referido, é reforçada a idéia segundo a qual os Estados “devem
tomar providências para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos
direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.” Além destes aspectos aponta
o artigo 8 que os “Os Estados devem [...]assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos [...] Medidas
efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo no processo de
desenvolvimento. [...] devem encorajar a participação popular em todas as esferas, como um fator importante no
desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos humanos”.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005.
20
FIDΣS
DAM, Kenneth W. The Law-Growth Nexus: the Rule of Law and Economic Development.
Washington: Brookings Institution Press, 2006.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3.
ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento. Adotada pela Revolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações
Unidas, de 4 de dezembro de 1986.
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao Desenvolvimento. São Paulo: Método,
2004.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método,
2006.
TRUBEK, David M.; SANTOS, Alvaro. The New Law and Economic Development: a
INSTITUTIONAL THEORY AND THE STUDY OF LAW IN A DEVELOPMENTAL
E CONSTITUTIONAL APPROACH
ABSTRACT
This work performs a brief overview of the theoretical contributions
of institutional theory to the characterization of law and conceptual
development. Suggest some conceptions of sociological efficacy of
law, based on the characterization of our constitutional principles, and
its contribution to the interdisciplinary construction of the
developmental state in Brazilian.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Critical Appraisal. Oxford: Cambridge, 2006.
21
FIDΣS
Keywords:
Law
and
development.
Institutionalism
theories.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Constitutional principles.
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FIDΣS
Recebido 29 ago. 2011
Aceito 26 out. 2011
A ESFERA PÚBLICA COMO ELEMENTO CENTRAL DA DEMOCRACIA
DELIBERATIVA
Ronaldo Pinheiro de Queiroz
RESUMO
Diante da inviabilidade da democracia direta e da crise da democracia
representativa, o presente estudo pretende analisar a democracia
deliberativa como um novo modelo de justificação de poder e tomada
de decisão política, dando destaque para a esfera pública como o
principal canal de comunicação e articulação entre a sociedade civil e
o poder público.
Palavras-chave. Estado. Democracia deliberativa. Esfera pública.
Na ciência política, dá-se o nome de regime político o conjunto de instituições por
meio das quais um Estado se organiza de maneira a exercer o poder sobre a sociedade. Sem
dúvida nenhuma, a democracia é o principal regime adotado nos Estados contemporâneos e
até o momento não surgiu nem um outro que apresente uma melhor metodologia para a
disputa e o exercício de poder.
Eleições livres e periódicas, garantia dos direitos fundamentais, liberdade de
imprensa, de organização política e de manifestação do pensamento, entre outros fatores, dão
a tônica para o funcionamento democrático do Estado.

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutorando em Direito Constitucional
pela PUC-SP. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Procurador da República. Membro do
Instituto Potiguar de Direito Público.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
1 INTRODUÇÃO
23
FIDΣS
Muito embora o conceito de democracia remonte à Idade Antiga, onde foram
desenvolvidos os primeiros mecanismos de participação popular na tomada de decisão sobre
os rumos da sociedade, houve um vácuo de vários séculos sem democracia no mundo até que
esse regime político se consolidasse no ocidente junto com a formação moderna de Estado.
Acontece que o modelo de democracia representativa vem dando demonstração de
cansaço e até de um certo fracasso, na medida em que o poder político não tem percebido
claramente os reais problemas da sociedade e tem encontrado dificuldade de legislar e
governar para uma sociedade tão complexa e plural, que se sente alijada do processo decisório
e da definição do futuro coletivo.
O presente trabalho se propõe a analisar o novo modelo de democracia deliberativa
que se apresenta como uma alternativa mais viável para identificar os problemas sociais,
encaminhá-los ao poder público e inserir a sociedade civil como uma das protagonistas do
processo decisório estatal.
2 A CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E O SURGIMENTO DA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
A fonte de todo o poder está no povo. O domínio do povo pelo próprio povo é o ideal
democrático e de legitimação 1 do poder nas sociedades ocidentais contemporâneas.
É da soberania popular que o Estado retira a sua legitimidade para agir ou não agir,
promovendo a cidadania com ações e protegendo direitos individuais com abstenções.
soberano é o povo e a Constituição.
Em que pese essas premissas sejam admitidas pelos principais setores da ciência
política e da teoria do Estado2, persiste o debate em torno dos problemas da organização do
poder político e da legitimidade desse poder nas sociedades políticas. Isso porque a forma de
exercício do poder e o processo de tomada de decisão política pode ser visualizado a partir de
pelo menos três modelos de democracia.
1
Diversas fontes da legitimidade foram apresentadas ao longo da história, como a religião, para os Estados
teocráticos, que perdeu força com a secularização das sociedades ocidentais; o recurso da força e da opressão,
nos Estados Absolutistas; e a vontade do povo, nos Estados democráticos instaurados após as revoluções liberais
(francesa e norte-americana).
2
MIRANDA, 2003; BASTOS, 1999; FERRAZ JÚNIOR, 1985; DALLARI, 1995; BRITTO, 2003.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Soberano não é o poder político, nem o governo, nem a classe dominante, nem as oligarquias,
24
FIDΣS
A sua primeira manifestação surge com a democracia direta, que encontra suas
origens na antiga Grécia e em Roma, onde o povo se reunia na praça pública (ágora) para
resolver as questões da coletividade (cidade-estado), atuando sem necessidade de
intermediários. A soberania se manifestava na sua forma mais pura, já que os atores sociais
votavam diretamente as leis que os governavam. Esse modelo puro durou dois séculos
(BASTOS, 1993, p. 113), mas foi se tornando praticamente inviável numa sociedade com um
mínimo de extensão territorial, complexidade e pluralidade quanto aos projetos de vida de
cada cidadão3.
A interpretação republicana de democracia operada por Jürgen Habermas se
aproxima desse modelo autêntico, o qual considera que a formação democrática da vontade
realiza-se na forma de um autoentendimento ético-político, onde o conteúdo da deliberação
deve ter o respaldo de um consenso entre os sujeitos privados, e ser exercido pelas vias
culturais. Na visão republicana, a sociedade se constitui como um todo estruturado
politicamente4. Aqui vigora a ideia de política orientada pela sociedade.
Já o Estado democrático moderno nasceu das lutas contra o absolutismo 5 e com ele
surgiu o método de democracia representativa. Foi na época da Revolução Francesa que se
desenvolveu cabalmente a ideia de representação política (BASTOS, 1999, p. 115), em que a
vontade do povo tem o seu auge na eleição dos seus representantes, cujo mandato político
recebido pelo sufrágio os autorizaria a tomar decisões em nome da sociedade, tendo as leis a
encarnação da vontade geral da nação. Nesse passo, a democracia poderia ser indireta6 ou
semidireta7.
Esse seria o modelo liberal de democracia, segundo Habermas (2003a, passim), em
imposições de interesses superiores. A aceitabilidade do direito e da dominação política
transformam-se em condições de aceitação, e as condições de legitimidade, em condições
para a estabilidade de uma fé da maioria. São os próprios indivíduos que produzem a validade
3
“É evidente que a própria experiência do século XIX mostrou a inviabilidade da democracia direta. Os Estados
modernos entraram pelo caminho da representação, com todos os problemas que isso gerou. Ultimamente, agora
nesse final de século XX, apenas como uma curiosidade, a ideia da democracia direta tem reaparecido, ainda
como uma utopia, é verdade, graças ao desenvolvimento da informática” (FERRAZ JÚNIOR, 1985, 21).
4
“A sociedade é por si mesma sociedade política – societas civilis; pois, na prática de autodeterminação política
dos sujeitos privados, a comunidade como que toma consciência de si mesma, produzindo efeitos sobre si
mesma, através da vontade coletiva dos sujeitos privados” (HABERMAS, 2003a, p. 20).
5
Vide DALLARI, 1995, p. 124.
6
O povo não teria nenhuma participação direta no processo decisório, sendo da exclusiva alçada dos seus
representantes.
7
O protagonismo do processo decisório continua com os representantes, sendo o povo convocado esporádica e
pontualmente para deliberar um plebiscito, referendo, recall, podendo também iniciar projeto de lei.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
que o “poder político” seria uma forma de “poder social” que se expressa na força de
25
FIDΣS
normativa, por meio de um ato de livre assentimento. A compreensão voluntarista da validade
desperta uma compreensão positivista do direito: vale como direito tudo aquilo e somente
aquilo que um legislador político, eleito conforme as regras, estabelece como direito.
Há um distanciamento entre os participantes (que decidem) e os observadores (que
aceitam) no processo de formação do direito. Na interpretação liberal, a formação
democrática da vontade tem como função única a legitimação do exercício do poder político,
de modo que os resultados das eleições autorizam a assunção do poder pelo governo, o qual,
por sua vez, tem que justificar o uso do poder perante o parlamento e a opinião pública. A
ideia de política seria orientada pelo Estado e não pela sociedade.
O certo é que o modelo de democracia representativa, delegatária8 de poderes a
representantes do povo, também se encontra em generalizada crise e em alguns países em
franco descrédito. Se no primeiro modelo o povo era o grande protagonista de uma peça
grandiosa, no outro não passava de um mero espectador de obras incompletas ou de
verdadeiras tragédias.
Não há dúvida que o modelo tradicional de Estado, incluída a clássica concepção de
separação de poderes, passa por fortes questionamentos. O Legislativo tem encontrado
dificuldade de demonstrar ser capaz de exercer uma orientação completa e exauriente da vida
política e social. Por não conseguir captar e responder aos reais problemas da sociedade, tem
havido uma certa descrença com a política majoritária por parte da sociedade, diante das
deficiências de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. A cada
sucessão de escândalos de corrupção nos Poderes Executivo e Legislativo, menos a sociedade
confia nos seus representantes. O que é um perigo para o ideal democrático.
mais aproximado dela é o da democracia participativa (também conhecida por deliberativa),
onde traz novamente o cidadão para dentro do debate político nas diversas esferas públicas de
8
Lenio Streck (2009, p. 21), citando O´Donnel, diz que: “a transição de regimes autoritários para governos
eleitos democraticamente não encerra a tarefa de construção democrática: é necessária uma segunda transição,
até o estabelecimento de um regime democrático. A escassez de instituições democráticas e o estilo de governo
dos presidentes eleitos em vários países que saíram recentemente de regimes autoritários – particularmente da
América Latina – caracterizam uma situação em que, mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao
autoritarismo, é difícil avançar para a consolidação institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a
existência de um tipo peculiar de democracia em que a delegação prevalece sobre a representação, denominada
pelo autor de democracia delegativa, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que
lockiano”.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Diante da inviabilidade prática de se retornar para uma democracia direta, o modelo
26
FIDΣS
participação, interlocução e decisão. É esse o novo modelo de exercício de poder buscado por
diversos Estados a partir do final do Século XX9.
Isso porque essa forma especial de governo constitui-se como um modelo ou ideal de
justificação do exercício do poder político pautado no debate público entre cidadãos livres e
em condições iguais de participação. Diferente da democracia representativa, caracterizada
por conferir a legitimidade do processo decisório ao resultado eleitoral, onde a participação do
cidadão se encerraria no voto, a democracia deliberativa propugna que a legitimidade das
decisões políticas deriva de processos de discussão que, orientados pelos princípios da
inclusão, do pluralismo, da tolerância, da igualdade participativa, da autonomia e do bem
comum, conferem um reordenamento na lógica de poder tradicional. A ideia de política seria
orientada por uma interlocução conjunta entre sociedade civil e Estado.
A democracia participativa retira o povo da letargia de ser espectador, despertando-o
para um agir cidadão. É o que pensa Paulo Bonavides ao afirmar que:
Não há democracia sem participação. De sorte que a participação aponta para as
forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e
legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e
abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em
distintas esferas e categorias de interesses (2008, p. 51).
Aguarda essa gente, porém, um impulso de cidadania, uma idéia, um princípio, um
valor ou uma iniciativa político-pedagógica superlativa e civilizadora, que a
converta em povo, tirando-a do esquecimento, da exclusão, do anonimato, da
submissão. A democracia participativa há de ser, pois, a solução desse problema
Habermas concebe e desenvolve esse novo modelo de democracia deliberativa por
meio de sua teoria do discurso, tendo a virtude de aglutinar aspectos dos modelos republicano
e liberal. Em que pese não haver um processo de tomada de decisão direta, haveria uma
9
“A democracia deliberativa surge, nas duas últimas décadas do séc. XX, como alternativa às teorias da
democracia então predominantes, as quais a reduziram a um processo de agregação de interesses particulares,
cujo objetivo seria a escolha de elites governantes. Em oposição a essas teorias ‘agregativas’ e ‘elitistas’,
democracia deliberativa repousa na compreensão de que o processo democrático não pode se restringir à
prerrogativa popular de eleger representantes. A experiência histórica demonstra que, assim concebida, pode ser
amesquinhada e manipulada. A democracia deve envolver, além da escolha de representantes, também a
possibilidade efetiva de se deliberar publicamente sobre as questões a serem decididas. A troca de argumentos e
contra-argumentos racionaliza e legitima a gestão da res pública. Se determinada proposta política logra superar
a crítica formulada pelos demais participantes da deliberação, pode ser considerada, pelo menos prima facie,
legítima e racional” (SOUZA NETO citado por SARMENTO, 2009, p. 79).
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(2008, p. 348).
27
FIDΣS
responsabilidade compartilhada (pelos atores sociais e políticos) para o direcionamento dos
rumos do Estado. Desse modo, pode-se dizer que:
A teoria do discurso, que atribui ao processo democrático maiores conotações
normativas do que o modelo liberal, as quais, no entanto, são mais fracas do que as
do modelo republicano, assume elementos de ambas as partes, compodo-os de modo
novo. Na linha do republicanismo, ela coloca no centro o processo político de
formação da opinião e da vontade, sem porém entender a constituição do Estado
como algo secundário; conforme foi mostrado, ela entende os princípios do Estado
de direito como uma resposta coerente à pergunta acerca do modo de
institucionalização das formas pretensiosas de comunicação de uma formação
democrática da opinião e da vontade. Na teoria do discurso, o desabrochar da
política deliberativa não depende de uma cidadania capaz de agir coletivamente e
sim, da institucionalização dos correspondentes processos e pressupostos
comunicacionais, como também do jogo entre deliberações institucionalizadas e
opiniões públicas que se formaram de modo informal (BONAVIDES, 2008, p. 21).
Nesse compasso, a sociedade seria a primeira a perceber os problemas surgidos no
seu cotidiano10 complexo e plural, ocasião em que passaria a identificá-los, debatê-los e
tematizá-los nas inúmeras esferas públicas com o objetivo de encaminhá-los ao Poder
Público. A decisão política seria pautada por uma racionalidade discursiva, pois, embora
somente o sistema político possa “agir” e compor formalmente a decisão que obriga
coletivamente, as estruturas comunicativas da esfera pública formam uma rede ampla de
sensores que captam os problemas da sociedade, produzindo uma opinião pública com poder
Não há dúvida de que a legitimação do poder pela representação eleitoral continua
sendo de grande importância, mas passa a conviver e a exigir a complementação de novas
formas de legitimação associadas ao paradigma da democracia deliberativa.
3 ESFERA PÚBLICA, SOCIEDADE CIVIL E ESTADO
A construção da legitimação da democracia deliberativa passa pelo conceito de esfera
10
Que Habermas chama de mundo da vida, justamente para diferenciar e não se deixar influenciar pelos
subsistemas da política e da economia, cujos códigos comunicacionais atinem a poder e dinheiro,
respectivamente.
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comunicacional com influência e forte direcionamento na tomada de decisão.
28
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pública, configurando-se como consequência direta da razão comunicativa, pressupondo que
em sociedades complexas, como as pós-modernas, há a necessidade de se estabelecer um
locus onde as discussões devam ser travadas livremente.
A esfera pública seria o ponto de encontro entre a sociedade civil e o Poder Público,
funcionando como um processo de articulação entre as duas pontas. É neste espaço que a
sociedade delibera racionalmente sobre os mais diversos assuntos do seu cotidiano e de suas
aspirações sociais, fazendo chegar o melhor argumento (na forma de opinião pública) às
esferas de governo no processo de tomada de decisão.
Na democracia deliberativa, portanto, os conceitos de esfera pública e sociedade civil
são centrais, inserindo-se na cadeia do processo decisório do Estado.
3.1 Sociedade civil
A sociedade civil é um setor relevante na construção da esfera pública democrática,
na medida em que está ancorada no mundo da vida, apresentando maior proximidade com os
problemas e demandas do cidadão comum.
Não se confunde com o Estado ou com a economia, tampouco pode estar submetida
às lógicas desses dois setores11. Diferencia-se dos partidos e outras instituições políticas, uma
vez que não está organizada com vistas à conquista, exercício ou manutenção do poder, bem
como dos agentes e instituições econômicas, já que não está diretamente associada à
competição no mercado e à conquista do lucro.
Os atores sociais, vivenciando os fatos, movimentam a sociedade civil, na medida em
organizam e representam os interesses dos que são excluídos dos debates e deliberações
políticas.
Habermas (2003a, p. 99) conceitua que:
A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais
captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensamnos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da sociedade
civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de
11
Habermas (2003a, p. 99) inicia o conceito de sociedade civil advertindo que o atual significado da expressão
“sociedade civil” não coincide com o da “sociedade burguesa”, da tradição liberal, que se ancorava no sistema
do trabalho, capital e economia de mercado. Atualmente, o núcleo da sociedade civil é formado por associações
e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as ancoram as estruturas de comunicação
da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.
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que identificam e tematizam novas questões, problemas e aspirações sociais, bem como
29
FIDΣS
solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro de
esferas públicas.
Cohen e Arato (1992, p. 346) apresentam um catálogo com as seguintes
características identificadoras da sociedade civil:
Pluralismo: famílias, grupos informais e associações voluntárias, cuja pluralidade e
autonomia permitem uma variedade de modos de vida; publicidade: instituições de
cultura e comunicação; privacidade: um domínio de autodesenvolvimento individual
e escolhas morais; e legalidade: estruturas de leis gerais e de direitos básicos
necessários para demarcar a pluralidade, privacidade e publicidade, do Estado, pelo
menos, e, tendencialmente, da economia. Juntas, essas estruturas asseguram a
existência institucional de uma moderna e diferenciada sociedade civil”.12
Para que a sociedade civil cumpra efetivamente o seu papel, agindo de forma livre,
imparcial e se fazendo ouvir e difundir nos outros setores do processo comunicativo e
decisório, os direitos fundamentais (HABERMAS, 2003a, p. 101) desempenham a função
primordial de garantir a liberdade de opinião e de reunião, o direito de fundar sociedades e
associações, a liberdade de imprensa, rádio e televisão, bem como na linha de garantir a
proteção da privacidade, na tutela dos direitos da personalidade, liberdades de crença e de
consciência, sigilo da correspondência e do telefone, inviolabilidade da residência, proteção
da família, caracterizam uma zona inviolável da integridade pessoal e da formação do juízo e
da consciência autônoma.
circulação de ideias, a comunicação para a formação da vontade política racional fica
inviabilizada ou, pelo menos, gravemente prejudicada, dificultando ou impossibilitando o
exercício autêntico da soberania popular 13.
Portanto, a ação comunicativa da sociedade civil ocorre com maior ênfase na esfera
pública, a qual identifica os problemas ou os anseios da sociedade e os encaminha para as
instâncias estatais de tomada de decisão.
12
Tradução livre de: “Plurality: families, informal groups, and voluntary associations whose plurality and
autonomy allow for a variety of forms of life; publicity: institutions of culture and communication; privacy: a
domain of individual self-development and moral choice; and legality: structures of general laws and basic rights
needed to demarcate plurality, privacy and publicity from at least the state and, tendentially, the economy.
Together these structures secure the institutional existence of a modern, differentiated civil society”.
13
MARMELSTEIN, George. “A praça é do povo? A liberdade de reunião e o direito de manifestação popular
em espaços públicos na visão dos tribunais”. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/41288960/Direito-deReuniao>. Acesso em: 21 ago. 2011.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Num ambiente em que não se garanta formação da autonomia da vontade e da livre
30
FIDΣS
3.2 Esfera pública
A esfera pública é um fenômeno social14 que, de um lado, capta os problemas e
aspirações da sociedade surgidos no mundo da vida e, do outro, apresenta-se como uma rede
adequada para a comunicação de conteúdos e tomadas de posição, onde os fluxos
comunicacionais são filtrados, tematizados e sintetizados, condensando-se em opiniões
públicas que transmitem os problemas e as aspirações da sociedade civil aos centros
decisórios da política. A esfera pública funciona, portanto, como uma caixa de ressonância
onde as questões a serem elaboradas pelo sistema político ganham eco.
A sua formação é espontânea. Nenhuma esfera pública pode ser produzida ao belprazer, pois surge a partir de si mesma e configura-se como uma estrutura autônoma. Diz
Habermas (2003a, p. 97) que: “Para preencher sua função, que consiste em captar e tematizar
os problemas da sociedade como um todo, a esfera pública política tem que se formar a partir
dos contextos comunicacionais de pessoas virtualmente atingidas.”
Nesse sentido, a esfera privada costuma ser o primeiro canal de comunicação para a
formação da esfera pública 15, pois é a partir das redes de interação da família, do círculo de
amigos, colegas de trabalho, contatos superficiais com vizinhos, etc., que os problemas do
mundo da vida começam a ser percebidos e tematizados. Quando esses temas saem do
circuito fechado e são ampliados e abstraídos, entram na prática cotidiana da “comunicação
entre estranhos” (HABERMAS, 2003a, p. 98) e formam a esfera pública. A partir deste
momento, as “condições de comunicação são modificadas” (HABERMAS, 2003a, p. 98) na
canalização do fluxo de temas de uma esfera a outra.
O espaço público pode ocorrer de forma presencial (reuniões, assembleias, cafés,
congressos, universidades, igrejas) ou virtualmente, ligando um público leitor, ouvinte,
14
Sobre a natureza da esfera pública, diz Habermas (2003a, p. 92) que: “Esfera ou espaço público é um
fenômeno social elementar, do mesmo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado
entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. A esfera pública não pode ser entendida
como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de
diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela
constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se
caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis”.
15
Vide HABERMAS (2003b; 2003a); TAYLOR (2010).
16
Na sua acepção pura, a esfera pública é isenta de qualquer limitação quanto ao acesso, lugar e publicidade.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
perspectiva do acesso, espaço e publicidade, que passam a ser ilimitados16. Há, pois, a
31
FIDΣS
telespectador ou até internauta17.
A depender do alcance do problema e da relevância do tema, multiplicam-se a
formação de esferas públicas subculturais que se sobrepõem umas às outras, cujas fronteiras
reais, sociais e temporais são fluidas.
Considerando que na esfera pública os atores envolvidos não exercem poder político
(no sentindo de tomada de decisões estatais), a sua grande força está no impacto de sua
influência no direcionamento das decisões perante os poderes constituídos 18. Essa influência
se apresenta na forma de opinião pública, que é o produto do consenso obtido na esfera
pública a partir da extração do melhor argumento. Segundo Habermas (2003a, p. 93-94):
[...] as estruturas comunicacionais da esfera pública aliviam o público da tarefa de
tomar decisões; as decisões proteladas continuam reservadas a instituições que
tomam resoluções. Na esfera pública, as manifestações são escolhidas de acordo
com temas e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são
elaborados na forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são
transformadas em opinião pública através do modo como surgem e através do amplo
assentimento de que 'gozam'. Uma opinião pública não é representativa no sentido
estatístico. Ela não constitui um agregado de opiniões individuais pesquisadas uma a
uma ou manifestadas privadamente; por isso, ela não pode ser confundida com
resultados da pesquisa de opinião.
Charles Taylor, nessa perspectiva, informa que o governo está moralmente obrigado
a ouvir a opinião pública e pautar a sua ação com base na mente comum da sociedade. Diz
A esfera pública é o lugar de uma discussão que potencialmente implica toda a gente
(embora, no século XVIII, a exigência implicasse apenas a minoria educada ou
“ilustrada”), em que a sociedade pode chegar a uma mente comum acerca de
matérias importantes. Esta mente comum é uma visão reflexiva, emanando do
debate crítico, e não apenas uma soma de algumas concepções presentes na
população. Como consequência, tem um estatuto normativo: o governo deve ouvi-la.
[…]
17
Vide CARVALHO, Flávia Martins de. VIEIRA, José Ribas. “Internet ajuda na redefinição do espaço
público”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-jun-25/agora-internet-ajuda-redefinicao-espacopublico. Acesso em: 20 ago. 2011.
18
Habermas (2003a) reconhece que “a influência pública só se transforma em poder político após passar através
dos filtros dos procedimentos institucionalizados de formação de vontade e opinião democráticas, ser
transformada em poder comunicativo e adentrar através dos debates parlamentares o processo legislativo
legítimo”.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
que:
32
FIDΣS
A segunda razão desponta com a concepção de que o povo é soberano. O governo
não é, então, apenas sábio em seguir a opinião; está também moralmente obrigado a
fazê-lo. Os governos hão-de legislar e governar no meio de um público pensante. Ao
tomar as suas decisões, o Parlamento ou a corte deve recolher e levar a cabo o que já
emergiu do debate ilustrado entre as pessoas. Daqui procede o que Warner, seguindo
Habermas, chama de 'princípio de supervisão', que insiste em que as actas dos
corpos governantes sejam públicas, abertas ao escrutínio dos cidadãos dotados de
discernimento. Tornando-se pública, a deliberação legislativa informa a opinião
pública e permite-lhe ser sumamente racional, ao mesmo tempo que se expõe a si
mesma à sua pressão e, deste modo, reconhece que a legislação deve, em última
análise, sujeitar-se aos claros mandatos desta opinião. (TAYLOR, 2010, p. 9-10)
O processo de entendimento mútuo (consenso) depende do assentimento
racionalmente motivado ao conteúdo do discurso. Não pode ser imposto à outra parte e
tampouco extorquido por meio de manipulações 19. A opinião pública assenta-se sempre em
convicções comuns. A formação de convicções pode ser analisada segundo o modelo das
tomadas de posição em face de uma oferta de ato de fala. O ato de fala de um só terá êxito se
o outro aceitar a oferta nele contida, tomando posição afirmativamente, nem que seja de
maneira implícita (HABERMAS, 1987, p. 165).
Todo o processo de discussão e busca de consenso na esfera pública se dá pelo agir
comunicativo dos diversos atores que nela participam tentando influir 20 o seu discurso na
busca da convicção do auditório. A partir do momento em que o espaço público se estende
para além do contexto das interações simples, “entra em cena uma diferenciação que distingue
entre organizadores, oradores e ouvintes, entre arena e galeria, entre palco e espaço reservador
que se apresentam na arena (trazem os argumentos e tentam convencer) e os espectadores que
se encontram na galeria (auditório) que, ao concordarem com o melhor argumento (tomada de
decisão), enfeixam a opinião pública.
19
É certo que a opinião pública pode ser manipulada pelos meios de comunicação de massa (infiltrada pela
política e poder econômico), o que levou Habermas a apontar a decadência do modelo burguês de esfera pública,
cuja despolitização e neutralidade serviu como método de legitimação do poder (In HABERMAS, 2003b). No
entanto, Habermas reconhece que, embora a opinião pública possa ser manipulada, não pode ser comprada ou
obtida à força, retomando o tema e propondo uma reformulações para livrar a esfera pública dessas armadilhas
(Vide, v.g., HABERMAS, 1987; 2003a.).
20
Diz Habermas (2003a, p. 95-96) que: “Na esfera pública luta-se por influência, pois ela se forma nessa esfera.
Nessa luta não se aplica somente a influência política já adquirida (de funcionários comprovados, de partidos
estabelecidos ou de grupos conhecidos, tais como Greenpeace, a Anistia Internacional, etc.), mas também o
prestígio de grupos de pessoas e de especialistas que conquistaram sua influência através de esferas públicas
especiais (por exemplo, a autoridade de membros de igrejas, a notoriedade de literatos e artistas, a reputação de
cientistas, o renome de astros do esporte, do showbusiness, etc.)”.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
ao público espectador” (HABERMAS, 2003a, p. 96). Assim, a esfera pública contém atores
33
FIDΣS
Para se alcançar um consenso racional (opinião pública), há de ser garantida as
condições ideais de fala (CRUZ, 2008, p. 93), que pressupõe: a) igualdade de chance no
emprego dos atos de fala comunicativos por todos os possíveis participantes do discurso,
incluindo aqui o direito de proceder a interpretações, fazer asserções e pedir explicações de
detalhamentos sobre a proposição, dissentir, bem como de empregar atos de fala regulativos;
b) capacidade dos participantes de expressar ideias, intenções e intuições pessoais.
Assim, deve ser garantido o acesso irrestrito e igualitário nas discussões travadas
nestes espaços públicos. Todos têm direito de participar do processo discursivo (princípio da
igualdade comunicativa). A esfera pública, num primeiro momento, seria um espaço irrestrito
de comunicação e deliberação pública, cuja extensão e cujos limites internos e externos não
podem ser
anteriormente estabelecidos,
limitados ou restringidos.
Isso ocorreria
principalmente nos processos informais de discussão nos espaços públicos, como uma
passeata ou uma agregação espontânea de pessoas estimuladas por um ideal comum. Nessa
perspectiva, a esfera pública seria sempre indeterminada quanto aos conteúdos da agenda
política e aos indivíduos e grupos que nela podem figurar.
É preciso reconhecer que, embora esse seja o modelo de esfera pública geral ou puro,
nem sempre ele confere o resultado esperado no processo de influência dos poderes públicos,
dado o seu caráter difuso e pouco organizado, podendo propiciar, inclusive, o aparecimento de
barreiras que dificultam as condições ideais de fala 21.
Diante disso, Habermas reconhece a existência de esferas públicas diferenciadas
quanto ao grau e ao poder de discussão, organização e decisão. Ao lado da esfera pública
geral, responsável pela tematização pública dos problemas e temas que afetam a sociedade,
regulada. Sobre esse modelo autolimitado da esfera pública formal habermasiana, Jorge
Adriano Lubenow (2007, p. 113-114) descreve que:
21
Diz Habermas (2003a, p. 32) que:“[...] E através das esferas públicas que se organizam no interior de
associações movimentam-se os fluxos comunicacionais, em princípio ilimitados, formando os componentes
informais da esfera pública geral. Tomados em sua totalidade, eles formam um complexo 'selvagem' que não se
deixa organizar completamente. Devido a sua estrutura anárquica, a esfera pública geral está muito mais exposta
aos efeitos de repressão e de exclusão do poder social – distribuído desigualmente – da violência estrutural e da
comunicação sistematicamente distorcida, do que as esferas públicas organizadas do complexo parlamentar, que
são reguladas por processos. De outro lado, porém, ela tem a vantagem de ser um meio de comunicação isento
de limitações, no qual é possível captar melhor novos problemas, conduzir discursos expressivos de autoentendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidades. A formação
democrática da opinião e da vontade depende de opiniões públicas informais que idealmente se formam em
estruturas de uma esfera pública política não desvirtuada pelo poder. De sua parte, a esfera pública precisa contar
com uma base social na qual os direitos iguais dos cidadãos conseguiram eficácia social”.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
haveria o papel deliberativo do sistema político, enquanto esfera pública procedimentalmente
34
FIDΣS
[...] Habermas propõe a adoção da idéia procedimental de deliberação pública, pela
qual os “contornos” da esfera pública se forjam durante os processos de
identificação, filtragem e interpretação acerca de temas e contribuições que
emergem das esferas públicas autônomas e são conduzidos para os foros formais e
institucionalizados do sistema político e administrativo. É nesse caráter
procedimental de justificação da legitimidade que se realiza a normatividade da
esfera pública. É da inter-relação entre as esferas públicas informais e a esfera
pública formal que deriva a expectativa normativa da esfera pública: de abrir os
processos institucionalizados às instâncias informais de formação da opinião e da
vontade política.
A acepção pura de esfera pública é de um espaço público fora do Estado, que produz
solicitações em torno de problemas sociais e que discute e crítica decisões políticas. Sua
formação seria informal, não institucional e espontânea. Esse é o modelo de esfera pública
geral, pura ou subcultural.
Nada obsta que o Estado também garanta um espaço público de deliberação, nos
mesmos moldes da esfera pública, em que a sociedade civil debata junto com os agentes
políticos os rumos da sociedade. Essa esfera pública formal só funciona legitimamente se
forem mantidas as condições ideais de fala (ou seja, garantida a igualdade comunicativa e
sem barreira de acesso aos diversos seguimentos interessados).
3.3 Esfera pública formal ou procedimentalmente regulada
razão de ser porque no mundo da vida o associativismo civil ou o quadro da organização da
sociedade civil é complexo, plural e desigual. Compõe-se de um leque variado de interesses,
estratégias, recursos que conformam um mosaico de diferentes cores e perspectivas. Mesmo
em se tratando dos movimentos sociais que procuram melhorar as condições de vida, estudos
indicam que os mesmos tendem a ser locais, corporativos e parciais (LUCHMANN, 2002, p.
16).
O desnível educacional, organizacional, informacional ou financeiro tende a excluir
certos seguimentos do debate público. Há um desequilíbrio entre, de um lado, associações
fortes e corporações econômicas, formando grupos de pressão de grande influência, e do outro
as minorias e excluídos sociais com pouca capacidade de articulação e convencimento.
A esfera pública formal, portanto, deve garantir um espaço de interlocução pública
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
A preocupação do Estado em garantir esse espaço público institucionalizado tem
35
FIDΣS
de caráter aberto, plural e inclusivo, na construção de um sistema democrático marcado pela
aproximação entre instâncias formais do governo e espaços informais de discussão entre todos
os seguimentos da sociedade civil.
A questão da institucionalização da esfera pública também é objeto de análise e
preocupação de James Bohman (2000, p. 49), para quem o:
êxito de uma forma deliberativa de democracia depende da criação de condições
sociais e de arranjos institucionais que propiciem o uso público da razão. A
deliberação é pública na medida em que estes arranjos permitam o diálogo livre e
aberto entre cidadãos capazes de formular juízos informados e racionais em torno às
formas de resolver situações problemáticas.
Lígia Helena Hahn Luchmann (2002, p. 43) confirma a necessidade de se
institucionalizar um espaço público adequado, assentando que:
A democracia deliberativa constitui-se, portanto, como um processo de
institucionalização de um conjunto de práticas e regras (formais e informais) que,
pautadas no pluralismo, na igualdade política e na deliberação coletiva, sejam
capazes de eliminar ou reduzir os obstáculos para a cooperação e o diálogo livre e
igual, interferindo positivamente nas condições subjacentes de desigualdades
sociais. É neste sentido que o princípio do pluralismo, em um modelo democráticodeliberativo, vai além do respeito à diversidade e ao conflito, na medida em que se
assenta em um conjunto de regras inclusivas dos setores historicamente excluídos
dos procedimentos deliberativos. Uma institucionalidade de gestão participativa de
participação a diferentes atores sociais, como também, e fundamentalmente,
potencializa a participação através de um conjunto de mecanismos - princípios e
regras - institucionais.
Além da existência das diversas esferas públicas subculturais, cuja formação é
espontânea, imprevisível e inevitável, o Estado deve institucionalizar o seu modelo para que
se garanta: a) uma estabilidade e duração maior; b) inclusão; e c) condição ideal de fala.
A questão do arranjo institucional assume um papel central na operacionalização dos
princípios da democracia deliberativa, pois diz respeito ao conjunto de medidas (espaços de
participação, atores participativos, normas, regimentos, critérios, etc.) que possibilitam a
efetivação deste ideal democrático. Se o que se pretende é uma participação ativa, igual,
qualificada, plural e inclusiva, há que se construir um conjunto de mecanismos organizativos
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
caráter democrático seria então, aquela que não apenas oferece a oportunidade de
36
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para o alcance destes objetivos.
Além disso, o formato institucional deve se preocupar tanto com a dimensão
organizativa (regulando o melhor modelo de participação), quanto com a dimensão cultural,
ou seja, criando estímulos na sociedade civil para participação e promovendo uma verdadeira
cultura de comportamento político-social (LUCHMANN, 2002, p. 62), sendo certo que a
“deliberação estimularia as pessoas não apenas a expressar suas opiniões políticas mas
também a formar essas opiniões através do debate público” (VITULLO, 2000, p. 18).
4 CONCLUSÃO
Após o percurso descritivo de nossa análise, podemos delinear as seguintes
conclusões.
Embora seja assente na ciência política e na teoria do Estado no sentido de que fonte
do poder estatal está no povo, persiste o debate em torno dos problemas da organização do
poder político e da legitimidade desse poder nas sociedades políticas.
O modelo de democracia representativa se encontra em generalizada crise e em
alguns países em franco descrédito.
Diante da inviabilidade prática de se retornar para uma democracia direta, o modelo
mais aproximado dela é o da democracia participativa (também conhecida por deliberativa),
onde traz novamente o cidadão para dentro do debate político nas diversas esferas públicas de
participação, interlocução e decisão.
centrais, inserindo-se na cadeia do processo decisório do Estado.
A esfera pública seria o ponto de encontro entre a sociedade civil e o Poder Público,
funcionando como um processo de articulação entre as duas pontas. É neste espaço que a
sociedade delibera racionalmente sobre os mais diversos assuntos do seu cotidiano e de suas
aspirações sociais, fazendo chegar o melhor argumento (na forma de opinião pública) às
esferas de governo no processo de tomada de decisão.
A acepção pura de esfera pública é de um espaço público fora do Estado, que produz
solicitações em torno de problemas sociais e que discute e crítica decisões políticas. Sua
formação seria informal, não institucional e espontânea.
Nada obsta que o Estado também garanta um espaço público de deliberação, nos
mesmos moldes da esfera pública, em que a sociedade civil debata junto com os agentes
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Na democracia deliberativa os conceitos de esfera pública e sociedade civil são
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políticos os rumos da sociedade. Essa esfera pública formal só funciona legitimamente se
forem mantidas as condições ideais de fala (ou seja, garantida a igualdade comunicativa e
sem barreira de acesso aos diversos seguimentos interessados).
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Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
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FIDΣS
THE PUBLIC SHPERE AS AN ESSENTIAL ELEMENT OF DELIBERATIVE
DEMOCRACY
ABSTRACT
Faced with the impossibility of direct democracy and the crisis of
representative democracy, this study aims to analyze the deliberative
democracy as a new model of power justification and political
decision-making, giving emphasis to the public sphere as the main
channel of communication and coordination between civil society and
government.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Keywords: State. Deliberative democracy. Public sphere.
40
FIDΣS
Recebido 29 ago. 2011
Aceito 29 out. 2011
LIBERDADE E ESPAÇO PÚBLICO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH
ARENDT
Alfran Marcos Borges Marques
RESUMO
O presente artigo expõe os principais elementos reflexivos de Hannah
Arendt concernente à relação entre liberdade e espaço público. Os
impasses do mundo moderno levaram ao obscurecimento das noções
políticas transmitidas pelos romanos e gregos. No lugar da construção
do espaço público onde homens livres e iguais afirmam sua unicidade
diante da pluralidade de agentes, a racionalidade técnico-científica
elevou trabalho e fabricação ao patamar de atividades motrizes da vida
societária. A solução arendtiana é repensar o Direito como
instrumento de participação política horizontal em que o respeito à lei
é fruto da consolidação do poder popular.
“Não creia que por amar a ação me foi preciso desaprender a pensar”.
(Albert Camus)
1 INTRODUÇÃO
Determinar onde reside a liberdade sempre foi o grande problema filosófico e político
diante do qual o debate em busca de respostas sólidas parece ter alcançado mais

Bacharel em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/5518244886922141>.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Palavras-chave: Liberdade. Espaço público. Hannah Arendt.
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indeterminações e menos entendimento. Apesar do intenso esforço acerca deste assunto, os
fatos históricos e a crise do pensamento moderno levam a crer que algo no passado tomou um
caminho errado e que a abordagem tradicionalmente tomada para interpretar a práxis gerou
antinomias insolúveis. O mundo moderno, termo que define o ápice do desenvolvimento
científico pautado no incremento das forças produtivas e no domínio absoluto do homem
sobre a natureza, expõe uma interpretação da vita activa alicerçada na tradição metafísica
ocidental. As verdades suprassensíveis defendidas desde o surgimento da filosofia dialética na
antiguidade e a alienação das pessoas perante o mundo comum vivenciado nos dias de hoje
são o primeiro e o último estágio do vigoroso esforço para subjugar a política em função de
outras atividades ditas superiores: contemplação, fabricação, trabalho.
O fim da tradição ocorre com o desafio aos valores e costumes que sustentaram as
comunidades políticas por vários séculos até o aparecimento dos eventos que desafiaram as
bases da convivência humana. Veio com o desmascaramento dos valores máximos da
humanidade que se mostraram na era moderna parciais, ideológicos, representações disformes
das relações sociais. A quebra da continuidade com a tradição universalista trouxe
desconfiança em relação à capacidade do homem em decidir sobre assuntos comuns
independente das regras valoradas na racionalização do Bem filosófico.
Nesse contexto, o tema da liberdade também sofreu abalo significativo. A
experiência totalitária almejou por meio do terror, medo e solidão, a dominação absoluta
capaz de eliminar com eficiência máxima o relacionamento das pessoas na condição de seres
aptos a interagir para construção do mundo compartilhado. Tal controle pretendia eliminar
definitivamente a esfera pública ao exigir que todos se contentassem exclusivamente com a
para conferir legitimidade ao governo: a própria ideologia justificava todos os atos das
instituições sem possibilidade de erros.
Neste artigo são explorados os conceitos de liberdade e espaço público
desenvolvidos por Hannah Arendt como esforço para compreensão da crise política e jurídica
experimentada no mundo moderno. O primeiro passo para a elaboração do presente estudo é
apontar a originalidade da organização institucional das civilizações clássicas. Em seguida,
como as diferentes interpretações da filosofia política obscureceram as noções democráticas e
republicanas. Na sequencia, exposição dos conceitos que permitiram a rebelião contra o modo
de vida contemplativo. E por último, a contribuição arendtiana para a teoria jurídica.
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dimensão biológica das necessidades corporais. Diante disto, cidadãos não eram necessários
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FIDΣS
2 O NASCIMENTO DA POLÍTICA NA GRÉCIA DEMOCRÁTICA
Para os gregos antigos, os primeiros que atrelaram ação e discurso como finalidades
em si mesmas da atividade política, o processo legislativo é concebido como instrumento, um
“fazer” pré-político. Essas entidades legais possuem tangibilidade, mas não inspiram
necessariamente a lealdade dos cidadãos, pois não é ainda o conteúdo efetivo da política, que
só advém quando os homens são vistos e ouvidos pela plateia composta por seus semelhantes,
e aparecem uns aos outros na teia intangível de relações humanas, instaurada e mantida pela
ação e pelo discurso (ALVES NETO, 2009, p. 85). Contrariamente à república romana, que
valorizava a fundação e a legislação da cidade como autênticos atos políticos, as leis não eram
concebidas na pólis como resultado direto da ação, pois o fenômeno de agir e falar não pode
resultar em um produto final sem destruir seu significado autêntico e extremamente frágil.
Somente a fabricação pode ter como fim um resultado concreto. Por isso, o ato de legislar não
torna o homem cidadão porque as normas prescrevem paradigmas de comportamento,
consequentemente, limita o poder de decisão espontâneo dos indivíduos. Antes mesmo da
iniciativa de agir e falar, logo numa dimensão pré-política, é necessário instaurar o espaço de
aparecimento dos homens plurais (espaço público) e nele erguer a estrutura estável para as
relações humanas (leis). Mas essa estrutura tangível que estabiliza as iniciativas de agir e falar
não é um limite intransponível, pois não tem a capacidade de iniciar a ação ou inspirar o
surgimento das relações humanas.
A liberdade surge na pólis no momento em que cada homem, livre das privações que
caracterizam a estrutura familiar, pode aparecer por meio da ação e do discurso, revelando um
platônicos fundaram a vida política para “elevar a ação ao topo da hierarquia da vita activa e
para que se visse no discurso o elemento fundamental de distinção entre a vida humana e a
vida animal” (ARENDT, 2001, p. 217). A democracia grega faz da atividade política a mais
grandiosa obra humana ou o mais elevado feito dos mortais no cosmo imortal. “A pólis era
para os gregos, como a res publica era para os romanos, em primeiro lugar a garantia contra a
futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa
permanência, senão à imortalidade dos mortais” (ARENDT, 2001, p. 66).
A pólis consolidou dois tipos de esferas da existência humana: a pública e a privada
(ARENDT, 2001, p. 33). Os assuntos públicos são tratados pela reunião de cidadãos situados
em círculo, a igual distância do centro, isto é, igualmente capazes de decidir os destinos da
cidade. Portanto, ser livre significava libertar-se da privação presente na atividade laborativa e
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quem que compartilha a pluralidade de significados do mundo comum. Os gregos pré-
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estar entre iguais (isonomia), ao contrário da família que era o centro da mais severa
desigualdade. Ser livre é ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao
comando de outro e também não comandar. Não se trata de domínio, como também não
invoca submissão.
A isonomia não gera obediência a nenhum senhor despótico, mas ao conjunto de
acordos, constituindo a lei (nomos) que eles mesmos escolheram e estabeleceram por meio da
capacidade de discorrerem uns com os outros e agirem na realização de laços comuns. Assim,
a vida política procura revelar que os homens não vivem nem morrem como animais, ou seja,
submetidos ao gigantesco círculo da natureza, onde não existe começo nem fim e onde todas
as coisas giram em imutável repetição. Na pólis, os homens se põem em luta, através de feitos
e palavras, por algo que confira para a sua existência singular e para o mundo humano algum
vestígio de imortalidade. A vida genuinamente política só existe quando os homens vivem tão
continuamente próximos uns dos outros que as potencialidades da ação e do discurso estão
sempre presentes. A fragilidade da ação se distingue da mera força porque esta última pode
ser propriedade de um homem isolado, e aquela sempre depende que os homens estejam
juntos para a permanência dos laços originados pelo discurso.
Sem a pólis os homens não são capazes de lembrar-se do que foi grande, belo e,
sobretudo, humano. Sem ela a novidade não resplandeceria no mundo, nada aconteceria entre
eles de heroico, nenhuma significação duradoura haveria para inspirar a recordação de
grandes feitos, palavras e obras que devem a sua existência exclusivamente ao artifício
humano. Nas palavras de Arendt (2001, p. 195): “sem um âmbito público politicamente
organizado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer”.
cultura grega. A maior grandeza humana residiria na mais fugaz atividade que os homens
podem desempenhar: a ação e a fala. Ironicamente, os homens ingressam na extrema
fragilidade e vulnerabilidade da esfera pública por desejarem a grandeza dos seus feitos e
palavras ou o registro daquilo que têm em comum com os outros fossem mais permanentes
que suas vidas (ARENDT, 2000, p. 75).
3 OBSCURECIMENTO DA POLÍTICA PELA TRADIÇÃO METAFÍSICA
Em contraposição aos preceitos da pólis democrática, defendidos pela escola sofista,
o surgimento do pensamento filosófico grego representa a primeira tentativa de subjugar a
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A pólis é o grande e doloroso paradoxo que expõem a autêntica dimensão trágica da
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esfera política aos ditames da razão contemplativa. Não obstante a originalidade da
organização da cidade-estado, que surpreende pela extrema importância da atividade pública,
o filósofo deseja habitar em outro mundo guiado pelas ideias perfeitas e longe da confusão
dos negócios da cidade. O referencial para esta atitude de negação da experiência
compartilhada encontra-se na aceitação do mundo das ideias como portador dos elementos
ordenadores da realidade. De fato, a partida para a contemplação é uma ida com passagem de
volta, pois o filósofo tem a obrigação messiânica de retornar para a escuridão trazendo a luz
unificadora da razão, capaz de silenciar o barulho caótico dos negócios humanos. O filósofo
opta por outro modo de vida diferente do experimentado na pólis, escolhe opor-se
radicalmente à política e a todo diálogo baseado na persuasão. O meio para alcançar este
objetivo seria acabar com todas as instituições públicas que representam, em virtude da
própria natureza contingencial, perigo ao modo de vida puramente contemplativo. Nesse
contexto, a política é apenas meio para alcançar fins mais elevados, não fim em si mesmo,
concepção que percorreria toda a história ocidental, apesar da ideia do rei filósofo nunca ter
sido reproduzida na prática ou defendida por outros pensadores e movimento políticos
(ARENDT, 2002, p. 169).
A tradicional aversão à democracia, que será a pedra fundamental do pensamento
político ocidental, tem início com o julgamento, condenação e morte de Sócrates e o
consequente desencantamento de Platão com a vida na pólis. Na avaliação equivocada do auto
de acusação, Sócrates estaria afastando os cidadãos da vida política, “tornando-os
desajustados, ou seja, tão vinculados à preocupação com a verdade filosófica independente
dos assuntos humanos que se tornavam alheios à ocupação para com o instável e
filosófica parece não estar fazendo absolutamente nada no mundo enquanto abrigo e assunto
de homens plurais.
No entanto, a preocupação de Sócrates era com a relevância da atividade do
pensamento para o cuidado com esse mundo instaurado pela pólis, cada vez mais ameaçado
pelo profundo acirramento da vida egoística que tornava a política competição dogmática de
todos contra todos (ARENDT, 2002, p. 99). Pelo diálogo do pensamento, Sócrates não
pretendia que os homens falassem definitivamente a verdade, mas chegassem a falar de
verdade, revelar a doxa em sua verdade própria. Assim, o propósito socrático é aprimorar o
cidadão para a vida na pólis, ou seja, torná-lo verdadeiro ao expor sua opinião. A discussão
pode aprimorar os valores e os princípios pelos quais os cidadãos agem, julgam e se
conduzem na vida política. “Sócrates parece ter acreditado que a função política do filósofo
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contingencial ‘bem humano’” (ARENDT, 2002, p. 95). Do ponto de vista político a atividade
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era a de ajudar a estabelecer esse tipo de mundo comum, constituído sobre a compreensão da
amizade, em que nenhum governo é necessário” (ARENDT, 2002, p. 100). Fazendo da
filosofia o exame incessante de si próprio e dos outros, Sócrates entrou em conflito com os
mestres da retórica que dominavam a democracia ateniense. Esse conflito nos dá o
testemunho decisivo sobre a periculosidade do ensinamento socrático para os que escondiam
suas intenções através do discurso, tendo em vista que a maiêutica revela a precariedade dos
argumentos vencedores assim como aponta para a infinitude do conhecimento.
O embate entre política e filosofia, iniciado com a rápida decadência das virtudes
democráticas na pólis e intensificado com o julgamento de Sócrates, terminou com a derrota
da filosofia no tribunal ateniense e as conclusões de Platão a respeito da esfera dos “pequenos
assuntos humanos” (ALVES NETO, 2009, p. 111). A reação platônica teve como impulso o
profundo desprezo e radical indiferença com relação aos assuntos públicos. Considerou que
todos que vivem para a filosofia deveriam nutrir a apolitia que os conduziria a proteger-se das
suspeitas e hostilidades provenientes do lado público do mundo. Desde então, a única
aspiração filosófica em relação aos negócios públicos era a de que a pólis deixasse os
filósofos em paz, e a política fosse organizada de tal modo que encontrasse um princípio
substituto para a ação e para a persuasão. Tal princípio não poderia ser assegurado senão pela
autoridade coercitiva da verdade e pelo modo de vida daqueles que contemplam.
Recusando radicalmente a doxa e propondo a episteme filosófica, Platão procura uma
forma para o pensamento que seja o juiz de todos os discursos, pois nos faz calar toda paixão
(ARENDT, 2000, p. 149). O discurso que cada pessoa poderia receber como universal e
tomar por critério da sua argumentação e, portanto, da sua conduta na pólis. Por meio da
persuasiva. Esse juiz justifica, legitima, fundamenta o que somos e o que dizemos, enfim, nos
dá razão, pois diz o que é tal como é (ARENDT, 2001, p. 233).
Uma vez criado o abismo entre pensar e agir, o primeiro foi transformado naquele
que, contemplando as ideias, sabe o que deve ser feito e, assim, dá ordens, enquanto o
segundo se tornou aquele que executa e obedece ao que lhe foi ordenado. “Platão foi o
primeiro a introduzir, em lugar do antigo desdobramento da ação em começo e realização, a
divisão entre os que sabem e não agem e os que agem e não sabem, de sorte que saber o que
fazer e fazê-lo tornam-se dois desempenhos totalmente diferentes” (ARENDT, 2001, p. 235).
Os que pensam ou contemplam as ideias estão dispensados da ação, e os que agem estão
desvinculados do pensamento, como os escravos executam as ordens do senhor sem precisar
saber as razões, visto que o senhor que precise argumentar com seu escravo adentra o domínio
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dialética, os cidadãos possuem dentro de si o juiz que os liberta das paixões e de toda adesão
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igualitário da persuasão. Esse vínculo do saber com o governo, a confusão entre ação
obediência e execução de ordens prevaleceu desde então sobre a tradição do pensamento
político ocidental.
Segundo Hannah Arendt (2000, p. 192), a posterior supremacia da preocupação
contemplativa sobre a vida ativa ou sobre a esfera dos afazeres humanos se deu, em parte,
através da queda do Império Romano (revelando que nenhuma obra de mãos mortais pode ser
imortal) e, de outra parte, da promoção do evangelho cristão (pregando a vida individual
eterna) à posição de religião exclusiva da humanidade ocidental. Esses eventos tornaram
desnecessária qualquer busca de imortalidade neste mundo. Assim, a glória através de grandes
feitos, outrora fonte e centro da vita activa, foi rebaixada definitivamente como serva da vida
contemplativa, ou seja, secundária e subalterna com relação ao repouso dos afazeres humanos.
A partir do desencantamento platônico com o lado público do mundo, a esfera dos
assuntos humanos será compreendida, quer como a dominação do homem pelo homem
expressa na relação mando e obediência, quer como fardo ou mal necessário. A filosofia
política se definirá como a busca de proteção contra as “calamidades da ação”, através da
emancipação de alguma atividade supostamente mais elevada em relação à política, o que
acaba degradando a dignidade própria da ação ou transformando-a em meio para outros fins:
na antiguidade, a segurança do modo contemplativo; na era medieval, a salvação da alma; na
modernidade, o progresso das forças produtivas da sociedade (ALVES NETO, 2009, p. 128).
Em sequência, Epiteto herda e radicaliza mais ainda o repúdio a realidade mundana,
divorciando definitivamente a política da noção de liberdade (ARENDT, 2000, p. 193). No
seu entendimento, o homem pode ser escravo do mundo e ainda livre na confortável quietude
autorizado pelo próprio eu. Saber viver seria erguer uma fortaleza que protegesse o eu do
mundo, porque fora da interioridade o homem é sempre vítima de coerção que limita o que ele
quer. Esse pensamento é claramente antagônico com as noções romanas de liberdade que
pregava a necessidade de dominar outros povos e ter lugar no mundo por meio da propriedade
e do poder. A morada erguida por Epiteto nada mais é que resposta ao esfacelamento dos
ideais romanos de glória e cidadania logo após a derrota das virtudes republicanas.
A filosofia cristã incorporou definitivamente a liberdade como problema filosófico a
ser debatido pelo diálogo silencioso do eu consigo mesmo. Livre-arbítrio e liberdade tornamse mesma coisa, ocorrendo exclusivamente fora do relacionamento com outros homens,
vivenciada no absoluto isolamento. No embate interno travado em cada espírito, a liberdade
só se consuma quando querer e poder coincidem. Esse diálogo silencioso foi primeiro descrito
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da liberdade interna, da qual dispomos como queremos e ninguém pode interferir senão
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por Sócrates, definido como o estar só, caracterizado pelo pensamento totalmente reflexivo e
introspectivo. Contudo, na doutrina cristã, a questão da vontade será a preocupação central
dos homens de deus, e para chegar à revelação divina a política tem como único papel manter
as instituições religiosas.
Nos ensinamento de Jesus Cristo, a bondade nunca deve ser revelada, tornando
desnecessário o uso da palavra e a revelação de um quem. Ser visto ou ouvido gera o brilho
exterior próprio da ação política que transforma a santidade em hipocrisia. O recolhimento era
o objetivo das instituições religiosas na Idade Média, daí os assuntos comuns estarem
subordinados inteiramente ao modo de vida contemplativo.
Desta maneira, a política cristã se defrontou com duas tarefas: assegurar que o
espaço não político onde se reúnem os fiéis esteja a salvo da influência externa; impedir que o
local de reunião se convertesse em lugar de exibição e acabasse transformando a Igreja em
mais outro poder secular. O catolicismo precisava da política para manter-se na terra e
afirmar-se no mundo, isto é, como Igreja visível, em contraste com a Igreja invisível cuja
existência, sendo somente uma questão de fé, era inteiramente intocada pela política
(ARENDT, 2002, p. 199). Com essa crença no além, cujas alegrias se anunciam nos deleites
da contemplação, o cristianismo manteve a antiga hierarquia fundada por Platão que submetia
a vita activa ao império de leis naturais extramundanas.
Já na teoria liberal moderna, liberdade é estar livre da política, dispensando o homem
da participação na administração pública para cuidar de seus assuntos particulares (ARENDT,
2002, p. 141). O governo deve garantir o máximo de segurança para que os seus cidadãos
preocupem-se exclusivamente com a esfera privada, deixando todas as decisões politicamente
desenvolvimento do processo vital para toda a sociedade. De acordo com o liberalismo,
liberdade é desocupar ao máximo o espaço político para os indivíduos dedicarem-se a outras
atividades aparentemente não políticas, desta forma, conquistar uma possível liberdade da
política, em outras palavras, “quanto menos política mais liberdade” (ARENDT, 2000, p.
196). Essa concepção é oriunda dos séculos XVII e XVIII que identificaram a liberdade
política com segurança, como mecanismo para a garantia do processo vital, dos interesses da
sociedade e dos indivíduos. Qualquer que seja a relação entre cidadão e estado, os direitos
civis devem assegurar a manutenção da vida e da propriedade, não possuindo o poder público
outra finalidade. O objetivo do liberalismo, através do sistema constitucional, é limitar ao
máximo a atuação do governo para que a liberdade seja alcançada exclusivamente na esfera
privada.
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relevantes nas mãos do Estado mantenedor da segurança dos direitos civis e do
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Apesar de reconhecerem o caráter artificioso da política, criado por homens com a
finalidade de instaurar o mundo capaz de preservar seus feitos e palavras, os contratualistas
modernos perguntaram-se para que servia a política e colocaram os assuntos humanos
novamente a serviço de algum princípio extra político, por exemplo, para Hobbes (2003, p.
188) a política deve ser instituída para assegurar a existência pacífica e prevenir a morte
violenta. Concebe autonomia do político, porém, a ordem social deve ser o produto da decisão
coletiva em nome de algo mais elevado que ela mesma. Por outro lado, Montesquieu
questiona o conceito de liberdade dos cristãos e dos filósofos ao desvencilhar a liberdade
política da liberdade filosófica. A primeira consiste em poder fazer o que se deve querer
porque o agente não é chamado de livre quando lhe falta a capacidade para fazer, pouco
importando se o constrangimento é provocado por circunstâncias exteriores ou interiores
(ARENDT, 2000, p. 209).
4 REBELIÃO CONTRA A TRADIÇÃO DA FILOSOFIA POLÍTICA
Somente com as mudanças econômicas, políticas e científicas ocorridas na
civilização ocidental no século XIX, a partir mais especificamente da Revolução Industrial, a
humanidade começa a questionar os referenciais tradicionais diante da crescente importância
da ciência ativa sobre a razão contemplativa. A realidade começa a ser moldada pelas
mutáveis necessidades do homem moderno e do crescimento da importância das relações
humanas na sociedade.
metafísicos que esvaziaram o significado de seus próprios conceitos. Para esta queda
colaboraram a exaltação feita por Marx (ARENDT, 2000, p. 50) da ação em substituição a
contemplação e o surgimento do niilismo através do esgotamento da dicotomia entre o mundo
sensível e o suprassensível percebida por Nietzsche (ARENDT, 2000, p. 54). Tais opiniões
têm a força de revolta contra a fuga dos assuntos humanos cotidianos presente na história da
filosofia desde “A República” de Platão, passando pelo cristianismo e chegando às teorias
políticas modernas. Essas rebeliões buscaram minar a dicotomia pensamento-experiência
perguntando qual aptidão é naturalmente humana, no entanto, sem erigir novos sistemas
filosóficos que aprisionassem o significado do mundo.
Apesar do abalo feito por Marx e Nietzsche, eles não conseguiram estabelecer novas
noções que viessem romper definitivamente com os referencias da tradição. Marx não faz
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O despertar da ilusão acontece quando se percebe a ineficácia dos modelos
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diferença entre as atividades da vita activa, a saber, o labor, o trabalho e a ação, o que para
Arendt (2001, p. 98) é um absurdo, pois a produção para a manutenção da espécie é somente
o próprio labor, ao contrário da ação que consiste na condição de pluralidade dos seres
humanos. Marx acaba submetendo a ação aos mandamentos da necessidade porque na
sociedade projetada por ele o espaço público tem fim com a abolição do trabalho e as pessoas
passam a cuidar somente de suas vidas privadas, deixando de agir e falar (ARENDT, 2001, p.
100). Como é fácil observar, Marx continua com a visão do capitalismo em valorizar o
trabalho como meio de realização da humanidade. Outra afirmação muito controversa de
Marx é identificar a violência como sendo a parteira da história, negando a liberdade política
ao considerar os homens incapazes de serem persuadidos pela palavra (ARENDT, 2000, p.
50). Já o erro de Nietzsche consiste em achar que a simples inversão do idealismo pudesse
levar ao retorno das formas pré-platônicas de pensamento, o que resgataria o espírito da
Grécia Arcaica.
Após o desafio feito à tradição, depois de vários séculos de isolamento, finalmente a
preocupação da teoria política pôde retornar por inteiro a sua finalidade original: garantir a
plena liberdade dentro do mundo político. E essa liberdade aparece somente quando a ação é
livre da direção do intelecto e dos ditames da vontade. Em outras palavras, isso quer dizer que
a ação tem a capacidade de transcender os limites impostos pela razão ordenadora, porque
liberdade é justamente negá-los. O diálogo consigo mesmo não revela a liberdade, apenas
pode fazê-lo a experiência humana, que em nenhuma hipótese deve estar inteiramente
submetida ao diálogo silencioso que reside no pensamento. Somente existe o mundo dos
homens quando a verdade é fruto do compartilhamento de opiniões de todos os pontos de
ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação” (ARENDT, 2000, p. 41).
Em toda a história do pensamento ocidental a liberdade interior, esse espaço íntimo
no qual os homens podem fugir da coerção externa, antagonizou com a liberdade política, que
é experimentada em todo o seu vigor no mundo dos fenômenos e das coisas humanas. A fuga
do mundo é o evento que na história esteve sempre presente quando a liberdade é
repentinamente subtraída, provocando uma sensação de afastamento do mundo. Como
consequência, a vida ativa, vivenciada entre os homens, é logo substituída pela vida
contemplativa, onde a solidão é o único caminho para escapar da ausência de significado da
vivência fenomênica.
Para que a atividade política seja uma experiência plena de liberdade é preciso
estabelecer claramente as condições para que exista o espaço de convivência entre os iguais e
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vista. “O pensamento emerge dos incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer
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para que os mesmos possam ser ouvidos por todos. Afirmar a pluralidade é a chave para que o
mundo não caia novamente nas trevas de representações sistemáticas provenientes da razão.
Apesar de todas as tentativas em atribuir ao pensamento o local de origem da liberdade, na
antiguidade greco-romana era entendida como o estado do homem livre que o capacitava
mover-se, a afastar-se de casa, sair para o mundo e encontrar-se com outras pessoas em
palavras e ações. Antes, era preciso liberar-se das necessidades da vida, o que não implica
necessariamente na conquista da liberdade. A liberdade exige a companhia de outros homens
iguais e de um local para ao aparecimento do ato e do discurso, que na antiguidade grega era
chamado pólis e em Roma presenciado pelas assembleias. Nestas organizações
eminentemente políticas, as palavras revelavam pessoas, feitos grandiosos eram vistos e
enaltecidos, eventos relembrados e transformados em histórias. Tudo dentro deste espaço era
político, mesmo quando não era produto direto da ação. Esse local possuía a aura que
transforma o poder, constituído pela união de homens diferentes, porém iguais, em
surgimento e permanência da novidade.
A pólis era a construção edificada tanto nos sentimentos dos homens como
espacialmente. Deixá-la significava não só perder os laços com a terra natal e suas
representações culturais, mas, sobretudo, o espaço concreto para o exercício da liberdade
entre homens iguais e libertos do fardo da necessidade. Em oposição à esfera privada,
marcada pela coação do processo vital, onde tudo estava organizado para manter o homem
seguro, o espaço público era o local no qual quem adentrasse estava disposto a arriscar sua
vida para fazer surgir o novo. A liberdade precisa do âmbito público politicamente assegurado
para que ela possa aparecer, necessita do espaço concreto onde possa surgir. Deste modo, nem
organização societária sem qualquer preocupação em fundar instituições duradouras que
garantam a estabilidade do mundo e a presença constante da novidade.
Para ilustrar a identidade entre liberdade e espaço público, Arendt (2000, p. 200)
utiliza uma analogia com as artes de realização – dançarinos, atores, músicos. Para a arte e a
política, é necessário o aparecimento dos atores diante dos outros, requerendo uma dimensão
pública para executar a obra. Essa dimensão estava presente nas sociedades grega e romana
constituindo a própria essência da vida pública.
Não é de se esperar que a política produza qualquer resultado tangível, ela não reifica
o pensamento humano e não possui existência própria. As instituições políticas precisam de
homens em constante compartilhamento e sua manutenção é mantida pela própria ação, sem
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sempre onde os homens convivem há um organismo político. Existem muitas formas de
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recorrer a objetivos fora do ato de agir e falar. A total dependência de atos posteriores para
manter os negócios humanos caracteriza a identidade entre corpo político e ação.
Porém, a experiência recente ainda não conhece a função original da política e
tampouco como criar o espaço público pautado na pluralidade. Com o acontecimento mais
exemplar da história do século XX ainda ecoando em nossas mentes, a ascensão do
totalitarismo negou o respeito aos direitos básicos da dignidade dos homens com a ousada
finalidade de dominar todas as esferas da existência humana. Em nossa época, o perigo dos
preconceitos relacionados à política, tanto os originados da filosofia quanto os produzidos
pela vivência, é de acabar definitivamente com qualquer debate sobre o significado da
liberdade. A força com que os preconceitos produzem efeitos devastadores nos leva a desejar
o total desaparecimento do mundo político para assim ingressarmos na paz perpétua do
trabalho e consumo.
5 O DIREITO COMO INSTRUMENTO DEMOCRÁTICO
O debate empreendido por Hannah Arendt sobre o significado da política tem claras
consequências jurídicas, apontadas por Celso Lafer (1991, p. 223) como outra forma de
enxergar o direito que priorize o respeito à participação ativa do cidadão na estrutura política.
Os regimes totalitários revelaram as fragilidades e os paradoxos decorrentes do modo como os
direitos humanos foram formulados em seu momento originário, a saber, na Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Este documento surge da crença de que o homem
conjunto. Para Agamben (2002, p. 14), a naturalização dos direitos políticos representa a
moderna indeterminação biopolítica entre as figuras do homem natural e do cidadão, confusão
que resulta, no mundo moderno, no predomínio da ideia de que ser ativo politicamente é ter
garantida a mera existência biológica por meio dos direitos civis.
A reflexão arendtiana desafia o entendimento por muitos séculos difundido de que a
existência de leis e sistemas jurídicos garante per si o aparecimento da atividade política. Este
modo de encarar a norma jurídica persiste até nosso tempo através de autores como Jürgen
Habermas e John Rawls, os principais representantes do pensamento despolitizado que tenta
subsumir o político ao aparelho jurídico (ALVES NETO, 2009, p. 187). No entanto, Hannah
Arendt não é uma crítica intransigente do direito nem o considera mera instância formal do
encobrimento e legitimação das desigualdades sociais, tampouco reduz à expressão de
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é um ser naturalmente extraordinário e realiza sua potencialidade através da ação em
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violência instauradora do poder soberano. Também não acredita no parâmetro liberal de
decisão judicial que visa domesticar e normatizar a vida política através do uso de categorias
jurídicas.
Pelo posicionamento democrático radical arendtiano (LAFER, 1991, p. 217), a
política é autônoma em relação ao direito. Na verdade, são duas atividades completamente
diferentes sendo que o procedimento de uma não é aplicável na outra. Embora distintas, o
ordenamento jurídico é um importante fator de estabilização e criação de instituições
auxiliares da atividade política, sendo o registro dos acordos e decisões da comunidade.
Todavia, os atos e palavras excedem os limites impostos pelo ordenamento jurídico, pois o
objetivo da ação é criar a novidade que sempre é imprevisível desde sua origem. Ao defender
a posição democrática radical, Arendt pretende rechaçar a ambição positivista de regrar e
codificar a criatividade das interações humanas através do engessamento e esgotamento da
atividade política no mundo moderno (LAFER, 1991, p. 226).
É necessário compreender que Arendt repudia a democracia representativa, onde
impera o encobrimento das intenções com a palavra, a administração do processo vital das
massas e o perigo, cada vez mais presente, do governo altamente burocratizado, facilitado
principalmente pelo direito positivista (AGUIAR, 2009, p. 93). Em contraposição a este
modelo de organização administrativa utilitária, as revoluções e as resistências demonstraram
a incrível força da ação livre e espontânea após a queda de instituições pautadas no controle
autoritário do povo.
Nos meados do século XX, a socialdemocracia aproveita o medo e a desconfiança
crescente das massas com relação à política, decorrentes das grandes guerras mundiais e da
máquina administrativa capaz de resolver burocraticamente os conflitos políticos e conferir
estabilidade máxima às relações humanas através do sistema jurídico, cuja finalidade é
garantir eficiência e segurança contra a instabilidade do debate na esfera pública. É a tentativa
de superar a frustração resultante da corrupção cada vez maior da democracia representativa
apelando somente para o aspecto técnico do sistema legal.
Porém, a tensão entre direito e política nunca poderá ser solucionada porque tem
sede na oposição clássica entre poder constituído e poder constituinte. Trata-se de reconhecer
que o princípio da estabilidade jurídica e o princípio da inovação da atividade política sempre
serão forças opostas onde quer que exista liberdade. O poder constituído, por mais que seu
sentido original seja regrar e delimitar o campo de inovação, jamais deterá o espaço da ação
de maneira definitiva.
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ameaça da destruição global pelo uso de armas atômicas, para transformar o Estado numa
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Nenhuma civilização seria possível sem a força estabilizadora do direito. Nada de
extraordinário surgiria no mundo sem a energia renovadora da ação política. Entre os fatores
estabilizantes da sociedade (cultura, artes, monumentos), são principalmente as leis que
perpetuam nossa vida no mundo e o modo como nos relacionamos com os outros através de
costumes herdados dos antepassados. As regras de civilidade, indispensáveis na esfera
pública, são substanciadas no sistema jurídico, regulando o modo de interação da pluralidade,
além de garantir a permanência dos acordos dos homens através do tempo.
Do mesmo modo que os gregos e os romanos antigos, Arendt (LAFER, 1991, p. 213)
pensa o ordenamento legal da comunidade política como o fator estabilizador da fragilidade
dos acordos e promessas humanas e da própria imprevisibilidade que caracteriza o âmbito das
relações políticas tecidas pela pluralidade de agentes. As leis devem garantir o mínimo de
estabilidade e canais de comunicação que permitam o surgimento da novidade no mundo.
Apesar das instituições jurídicas constituírem fronteiras para a ação política, sua finalidade
não é conter a potencialidade humana, mas criar o cenário onde os homens e mulheres livres
possam brilhar na presença uns dos outros. As leis e o direito devem circunscrever cada novo
começo trazido ao mundo, assegurando o espaço de liberdade ao mesmo tempo em que
impõem limites à criatividade humana para amoldá-la à continuidade temporal que une as
promessas do passado e a permanência da entidade política no futuro. Desta forma, os limites
da norma garantem um mundo capaz de durar para além da fugaz duração da presente
geração, impulsionando ao mesmo tempo a possibilidade da novidade.
Tornando-se herdeira da linhagem republicana que nasce com os romanos, passa por
Maquiavel e tem como grande defensor na era moderna Montesquieu, Arendt (2000, p. 199)
Portanto, as leis não são eternas e absolutas como os mandamentos divinos, nem possuem
fundamentos transcendentais, mas constituem relações criadas por homens mortais para o
trato de assuntos contingentes. Diferentes da tradição judaico-cristã, gregos e romanos antigos
não buscaram uma fonte de autoridade que estivesse situada além dos negócios humanos. A
nomos grega e a lex romana não derivam sua legitimidade de qualquer poder extraterreno,
pois foram concebidas como sendo o resultado da artificialidade convencional das instituições
políticas criadas pelo homem.
A legitimidade do poder efetivado em atos e palavras não violentos é o meio pelo
qual às leis e as instituições políticas do país consolidam o poder que reside da igualdade e
liberdade. Daí surge a diferença entre violência e poder trazida, principalmente, da vivência
republicana da antiga Roma. Enquanto que a violência sempre é questionável, a obediência
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pensa o pacto fundador da sociedade como princípio de inspiração para a ação humana.
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política é medida pelo reconhecimento das determinações legais e pelo consentimento popular
que lhes confere legitimidade. Portanto, diante da autoridade, existe a possibilidade de
aceitação ou desobediência pautada na livre convicção dos integrantes da comunidade
política. Se o dissenso não existe, deixa de haver a criação da novidade por meio da
interrupção de processos já iniciados.
Uma vez que o pacto fundante da comunidade, em outras palavras a constituição,
guarda o princípio de ação que congrega a todos na complexa teia de relações políticas e
sociais, a sanção ao crime não constitui o núcleo do direito na democracia radical. O
ordenamento jurídico consegue manter-se pela faculdade de prometer, tal como parte de uma
negociação. Arendt (2004, p. 79) interessou-se, dentro do movimento contratualista europeu,
pelo que ela chamou de versão horizontal do contrato no qual o vínculo de cada um dos
contraentes se manifesta mediante a igualdade artificiosa do acordo, primeira cláusula do
contrato social. Do lado oposto está o contrato de associação vertical, onde existe desde o
início a divisão entre governantes e governados que limitam o poder dos superiores para
garantir somente a inviolabilidade dos direitos civis, sem pretender nenhuma participação
efetiva na esfera política. Essa forma de contrato tem sobrevivido através da instância de
legitimação externa aos homens do qual se constituiria consensos capazes de dar legitimidade
ao governo de uns sobre os outros e, ao mesmo tempo, de inviabilizar as associações,
reuniões, assembleias dos cidadãos, etc. Essas verdadeiras fontes do poder efetivamente
político.
O consentimento geral aceito por cada pessoa ao vir ao mundo político através do
reconhecimento tácito da autoridade das instituições vigentes é completamente diferente do
coloca lado a lado o respeito ao pacto fundante do organismo político e a produção legislativa
derivada. Para Montesquieu isso não faz sentido porque a constituição trata dos princípios de
valor que orientam determinado corpo político, enquanto que as leis derivadas são adequações
desse espírito, mas às vezes pode destoar, no caso concreto, do princípio de ação fundamental
e nesse caso precisa ser reformado o ato legislativo (ARENDT, 2000, p. 196).
É perceptível a ligação íntima entre a postura moral reflexiva e a obediência dos
cidadãos às leis. A crise da tradição filosófica e jurídica impôs a criação de uma terceira via
para pensar a ética. A primeira, situada na tradição onto-teleológica, na qual o cerne diz
respeito ao mundo das normas estáveis, absolutas e eternas, a partir das quais a vida e os
valores são hierarquizados. A segunda, no contexto de uma ética provisória, cujo maior
representante foi Descartes, recusando-se pensar a ética em situação de crise e ainda persegue
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
consentimento dado às leis e políticas públicas específicas. A tradição constitucional moderna
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a norma estável, universal e absoluta (AGUIAR, 2009, p. 102) Nesse caso, a crise é encarada
como passageira e está relacionada ao momento de mudança de paradigma dos valores, mas
ainda busca a fundação do pensamento ético a partir de fundamentos inquestionáveis. A
terceira e última perspectiva tem como pano de fundo a crise profunda da tradição racionalista
ocidental e põe por terra a crença de que a convivência é unificada por princípios absolutos,
objetivos e eternos. Nesse âmbito, é possível pensar a ética na perspectiva das pessoas e não
da norma extramundana.
Esta ética da autonomia pode ser a solução para os impasses vividos pela crise da
autoridade e legitimidade das democracias vigentes. A possibilidade e a necessidade do
pensamento ético pautado na liberdade vivenciada concretamente resgata o homem como
sujeito capaz de falar e agir autonomamente. Somente repensando a ideia do sujeito sem os
termos da transcendência metafísica ou teórica pode a humanidade vencer as tendências
totalitárias através da superação da ideia de Bem oriunda do pensamento abstrato.
Pensar positivamente a singularização presente na ética imersa na pluralidade de
seres únicos que dividem o mundo multifacetado pelos olhos de vários espectadores e atores
requer distanciamento da tradição, refutação da visão que reduz o particular ao mal, ao
egoísmo e à imperfeição. O resgate do sentido político da ética exige a superação da ideia de
razão conceitual, objetiva, como também, abolição da perspectiva hermenêutica que interpreta
a reflexão moral como revelação de verdades eternas, universais e boas em si mesmas.
O Bem sempre foi entendido nas éticas ocidentais (AGUIAR, 2009, p. 100) como
significado objetivo e absoluto, independente das subjetividades. Assim, as escolhas recairiam
naquilo que possuísse objetivamente as qualidades do Bem. É determinado como certeza de
corrupção e imprevisibilidade da ação humana. Nesse raciocínio não há espaço para o
conflito, todas as tensões e ausências devem ter solução numa categoria superior capaz de
impor a todos o valor universal. Enquanto as outras éticas privilegiam os princípios abstratos,
a ética da singularização prioriza a possibilidade do homem agir autonomamente. Por esta
perspectiva, o agir ético não é a primazia dos valores absolutos, mas a ação e instituição do
pensamento diretamente ligado aos fenômenos do mundo que viabilize a autoconstituição dos
homens como agentes.
A saída apontada por Arendt para os homens ganharem novamente dignidade passa
pela máxima valorização da cidadania e liberdade dos indivíduos para que compartilhem suas
impressões sobre o que é justo para aquela comunidade (LAFER, 1991, p. 151). Com isso, o
sentido da política ultrapassa a mera organização de necessidades, garantindo a possibilidade
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que o arbitrário, o individual e a violência serão contidos por constituírem a essência da
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de aparição dos homens como sujeitos reconhecidos no direito de agir e falar livremente.
Deixa o Bem Comum de ser a razão dos esforços da união dos homens, conceito
fundamentado numa ideia metafísica do sistema político e jurídico, para dar lugar ao cidadão
enquanto autor direto da cidadania através da revelação da própria unicidade.
Os preconceitos que acarretam a ideia de Bem Comum e a padronização reinante nas
sociedades contemporâneas revelam os perigos da concepção do direito em homogeneizar
diferentes pessoas numa única posição valorativa de justiça. Arendt relaciona o mal das atuais
democracias ao sufocamento do singular, à impossibilidade do diálogo silencioso do eu
consigo mesmo, ao processo cada vez mais acelerado de massificação e coletivização dos
interesses. Trata-se do apagamento dos direitos do cidadão como singular para submeter todos
aos direitos coletivos impostos pela cadeia infinita da produção, descartando as pretensões
humanas que não tem relação com a sustentação da vida ou incremento do consumo.
6 CONCLUSÃO
Pode-se concluir que a reflexão de Hannah Arendt sobre o espaço público se realiza
como forma de enfrentar as dificuldades relacionadas à participação política e legitimação dos
institutos públicos a partir do fim da autoridade da tradição na modernidade, principalmente,
diante da crise originada pelas experiências totalitárias. Os problemas postos no âmbito da
legitimidade na esfera pública se mantêm atuais com as novas perspectivas da globalização,
da crise da concepção moderna de participação política e pela tendência à legitimação através
nas decisões das corporações internacionais, centralizadas e respaldadas nos padrões
midiáticos, aponta para o crescimento da violência e declínio da persuasão como mediadora
dos conflitos sociais. A falência do ideal republicano conduz à instauração de um sistema
societário em que os homens, privados de sua condição de seres capazes de agir e falar, são
considerados substituíveis como animais ou peças de alguma máquina complexa. Assim, a
reflexão sobre a política a partir dos argumentos arendtianos repensa as possibilidades de
resistência no contexto da ilegitimidade que a sociedade contemporânea experimenta com o
predomínio do econômico em detrimento do público.
A transformação da política em mera instância encarregada da administração da
sociedade é algo que preocupa Hannah Arendt em toda sua bibliografia. Trata-se de
diagnosticar o perigo em deixar os assuntos comuns nas mãos de especialistas tornando os
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do poder propagandístico. A recusa da ação política nas atuais formas societárias, baseadas
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cidadãos incompetentes para opinar sobre o que diz respeito a todos, afastando-os dos
embates públicos.
A superação da apolitia, criada pelos processos globalizantes, implica num confronto
direto com a tradição e cultura autoritária que obscureceram a legitimidade advinda da
participação direta dos cidadãos nas decisões comunitárias. O exercício do direito, tal como
foi pensado pelos romanos, conciliador a partir do pacto de igualdade, é a saída para a
reconstrução da dignidade humana por meio da edificação de espaços para a liberdade.
Por exigir o contato permanente com o outro, a pluralidade é indispensável para a
ação na esfera pública. Toda decisão política deve levar em consideração a intersubjetividade
na qual o cidadão é inserido, sem recorrer às provas ou demonstrações extramundanas para
fortalecer seu ponto de vista. Sendo de origem metafísica ou científica, a verdade não confere
respeito ao governo democrático porque está situada além do diálogo e consentimento.
Somente a ação que estimule o contato entre os homens possui legitimidade para assegurar o
espaço público onde predomine o respeito à dignidade humana, bem como, a instauração da
imortalidade dos feitos e palavras.
REFERÊNCIAS
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Hannah Arendt. São Paulo: Loyola, 2009.
Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
AGUIAR, Odílio Alves. Filosofia, Política e Ética em Hannah Arendt. Ijuí: Unijuí, 2009.
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Universitária, 2001.
______. A dignidade da política. Trad. de Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
2002.
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AGAMBEN, Giorgio. Hommo Saccer: o Poder Soberano e a Vida Nua. Trad. de Henrique
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______. Entre o Passado e o Futuro. Trad. de Mauro Almeida. São Paulo: Perspectiva,
2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
FREEDOM AND PUBLIC SPACE IN THE POLITICAL THOUGHT OF HANNAH
ARENDT
ABSTRACT
This paper presents the main reflective elements of Hannah Arendt
concerning the relationship between freedom and public space. The
dilemmas of the modern world led to the blurring of traditional
political concepts transmitted by romans and greeks. In place of the
construction of public space where free and equal men declare their
unicity in face of the plurality of agents, the technical and scientific
rationality raised production and work to the level of activities driving
participation which the law respect is a result of the consolidation of
people’s power.
Keywords: Freedom. Public space. Hannah Arendt.
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of social life. The solution is rethink the Law as instrument of political
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Recebido 30 ago. 2011
Aceito 28 out. 2011
AUTORIDADE E FUNDAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO: UMA ANÁLISE
ARENDTIANA
Ana Luiza de Morais Rodrigues
RESUMO
O presente artigo procura analisar de que modo Santo Agostinho
concebe a incorporação da autoridade, conceito originário dos
romanos no domínio público, pela Igreja Católica. Tal tema será aqui
desenvolvido tendo por base o aparato reflexivo e conceitual
arendtiano. Nosso principal objetivo é demonstrar de que forma a
política perdeu, com a apropriação do conceito de autoridade pela
Igreja Católica, o elemento capaz de lhe conferir estabilidade e
durabilidade.
1 INTRODUÇÃO
Santo Agostinho e Hannah Arendt envolveram-se profundamente com as
conturbações de seu tempo e dedicaram suas reflexões ao desmoronamento do modelo social
e político que conheciam, de maneira que suas obras só poderão ser compreendidas se
investigados os momentos históricos em que estavam inseridos.
A despeito da evidente riqueza das obras dos dois filósofos e das amplas
possibilidades de investigação sobre suas relações, trataremos, no presente artigo,
especificamente sobre a incorporação da autoridade – antes vivenciada no domínio público –

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Monitora de Introdução ao
Estudo do Direito. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9437055702841539>.
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Palavras-chave: Autoridade. Igreja Cristã. Tradição. Política.
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pela Igreja Católica e de que maneira a retirada dessa herança romana fez com que a política
perdesse muito do elemento capaz de lhe conferir estabilidade e durabilidade.
Tal temática é especialmente relevante nos dias atuais, pois estamos assistindo a
perda do interesse por tudo aquilo se refere à esfera política. A atividade política é, no geral,
vista como abjeta e desmerecedora de atenção. Evidentemente, em nosso país, sobram razões
para desacreditar dos políticos e confundir política com o que chamamos de “politicagem”.
Contudo, é importante atentar para variadas obras filosóficas que, além perscrutarem
as causas para tal abordagem da ação política, ainda tentam afirmar sua dignidade por meio
do resgate de experiências verdadeiramente políticas e o esclarecimento de conceitos
históricos distorcidos. Nesse sentido é a obra de Hannah Arendt, profundamente empenhada
na missão de investigar de que modo chegamos ao atual estágio de rejeição por tudo o que é
público.
O trabalho que se segue não tem o intuito de fazer todo o resgate histórico-filosófico
da perda da autoridade – entendida por nós enquanto estabilidade, durabilidade e, porque não,
respeitabilidade – da política, mas persevera nesse intento tendo como objeto específico de
estudo a obra de Santo Agostinho e a apropriação do conceito de autoridade, extraído da
experiência romana, pela Igreja Católica.
Além disso, as linhas que se seguem estarão permeadas de reflexões a respeito do
modo com que a tradição do pensamento político ocidental subsumiu o “mundo” dos homens,
únicos e plurais, ao “mundo das ideias”. Dessa forma, a ação e fala, essenciais ao homem
público, tornaram-se atividades acessórias diante da supervalorização do pensamento
2 BREVES NOTAS SOBRE HANNAH ARENDT E SANTO AGOSTINHO
A despeito do fato de que Agostinho jamais conheceu uma efetiva “ruptura” e “fim
da tradição” – encontrando-se, pelo contrário, imerso em um contexto histórico no qual a
tríade romana (Religião, Autoridade e Tradição) se mantinha intacta pelos dogmas cristãos
que ele próprio ajudou a construir – sua figura surge no contexto de desagregação do Império
Romano resultante de sucessivas investidas dos Povos Germânicos, tidos como bárbaros, e da
própria falência do sistema governamental e jurídico romano. A missão do bispo de Hipona,
que iniciou carreira eclesial como monge, era desenvolver uma produção doutrinária em
defesa da fé cristã, ameaçada por sucessivas heresias e ingerências pagãs.
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metafísico, que teve seus principais expoentes de Platão a Marx.
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FIDΣS
Com “A Cidade de Deus”, Santo Agostinho apresenta-nos a primeira interpretação
cristã da história. Nessa obra, nos é introduzido o conflito permanente entre a Cidade de Deus
e a Cidade dos Homens. A Cidade de Deus, realidade mística, “tem sua justiça, suas leis
próprias. Está prometida para durar e ser vitoriosa eternamente” (VILLEY, 2005, p. 83). O
verdadeiro conhecimento, oriundo da Cidade de Deus, só poderá ser alcançado através da
introspecção e da experiência interna – atividade contemplativa que remete claramente a
Platão. Pelos aspectos acima, é fácil perceber que a Filosofia de Santo Agostinho foi
amplamente influenciada pelo platonismo, como veremos a seguir. A Cidade dos Homens,
por sua vez, como se supõe, é imperfeita e perecível, maculada pelo pecado. A busca de Santo
Agostinho era, pois, pela a transposição da Cidade de Deus, realizada sob o plano divino da
Providência, sobre a Cidade Terrestre, a fim de que seu povo fosse salvo das heresias e do
desvirtuamento dos valores cristãos. A luta do bispo de Hipona consistia, portanto, na
“construção de uma Cidade de Deus, de uma sociedade que se funda no amor a Deus,
mediado por Cristo, que veio a mundo para entregá-lo aos homens e esperar que estes sigam,
pelo amor e pela fé, o projeto adiante” (LIMA, 2007, p. 151, grifos nossos).
Hannah Arendt também sentiu na pele as transformações de seu tempo. Judia, Arendt
presenciou a ascensão de regimes totalitários com profundo assombro. Nas palavras de
Rodrigo Ribeiro (2009, p.17): “A inquietação que desencadeia o empenho do pensamento
arendtiano é o desconforto radical em viver as condições espirituais e políticas do seu próprio
tempo”. Por obra do totalitarismo, Arendt assistiu ao que podemos chamar de golpe definitivo
na “desagregação do mundo comum” e nos pilares da tradição do pensamento ocidental. O
ineditismo totalitário, somado às intensas e numerosas transformações políticas e da própria
tradicionais – responsável por promover uma profunda alienação do mundo comum e humano
e um obscurecimento da dignidade própria da política – não servia mais. A autora se propõe,
então, a fazer um resgate minucioso de conceitos distorcidos e confusos em nosso tempo, tais
como “autoridade”, “violência”, “poder”, “ação”, etc.
Volto a repetir, com o objetivo de prevenir qualquer imprecisão doutrinária, que
Santo Agostinho não presenciou o fim da tradição e a sua ruptura (que só foi deflagrada com
o totalitarismo). No entanto, não podemos deixar de perceber que Santo Agostinho e Hannah
Arendt situaram-se ambos em espaços históricos de transição, de modo que suas reflexões
podem, sim, dialogar em variados aspectos. Refletindo sobre a problemática da autoridade,
cujo conceito romano original foi desvirtuado, Arendt viu em Santo Agostinho o papel de
ligação às tradições romanas, transportando o conceito de autoridade para a Igreja Católica e
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esfera mundana ocorridas no século XX, deixaram claro que o quadro de referências
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separando-o do poder, conceito diverso, que deveria ser exercido na esfera política. Nessa
perspectiva, Arendt vê Santo Agostinho como “o primeiro pensador cristão que soube juntar
‘dois mundos diferentes’ – o greco-romano (filosófico) e o judaico-cristão (religioso)”
(HORNICH, 2009, p. 25).
3 O LEGADO ROMANO: REFLEXÕES ACERCA DO PODER E AUTORIDADE EM
HANNAH ARENDT
Para Hannah Arendt (2007, p.143), a palavra e o conceito de autoridade têm origem
em Roma e a língua e história gregas não mostram qualquer experiência nesse sentido, mesmo
com os esforços de Platão e Aristóteles em introduzirem algo similar à autoridade através de
suas filosofias. A esse respeito, Hannah Arendt (2007, p. 144) afirma:
Devido a essa ausência de uma política válida em que se baseassem a reivindicação
de um governo autoritário, tanto Platão como Aristóteles, embora de modo bem
diferente, foram obrigados a fiar-se em exemplos das relações humanas extraídos da
administração doméstica e da vida familiar grega, onde o chefe de família governava
como um “déspota”.
O que tornava o déspota familiar inapto para exemplo de autoridade era exatamente
seu poder para exercer coerção, já que, segundo a própria autora, “autoridade implica uma
obediência na qual os homens retêm sua liberdade” (ARENDT, 2007, p. 144), fato
podiam ser chamados de homem livres, já que eles não interagiam entre iguais - o primeiro
circulava entre escravos e o último governava sobre súditos.
Apesar de reconhecer a importância da filosofia política grega, Hannah Arendt
acredita que, talvez, ela não tivesse alcançado tão expressiva relevância caso os romanos não
tivessem decidido incorporá-la e reconhecê-la como autoridade suprema em todas as matérias
do conhecimento e da especulação filosófica (ARENDT, 2007, p. 162). Desse modo, é
inegável que a autoridade e a tradição gregas desempenharam na República Romana papel
muito importante – dadas, é claro, suas devidas particularidades e autenticidades.
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incompatível com a própria natureza da coerção. Assim, nem o déspota nem o tirano, o
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Os romanos estavam fortemente vinculados a seu solo e a sua pátria. Para eles,
participar da política significava, antes de qualquer coisa, participar da fundação da cidade de
Roma – fato tido como o central, decisivo e irrepetível início de toda sua história.
Em Roma, religião e atividade política podiam ser tidas como praticamente idênticas,
já que a primeira, ao modelo da última, significava re-ligare, isto é, ligar-se às raízes do
processo de fundação. É por essa razão que Arendt afirma que “também os deuses têm mais
autoridade entre, que poder sobre, os homens” (ARENDT, 2007, p. 165).
A palavra auctoritas deriva do verbo augere, que significa “aumentar”. Aquilo o que
a autoridade aumenta, portanto, é a fundação. Os anciãos, o Senado e os patres eram os
detentores da autoridade, pois estavam temporalmente mais próximos daqueles que haviam
lançado a pedra angular da fundação, isto é, os antepassados, conhecidos como maiores. Por
isso é interessante quando a perspectiva arendtiana de que para os romanos o crescimento se
dava no sentido do passado, enquanto para nós, atualmente, o crescimento ocorre para o
futuro. Explicitando esse raciocínio Hannah Arendt (2007, p. 164) assevera que “a autoridade,
em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era
menos presente na vida real da cidade do que o poder e a força dos vivos”.
Aliás, a característica mais premente dos que detêm autoridade é não possuir poder,
já que o poder, para Arendt - em linhas gerais - nasce de um acordo de vontades construído a
partir do encontro dos homens da esfera pública, enquanto a autoridade é aquilo que se
respeita sem necessidade de um consenso. Desse modo, os feitos e os costumes dos
antepassados serão sempre considerados modelos autoritários a serem seguidos, já que não
dependem de uma legitimação política, uma vez que emanam, simplesmente, da autoridade.
religião. Assim, a autoridade estaria incólume enquanto a tradição se mantivesse intacta e agir
sem autoridade e tradição significava agir a partir de padrões e modelos aceitos e consagrados
pelo tempo.
Apenas para esclarecer melhor, tradição – do latim traditio, tradere – revela-nos um
sentido de entrega. Entrega, por sua vez, denota doação, transmissão. Tradição é justamente o
fio que conecta e entrelaça as forças do passado e do futuro, permitindo seu encontro no
presente.
A continuidade da tríade romana - Religião, Tradição e Autoridade - passou por uma
prova de resistência com o fim do Império Romano e foi vitoriosa quando a herança política e
espiritual de Roma passou à Igreja Cristã, capaz, inclusive, de fazer da morte e ressurreição de
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A autoridade da fundação se ligava às gerações atuais através da tradição e da
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Cristo a pedra angular de uma nova fundação. A esse respeito, é essencial a transcrição das
palavras de Hannah Arendt (2007 p. 168) quando diz que:
A base da Igreja como uma comunidade de crentes e uma instituição pública não era
mais agora a fé crista na ressureição (embora essa fé permanecesse como seu
conteúdo), ou a obediência hebraica nos mandamentos de Deus, mas sim o
testemunho da vida, do nascimento, morte e ressureição de Cristo como um
acontecimento historicamente registrado.
Desse modo, é inegável que o espírito da fundação romana não deixou de existir,
mas foi perpetuado pela Igreja Cristã de forma completamente nova. O acontecimento
fundamental, aqui, não é mais o início de uma civilização fadada à perenidade, como
acreditavam os romanos acerca de seu Império, mas o começo de uma fé capaz de iniciar uma
tradição religiosa extremamente imbuída de autoridade.
4 SANTO AGOSTINHO E A RETOMADA DA AUTORIDADE
Na acepção antiga da palavra, religião significa re-ligare, isto é, ligação entre as
relações atuais e o processo de fundação. O resgate da ideia de fundação romana através do
estabelecimento da morte e ressureição de Cristo como pedra angular de uma comunidade de
crentes foi, para Arendt, fator decisivo para o “milagre” da permanência do espírito romano.
Não por acaso, ela é tentada a afirmar que a fé cristã tornou-se uma ‘religião’, não apenas no
A esse respeito, Hannah Arendt destaca a importância de Agostinho no sentido de,
com a base de sua filosofia Sedes animi est in memoria (“a sede do espírito está na
memória”), estabelecer uma articulação da Igreja Cristã com o legado romano. Explica
Arendt (2008, p. 97):
Sua pedra fundamental [da Igreja Cristã] veio a ser, e assim permaneceu desde
então, não a mera fé cristã ou a obediência judaica à lei divina, mas o testemunho
dado pelos autores, dos quais deriva a sua autoridade e que ao mesmo tempo
transmite (tradere) como tradição de geração em geração [grifos nossos]
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acepção cristã da palavra, como também no sentido antigo (ARENDT, 2007, p.168).
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Santo Agostinho foi, portanto, talvez o mais importante desses autores, para os quais
a verdadeira felicidade só poderá ser alcançada quando o homem remete-se ao Criador, ao
momento da criação e, portanto, ao passado.
Assim, para Agostinho, a felicidade é possível a partir do momento em que se
rememora a fonte da existência, não apenas individual, mas de toda a humanidade, a qual tem
sua origem em Adão, capaz de pôr todos os homens em uma situação de igualdade originária.
Remeter-se a Adão, contudo, é ligar-se ao pecado e à cobiça pela árvore proibida, de maneira
que a origem do homem, nesse caso, o levaria não à felicidade, mas ao sofrimento. Melhor
seria, então, “rememorar a origem, principalmente a segunda origem, em Cristo, aceitando
assim a graça divina” (CARNEIRO JÚNIOR, 2007, p. 39) como única maneira de se alcançar
a felicidade.
Ora, enquanto cidadão Romano, Agostinho já era imbuído da reverência pela
fundação. Não por acaso, no prefácio de “A Cidade de Deus”, editado pela Editora das
Américas, temos que Agostinho “admira a ordem e a paz que Roma trouxe ao mundo. Seu
coração se despedaça quando ouve falar da queda da Cidade Eterna” (BARDY citado por
AZZI, 1961, p. 18).
Foi exatamente essa ordem e paz, oriundas da autoridade de Roma, que Agostinho
buscou transportar para a Igreja Cristã através de sua obra. Ameaçada pelas heresias e
invasões germânicas, o Doutor da Igreja viu que a comunidade cristã manter-se-ia intacta se
fosse capaz estabelecer uma fundação inabalável sobre a qual toda a sua tradição deveria se
desenvolver. Daí sua intrépida defesa da ortodoxia: era necessário preservar a fundação e
estabelecer sua autoridade. A peculiaridade aqui é de que a pedra angular da fundação deverá
Roma. Dessa forma, o próprio alcance da Cidade de Deus, de quem a Providência Divina é
fundadora, só poderá ser concretizado pela fé e introspecção individual, processo de
contemplação a partir do qual se poderá obter o verdadeiro conhecimento que é a própria
Cidade de Deus.
Agostinho, portanto, manteve a tríade romana intacta e devidamente preservada por
meio de seus esforços em herdá-la pelos dogmas cristãos. Nesse sentido, diz Hannah Arendt
(2008, p. 96):
Com a repetição da fundação de Roma por meio da fundação da Igreja Católica, a
grande trindade romana religião, tradição e autoridade pôde ser trazida até a era
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se situar dentro de cada cristão, diferentemente da fundação romana, que tem sua sede em
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cristã, onde resultou num milagre de longevidade só compatível ao milagre da
história milenar da Roma antiga.
Por isso o Doutor da Igreja formulou ainda um conceito de autoridade a partir de
uma fonte que transcenderia o poder político e aqueles que o detêm, pois possuía, por um
lado, a crença religiosa em um começo divino (ainda que tenha refletido sobre a natalidade e a
liberdade inerentes à capacidade humana iniciar algo novo e imprevisível) e, por outro, o fio
condutor da tradição que assegura os padrões de conduta herdados como auto evidentes.
5 A RETIRADA DA AUTORIDADE DA ESFERA POLÍTICA
Possivelmente, o resultado mais marcante da herança romana para a Igreja Cristã
tenha sido o início do processo de retirada da autoridade do domínio público.
Enquanto em Roma, o senado requeria para si a autoridade, aqui, quem reclama a
autoridade para si é a Igreja Cristã, deixando para a esfera pública o exercício do poder
(ARENDT,1968, p.170). Isso explica, por exemplo, o fato de o domínio político ter perdido,
pela primeira vez em sua história, o elemento capaz de lhe conferir permanência, continuidade
e durabilidade. Tal perda será, na visão de Arendt, agravada ao longo das transformações
históricas, tendo-se completado, no século XX, o processo de desvalorização da política. É
exatamente na perda da dignidade da política que reside a grande questão do pensamento
arendtiano.
influências da filosofia platônica sobre o pensamento agostiniano, já que em Santo Agostinho
fica claro que ao conceito político romano de autoridade foi amalgamada a noção grega de
transcendência, construída por Platão.
Atentos à alegoria de caverna abordada em “A República”, percebemos que na
filosofia política de Platão a aplicabilidade das ideias se dá justamente pelo fato de elas se
relacionarem com as coisas concretas da mesma maneira com que as “formas” dos objetos se
relacionam com o seu processo de fabricação. Temos, portanto, o pensamento como algo
exterior ao próprio domínio social, capaz de subsumi-lo. Assim também é a Cidade de Deus
de Santo Agostinho, inspirada na noção platônica de “mundo das ideias”. A Cidade de Deus é
uma realidade mística da qual a Cidade Terrestre deve buscar incessante aproximação, já que
a leis daquela são perenes, imutáveis e dotadas de Justiça. O conhecimento da Cidade Divina
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Para entender melhor esse processo, é preciso que nos reportemos às profundas
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FIDΣS
só poderá ser obtido através do conhecimento pela iluminação de Deus, de inspiração
platônica A esse respeito, Michel Villey (2005, p. 79) acrescenta: que “Isso concerne a nós: se
só podemos conhecer o verdadeiro, o bem a justiça por meio de Deus e não pela experiência
sensível, se a verdade, a justiça são Deus mesmo, então teremos sem dúvida que renunciar ao
direito natural de Aristóteles e dos jurisconsultos romanos”.
Ora, se as leis divinas são perenes e imutáveis, elas só podem ser dotadas de
autoridade. Ao Estado, portanto, ficou relegado o poder: se as leis humanas não detêm a
autoridade, elas são dotadas, pelo menos, de poder explicado por André Duarte (2000, p.240)
como resultante da interação um grupo de homens plurais, situados na própria esfera do
discurso e da ação, isto é, na esfera pública por excelência – e, por isso, devem ser obedecidas
para garantir a segurança da vida comum temporal. Aparentemente, há uma incoerência no
pensamento de Santo Agostinho quando ele aconselha a obediência às leis romanas, apesar de
não refletirem a Justiça Divina. Contudo, tal impressão é desfeita quando encaramos essa
obediência enquanto indiferença. Afinal, nas palavras de Michel Villey (2005 p. 106): “Que
importa para o mártir, que se situa no plano da lei divina, que lhe tirem ou não lhe tirem a
vida corporal? A legislação de César não tem importância; é por isso que pode ser mantida”.
Além disso, Santo Agostinho vê nas leis terrenas possíveis instrumentos da Graça Divina para
operar o rumo da história, desconhecido pelos homens, mas iluminado através do
conhecimento divino.
Obviamente, o ideal para Santo Agostinho seria que a lei terrestre espelhasse
fielmente as leis da Cidade de Deus, revelando toda a sua justiça e solidariedade. Entretanto,
vislumbrando as limitações das comunidades humanas, o bispo de Hipona não descarta a
dois centros distintos, porém profundamente imbricados.
O que temos, portanto, é a autoridade divina convivendo com o poder político. Na
visão agostiniana, a primeira deve se sobrepor à segunda, mas por não terem o mesmo terreno
de aplicação, o direito cristão pode pacificamente coexistir com as leis.
Apesar de reconhecer a importância das leis terrenas, como pensador cristão, Santo
Agostinho compartilhava inteiramente da hostilidade e da desconfiança contra a esfera
política enquanto tal, e de cujos encargos o seres humanos reclamavam, em sua concepção,
isenção para serem livres. Nesse sentido, também é possível apontar Santo Agostinho como
representante da tradição filosófica ocidental responsável por promover uma rígida dicotomia
entre ação, realizada na esfera da política, e pensamento – divisão, que, aliás, terá efeitos
muito negativos no domínio público. Assim, explica Hannah Arendt (2008, p. 103):
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
coexistência entre a Cidade Divina e a Cidade dos Homens; pelo contrário, ele as vê como
68
FIDΣS
Desde que Agostinho se tornou neoplatônico e Tomás de Aquino neo-aristotélico,
suas filosofias políticas só extraíram dos Evangelhos aqueles aspectos que
correspondiam, como a civitas terrena e a civitas Dei, à dicotomia platônica entre a
vida vivida na “caverna” dos assuntos humanos e a vida vivida na luz brilhante da
verdade das “ideias”.
Partindo dessa noção, fica claro que as ideias tornam-se os padrões para o
comportamento e juízo moral e político. A ação e fala, tão caros à esfera pública, foram
postos como atividades acessórias e de menor relevância frente ao pensar que, segundo a
perspectiva da tradição política ocidental, seria mais relevante. A política cedeu lugar à
contemplação metafísica e nossos preconceitos com a esfera pública chegaram ao ponto de
encararmos qualquer aproximação com a política como “risco premente de moléstia moral”.
São, portanto, valiosas as lições de Claude Lefort (1991, p. 70) quando diz que:
Para H. Arendt, a distinção entre sagrado e profano, ou então, entre o universo
encantado da política e a vida prosaica, regida pelas coerções naturais, essa distinção
que punha o sagrado ou o encantamento no visível, no surgimento do espaço
público, mudou de sentido com a filosofia, pois, para esta, o invisível (invisível
outrora vinculado às ocupações privadas) é que se acha investido da nobreza própria
à intelectualidade, ao passo que a vileza atinge a atividade política.
Dessa forma, os assuntos políticos foram vistos pela tradição filosófica ocidental como
matéria de menor importância e consequência natural da atividade contemplativa, essa sim,
entendido por Rodrigo Ribeiro (2009, p. 19) enquanto espaço artificial entre o homem e a
natureza, bem como o meio ambiente de relacionamento e distinção instaurado entre os
homens por meio de sua capacidade de interagir e agir entre si.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É bem verdade que Arendt viu em Agostinho um autor que, por ser não somente
cristão, mas também romano, formulou um conceito de liberdade, em A Cidade de Deus,
marcado pelas experiências especificamente romanas, relacionando-o, portanto, não tanto
com a esfera de transcendência da autoridade ou com a interioridade da vontade no livre
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merecedora de dedicação. Com isso, corremos o risco de extinguir o próprio mundo,
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arbítrio (o que acabou tornando-se decisivo para a tradição filosófica), mas com a esfera
política, com a natalidade e a capacidade de dar início a novos processos no mundo.
Contudo, com sua filosofia política marcadamente platonista, Santo Agostinho
buscou encontrar um vínculo entre os homens que fosse forte o suficiente para substituir o
espaço intermediário da política ou o mundo comum.
Em sentido contrário, toda a obra de Arendt tem em vista recuperar uma “outra
tradição” do pensamento político ocidental, qual seja: a greco-romana, que dispõe de
experiências e conceitos fundamentais que nos permitem repensar o real significado da
confiança dos homens no mundo, sobretudo em seu lado público, instaurado e mantido pela
pluralidade humana, ou seja, pelo envolvimento dos cidadãos em atos e palavras concertados.
Arendt constatou que, desde o totalitarismo - marco “interruptivo” da tradição do
pensamento político ocidental - vivemos o desafio de pensar a política sem o “amparo” das
ferramentas tradicionais e metafísicas, de modo que se apresenta para nós uma chance única
de resgatar, através de experiências esquecidas, como a greco-romana, o valor da política.
Refugiar-se na contemplação e a hostilidade ao ambiente da política é partir para um
estado de profundo isolamento e, portanto, alienação do mundo.
A retirada da autoridade é um aspecto relevante para a política, pois desse elemento
derivam a durabilidade, continuidade e permanência do espaço público, no qual os homens
podem interagir e exercer o poder, já que ao limitar o poder, a autoridade tolhe o
desenvolvimento da tirania. Não é errado, portanto, presumir que toda a civilização está – ou,
pelo menos, deveria estar - assentada em uma base estável, capaz de lhe conferir o ambiente
propício para a sucessão de transformações.
Arendt, como matéria de difícil abordagem. Ao mesmo tempo em que a autora se preocupa
com a estabilidade que a autoridade oferece ao espaço público, meio no qual os homens agem,
isto é, são ativos, ela destaca o papel do homem enquanto ser capaz de começar algo novo,
fundar alguma coisa, isto é, agir. A esse respeito, inclusive, é preciso reforçar que a fundação
é ação por excelência, uma vez que representa um acontecimento inédito, único e irreversível.
Partindo dessa descrição, corremos o risco de considerar autoridade e fundação um sistema
autopoiético em que sem fundação, a autoridade não tem o que aumentar e reforçar, enquanto
sem autoridade, a fundação deixa de existir. Ora, se isso fosse verdade, em momentos de crise
da tradição e da autoridade como o nosso, o mundo estaria fadado a permanecer em constante
estado de ensombrecimento. Ao contrário, o que Hannah Arendt nos quer mostrar é que
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O tema da autoridade apresenta-se, para aqueles que estudam a obra de Hannah
70
FIDΣS
mesmo quando falham a tradição e autoridade, ainda há a possibilidade do milagre de um
novo começo.
A despeito das questões apontadas nesse artigo soarem como uma crítica à filosofia
política desenvolvida por Santo Agostinho, a verdade que elas de forma alguma minoram a
magnitude da obra desse pensador. As preocupações apresentadas por ele demonstram que
sua visão filosófica da doutrina cristã não menospreza a presença e a inserção do homem no
mundo, mas, ao contrário, preocupa-se com esse aspecto. Por essa razão, Arendt considera
Agostinho o primeiro filósofo cristão, pois ele soube como ninguém formular as
perplexidades filosóficas implicadas em sua fé e não abandonou as incertezas da filosofia para
se refugiar na verdade da revelação.
REFERÊNCIAS
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ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 6. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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Arendt e Santo Agostinho. História: Questões e Debates, Curitiba, n. 46, p. 31-50, ano 24,
<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/view/11324>. Acesso em: 25 out. 2011.
DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HORNICH, Daniel. Hannah Arendt e o Problema da Vontade em Santo Agostinho. Synesis,
n. 2, v.2, p. 25-43, ago/dez., 2009. Disponível em:
<http://seer.ucp.br/seer/index.php/synesis/article/view/41>. Acesso em: 25 out. 2011.
LEFORT, Claude. Pensando o Político. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
jan/junho 2007. Disponível em:
71
FIDΣS
LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. O Conceito de Amor em Santo Agostinho: Breves
Notas sobre a Obra de Hannah Arendt. Pensar, Fortaleza, ano 12, p. 145-151, jan/jul, 2007.
[edição especial] Disponível em: <http://www.unifor.br/images/pdfs/pdfs_notitia/1626.pdf>.
Acesso em: 25 out. 2011.
RIBEIRO, Rodrigo. Alienações do Mundo: uma interpretação da obra de Hannah Arendt.
Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2009.
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
AUTHORITY AND FOUNDATION BY SAINT AUGUSTINE: AN AREDTIAN
ANALYSIS
ABSTRACT
This article seeks to analyse how Saint Augustine conceives the
Authority incorporation, a Roman concept on public domain, by the
Catholic Church. This subject will be developed here by using Hannah
Arendt’s ideas. Our main objective is to demonstrate how Politics lost,
because of the appropriation of the authority concept by the Catholic
Church, the element capable of giving it stability and length.
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Keywords: Authority. Catholic Church. Tradition. Politics.
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FIDΣS
Recebido 30 ago. 2011
Aceito 27 out. 2011
A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19/1998: A IMORALIDADE INFILTRADA NA
REFORMA ADMINISTRATIVA
Débora Daniele Rodrigues e Melo
RESUMO
O presente artigo tem por escopo analisar a Emenda Constitucional nº
19/1998, conhecida como a emenda da Reforma Administrativa. Essa
medida, apesar dos benefícios gerados para a máquina burocrática
estatal, trouxe, em seu art. 8º, enunciado normativo corrompido pela
imoralidade. O estudo crítico desse tema foi realizado tendo como
instrumentos o princípio constitucional da moralidade, a teoria da
Tripartição dos Poderes de Montesquieu, a doutrina do Abuso de
Direito e o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da
matéria. Como conclusão, infere-se que a referida emenda é passível
de sofrer controle de constitucionalidade, por conter vício material em
Palavras-chave:
EC
nº
19/1998.
Reforma
Administrativa.
Imoralidade. Congresso Nacional.
1 INTRODUÇÃO
A EC nº 19/1998, conhecida como a emenda da Reforma Administrativa, surgiu no
auge de uma crise do aparato estatal brasileiro, que sofria com a ineficiência, a lentidão e o
desprestígio perante a sociedade. Essa medida trouxe inovações benéficas para a

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/9192178420674958>.
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sua essência.
73
FIDΣS
administração pública, tendo como um dos principais objetivos reduzir despesas e aumentar a
produtividade burocrática.
Dentre os artigos da EC nº 19/1998 houve, porém, a infiltração feita pelo Congresso
Nacional de um texto normativo de teor profundamente imoral, visto que permitiu que o
processo de ajustamento de remuneração do Senado e Câmara dos Deputados se tornasse mais
permissivo que outrora.
A simples supressão do trecho “em cada legislatura para a subsequente” deu margem
para que agentes públicos decidissem discricionariamente sobre os proventos que receberiam,
chegando a igualar sua remuneração ao teto dos ministros do STF, em dezembro de 2010.
Esse fato destoa do princípio constitucional da moralidade na Administração Pública,
contrariando também os motivos iniciais propostos pela Reforma Administrativa.
É a partir desse ensejo que se situa a análise crítica feita pelo presente artigo. Por
meio de uma investigação da Constituição Federal sob a ótica do princípio da moralidade, e
utilizando como ferramentas auxiliares a teoria de Montesquieu acerca da Tripartição dos
Poderes, a doutrina sobre o Abuso de Direito e o entendimento do STF sobre a matéria,
busca-se comprovar que o art. 8º da EC nº 19/1998 foi uma afronta ao ordenamento jurídico
brasileiro e um desrespeito à população, sendo passível, inclusive, de Ação Direita de
Constitucionalidade por vício material.
2 O CONTEXTO HISTÓRICO E A EC Nº 19/1998
originou-se em um período conturbado para o Estado brasileiro. A estagnação econômica da
indústria interna, provocada pelo neoliberalismo, já perdurava por volta de 15 anos. A crise se
alastrava não só pela seara financeira, mas também pela fiscal e incidia na ineficiência da
máquina do Estado em satisfazer as demandas da sociedade.
Os serviços de saúde, educação, segurança e transporte estavam profundamente
defasados, ineficientes em atender os cidadãos, além de que a lógica neoliberal imposta ao
Estado brasileiro gerou uma série de privatizações e de falências de pequenas empresas,
acentuando os níveis de desemprego. O então presidente, Fernando Henrique Cardoso, em
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
A Emenda Constitucional nº 19/1998, conhecida como a Reforma Administrativa,
74
FIDΣS
mensagem ao Congresso Nacional1, declara que “a capacidade de ação administrativa do
Estado se deteriorou, enquanto prevalecia um enfoque equivocado que levou ao desmonte do
aparelho estatal e ao desprestígio de sua burocracia”.
O “enfoque equivocado” a que se refere o ex-presidente se configura na demasiada
atenção que o Estado brasileiro dispendeu ao setor econômico desde a crise mundial do
petróleo até a década de 1990, quando, enfim, por mérito do Plano Real, a inflação, a
instabilidade monetária e a recessão foram contidas, atenuando a crise econômica em relação
à “década perdida” de 1980.
No entanto, ao passo que o governo brasileiro empreendia melhoras para o setor
privado da economia, não investia na gestão da organização burocrática, permitindo que a
seara pública se deteriorasse, assim como os serviços básicos a serem disponibilizados à
população.
Nesse diapasão, a assaz necessária Reforma Administrativa surgiu sob o modelo de
emenda, cujo relator foi o então Deputado Moreira Franco (PMDB). Dentre as várias
transformações efetuadas, ela modificou métodos de gestão e controle da máquina
burocrática, alterou a política remuneratória de servidores públicos, findou o regime jurídico
único e instituiu o quinto princípio constitucional da administração pública, a eficiência. Foi,
enfim, um marco para a melhora do aparato burocrático, que havia sido tão pouco
desenvolvido até a referida época.
Segundo Carlos Alberto Menezes Direito (1998, p. 136), ex-ministro do STF e, na
época, ministro do STJ, a reforma alcançou os princípios básicos da Administração Pública,
intencionando retirar do texto constitucional possíveis entraves para a maior agilidade e
Destarte, a referida emenda aflorou como uma esperançosa e possivelmente útil
ferramenta para se amenizarem os problemas da burocracia brasileira, sendo benquista por
grandes juristas como o supracitado ex-ministro, ao afirmar que a reforma significou o maior
avanço dos últimos tempos para regular a atividade do Estado, baseando-se na qualidade do
serviço à população e na real participação do usuário (DIREITO, 1998, p. 12).
Percebe-se, assim, que a repercussão geral da medida mencionada foi positiva, tanto
do ponto de vista dos especialistas, quanto da aceitação da nacional, que enxergou nesse
projeto a evolução da máquina pública aliada à melhora de serviços para o povo. Há, contudo,
1
Mensagem nº 866/95, p. 25. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/expresidentes/fernando-henrique-cardoso/mensagens-presidenciais-1/1995/view >. Acesso em: 10 jul. 2011.
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eficácia da máquina estatal.
75
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certo artigo da EC nº 19/1998 que parece ter passado despercebido pelo crivo de quem a
avaliou.
Esse enunciado normativo contraria, em essência, toda a motivação dada à reforma,
de se diminuírem os gastos da máquina pública, melhorar a eficiência e credibilidade dos
serviços do Estado, visto que se opõe a um preceito constitucional básico da Administração
Pública, talvez o mais ansiado e questionado pela população por sua ausência: a moralidade.
3 DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
Dentre os princípios que regem a Administração Pública – Legalidade,
Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência -, o da moralidade administrativa é,
talvez, o mais relevante no que se refere à credibilidade atribuída ao serviço público pela
população.
É por meio de um gerenciamento teleologicamente honesto da máquina pública que
se pode erigir um Estado de Direito realmente democrático, haja vista que, somente se os
agentes públicos agirem conforme a moralidade administrativa e o interesse coletivo, o
aparato estatal poderá suprir as demandas sociais de educação, segurança, saúde, lazer – seu
fim precípuo.
3.1 Breve histórico da evolução da juridicidade dos princípios
administrativa, cabe analisar a teoria dos princípios de maneira perfunctória, a fim de
possibilitar melhor compreensão acerca da concepção principial do Direito, que prevalece
hodiernamente na doutrina constitucional.
Princípios são as verdades primeiras, as premissas de todo um sistema normativo
(PICAZO, 1983, p. 1268 citado por BONAVIDES, 2011, p. 255-256) e que atualmente são
identificados por sua normatividade.
Contudo, o exame teórico de sua eficácia normativa demonstrou que, durante a fase
jusnaturalista – mais antiga e tradicional –, os princípios eram tidos como meros preceitos
programáticos, advindos de esferas metafísicas e com normatividade insignificante. São, no
dizer de Flórez-Valdés, axiomas jurídicos, princípios de justiça constitutivos de um Direito
ideal (BONAVIDES, 2011, p. 259-261).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Antes de se adentrar, de fato, no princípio constitucional da moralidade
76
FIDΣS
À fase jusnaturalista sucedeu a juspositivista, marcada pela inserção dos princípios
nos Códigos, quando eles passaram a exercer funções supletivas, subsidiárias: não se
sobrepunham à lei posta e, derivavam dela por meio de abstrações e generalizações. Os
princípios emanavam das próprias leis e não tinham normatividade de per si.
O advento da teoria filosófica do pós-positivismo, todavia, sustentando o fenômeno
do neoconstitucionalismo, alterou de vez essa concepção acerca dos princípios. Passou a se
aceitar a sua hegemonia axiológica no ordenamento jurídico e seu caráter normativo e
vinculante sobre as demais normas (BONAVIDES, 2011, p. 264-265).
Os defensores da Nova Hermenêutica constitucional – Dwowkin, Esser, Alexy e
Crisafulli – concluíram, por fim, que princípios são normas caracterizadas, sobretudo, por seu
aspecto de generalidade e que as normas são divididas nas espécies de princípios e regras.
Destarte, Bonavides afirma que já é possível se falar numa concepção principial do
Direito, tendo em vista a importância extrema que os princípios adquiriram no ordenamento
jurídico (2011, p. 288-293), alcançando o grau hierárquico mais elevado na escala
constitucional, vinculando toda a ordem jurídica, servindo de parâmetro de interpretação de
todo o sistema constitucional, fundamentando as demais normas quando da conformidade
com os princípios e exercendo, assim, grau máximo de normatividade.
O direito administrativo não ficou imune ao novo constitucionalismo de princípios,
sendo a mais destacada atuação deles no que se refere ao controle da Administração Pública,
sobretudo em termos de controle de discricionariedade por parte dos agentes públicos
(BAPTISTA, 2003, p. 87-91).
Por discricionariedade administrativa é possível entender, numa conceituação
como sendo o dever de o Administrador Público, ante o grau de imprecisão existente
na norma, seja essa imprecisão derivada de conceitos axiológicos ou
multissignificativos, optar pela solução que mais se compatibilize com o interesse
público, ditado pela Constituição, pelas normas de inferior hierarquia e pelos
valores dominantes ao tempo da consecução do ato (MARCHESAN, 2009). [grifos
nossos].
Assim, a subjugação da Administração Pública ao regime principiológico
constitucional implica a vinculação dos atos dos agentes públicos não só às regras estipuladas
no direito positivo, mas também aos valores, explícitos ou implícitos, que se agregam ao
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adequada ao poder vinculante dos princípios em todos os âmbitos do direito,
77
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sistema e que devem determinar a intenção e a finalidade precípua de qualquer indivíduo que
atue em nome do poder estatal.
Nesse sentido, o princípio constitucional da moralidade administrativa surge como
um dos basilares para a determinação da conduta dos agentes públicos. Ele, em conjunto aos
outros princípios, tanto tácitos quanto expressos na Constituição Federal, rege todos os atos
dos que atuam em nome do poder, tendo em vista a sua considerável importância para a
construção e manutenção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
3.2 O surgimento e desenvolvimento do conceito sobre a moralidade administrativa
A pioneira noção de moralidade administrativa surgiu em meados do século XX, a
partir da consolidação, no Direito Privado, da teoria do abuso de direito, que originou, mais
tarde, o desenvolvimento do instituto de desvio de poder pela jurisprudência do Conselho do
Estado Francês (LIMA, 2006, p. 4).
Maurice Hauriou, como membro do referido conselho, utilizou pioneiramente essa
expressão com o escopo de fundamentar o controle dos atos discricionários, isto é, eivados de
desvio de poder (CAMMAROSANO, 2006, p. 19). Eles eram, de certa forma, permitidos à
época do positivismo, pois se admitia a existência de um espaço decisório discricionário na
administração, quando não incidissem regras específicas para o caso em exame (BAPTISTA,
2003, p. 92).
Hoje, porém, devido ao reconhecimento de que o Direito é um sistema não só de
regras, mas também de princípios da mesma forma vinculantes, entende-se que o espaço
quando da existência dos chamados “casos difíceis”.
Destarte, a discricionariedade hoje permitida ao agente público é noção apartada da
concepção anterior, mais semelhante à arbitrariedade, uma vez que se resume à possibilidade
do agente em escolher determinadas opções de conduta permitidas pela lei, quando sua ação
não está por completo vinculada a ela. Essa escolha, porém, sempre estará ligada aos
princípios.
Assim, a concepção moderna de discricionariedade “tem inserida em seu bojo a ideia
de prerrogativa, uma vez que a lei, ao atribuir determinada competência, deixa alguns
aspectos do ato para serem apreciados pela Administração diante do caso completo”
(PIETRO, 2000, p.90). A discricionariedade implica na liberdade do agente em exercer sua
função conforme os limites da lei e dos princípios, mas jamais como ser autônomo.
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anteriormente ocupado pela discricionariedade agora serve para a ponderação de princípios,
78
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Parafraseando o pensamento de Kelsen ao afirmar que a norma é como a moldura de
um quadro, e o jurista tem liberdade de agir dentro dos limites dessa moldura, da mesma
forma, para a Administração Pública, a lei e os princípios compõem a moldura a ser
respeitada pelo agente público.
Por essa lógica de raciocínio, mesmo em casos omissos pela lei, a discricionariedade
outorgada aos agentes públicos encontra-se vinculada ao poder dos princípios constitucionais,
– sobretudo ao da moralidade administrativa – que servem como diretrizes de comportamento
para esses indivíduos, servindo como verdadeiros faróis, legitimando seus atos, os fins e
intenções desses, quando forem condizentes com a valoração principiológica do ordenamento.
Nesse sentido, a moralidade administrativa foi definida por Hauriou como o espírito
geral da lei administrativa, que impõe aos administradores o dever de agir pelo bem do
serviço público (1926, p. 455). Hodiernamente, ela passou a constituir o fundamento de
validade de toda a Administração Pública.
Ela não representa a moral comum, individual ou social, sequer as ideias de justiça
absoluta universal: é a moral jurídica, é o apanhado de regras de condutas emanadas da
essência das instituições. Assim, o agente administrativo encontra-se obrigado a não desprezar
o elemento ético de sua conduta, tendo que decidir entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto,
o honesto e o desonesto. A moral administrativa é imposta à conduta interna do agente
público, conforme as exigências do órgão a que serve e a finalidade do seu agir, e o bemcomum (MEIRELLES, 1988, p.79).
É possível afirmar que o princípio da moralidade administrativa é composto por
valores morais judiciarizados (CAMMAROSANO, 2006, p. 113), axiomas erigidos pelo
públicos, a fim de que esses estejam em conformidade com a realização do interesse coletivo.
O princípio constitucional da moralidade administrativa corresponde, de fato “ao
conjunto de regras de conduta da Administração que, em determinado ordenamento jurídico
são consideradas os standarts comportamentais que a sociedade deseja e espera.”
(FIGUEIREDO, 2000, p. 53).
Destarte, por esse princípio figurar no nível mais alto da hierarquia constitucional, é
mister que a sua vinculação e efetividade seja posta em prática também fora da seara abstrata
da lei. É imprescindível que as normas referentes à moralidade administrativa tenham eficácia
plena e aplicabilidade imediata e direta sobre a Administração Pública e seus agentes, sendo
necessário exigir deles a observância fiel e integral a esse princípio, em todos os atos que
exerçam como atores do poder estatal.
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Direito ao nível de norma constitucional, para que sirvam de guia aos atos dos agentes
79
FIDΣS
É a partir dessa premissa – de que os agentes públicos devem seguir a toda custa o
princípio constitucional da moralidade administrativa - que se desenvolve o debate acerca da
imoralidade infiltrada na EC nº 19/1998, a emenda da Reforma Administrativa.
3.3. Das alterações feitas pela EC N° 19/1998 questionáveis pela ótica da moralidade
Além de dispor sobre a remuneração dos servidores públicos, removendo “excessos”,
no intuito de diminuir as despesas do Estado – conforme mensagem de Fernando Henrique
Cardoso –, a EC nº 19/1998 também alterou o artigo 49 da Constituição Federal, que previa a
organização de agentes de mandatos eletivos, quais sejam, Deputados Federais e Senadores.
O referido artigo dispunha que “É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
[...] VII – fixar idêntica remuneração para os Deputados Federais e os Senadores, em cada
legislatura, para a subsequente, observado o que dispõem os arts. 150, II, 153, III, e 153, § 2º,
I.” [grifos nossos].
Tal disposição, contudo, recebeu nova redação pela EC nº 19/1998, passando a
dispor que: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] VII - fixar idêntico
subsídio para os Deputados Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts. 37, XI,
39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I”.
Conforme visto alhures, a EC nº 19/1998, no que se refere ao art. 49, VII, fez apenas
uma supressão do texto constitucional, retirando de sua redação o trecho que determinava ser
da competência exclusiva do Congresso Nacional a fixação idêntica da remuneração para seus
agentes “em cada legislatura, para a subsequente”.
moralidade. Afinal, qual foi o embasamento teórico utilizado pelos Senadores e Deputados
Federais para retirar do texto constitucional esse excerto que auxilia o combate à corrupção e
ao gasto indevido de verbas públicas?
Determinar a fixação e remuneração de uma legislatura para a outra é, no mínimo, a
medida mais razoável a se adotar para que ações em benefício próprio não se tornem
discricionárias em uma instituição, como o Congresso, que tem a prerrogativa de determinar o
provimento de seus membros. Nesse sentido:
Além de atender à legalidade, o ato do administrador público deve conformar-se
com a moralidade e a finalidade administrativas para dar plena legitimidade à sua
atuação. Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Ora, essa exclusão, aparentemente inofensiva, fere profundamente o princípio da
80
FIDΣS
administrativas, no sentido de que, tanto atende às exigências da lei, como se
conforma com os preceitos da instituição pública. Cumprir simplesmente a lei na
frieza de seu texto não é o mesmo que atendê-la na sua letra e no seu espírito. A
administração, por isso, deve ser orientada pelos princípios do direito e da moral,
para que ao legal se ajunte o honesto e o conveniente aos interesses sociais
(MEIRELLES, 1988, p. 79).
O brocardo romano já determinava que non omne quod licet honestum est – nem
tudo o que é legal é honesto. Nesse contexto, o princípio da moralidade é uma extensão do da
legalidade, completando-o. O agente público, além de obedecer à reserva legal, deve pautar
sua conduta na moral inerente à instituição, agindo conforme o que for melhor e mais útil ao
interesse público.
Assim, a Administração Pública e seus agentes tem de seguir preceitos éticos que
estão contidos na norma, não se referindo apenas à moral comum, sob pena de invalidação
dos atos administrativos, conforme traz a Constituição Federal em seu art. 5°, LXXIII,
prevendo ação popular para anulação de ato lesivo ao patrimônio público e à moralidade
administrativa (MELLO, 2009, p. 119-120).
Aduz-se, ainda, nesse contexto, que é necessário diferenciar não só o legal do ilegal,
mas o justo do injusto e o honesto do desonesto (PIETRO, 2000, p. 70). Quando se trata da
Administração Pública, essa ponderação se torna imprescindível, haja vista que lida com
indivíduos incumbidos de gerenciar o poder do Estado, por vezes sem um efetivo controle por
sobre eles, como é o caso do Congresso Nacional.
Essa casa, representativa do Poder Legislativo em âmbito federal, não é inspecionada
fiscalização administrativa, financeira e correicional do Poder Judiciário.
Destarte, se o princípio em questão for desprezado pelos integrantes do Senado e da
Câmara dos Deputados, incorre-se de imediato na imoralidade administrativa, combinada à
ideia de desvio de poder. Este ocorre quando são utilizados “meios lícitos para atingir
finalidades metajurídicas irregulares. A imoralidade estaria na intenção do agente.” (PIETRO,
2000, p. 70).
Como apontado pela referida citação, o debate acerca da imoralidade de certo ato
administrativo não deve se centrar no ato em si, uma vez que ele pode ser juridicamente lícito.
Todavia, é a intenção do agente público em realizar determinada conduta e as consequências
dela que, analisadas sob um ponto de vista axiológico e considerados os interesses da
coletividade, determinarão a imoralidade do feito.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
por um órgão específico, como o Conselho Nacional de Justiça, cujas funções são a
81
FIDΣS
Nesse diapasão, conclui-se que a modificação do art. 49, VII, da Constituição
Federal não teve outro intuito senão facilitar o procedimento para que Deputados Federais e
Senadores pudessem alterar discricionariamente os seus proventos, sendo isso ação
profundamente imoral, uma vez que não atende a nenhum interesse coletivo, mas apenas ao
desejo individual de se beneficiar dos cofres públicos.
As notícias da mídia não nos deixam enganar quanto a essa intenção dos integrantes
do Congresso Nacional. Em 15 de dezembro de 2010:
O Senado aprovou no final da tarde desta quarta-feira, em votação simbólica, o
decreto legislativo que equipara os salários de presidente da República, vicepresidente, ministros de Estado, Senadores e Deputados aos vencimentos recebidos
atualmente pelos ministros do Supremo Tribunal Federal: R$ 26.723,13.2
No tocante ao princípio da supremacia do interesse público, Di Pietro (2000, p. 62)
conjectura que ele deve se fazer presente tanto no momento de elaboração da lei, quanto na
ocasião de sua aplicação, vinculando a autoridade administrativa aos anseios e necessidades
sociais.
É notório que o mencionado princípio não foi observado na seara legislativa - na
conjuntura de elaboração do questionável art. 8º da EC nº 19/1998, que retirou o excerto “em
cada legislatura para a subsequente”-, sequer na administrativa, pois, desde a referida
supressão no texto constitucional, foram frequentes e sucessivos os decretos legislativos com
o escopo de aumentar a remuneração dos integrantes do Congresso Nacional, até ser atingido
Sobre a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, é imprescindível
salientar que:
Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de
policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode
ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a
autoridade administrativa objetiva [...] conseguir vantagens pessoais para si ou para
terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e,
em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o
2
BRAGA, Isabel. “Senado aprova aumento salarial de parlamentares e integrantes do Executivo”. O Globo, São
Paulo, 15 dez. 2010. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/12/15/senado-aprova-aumentosalarial-de-parlamentares-integrantes-do-executivo-923298400.asp. >. Acesso em: 10 jul. 2011.
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o teto salarial dos ministros de STF em dezembro de 2010.
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vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal (PIETRO,
2000, p. 64).
Diante dessa conjuntura de aproveitamento de modificação intencional do texto da
Constituição Federal para o usufruto pecuniário por parte dos integrantes do Congresso, qual
foi o mérito então da EC nº 19/1998 ao modificar o art. 37, XI – reproduzido abaixo –, o qual
dispõe que a remuneração e subsídio de nenhum agente público poderá ultrapassar o teto dos
ministros do STF? In verbis:
a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos
da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores
de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra
espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens
pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em
espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. [grifos nossos]
De nada serviu tão minuciosa designação acerca dos subsídios de empregados
públicos, já que Deputados Federais e senadores não podem ultrapassar o teto dos ministros
do STF, mas podem igualar seus proventos ao mesmo piso, conforme mostrou a notícia de
jornal exposta.
Assim, Carlos Alberto Menezes Direito (1998, p. 138-139) enganou-se ao afirmar
que a EC nº 19/1998 eliminaria o risco de a remuneração dos agentes públicos atingir níveis
“astronômicos”. Isso porque é inadmissível pensar que um subsídio de R$ 26.723,13 para os
apenas porque não transpõe, mas se nivela à remuneração dos ministros do STF.
Em nenhum ponto dessa emenda – ao permitir que Senadores e Deputados Federais
definam sua remuneração para a candidatura que estão exercendo – se encontra o tão
necessário princípio da moralidade, visto que os efeitos de tal mudança no texto
constitucional se materializam no aumento arbitrário da remuneração desses agentes públicos.
Em nada serve ao interesse coletivo, à melhora dos serviços à população e à
eficiência da administração estatal – objetivos primordiais enumerados no contexto histórico
do lançamento da EC nº 19/1998 – que um membro do Congresso receba tão generosa
importância, enquanto o salário mínimo do Brasil é apenas R$ 545,00.
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integrantes do Congresso Nacional é moralmente aceitável, uma vez que é permitido em lei,
83
FIDΣS
4 A QUESTIONABILIDADE MORAL À LUZ DA TRIPARTIÇÃO DE PODERES DE
MONTESQUIEU
Analisar a EC nº 19/1998 sob a perspectiva de Montesquieu é outra maneira de
vislumbrar a imoralidade contida em seu artigo 8º3.
Conforme a tão celebrada Tripartição dos Poderes - teoria que fundamentou os
anseios da Revolução Francesa na empreitada burguesa de findar o Estado Moderno -, a única
maneira de garantir que um Estado esteja isento de medidas arbitrárias por parte de seus
governantes é que o poder seja dividido e controlado pelo próprio poder.
Montesquieu (1973, p. 156) afirma: “a experiência eterna mostra que todo homem
que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. [...]. Para que não se
possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”.
Foi a partir dessa proposição que se organizaram o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário da maioria dos países que adotam o Estado Democrático de Direito, no intuito de
que a separação dessas esferas impedisse o uso indiscriminado da prerrogativa de governar,
como propugnou Montesquieu no século XIX. Destarte, os três mencionados poderes têm
funções diversas, mas são independentes e harmoniosos entre si.
Fazendo o elo entre a teoria já citada e o caso em análise, a “violação” da Tripartição
dos Poderes na Constituição Federal já se inicia na prerrogativa que tem o Legislativo, em
âmbito federal, de determinar a remuneração de seus agentes sem que seja necessária a
aprovação de tal medida pelos outros poderes.
Federal, Deputados e Senadores tem competência privativa para criar iniciativa de lei para a
fixação da respectiva remuneração – que, graças a EC nº 19/1998, agora pode ser impetrada
para vigorar na mesma candidatura em que foi iniciada, beneficiando com o aumento de
recursos salariais os indivíduos que a propuseram.
Por isso, para que haja um efetivo aumento, basta um decreto legislativo visando
iniciativa de lei que busque tal acréscimo na remuneração dos integrantes do Congresso
Nacional.
3
Art. 8º Os incisos VII e VIII do art. 49 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: "Art.
49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: VII - fixar idêntico subsídio para os Deputados
Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I”;
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Esse processo se dá porque, de acordo com os arts. 51, IV e 52, XIII da Constituição
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FIDΣS
Essa prerrogativa, conforme a lógica do pensamento de Montesquieu, por si só já se
configura ato imoral, visto que permite a sobreposição de um poder perante o outro, ao
conceder ao Legislativo a autonomia de definir a remuneração de seus agentes sem que sequer
seja necessária a sanção do Executivo ou o consentimento do Judiciário. Os outros dois
poderes, por sua vez, necessitam que o Legislativo aprove medida para o aumento de sua
remuneração.
Nesse contexto, a imoralidade presente na alteração feita ao texto constitucional pelo
art. 8º da EC nº 19/1998 se torna ainda mais notória: se já pode ser considerado contra a teoria
da Tripartição e, portanto, abusivo, o fato de o Legislativo poder determinar os proventos de
seus agentes autonomamente, essa situação só se agrava após a mudança feita pela referida
emenda, pois permite que a decisão sobre a remuneração seja efetuada numa mesma
candidatura.
5 A REMUNERAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO FEDERAL EM CONFRONTO
COM A DO PODER LEGISLATIVO MUNICIPAL
A percepção do quão imoral foi a mudança proposta pelo Congresso Nacional ao
desconfigurar o art. 49, VII, da Constituição Federal aumenta ao se averiguar a previsão
constitucional contida no art. 29, VI, – com redação dada pela EC nº 25/2000 –, referente, por
sua vez, à remuneração de vereadores, a saber: “o subsídio dos Vereadores será fixado pelas
respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subsequente, observado o que
seguintes limites máximos”.
Ora, qual o embasamento teórico usado por Deputados Federais e Senadores - visto
que eles têm a prerrogativa de propor, votar e promulgar emendas constitucionais – para, na
EC nº 19/1998, retirar do texto constitucional o excerto “em cada legislatura para a
subsequente” e a colocar quando referente aos vereadores na EC nº 25/2000?
Por que a legislação concernente à remuneração do Poder Legislativo Federal é
diversa da do Poder Legislativo Municipal? Não deve haver isonomia entre os agentes de um
mesmo poder? Por qual motivo vereadores podem definir seus subsídios apenas de uma
legislatura para a seguinte se os membros do Congresso o podem fazer numa mesma
legislatura?
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os
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Não se afirma, nessa discussão, que a segunda proposição é a correta. Já se foi
discutido que ela é indubitavelmente imoral sob a análise dos princípios da Administração
Pública e da tripartição dos Poderes de Montesquieu.
É, todavia, ainda mais questionável que o Legislativo Federal tenha essa prerrogativa
enquanto que o Municipal não a tem. As inferências advindas desse confronto de artigos só
reafirmam a imoralidade infiltrada na Reforma Administrativa.
De fato, a justificativa mais coerente para explicar essa contradição do Legislativo
nas esferas federal e municipal é que o caráter imoral do art. 8º da EC nº 19/1998 foi incluso
propositadamente pelos membros do Senado e Câmara dos Deputados.
O Congresso Nacional do ano de 1998 - composto, por exemplo, pelos Senadores
Eduardo Suplicy (PT-SP), Pedro Simon (PMDB-RS), Fernando Bezerra (PSDB-RN) e José
Sarney (PMDB-AP), todos reeleitos, e pelos Deputados Federais Gilberto Kassab (PFL-SP) e
Carlos Alberto de Sousa (PSDB-RN) – alterou a Constituição Federal em seu art. 49, VII, no
ensejo da Reforma Administrativa, com a única meta de facilitar o processo de aumento
salarial de seus integrantes.
Nesse ponto, o intuito da Reforma Administrativa, medida tão importante para a
organização da máquina burocrática estatal em momento de crise como o da década de 1990,
foi deturpado.
Malgrado o ex-ministro do STF, Menezes Direito (1998, p. 133), afirmar que o
sistema legal serve para impedir manobras lesivas ao Estado, vedar possíveis fraudes
cometidas contra o erário e expugnar da máquina estatal comportamentos nocivos de seus
administradores, a alteração feita no art. 49, VII, da Constituição Federal pela EC nº 19/1998
brasileiro.
Não há outra explicação para tanto senão que Deputados Federais e Senadores, ao
incluir na Reforma Administrativa artigo de essência tão imoral, visaram, de fato, facilitar a
promoção autônoma e escusa dos próprios rendimentos. Isso ocorreu sem nenhum respeito ao
povo e ao Estado brasileiro, que tinham esperanças de que a EC nº 19/1998 aperfeiçoaria a
máquina burocrática, mantendo um rígido controle sobre as despesas públicas, e não que ela
propiciaria, aos representantes da população o aumento arbitrário e desregulado de seus
proventos.
A comparação da regulamentação sobre subsídios do Legislativo Federal e
Municipal nos mostra como essa ação foi intencional e programada. Se assim não o fosse, a
EC nº 25/2000 teria incluído o tão celebrado e importante excerto – “em cada legislatura para
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permitiu que essas mazelas continuassem e até se acentuassem no ordenamento jurídico
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FIDΣS
a subsequente” – não apenas no tocante à remuneração de vereadores, mas também em
relação aos membros do Congresso Nacional, de acordo com o princípio isonômico que deve
vigorar no âmbito interno de um mesmo Poder.
Essa inclusão ao texto constitucional, contudo, não ocorreu. As notícias dadas pela
mídia nos mostram que a motivação para tanto é que Deputados Federais e Senadores não se
saciariam em aumentar a própria remuneração até alcançarem o teto dos ministros do STF,
fato que ocorreu em dezembro de 2010.
Os efeitos desse acontecimento são notórios para todos: imensas despesas com a
folha de pagamentos dos agentes públicos de mandatos eletivos, enquanto a população padece
na educação, saúde, segurança e infraestrutura por “falta de verbas” e pela incansável
alegação de reserva do possível do Estado.
6 A ABERTURA PARA O ABUSO DE DIREITO
Os membros do Poder Legislativo, considerado em sua essência organizacional, têm
o direito de definir sua remuneração por meio de iniciativa de lei. Após o exposto, contudo, é
possível analisar se essa prerrogativa, conforme o modo pelo qual é exercida nos dias atuais e,
sobretudo, após a EC nº 19/1998, incide sobre o que a doutrina já convencionou chamar de
abuso de direito.
O abuso de direito configura uma forma de prática do ato ilícito. Ela pressupõe a
existência de um direito subjetivo exercido de maneira anormal, ou seja: provocando danos a
No pretérito, especialmente como consequência do Código Napoleônico,
intrinsecamente individualista, predominava a noção de caráter absoluto dos direitos, ou seja,
a concepção de abuso não existia. Reinava o brocardo qui suo iure utitur nemi nem laedi –
quem usa de seu direito a ninguém prejudica.
O direito moderno, entretanto, atribuiu uma função social aos direitos subjetivos,
constituindo, desse modo, um limite a seu exercício, para que a segurança social seja
garantida. Nader (2007, p. 340) ensina que a necessidade de se proteger os interesses coletivos
torna inaceitável que um titular de direito prejudique o bem-estar social.
Assim, “o abuso de direito, ontem como hoje, nada mais é que um instrumento de
correção, destinado a evitar desvios morais, praticáveis na aplicação à outrance de um direito
[...]” (MOREIRA NETO, 1992, p. 32).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
outrem (NADER, 2007, p. 338).
87
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Dessa feita, é possível inferir que a alteração provocada pela EC nº 19/1998 ao texto
constitucional permite uma amplitude maior para que Deputados Federais e Senadores
abusem do direito de legislar, causando danos aos cidadãos brasileiros no tocante ao gasto
indevido de verbas públicas.
Essa situação ocorre porque, uma vez alterada a Constituição Federal, para que haja
o aumento na remuneração dos agentes do Congresso Nacional, basta que eles iniciem projeto
de lei para sua fixação (art. 51, IV e 52, XIII, Constituição Federal). Tal projeto será debatido
e votado pelos próprios integrantes do Senado e da Câmara dos Deputados e executado por
meio de um decreto legislativo, medida que não precisa da aprovação de outro órgão, senão
do próprio Congresso. Isto é, Deputados Federais e Senadores tem autonomia irrestrita para
decidir qual remuneração receberão, desde que não ultrapasse o teto do STF (art. 37, XI).
Engana-se, portanto, o ex-ministro Menezes Direito (1998, p. 137) ao afirmar que a
EC nº 19/1998 criou severa restrição quanto à alteração de subsídios e remuneração de
agentes públicos, impedindo o “velho hábito” de ampliar os proventos sem lei que o
determinasse, visto que, apesar de haver norma para regulamentar tal processo, ela é
profundamente permissiva.
Configura-se abuso de direito, portanto, porque a prerrogativa individual de um
grupo de parlamentares não pode atingir o direito de toda uma população de que as verbas
estatais sejam destinadas à satisfação das necessidades populares e não à vontade individual
de aumentar o patrimônio às custas de uma função pública de mandato eletivo.
Quanto à fixação de subsídios por agentes públicos numa mesma legislatura, o STF
decidiu, em março de 1998, que se configura “ato lesivo não só ao patrimônio material do
Poder Público, como à moralidade administrativa, patrimônio moral da sociedade” 4.
Desse modo, cabível seria ação direta de inconstitucionalidade face ao art. 8 da EC nº
19/1998, promulgada em junho do referido ano, uma vez que, por tudo já exposto, viola
explicitamente o princípio da moralidade, estando também em contradição com o teor da
Reforma Administrativa e com os objetivos honestos e comprometidos com a sociedade
propostos por essa medida.
4
Ilação extraída do voto do Ministro Maurício Corrêa proferido no julgamento do RE 172.212-6/SP. STF. 2ª T..
Rel. Ministro Maurício Corrêa. j. 28/11/97. DJ 27/03/1998.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
7 O POSICIONAMENTO DO STF SOBRE O TEMA
88
FIDΣS
O STF, contudo, não parece ter unificado o entendimento sobre a matéria, visto que,
em maio de 2007, o pedido de ação direta de inconstitucionalidade, nº 3599 5, impetrado pelo
então Presidente da República, Luís Inácio da Silva, foi indeferido. O Congresso por meio de
norma específica das respectivas Casas Legislativas concedia majoração de remuneração a
seus servidores no valor de 15% (quinze por cento).
O Egrégio Tribunal compreendeu que houve vício de iniciativa na ADI 3599, uma
vez que o processo de aumento de remuneração não violou nenhum artigo constitucional nem
o princípio de separação dos poderes, conforme voto 6 do ministro relator Gilmar Mendes.
De fato, a iniciativa para a majoração dos proventos dos membros do Congresso
Nacional não tem nenhum vício do ponto de vista formal, mas o tem no quesito material, por
afrontar o princípio da moralidade, como já foi explicitado.
No caso em questão, é importante perceber que o Egrégio Tribunal, apesar de ter
entendido, já em 1998, que a fixação de subsídios numa mesma legislatura se configura ato
lesivo ao Poder Público e à moralidade, nada fez em relação ao art. 8º da EC nº 19/1998 e às
consequências desastrosas e vergonhosas que ela provocou: aumentos indiscriminados,
reiterados e desrespeitosos da remuneração dos membros do Congresso Nacional, em
desacordo com as necessidades e a realidade da população.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante os argumentos já expostos, conclui-se que, apesar de a Reforma Administrativa
fiscal e tributária que se alastrava em função do neoliberalismo, essa medida foi deturpada em
seu art. 8º.
O Senado e a Câmara Legislativa suprimiram um excerto do texto constitucional
com o escopo de facilitar o procedimento de majoração de sua remuneração por meios lícitos,
contudo, antiéticos.
Muitos anos se passaram e esse vício material presente na EC nº 19/1998 não teve a
devida atenção por parte dos juristas, passou despercebido pelo crivo de quem avaliou e
congratulou a Reforma Administrativa.
5
STF. ADI 3599. Rel. Ministro Gilmar Mendes j. 21/05/2007. DJ. 28/09/2007. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=486694>. Acesso em: 26 jul. 2011.
6
Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%20677>. Acesso em: 25 jul. 2011.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
ter sido proposta no intuito de melhorar o aparato estatal brasileiro frente à crise econômica,
89
FIDΣS
O estudo empreendido neste artigo sob a ótica do princípio constitucional da
moralidade, da teoria da Tripartição dos Poderes e do Abuso de Direito comprova que, de
fato, a alteração impetrada à Constituição Federal constituiu ato desonesto.
Cabe, portanto, processo de Controle de Constitucionalidade por meio de Ação
Direita de Constitucionalidade genérica, uma vez que a essência dessa alteração, seu caráter
material, vai de encontro à moralidade.
É inaceitável que tamanha afronta a um princípio constitucional permaneça no
ordenamento jurídico brasileiro, favorecendo atos inescrupulosos por parte dos agentes
públicos de mandatos eletivos, que passam a receber quantia vultosa enquanto a maioria da
população brasileira sobrevive com o valor irrisório de R$ 545,00.
É de extrema necessidade, portanto, que o STF revise tão relevante matéria para que
ações imorais dos Deputados Federais e Senadores não sejam legalizadas no ordenamento
jurídico brasileiro.
Espera-se que esse tema tão importante volte a ser discutido nas academias, haja
vista que apenas por meio do debate esse assunto ganhará visibilidade perante o Egrégio
Tribunal e, assim, as medidas cabíveis contra a imoralidade, que corrói as bases do Estado
Democrático de Direito Brasileiro, poderão ser tomadas.
REFERÊNCIAS
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NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 28. ed. São Paulo: Forense, 2007.
THE CONSTITUTIONAL AMENDMENT Nº 19/1998: THE IMMORALITY AT THE
ADMINISTRATIVE REFORM
ABSTRACT
This article aims to analyze the Constitutional Amendment nº
19/1998, known as the amendment of the Administrative Reform.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Efetivação. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 190, p. 1- 44, out./dez.
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This measure, although the benefits brought to the estate’s
bureaucratic machine, also introduced, in its 8th article, a normative
enunciation corrupted by immorality. The critical studying of this
theme was accomplished by instruments like the constitutional
principal of morality, the Montesquieu’s separation of powers, the
doctrine about abuse of rights and the understanding of the brazilian
Supreme Court about the subject. As conclusion, infers that the cited
amendment may suffer Constitutional Control, because of its material
vice in its essence.
Keywords: Constitutional Amendment nº 19/1998. Administrative
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Reform. Immorality. Brazilian National Congress.
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Recebido 01 ago. 2011
Aceito 29 out. 2011
INFLUÊNCIA DO ESTOICISMO SOBRE MARCO TÚLIO CÍCERO E O
PENSAMENTO JURÍDICO ROMANO
Françoise Dominique Valéry
RESUMO
O pensamento jurídico romano deve muito a Cícero e a sua apologia
da Lex como expressão da ratio naturalis, sempre igual por toda parte,
determinando o que deve ser feito e o que deve ser evitado. Tendo
como metodologia de base a pesquisa bibliográfica, o presente estudo
apresenta inicialmente as diferenças entre filosofia grega e romana,
situa rapidamente a ética estóica e aborda aspectos da vida e obra de
Cícero, principalmente a determinação da lei natural sobre a conduta
moral e ética do homem e o seu questionamento entre o justo por
natureza e o justo por lei ou convenção.
Palavras-chave: Estoicismo. Direito natural. Jusfilosofia. Cícero.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre a influência do Estoicismo sobre Marco Túlio
Cícero e o pensamento jurídico romano. Ao estudar as características da filosofia do Direito
em Roma, nota-se que um dos principais destaques diz respeito à contribuição de Marco Túlio

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduada em História,
pela Université Aix Marseille II (UAM) (França), e em Línguas Estrangeiras aplicadas, pela UAM. Mestre em
História Contemporânea, pela UAM, em Urbanismo, pelo Institut d´Aménagement Regional (IAR) (França), e
em Antropologia, pela UFRN. Doutora em Planejamento Urbano e Regional, pelo IAR. Pós-doutora, pela Ecole
d´Architecture Marseille Luminy (EAML) (França). Professora do Departamento de Arquitetura da UFRN.
Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4209389784311678>.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Direito romano.
93
FIDΣS
Cícero para a criação de uma tradição filosófica romana de cunho sincrético, já que ele teve
acesso às varias doutrinas que circulavam pelo império romano naquela época. Sofistas,
discípulos de Platão e Aristóteles, e principalmente os estóicos influenciaram o pensamento
do grande orador, especialmente atento à determinação da lei natural sobre a conduta moral e
ética do homem.
Pois, naquela época, se repete em Roma o grande questionamento acerca da
distinção posta na Grécia entre Direito Natural e Direito Positivo. Filósofos e juristas romanos
indagam acerca do que seria mais apropriado: o justo por natureza ou o justo por lei? Neste
debate, Cícero vai se posicionar, fazendo a apologia da Lex como expressão da ratio
naturalis, sempre igual por toda parte, que determina o que deve ser feito e o que deve ser
evitado, portanto tecendo um elo entre consciência natural, a ética e a prática da justiça.
É por este motivo que se faz importante o estudo do pensamento de Cícero, já que,
com suas reflexões e produção intelectual, ele desempenhou o papel de articulador entre as
várias correntes filosóficas e de sistematizador de uma forma de pensamento que marcou
profundamente o seu tempo.
O trabalho foi realizado tendo como metodologia a pesquisa bibliográfica, a coleta
de informações presentes em livros da Biblioteca Central Zila Mamede e em sites eletrônicos,
a leitura das obras e sistematização dos dados para servir de embasamento a reflexão pessoal.
No presente estudo, apresentam-se em primeiro lugar as diferenças entre a filosofia
grega e a romana, como correntes de pensamentos diversos do mundo antigo mas que se
interpenetram por força dos movimentos dos homens e da circulação das idéias, o que explica
o contexto no qual Cícero cresceu e atuou. Logo a seguir, situam-se rapidamente o estoicismo,
elementos da vida e obra de Cícero. Finalmente o trabalho focaliza a influência do estoicismo
sobre o pensamento de Cícero, e o legado deixado por Cícero ao direito e a filosofia romana.
2 DIFERENÇAS
ENTRE A FILOSOFIA GREGA E ROMANA E SUAS
CONTRIBUIÇÕES PARA O DIREITO.
É por demais conhecida a nítida diferença entre a filosofia grega, voltada para a
reflexão abstrata, na busca da essência do pensamento e da justiça, com seu leque de escolas e
contribuições, e a filosofia romana, que “não se deixa arrastar para a especulação”,
caracterizando-se “pela ausência de grandes abstrações e pela elaboração sistemática de
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a origem da escola estóica e certos aspectos da ética estóica. Então, abordam-se alguns
94
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doutrinas diferentes aplicadas a ordem dos fatos”, como afirma José Cretella Junior (1999, p.
104).
Ao contrário dos pensadores gregos mais voltados para a introspecção filosófica e
espiritual, é habitual retratar os romanos como pensadores que se destacam pela busca dos
aspectos mais práticos e utilitários das coisas, colocando o Direito a serviço de seus desígnios
de dominação do mundo e imposição da Lex romana aos povos vencidos e incorporados ao
domínio romano.
Por esse motivo, costuma-se afirmar que a filosofia romana não se preocupou tanto
em criar categorias abstratas de pensamento filosófico ao estilo platônico ou aristotélico,
voltando-se para a realidade, incorporando dos povos conquistados (dentro eles, a Grécia)
tudo que podia lhe ser útil e criando assim um sistema filosófico sui generis, feito de
amalgamas e reformulações cuja utilidade prática era evidente. Por força das conquistas, as
influências mais ecléticas possíveis adentraram Roma, sendo retrabalhadas pelos pensadores
romanos ao longo de cada período histórico. Dentre elas, as idéias vindas do Oriente, do
Norte da Europa, do Mediterrâneo, da Grécia próxima, floresceram e incorporaram-se aos
mais variados gêneros artísticos, literários e jurídicos. Nesse sentido, destaca Cretella (1999,
p. 106) que “a influência dos pensadores gregos é constante, apontando-se, aqui e ali, nas
definições, nos exemplos, nas colocações, traços do pensamento aristotélico, platônico,
socrático, estóico e epicureu”.
No meio desse caldo de idéias filosóficas e jurídicas, as doutrinas helênicas
assumiram certa importância em Roma, destacando-se principalmente a corrente estóica que
chegou a influenciar vários pensadores e homens políticos tais como o imperador romano
estudo.
3 A ESCOLA ESTOICA, SUA ORIGEM: ALGUNS ASPECTOS DA ÉTICA ESTÓICA
O estoicismo é uma doutrina que teve os seus antecedentes na Escola Cínica 1.
Fundada por Zenão de Cítio (335-263 a.C), a escola deve o seu nome ao local (o Pórtico com
1
A Escola cínica teve como representantes Antístenes (445-370 a.C) e Diógenes (413-323 a.C). Para eles, os
homens deviam limitar as suas necessidades e depender menos das coisas. Cada cidadão deveria agir livremente
e desatar os laços que o prendiam ao Estado e se transformar em cidadão do mundo (cosmopolitismo). A atenção
dos homens deveria voltar-se para as leis da virtude e não para os costumes e leis impostas pelo Estado.
Pregaram o retorno ao primitivo estado de natureza (NADER, 2000, p. 112).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Marco Aurélio (121-180 d.C.), Sêneca (4 a.C-65 d.C.) e Cícero (106-43 a.C), objeto de nosso
95
FIDΣS
pinturas ou Stoa poikile) onde seus seguidores costumavam se reunir na Ágora de Atenas. A
sua doutrina, sistematizada por Crisipo no século III a.C., se expandiu por toda a Grécia e
mais tarde no mundo romano.
Segundo relata Paulo Nader (2000), sob a influência de Heráclito, os estóicos
adotaram uma filosofia panteísta, sustentando que o universo seria conduzido por um
princípio geral, logos, a razão. Assim sendo, o mundo da matéria estaria impregnado de
racionalidade, e o homem seria essencialmente racional. Assim como os cínicos, os estóicos
pensavam que o homem deveria viver de acordo com a natureza, em busca de
aperfeiçoamento espiritual e racional, superando as suas paixões e os condicionamentos
sociais externos. “Estando o universo animado pela razão, está seria a fonte suprema a
orientar os homens e suas leis” (NADER, 2000, p. 113).
Há certa unanimidade entre os estudiosos para afirmar que a ética estóica postulava a
independência do homem em relação a tudo o que o cerca, mas, ao mesmo tempo, no sentido
de afirmar seu profundo atrelamento com causas e regularidades universais. Trouxe como
novidade a preocupação filosófica e ética com o conceito de dever. É justamente este apego
dos estóicos para temas tais como razão, dever, felicidade, sabedoria e autonomia que
encontrou ressonância com o universo intelectual romano, numa Roma então agitada por
muitos conflitos políticos (passagem da República ao Império) e morais (degradação dos
costumes antigos, crise dos valores romanos, invasão das influencias orientais), em busca de
novo caminho. Como mostra o trecho a seguir:
De tudo aquilo sobre que versam as discussões dos filósofos, nada tem mais valor
baseia na opinião, senão na natureza. Isto é evidente se se considera a sociedade e a
união dos homens entre si. Pois nada é tão igual, tão semelhante a outra coisa, como
cada um de nós aos demais. Por isso se a depravação dos costumes, a vanidade das
opiniões e a estupidez dos ânimos não retorcesse as almas dos débeis e as fizesse
gerar em qualquer direção, nada seria tão semelhante a si mesmo como cada um dos
homens a todos os demais" (Cícero, “As Leis”, Livro I, 10, 28-29)2.
Com efeito, estava se difundindo em Roma uma filosofia oriental bastante diferente
de sua principal concorrente, a proposta epicurista. Sabe-se que foi graças a um discípulo de
Posidônio de Apaméia (135-51 a.C), fundador de uma escola estóica em Rodes, e a Panaécio
2
Original contido na obra de Cícero “As Leis” citado por Evaldo Pauli (1997) no texto “O legado filosófico
helênico-romano”.
Disponível
em:
<http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/HelRom/2642y370.html>. Acesso em: 18 abr. 2011.
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que a plena inteligência de que nascemos para a justiça e de que o direito não se
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de Rodes (185-112 a.C) que o estoicismo conseguir penetrar e se expandir para dentro das
fronteiras romanas (BITTAR; ALMEIDA, 2007, p. 157). Enquanto várias correntes
filosóficas estavam conquistando grande número de discípulos, foi o estoicismo que obteve
maior penetração nos meios intelectuais, sobretudo com a divulgação das obras de Cícero,
Sêneca, Marco Aurélio e Epíteto. Segundo Nader (2000), essa notável influência da Escola
de Zenão de Cítio explica-se, em parte, pelo caráter austero dos romanos, que se identificaram
muito rapidamente com a linha ética daquela filosofia.
Os Estóicos chegaram carregando um discurso bastante novo na agitada Roma da
época : o do ideal de homem sábio, a saber daquele que vence todas as suas paixões e se livra
das influências externas, e que, obedecendo a suas convicções, atinge um estado de autentica
liberdade. “Sábio é o homem que, retraindo-se desse mundo, contra o qual nada pode, busca
refúgio em si mesmo. Destarte, torna-se senhor de si, vive sem perturbação, na ataraxia”
(ULMAN citado por BITTAR; ALMEIDA, 2007. p. 158).
Costuma-se definir a ética estóica como uma ética da ataraxia, e o filósofo estóico
como profundo respeitador do universo, de suas leis cósmicas e de si mesmo. Bittar e
Almeida (2007. p. 158) também afirmam que isto acontece porque, em primeiro lugar, o sábio
deve buscar se conhecer e conhecer suas limitações, de modo a ser capaz de alcançar a
ataraxia, a saber “um completo estado de harmonia corporal, moral e espiritual, por saber
distinguir o bem do mal”, não se deixando abalar excessivamente nem pelo bom, nem pelo
ruim, que possa acontecer com ele, já que, uma vez senhor de sua harmonia interior, deve
guardar um “estado imperturbável diante das ocorrências externas”.
Tal atitude era o resultado de profunda introspecção, seguida de tomada de posição
conhecimento, estava a crença numa lei natural que domina tudo e todos e que se reflete na
consciência individual de cada um. Para o filósofo estóico, o ser humano participa de uma lei
universalmente válida, que lhe impõe viver segundo essa mesma natureza para poder ser feliz
e se realizar pessoalmente, pois, segundo Bittar e Almeida (2007, p. 156) “a natureza humana
só se pode realizar uma vez observadas as regras do cosmo e a ordem divina das coisas”.
Os estóicos professavam portanto uma doutrina de caráter monista, onde os seres têm
apenas uma natureza e todas as pessoas são parte de uma mesma razão universal, o logos.
Ensinavam que o homem deve desligar-se das afeições, do mundo exterior e viver conforme a
natureza concebida pela razão. Portanto, esta postura filosófica levou os discípulos a enxergar
a existência humana com grande dose de fatalismo, tendo em vista que nada acontece por
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
acerca do papel do homem sábio, filósofo num mundo em plena mudança. Na raiz deste
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FIDΣS
acaso e que o destino de todos está traçado. Assim sendo, tanto as coisas felizes como as
desgraças são coisas naturais e devem ser aceitas com naturalidade.
Ao trazer essa reflexão sobre o sentido da vida e da ação humana, a ética estóica teve
repercussões diversas sobre os romanos. De um lado, pode-se afirmar que o estoicismo é
antes de tudo uma doutrina moral extremamente interessante, baseada na busca da perfeita
harmonia (a ataraxia) a partir do conhecimento que o homem tem das coisas naturais, sendo a
realização de toda ação fonte de mera satisfação intelectual e de felicidade interna. Deste
modo, o homem estóico é um ser dotado de razão: conhece, possui e acumula conhecimento
de varias fontes. Sua conduta se pauta pela ética: sabe o que deve fazer e não fazer, de acordo
com o seu conhecimento da natureza das coisas.
Por outro lado, esse mesmo pensamento favoreceu a emergência de uma ética
despreocupada com as conseqüências de seus atos e com a sua aplicação ao mundo político ou
jurídico, introduzindo assim no pensamento romano uma forma de descrédito na ação
humana. Os doutrinadores estóicos não se interessavam pelas coisas da cidade, nem pela sua
organização política. O homem sábio desinteressava-se pelas questões políticas, olhando
apenas para si, no intuito de encontrar a razão universal que reina sobre o mundo, adotando
uma moral indiferente aos prazeres e aos deveres propiciados pela vida social e política da
época.
Constata-se assim que o estoicismo, enquanto atitude mental de aceitação do destino,
gerou no ser humano uma busca pela realização racional e espiritual, interna e individual,
utilizando-se de técnicas voltadas para a introspecção. Separados espiritual e intelectualmente
do convívio com outros homens, os adeptos da nova filosofia procuravam o isolamento,
sobre o pensamento jurídico romano e para o fortalecimento de uma ética jurídica, com sua
compreensão de direito como um conjunto de normas éticas, universalmente válido,
atemporal, graças à interpretação que Cícero deu dos ensinamentos estóicos.
4 MARCO TÚLIO CÍCERO
De todos os pensadores romanos que deixaram sua contribuição ao estudo da
filosofia do Direito, quem se destaca é sem dúvida Marco Túlio Cícero (106-43 a.C), homem
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ostentando certo desprezo pelas questões políticas. Apesar disto, contribuíram para a reflexão
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FIDΣS
de imensa versatilidade e talento e de incontestável importância para o estudo do Direito 3.
Como veio de família abastada, sua educação foi ampla, colocando-o em contato com várias
culturas. Como magistrado (pretor) e político (senador), participou ativamente da vida
pública. Como filósofo, pertence à escola estóica, cujos ensinamentos se refletiram na ampla
obra que deixou. Por esses motivos, destaca-se a influência do estoicismo sobre o pensamento
de Cícero, e o legado deixado por ele ao direito e a filosofia romana.
Entre as obras políticas de Cícero, salientam-se a “De República”, de inspiração
platônica, que disserta sobre o problema da maior forma de governo e concluí que o melhor
governo é o da república romana, e a “De Legibus”, que se articula com a obra anterior,
quando Cícero discute a problema das relações entre direito positivo e justiça ideal. Entre as
obras filosóficas, citam-se obras onde Cícero discute a doutrina estóica, como por exemplo, a
“Acadêmica”, que retrata a evolução da filosofia grega desde Sócrates até Arcesilau (fundador
da Academia), resumindo as doutrinas gregas e incentivando a prática da dialética sob forma
de diálogo sobre o problema do conhecimento. Ao modo dos gregos, Cícero responde às
perguntas dos discípulos reunidos em torno dele, na sua casa de campo em Túsculo,
preocupados com a questão da espiritualidade da alma, de sua imortalidade, e da virtude.
Deste modo, pode se afirmar que:
Não se filiando de maneira total a nenhuma Escola, embora tenha sido discípulo do
estóico Posidônio, revela-se Marco Túlio Cícero um eclético, com objetivos
práticos, notando-se em seus escritos o aspecto formal do platonismo, sem o
desprezo de elementos evidentes do aristotelismo e do estoicismo (CRETELLA,
Não há dúvida quanto à importância de Marco Túlio Cícero para o desenvolvimento
da filosofia do direito, ao transmitir e discutir as doutrinas estóicas e a questão do direito
natural. É de Cícero a definição do direito natural, na “De Republica”: “Existe uma lei
verdadeira conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável e eterna” 4. Para
3
De acordo, com Renato Ambrosio, em artigo intitulado “Cícero e a história”, esse pensador, escritor e orador
eloqüente, foi também sistematizador, epistógrafo e retórico. Sabe-se que escreveu perto de duas dezenas de
tratados e ensaios filosóficos, dos quais somente doze (na maior parte fragmentados) chegaram até nossos dias .
Por inclinação pessoal e acadêmica em estudos sobre história social da velhice, já conhecia bem o “De
Senectude” (onde Cícero faz o elogio da velhice) e “De Amicitia” (onde Cícero mostra a importância da
amizade). Textos que se tornaram famosos pelo alcance universal das palavras do escritor romano. AMBROSIO,
Renato. “Cícero e a história”. Revista de História, São Paulo, n. 147, dez. 2002.
Disponível em:
<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S0034-83092002000200001&script=sci_arttext>.
Acesso
em: 19 ago. 2011.
4
Tradução livre de“Est quaedam ver Lex, naturae congruens, diffusa in omnes, constantes, sempiterna. Original
encontrado na obra de Cícero “De republica” citado por Cretella, 1999, p. 113.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
1999. p. 108).
99
FIDΣS
Cícero, as leis naturais de inspiração divina, observadas em quase todas as nações,
permanecem sempre firmes e imutáveis, enquanto as leis dos homens costumam mudar de
cidade para cidade, sob influência dos governantes ou por causa de leis posteriores, como
mostra o texto a seguir:
Existe uma verdadeira lei, conforme à natureza, gravada em todos os corações,
imutável, eterna; sua voz ensina e preserva o bem; suas proibições afastam o mal.
Ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos
bons, nem fica impotente ante os maus.
Essa lei não pode ser contestada, nem anulada, nem alterada em parte. Nem o povo,
nem o senado podem dispensar-nos de seu cumprimento; não há que procurar para
ela outro comentador nem intérprete, não é uma a lei em Roma, e outra em Atenas,
uma agora, e outra depois, senão uma lei única, eterna e imutável, que obriga entre
todos os povos e em todos os tempos; um só será sempre o seu imperador e mestre,
Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-lo
sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se de seu caráter humano e sem deixar de
atrair sobre si as penas máximas, ainda que tenha conseguido evitar os demais
suplícios (Cícero, “De Republica”, Livro III, 17)5.
Havendo, portanto, de um lado, uma razão abstrata e suprema acima dos homens,
uma lei não escrita, extraída da natureza e que se impõe a todos; por outro lado, a repercussão
deste idéia no direito romano, que não era praticado somente por filósofos ou sacerdotes, mas
onde a prática da aplicação da Lex romana se dava através dos jurisconsultes, cujas decisões
serviam de embasamento para dizer o direito no caso concreto. Deste modo, as idéias estóicas
imediatas e necessárias da racionalidade humana” (REALE, 2010, 629).
Para Cícero, ainda em “De republica” (Livro III), o Direito Natural seria “a reta
razão em concordância com a natureza” e por esse motivo seria eterno, imutável e universal.
Opondo-se a idéia de encontrar o justo nos costumes e leis vigentes, proclamou que a noção
do justo vinha da natureza e que esse valor antecedia as leis positivas. Assim, embora não
fosse idêntico em todos os lugares, o sentimento de justiça seria comum a todos os homens e a
lei seria algo derivado da natureza (NADER, 2000, p. 115).
Explorando mais o pensamento de Cícero, verifica-se que, ao exemplo dos estóicos,
não considera o ser humano como isolado do mundo ou superior a este. O homem é apenas
5
Original contido na obra de Cícero “As Leis” citado por Evaldo Pauli (1997) no texto “O legado filosófico
helênico-romano”. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Hel-Rom/2642y370.html
>. Acesso em: 18 abr. 2011.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
vão ser utilizadas para expressar “certos princípios gerais de conduta, como exigências
100
FIDΣS
uma parte do universo, do cosmos; por isso precisa manter contato com a Natureza, já que
sem essa integração, não há felicidade porque o mundo fica sem sentido. Como esclarece José
Manuel de Sacadura Rocha (2007, p. 37), esse modo de pensar reflete-se na prática da justiça:
a moral que se vai encontrar é aquela que nos dá consciência de tudo que nós cerca,
de igualdade na medida em que somos seres naturais e temos todos os mesmos
direitos. Os homens que têm o poder e podem usá-lo não se dão conta de como se
afastaram da integração com o universo. É nesta integração que os homens saberão
como praticar o bem e a justiça e terão a dimensão exata de sua fragilidade e o
sentido de usar a lei para assegurar a igualdade e o bem estar de todos os cidadãos,
de acordo com as leis da natureza.
Decorrentes dessa relação entre homem e natureza e do reconhecimento dos seres
humanos como portadores de direitos, estão os fundamentos da jusfilosofia enquanto diretiva
de que os homens têm direitos a serem alcançados e respeitados independentemente da
variedade dos sistemas jurídicos. Assim, constrói-se o caminho do jusnaturalismo e sua
aplicação ao direito romano, utilizando-se a naturalis ratio na busca de solução jurídica mais
apropriada à realidade concreta.
De um lado, tem-se o direito natural, universal em duplo sentido: universal por ser
comum a todos os homens e povos, e universal porque determina o que sempre é bom e justo.
Do outro lado, o direito positivo romano (ius civile) que se refere ao útil, e por isso é peculiar
de cada povo e diferente em cada um deles, já que o útil varia no tempo e no espaço. Assim
sendo, o direito proveniente da naturalis ratio recebeu a denominação de ius naturale
direito próprio e especifico dos homens). Essa forma de ver o direito não vai deixar de
influenciar o pensamento jurídico posterior6. Não somente pensadores romanos como Ulpiano
ou Seneca, mas outros que enveredaram na reflexão acerca de uma ética moral e política
norteada pela essencialidade e universalidade dos direitos ligados à condição humana. Estava
traçado o caminho que, “depois de uma evolução multissecular”, transformou essas idéias em
“direito natural, direito internacional e direito privado de cada Estado” (HERVADA, 2008, p.
342).
6
Segundo Miguel Reale (2010, p. 629-630), parte do pensamento estóico influenciou a formulação de uma
doutrina ciceroniana que contemplou a distinção entre jus naturale e jus gentium , enunciada por Cícero como
teoria tripartite (jus civile, jus gentium ac jus naturale) que depois iria ser defendida especialmente por Ulpiano.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
(enquanto direito comum a todos os homens) em complementação ao ius gentium (enquanto
101
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5 CONCLUSÃO
É possível concluir que o estoicismo, enquanto corrente filosófica que estabeleceu
suas bases na Grecia e se expandiu durante mais de cinco séculos (300 a.C. - 200 d. C.) no
mundo romano, não alcançou as alturas da filosofia de Platão e de Aristóteles, mas, em parte
graças às obras de Cícero, contribuiu à formação de parte da ideologia própria ao mundo
romano. Como propiciou a assimilação de elementos ecléticos, o estoicismo adquiriu uma
nova função, como sistema ético sobre o qual a República romana pretendia assentar-se.
Contribuiu para o surgimento de uma experiência própria na aplicação do Direito em Roma, o
que se refletiu na da distinção entre lícito moral e lícito jurídico, bem como entre aequitas e
utilitas. O Direito teria assim como finalidade traçar os limites da ação dos indivíduos, não
lhes impondo o dever de fazer algo, mas o respeito a certos princípios tais como o ideal de
alcançar a felicidade com fiel subordinação à natureza, aos ditames da razão.
A doutrina ética, como forma de ajudar o indivíduo a aceitar a adversidade,
representou o principal apelo do estoicismo nesse período. O homem devia viver de acordo
com a razão e ser indiferente a desejos e paixões, já que a verdadeira felicidade não está no
sucesso material, mas na busca da virtude, da justiça, da honestidade. Alegrias e infortúnios
devem ser igualmente aceitos, porque seguem o ritmo natural do universo. Além disso, o
homem político, segundo Cícero, só atinge a virtude suprema se sua atuação estiver voltada
para o bem de seu povo. Esse aspecto aproximou a concepção política romana da grega, tendo
em vista a importância que representou o valor da vida na Urbs como o foi na Polis.
Durante o período imperial romano, enquanto durou a pax romana, observando o
Aurélio utilizaram-se dos ensinamentos dos estóicos para criar os alicerces teóricos que
deveriam dignificar o poder imperial. Deste modo, pode-se afirmar que a doutrina estóica
serviu de base ontológica ao Direito Romano e que sua filosofia serviu também de grande
preparação para o Cristianismo, tendo em vista a adoção de alguns preceitos de sua doutrina
moral pela igreja cristã.
O legado estóico foi bastante amplo, não somente durante o período de declínio do
Império Romano e a Idade Média, mas também na Reforma e no Renascimento, quando o
humanismo e o naturalismo estóicos ressurgiram e se fizeram presentes em vários autores
(Montaigne, Pascal), na moral cartesiana, no monismo de Spinoza e no vitalismo de Leibniz.
Por tanto, não é por acaso que o estudo do direito romano e a questão de moral e
ética são ainda debatidos nos cursos de filosofia do Direito, tendo em vista a força dos
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
fastio e a dissolução dos princípios morais da sociedade romana, Sêneca, Epicteto e Marco
102
FIDΣS
argumentos expressos em favor da existência ontológica de um núcleo de realidade jurídica
inerente à pessoa humana e à sociedade, igual em todos os homens, e o tamanho da polêmica
que se criou em relação à afirmação da superioridade do Direito Natural sobre o Direito
Positivo.
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FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
abr. 2011.
103
FIDΣS
THE STOICISM´S INFLUENCE OVER MARCO TÚLIO CÍCERO AND THE
ROMAN LEGAL THOUGHT
ABSTRACT
The Roman legal thought owns a lot to Cícero and his ratio naturalis
expression as an apology to Lex, always the same everywhere,
ascertaining what needs to be done and what needs to be avoided. The
study, methodologically based on bibliographical research, shows
initially the differences between Roman and Greek philosophy,
quickly situates the Stoic ethic and addresses Cícero’s work and life
aspects, emphasizing mostly the determination of the natural law over
human being’s moral and ethic conduct and its questioning between
the “fair by nature” and the “fair by law or convention”.
Keywords: Stoicism. Natural Law. Jusphilosophy. Cícero. Roman
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Law.
104
FIDΣS
Recebido 19 fev. 2011
Aceito 26 out. 2011
DE QUE LADO ESTÃO OS DIREITOS HUMANOS?
Helena Cristina Aguiar de Paula
RESUMO
O equivocado entendimento sobre o que são os direitos humanos,
disseminado entre população e policiais, é responsável pela
hostilidade com a qual se trata do tema. Entretanto, tais direitos não
podem ser confundidos com os órgãos que os promovem. Em razão
disso, este trabalho propõe a educação voltada ao esclarecimento do
conceito de direitos humanos como forma de propagar sua aceitação,
especialmente por policiais. Para tanto, pesquisas em artigos e livros,
principalmente de autores profissionais de segurança pública, foram
utilizadas. O conhecimento provocará a diminuição da cultura de
violação dos direitos da pessoa humana.
“Temos de nos tornar na mudança que queremos ver”.
(Mahatma Gandhi)
1 INTRODUÇÃO
Parcela da população costuma se referir aos direitos humanos como uma instituição
protetora dos direitos de marginais e da impunidade, contra a atuação de policiais que buscam
eliminar tais elementos da sociedade. Talvez influenciada por alguns órgãos mais críticos a

Graduada em Direito, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Oficiala de Justiça do Tribunal de
Justiça de Pernambuco. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9108485094969039>.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Palavras-chaves: Direitos humanos. Polícia. Educação.
105
FIDΣS
abusos policiais, retratados pela mídia, que parecem se preocupar mais com a dignidade da
pessoa do bandido que de qualquer vítima, familiares desta e policiais que se arriscam
cotidianamente no combate a criminosos.
O que se veicula nos canais de comunicação, na maioria das vezes, são as
organizações de direitos humanos atuando em defesa de sujeitos em contrariedade com a lei,
arraigando a ideia de que apenas pra proteger bandido servem esses órgãos. Ademais,
percebe-se a ausência desses agentes dos direitos humanos em quartéis e centros de polícia,
buscando assistir profissionais de segurança pública que ficaram incapacitados em combate,
famílias órfãs desamparadas pelo Estado, ou em situações geradas por despreparo técnico e
falta de acompanhamento psicológico desses policiais em permanente condição de estresse.
Neste momento, o policial se afasta ainda mais da ideia de necessidade de preservação dos
direitos humanos.
Diante dessa demonstração de desigualdade, a polícia passa a rechaçar instituições de
direitos das quais – esquece – a própria entidade policial faz parte. Os direitos humanos,
então, se juntam ao rol de inimigos da polícia, de forma incoerente e preconceituosa, tendo
em vista que são para preservar os direitos de toda a pessoa humana, em que felizmente ou
infelizmente se incluem os criminosos, que existe a polícia em um Estado democrático de
direito.
O desconhecimento (ou erro conceitual) sobre a temática dos direitos humanos, sob o
enfoque político-ideológico, e a discordância dos procedimentos práticos e legais utilizados
por seus órgãos são fatores que desencadeiam uma reação de contrariedade por parte da
polícia.
procura explicar melhor o sentido do termo direitos humanos. No Brasil, o enfrentamento do
tema direitos humanos e segurança pública ainda é escasso. Por isso, foi crucial para esta
pesquisa a obra do professor e ex-secretário Nacional de Segurança Pública (SENASP) do
Ministério da Justiça, Ricardo Balestreri, que em seu livro “Direitos humanos: coisa de
polícia”
buscou
harmonizar
a
atuação
policial
com
o
respeito
aos
direitos
humanos. Ainda,foram pesquisadas obras científicas sobre o tema. Ao final, o título deve ser
lido: “Afinal, de que lado está a polícia?”.
2 ENTENDENDO O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Esse trabalho, voltado especificamente para profissionais de segurança pública,
106
FIDΣS
Nas primeiras aulas de Direito Constitucional já se falavam em direitos e garantias
fundamentais, algo nunca antes visto até o advento da Constituição Federal de 1988. O marco
no constitucionalismo brasileiro se deveu a uma tendência de proteção a pessoa humana, no
âmbito internacional pós-Segunda Guerra Mundial. Esses direitos, mencionados em maioria
no artigo 5º da Constituição, são voltados aos brasileiros e estrangeiros residentes no País.
Alguns autores preferem denominar certos direitos inerentes à proteção do indivíduo
de liberdades públicas, direitos fundamentais da pessoa humana, garantias individuais. Outros
utilizam a expressão “direitos humanos”, que apesar de sinônimo dos demais, produz um
efeito mais forte e polêmico. Dalmo Dallari (1998, p. 07) explica que “a expressão ‘direitos
humanos’ é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana”.
Esses direitos ganharam destaque quando a necessidade de valorização do indivíduo
alcançou dimensões mundiais. Adquiriram especial atenção ao longo dos séculos, inaugurada
no Ocidente pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, marco da
universalidade dos direitos fundamentais à liberdade e dignidade humana. Após, aprova-se,
em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, reunindo os principais valores das
três dimensões de direitos: direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos.
Apesar de estas declarações não serem imbuídas de força normativo-jurídicas,
abrangem todos os cidadãos, em todas as classes. Surgiram quando o humanismo político
alcançou seu ponto mais alto. A Declaração das Nações Unidas de 1948, após findas as duas
Grandes Guerras Mundiais e o período de extermínio nazista, conquistou, no tocante a
exposição dos direitos e garantias, o que nenhuma Constituição ousaria lograr em um
consenso universal.
internacional para compelir os Estados a incorporarem tratados que versam sobre direitos
humanos. Na Constituição Federal de 1988 já se menciona tais direitos, decorrentes de
tratados dos quais o Brasil seja parte, atribuindo-lhes o status de norma constitucional. É o
que se depreende da leitura do art. 5º, §2º da Constituição Federal1.
Nesse sentido, afirma Flávia Piovesan (2010, p. 55):
Ainda que esses direitos não sejam enunciados sob a forma de normas
constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a carta lhes confere o
1
Art. 5º [...] § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
As atrocidades cometidas no período entre guerras vieram à tona, provocando clamor
107
FIDΣS
valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o
catálogo de direitos fundamentais previstos pelo Texto Constitucional.
As normas decorrentes do direito internacional, cujos tratados o Brasil seja
signatário, compõem o chamado “bloco de constitucionalidade”, de onde os legisladores e
aplicadores do direito trazem a referência e o limite de atuação. Esse bloco transcende o que
deixou escrito o constituinte brasileiro, inclui valores jurídicos que regem toda a comunidade
internacional.
Seguindo a evolução do constitucionalismo, chega-se a Constituição Federal de
1988, cujo epíteto de “Carta cidadã” já demonstra a preocupação que os parlamentares
tiveram em positivar garantias óbvias, mas necessárias ao sepultamento do regime militar.
Constata-se na leitura do art. 5º da Constituição Federal a disposição de alguns
incisos, os quais ensinam que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a
obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei,
estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio
transferido” (inciso XLV); “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”
(XLIX); “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória” (LVII); “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (LXIII); “a
prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (LXV); dentre muitos
outros.
Nota-se que esses dispositivos possuem como destinatários imediatos pessoas que
primeiro mito, o de que bandido não é cidadão 2. Péssima notícia aos simpatizantes do direito
penal do inimigo de Günther Jakobs3. A ideia de que criminosos (inimigos) não merecem do
2
Com a condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, ocorrerá a suspensão dos
direitos políticos, pelo que dispõe o art. 15, III da CF.
3
Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo
sistêmico (radical), que sustenta que o Direito penal tem a função primordial de proteger a norma (e só
indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). No seu mais recente livro (Derecho penal del
enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003), abandonou claramente sua postura
descritiva do denominado Direito penal do inimigo (postura essa divulgada primeiramente em 1985, na Revista
de Ciência Penal - ZStW, n. 97, 1985, p. 753 e ss.), passando a empunhar (desde 1999, mas inequivocamente a
partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora (p. 47) dessa linha de pensamento. (GOMES, Luiz
Flávio.
Direito
penal
do
inimigo.
10
de
jan.
de
2005.
Disponível
em
<
http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7B488C5029-7244-4D5C-BA7C-43441FDB80D0%7D_7.pdf>. Acesso em
28 de set. de 2011).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
cometeram crimes, ou que estão sendo acusados de cometer. Portanto, pode-se vencer o
108
FIDΣS
Estado as mesmas garantias humanas fundamentais, pois estariam fora do sistema, à luz do
sistema constitucional brasileiro, seria manifestamente inconstitucional.
Pelo menos a Constituição trata criminosos, sim, como indivíduos e ainda mais como
sujeitos de direitos fundamentais. “A superação desses obstáculos envolve profissionais de
segurança pública eficientes e atuantes, que tenham por referência primordial a ênfase na ação
técnica, sem, contudo, abdicar ‘da eficiência e força na prevenção e repressão do crime’”
(BRASIL, 2006, p. 51).
A educação voltada aos policias vem dissolver a compreensão equivocada sobre o
tema e, consequentemente, promover a mudança na cultura de violação dos direitos humanos.
O que deveria ser disseminado na instituição policial, cujo escopo é garantir a ordem social, é
que são estes os protagonistas na defesa dos direitos humanos, sob pena de se reduzirem a
aglomerados de funcionários da violência, ou de corporativistas simpáticos à banalização do
mal, sendo também seus produtores.
Observa Santana da Silva4 (2004, p. da internet):
A matéria Direitos Humanos até pouco tempo não fazia parte da grade curricular das
escolas de formação policial no Brasil. O estudo dos Direitos Humanos nas polícias
brasileiras surgiu da necessidade das instituições de segurança pública se adaptarem
aos novos tempos democráticos, os quais exigiam mudanças profundas na máquina
estatal. As constantes denúncias de violações sistemáticas dos Direitos Humanos
daqueles que estavam sob a custódia da polícia e as pressões sociais para a extinção
de alguns órgãos de segurança pública que desrespeitavam os direitos inalienáveis à
vida e a integridade física, permitiram que, pelo menos, a discussão sobre o tema
Os profissionais de segurança pública, pois, cujo lema é servir e proteger, tem o
dever de promover e respeitar os direitos de toda a pessoa humana. Para isso, devem
compreender o sentido dos direitos humanos como os elementares de uma vida livre e digna
de um indivíduo, grupo ou nação, protegidos nacional e internacionalmente.
A falta de conhecimento sobre o tema leva alguns a associar certas entidades mais
austeras quanto à proteção dos direitos humanos com o significado do que são essencialmente
direitos humanos explícitos na legislação. Dizer que se é a favor dos direitos humanos
4
SILVA, Suamy Santana da. “Direitos humanos e só para proteger bandido?”. Março 2004. Disponível em
<http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php?id=2441> Acesso em: 16 ago. 2011.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
penetrasse através dos muros dos quartéis e dos prédios das delegacias.
109
FIDΣS
provoca reação imediata daqueles que visualizam e discordam da forma severa de atuação
daqueles órgãos.
Contudo, manifestar-se a favor de tais direitos não implica obrigatoriamente em
corroborar os métodos e procedimentos de algumas entidades. Há uma manifesta diferença
entre aqueles órgãos de proteção dos direitos humanos – compostos por militantes menos ou
mais tolerantes à intervenção policial – e o conceito de direitos humanos enquanto declaração
jurídica de proteção a pessoa humana. A população prefere se referir a “direitos humanos”
tudo o que se intitula de direitos humanos, banalizando o tema e provocando a visível
rejeição.
Fernandes Neto5 (2009, p. de internet) aduz que:
Diante da complexidade atual da segurança pública e da necessidade de promoção e
defesa dos Direitos Humanos, a Matriz Curricular Nacional (MCN) surge como
norte para a formação policial, ao criar a possibilidade de uniformização das ações
formativas dos profissionais de segurança pública, fruto da nova cultura e gestão
política da política de segurança pública, que considera a necessidade da
transversalidade e da especificidade dos direitos humanos no processo de formação
dos profissionais de segurança pública.
Séculos de luta garantiram, ainda que de forma tímida, direitos dos negros, das
mulheres, dos idosos, dos deficientes físicos, dos índios, enfim, de grupos vulneráveis. Não há
razão para hostilizar os direitos humanos, muito menos por aqueles que também são
reconhecidos pelo Programa Nacional dos Direitos Humanos como um grupo vulnerável – os
3
SEGURANÇA
PÚBLICA
E
DIREITOS
HUMANOS,
O
QUE
HÁ
DE
CONTRADITÓRIO NISSO?
A sociedade brasileira vive a era da pós-modernidade, dos avanços da tecnologia da
informação e da economia. Entretanto, acompanharam-na uma nova geração de crimes
5
FERNANDES NETO, Benevides. “Adequação do ensino dos direitos humanos no curso de formação de
soldados e o contexto atual da Segurança Pública”. 05 jan. 2009. Disponível em
<http://www.lfg.com.br/artigo/20081217150712559.html>. Acesso em: 25 out. 2010.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
policiais.
110
FIDΣS
ligados ao consumismo capitalista que, aliada à falta de modernização das instituições
policiais, permitiu o aumento da criminalidade, produzindo o cenário que vivemos hoje.
Complicador é o entendimento que se tem sobre a presença e eficiência do Estado no
campo da Segurança Pública, tal como se mostra no debate jornalístico da opinião pública. A
população assiste ao despreparo do Estado e se vê obrigada a se proteger com as próprias
armas e recursos.
Para José Luiz Ratton (2000, p. 58)
não se procura a Polícia, especialmente na periferia da sociedade, porque ela é
ineficiente, ineficaz e arbitrária. Não se procura o Ministério Público e o Judiciário,
especialmente na periferia da sociedade, porque são tão elitistas, que num contexto
de escassez de informação e educação, não se sabe que estas instituições são as
mediadoras legais e públicas dos desacordos privados dos indivíduos.
Diante de tal situação, quais medidas viriam como solução para o problema da
segurança pública no Brasil? Pode-se sugerir o fortalecimento das instituições, capacitando os
policiais a atuarem na prevenção e repressão aos crimes, remunerando-os dignamente; a
criação de uma polícia desmilitarizada, tendo em vista não nos encontrarmos em situação de
guerra e, portanto, não lidarmos com inimigos, mas com cidadãos; um sistema prisional que
funcione, ou seja, puna e ressocialize o preso.
A maior parte dos caminhos que levam a uma Justiça criminal, observa-se, envolve a
intensificação do respeito aos direitos humanos.
Segundo Ratton (2000, p. 58) “políticas de segurança pública democráticas e eficazes
civis na periferia social”.
A recuperação do Estado democrático de direito como principal agente de Segurança
Pública é o primeiro passo para combater a violação dos direitos humanos. O cidadão comum
passa a confiar nas instituições que reprimem e punem o criminoso, abandonando métodos de
vingança privada.
O segundo passo diz respeito à própria formação dos policiais, que também não
acreditam na sua capacidade de colher provas licitamente, capazes de produzir um inquérito
idôneo a condenação do criminoso. A própria polícia não acredita que o agressor será
devidamente punido e termina usurpando o poder de jurisdição do Estado, reunindo em suas
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
em um País como o Brasil significam primordialmente aumentar a densidade dos direitos
111
FIDΣS
mãos a competência de instruir, sentenciar, condenar e executar a pena, de forma arbitrária,
ilegal e antiética.
A época da ditadura militar é relembrada por alguns policiais como período em que a
polícia era respeitada. A população temia a polícia pelas escancaradas cenas de arbitrariedade,
o que talvez a fizesse “investigar” melhor, pelo menos oferecia resultados rápidos. Ilustra o
professor Carvalho (2005, p. 160) que “o perigo comunista era a desculpa mais usada para
justificar a repressão. Qualquer suspeita de envolvimento com o que fosse considerado
atividade subversiva podia custar o emprego, os direitos políticos, quando não a liberdade do
suspeito”. De longe parecia com a polícia de um estado democrático de direito.
Por fim, para Ricardo Balestreri (2003, p. 21),
Ao policial, portanto, não cabe ser cruel com os cruéis, vingativo contra os antisociais, hediondo com os hediondos. Apenas estaria com isso, liberando, licenciando
a sociedade para fazer o mesmo, a partir de seu patamar de visibilidade moral. Não
se ensina a respeitar desrespeitando, não se pode educar para preservar a vida
matando, não importa quem seja. O policial jamais pode esquecer que também o
observa o inconsciente coletivo.
Parece algo demasiadamente teórico as palavras de Balestreri, distante da realidade da
prática policial. Talvez porque predomina na comunidade em geral a ideia de que o papel de
promover os direitos humanos não cabe a polícia, e sim a essas ONGs ou entes do Estado
preocupados com marginais e que tanto crucificam policias heróis justiceiros da sociedade.
Levando em conta que os policiais são recrutados em meio a essa comunidade cheia de
cabeça desses policiais.
Será que a maior problemática não está inserida na própria política de segurança
pública? O que se vê é o controle sob a atividade policial – cuja fiscalização se mostra mais
forte em casos de repercussão, menos atuante na periferia –, contudo, não se percebe o
reconhecimento de seu trabalho, desmotivando os policiais e provocando-lhes uma
equivocada inversão dos valores.
Talvez tenha chegado a hora de se ver a segurança pública sob uma nova ótica, não
como apenas a segurança do Estado ou defesa do patrimônio. Como defende Lúcia Lemos
Dias (2010, p. 219), “assinala-se a necessidade de uma nova abordagem de segurança pública,
caracterizada pela ampliação conceitual, de modo que sinalize a efetivação dos direitos
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
conceitos arraigados, não poderia se manifestar diferentemente o preconceito contido na
112
FIDΣS
humanos de forma integrada para e com os cidadãos indistintamente”. Essa forma de
compreender a segurança pública, associada à defesa social, vem datada da Constituição de
1988. Portanto, é preciso fazer valer finalmente o direito à segurança atrelado aos direitos
humanos para todos neste país.
4 CONCLUSÃO
Para extirpar de vez o preconceito que perdura na mente da população de que direitos
humanos e segurança pública não caminham juntos, precisa-se de uma educação presente e
eficaz relacionada ao tema. Com relação especificamente aos profissionais de segurança
pública, o ensino para transformação deve iniciar nas academias de polícia e cursos de
formação.
O abandono de práticas que instigam o ódio ao “inimigo” – atentar que o inimigo a
que se referem é a própria sociedade – ainda presentes em alguns centros de formação de
policiais é imprescindível e urgente. Aliás, crucial é eliminar das academias o insulto aos
direitos humanos, promovidos por instrutores despreparados, desinformados e truculentos.
Esse tipo de policial não pode mais ser tolerado.
Para os profissionais da segurança, existe uma linha tênue entre agir com legalidade
e atuar conforme seu senso de justiça que, algumas vezes, contraria a lei. O policial é,
sobretudo, humano e é inviável exigir que todos os seus valores, que incluem amizade,
compaixão, ira, sede de justiça, fiquem num plano alheio durante o horário de serviço.
em defesa da paz de todos, sob pena se tornarem pior do que aquilo que pretendem combater.
A forma que devem agir diante de um suspeito, interrogado, indiciado, é de uma pessoa
garantida e assegurada pela lei, que passará por um processo judicial garantidor e, ao final,
decidir-se sobre a condenação. Antecipar esse processo é agir ilegalmente.
Mas o grande culpado de tudo isso é o Estado. A falta de estrutura para resolver as
demandas judiciais e para se confeccionar um inquérito hábil, com provas suficientes à
condenação, causa à população a sensação de impunidade e aos policiais a necessidade de
fazerem justiça com suas mãos, tendo em vista que de outra forma a justiça não proverá.
O que resta fazer é apelar para a prevalência do conhecimento. O entender, o
interpretar e o respeitar irão extrair do plano teórico os direitos humanos. Pois o grau de
humanidade nas pessoas ditará o nível de evolução de um país.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Contudo, tais profissionais devem-se considerar promotores dos direitos humanos,
113
FIDΣS
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IN WHICH SIDE ARE HUMAN RIGHTS?
ABSTRACT
The mistaken understanding of what human rights are, widespread
among the population and the police, is responsible for the hostility
that comes with the issue. However, these rights cannot be confused
with agencies that promote them. As a result, this paper proposes
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
RATTON, José Luiz. Crimes, Políticas de Segurança Pública e Cidadania: Dilemas e
114
FIDΣS
education aimed at clarifying the concept of human rights as a way of
disseminating their acceptance, especially by police. Articles and
books, mostly written by professionals in public safety, were used for
that. The knowledge will lead to a decrease of human’s rights
violation.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Keywords: Human rights. Police. Education.
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Recebido 20 jun. 2011
Aceito 26 out. 2011
OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS DE PERELMAN: A CONSTRUÇÃO DE
UMA NOVA RETÓRICA JURÍDICA
Lauro Ericksen Cavalcanti de Oliveira
RESUMO
O trabalho faz uma exposição acerca dos conceitos quase-lógicos da
argumentação jurídica desenvolvida por Perelman em conjunto com
Olbrechts-Tyteca. Vale-se de suas conceituações práticas sobre a
variabilidade da aplicação de regras de justiça aos casos jurídicos,
desenvolvendo isso na sua expressão decisória, dando completude ao
novel sistema-lógico do direito. Trabalham-se os argumentos quaselógicos e as suas mais diversas formas de compreensão de
possibilidades de razoabilidade, adequação e de proporção com os
demais elementos jurídicos. Funda-se um paradigma jurídico
interpretativo nessas novas colocações argumentativas e se aponta os
tradicional, propondo uma nova retórica jurídica.
Palavras-chave:
Argumentos
Quase-Lógicos.
Lógica
Jurídica.
Retórica.
“Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”.
“Sobre aquilo de que o homem não pode falar, então, deve-se calar”.
(Ludwig Wittgenstein)

Graduado em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tecnólogo em Controle
Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN).
Graduando do curso de Filosofia da UFRN. Mestrando em Filosofia pela UFRN. Oficial de Justiça Avaliador
Federal
do
Tribunal
Regional
do
Trabalho
da
3ª
Região
(MG).
Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/8447713849678899>.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
caminhos meramente dogmáticos da costumeira lógica jurídica
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1 INTRODUÇÃO
Lógica e direito são temas científicos que raramente são tratados em conjunto pela
comunidade jurídica. O fundamento para essa dissensão usualmente se dá por certo
comodismo, seja dos filósofos seja dos juristas, em não se debruçarem sobre essa confluência
temática que junta esse ramo filosófico específico e a interpretação do direito, sustentáculo
para o desenvolvimento desses estudos.
Com essa premissa básica, o presente trabalho tem o escopo de apresentar os
delineamentos básicos das novas conceituações lógicas (quase-lógicas) de Chaïm Perelman,
nas quais ele propõe uma aproximação entre a realidade jurídica e a lógica a partir de
argumentações dinâmicas e concretas, fundamentadas em possibilidades de alteração
conclusiva de decisões judiciais e outros elementos decisórios do direito. A sua estrutura
fundamental de pacificação social.
Nessa toada é que serão expostos os argumentos quase-lógicos de Perelman,
enfocando, primordialmente, a questão das compatibilizações lógicas providas por tais
argumentos, e depois verificando as possibilidades de suas formulações em proposições
jurídicas com base em regras de justiça para que a sua nova retórica seja algo plausível dentro
da sistemática jurídica tal como ele a propôs. Essa abordagem quase-lógica de Perelman é que
servirá de fundamento metodológico para que a temática das decisões jurídicas possam ser
analisadas de acordo com a sua concretude prática, sobrelevando-se, assim, às parêmias
totalmente diversa.
O presente artigo se subdivide, além da presente introdução, em mais duas seções
seguidas de uma seção dedicada apenas às considerações tomadas em síntese do pensamento
exposto. Na seção subsequente serão apresentadas as modalidades das atitudes lógicas que
podem ser colocadas em disposição do agente decisório: atitude lógica, atitude prática e
atitude diplomática. Elas servem de sustentáculo para que se compreenda como se dão as
incompatibilidades lógicas na argumentação no sistema decisório e como elas podem ser
trazidas à baila para que se facilite o seu sistema de incorporação ou de eliminação (busca-se,
em última instância, evitar a incompatibilidade no momento de se exarar a decisão) na decisão
a ser tomada (a qual consiste na concepção de um novo sistema retórico a ser utilizado como
instrumento de compatibilização nas decisões a serem proferidas). A terceira seção trata de
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clássicas da lógica jurídica tradicional, que se calca em uma metodologia interpretativa
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como a aplicação da nova retórica é efetiva para os meandros jurídicos, como ela se processa
e como ela influencia os parâmetros decisórios. A última seção, dedicada ao fechamento do
trabalho, tem por escopo fornecer, como já dito, uma breve síntese do pensamento exposto,
estatuindo de maneira mais sólida as bases para a aplicação da nova retórica jurídica pensada
por Perelman.
2
OS
ARGUMENTOS
QUASE-LÓGICOS:
AS
ATITUDES
LÓGICAS
DE
POSSIBILIDADE JURÍDICA
Inicialmente, há de se destacar que Perelman (2004, p. 170) ressalta que há uma
diferença abissal entre as proposições lógicas puramente matemáticas e as demais proposições
(quase) lógicas utilizadas em outras searas do conhecimento humano. Essas demais áreas do
conhecimento são aquelas que se enquadram em uma certa forma de comunicação linguística
em que a argumentação é o ponto chave de sua interpretação. Não basta, portanto, que haja
uma mera subsunção entre as colocações lógicas e a sua representação concreta ou realística,
por causa da argumentação que é empregada nessa estruturação não é possível se
compreender a argumentação como um simples consectário lógico de abstrações matemáticas.
Deste modo, partindo-se do pressuposto que o direito é uma ciência essencialmente
argumentativa (afinal, o direito não é matemática pura, algo facilmente denotado por qualquer
pessoa), a simples adequação lógica de premissas e proposições válidas não é suficiente para
explicá-lo completamente. Assim, cai por terra, a antiga premissa cartesiana de que a validade
predicado a ser conferido a uma inferência, algo já combatido em termos metafísicos muito
antes por filósofos como Martin Heidegger (2008, p. 284), mas ainda pouco explorado nos
meandros da lógica, principalmente no que se refere à lógica jurídica propriamente dita.
O direito trabalha com juízos que são eminentemente axiológicos, isto é, exprimem
valorações de ordem moral e cultural em sua formação. Não se afigura possível que as
determinações jurídicas e seus juízos se enquadrem de modo estanque a esquemas prédeterminados. Isto é, o raciocínio jurídico empreende esforços para tratar com o razoável
visando à adequação da norma às questões peculiares de cada caso. Perelman, portanto, centra
forças em atacar o positivismo jurídico e a sua maneira estanque e mecanicista de empregar a
lógica nas ciências jurídicas. Ele se empenhou em desenvolver uma lógica específica do
direito que não se utilize apenas do raciocínio dedutivo, mas que se valesse também de outras
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matemática de uma proposição consiste na sua mera subsunção de adequação entre o juízo e o
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formas de raciocínio como, por exemplo, o raciocínio indutivo. Ele se esforça em aniquilar o
pensamento engessado que, segundo a concepção tradicional, por lógica deve se entender
sempre a lógica formal (KLUG, 1961, p. 17). Até porque, pensar a lógica como não sendo
algo formal, segundo essa acepção, seria esbarrar em uma contradictio in adjecto segundo o
referido autor. Ou seja, ele debate a premissa irregular de que só há lógica na formalidade e
dentro de certos contornos formais, os quais, se não forem rigorosamente seguidos e
pormenorizados findam por dar azo à inconsistência generalizada dos sistemas jurídicos
porventura existentes em uma dada sociedade.
Todavia, ao se adentrar no estudo da nova lógica proposta por Perelman há de se
atentar, como bem colocam Bittar e Almeida (2008, p. 414), que o referido pensador não se
está inclinando a compreender que seja factível definir a priori, ou seja, definir algo antes de
qualquer experiência, o que seja a justiça feita pelo juiz. Isto porque a atividade de construção
da jurisprudência operada pelo magistrado é exercida mediante a provocação das partes e,
também, depende da existência de um caso concreto a ser analisado. Logo, não se está
pensando em conceituar, ou até mesmo se atingir, uma “verdade jurídica” por meio da qual o
juiz expressaria a vontade da lei, ou algo semelhante, mas tenciona-se alcançar no juízo do
magistrado como iter (entremeio) racional para que se logre obter um resultado socialmente
institucionalizado.
Não obstante, é de grande valia salientar que Chaïm Perelman (2004, p. 140) não
trabalha com o conceito de verdade (como se ela fosse apenas uma representação da
adequação de enunciados válidos, repise-se, tal como já referido anteriormente), substituindo
esse termo por equivalentes mais apropriados como: razoável, aceitável, admissível e
autor em tela, uma vez que eles denotam uma maior flexibilidade argumentativa em sua
aplicação prática. Com efeito, o pensador almeja apresentar que o juiz não é simplesmente um
porta voz da lei, ou seja, o juiz não é a “boca da lei” 1, aplicador neutro e despido de ideologias
das normas jurídicas como se quis no pensamento derivado da Revolução Francesa.
Nesse horizonte, Perelman critica duramente toda a tradição filosófico-jurídica que
calcou seus esquemas lógicos do pensamento nas lições de René Descartes (1996, p. 37) e
Gottfried Wilhelm Von Leibniz (1956, p. 14), os quais negligenciaram a lógica aristotélica e
1
Bouche de la loi, do original em francês – frase tornada célebre por Montesquieu.
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equitativo. Esses termos se afiguram mais escorreitos para expressar o raciocínio jurídico do
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criaram aquilo que se convencionou denominar de lógica formal2. Nesse sentido, é válido
pontuar, assim como fazem Philippe Breton e Gilles Gauthier (2001, p. 50), que Perelman se
inscreve "numa ruptura com a lógica demonstrativa e a evidência cartesiana, alargando o
espaço de uma lógica argumentativa não formal". O pensador polonês 3 compreende que para
que haja o devido tratamento dos problemas jurídicos contemporâneos urge-se empreender o
retorno à lógica aristotélica. Para o embasamento teórico de suas elucubrações sistemáticas da
lógica e do direito, Perelman busca na lógica não-formal de Aristóteles a reinvenção das
dimensões do sistema jurídico em seu funcionamento dinâmico e prático. Assim, ele se vale
de elementos retóricos para sustentar os elementos não-conclusivos do sistema lógico
apresentado na antiguidade pelo estagirita.
Sob a ótica perelmaniana (PERELMAN, 2004, p. 143), a lógica jurídica consiste em
uma lógica argumentativa e por meio do discurso se constroem os institutos mais caros às
ciências jurídicas, tais como a ideia de justiça, equidade, razoabilidade, proporcionalidade e
aceitação social das decisões judiciárias. Tais elementos, por serem bastante variáveis e pouco
enquadráveis nos esquemas rígidos da lógica formal tradicional, merecem um tratamento
diferenciado. Assim, a lógica jurídica não obedece a esquemas rígidos de formação, elocução,
dedução. Consubstancia-se em uma lógica de cunho eminentemente material. Exibe também
um forte aspecto prático, com o sólido propósito de reverberar efeitos essencialmente
argumentativos e não meramente demonstrativos de validade. Desta feita, há de se
compreender que a nova lógica jurídica deve ser construída sobre as bases de uma nova
retórica, que possui como escopo fundamental a reformulação do pensamento jurídico
contemporâneo. Para atingir tais objetivos é que Perelman, juntamente com Lucie Olbrechts-
institutos jurídicos.
2
Ao se falar do termo lógica, no contexto perelmaniano, é importante apontar as palavras de Ray D. Dearin
(1970, p. 65), o qual indica haver certa polissemia no termo em destaque, haja vista que nenhum outro termo
deve ser escrutinado com tanto cuidado nos meandros dos escritos de Perelman, por causa da sua considerável
flutuação de significado. Segundo Dearin (1970, p.80), há dois sentidos principais para o termo em tela: o
primeiro deles faz referência à conceituação tradicional da lógica como um estudo geral das provas de validade.
O segundo sentido extraído dos escritos perelmanianos traz o entendimento de que a lógica influencia tanto os
racionalistas quanto empiristas, e, inspirada pelas ciências matemáticas, tem sido largamente reduzida,
hodiernamente, à lógica-formal. Nesse último sentido é que Perelman contrasta a lógica com a retórica. Não
obstante, além desses dois sentidos, Dearin (1970, p. 81) ainda fala de outros dois sentidos também
compreensíveis da leitura dos textos de Perelman. O primeiro desses sentidos se traduz na identificação da
retórica, ela mesma, com a lógica, algo próximo de uma “lógica do preferível” ou ainda uma “lógica dos
julgamentos de valor”. O outro sentido suplementar indicado por Dearin diz respeito à noção de lógica jurídica,
associada à razão prática, em oposição à lógica formal, associada à razão teorética.
3
Chaïm Perelman era polonês de nascimento, todavia construiu toda a sua carreira acadêmica na Bélgica, onde
se naturalizou.
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Tyteca, empreende a árdua tarefa de definir argumentos quase-lógicos para modelar os
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Esses conjuntos de natureza argumentativa se comparam aos raciocínios formais
lógico-matemático, embora possuam natureza eminentemente não-formal (pois essa é a sua
marca característica de remonte histórico aristotélico). Todavia, a sua especialidade se atém
ao fato de, por se aproximarem do raciocínio rigoroso e demonstrativo formal, adquirir uma
força persuasiva distinta. Dentro de um sistema lógico-formal não são admitidos enunciados
que não sejam unívocos e possam ocasionar contradições ou ambiguidades. Todavia, em um
sistema de linguagem natural, como é o campo das ciências jurídicas, o mais comum que
ocorra são anfibologias, polissemias e vacuidade semântica. Tais hipóteses são estabelecidas
dentro de circunstâncias discursivas que exigem esmero do interlocutor em interpretá-las, daí
toda a sua importância para a hermenêutica jurídica contemporânea, a qual não consegue se
sustentar sem que esse tipo de distorção linguística seja explicitada e efetivamente trabalhada.
Não obstante, há de se salientar que isso não é nenhuma novidade dentro dos círculos
hermenêuticos da linguística, afinal, Louis Hjelmslev (1975, p. 53), inventor da
Glossemática4, já falava da necessidade de se ter o signo como a expressão de um conteúdo
exterior ao próprio signo. Nesse sentido, ele já opera a distinção entre significado e sentido ao
asseverar que este é o que se quer dizer, ao passo que aquele é o que efetivamente se diz, algo
fundamental na presente análise hermenêutica proposta, sendo algo utilizado recorrentemente
por Perelman para justificar seus esquemas argumentativos.
Nessa toada, é de grande valia apontar que há situações em que tanto será possível
indicar quanto também será viável desfazer incompatibilidades lógicas dentro do sistema.
Partindo desse ponto, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 267) indicam três categorias
básicas de estratégia argumentativa: procedimentos para evitar incompatibilidades, técnicas
Os procedimentos que têm como escopo evitar incompatibilidades se focam em três
espécies de atitudes básicas: atitude lógica, atitude prática e atitude diplomática
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 269-270). Cada uma delas possui o
posicionamento adequado para que a incompatibilidade seja contornada dentro de seu próprio
espectro de ocorrência.
A atitude lógica possui como característica primordial ser uma antecipação de
elementos fáticos que possam gerar incongruência sistemática. Assim, esse tipo de atitude
visa eliminar o imprevisto e dominar o horizonte futuro de ocorrências. É, portanto, uma
4
Glossemática é o termo usado por Hjelmslev para designar o estudo e a classificação dos glossemas, as
menores unidades linguísticas que podem servir de suporte a uma significação: os cenemas e os pleremas, que
são os componentes mínimos da Cenemática e da Pleremática, as duas grandes áreas da Glossemática e que se
referem, respectivamente, às formas de expressão e formas de conteúdo.
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para apresentar teses como compatíveis e técnicas para apresentar teses como incompatíveis.
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atitude teórica com vistas a, antes mesmo da formulação de teses ou regras, avaliar de maneira
prévia as mais variadas situações de aplicabilidade, antevendo a própria gênese de
incompatibilidades sistêmicas. Um bom exemplo dessa atitude lógica na interpretação jurídica
é dado por Horts Bartholomeyzik (1971, p. 3), ao indicar que na leitura da norma jurídica,
nunca se deve ler o segundo parágrafo sem antes ter lido o primeiro, nem deixar de ler o
segundo depois de ter lido o primeiro, bem como também nunca se deve ler um só artigo, leiase também o artigo vizinho. Esses conectivos adverbiais de tempo utilizados pelo autor
alemão denotam a necessidade lógica de se proceder segundo essa atitude argumentativa. Sem
esse espeque, não se afigura possível ter uma compreensão lógica da norma jurídica, haja
vista que sem esse procedimento mínimo a compreensão do seu conteúdo restará plenamente
comprometida.
De outra banda, a atitude prática se foca num posicionamento temporal diverso da
atitude anteriormente analisada. Esse tipo de atitude busca resolver as incompatibilidades à
medida que elas vão sucessivamente ocorrendo. Como ressalta José Gomes Filho (2008, p.
89), a resolução de um impasse lógico pela via da atitude prática revela “bom senso do
homem de ação”. Assim, tal forma de atitude consiste em repensar as noções e as regras em
função da progressão real de situações e das consequentes ações indispensáveis para que a
incompatibilidade seja espargida. Em síntese, a atitude prática não busca trazer soluções a
priori, de maneira previamente definidas, para resolver a questão das incompatibilidades.
A última das atitudes, denominada de diplomática, possui como ponto de fulcro
evitar o próprio surgimento da incompatibilidade, e, caso isso seja inevitável, postergar ao
máximo a resolução do conflito gerado pela própria incompatibilidade entre duas regras ou
solução seja tomada, recomenda-se que a mesma seja evitada uma vez que não passa
essencialmente de um paliativo, que, a médio e longo prazo, somente faz com que os
problemas das incompatibilidades sejam agravados ou aumentados.
Já no que se refere às técnicas para a apresentação de teses como sendo compatíveis,
existem duas que são precipuamente as mais eficazes nesse mister. Em comum, ambas tentam
prover o restabelecimento do status de compatibilidade entre duas teses, ao menos
aparentemente, conflitantes. Dado o fato que o conflito é meramente aparente, a conjectura de
se empenhar em juntar essas duas teses não é algo logicamente inválido, todavia, a
dificuldade em assim proceder se mantém na necessidade de se manter a razoabilidade
argumentativa dessa empreitada. A primeira dessas possibilidades de restabelecimento se
atém a colocar as duas teses como dentro de um quadro sucessivo de aplicabilidade por
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teses. Ainda que tal atitude possibilite o melhor conhecimento de causa para que uma possível
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processos. Dito de maneira mais clara, tal técnica de congregação de teses consiste em dizer
que as duas teses não são aplicáveis de maneira concomitante, assim, deve haver uma
precedência temporal em sua aplicação para que elas se harmonizem.
Argumenta-se, portanto, que as duas teses não são integradas em um todo
homogêneo, de maneira que a cisão do objeto da interpretação é indispensável para que as
duas teses sejam compatibilizadas (PERELMAN, 2004, p. 199). Sem que isso seja feito, ou
seja, sem essa cisão objetiva do núcleo hermenêutico, não há como se promover a
compatibilização entre as teses componentes do argumento em tela.
A outra técnica de compatibilização de teses se foca na restrição de aplicação de uma
das teses, precisando, desta forma, os termos por meio dos quais as regras foram formuladas.
Em última instância, tal técnica de harmonização não passa de uma espécie de interpretação
restritiva, a partir da qual uma das teses tem seu espectro de aplicação estreitado para que se
compatibilize com a outra tese também aplicável ao mesmo locus teórico. Como já enunciado,
existem também as técnicas para a indicação e apresentação de teses como incompatíveis
dentro da interpretação jurídica. Isso ocorre quando se afigura inevitável ter que escolher
entre uma das duas teses conflitantes para que o próprio discurso se mantenha.
A primeira das técnicas a serem abordadas se sustém na assertiva de que duas teses
se tornam conflitantes ao serem aplicadas concomitantemente ao mesmo objeto, desde que
nenhuma das técnicas de dissipação de incompatibilidade anteriormente apresentadas sejam
suficientes para sanar tal imbróglio. Os autores em comento apresentam outras cinco
possibilidades em que enunciados incompatíveis podem surgir, tanto pelas condições em que
uma tese ou regra é infirmada ou através da consequência de sua aplicação (LYCURGO;
possibilidades é que se podem abstrair as consequências lógicas da argumentação proposta.
A primeira das circunstâncias supramencionadas ocorre caso todos os enunciados de
um indivíduo sejam tratados como um sistema único. Pode ocorrer, portanto, que duas
assertivas do mesmo indivíduo, mesmo que exaradas em lapsos temporais diversos, venham a
conflitar, apresentando-se, assim, no contexto interpretativo geral, como incompatíveis.
Semelhantemente, ao se tratar de enunciados de grupos que são entendidos apenas
como um sistema único de enunciados, pode ocorrer que, por ventura da suposta unidade,
emissões enunciativas individuais de membros do grupo venham a conflitar com a designação
pretensamente unitária do grupo, ocorrendo, desta feita, uma incompatibilidade entre um
enunciado individual e a tese defendida pelo sistema único do grupo.
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ERICKSEN, 2011, p. 119). Assim, somente através do escrutínio mais pormenorizado dessas
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A terceira circunstância denotativa de incompatibilidades se dá no caso de um
indivíduo integrar dois grupos distintos que guardem disposições normativas díspares entre si.
Pode ocorrer, desta feita, que em função das regras distintas de cada grupo, em uma dada
situação, cada uma das regras prescreva um comportamento antagônico, instalando-se desta
maneira a incompatibilidade entre ambos os grupos. A incompatibilidade também pode ser
evidenciada em casos em que, havendo duas normas, uma delas se dirige a uma situação
jurídica que a outra norma (tida por conflitante) simplesmente exclui peremptoriamente.
Assim, a simples imprevisão normativa pode ser foco da incompatibilidade de regras
distintas.
O último dos casos de incompatibilidades é também o mais complexo. Isso porque a
sua incompatibilidade não deriva do choque entre duas regras ou teses opostas, e sim de uma
incompatibilidade ocasionada por um fato derivado da própria assertiva da norma prevalente.
Clarifique-se: a regra pode se incompatibilizar com as consequências do mesmo fato de ela ter
sido afirmada. Esse caso recebe a nomenclatura de “hipótese de autofagia”, isso porque o
próprio evento derivado da norma finda por incompatibilizá-la de maneira intrínseca. Ou seja,
a incompatibilidade desses elementos não está adstrita a nenhum fator externo, seja em sua
conjunção discursiva ou em sua manipulação pelos agentes encarregados de formular o
próprio sistema, a sua incompatibilidade é algo que já se encontra ínsita em sua própria
exposição discursiva, daí ela ser autofágica 5. São elencados três casos para a ocorrência da
autofagia: retorsão, auto-inclusão e sofismas anárquicos.
No caso da retorsão o ato decorrente do efeito da aplicação normativa finda por
negar reflexivamente o próprio discurso, ou seja, o ato implica o que a própria fala nega. A
lógica propriamente dita, ela não se imbui desse caráter enunciativo, de modo que pode ser
considerada meramente uma tautologia reversa da primeira assertiva, ela não constrói nenhum
novo conceito, apenas apresenta uma oposição vazia da primeira inferência lógica.
Por sua vez, na auto-inclusão, ocorre a hipótese que a mesma regra aplica-se a ela
mesma. Assim, há uma dupla incidência normativa que conduz à incompatibilidade
normativa. Possivelmente essa espécie de incompatibilidade ocorre com certa frequência no
direito penal, quando se vislumbra a inserção de bis in idem na aplicação de sanções, algo
5
A autofagia é uma referência à literatura médico-científica na qual um corpo finda por se devorar, ele consome
a si mesmo, extraindo de si próprio a energia necessária para se manter, algo que geralmente ocorre em certos
distúrbios sexuais, ou até mesmo em casos extremos de anorexia nervosa. Como essa prática autofágica é
insustentável, pois o organismo acaba por se consumir totalmente e se aniquila, a breve analogia para com os
essa classe de argumentos é bastante apropriada, afinal de contas, a sua insustentabilidade estrutural é patente.
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retorsão não vem a compreender, ou, minimamente, esclarecer nenhuma nova conceituação
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totalmente incongruente com a escorreita aplicação normativa de tais imposições de ultima
ratio. Isso porque as determinações de direito penal podem conduzir à segregação social, algo
que não pode ser tido como um resultado errôneo aceitável dentro dos limites de erro de um
sistema lógico-jurídico. Ainda que esse resultado não possa ser totalmente calcinado dentro
das possibilidades argumentativas decisórias de uma sentença penal, por exemplo, os
parâmetros de suas reproduções devem ser observados e estudados para que esse tipo de
resultado falacioso não se repita com certa constância.
Os sofismas anárquicos consistem em uma regra aplicativa que se opõe às suas
próprias consequências que dela derivam. Assim, há uma contradição 6 inerente à própria regra
que dispõe algo que lhe é negado sequencialmente. A anarquia de tal sistemática conduz à
insustentabilidade do próprio sofisma proposto. Desta forma, por mais que o sofisma em si já
seja algo não propriamente útil dentro da interpretação da lógica formal comum, eles
assumem um papel de análise regressiva dentro dos argumentos quase-lógicos a partir da
compreensão de que sua verificação conduz a uma insustentabilidade sistemática das
premissas que dele são derivadas.
Dentro da análise argumentativa proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca um dos
conceitos a ser cotejado diz respeito à identidade total de objetos e as suas definições. Para
que se entenda a relação de identidade entre objetos no contexto quase-lógico dessa
argumentação se apresenta como imprescindível a compreensão de que essa relação não seja
considerada nem como arbitrária nem como evidente. Ou seja, essa relação deve ser entendida
quando ela dá espaço para a ocorrência (ou não) de uma justificação argumentativa. Essa
relação não pode se basear em evidência de correlações de noções entre os objetos, e sim ter
elementos é ressaltada em situações interpretativas em que existem definições variadas de um
mesmo termo e a escolha entre elas se afigura premente e indispensável.
Surgem, desta feita, duas formas de justificação de um definição, ou por via de sua
etimologia (e o sentido interpretativo dela derivado), ou segundo a substituição da própria
definição pelas condições de aplicabilidade por uma definição que se baseie na consequência
6
Importante destacar que o próprio Perelman (1977, p. 246) traça uma distinção bastante interessante entre a
contradição e a incompatibilidade, haja vista que, enquanto a contradição formal se liga à noção de absurdo, a
incompatibilidade se liga à compreensão de algo ridículo no fluxo interpretativo. Desta feita, uma afirmação é
tida por ridícula quando conflita, sem justificação plausível, com uma opinião anteriormente admitida. Não
obstante, é importante atentar que tanto o absurdo quanto o ridículo podem ser obtidos por via indireta. O
absurdo é obtido indiretamente através de uma redução, a chamada redução ao absurdo (reductio ad absurdum,
ou argumento do terceiro homem). Já o ridículo é obtido indiretamente por meio da ironia. A ironia socrática,
segundo Perelman (1977, p. 248), é um exemplo de ridicularização do adversário, que, ao ver suas
incompatibilidades evidenciadas, é obrigado a rever suas opiniões.
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fulcro na sua justificação ou valorização através da argumentação. A argumentatividade dos
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de sua aplicabilidade, e vice-versa. Ou seja, promove-se a alternância argumentativa entre os
efeitos da aplicação da definição pela sua própria condição de inserção discursiva, sendo que
tais possibilidades de alteração são intercambiáveis dentro do processo interpretativo.
3 A LÓGICA E A REGRA DE JUSTIÇA EM APLICAÇÕES DECISÓRIAS: A NOVA
RETÓRICA E SUA EFETIVIDADE JURÍDICA.
Em um sistema lógico-formal a igualdade entre duas expressões só pode ser
infirmada a partir da analiticidade, ou caráter analítico, do seu julgamento. Todavia, em
termos de argumentos quase-lógicos de linguagem natural, não há esse rigorismo
determinístico na análise de tal equivalência. Isso porque a análise das expressões no sistema
quase-lógico está sempre sujeita ao manejo do sentido que é conferido às próprias expressões.
Outra diferenciação patente entre a progressão lógico-formal e o cotejo quase-lógico
de Perelman se evidencia na análise das tautologias. Ainda que a nova análise lógica
promovida no início do século XX por Ludwig Wittgenstein (1994, p. 44) demonstre que as
tautologias não representam nenhuma situação possível, logo não são figuras de realidade.
Isto ocorre porque na primeira fase da filosofia de Wittgenstein, a da teoria pictórica do
significado, ele tentava dar uma descrição de ordenação lógica do mundo, tanto que admitia o
silêncio lógico sobre coisas que não podem ser ditas (proposição número sete do Tractatus
Logico-Philosophicus7). Diferentemente, Perelman atribui aos argumentos quase-lógicos a
possibilidade de uma reinterpretação dessas figuras de mesmo sentido tanto na afirmação
aparentes, haja vista que não há identidade formal propriamente dita nelas, de modo que elas
podem ser dissipadas ou incorporadas ao processo interpretativo na medida em que vão
surgindo. Essa forma de apreensão das tautologias serve para conferir sentido específico aos
movimentos interpretativos baseados em argumentação, fugindo, assim, do rigorismo formal
clássico.
Outro ponto de grande destaque na apresentação argumentativa em comento se refere
à questão da regra de justiça a ser aplicada nos processos interpretativos. A regra de justiça
7
A sétima proposição da obra em comento enuncia que: Wovon Man nicht spreche kann, darüber, muß Man
schweigen (“sobre aquilo de que o homem não pode falar, então, deve-se calar”, isto é, daquilo que não se pode
se falar algo, então, deve-se silenciar), enunciado derivado da primeira fase do pensamento de Wittgenstein e de
extrema importância para que se possa compreender a reinterpretação dada ao significado pelos argumentos de
Perelman.
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quanto no resultado. Em tal argumentação, propõe-se que as tautologias são meramente
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definida na argumentação quase-lógica sustenta que seres ou situações de uma mesma
categoria (ou que possam ser congregados sob a mesma égide categórica) devem possuir um
tratamento idêntico, partindo-se sempre do pressuposto que existe uma etapa prévia de
classificação e outra de categorização das situações a serem integradas. De maneira similar
ao argumento da regra de justiça, traz-se à exposição a questão da reciprocidade. Tal elemento
argumentativo visa aplicar o mesmo tratamento a duas situações que se assemelhem entre si
(Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 297). A reciprocidade atua até mesmo em situações
meramente hipotéticas e, para atingir seu escopo, se baseia numa ideia de simetria entre as
situações analisadas. A técnica da aplicação da reciprocidade ocasiona três efeitos bem
distintos no processo interpretativo. Primeiramente, ela facilita a identificação entre eventos
ou situações, de modo a promover entre eles a assimilação recíproca, isto é, os conduz a uma
convergência interpretativa. Ademais, a aplicação da reciprocidade é suposta na qualificação
das situações, quando estas estão baseadas na relação entre o antecedente e o consequente na
mesma relação. Há de se dizer também que a reciprocidade provém o reconhecimento de
identidade entre situações que se correlacionam a partir de transposições de perspectivas.
Assim, a partir de uma nova conjectura de um ponto de vista já existem a reciprocidade pode
aproximar situações a serem designadas pelo processo argumentativo.
O ponto seguinte a ser analisado na exposição argumentativa quase-lógica se refere
aos elementos de transitividade. Contrariamente ao que ocorre na conformação da lógicaformal, a transitividade sob essa nova perspectiva pode se basear em relações de igualdade,
superioridade, inclusão, ascendência, implicação dentre outras, podendo ter como espeque a
sua combinação quase-lógica com elementos simétricos. Nesse horizonte, as relações
direta não se apresenta como factível. Dentre as possibilidades de cadeias transitivas a que
exerce um papel de maior destaque e maior atrativo para a argumentação quase-lógica é a
silogística (de consequência lógica).
Acerca desses elementos de transitividade é de grande valia destacar o comentário de
Robert Alexy (2005, p. 173), para o qual:
Os argumentos quase lógicos extraem sua força de convicções de sua semelhança
com inferências logicamente válidas. Um grupo de argumentos quase lógicos é
formado pelos argumentos que fazem referência à transitividade. ‘Os amigos de
nossos amigos são também nossos amigos’ é um exemplo de tal argumento. Um
exemplo de argumento que se apoia na estrutura do real são os argumentos que se
baseiam em laços de casualidade. Finalmente, Perelman divide os argumentos que
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transitivas são utilizadas quando é necessário ordenar eventos ou situações cuja confrontação
119
FIDΣS
fundamentam a estrutura da realidade em: aqueles que se referem a um caso
particular (como por exemplo, com fins de generalização) e aqueles em que se trata
de uma analogia.
A partir da explanação do eminente jurista alemão, há de se compreender que a
transitividade conduz tanto a experiências práticas despidas de consequências eticamente
aceitáveis para um padrão jurídico decisório quanto para uma saída ao formalismo da lógica
tradicional. Ela é inaceitável como padrão decisório quando suplanta, através de silogismos, a
possibilidade de uma decisão justa, segundo o próprio exemplo fornecido por Alexy. De outra
banda, quando a transitividade é aplicada segundo os ditames da analogia para uma resolução
da realidade ela é quase-logicamente aplicável para que se chegue a uma decisão mais
concreta e palpável.
Outro argumento de grande relevância para o estudo em comento se trata das
inclusões de argumentos quase-lógicos. As inclusões argumentativas se dividem de maneira
dicotômica em inclusão das partes no todo e em divisão do todo em suas partes, sem que isso
afete a sistematização inerente à completude necessária ao próprio argumento em análise. A
argumentação quase-lógica aprecia as relações existentes entre as partes e o todo sob a
parêmia de que “o que vale para o todo vale para a parte“. Destarte, tal relação entre todo e
partes é analisada quantitativamente, tanto o todo em si considerado é mais importante que a
parte, quanto a parte possui relevância em função de sua proporcionalidade para com o todo.
Assim, a consistência global de uma interpretação sistemática se apresenta muito mais sólida
e consistente que a análise igualitária ou equivalente de cada parte em relação ao todo. Nesse
efeito é imprescindível que haja homogeneidade entre a parte a ser inserida e o todo. Em
termos quase-lógicos, basta negar a referida homogeneidade para que a relação de inclusão
seja totalmente prejudicada ou até mesmo desfeita, caso a inexistência de homogeneidade seja
apenas suscitada em momento posterior ao próprio processo de abstração inclusivo.
Já o argumento da divisão de todo em suas partes baseia-se na concepção de que o
todo deve ser reconstruído a partir da soma de suas partes constitutivas. Assim sendo, supõese o conhecimento das relações que as partes mantêm com o todo, sem essa concepção prévia
da constituição argumentativa não se é possível retroceder a um status quo ante da
estruturação lógica do sistema. Esse raciocínio de reconstituição pode ser utilizado de três
diferentes maneiras. A primeira delas serve para servir de prova para a existência de um
conjunto, pois a mera reconstrução unitária dele confere-lhe existência. Ou seja, simplesmente
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sentido, para que haja a inclusão de um evento ou que a situação particionada seja levada a
120
FIDΣS
refazer os passos de uma divisão argumentativa anterior leva ao conhecimento prévio do que
se tinha antes de assim proceder, de modo que nessa maneira há apenas uma inversão
constitutiva do argumento construído logicamente. A segunda maneira de se aplicar esse
argumento é utilizada para provar ou não a existência de uma das partes do todo. Essa é a
chamada argumentação por exclusão, uma vez que se aparta da conjuntura global um evento
ou situação para que sua incongruência para com o todo se sobressaia. É uma espécie de corte
epistemológico redutiva de partes excedentes do sistema interpretativo. A última aplicação da
divisão do todo em suas partes serve de argumento resolutivo de um dilema, caso em que,
para se concluir entre qualquer das hipóteses, chega-se a um resultado de importância
equivalente. Como o conceito de um dilema enuncia que essa é uma hipótese em que se tem,
pelo menos, duas alternativas lógicas igualmente válidas, o propósito desse argumento
consiste em apenas se saber que qualquer uma das alternativas a serem tomadas terá o mesmo
valor axiológico ínsito em si mesma. Dizendo a mesma coisa de maneira mais clara, as opções
são igualmente válidas do ponto de vista lógico, a sua escolha marca apenas uma cisão
decisória dentro do vasto universo de possibilidades, excluindo qualquer outra hipótese
porventura ainda não ventilada, bem como também esparge do universo amostral a hipótese
anteriormente válida. Isto ocorre usualmente por três razões: ou porque ambas as hipóteses
resolutivas conduzem ao mesmo resultado (geralmente levam à própria incongruência do
sistema interpretativo), ou porque são dois resultados de mesmo valor, ou ainda porque
conduzem, em cada caso, a uma incompatibilidade com a regra que interliga os próprios
resultados (nessa hipótese, deve se valer de uma das técnicas de explicitação ou de
saneamento de incompatibilidades anteriormente apresentadas). Nesse passo, é importante
enfático que a experiência constitui um dos aspectos fundamentais da preocupação com os
processos decisórios de indivíduos em ambientes de incerteza, ainda que o próprio agente que
decide tente ao máximo dar uma completude ao sistema que ele tem que tentar integrar com o
seu pronunciamento decisório.
Outra espécie argumentativa a ser analisada na lógica jurídica de Perelman e
Olbrechts-Tyteca diz respeito à comparação de objetos dentro da avaliação interpretativa.
Esse argumento deve ser desenvolvido quando os objetos são confrontados e aferidos
reflexivamente entre si, sempre tendo o cotejo dos mesmos em função da ideia de medida, a
qual apresenta três critérios fundamentais de análise.
O primeiro desses critérios se refere à comparação por oposição qualitativa dos
objetos (forte versus fraco, ou abrangente versus restrito). Nesse caso, a comparação é
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destacar que Perelman segue, conforme indica Bruce J. Caldwell (2004, p. 55), o preceito
121
FIDΣS
operada em função da qualidade intrínseca do objeto que não se altera durante o
empreendimento interpretativo. O outro critério comparativo a ser utilizado traça como norte
interpretativo a ordenação entre os objetos. De modo que um argumento “x” é mais
abrangente que um argumento “y”, por exemplo. Esse englobamento argumentativo é
importante para que se defina o espectro de abrangência de uma decisão judicial, a fim de que
a sua extensão seja determinada em função da própria validade de seus argumentos concretos,
e não simplesmente dada em função da abstração e da generalização atinente às normas
jurídicas que lhe fundamentam. O último critério de comparação elencado é na verdade uma
subespécie do critério anterior, e denomina-se critério de ordenação quantitativa. Assim
sendo, além da sequência de aparecimento dos objetos a serem analisados, deve ser tido em
conta o número de vezes que o objeto aparece, para que a sua proporcionalidade, em relação
ao todo sistemático da interpretação, também seja levada em consideração.
Há de se deixar assente, como bem pontua Heloísa Feltes (2003, p. 271), que, para
que se atinja um maior grau de eficiência, os termos de argumentação devem ser selecionados
de maneira a que se adaptem aos “argumentatários”. Outrossim, as características dos termos
em referência promovem a particularização de uma série definida de argumentos, devendo tal
série ser analisada de forma a apresentar-se favorável às conclusões da argumentação. Desta
maneira, consegue-se congregar a comparação com os elementos integrativos da interpretação
e evitar que ocorram conflitos e incompatibilidades de argumentos.
Outra forma interpretativa afeita aos processos de comparação é denominada de
“argumentação pelo sacrifício”. Nesta espécie de análise deve haver uma aceitação por parte
do intérprete em suportar um “sacrifício” para que se obtenha um determinado resultado. Ou
alcançar o escopo final da argumentação exposta. Esse tipo de argumentação permanece na
base de sistemas de troca de ordenação meio-fim. Assim sendo, o meio utilizado para o
intérprete é o sacrifício de um dos objetos possíveis no quadro discursivo, ou seja, é um
esforço, um sofrimento com o qual o intérprete está assente em arcar (FELTES, 2003, p. 277).
Ou, caso ele não esteja assente em arcar com ele, pelo menos tenha a antevisão da
possibilidade de sua ocorrência e não feche as demais possibilidades para que o argumento
possa ser trazido à baila em vista da possibilidade de ter que sacrificar o meio lógico da
interpretação.
De outra banda, o fim colimado é o próprio resultado do sacrifício ocorrido, embora
não seja o escopo inicialmente idealizado, é aquele que mais se adequa ao caso concreto. O
aspecto quase-lógico de tal argumentação consiste em avaliar ou valorizar alguma coisa
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seja, sem que se refrate ou se suporte algum elemento não desejado de início, não há como se
122
FIDΣS
mediante os meios utilizados para produzi-la, isto é, considerar como espólio interpretativo o
sacrifício necessário para arregimentar uma interpretação sistematicamente escorreita. Um
bom exemplo da utilização desses argumentos de sacrifício ocorre quando há colisão de
princípios jurídicos, como nenhum princípio pode aniquilar outro princípio, há de se
promover o prestígio de um deles em face do caso concreto. Tal sistemática envolve,
ineroxavelmente, elementos de ponderação e proporcionalidade argumentativa, a qual pode
ser estruturalmente sustentada através de sacrifícios argumentativos em prol de uma
homogeneidade na interpretação.
A última espécie de argumentos quase-lógicos derivada da comparação a ser
perquirida se atém às questões de probabilidade dos argumentos. Tal espécie em comento
possui o escopo de conferir um aspecto empírico à interpretação. Desta feita, deve ser
delineado um quadro avaliativo que verse tanto sobre a importância dos acontecimentos
quanto sobre a possibilidade de sua aparição dentro do contexto interpretativo futuro. O
recurso probabilístico, portanto, fica sujeito a diferentes interações factuais entre os elementos
comparados. Ainda assim, pode ocorrer como Perelman (2004, p. 190) relembra que por
razões de bom senso, equidade e interesse geral, uma solução se apresente como única
admissível, ela é que se tende a impor nos meandros do direito também, ainda que se obrigue
o intérprete (como anteriormente explicitado) a recorrer a uma argumentação especiosa para
mostrar sua conformidade com as normas legais em vigor.
Por fim, em conclusão à nova proposta argumentativa de uma nova (quase) lógica
jurídica, há de se compreender que a interpretação ocorre em uma dupla situação temporal.
Num primeiro momento argumentativo há o deslocamento para o lugar do interpretador
que sua interlocução se dá. Em uma segunda colocação interpretativa, o intérprete deve se
deslocar para uma aplicação dos argumentos quase-lógicos ao referido discurso, visando
interpretá-lo a partir de tal perspectiva. Nessa esteira, bem destaca Gianluigi Palombella
(2005, p. 291) que os novos raciocínios trazidos por Perelman e Olbrechts-Tyteca tentam
congregar novos elementos lógicos ao direito e não são, portanto, aplicações rigorosas de uma
teoria lógica, mas procedimentos discursivos que se mostram diferentes dos tipos lógicos ou
são resultado da combinação de um esquema lógico com alguma assunção (não lógica, mas
jurídica, em algum sentido da expressão), por isso que são considerados, efetivamente, um
meio retórico de apresentação do direito.
Destarte, a simples adequação das premissas básicas a uma conclusão lógico-formal
leva a resultados práticos desastrosos e pouco eficientes. Um exemplo bastante prático disso
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(procura-se atingir o seu topos), no sentido de compreender seu discurso e abstrair o local em
123
FIDΣS
se dá no caso das provas ilícitas carreadas em um processo penal, a decisão será sempre
baseada nos argumentos quase lógicos tal como explicitados, haja ou não o acolhimento da
prova ilícita. Se ela não for acolhida, a verdade real não será alcançada por falta de uma parte
constitutiva sua, caso ela o seja, ainda assim a decisão não será totalmente apartada de um
argumento quase lógico em função da manifestação espúria da ordem jurídica em aceitar a
prova eivada de ilicitude, mesmo que essa seja a melhor opção para o caso concreto que está a
ser decidido.
Nesse horizonte, é correto asseverar, mais uma vez, que o pressuposto analítico de
Perelman conduz ao entendimento de que não se deve chegar a uma verdade jurídica préestabelecida, por meio da qual o juiz expressaria a vontade da lei, ou algo semelhante a isso
(LYCURGO; ERICKSEN, 2011, p. 116-117). Outrossim, pode-se citar o exemplo prático de
que na análise de uma prova ilícita pode levantar a questão da proporcionalidade como regra
de verificação a ser compreendida como sendo um elemento quase-lógico nos moldes
perelmenianos. Não obstante, por não expressar uma simples constatação de verdade, afinal,
em última instância, ela é eivada de ilicitude, e não há verdade na ilicitude, essa análise de
verificação de uma prova serve como exemplo singular de um argumento quase lógico a ser
trabalhado no âmbito processual do direito, algo bastante significativo para essa seara em
particular. Isso se evidencia ainda mais ao se falar que a aplicação dessa prova permeada pela
proporcionalidade dá uma maior singularidade aos casos analisados, sem que isso finde por
desembocar num argumento non sequitur de fundamentação decisória e sem que uma
injustiça seja perpetrada no plano prático dos efeitos de uma sentença penal, por exemplo.
A retórica utilizada por Perelman e Olbrechts-Tyteca é apenas um estudo técnico dos
ALMEIDA, 2008, p. 454). Assim, o conteúdo dos expedientes interpretativos devem se
encaminhar para a verossimilhança e não para a simples e pura sofística, das preocupações
aristotélicas. Pois, caso assim se persista na análise filosófica, e eminentemente lógica do
direito, apenas conseguir-se-á traçar parâmetros dogmáticos pouco efetivos em sua dinâmica
de aplicação.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, esses são os argumentos quase-lógicos propostos por Perelman e
Olbrechts-Tyteca, os quais, diferentemente dos sistemas formais, dependem de um ato
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processos e dos instrumentos de produção de conhecimento e persuasão jurídica (BITTAR;
124
FIDΣS
interpretativo fomentado nas aberturas e lacunas existentes nas linguagens naturais, elemento
este afeito principalmente à estruturação das ciências jurídicas como se pôde denotar.
Essa forma de interpretação do direito, e, principalmente, das decisões judiciais é
fundamental na atual conjuntura hermenêutica contemporânea, já que dá uma nova
perspectiva analítica aos hermeneutas e demais filósofos do direito a terem acesso a uma
maneira diferente e inovadora de se pensar a lógica aplicada ao direito. Ademais, isso tudo é
feito sem que se recorra (ao menos necessariamente) aos estratagemas mais que complexos da
lógica paraconsistente, por exemplo, a qual, ainda que seja plenamente aplicável aos
panoramas jurídicos que envolvam dilemas práticos, como, por exemplo, o prestígio ou
desprestígio de um princípio jurídico a ser aplicado quando há uma pluralidade de princípios a
serem invocados igualmente a um caso particular ou peculiar do direito.
A perspectiva de Perelman e Olbrechts-Tyteca coloca os meandros jurídicos como
ambientes variáveis dentro de um conhecimento jurídico não estático, daí que se impõe a sua
conceituação de uma nova retórica a ser utilizada na sistemática lógico-jurídica, sendo
imperioso denotar que isso deriva da necessidade de se assimilar as incompatibilidades
lógicas surgidas no processo de tomada de decisão. Algo que favorece sobremaneira, qualquer
pretensão interpretativa mais concreta e dinâmica que o simples dogmatismo da velha lógica
jurídica, de fundamentos kantianos e positivistas, tão difundida nas épocas passadas. Assim, a
análise de seu trabalho é fundamental para que cada vez mais se consiga implementar
variantes lógicas (quase-lógicas) que dimensionem o direito de acordo com a sociedade viva
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PERELMAN’S QUASI-LOGIC ARGUMENTS: THE CONSTRUCTION OF A NEW
JURIDICAL RHETORIC
ABSTRACT
The essay intends to make an exposition about the quasi-logic
their dynamic and practical concepts of rules of justice in juridical
cases shall be valid; something to be further analyzed in the decision
expression of regular cases. The quasi-logic arguments shall be
developed and combined with its several forms of comprehension of
possibilities surrounded by reasonableness, fitting cases and
proportion congregating it all with other juridical elements. It explains
the fundament of new arguments for juridical situations, not
something related to the old juridical logic, purposing the bases to a
new juridical rhetoric.
Keywords: Quasi-Logic Arguments. Judicial Logic. Rhetoric.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
arguments developed by Perelman and Olbrechts-Tyteca. Insofar,
127
FIDΣS
Recebido 22 ago. 2011
Aceito 27 out. 2011
A LEGITIMIDADE DO CARÁTER PREVENTIVO GERAL DA PENA: UMA
DISCUSSÃO DE SUAS SOLUÇÕES
Lucas Duarte de Medeiros
Lucas José Bezerra Pinto
RESUMO
A prevenção geral intimidatória proposta por Feuerbach reflete-se no
Direito Penal moderno, constituindo talvez o mais pernicioso fim da
pena, uma vez que atenta contra a dignidade da pessoa humana. Essa
teoria deu luz a indagações que questionam a legitimidade e a própria
existência do Direito Penal e, por conseguinte, fizeram florescer o
ideal abolicionista, bem como o minimalista. Neste contexto, em
cotejo ao caráter intimidatório da prevenção geral, tem-se uma
abordagem dos diferentes posicionamentos frente a esta, dando, por
fim, uma solução minimalista para a celeuma apresentada a fim de
Palavras-chave: Prevenção Geral. Dignidade da Pessoa Humana.
Direito Penal. Abolicionismo. Minimalismo.
“Quando se tem perguntado pelo fundamento e o fim da pena,
apresenta-se não já um problema interno do direito penal, mas um
problema de filosofia jurídica, uma razão última que está acima da
construção interna de qualquer direito dado”.
(Sebastian Soler)

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Monitor de Direito
Empresarial III e membro do Projeto de Pesquisa Jurisdição, Democracia e Direitos Fundamentais. Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/0891510217203759>.

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
preservar as garantias limitadoras do poder coercitivo estatal.
128
FIDΣS
1 INTRODUÇÃO
Embora a pena seja um dos institutos mais antigos do direito, muito se tem discutido
hodiernamente sobre as idéias que a cercam. Isso porque é uma tendência contemporânea a
reflexão crítica sobre sua legitimidade, se ela encontra respaldo nos valores sociais hoje
presentes. Bem verdade que a pena sempre nos acompanhou e, por isso, chegam até a ser
estranhas para alguns as indagações sobre ela. No entanto, são essas reflexões que permitem a
evolução de uma sociedade.
Nesses moldes, este trabalho tem como proposta aguçar a visão sobre a finalidade
preventiva geral das penas, despertando um debate filosófico sobre sua legitimidade.
Malgrado se pense que a problemática de suas finalidades seja puramente uma questão de
direito, estas transcendem tal esfera, uma vez que surgem diversas indagações que são
próprias do campo filosófico. Enganam-se, pois, aqueles que pensam que a reflexão da pena
deve ser resolvida apenas por juristas, desconsideram estes que a pena não é fenômeno apenas
do direito, mas fenômeno social. Locupletam-se, assim, nesse sentido a filosofia e o direito.
Procederemos, então, um debate sobre as funções das penas, a se especificar,
doravante, na questão de prevenção geral inerente a esta, tecendo apontamentos sobre uma
possível ilegitimidade desse fim em especial, apresentando algumas soluções e justificações
que são dadas a embasar a problemática. Com olhos críticos, buscar-se-á selecionar a resposta
mais adequada, falando então da intervenção mínima como fator de atenuação dos males do
2 FINALIDADE DAS PENAS
O crime como sombra do homem sempre o acompanhou, a pena, então, como
resposta ao crime, sempre o buscou evitar. Dessa assertiva, extrai-se a finalidade precípua da
pena: o combate ao crime. A contradição entre crime e pena e sua evolução não constitui
apenas a história das searas criminalista e penal, mas a própria construção do direito. No
decorrer da progressão dessas idéias a pena ganhou novos fins que, a princípio, nada mais são
do que decorrência daquela finalidade maior e inicial que é o combate ao delito.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
sistema penal.
129
FIDΣS
Primordialmente, são três as correntes doutrinárias que tratam desses novos fins,
tendo seu auge no decorrer do século XVIII.
As teorias absolutas consideram a pena intrinsecamente justa, uma vez que situam
seu fundamento e seu fim na natureza absoluta dela, defendendo o caráter retributivo da pena,
ou seja, o mal feito pelo indivíduo que viola a norma há de ser reparado com outro mal, a
pena (MIR PUIG, 1994, p. 35).
Este é o posicionamento de Kant (2003, p. 175), para quem a pena é um imperativo
categórico, deste modo ela seria uma conseqüência natural do delito, a pena deve ser aplicada
contra o delinqüente pela simples desobediência do imperativo, seria uma violação de ordem
moral.
Por sua vez, Hegel fundamenta a função retributiva na consideração de que se deve
proteger os postulados do direito que, quando descumpridos, fazem gerar, por compensação, a
pena. Para ele:
A violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida, uma existência positiva
exterior, mas contem a negação. A manifestação desta negatividade é a negação
desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside
na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesmo mediante a supressão da
violação do direito. (HEGEL, 1997, p. 87)
As teorias relativas, diferentemente, atribuem à pena um sentido utilitário (MIR
PUIG, 1994, p. 35). Dá-se ênfase nestas ao caráter preventivo das penas. Surgem em
contraposição às teorias absolutas, que têm raízes na vingança privada, criticando a
vingativo, nenhuma utilidade social.
Cesare Beccaria trouxe a tona os males relativos ao retribucionismo, impulsionando
o desenvolvimento teórico do caráter preventivo da pena. Nessa lógica, “é preferível prevenir
os delitos a ter de puni-los” (2003, p. 101). Após essas críticas mais vozes surgiram. Na
Inglaterra, Bentham, (2002, p. 22-23) também difundia a teoria da prevenção como sendo esta
tão ou mais fundamental do que a própria vingança, assinalava que: “quando acontece um ato
nocivo, um delito, dois pensamentos se devem oferecer ao espírito do Legislador ou do
Magistrado: o modo de prevenir o crime para que não torne a acontecer, e o meio de reparar
quanto for possível o mal, que tem causado”.
Em outra corrente, apresentam-se as teorias mistas ou ecléticas que, basicamente,
mesclam as duas correntes anteriores (MORAES, 2006, p. 128). Conjugam-se, assim, como
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
desumanidade da retribuição por si só, alegando que esta não tinha, além de sanar o ódio
130
FIDΣS
caráter das penas tanto a sua retributividade como a sua prevenção, não havendo, segundo
esta, uma sobreposição de uma a outra.
Por fim, contemporaneamente, com o Direito Penal se tornando cada vez mais
humanista e ainda com a subordinação deste às garantias constitucionais, fala-se no caráter
ressocializador da pena (MIRABETE, 2008, p. 245). Tendo como premissa básica fazer o
condenado ser reinserido na sociedade, o que busca excluir, de certa forma, a retribuição pura.
Não obstante haver uma propensão a restringir os efeitos do caráter retributivo das
penas, em detrimento de uma valorização do caráter preventivo. Verificam-se diversos
problemas ligados a este último, a ser tratado em tópico posterior.
2.1 Do caráter preventivo geral e especial
Brevemente, explanar-se-á sobre a distinção entre a prevenção geral e a prevenção
especial, dado que, embora ambos componham o caráter preventivo da pena, aqui se dará
destaque àquele primeiro, cerne das discussões da legitimidade da função preventiva.
De maneira simplificada podemos trazer as lições de Mirabete (2008, p. 245), para
quem o fim da pena é: “a prevenção geral, quando intimida todos os componentes da
sociedade, e de prevenção particular, ao impedir que o delinqüente pratique novos crimes,
intimidando-o e corrigindo-o”. A prevenção geral, quando intimida todos os componentes da
sociedade, e de prevenção particular, ao impedir que o delinqüente pratique novos crimes,
intimidando-o e corrigindo-o.
O que se percebe, então, nesta distinção é a diferença de destinatários. Enquanto na
prevenção geral, todos os membros de uma comunidade sob os efeitos de um Direito Penal
são submetidos a coerção, com vistas a não consecução de crimes.
2.2 A problemática da função preventiva geral
É fato que o caráter preventivo geral é hoje uma das finalidades da pena. Contudo, é
absolutamente discutível a questão de sua legitimidade. Não se está negando que para o
Estado esse caráter tenha uma função essencial que transpassa a ótica do combate ao crime
consumado, servindo de verdadeiro controle social, mas se está indagando qual é a idoneidade
dessa coerção.
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prevenção especial, a intimidação se liga ao indivíduo que já cometeu um delito. Na
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FIDΣS
Ao se falar dos principais fins das penas, percebe-se que elas, em geral, se destinam
aos delinquentes. A retributiva só tem vez quando algum bem é lesado, da mesma forma a
preventiva especial e a ressocializadora. Porém, como exceção, o caráter preventivo geral se
destina não apenas aos que infringiram os imperativos estatais, mas também aqueles que
praticam atos harmônicos àquela ordem.
O sistema penal que visa dar proteção aos cidadãos se vê paradoxalmente atentando
contra estes. O caráter preventivo geral que busca a segurança dos cidadãos acaba por
intimidá-los. Não é difícil prever que o regime de controle social, necessário a ordem e a
organização estatal, passa-se a um regime de terror social, limitando excessivamente as
liberdades humanas.
Compartilha desse entendimento Santiago Mir Puig (1994, p. 38):
Un Estado democrático ha de apoyar su derecho penal em el consenso de sus
ciudadanos, por lo que La prevencion general no puede perseguirse a través de la
mera intimadacion que supone la amenaza de La pena para lo posibles delicuentes,
sino que há de tener lugar satisfaciendo la conciencia jurídica general mediante la
afirmacion de las valoraciones de la sociedade.
Para Feuerbach (citado por MORAES, 2006, p. 127), formulador da teoria da
intimidação e constrangimento psicológico, desdobramentos da teoria da prevenção geral, a
pena deve infundir o terror além de internalizar a ameaça do seu mal.
Esta concepção do valor da pena é inconcebível num Estado Democrático de Direito,
posto que neste é basilar o princípio da dignidade da pessoa humana como limitador das ações
sendo cabível uma extrapolação do uso daquelas para que este tenha um controle arbitrário e
nocivo. Nesse entendimento o eminente Juiz Federal Edílson Nobre (2000, p. 187), baseandose nas lições de Ernesto Benda, assevera que “a consagração [...] da dignidade humana como
parâmetro valorativo evoca, inicialmente, o condão de impedir a degradação do homem, em
decorrência de sua conversão em mero objeto de ação estatal”.
A problematicidade da prevenção geral, no entanto, é mais ampla do que se imagina,
encontrando, além do atentado à dignidade da pessoa, outras disfunções. Estas se apresentam
em dois âmbitos, um interno e outro externo, atinente à sua eficácia.
As incoerências internas são inerentes a uma finalidade da pena preventiva
intimidatória, deixando uma lacuna concernente ao momento de execução da pena. O que se
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estatais. Destarte, o Estado, com o uso das penas, tem de respeitar a esfera individual, não
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FIDΣS
percebe com isso é que um possível autor punível concreto, uma vez que cometesse o crime
não reconheceria nenhum sentido na execução de sua pena, uma vez que a finalidade desta
seria meramente prevenir o delito (neste caso já cometido). A pena imputada a ele serviria
apenas como meio para outro fim, o de prevenir outros indivíduos. Assim considerada a pena
atentaria contra a dignidade do próprio condenado, pois este seria tratado como mero objeto.
Portanto, a execução da pena, segundo esta teoria, seria apenas um mal necessário para a
intimidação dos demais não contribuindo em nada para a efetiva realização dela (MORAES,
2006, p. 128).
A fragilidade do caráter preventivo ainda é deflagrada quando posto empiricamente,
demonstrando um déficit de eficácia (MIR PUIG, 1994, p. 47). Isto decorre dos pressupostos
de sua eficácia, que são basicamente dois: primeiro, a necessidade por parte dos destinatários
de conhecimento dos fatores que desenvolvem o Direito Penal preventivo, ou seja, o cunho
ameaçador das penas. De nada adianta a intimidação se os cidadãos agem conforme o direito
sem o conhecimento da ameaça, pois o resultado pretendido foi obtido por meio diverso; do
mesmo modo, se faz mister a motivação de seu comportamento idôneo pelos fatores da
ameaça, ou seja, o mero conhecimento da ameaça seria estéril se os destinatários agiram
conforme a lei motivados por outro motivo que não seja a ameaça em si.
Corroborando o exposto, a assertiva precisa de Winfried Hassamer (1993, p. 36-37):
A intimidação como forma de prevenção atenta contra a dignidade humana, na
medida em que ela converte uma pessoa em instrumento de intimidação de outras e,
além do mais, os efeitos dela esperados são altamente duvidosos, porque sua
verificação real escora-se necessariamente em categorias empíricas bastante
Com base nisto, pode-se considerar a prevenção geral como intimidação uma moeda
de duas faces, ambos desinteressantes. Ou os destinatários aceitam a teoria, atendendo seus
pressupostos de eficácia, tendo assim sua dignidade ferida, ou eles não considerariam tais
pressupostos, o que tornaria a intimidação inócua. Desta maneira se percebe a fragilidade da
prevenção geral, pois sua inaceitabilidade transpassa a coação psicológica strictu sensu, e
encontra barreiras em sua própria teoria bem como quando concebida em uma realidade
social.
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imprecisas.
133
FIDΣS
3 CONTRATUALISMO
Nos dizeres de Roberto Lyra (1955, p. 30) “todas as teorias sobre o fundamento e o
fim do direito de punir podem ser concentradas em três idéias: justiça, ou expiação; defesa
social, ou intimidação; contrato social”.
Assim se pode perceber que o renomado autor diz (1955, p. 30) que quando se fala
em direito de punição e seus fins, ou seja, ao se falar em pena, três pensamentos embasadores
podem ser concebidos: a justiça, sobre o que não cabe falar nesse trabalho, dado que compõe
uma teoria distinta do nosso propósito; a intimidação, já desenvolvida e criticada alhures, no
tópico sobre a prevenção geral como intimidação; e o contrato social, que discorreremos a
partir daqui.
O contratualismo não é doutrina homogênea, abrangendo diversas teorias que têm
em comum o ponto de partida que é o contrato social. Vários pensadores já cuidaram do tema
em diversos períodos da nossa história, desde Hobbes e Locke até Rousseau e Rawls.
Contudo, aqui, não nos cabe ver essas teorias individualizadas, mas sim o que elas têm em
comum, como já dito, a idéia do contrato.
Esse pensamento determina, em linhas gerais, um contrato, no qual os indivíduos
abdicam de parte de sua liberdade, com o objetivo de uma sociedade mais segura. Passa-se
assim de um estado de natureza para a sociedade civil de fato.
É com base nessa concepção que se defende a legitimidade da função preventiva
geral da pena. Basicamente, argumenta-se que o contrato social, como medida de segurança,
atribuiu ao Estado o monopólio da força a ser usado contra os que delinquirem. Essa força se
preventivos intimidatórios passa a ser idôneo, como o uso da força o é.
Tem-se que os argumentos dessa teoria demonstram alguns pontos bastante fracos,
por serem em demasia abstratas suas justificações. Embora se deva ser respeitoso com as
teorias contratualistas, há de se admitir que elas são ficções criadas no intuito de certas
justificações. Não se pode atribuir tudo ao contratualismo, sob pena de se permitirem assim
verdadeiras arbitrariedades, pois poderiam ser justificadas, nessa abstração, até Estados
autoritários que suprimem qualquer liberdade individual em busca da segurança coletiva.
Mesmo assim, se considerássemos as teorias contratualistas como legitimadoras do
nosso sistema de penas, indubitavelmente não poderíamos dizer que elas legitimam qualquer
Direito Penal, posto que o que se visa com este é a segurança, e um sistema de penas
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traduz em legalidade quando se fala em Direito Penal e assim o uso das penas para fins
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arbitrário e intimador, como se dá quando o caráter preventivo geral se faz forte, acaba
acarretando a insegurança das relações, o medo, o regime de terror.
Lembremos que, acima do aparato penal, existem garantias para limitá-lo, e a
dignidade da pessoa humana visa exatamente restringir a função preventiva da pena
intimidatória. Um sistema que a utiliza de maneira excessiva não se justifica nos moldes do
contrato social e do Estado Democrático de Direito.
4 UMA SOLUÇÃO INCONCEBÍVEL: O ABOLICIONISMO
Diante de um contexto de deslegitimação dos sistemas penais, pensadores como
Baratta, Zaffaroni e Ferrajoli, mediante diferentes propostas, perceberam a necessidade da
elaboração de teorias a fim de extirpar tal mácula do direito e, consequentemente, da
sociedade. Interessante posição foi a tomada por acadêmicos da Europa, tais como Louk
Hulsman e Rolf De Folter, em meados do século XX, assumindo uma opinião de que o
problema da legitimação do Direito Penal era ele mesmo. Desta forma esses críticos tinham
como objetivo maior a extinção do próprio Direito Penal.
O ideal abolicionista foi recepcionado pelos demais doutrinadores com demasiada
desconfiança por considerá-lo revés, rebatendo-o com inúmeras críticas, em geral
classificando tal teoria como uma espécie de anarquismo penal (ZAFFARONI, 1998, p. 100).
Não obstante, mesmo os críticos mais ferrenhos têm de considerar a originalidade do
abolicionismo, movimento que não soluciona, mas, incontestavelmente, abre as portas para
É importante ressaltar que a adoção do abolicionismo não implica numa ausência de
controle social:
El abolicionismo no pretende renunciar a la solución de los conflictos que sea
necesario resolver, sino que casi todos sus autores parecen proponer una
reconstrucción de vínculos solidarios de simpatía, horizontales o comunitarios, que
permitan esas soluciones sin apelar al modelo punitivo formalizado abstractamente
(ZAFFARONI, 1998, p. 109).
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uma futura solução.
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FIDΣS
Na visão de Zaffaroni, o abolicionismo parece uma teoria muito sedutora, no entanto
não se pode fechar os olhos para as suas explícitas fraquezas que prenunciam sua
inaplicabilidade.
Para Ferrajoli (citado por ZAFFARONI, 1998, p. 108) o abolicionismo como
alternativa engendra num perigo maior ainda que o próprio Direito Penal deslegitimado.
Sustentando a sua crítica ele supõe dois acontecimentos possíveis numa sociedade sem
Direito Penal, uma possível reação vingativa descontrolada, seja estatal ou individual; e um
disciplinarismo social excessivo mediante a intervenção do autocontrole, incorrendo numa
política moral coletiva em mãos do estado.
O abolicionismo é, também, totalmente inexeqüível numa realidade social de países
como o Brasil, onde os caracteres da pena que mais se perpetuaram ao longo do tempo foram
o retributivo e o preventivo, além da ineficiência sistêmica quanto à contenção da
criminalidade. A imposição da teoria discutida nesses países pode ensejar numa sequência
inconsequente de crimes, prejudicando, mormente os não delinquentes que, por sua vez, além
de serem lesado, se encontrarão desprovidos de meios para se proteger de futuras lesões.
Ademais, apesar de seus vícios (por exemplo, a prevenção geral) o Direito Penal dá
ao Estado segurança, protegendo o indivíduo de possíveis lesões. Estas lesões, por sua vez,
dificilmente cessarão, pois sempre haverá indivíduos predispostos a delinquir (o que se
depreende de uma simples análise da história da humanidade, na qual o delito sempre esteve
presente). Consoante isso fica evidente o candor demonstrado pelos teóricos abolicionista ao
quererem abolir o Direito Penal. Obviamente que o Estado, muitas vezes, se comporta como
opressor, o que é absolutamente repudiável, porém há de haver uma maneira de proteger os
5 UMA POSSIBILIDADE: A INTERVENÇÃO MÍNIMA
A função intimidatória do caráter preventivo é inerente às próprias penas, sendo
assim é impossível separá-las absolutamente. De tal forma que querer excluir o caráter
preventivo geral das penas, só seria possível com o abolicionismo daquelas, o que já se
demonstrou não se estar de acordo, dadas as dificuldades dessa teoria. No sentido contrário,
percebe-se um sistema de penas exacerbado e intimidador que se diz justificado pelas teorias
contratualistas, mas refutada a hipótese, demonstra-se o paradoxo desse sistema que visa à
segurança, mas traz a insegurança pelo medo.
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indivíduos de ambas, lesões e opressões.
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FIDΣS
Por um lado, tem-se a exclusão do Direito Penal, afastando os males, contudo
trazendo diversos problemas a solucionar. No outro pólo, temos o excesso deste, violando de
modo desproporcional a esfera individual de todos. Utilizando do aparato penal
constantemente, o Estado, por vezes, cria um regime de terror, na qual a obediência se dá pelo
medo e não pelo dever ou moral. Entendidos os dois lados, parece, à primeira vista, não
existir saída razoável para o problema, já que todas as soluções parciais trazem severas
consequências.
Todavia, a impossibilidade de soluções é aparente. Pois, em resposta às teorias
extremadas e, por que não dizer, radicais, pode-se adotar um meio termo que balanceia os
efeitos positivos e negativos, tornando suportável a cominação das penas ao atenuar seus
efeitos. Chama-se essa corrente de minimalismo ou de intervenção mínima (ZAFFARONI,
1998, p. 93-94).
A teoria da intervenção mínima se baseia na idéia de que o Direito Penal é
instrumento não apenas subsidiário dos outros direitos, mas extraordinário (ANDRADE,
2006, p. 475-476). Isso porque se entende que ele não é de todo legitimado, só havendo,
então, uso de mecanismos ilegítimos quando as situações se mostram necessárias. Nessa
visão, não é qualquer bem jurídico ou valor que deve ser defendido pelo Direito Penal, mas
apenas aqueles indiscutíveis e essenciais sem os quais seria impossível a manutenção da
própria sociedade. Assim, o que se propõe é o enxugamento do sistema penal, de maneira que
ele passe a abarcar apenas o primordial.
Poder-se-ia indagar: qual o avanço que tal política poderia trazer à questão do caráter
preventivo intimidatório das penas? E a resposta primária não poderia ser menos matemática,
além e está no próprio conceito de intimidação. Para isso, daremos um exemplo. Considere-se
alguém que é absolutamente convicto da ilegalidade do porte de drogas. Imagine agora que o
governo de uma dada localidade promulgue uma lei obrigando a abertura de bagagens nos
aeroportos, com vistas à verificação desse porte ilícito. Provavelmente, você não se sentirá
intimidado por essa norma se perceber que ela é condizente com a sua própria vontade de
impedir o porte de drogas. Daí se tira que a intimidação só existe quando o valor protegido é
incongruente com os valores que a coletividade, no geral, quer proteger. O grande problema é
que essa opinião social não é harmônica, sendo a questão da intimidação um balanceio que se
deve fazer entre o maior número possível de aceitações com o menor número de rejeições.
Não se está falando aqui que, dessa forma, se extinguirá o caráter intimidador da pena, pois
ele é intrínseco a ela, e sim que haverá uma atenuação dos seus efeitos ao se diminuir a área
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com menos normas, há menos intimidação. Porém, a questão não é apenas isso, vai muito
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FIDΣS
de abrangência do sistema penal, dado que mais indivíduos aceitaram naturalmente
determinadas normas.
O minimalismo assim se apresenta como um modelo absolutamente eficaz ao
diminuir a ação estatal e não tirar o instrumento da ordem, que é o Direito Penal. Além disso,
no plano empírico é o que se mostra mais adequado (ZAFFARONI, 1998, p. 100). Primeiro,
porque é razoável e aceitável uma intervenção mínima, não intimidadora em demasia.
Segundo, pois prevalece a segurança do sistema de penas para o caso de existirem atos que
infrinjam diretamente os anseios sociais, mantendo-se assim as expectativas da população
com relação ao sistema.
No entanto, mesmo o minimalismo comporta diferentes reflexões sobre sua
identidade, tanto é que é comum, nesse ponto, distinguirem-se dois modelos que dizem
respeito exatamente ao que se quer chegar com o minimalismo. Ambas partem do pressuposto
de que o Direito Penal se vê deslegitimado. A primeira, contudo, não o vê apenas como
deslegítimo, mas como ilegítimo, ou seja, o sistema de penas não é idôneo e jamais será, é
como se fosse da natureza desse direito sua não legitimação (ANDRADE, 2006, p. 476).
Nesses moldes, é inadmissível, tendo de haver uma transição gradual para o abolicionismo,
nesse meio o minimalismo. Assim a intervenção mínima é meio e não fim. Do outro lado,
estão aqueles que vêem o Direito Penal temporariamente deslegitimado. Isso não quer dizer
que ele não possa se relegitimar, sendo esse o fim visado nessa teoria. A intervenção mínima
entra aqui como o que pode fazer o sistema penal ser idôneo, sendo, dessa forma, o fim e não
o meio. Um dos mais célebres defensores dessa teoria é Ferrajoli (ANDRADE, 2006, p. 478).
É de se perceber que é possível rebater a teoria do minimalismo como meio e do
críticas à teoria que pretende extinguir o Direito Penal. Como já dito, o abolicionismo veio
para dar soluções aos paradoxos existentes internamente ao Direito Penal, mas não propôs
nenhuma resposta razoável que vise substituí-lo por um melhor sistema quando da proteção
dos bens jurídicos fundamentais. Bem verdade que as causas penais, nessa teoria, seriam
abrangidas por outros direitos, sobretudo na seara administrativa, conforme propõe Winfried
Hassemer (1993, p. 97). Nada obstante, o sistema é duvidoso e questionável, devendo se levar
em conta que tal modelo foi idealizado segundo a realidade alemã.
A teoria do minimalismo como fim, por sua vez, não apresenta estruturalmente nada
a se questionar, mas tem-se nesta um problema de elaboração teórica. Isso porque ela visa a
relegitimação do Direito Penal quando esse não pode ser feito, pois a função preventiva geral
inerente à pena bem como outras funções desta, tornam-no ilegítimo desde sua criação.
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abolicionismo como fim pelos mesmos motivos esposados anteriormente quando se fez
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FIDΣS
Considerar essa teoria como possível, seria esquecer o fato de que a toda pena acompanha, em
si, sua ilegitimidade.
Não obstante a discordância de ambas as teorias, pode-se utilizar de idéias por elas
empregadas na elaboração de uma nova teoria minimalista. Assim, faz-se certa a visão de que
o sistema penal é ilegítimo em si mesmo, base da teoria de Zaffaroni e Baratta (ANDRADE,
2006, p. 476), como também a idéia de que a intervenção mínima deve ser o próprio fim
visado, teoria de Ferrajoli (ANDRADE, 2006, p. 478). Destarte, pretende-se com essa nova
concepção minimalista atenuar os efeitos de um aparato penal deslegítimo, e não relegitimálo, muito menos aboli-lo. Ao minimalismo, assim, procede a lógica a qual nos referimos, de
que quanto mais aceitável o sistema, melhor, e não mais legítimo, posto que sempre haverá,
dentro mesmo da lógica preventiva, aqueles que não aceitam certas normas do sistema,
havendo assim intimidação para que elas sejam feitas valer sobre esses.
Portanto, a nova concepção minimalista aqui proposta vê na diminuição da regulação
penal o sentido do abrandamento dos seus maléficos efeitos. A sociedade continuará protegida
por este, mas haverá muito mais certeza de que não serão os indivíduos coagidos sem razão,
dado que nesta teoria minimalista os bens a serem protegidos são genericamente aceitos. Esse
é o Direito Penal do Estado Democrático de Direito, aquele que assegura e não atormenta.
6 CONCLUSÃO
Em linhas finais, podem-se arrolar três conclusões do presente artigo. A primeira
decorrência da intimidação intrínseca a esta. O problema, portanto, encontra-se na própria
pena, e não sendo externo ao Direito Penal. Desta maneira é posta em dúvida sua
legitimidade, passando a ser questionado.
Em segundo lugar, num Estado Democrático de Direito não se pode conceber uma
sociedade intimidada pela proteção exacerbada nem, tampouco, carente de proteção. Algumas
teorias tentaram encontrar soluções para este celeuma, no entanto, todas elas são passíveis de
críticas as quais nos fazem refutá-las, seja pela sua fragilidade teórica, seja pela sua
inviabilidade prática.
Por fim, com vistas à problemática, adotou-se uma proposta distinta das demais, a
qual se individualiza pela escolha da intervenção mínima como fim ao Direito Penal sem,
todavia, buscar sua relegitimação, mas sua aceitação, restringindo seu caráter intimidador.
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delas consiste na confirmação da ilegitimidade do caráter preventivo geral das penas em
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Que o Direito Penal, então, sirva como instrumento, e não como um meio
instrumentalizador das pessoas.
REFERÊNCIAS
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LEGITIMACY OF THE PREVENTIVE CHARACTER OF THE PENALTY: A
DISCUSSION OF THEIR SOLUTIONS
ABSTRACT
The intimidating general prevention proposed by Feuerbach reflects in
the modern criminal law. It’s perhaps the most pernicious purpose of
the penalties, since attacks the human dignity. Just as the law itself,
this theory justified by the social contract idea. This theory gave birth
to questions that concern the legitimacy and existence of the criminal
minimalist. In this context, in opposition to the intimidating nature of
general prevention, it’s proposed a different placement of this front,
by giving a minimalist solution to the problem presented to preserve
the limited guarantees of the coercive power of the state.
Keywords: General Prevention. Human dignity. Criminal Law.
Abolitionism. Minimalism.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
law and therefore flourish the abolitionist ideal, and also the
141
FIDΣS
Recebido 25 ago. 2011
Aceito 22 out. 2011
AÇÕES
AFIRMATIVAS
NO
BRASIL:
UMA
ANÁLISE
ACERCA
DA
DISCRIMINAÇÃO POSITIVA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA
JUSTIÇA SOCIAL
Nathália Maria Ariston Trindade
RESUMO
O artigo versa sobre a emblemática questão das ações afirmativas no
Brasil. Serão abordadas as principais críticas dirigidas a estas medidas
afirmativas, bem como serão explicitadas minuciosamente as razões
que fundamentam a sua instituição. Será traçado, ainda, um paralelo
entre a necessidade de promover “ações de discriminação positiva” e o
papel reservado ao Estado Democrático de Direito, o qual tem o dever
de fomentar a cidadania e promover uma efetiva justiça social,
respeitando a dignidade dos sujeitos de direito concebidos em suas
especificidades e diversidades.
humana. Justiça social.
1 INTRODUÇÃO
A história está repleta de eventos lastimáveis, que infelizmente marcaram épocas
vivenciadas por inúmeras formas de discriminação cometidas pelo homem em desfavor do
seu semelhante. Como exemplo disso, temos a escravidão, a xenofobia, o nazismo, dentre
outras práticas repudiáveis pelo direito pátrio e por toda a comunidade internacional.

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Palavras-chave: Ações afirmativas. Igualdade. Dignidade da pessoa
142
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Neste contexto, as ações afirmativas, também conhecidas como “discriminação
positiva”, têm sido constantemente alvo de grandes discussões, em razão da polêmica que
reveste essa temática, tendo em vista que por vezes suas finalidades são distorcidas por
aqueles que questionam sua efetividade, seja na implementação do princípio da igualdade
(substancial), seja na consecução da justiça social.
Com efeito, no intuito de extinguir as inúmeras formas de discriminação que
assolavam a humanidade, a concepção da isonomia formal foi enaltecida, tendo se buscado a
positivação da igualdade perante a lei. Por outro lado, um comando genérico, abstrato e geral
tornou-se insuficiente para tutelar alguns direitos que os indivíduos possuíam em virtude das
suas especificidades. Nasce, então, a necessidade de concretização da igualdade substancial,
complementada pelo direito à diferença.
Destarte, o presente artigo tecerá profundos comentários acerca da utilização das ações
afirmativas no contexto brasileiro, sua função social, suas principais conseqüências, sua
correlação com o Estado Democrático de Direito e com a efetividade dos valores humanos
essenciais positivados no ordenamento jurídico pátrio e internacional.
Far-se-á, ainda, uma breve comparação desse instituto com as ações afirmativas no
contexto estadunidense, bem como serão destacados os diplomas internacionais ligados ao
combate à discriminação, fundamentando, por fim, sua importância para uma efetiva
realização da justiça social.
Outrossim, como dito, a sua exposição se justifica, precipuamente, em virtude das
inúmeras divergências que hoje brotam quando se discute o fomento da chamada
discriminação positiva, seja por parte daqueles que apóiam a sua utilização, seja por parte
afirmativas.
Ao final, serão expostos os desafios, bem como serão rechaçados os principais
argumentos utilizados para rebater a implementação dessas políticas na realidade brasileira.
2 AÇÕES AFIRMATIVAS
ABORDAGEM
DA
NO DIREITO COMPARADO: UMA
DISCRIMINAÇÃO
POSITIVA
NA
SUCINTA
REALIDADE
ESTADUNIDENSE
Cumpre, inicialmente, esclarecer o motivo pelo qual serão tecidos comentários acerca
das ações afirmativas desenvolvidas nos Estados Unidos da América. A importância desse
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
daqueles que repudiam de toda e qualquer forma a inclusão social por intermédio das medidas
143
FIDΣS
tópico se atém ao fato de ter sido este o país em que as referidas medidas surgiram, bem como
tomaram projeção mundial, servindo de espelho para o seu desenvolvimento, inclusive, no
Brasil. Ademais, os movimentos sociais brasileiros sofreram grande influência dos
movimentos de luta norte-americanos, sobretudo, o movimento negro.
Feitas estas considerações, convém destacar o momento em que surgiu o embrião do
que são hoje as chamadas ações afirmativas. Surgiram nos EUA, de início, para beneficiar
minorias raciais em situação de desvantagem, seja social, seja estatal. Posteriormente, tais
ações foram sendo utilizadas no combate à discriminação em geral, pautando-se sobre
quaisquer critérios persistentes no sentido de macular a igualdade material entre os sujeitos de
uma comunidade, como por exemplo, a discriminação sexual e étnica.
Por sua vez, dois principais momentos assentaram as políticas afirmativas: a fase da
proibição das discriminações e a fase da instituição de medidas especiais de combate à
discriminação.
Na primeira supramencionada fase, as políticas das ações afirmativas tinham como
finalidade o incentivo à efetividade do princípio da igualdade como proibição de
discriminação. Neste momento se desenvolvia o movimento norte-americano de direitos civis,
que tinham como objetivo extinguir a triste realidade da discriminação nas relações
trabalhistas, em função da raça do empregado. Eram discriminados, além dos negros, os
asiáticos e os indígenas-americanos originários do Alaska e das ilhas do Pacífico, os quais
eram impossibilitados de ascender profissionalmente, ou até pior, não tinham acesso a
diversos postos de trabalho.
Diante desta realidade, foram elaborados os seguintes diplomas: a Lei de Direitos
respectivamente, pelos Presidentes John Kennedy e Lyndon Johnson.
A Civil Rights Act de 1964, além de disciplinar as práticas consideradas ilícitas por
parte do empregador na relação de trabalho, instituiu também a competência judicial para
sancionar
práticas
discriminatórias
intencionais,
por
intermédio
de
provimentos
mandamentais. Foi, pois, o “embrião” das ações afirmativas no contexto norte americano, e, o
espelho daquilo que hoje entendemos como ações afirmativas no contexto pátrio.
Evoluindo para a segunda fase – da instituição de medidas especiais de combate à
discriminação, o discurso mudou o foco, avançando de uma mera preocupação com um
combate à discriminação meramente formal, para efetivamente estabelecer uma estratégia
mais rigorosa na superação da desigualdade fática. A pobreza e a exclusão em que se inseriam
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Civis de 1964, a Ordem Executiva nº 1961 e a Ordem Executiva nº 11.246, editadas,
144
FIDΣS
os negros floresceram a preocupação com a efetiva integração destes no âmbito social e
econômico, tendo como baliza uma política efetiva de combate à discriminação.
Foram pensadas inúmeras políticas, entre elas, a utilização da raça como critério de
desempate ou preferência no preenchimento de vagas no mercado de trabalho, o que mais
tarde, de forma mais elaborada, se desenvolveria como sistema de cotas raciais.
Com efeito, o termo “ação afirmativa” surgiu à época da presidência de John Kennedy
(1961-1963), mas ganhou realmente efetividade na gestão do Presidente Richard Nixon
(1969-1974).
Registre-se que foi desta época a instituição da Equal Employment Opportunity
Commision – EEOC –, cuja competência nos limites da lei se delineava na aplicação de
sanções a empregadores que atuassem com políticas discriminatórias. No âmbito da
Administração, foram instituídas políticas sociais para que as contratações com o Poder
Público fossem realizadas com fins de atingir um percentual aceitável de minorias raciais. Na
Educação, o Civil Rights Act de 1964 determinou às universidades que promovessem
programas de ações afirmativas, mormente, as entidades privadas, beneficiárias de fundos
públicos.
Assim, após essa breve abordagem histórica acerca do surgimento das ações
afirmativas nos Estados Unidos da América, os próximos tópicos tratarão de demonstrar, de
maneira clara, o desenvolvimento de tais políticas públicas e suas atuais problemáticas no
contexto pátrio.
Em razão de a presente discussão ter como foco principal a justiça social, faz-se
necessária uma breve análise do que é justiça. Este termo, porém, encontra-se revestido de
uma enorme carga axiológica, permitindo o seu desdobramento em inúmeros conceitos e
concepções. Assim, não há como definir de maneira exata o significado da expressão
“justiça”.
Neste sentido, Bittar (2009, p. 508-509), ao escrever sobre o entendimento do filósofo
Chaim Perelman a respeito do que é justiça, aduziu:
Chaim Perelman, em seu ensaio sobre a justiça, não admite que esta seja um valor
absoluto, mas relativo e impassível de ser definido pelo conhecimento; o valor é
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
3 DIREITO, JUSTIÇA E CIDADANIA: UM BREVE DEBATE JUSFILOSÓFICO
145
FIDΣS
relativo e depende da crença de cada qual. Ora, desta forma, Perelman aponta como
saída para o problema, a elevação da questão para o nível da razoabilidade
prudencial do diálogo e da argumentação. Portanto, é a discussão racional, sobre
valores mais ou menos aceitos, que constitui o objeto de conhecimento sobre a
justiça. Estudar justiça, segundo Perelman, é estudar valores, e valores relativos, que
se discutem historicamente, socialmente e culturalmente.
Com efeito, tomando como base os ensinamentos de Perelman, extrai-se que a justiça
pode ser considerada como a ratio essendi do Direito, ou seja, a finalidade deste. Porém, só
pode ser assim imaginada quando se respeita primordialmente o princípio da igualdade. Este,
no entanto, pode ser entendido por diversos focos também. Por sua vez, o ideal aqui abordado,
em virtude da implementação das ações afirmativas, será a igualdade na sua forma
substancial, discutida mais profundamente nos próximos tópicos.
Ademais, imperioso destacar que a justiça intrinsecamente relacionada à consecução
da cidadania guarda afinidades com as ações afirmativas, na medida em que se tem percebido
uma verdadeira mudança de paradigmas, tendo o sujeito de direito deixado de ser visto como
ser abstrato e geral para ser considerado em suas diversidades e peculiaridades.
Os direitos humanos, inclusive, têm sido observados na sua universalidade e
indivisibilidade, o que aliado à ideia de especificidade dos sujeitos de direito, ensejou a edição
das Convenções de Combate à Discriminação Racial, da Mulher e a Convenção sobre os
Direitos das Crianças.
Desta feita, numa realidade que preza pela justiça social, urge a necessidade de realce
desta com a redefinição do papel do Estado, conforme será demonstrado em seção própria. O
às minorias, aos grupos vulneráveis, uma vez que a cidadania só é plenamente alcançada com
a realização da observância da indivisibilidade e universalidade de direitos humanos, e,
consecução do processo de especificação do sujeito de direito.
4 AÇÕES AFIRMATIVAS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
As ações afirmativas têm recebido inúmeras denominações, as quais, muitas vezes
findam por concentrar uma carga pejorativa envolta da nomenclatura designada. Muitos as
denominam de ideias de cotas, tratamentos preferenciais, discriminação inversa,
discriminação invertida, discriminação benigna, entre outras. No entanto, este artigo utilizará
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Estado compromete-se a instituir políticas públicas que destinam um tratamento diferenciado
146
FIDΣS
predominantemente as nomenclaturas ações afirmativas e discriminação positiva, em virtude
de serem mais adequadas ao propósito que as ações em apreço possuem na promoção da
igualdade material, bem como no combate a qualquer tipo de discriminação.
Imperioso, neste momento, traçar qual relação pode ser extraída entre as diretrizes do
Estado Democrático de Direito, a concepção de democracia e as ações afirmativas.
Torna-se, portanto, essencial ressaltar aqui alguns fundamentos constitucionais do
Estado Democrático de Direito, entre eles, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art.
1º, incs. II e III, da CF), além de alguns objetivos da República Federativa do Brasil, tais
como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(art. 3º, incs. I e IV, da CF).
Sobre o Estado Democrático de Direito, preleciona José Afonso da Silva (2007, p.
120):
É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do
mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado
promotor da justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias
populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir.
Vislumbra-se, portanto, nitidamente que o Estado Democrático de Direito busca
essencialmente a efetivação da justiça social e da cidadania, por intermédio da concretização
dos inúmeros direitos positivados na Constituição, fundamentados, mormente, na dignidade
Ademais, a Constituição Federal de 1988 acompanhou a redefinição do papel do
Estado e elevou os direitos fundamentais a clausulas pétreas, garantindo a proteção, inclusive,
de direitos coletivos. Buscou assegurar de forma eficaz os direitos nela encartados, não se
resumindo a expor simples prescrições legais, como fez o Estado de Direito, cujo princípio
basilar era a legalidade. Fez mais, diante dos conceitos gerais, abstratos e prescritos em lei,
determinou que o Estado Democrático de Direito deve atuar positivamente com a finalidade
máxima de fazer valer os direitos dos cidadãos que estão sob sua jurisdição. O Estado deve
ser intervencionista para promover o bem-estar social.
Com efeito, no contexto das atuações estatais, surgem as ações afirmativas, por meio
das quais o Estado promove mudanças políticas, econômicas e sociais, sendo tais realizações
o seu próprio fundamento. Deve o Estado agir sopesando os diversos interesses divergentes e
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
da pessoa humana.
147
FIDΣS
convergentes de uma mesma sociedade para fins de pacificação social, sobretudo, e para o
fomento de uma sociedade verdadeiramente igualitária.
Para tanto, deve tomar como norte os princípios constitucionais, sobretudo, o princípio
da justiça social, da igualdade, da legalidade e da segurança jurídica, em razão dos valores
que carregam. Deve observar a supremacia da Lei Maior diante todo o ordenamento jurídico
como um dever incondicional na garantia dos direitos prometidos, como forma de respeito ao
que se almeja chamar “democracia participativa”.
Nesse diapasão, ensina José Afonso da Silva (2007, p. 126) que “democracia não é um
mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de
garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”. No
mesmo sentido, elencou Robert Dahl (2009, p. 58), algumas consequências desejáveis da
democracia, entre elas: o repúdio à tirania, a garantia dos direitos essenciais, a liberdade geral,
a autodeterminação, a autonomia moral, o desenvolvimento humano, a proteção dos direitos
pessoais essenciais, a igualdade política, a paz e a prosperidade.
Desta feita, com base nas constatações alhures, depreende-se que a democracia
promove, portanto, o realce da convivência social, respaldada principalmente no valor
isonomia (substancial), alvo das ações afirmativas, se alocando como meio e fim do Estado
Democrático de Direito, o qual tem como dever a promoção do bem estar dos seus cidadãos, o
respeito pelas diferenças, a pacificação e concretização da justiça social.
5 AÇÕES AFIRMATIVAS: RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E
O sistema de direitos fundamentais baseado, mormente, na dignidade da pessoa
humana, leva ao entendimento de que o ser humano se posiciona como fundamento e fim da
sociedade e do Estado. Assim, muito embora a dignidade preexista ao Direito, fato é que sua
proteção apenas adveio após a sua positivação. Contudo, há muito já tem sido observada a sua
importância, desde a edição da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de
17891, cujo art. 16 preconizou que toda sociedade que não reconhece e não garante a
dignidade da pessoa não possui uma Constituição.
1 Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível
<http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm>. Acesso em: 25 ago. 2011
em:
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA
148
FIDΣS
Por sua vez, Matos (2008, p. 176) ao dispor sobre o princípio em comento, asseverou
que “uma das funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana
reside justamente no fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e
legitimidade a uma determinada ordem constitucional”.
No entanto, vale salientar que a dignidade da pessoa humana, em que pese atuar nas
funções informativa, interpretativa, normativa e integradora, bem assim como norte na
ponderação da aplicação de regras e princípios de todo o ordenamento jurídico, não pode ser
utilizada de maneira desproporcional, servindo de fundamento direto para a garantia de todos
os direitos, sob pena de banalização do princípio em apreço, como hoje corriqueiramente nos
temos deparado.
Com isso, atente-se, a dignidade da pessoa humana deve pautar suas funções sempre
no reconhecimento de direitos fundamentais para a promoção desta própria dignidade. Há,
pois, uma correlação entre esse princípio e a concretização da igualdade material, seja porque
fomenta a liberdade sexual, seja porque garante maior proteção às minorias (negros,
mulheres), ou porque assegura a eficácia dos direitos sociais por meio das políticas públicas.
Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, Hesse (1992, p. 109-111 citado por
PIOVESAN, 2009, p. 366) prelecionou:
O artigo de entrada da Lei Fundamental normaliza o principio superior,
incondicional e, na maneira de sua realização, indisponível, da ordem constitucional:
a inviolabilidade da dignidade do homem e a obrigação de todo o poder estatal de
respeitá-la e protegê-la. Muito distante de uma fórmula abstrata ou mera
declamação, à qual falta significado jurídico, cabe a esse princípio o peso completo
após um período de inumanidade e sob o signo da ameaça atual e latente à dignidade
do homem, está no respeito e na proteção da humanidade.
Noutro giro, importa correlacionar também a observância do princípio da igualdade e
as ações afirmativas. Isso porque, o princípio da isonomia é corolário da democracia, na
medida em que não permite distinções, vedações e perseguições. Visou a Constituição Federal
suprimir as desigualdades com base em critérios discriminatórios, quando insculpiu em seu
texto legal, inúmeros direitos que buscam promover uma equiparação entre as pessoas.
Buscou-se, pois, uma igualdade jurídica, em respeito às desigualdades inerentes a cada ser
humano, ao seu contexto social, histórico, econômico, político e cultural.
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de uma fundação normativa dessa coletividade histórico-concreta, cuja legitimidade,
149
FIDΣS
Convém enaltecer, contudo, que a sociedade passou por mudanças no que concerne à
concepção do conceito de igualdade (formal e material). A isonomia formal passou a ser
definida como aquela vislumbrada numa simples leitura da Constituição quando prescreveu
que todos são iguais perante a lei. Porém, não era suficiente para garantir os direitos mais
essenciais ao homem, em que pese ter sido um grande avanço das Declarações de Direito ter
consagrado em seus textos legais a pretensão à isonomia formal, glorificada na legalidade
como limitação ao poder soberano.
Com efeito, na atualidade, não há mais espaço para uma isonomia meramente formal.
Deve o espaço ser ocupado por uma preocupação com a realização da isonomia verdadeira
substancial, que destina tratamentos desiguais aos cidadãos, na medida de suas desigualdades,
particularidades e especificidades.
Com essa nova necessidade de fornecer sustentabilidade à igualdade material,
surgiram e se destacaram as ações afirmativas, as quais ampararam as diferenças. Percebeu-se
que alguns grupos deviam ser diferentemente reconhecidos, em razão da sua vulnerabilidade,
o que autorizaria um tratamento específico, sem com isso ferir o princípio da igualdade.
Por sua vez, para fins de consubstanciação da igualdade material, são necessárias duas
ações: uma no sentido de combate à discriminação e outro no sentido de promover a
igualdade, não podendo ser trabalhadas de forma dissociada.
Neste diapasão, no contexto internacional foram celebradas inúmeras Convenções,
entre elas, a Convenção de Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e a
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ambas
ratificadas pelo Brasil. Com elas, procurou-se erradicar qualquer forma de discriminação
direitos.
Entretanto, o simples combate à discriminação e as ações voltadas à sua eliminação
não garantiram de todo a realização de uma isonomia material. Aliadas às formas de combate
à discriminação, precisaram ser propostas também formas de estimulação da inserção dos
grupos vulneráveis no contexto político, social e econômico, medidas verdadeiramente
interessadas em promover uma equiparação entre os indivíduos de uma sociedade.
Para tanto, se mostraram como boas alternativas as ações em apreço de caráter
temporário. Tais medidas, por outro lado, não devem ser observadas apenas pelo prisma
retrospectivo, como uma compensação a um passado discriminatório, mas também pelo
prisma prospectivo, que efetivamente vise promover uma transformação de inclusão social.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
consubstanciada em atitudes que distinguem, excluem, restringem, anulam ou prejudicam
150
FIDΣS
Como dito, devem também ser temporárias, cessando logo após alcançados os seus objetivos,
sob pena de perpetuar uma discriminação sem finalidade justa.
Sobre o tema, obtempera Flávia Piovesan (2009, p. 189):
As ações afirmativas, enquanto políticas compensatórias adotadas para aliviar e
remedias as condições resultantes de um passado discriminatório, cumpre uma
finalidade pública decisiva ao projeto democrático, que é a de assegurar a
diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas que viabilizam o
direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve se moldar pelo respeito à
diferença e à diversidade. Por meio delas transita-se da igualdade formal para a
igualdade material e substantiva.
Tecidas as correlações entre o princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana,
e as ações afirmativas, a seção seguinte tratará dos diplomas que regem as medidas de
discriminação positiva, demonstrando como estas têm sido disciplinadas no contexto
brasileiro, afastando qualquer entendimento direcionado a macular a sua constitucionalidade.
6 A DISCRIMINAÇÃO POSITIVA: PREVISÃO NOS DIPLOMAS LEGAIS
INTERNACIONAIS E PÁTRIO
Exaustivamente abordada a questão da importância da implementação das ações
afirmativas, convém delinear um breve paralelo acerca de como elas estão inseridas no
destacadas algumas convenções internacionais celebradas no afã de dar suporte a essas
políticas afirmativas.
Tais Convenções foram gradativamente elaboradas, visto que durante o Estado Liberal
buscava-se a preservação de outros direitos, à época de maior importância para o homem,
entre eles, a liberdade, a segurança e a propriedade, principalmente em virtude do temor dos
abusos que o Estado poderia cometer, findando pela relegação de outros direitos tão
importantes quanto os supracitados, como o direito à igualdade.
No entanto, com a mudança de valores, a igualdade ganhou destaque entre os direitos
fundamentais. Uma igualdade para não permitir mais que grupos, de qualquer raça, sexo, cor,
etnia, etc., sofressem atrocidades já conhecidas pela História da Humanidade, que se
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contexto mundial, bem como estão amparadas no ordenamento jurídico pátrio. Serão aqui
151
FIDΣS
basearam na diferença entre os indivíduos para fundamentar um extermínio, a extinção de
uma raça, entre outras inúmeras formas de maltrato e discriminação.
Por outro lado, o medo de um tratamento diferenciado que pudesse eventualmente
fundamentar novos conflitos, perseguições e privilégios, perdeu espaço, em função da
necessidade de conferir aos grupos vulneráveis um tratamento especial, atendidas todas as
particularidades e especificidades que o acompanham.
A esse respeito, foram ratificadas pelo Brasil, como dito anteriormente, a Convenção
da ONU sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, bem como a
Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a
primeira em 1968 e a segunda em 1984. Seus preceitos se tornaram verdadeiras obrigações no
combate aos desrespeitos dirigidos àqueles que de alguma forma são diferenciados por algum
critério social, econômico, racial, sexual, étnico, entre outros.
Ambas possuem nos seus respectivos arts. 1º2 textos similares, os quais definem a
discriminação baseada na raça e no sexo como quaisquer distinções, exclusões ou restrições
cujo objetivo seja prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições
iguais, dos diversos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Outrossim, as Convenções acima destacadas previram a possibilidade de adoção de
medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos com vistas a promover
uma ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais, bem como a
promoção da igualdade de fato entre os gêneros masculino e feminino.
Doutro bordo, impende ressaltar o aparato normativo exclusivamente nacional que deu
respaldo as ações afirmativas. Diversamente de como ocorreu nos Estados Unidos da
(obrigam) a utilização das políticas de discriminação positiva.
2 Art. 1º. Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação racial" significará toda distinção,
exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha
por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em
igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social,
cultural
ou
em
qualquer
outro
campo
da
vida
pública.
Disponível
em:
<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discriraci.htm>. Acesso em: 25 ago.
2011.
Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra as mulheres" significa toda
distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou consequência prejudicar ou destruir
o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na
igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico,
social,
cultural
e
civil
ou
em
qualquer
outro campo. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/mulher/lex121.htm>. Acesso em: 25
ago. 2011.
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América, o nosso direito pátrio, em sua própria Lei Maior instituiu dispositivos que aludem
152
FIDΣS
A exemplo, cite-se o art. 3º, incs. III e IV, da Constituição Federal, mencionado
alhures, que inseriu entre os objetivos da República Federativa do Brasil, a promoção do bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Ainda, o art. 5º, inc. LXI, da Lei Maior também fundamenta a constitucionalidade das
ações afirmativas, uma vez que dispõe sobre a punição para com aquele que cometem atos
discriminatórios atentatórios dos direitos e liberdade fundamentais. Mais especificamente, o
inciso XLII do artigo em comento abordou a questão da discriminação racial, ao estabelecer
que constitui crime a prática do racismo, sendo inafiançável e imprescritível, sujeitando o
infrator à pena de reclusão. Acompanhando os citados preceitos constitucionais, foram
editadas as Leis nº 7.716/1989, 9.459/97 e 7.716/1989, as quais tratam dos crimes resultantes
de preconceito de raça ou cor.
Noutro giro, o art. 37, inc. VIII, garantiu às pessoas portadoras de deficiência física
uma reserva percentual de cargos e empregos públicos, bem como foram protegidas, por
intermédio do art. 215, §1º, as manifestações culturais indígenas e afro brasileiras. Foi
garantida, inclusive, uma proteção especial ao mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos, consoante redação do art. 7º, inc. XX, da CF.
Com efeito, gradativamente o Estado brasileiro vem interagindo com essa proposta de
inclusão social dos grupos vulneráveis, desequiparados, sobretudo, pelo passado
discriminatório. Citem-se, ainda, outros exemplos, tais como a “Lei de Cotas”, disciplinada
pela Lei nº 9.100/09 e o Programa Nacional de Ações Afirmativas, regulamentado pelo
Decreto nº 4.228 de 13 de maio de 20023.
jurisprudência, possuindo incontáveis julgados a favor da sua implementação, rechaçando
qualquer tese levantada acerca da sua eventual inconstitucionalidade. Um exemplo recente e
3
O Programa Nacional de Ações Afirmativas possui as seguintes diretrizes básicas:
Art. 2º O Programa Nacional de Ações Afirmativas contemplará, entre outras medidas administrativas e de
gestão estratégica, as seguintes ações, respeitada a legislação em vigor:
I - observância, pelos órgãos da Administração Pública Federal, de requisito que garanta a realização de metas
percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento
de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS;
II - inclusão, nos termos de transferências negociadas de recursos celebradas pela Administração Pública
Federal, de cláusulas de adesão ao Programa;
III - observância, nas licitações promovidas por órgãos da Administração Pública Federal, de critério adicional
de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedores que comprovem a adoção de políticas compatíveis
com os objetivos do Programa; e
IV - inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no
âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais, de dispositivo estabelecendo
metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência.
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Do mesmo modo, as ações afirmativas vêm encontrando embasamento, inclusive, na
153
FIDΣS
bastante importante para o reconhecimento da constitucionalidade das políticas afirmativas foi
o julgamento ocorrido em 19 de março de 2009, envolvendo a demarcação da terra indígena
Raposa Serra do Sol4.
7 AÇÕES AFIRMATIVAS: CRÍTICAS E CONSIDERAÇÕES
Conforme dito no intróito, alguns dilemas vêm envolvendo à temática das ações
afirmativas. Não se aterá esse presente tópico a rebater o argumento amplamente difundido de
que as ações afirmativas ferem o princípio da igualdade, em virtude de exaustivamente essa
questão já ter sido superada em outras seções.
No entanto, outros desafios merecem ser aqui debatidos.
Piovesan (2009, p. 204) elenca alguns focos de tensão, dos quais se destacam: a
“racialização” da sociedade brasileira e afronta à autonomia universitária, em razão da
imposição do sistema de cotas, que serão debatidos em tópico próprio.
Elenca, ainda, o eventual antagonismo entre políticas universalistas versus políticas
focadas, argumento que pode brevemente ser rechaçado, bastando afirmar que a adoção de
EMENTA: AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.
INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA
DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS
DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº
534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL
HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM
SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE.
REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A
CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO
DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO
FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO
RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS
INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA
CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES
DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA
EM PARTE.
[...] 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade
nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um
novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração
comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por
mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes
assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade
somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios,
pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de
mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito,
a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão
comunitária pela via da identidade étnica. (STF. Tribunal Pleno. Pet 3388, Rel. Min. Carlos Britto, j.
19/03/2009, DJe-181. Divulg. 24-09-2009. Public. 25-09-2009. Republicação DJe-120. Divulg. 30-06-2010.
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4
154
FIDΣS
medidas focadas, como as ações afirmativas, em nada impede o desenvolvimento das políticas
universalistas. Podem, inclusive, ser adotadas concomitantemente. Ademais, muito pouco no
plano fático tem se alcançado a partir do desenvolvimento de medidas genéricas.
Outrossim, não há que se falar também em eventual violação do preceito de proibição
constitucional de qualquer discriminação com base na raça ou cor de um indivíduo,
estampada no art. 3º, inc. IV, da CF. Ora, este argumento esbarra na sua própria falta de
lógica, bastando fazer uma atenta leitura do aludido dispositivo, o qual prevê a promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Imperioso destacar que, visando o combate à discriminação seja por qualquer critério
que se baseie, pareceria um dissenso acolher a argumentação completamente sem fundamento
de que as ações afirmativas violam o art. 3º, inc. IV da CF, a menos que não se queira
entender a finalidade das políticas afirmativas, ou não as entenda como medidas que visem
justamente o combate a tão repudiada discriminação. Assim, uma alternativa que surgiu
justamente para superar perseguições, abusos e exclusões, não pode ser explicitada num plano
contrário aos objetivos da República Federativa do Brasil.
Ademais, não há nenhum desrespeito à dignidade da pessoa humana, argumento
amplamente já rechaçado em tópicos anteriores. A respeito dessa eventual afronta, entende
Rios (2008, p. 200) que não ser discriminado é parte inegável daquilo que é devido a cada ser
humano em uma sociedade. Assim, não há jamais que se falar que a dignidade de alguém é
ferida por ser reduzido à condição de meio ou polarizado como vítima de um passado injusto.
Na verdade, percebam, que negar que os negros, por exemplo, foram e até hoje
realidade fática ainda presente nos dias atuais.
Neste aspecto, conclui Rios (2008, p.200):
Desprezar esta realidade é não reconhecer este dado importantíssimo da realidade
concreta, onde tais pessoas vivenciam sua história. Este reconhecimento da
concretude humana é tão necessário para o respeito à dignidade quanto evitar
sentimentos paternalistas que conduzem à inferiorizarão do outro.
Impende destacar que não se pode conceber também seja um atentado à justiça social.
Ora, promover o bem de todos sem preconceito é uma forma de fomentar a justiça social,
aliás, é um dever de todos, em respeito à própria dignidade da pessoa humana e dos fins da
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continuam sendo vítimas de uma infindável discriminação racial e social, seria ignorar uma
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democracia. Então, como aceitar que as ações afirmativas como uma das alternativas capazes
de implementar os objetivos prometidos em nosso direito pátrio, estaria a violar a justiça
social?
Como dito, justiça não é um termo fácil de exprimir seu significado, podendo ser
vislumbrado em diversas concepções. Contudo, existem ações que inegavelmente contribuem
para a realização da justiça, e entre elas, sem dúvida, se encaixam as medidas afirmativas.
Será que toda uma comunidade não ganha quando se busca promover o bem de todos, quando
se tem como alvo superar a discriminação? A resposta só pode ser positiva.
7.1 As ações afirmativas no contexto das Universidades Brasileiras: cotas para negros
Por fim, faz-se imprescindível, em razão de ser o ponto mais questionado quando se
trata de ações afirmativas, cuidar especificamente das cotas raciais para o ingresso nas
universidades brasileiras. Isso porque, além de todos os dilemas acima rebatidos, tais políticas
específicas possuem desafios particulares, os quais merecem ser aqui explicitados.
Cumpre, pois, trazer à baila as principais problemáticas envolta dessa questão para
melhor elucidação do tema. De início, um interessante esclarecimento elaborado por Nilma
Lino Gomes (2006, p. 13-14)
Alguns (ou muitos) poderão dizer, com efetiva razão, que nós demoramos muito a
chegar a essa posição. De fato, elevar o debate sobre promoção da comunidade afro
descendente, nesses termos – transcorridos 116 anos de liberação do trabalho
escravo -, é quase uma eternidade, toda sorte, esse momento reflete, também, a
formação educacional e política, pode se colocar na posição de questionar o que lhe
reserva o futuro em termos de sua seguridade social, econômica e, também política.
Convém ressaltar o início desta calorosa discussão, a qual, em que pese ter iniciado na
década de 90, com a difusão dos pré vestibulares populares, cujo protagonista foi o
Movimento Pré Vestibular para Negros e Carentes – PVNC –, criado em 1993, na cidade de
São José de Meriti, ganhou força a partir de 2003, no emblemático vestibular para ingresso na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ –, conhecida pela sua excelência e elitização
[colocar a referência].
O que pautou esse polêmico vestibular foi a aprovação das cotas pela Lei Estadual nº
3.708/2001, a qual assegurou 40% das vagas para negros e pardos. Entretanto, a referida Lei,
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emergência de um grupo que, a despeito de todos os constrangimentos à sua
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embora tenha garantido uma ampla possibilidade de acesso dos negros e pardos à
Universidade Estadual, teve a seção que disciplinava a responsabilização do governo do
Estado no fornecimento de recursos para a permanência dos alunos cotistas na referida
Universidade vetada.
A discussão ficou ainda mais intensa, no momento da divulgação do resultado do
primeiro vestibular com cotas da UERJ, quando foram publicadas as notas dos alunos
ingressantes por meio desse benefício. No entanto, não deveria ter sido feito nenhum alarde
diante das constatações explicitadas à época. Se os alunos cotistas tivessem obtido resultados
tão bons ou superiores àqueles que ingressaram sem a necessidade do sistema de cotas, não
haveria razão para estas existirem. Assim, utilizar esse argumento é relegar o fundamento das
cotas, qual seja, dar oportunidade a quem dificilmente teria condições de ingressar sem
qualquer “auxílio” em uma universidade pública.
Aliás, esclareça-se que um terço dos cotistas ingressariam sem a referida reserva.
Aliás, muitos daqueles que impetraram mandado de segurança se sentindo injustiçados pelo
sistema de cotas, sequer obtiveram êxito ao final do vestibular, sequer alcançaram a nota
mínima para ingresso na UERJ.
Nesse contexto, foi, então, editada nova Lei, garantindo 45% de vagas para alunos
cotistas, distribuídas da seguinte forma: 20% para negros, 20% para egressos da rede pública
de ensino e 5% para pessoas portadoras de deficiência e integrantes de minorias étnicas.
Quem quisesse ingressar na Universidade pelo sistema de cotas, deveria apenas escolher um
tipo desta para concorrer.
Foi introduzido um corte de renda, por meio do qual se instituiu já para o vestibular de
o vestibular de 2005, a renda não poderia ser superior a R$ 520,00 (quinhentos e vinte reais).
Gomes (2006, p. 30), observou de forma exemplar a nova relação instituída:
Esse cruzamento atenta e realça a existência de verticalidades interna ao grupo dos
negros, através do corte de renda, excluindo os negros das classes médias e alta do
acesso ao benefício das vagas reservadas – ainda que, em relação aos brancos de
classe média e alta, estes não mantenham relações horizontais na totalidade de sua
experiência social, visto que também sofrem o racismo e a discriminação em
diversos espaços e momentos de sua formação e trajetória social.
Todavia, os murmurinhos continuavam, era alegado que as cotas feriam o princípio da
isonomia, instauraria conflitos raciais no âmbito acadêmico universitário e prejudicariam o
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
2004 a renda per capita da família do beneficiário em até R$ 300,00 (trezentos reais). Já para
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FIDΣS
rendimento da universidade. Surgia, ainda, a tese persistente, mas pouco pertinente de que o
Brasil, por ter sido um país com forte miscigenação, todos poderiam se afirmar
afrodescendentes.
Impende fazer uma simples constatação: os critérios de classe social e raça sempre
foram utilizados como apoio a racialização da sociedade e exclusão dos grupos
desfavorecidos. Então, essa hostilidade racial não pode ser suscitada como argumento
contrário às ações afirmativas. Se desde o passado se percebe essa racialização, contudo dita
instaurada a partir das costas, que seja assim feita para beneficio de quem por séculos sofreu e
continua a sofrer discriminação.
Destarte, em que pese não se negar a existência de uma forte miscigenação, a
autodeclaração como sistema de identificação é normativamente positivada no direito pátrio,
não ocorrendo apenas para identificação a respeito de raça, mas também identificação para
minorias étnicas, bem como reconhecimento indígena.
Ademais, se diz que as cotas ferem o dispositivo constitucional expresso no art. 208,
inc. V, o qual dispõe sobre o dever do Estado com a educação, por meio da garantia de acesso
aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade
de cada um. Alegam os opositores às cotas, que estas desconsideram o mérito individual
exigido pelo dispositivo constitucional.
Por sua vez, este dilema pode ser rebatido da seguinte forma: não há qualquer
dispositivo constitucional que imponha a pontuação como único requisito apto a aferir mérito
individual nos casos de vestibulares e concursos. Frise-se, que não existem dados que
apontem correspondência direta entre o desempenho no vestibular e o respectivo rendimento
Por outro lado, não se pode relegar a garantia de uma concorrência equânime, que
dificilmente poderia ser alcançada sem o auxílio das cotas, infelizmente, fruto do racismo e da
discriminação de toda uma História. A respeito, (DWORKIN citado por RIOS, 2005, p. 569).
Os responsáveis pelas admissões não devem oferecer vagas como premiações por
realizações ou trabalhos passados, nem como medalhas por talentos ou virtudes
inerentes: seu dever é escolher um corpo discente que, no todo, venha a dar a maior
contribuição possível às metas legítimas que a instituição definiu.
Há, inclusive, os mais radicais que questionam a entrada dos negros por cotas, sob a
alegação de que mudará radicalmente o perfil dos alunos que ocupam as universidades do
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dentro da sala de aula.
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país. Ora, essa realidade não começou com o ingresso dos negros por intermédio das cotas,
mas sim, desde o momento em que foram instituídas as cotas para alunos egressos da rede
pública de ensino. Contudo, o debate só veio à tona quando alunos cotistas iniciaram a
graduação de cursos com alto prestígio social, a exemplo de direito e medicina, porque até o
momento em que ingressavam nos cursos de “baixo prestígio”, poucas críticas eram
suscitadas.
Igualmente, não se deve entender que as cotas violam a autonomia universitária,
entendida como uma independência na definição de critérios de ingresso nas suas
dependências, cuja previsão legal encontra-se no art. 207 da CF.
Por sua vez, convém dizer que não existe nenhuma quebra da autonomia das
universidades. A possibilidade de uso das ações afirmativas, inclusive, adquiriu força a partir
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº. 9.394/96 –, quando prescreveu a
seguinte observância: o número de vagas das universidades deve ser atingido em
conformidade com a capacidade institucional, bem assim as exigências do meio social.
Ademais, a Lei 10.558/2002 determinou a implementação de estratégias para a
promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente
desfavorecidos, especialmente os afros descendentes e indígenas, o que mais uma vez
corrobora a tese de que devem as universidades atuar no sentido de promover a inserção de
indivíduos desfavorecidos no seu âmbito.
Com isso, e diante todos os argumentos supra, parece superada a questão suscitada de
que as cotas raciais são inconstitucionais, não possuem qualquer respaldo legal, bem como
fere a dignidade da pessoa humana, o princípio da isonomia, violam a autonomia
para um novo contexto social, econômico e político delineado pela Constituição Federal, que
exige do Estado, em seu papel redefinido, verdadeira intervenção em prol do bem estar da
comunidade.
8 CONCLUSÃO
Diante tudo o que foi abordado neste artigo, conclui-se que a sociedade precisa de uma
mudança de paradigmas.
Não se pode deixar que uma situação aparentemente conflituosa entre o dever de
observância da igualdade jurídica e a promoção da igualdade fática seja fundamento para
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universitária, entre outros tantos argumentos preconceituosos que insistem em fechar os olhos
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suprimir as medidas afirmativas. Como já explanado no decorrer deste artigo, esse conflito é
facilmente superado, utilizando-se da própria ideia de igualdade material.
A partir dessa concepção, cuja preocupação precípua é o estímulo da concretização da
igualdade na realidade fática, não se pode continuar a enaltecer a simples igualdade que preza
de forma abstrata o tratamento igual de todos perante a lei. Um tratamento igualitário
meramente formal fere a isonomia, pois não age com cautela, não faz ponderações, não
observa as especificidades dos sujeitos de direito, fecha os olhos para uma realidade fática
injusta que ainda assola a sociedade.
Faz-se imperioso superar qualquer entrave a efetividade das ações afirmativas, a
começar pelo preconceito na sua implementação.
Com efeito, em que pese não serem as ações afirmativas obrigatórias aos Poderes
Públicos, exceto nos casos previamente previstos em lei, a exemplo do percentual destinado
aos deficientes físicos para ocupação de cargos públicos, é obrigação, sim, do Estado, em
razão da redefinição do seu papel, preocupado com o bem estar social, programar medidas
que visem à justiça social, por meio da promoção da igualdade material e a inserção dos
grupos mais vulneráveis num contexto fático digno.
Para tanto, as medidas de discriminação positiva são boas alternativas nessa luta,
embora não sejam as únicas. Excelentes, principalmente porque encontram respaldo
constitucional, no momento em que são utilizadas de acordo com os objetivos da República
Federativa do Brasil, seus fundamentos, ou simplesmente, porque atuam na finalidade última
do Estado, qual seja, a consecução da justiça social.
Não resta, pois, qualquer dúvida que a isonomia fática não deve ficar a mercê do pobre
que seja demonstrada a real necessidade de sua utilização, sendo condicionadas dessa maneira
aos seus próprios fundamentos de existência.
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discurso vangloriado da isonomia abstrata perante à lei. Basta apenas para sua concretização
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FIDΣS
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SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
AFFIRMATIVE ACTION IN BRAZIL: AN ANALYSIS ABOUT “POSITIVE
ABSTRACT
The article narrates about the emblematic matter of affirmative action
in Brazil. It will broach the main critiques drawn towards those
affirmative measures, as well as the evidencing of detailed analysis of
the reasons that serve as substantiation for its institution. The study
will also approach a parallel between the necessity to promote the
“actions of positive discrimination” and the role played by the
Democratic State of Law, which has an obligation to instigate
citizenship and promote effectiveness to social justice, respecting the
subject’s dignity in all its diverse specificities.
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DISCRIMINATION” AS AN INSTRUMENT FOR ACHIEVING SOCIAL JUSTICE
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Keywords: Affirmative action. Equality. Human dignity. Social
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justice.
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Recebido 25 ago. 2011
Aceito 29 out. 2011
A POLÍTICA DE PESCA SUSTENTÁVEL (LEI Nº 11.959/2009) E A ÉTICA: ENTRE
EXCELÊNCIA, DEVER E UTILIDADE
Raphael Ramos Monteiro de Souza
RESUMO
O trabalho objetiva investigar os fundamentos éticos subjacentes à
adoção da política de desenvolvimento da pesca sustentável (Lei nº
11.959/2009). Para além da dogmática jurídica, decerto essencial,
busca-se perquirir quais tipos de pensamentos filosóficos embasam a
conformação da atividade pesqueira  economicamente relevante e,
não raro, de subsistência  em prol da conservação da diversidade
biológica. Elegem-se, para tanto, os referenciais aristotélico, kantiano
e utilitarista, sintetizados, respectivamente, nas categorias da
excelência, do dever e da utilidade. Conclui-se que, na linha da
Constituição de 1988 e tratados ambientais, ao harmonizar direitos em
Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável da pesca. Ética.
Aristotelismo. Kantismo. Utilitarismo
1 INTRODUÇÃO
O setor pesqueiro movimenta cerca de 5 bilhões de reais por ano no país,
empregando 3 milhões pessoas, direta ou indiretamente, com produção total de mais de um

Graduado em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Aluno especial do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Advogado da União.
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concorrência, a legislação aproxima aspectos das três vertentes.
163
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milhão de toneladas. A expansão do segmento, bem como a continuidade das espécies estão,
no entanto, ameaçadas pela atividade predatória.
Dados recentes relativos ao Rio Grande do Norte, por exemplo, apontam uma queda
da ordem de 60% na exportação de lagostas  345 toneladas para 125 toneladas  no último
triênio, em virtude da pesca irregular e do comércio ilegal do crustáceo 1. Em matéria de
combate à atuação proibida, apenas uma operação deflagrada pelos órgãos de fiscalização
apreendeu mais de 190 toneladas de pescado ilegal naquele estado2, por violação ao período
de defeso. Isto é, pelo desrespeito à paralisação temporária da pesca para a preservação das
espécies, em épocas e locais fixados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis  IBAMA.
Ao lado do viés repressivo, ações de orientação envolvendo proprietários de bares e
restaurantes, capacitação da mão de obra, incentivo à pesquisa de novas técnicas e o
pagamento de seguro desemprego a pescadores artesanais, previstas pela Lei Federal nº
10.779, de 25 de novembro de 2003, marcam a face preventiva da atuação estatal nesta seara.
Sabe-se que a preocupação com a preservação dos recursos naturais foi intensificada
na produção legislativa das últimas décadas, em virtude tanto dos compromissos assumidos
no plano internacional como pela concretização de mandamentos previstos na Constituição de
1988. Esta, a par de destinar um capítulo específico ao meio ambiente, insere sua defesa, entre
outros, também no rol dos princípios gerais da ordem econômica (art. 170, IV)  uma das
bases normativas para o denominado desenvolvimento sustentável. Em suma, para o
aproveitamento racional dos recursos atuais, sem comprometimento da qualidade de vida e
das necessidades das gerações futuras.
dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca.
O diploma ilustra a diretiva de equalização entre interesses concorrentes, ao registrar em suas
normas gerais que tais atividades são “fonte de alimentação, emprego, renda e lazer”,
devendo-se garantir “uso sustentável dos recursos pesqueiros, bem como a otimização dos
benefícios econômicos decorrentes”, desde que “em harmonia com a preservação e a
conservação do meio ambiente e da biodiversidade”.
1
PORTAL BRASIL. “Palestra orienta comerciantes do RN sobre novas regras no defeso da lagosta”. 30
nov.2010. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2010/11/30/palestra-orienta-comerciantesdo-rn-sobre-novas-regras-no-defeso-da-lagosta>. Acesso em: 10 jun. 2011.
2
TRIBUNA DO NORTE. “Ibama inicia fiscalização da pesca da lagosta”. 12. dez. 2009. Disponível em <
http://tribunadonorte.com.br/noticia/ibama-inicia-fiscalizacao-da-pesca-da-lagosta/134536>. Acesso em: 3 jun.
2011.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Nessa perspectiva, foi editada a Lei Federal nº 11.959, de 29 de junho de 2009, que
164
FIDΣS
O objetivo deste trabalho é examinar quais os fundamentos éticos subjacentes à
adoção da referida política. Para além do amplo suporte da teoria jurídica  decerto essencial
, busca-se perquirir que tipos de pensamentos filosóficos embasam a conformação da
atividade pesqueira, economicamente relevante e não raro de subsistência, em prol da
conservação da diversidade biológica. Elegem-se, para tanto, os referenciais aristotélicos,
kantianos e utilitaristas, sintetizados, respectivamente, nas categorias da excelência, do dever
e da utilidade.
Cada qual será objeto de incursão específica na solução do problema, sem prejuízo
de, ao longo do texto, tangenciar-se outras correntes éticas como a do ecocentrismo e da
solidariedade, conquanto não constituam o foco do trabalho. A tensão socioambiental inerente
à questão denota a relevância e a atualidade do debate, ora sob abordagem deôntica e
teleológica, intensificadas ante a proximidade da Conferência das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), a ser sediada pelo Brasil em 2012.
2 BREVE DIMENSÃO JURÍDICA DA QUESTÃO
A busca pela conciliação entre a preservação das espécies pescadas e “e a obtenção
de melhores resultados econômicos e sociais”  conforme previsto no art. 3º da Lei nº 11.959,
de 29 de junho de 2009  revela como substrato jurídico inescapável a tutela de direitos
fundamentais. Nela conjugam-se os direitos sociais ao trabalho, à alimentação e ao lazer com
Este último atua como limitador da atividade pesqueira, em decorrência do dever de
proteção imposto ao Poder Público e também à coletividade, a teor do art. 225 da
Constituição de 19883 e da Convenção Sobre Diversidade Biológica  assinada, em 1992, no
Rio de Janeiro4. O documento internacional registra, a propósito, que cada Estado Parte deve
3
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público [...]. Inaugura-se, assim, entre as forças sociais “uma comunidade de responsabilidade de
cidadãos e entes públicos perante os problemas ecológicos” (CANOTILHO, 2008, p. 178).
4
Promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998. Outros textos servem igualmente de referência, a
exemplo do Acordo para a Conservação da Fauna Aquática nos Cursos dos Rios Limítrofes entre o Brasil e o do
Paraguai (Decreto nº 1.806, de 6 de fevereiro de 1996 e 4.256, de 3 de junho de 2002), da Convenção
Internacional para a Regulamentação da Pesca da Baleia (Decreto Legislativo nº 77, de 5 de dezembro de 1973),
da Lei que proíbe a pesca de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras (Lei nº 7.643, de 18 de dezembro de
1987) e da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de
Extinção (Decreto nº 76.623, de 17 de novembro de 1975).
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o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, todos de estatura constitucional.
165
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“desenvolver estratégias, planos ou programas para a conservação e a utilização sustentável
da diversidade biológica”.
No caso da Política de Pesca, trata-se de atendimento a direito metaindividual via
prestações estatais positivas, de caráter normativo (ALEXY, 2008, p. 201-203). É dizer, uma
vez reconhecida a titularidade da biodiversidade como bem comum do uso das presentes e
futuras gerações, cumpre a criação de mecanismos legais e administrativos para o resguardo
de mencionada esfera de interesses.
Sob outro ângulo, a intervenção legislativa representa instrumento de política pública
ambiental e econômica, ao organizar a estrutura executiva para a realização de fins
socialmente relevantes, nos moldes da conceituação de Bucci (2006, p. 11-14). Os objetivos
serão viabilizados, pois, por intermédio das ações coordenadas de natureza reguladora e
fiscalizadora dos órgãos competentes5.
O panorama articulado pela Lei nº 11.959/2009 integra, conforme destaca Canotilho
(2011, p. 11-15), quadra de um verdadeiro Estado de Direito Ambiental, o qual tem a
sustentabilidade como princípio chave. De modo que se intenta a produção e a adaptação de
instrumentos jurídico-econômicos para a solução de problemas ecológicos.
Não por outra razão, afirma-se a existência do direito fundamental à sustentabilidade,
de terceira geração e caráter vinculante, que irradia efeitos para todas as províncias do sistema
jurídico. Com efeito,
A sustentabilidade, nessa linha de raciocínio, não pode continuar a ser tratada como
princípio literário, remoto ou de concretização protelável, invocado só por razões de
biológicas. Razões éticas e constitucionais (FREITAS, 2011, p. 39-40, grifos
nossos)
No plano jurídico, portanto, a intervenção estatal6 na restrição da liberdade de
iniciativa e profissional dos pescadores ocorre para garantir, com espeque constitucional na
solidariedade e na justiça entre gerações, o direito ao desenvolvimento ecologicamente
sustentável  com a qual se exerce o dever de proteção correspondente.
5
A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca estabelece, para tanto, uma
série de tarefas às autoridades administrativas competentes: licenciamento de profissionais (art. 2º e 5º);
definição de áreas, épocas e espécies vedadas (art. 6, §1º); registro de embarcações (art. 10); incentivo à pesquisa
e à capacitação de mão de obra (art. 29); além da fiscalização e das sanções (arts. 31 a 33).
6
Utilizando-se a conhecida sistemática referida por Grau (2008, p. 148-149), cuida-se de uma intervenção sobre
o domínio econômico, por intermédio da qual há regulação do Estado na modalidade de direção, ou seja, pela
imposição de comportamentos a serem necessariamente adotados pelos agentes que atuam na atividade.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
marketing ou de pânico. As suas razões, devidamente calibradas, são filosóficas e
166
FIDΣS
3 FUNDAMENTO ARISTOTÉLICO: EXCELÊNCIA
O pensamento expresso por Aristóteles no clássico “Ética a Nicômacos” (2001)
oferece importantes subsídios na busca de fundamentos que ensejam a política da pesca
sustentável. A partir do recurso a conceitos como o da excelência (areté) e da justiça
distributiva, bem como à visão teleológica da realidade, tônica do filósofo helênico, é possível
investigar boa parte dos objetivos contidos no art. 1º da Lei nº 11.959, de 29 de junho de
2009.
Não se encontrará aqui, por conseguinte, qualquer remissão a valores intrínsecos da
natureza ou dos animais, mesmo porque a concepção aristotélica do mundo natural é a de que
aqueles que possuem menor capacidade de raciocínio existem para o bem dos que detêm
mais; em última escala, os homens (SINGER, 1998, p. 282-283). Algo que não exclui o
cuidado com o esgotamento dos recursos naturais, desde que estes guardem conexão com o
interesses humanos.
Feita tal observação, é de se recordar, de plano, que a excelência consiste em um
modo de vida cujo agir evita tanto o excesso como a deficiência, refletido em de
comportamentos de proporções adequadas. Nessa linha, a figura do bom pescador, como de
qualquer mestre que desempenhe o seu ofício, deve almejar e optar pela mediana
(ARISTÓTELES, 2001, 1098b e 1104a).
Assim, o indivíduo que retira das águas espécies durante seu período reprodutivo ou
continuidade da existência animal, mas também a da sua própria atividade  e de outros
interessados  extrapola a equidistância entre os extremos de não se praticar a pesca e de
realizá-la de forma ilimitada. Situação nociva que a norma procura evitar mediante o
aproveitamento regrado dos respectivos bens naturais.
O modelo de insaciabilidade da extração representa, de acordo com (2011, p. 69-70),
ponto de excesso patológico do qual o homem deve se afastar, em direção a um paradigma
homeostático de sustentabilidade. Vale dizer, em outras palavras, busca-se a doutrina do meio
termo do Estagirita. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, há precedente em
matéria ambiental que reconhece a necessidade deste justo equilíbrio entre ecologia e
economia:
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
utiliza técnicas danosas como explosivos e substâncias tóxicas, de modo a ameaçar não só a
167
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[...] QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A
NECESSIDADE
DE
PRESERVAÇÃO
DA
INTEGRIDADE
DO
MEIO
AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO
ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.
O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter
eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos
internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do
justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no
entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre
valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não
comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos
direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de
uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e
futuras gerações [...]7.
Aplica-se aqui, ainda, o discernimento (phronesis) aristotélico, disposição segundo a
qual a racionalidade humana delibera acerca do que é correto, a partir de cálculo equitativo
com vistas a algum objetivo bom (ARISTÓTELES, 2001, 1140a). Nesta sabedoria finalística,
a propósito, é possível identificar um ponto de contato entre a teoria aristotélica e a utilitarista
(BRITO, 2003, p. 19-22), apreciada no Capítulo 5. Não obstante a última estar inicialmente
ligada à sensibilidade do binômio hedonista prazer e dor, ambas reconhecem, ao seu modo, a
virtude como um meio para o fim último da felicidade (eudaimonia).
Já realização em si da ação corretamente eleita  na hipótese, a abstenção da pesca
talento consistente na faculdade de “praticar as ações que conduzem ao objetivo visado e de
atingi-lo” (ARISTÓTELES, 2001, 1144a).
De outro lado, sob o enfoque da justiça distributiva, extrai-se a idéia de que os
quinhões e os benefícios econômicos dos recursos pesqueiros devem ser proporcionalmente
partilhados entre as diferentes famílias e gerações de interessados. Nesta ordem de justa
repartição de coisas reside, para o filósofo grego, espécie da própria excelência moral, na
medida em que se leva em consideração o bem do próximo.
Tal viés está fortemente presente, inclusive, no conceito de igualdade e solidariedade
intergeracional que inspirou não apenas a Política Nacional de Pesca como também o art. 225
7
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3.540. Pleno. Rel. Min. Celso de Mello, j. 01.09.2005. DJ de
3.02.2006, p. 14.
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em determinados momentos do ano com fito de evitar o exaurimento da fonte  pressupõe o
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FIDΣS
da Constituição de 1988, seguindo os moldes da clássica definição do Relatório Brundtland.
Este documento, produzido pela Comissão Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente
das Nações Unidas em 1987, configura-se um marco do tema, ao consagrar o
desenvolvimento sustentável como a forma da atividade humana que satisfaz as necessidades
presentes, sem comprometer a capacidade das futuras gerações de suprir suas próprias
necessidades (WCED, 1987, p. 8).
A atualidade do pensamento de Aristóteles impressiona, em geral, diante da
aplicabilidade prática de seus múltiplos aspectos relacionados ao atuar conforme à excelência.
Particularmente em matéria de equilibro entre desenvolvimento econômico e preservação
ambiental, pode-se asseverar, pois, que seus conceitos teleológicos, de virtude e de justiça
estão implícitos na formulação e na execução da política pesqueira, nos termos das
disposições da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009.
4 FUNDAMENTO KANTIANO: DEVER
Uma outra abordagem que se encontra presente na Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável da Pesca guarda relação direta com a concepção deontológica
expressa na ética de Immanuel Kant, especialmente na “Fundamentação da [e na] Metafísica
dos Costumes”.
A teoria kantiana é marcada pelo caráter apriorístico das obrigações, ao
desconsiderar tanto os elementos de ordem empírica como os da natureza humana, para
prescindem dos escopos visados, sendo vinculantes por si mesmas, decorrentes de
imperativos categóricos de forma incondicional (KANT, 1964, p. 18-19). Diversa situação
daquela referente aos imperativos hipotéticos, nos quais a ação é apenas instrumental para a
realização de fim influenciado por contingências diversas.
Daí surge, para tal pensador, a ética do dever, que impõe a necessária observância de
determinada conduta “pelo respeito à lei”, que decorre “não do fim, mas da máxima que a
determina” (KANT, 1964, p. 9; 2008, p. 64-65). Máxima esta que vem a ser o princípio
interno e subjetivo da razão, cuja aplicação deve atender ainda ao princípio universal, segundo
o qual o indivíduo pode querer que sua vontade seja adotada por todos os seres racionais, sem
contradição consigo mesma.
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fundá-las tão somente na razão pura. De maneira que as ações objetivamente necessárias
169
FIDΣS
A validade moral da ação requer, ademais, que esta se desenvolva por dever, em
uma inclinação moral e imediata da vontade livre, e não em virtude de mera conformidade
com o dever, decorrente de interesses outros.
Na ótica do direito ambiental, pela mencionada visão é possível reconhecer o valor
intrínseco da natureza, independentemente dos efeitos antropocêntricos da “preservação e a
conservação do meio ambiente e da biodiversidade” almejadas pela Lei nº 11.959, de 29 de
junho de 20098. A Constituição de 1988 alberga a noção no dever de cuidado previsto no
inciso VII do §1º do art. 2259. No mesmo sentido, aliás, o preâmbulo da Convenção Sobre
Diversidade Biológica registra logo em sua primeira assertiva que os Estados-Partes estão
“conscientes do valor intrínseco da diversidade biológica”, entre outros  de forma holística,
é de se observar, à medida que contempla distintos interesses 10.
Razão pela qual, nesta linha, a proteção das espécies aquíferas possui valor
autônomo, cuja finalidade residiria em si mesma. Pensamento que encontra eco em
contemporâneas teorias éticas de caráter biocêntrico e ecocêntrico como, por exemplo, a ética
ambiental de Peter Singer (1998, p. 289-295) e a da solidariedade de Leonardo Boff (2009, p.
22-23; 88-92).
Convém registrar que a orientação pela importância própria somente se verifica nos
atos normativos das últimas décadas, visto que a compreensão dominante da natureza em
gênero é inteiramente instrumental. A título de ilustração, a Convenção Internacional para a
Conservação do Atum e afins do Atlântico 11, do final dos anos 60, não deixa dúvidas acerca
8
O que fica evidente em outras passagens do texto legal, tais como, “Art. 5º O exercício da atividade pesqueira
somente poderá ser realizado [...] asseguradas: I – a proteção dos ecossistemas e a manutenção do equilíbrio
ecológico, observados os princípios de preservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais;
[...]Art. 6º O exercício da atividade pesqueira poderá ser proibido transitória, periódica ou permanentemente,
nos termos das normas específicas, para proteção: I – de espécies, áreas ou ecossistemas ameaçados; II – do
processo reprodutivo das espécies e de outros processos vitais [...] § 1o Sem prejuízo do disposto no caput deste
artigo, o exercício da atividade pesqueira é proibido: I – em épocas e nos locais definidos pelo órgão competente;
II – em relação às espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos não permitidos pelo órgão
competente”.
9
“[...] incumbe ao Poder Público [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a
crueldade”.
10
“[...] Conscientes do valor intrínseco da diversidade biológica e dos valores ecológico, genético, social,
econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético da diversidade biológica e de seus
componentes. Conscientes, também, da importância da diversidade biológica para a evolução e para a
manutenção dos sistemas necessários à vida da biosfera [...]”. Na mesma ordem de ideias das múltiplas
dimensões contidas no Relatório Brundtland (WCED, 1987, p. 13) e da “complexidade poliédrica” apontada por
Freitas (2011, p. 55).
11
Promulgada pelo Decreto nº 65.026/1969.
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de seus objetivos: “colaborar na manutenção desses cardumes em níveis que permitam uma
170
FIDΣS
captura máxima e continua para fins alimentícios e outros”. Sem nenhuma alusão à proteção
da categoria dos peixes pelo seu valor em si.
De todo modo, mesmo diante do teor das normas protetivas mais recentes, que
reconhecem o dever em tela, parece difícil dissociar-se por inteiro da vinculação com os
interesses da sobrevivência humana. Sempre presentes, não obstante parcialmente mitigadas,
as necessidades dos “seres da razão” ainda fazem prevalecer o imperativo hipotéticoinstrumental sobre o categórico-incondicional no tema da preservação do meio ambiente, em
gênero, e da Política de Pesca Sustentável em espécie.
5 FUNDAMENTO UTILITARISTA
O uso sustentável dos recursos pesqueiros e a otimização dos benefícios econômicos
decorrentes, objetivos da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, identificam-se igualmente
com alicerces da doutrina consagrada por Jeremy Bentham e Stuart Mill, entre outros, a partir
do princípio da utilidade e da visão teleológica. Ao contrário do que sucede na estrutura
kantiana, para os utilitaristas o valor das ações não existe por si só, de modo absoluto ou
incondicional, mas apenas à luz da quantidade e qualidade das consequências que delas
derivam.
Nesse contexto, a maximização do prazer e a eliminação de dor é apontada como
diretriz da conduta humana. Vale observar que, especialmente em Mill (2005, p. 56 e 63), a
referência não deve ser apenas o padrão individualista do próprio agente, mas sim a maior
aliar a busca do bem de cada um com uma sociedade na qual se potencialize o bem geral
(POSNER, 1998, p. 51-52).
Duas sensíveis questões se apresentam na avaliação de condutas pelo método
utilitarista. A primeira diz respeito aos critérios que devem ser considerados no cálculo das
conseqüências mais favoráveis e a segunda à delimitação dos interessados, isto é, se os
animais e demais seres viventes também estão contemplados ao lado dos humanos.
No que concerne ao ponto inicial, Bentham (1979, p. 16-17) oferece clássicos
parâmetros para aferir o valor da soma de prazer ou de dor, a saber: a) intensidade; b)
duração; c) certeza; d) proximidade; e) fecundidade; f) pureza; e g) extensão. Mediante o
recurso a tais balizas, pode-se inferir que o cálculo legislativo da Política Nacional de Pesca
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porção de felicidade total dos afetados. Traço que une a moralidade pessoal à justiça social, ao
171
FIDΣS
Sustentável pondera sobre a repartição dos bônus e ônus da atividade de captura de espécies
no tempo e no espaço.
Isto porque, ao vedar o uso de técnicas predatórias, como explosivos e substâncias
tóxicas, fixar espaços protegidos, fiscalizar embarcações, limitar quantidade e tamanho de
pesca, almeja-se diluir a extensão dos efeitos colaterais da prática excessiva, ampliando a
“obtenção de melhores resultados econômicos e sociais”. Em outras palavras, o
prazer/felicidade/utilidade do maior número possível de pessoas.
Sob outro prisma, interessante notar que tal teoria pode também ser compreendida
como uma moral da compaixão e por tal motivo, observa Tugendhat, ampliaria o círculo de
obrigações para também englobar os animais em geral (2010, p. 187-190 e 320). O
compartilhamento da noção de sofrimento em relação aos demais seres, aliás, é extraída do
próprio Mill, que estende o princípio da maior felicidade “não apenas à humanidade, mas, na
medida em que a natureza das coisas o permitir, a todas as criaturas sencientes” (2005, p. 67).
Destaque-se que, em relação aos peixes, pesquisas científicas  efetuadas pelas
Universidades de Edimburgo e de Belfast  apontam para evidências conclusivas no sentido
de que tais espécies possuem a capacidade de sofrimento12. Sem embargo da controvérsia
crítica no que tange ao rol e ao eventual exagero na forma de consideração dos seres nãohumanos (SINGER, 1998, p. 298-299; POSNER, 1998, p. 52-53), a Constituição de 1988 é
expressa ao proscrever práticas que “provoquem a extinção de espécies ou submetam animais
a crueldade”, determinação que inspira as mencionadas regras legais protetivas. Decerto,
nesta seara, não pode haver mal maior do que colaborar para a dizimação de uma espécie
inteira.
se a visão exclusivamente antropocêntrica do tema, guarda relação com a perda da
diversidade biológica. Problema contemporâneo de diferentes repercussões para a vida do
homem no planeta, como visto, a questão possui relevância ainda do ponto de vista do
inestimável valor do patrimônio genético para as indústrias farmacêuticas e de biotecnologia,
entre outras (ANTUNES, 2007, p. 325 e 379).
Foi exatamente este, inclusive, um dos argumentos que, em 1978, levou a Suprema
Corte estadunidense, após examinar os prejuízos e benefícios de um projeto, a decidir pela
interrupção da construção de represa no Estado de Tennessee. Entendeu-se que o
12
BBC BRASIL. “Cientistas dizem que os peixes sentem dor”.
30 abr. 2003. Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/030430_peixesmv.shtml>. Acesso em: 05 jun. 2011; PORTAL
TERRA. “Estudo britânico afirma que crustáceos sentem dor”. 8 nov. 2007. Disponível em
<http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI2058327-EI8145,00.html>. Acesso em:11 jun. 2011.
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Um último elemento do princípio da utilidade da preservação pesqueira, retomando-
172
FIDΣS
empreendimento ameaçava a continuidade de um pequeno peixe, denominado Snail Darter
(percina tanasi), em afronta às normas de proteção então vigentes (Endangered Species Act).
Da leitura do pronunciamento do Tribunal extrai-se passagem que àquela época já advertia: “o
valor deste patrimônio genético é, literalmente, incalculável” 13.
Denotam-se, em consequência, fortes traços do princípio utilitário também nesta
noção da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009 que “(p)reserva” valor de determinados bens,
mercê da otimização temporal na distribuição e apropriação dos benefícios dos recursos
pesqueiros entre o máximo de interessados.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese o avanço dos debates ambientais, simbolizado pelos diversos
compromissos assumidos ao longo das últimas décadas, há consenso de que o enfrentamento
do tema do crescimento sustentável prosseguirá como um dos grandes desafios do futuro em
termos planetários, sendo inclusive o enfoque da cúpula mundial de 2012 sobre o assunto.
Nesse panorama, a Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009 realiza, em relação ao
setor pesqueiro brasileiro, o papel de convergência entre direitos relativos à expansão
econômico-social e à proteção ecológica – ambos pilares da sustentabilidade. Ao fazê-lo,
seguindo diretrizes da Constituição de 1988 e dos tratados internacionais sobre
biodiversidade, cumpre-se o dever estatal de tutela e, por conseguinte, aproximam-se
concepções das três teorias éticas examinadas.
excelência (areté). Evitando-se tanto o excesso como a deficiência, mediante comportamentos
de proporções adequadas, a política estimula a boa prática da pesca, vedadas técnicas e
períodos que provoquem o esgotamento dos recursos. O mesmo vale para a justiça
distributiva introduzida pelo pensador grego, cuja aplicação é ínsita à repartição solidária de
benefícios entre gerações, uma das premissas das normas ambientais.
No viés da proteção ambiental em si, avulta o pensamento não egoístico do
imperativo categórico kantiano, decorrente do sentimento moral de dever que conduz a
escolhas racionais, autônomas e incondicionadas. Desse modo, sua ética deontológica dá azo
13
ESTADOS UNIDOS. Caso Tennessee Valley Authority v. Hill. 437 U.S 153, 178 (1978), tradução livre.
Disponível em <http://laws.findlaw.com/us/437/153.html>. Acesso em 11 jul. 2011. Pelos mesmos fundamentos,
a Constituição Brasileira de 1988 dispõe que incumbe ao Poder Público “preservar a diversidade e a integridade
do patrimônio genético do País” (art. 225, §1º, inciso II).
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Primeiro, a partir da influência de noções aristotélicas como o agir conforme à
173
FIDΣS
ao reconhecimento legal do valor intrínseco de espécies marinhas e fluviais, sem
considerações de outra ordem  sejam sociais, econômicas, científicas, educacionais,
recreativas e estéticas.
Todas estas retornam, porém, quando se verifica a presença do fundamento
utilitarista que, ao visar a maior felicidade geral, autoriza o cálculo regulatório para restringir
as consequências danosas da pesca indiscriminada. Objetivo evidenciado pela previsão legal
de otimização dos benefícios decorrentes da atividade.
Portanto, conclui-se que Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Pesca
mescla fundamentos antropocêntricos e biocêntricos  com predomínio dos primeiros  dos
quais se extrai amálgama composta pela trinca da excelência proporcional, do dever
incondicional e da utilidade maximizada.
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SUSTAINABLE FISHING POLICY (BRAZILIAN FEDERAL LAW N. 11.959/2009)
AND ETHICS: AMONG EXCELLENCE, DUTY AND UTILITY
ABSTRACT
This paper aims to investigate the ethical foundations that inform
Brazilian sustainable fishing policy (Law n. 11.959/2009). Beyond
legal dogmatic, it intends to examine which philosophical thoughts
underlie the restriction on fishery activities  economically relevant
and, not rarely, a way of subsistence  in favor of the conservation of
biological diversity. The essay focus on Aristotelian, Kantian and
Utilitarian references, summarized, respectively, by the excellence,
duty and utility categories. Finally, it is possible to say that the act, in
line with the Constitution and international environmental treaties,
harmonizes different types of rights, contemplating aspects of the
mentioned theories.
Sustainable
development
Aristotelianism. Kantianism. Utilitarianism.
of
fishing.
Ethics.
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
Keywords:
176
FIDΣS
Recebido 28 out. 2011
Aceito 28 out. 2011
ESOTERISMO
Edilson Pereira Nobre Júnior
Vida de grande parte da população brasileira é muito difícil. Recordo-me, como se
fosse hoje, dito do saudoso Professor Jales Costa, em suas aulas de Introdução ao Estudo do
Direito, ao afirmar não saber o que seria a vida duma pobre brasileira que, cotidianamente,
cruzava a pé o território da turisticamente aprazível cidade de Natal, carregando uma enorme
trouxa de roupa em cima de sua cabeça, caso depois da morte não existisse céu.
Essas dificuldades, porém, alguns poucos superaram, fazendo inverter, pelo regime
de mérito, o pêndulo da sorte. Um deles foi Juvêncio Rosário da Silva. Nascido duma família
paupérrima do interior potiguar, enfim conseguira concluir, com muitas ajudas da sorte, dos
amigos e dos professores, o curso de ciências jurídicas na saudosa Faculdade de Direito da
Ribeira.
Foram cinco anos de muito esforço, agravados pelo trabalho no comércio de tecidos,
e pela ausência de lazer aos finais de semana, mas que valeram a pena.
“Juvinha de Tia Célia”, pôs mãos à obra para realizar seu grande sonho, acalentado durante a
infeliz infância e mantido firme na universidade, qual seja o de ser juiz.
Aprovado em concurso público, e após breve passagem em pouco movimentadas
comarcas interioranas, Juvêncio, agora o Dr. Juvêncio Rosário e Silva, pois o aditivo “da
Silva” não era digno de integrante da magistratura, tivera, enfim, a grande oportunidade de
pôr em prática sua aspiração de combater a criminalidade: fora promovido a uma das varas
criminais da Comarca da Capital, incumbida do julgamento dos mais hediondos crimes.
No desmedido esforço de julgar, fazendo justiça, os inúmeros e quase infinitos
processos de cujo desenlace estava incumbido, o Dr. Juvêncio se notabilizara por um notável

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desembargador federal da 5ª Região.
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De posse do canudo de papel, Juvêncio da Silva, que um dia foi chamado de
177
FIDΣS
e incomum rigor, proferindo sempre sentenças de condenação, com penas elevadíssimas. Para
o ilustre magistrado, direito de responder a processo em liberdade praticamente inexistia. O
lema de atuação era curto e grosso: “lugar de bandido é na cadeia!”.
Numa certa manhã de forte sol, tal como sucedeu com Saulo de Tarso quando
trafegava na estrada para Damasco, a vida profissional do Dr. Juvêncio se inverteu
completamente. Ao caminhar por uma movimentada rua da capital aquele se deparou perante
uma casa com uma placa a anunciar com visibilidade: “AQUI AULAS DE YOGA”.
Curioso, logo após adentrar ao portão, Juvêncio tocou a campainha. Passados alguns
minutos, a porta foi aberta e, num átimo, apareceu uma mulher loura, alta, semblante jovem e
galvanizador de beleza, a qual, com voz que aparentava forte sotaque carioca, pronunciou:
“Sou a Márcia. Cheguei há pouco na cidade. Ministro aulas de Yoga. O preço é camarada”.
De tudo isso – quase esquecia – o mais fascinante eram os seus olhos azuis-celeste, cujo
cintilar, sem nenhum exagero, fazia presumir que o sol deles tomava por empréstimo toda sua
luminosidade.
Diante da maviosa oferta, de dificílimo resistir, Juvêncio não poupou tempo – nem
dinheiro – para realizar a matrícula, realizando antecipação de pagamento pelo restante do
ano.
Passado um mês do início das aulas, notável a influência na atividade funcional do
nosso personagem. O severo rigor na aplicação da lei foi substituído pelo humanismo nos
julgamentos. Inúmeros os benefícios aos acusados, tais como a revogação de todas as prisões
preventivas e a condenação a penas restritivas de direito a autores de crimes hediondos, que
Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, autor do livro “Dos delitos e das penas” (1764), se
Tão radicais foram as mudanças de entendimento que, no fórum, o clima foi de
surpresa geral. Servidores, membros do Ministério Público, advogados (e até mesmo os réus),
manifestavam-se ávidos de curiosidade em conhecer o porquê do surgimento agora do
“Doutor Juvêncio, um cara legal”.
Respeitando a liturgia do cargo, o Dr. Juvêncio nada comentava sobre sua terapia
espiritual. Transcorridos quatro meses, não mais agüentou persistir no sigilo. Num final de
tarde de sexta-feira, ao tomar sua sagrada cerveja gelada no Bar do Motoqueiro, confidenciou
a João Belarmino, amigo e escrivão, que sua vida tivera um formidável up grade, ao depois
que passou a partilhar dos mistérios da yoga.
Na conversa, que foi extensa, o juiz desceu a minúcias. A professora, beldade
singular, e de extrema simpatia, ministrava seus conhecimentos orientais numa garagem,
FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000
ressuscitasse, desmaiaria de susto.
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contígua à sua residência, em ambiente de pequena claridade. O clímax, porém, consistia na
parte final das aulas, materializada numa relaxante massagem. Um detalhe: a operação
terapêutica se desenrolava no interior de um veículo Caravan, modelo 1983, mais
precisamente em seu banco traseiro, o qual, por exigência duma otimização profilática, era
devidamente rebaixado.
Muito embora a narrativa não tenha se distanciado do nível sutil, João Belarmino –
que, nos segredos que lhe eram confiados, somente costumava propagá-los para duas pessoas
(Deus e o mundo) –, vislumbrando nos fatos uma pitada de malícia, eficazmente cuidou de
espalhá-los para todos aqueles que transitavam pelo cartório de que era titular, quaisquer que
fossem a natureza de suas ocupações.
Infelicidade igual só na França, sob o cetro de Luís XV, onde o seu primeiroministro, o Duque de Choiseul, que justamente a Voltaire relatara como os quadris de sua
amante, a Condessa de Brionne, eram-lhes úteis para fazê-lo esquecer os graves problemas
que atormentavam a França.
Tornada pública a terapia que transformara o Dr. Juvêncio, juntamente com os
especiais encantos da distinta terapeuta, o calendário forense da movimentada comarca sofreu
uma grande inovação. Recaiu esta no dia 02 de junho, denominado dia da misericórdia, data
na qual o digno juiz revisava todos os processos da sua vara, a fim de verificar se algum
acusado ou condenado ainda permanecia injustamente preso, soltando-o imediatamente, caso
verificado ilegalidade, o que sempre ocorria.
Por medida de extrema justiça, os idealizadores de tal marco, consistentes nos
perseguidos pela jurisdição penal, atribuíram o título de padroeira à professora Márcia Pereira
alçando-se, assim, ao apanágio da canonização sem a necessidade de haver padecido como
beata.
Assim tudo continuou na boa paz na sala da justiça. Tristeza somente para os
advogados, porquanto cliente bom não existe igual ao réu preso.
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dos Santos, que se tornou conhecida como a santa protetora dos merecedores de indulgência,
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Recebido 29 out. 2011
Aceito 29 out. 2011
A MÚSICA QUE TOCA DIREITO
Ivan Lira de Carvalho
Deve-se ao Prof. Roberto Lyra, da Universidade de Brasília, a sedimentação de um
movimento denominado “O Direito achado na rua”, que ao invés do academicismo valoriza a
legitimidade do grito dos movimentos sociais e os exemplos de equidade, é dizer, do senso
comum acerca do que é justo, em contraposição ao que é injusto (embora possa esta última
situação estar em conformidade com a lei). Nos discursos, nos atos, na música, na poesia, na
pintura ou no grafite existe Direito, por mais despretensiosas que sejam essas manifestações
culturais. E vou pinçar um exemplo, dentre tantos.
Elino Julião, potiguar de Timbaúba dos Batistas, gravou uma música da sua autoria
(reeditada há pouco tempo em duo com Lenine), denominada jocosamente “O rabo do
jumento”, cuja letra assim diz: “Você que disse que é bravo Nascimento/ Você cortou o rabo
do jumento/ Eu não quero pagamento Nascimento/ Eu quero é outro rabo no jumento/ Ele
entrou no seu roçado junto com o gado/ E comeu um pezinho de coentro/ Nascimento eu não
Não sei se o animal, é ele ou o jumento/ Nascimento eu não quero pagamento/ Eu quero é
outro rabo no jumento.”. Mesmo sendo hilária a história reportada, há muito Direito nos
versos do xote.
“Você que disse que é bravo Nascimento” anuncia uma fanfarrice que dependendo
da intensidade e do ânimo do gabola pode configurar o crime de ameaça (Código Penal, art.
147, com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa). Esse mesmo talzinho que “cortou
o rabo do jumento” cometeu o crime hoje previsto no art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais
(maus tratos a animal domesticado, com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa).
Quando o proprietário do bicho afirma “Eu não quero pagamento Nascimento/ Eu quero é
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Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz Federal.
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quero pagamento/ Eu quero é outro rabo no jumento/ [...] Veja pessoal, que mau elemento/
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outro rabo no jumento” está no pleno exercício do que o Direito Civil chama restitutio in
integrum, ou seja, que o prejudicado só aceita a restauração da coisa ao estado de origem, não
adiantando uma indenização substitutiva. “Ele entrou no seu roçado, junto com o gado” fala
do direito de vizinhança, que deve ser respeitado, em conformidade com os artigos 1.277 e
seguintes do Código Civil, desafiando uma indenização pelo prejuízo (arts. 927 e seguintes do
mesmo Código), mas sem render efeitos na esfera penal, já que para ser caracterizado o crime
de dano (Código Penal, art. 163), necessário seria que o dono do burrico tivesse encaminhado
o bichinho para destruir a lavoura do vizinho, circunstância que poderia redirecionar o
enquadramento criminal para o tipo do art. 164 do Código Penal – “Introduzir ou deixar
animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato
resulte prejuízo: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.”). A propósito do
prejuízo suportado pelo dono do terreno limítrofe, que foi “visitado” pelo gado, é necessária a
aferição da relevância. Se a destruição foi apenas de “um pezinho coentro” não há delito a ser
punido em razão da bagatela, ou seja, da pequena importância da coisa arrancada. É o
princípio da insignificância, conhecido desde os romanos.
Outrossim, ao dizer “Veja pessoal, que mau elemento/ Não sei se o animal, é ele ou o
jumento”, o choroso proprietário do asno, em tese, ataca a honra do seu desafeto. Crime de
injúria, Código Penal, art. 140 (detenção de um a seis meses, ou multa). Mas em casos como
tais, o juiz pode deixar de aplicar a pena, pois o ofendido (é dizer, o cortador da cauda) “de
forma reprovável, provocou diretamente a injúria” (§ 1º).
Dessa opereta rural é possível a extração de pelo menos duas lições: a)
instintivamente o compositor reclama do minifúndio, com pequenas glebas aboletadas quase
nas Leis ou nas estantes dos acadêmicos empedernidos, podendo ser encontrado até mesmo
numa tosca fábula musical como a aqui referida.
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que uma por cima da outra, gerando conflitos de vizinhança; b) que o Direito não só existe
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