Associação dos Geógrafos Brasileiros
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Associação dos Geógrafos Brasileiros
DIRETORIA EXECUTIVA Diretor: Cláudia Marques Roma Vice-diretor: Raul Borges Guimarães Secretários: Clayton Ferreira Dal Pozzo Cristina Buratto Gross Machado Tesoureiros: Gilnei Machado Paulo Jurado da Silva CADERNO PRUDENTINO DE GEOGRAFIA 29 ISSN 1413-4551 COMISSÃO DE PUBLICAÇÃO Eliseu Savério Sposito Alexandre Bergamin Vieira Vitor Koiti Miyazaki Indexação: Os artigos publicados no Caderno Prudentino de Geografia são indexados por: GeoDados: Indexador de Geografia e Ciências Sociais www.uem.br/dge CADERNO PRUDENTINO DE GEOGRAFIA Associação dos Geógrafos Brasileiros. – vol.1, nº1, 1981 – Presidente Prudente, SP: AGB. v.29: 22cm, il. Associação dos Geógrafos Brasileiros Seção Local Presidente Prudente ISSN 1413-4551 1981-2006, 1-28 Periodicidade: Anual 1. Geografia – 2. Geografia Humana – 3. Geografia Física Presidente Prudente-SP Dezembro de 2007 CADERNO PRUDENTINO DE GEOGRAFIA é editado pela Associação dos Geógrafos Brasileiros, Seção Local Presidente Prudente – AGB-SLPP. Rua Roberto Simonsen, 305 – CEP: 19.060-900, Presidente Prudente, SP, Brasil. Tel.: (18) 3229-5379. E-mail: [email protected]. www.agb.org.br/ CADERNO PRUDENTINO DE GEOGRAFIA EDITOR RESPONSÁVEL Eliseu Savério Sposito, Vitor Koiti Miyazaki e Alexandre Bergamin Vieira CONSELHO EDITORIAL Antonio Carlos Vitte (UNICAMP), Antonio Thomaz Júnior (FCT/UNESP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira (FFLCH/USP), Arlete Moysés Rodrigues (UNICAMP), Arthur Magon Whitacker (FCT/UNESP), Cláudio Zanotelli (UFES), Diamantino A. C. Pereira (PUC/SP), Diana Lan (Universidad del Centro - Argentina), Eliane Tomiasi Paulino (UEL), Eliseu Savério Sposito (FCT/UNESP), Élson Luciano Silva Pires (IGCE/UNESP), Giovanni Alves (FCC/UNESP), Horário Capel (Universidade de Barcelona - Espanha), João Ferrão (Universidade Técnica de Lisboa - Portugal), João Lima Sant’Ana Neto (FCT/UNESP), Jonas Teixeira Nery (UNESP - Ourinhos), Jorge Pickenhayn (Universidad Nacional de San Juan - Argentina), José Bueno Conti (FFLCH/USP), Júlio César de Lima Ramires (UFU), Márcio Rogério Silveira (UNESP – Ourinhos), Maria Encarnação Beltrão Sposito (FCT/UNESP), Neide Barrocá Faccio (FCT/UNESP), Oscar Alfredo Sobarzo Miño (UFRGS), Raul Borges Guimarães (FCT/UNESP), Ricardo Aguero (Universidade Nacional de Rio Cuarto - Argentina), Roberto Gonzáles Souza (Universidade de Havana - Cuba), Rubén Lois Gonzáles (Universidade de Santiago de Compostela - Espanha), Ruy Moreira (UFF), Sérgio Leite (CPDA/UFRRJ), Silvia Regina Pereira (FCT/UNESP), William Ribeiro da Silva (UFRJ) CAPA Caio Beltrão Sposito DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO Vitor Koiti Miyazaki IMPRESSÃO Gráfica CopySet TIRAGEM 500 exemplares Os textos aqui publicados são de exclusiva responsabilidade dos autores. Permite-se a reprodução parcial, desde que mencionadas as fontes. Solicita-se permuta – Se solicita intercambio – We ask for exchange SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 7 ARTIGOS DETERMINISMO NATURAL: ORIGENS E CONSEQÜÊNCIAS NA GEOGRAFIA Roberto Schmidt de ALMEIDA 9 UM BREVE PANORAMA SOBRE O DESENVOLVIMENTO DO TURISMO NAS PERIFERIAS DO CAPITALISMO 55 Helton Ricardo OURIQUES CURSINHOS ALTERNATIVOS E POPULARES: ORIGENS, DEMANDAS E POTENCIALIDADES Clóves Alexandre de CASTRO 69 NEOLIBERALISMO E MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL – DESEMPREGO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NOS ANOS DE 1990 E INSTABILIDADE/ALTA ROTATIVIDADE DO EMPREGO FORMAL SOB O GOVERNO LULA Nildo Aparecido de MELO 87 LOGÍSTICA: EM BUSCA DE UMA CONCEITUAÇÃO PARA A GEOGRAFIA Roberto França da SILVA JUNIOR 113 AS DISPUTAS POLITICAS NA GESTÃO DA SAÚDE EM PRESIDENTE PRUDENTE Eduardo Werneck RIBEIRO 103 CIDADES MÉDIAS E PEQUENAS: UMA LEITURA GEOGRÁFICA Alexandre Bergamin VIEIRA Cláudia Marques ROMA Vitor Koiti MIYAZAKI 135 PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: PODER E CONFLITO NO PROJETO DE EXPANSÃO DO AEROPORTO DE VIRACOPOS EM CAMPINAS Eliseu Savério SPOSITO Thiago Aparecido TRINDADE 157 RESENHAS CHANG, Há-joon. Chutando a escada. A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004. 266p. Leandro Bruno dos SANTOS 181 COMPÊNDIO 185 PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO 201 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 202 APRESENTAÇÃO Com este número, a Associação dos Geógrafos Brasileiros (Seção Local Presidente Prudente) dá continuidade aos trabalhos realizados ao longo dos últimos vinte e seis anos de história do Caderno Prudentino de Geografia. Durante este período, o periódico constituiu-se em importante veículo de divulgação de idéias, debates e discussões realizadas não só no âmbito da Geografia, mas também de diversas áreas afins. Este número apresenta aos leitores textos inéditos que tratam de temas variados e relevantes para a Geografia. Inicialmente, Roberto Schimidt Almeida traz importantes elementos para o debate do determinismo natural no contexto da Geografia. Em seguida, Helton Ricardo Ouriques discute a questão do turismo no contexto atual e os impactos nas periferias do capitalismo. Já Clóves Alexandre de Castro apresenta, em seu artigo, uma trajetória dos movimentos territoriais que lutam pelo acesso ao ensino superior gratuito no Brasil. A questão do trabalho é abordada por Nildo Aparecido de Melo, que enfoca a análise no período posterior à implementação de um conjunto de políticas neoliberais na economia brasileira. Roberto França da Silva Júnior traz contribuições relevantes para o entendimento da circulação na contemporaneidade, discutindo o conceito de logística. Uma exposição sobre as mudanças na configuração da rede urbana a partir do enfoque das cidades médias e pequenas é apresentada por Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma e Vitor K. Miyazaki. Por fim, Thiago A. Trindade de Eliseu S. Sposito tratam das disputas pelo uso do território, analisando os conflitos de poder em torno do projeto de expansão do Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas. Dessa forma, os artigos abordam temáticas ligadas ao determinismo ambiental, turismo, movimentos territoriais, trabalho, logística, saúde e urbanização, a partir da visão de diferentes autores, confirmando a diversidade do temário da Geografia. Portanto, este número apresenta uma composição bem heterogênea, convidando os leitores a explorarem a diversidade de suas “múltiplas geografias”. Comissão Editorial Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... DETERMINISMO NATURAL: ORIGENS E CONSEQÜÊNCIAS NA GEOGRAFIA Roberto Schmidt de ALMEIDA Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ Resumo: Esse trabalho tem como objetivo, avaliar a força do determinismo natural, considerada aqui como uma relação de causa e efeito entre os fenômenos naturais e as atividades humanas, enfatizando suas conseqüências na produção do saber geográfico, desde a antigüidade até o século XIX. Serão focalizadas as contribuições de alguns pensadores, poetas e cientistas que se utilizaram do determinismo natural para a construção de suas respectivas áreas de conhecimento. No contexto da Antigüidade serão analisadas as contribuições dos filósofos da natureza até Aristóteles, que recebeu um tratamento em separado, em virtude de sua importância e influência de seu sistema de pensamento nos séculos subseqüentes. As idéias de Ptolomeu, Heródoto e Estrabão e suas concepções deterministicas tomadas como base para as origens da Geografia, também serão motivo de análise. A transição da Antigüidade para a Idade Média e o desenrolar desse período serão revistos a partir da análise de dois grupos de protagonistas, antagônicos em termos religiosos, mas altamente complementares em termos de concepções científicas: os muçulmanos e os cristãos. O determinismo com projeto divino será também motivo de exame no contexto das obras geográficas de Alberto o Grande e Robert Grosseteste. As repercussões desencadeadas pelo projeto das grandes navegações iniciam o trajeto das ciências desde a Renascença aos tempos modernos, em que as figuras de Galileu e Newton são destacadas. Os conflitos e superações acontecidos durante esse período, serão analisados a partir de ciências que apresentam forte correlação com a Geografia: a Astronomia, a Geologia e a Biologia. Palavras Chave: Determinismo, Determinismo Natural, Antigüidade, Idade Média, Renascença, Muçulmanos, Cristianismo, Astronomia, Geologia, Biologia. Abstract: This paper has as objective to evaluate the force of natural determinism, considered here as a cause relationship and effect between the natural phenomena and human activities, emphasizing your consequences in the production of the geographical knowledge, from the ancient world to the century XIX. The contributions will be focalized of some thinkers, poets and scientists that were used of the natural determinism for the construction of your respective knowledge areas. In the context of the ancient world, the nature's philosophers contributions will be analyzed to Aristotle, that received a treatment in separate, by virtue of your importance and influence of your thought system in the subsequent centuries. The ideas of Ptolemy, Herodotus and Strabo and yours deterministic's conceptions take as base for the origins of the Geography, they will also be analyzed. The transition of the ancient world to the middle ages and uncoiling of that period will be reviewed starting from the analysis of two groups of protagonists, antagonistic in terms religious, but highly complemented in terns of scientific conceptions: the Muslims and the Christians. The determinism with divine project will also be reason exam in the context of the works of the Albert the Great and Robert Grossetest. The repercussions unchained by the project of the great navigations it begins the itinerary of the sciences from Renaissance at the modern times, where the illustrations of Galileo and Newton are outstanding. The conflicts and overcome happened during correlation's whit the Geography and Astronomy, Geology and Biology. Keywords: Determinism, Nature's determinism, Ancient World , Middle Age, Renaissance, Muslims, Christians, Astronomy, Geology, Biology. Introdução Determinismo S. m. Filos. - Relação entre fenômenos pala qual estes estão ligados de modo tão rigoroso que, a um dado momento, todo fenômeno está completamente condicionado pelos que os precedem e acompanham e condiciona com o mesmo rigor os que os sucedem. (Se relacionado a fenômenos naturais o determinismo constitui o princípio da ciência experimental que fundamenta a possibilidade de busca de relações constantes entre fenômenos; se refere a ações humanas e a decisões da vontade, entra em conflito com a possibilidade da liberdade). Novo Dicionário Aurélio, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981,pp.468. A investigação da natureza e a exploração de suas potencialidades sempre foram atividades fundamentais dos seres humanos. A observação do ambiente próximo ( quadro físico ) e do externo à Terra (astronomia) estão sempre presentes nos fundamentos de conhecimento das civilizações. Em seu primeiro capítulo que trata sobre determinismo e ordem, Bergevin (1992) alude sobre uma origem celeste do determinismo, usando os quatro principais motivos definidos por André Boischot em seu verbete 10 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 (História da Astronomia) na Encyclopaedia Universalis (XVIII:721-722, 1985): 1-admiração ou temor que inspiram esses fenômenos. 2-a necessidade de referenciais para elaborar um calendário de atividades do grupo. 3-o desejo de antecipar os acontecimentos, de conhecer o futuro. 4-uma curiosidade que incita à tentar compreender a regularidade dos movimentos observados. Esse trabalho terá como objetivo, avaliar a força dessa relação de causa e efeito entre os fenômenos naturais e as atividades humanas, enfatizando suas conseqüências no saber geográfico, desde a Antigüidade até o século XIX. Serão focalizadas as contribuições de alguns pensadores, poetas e cientistas que se utilizaram do determinismo natural para a construção de suas áreas de conhecimento. No contexto da Antigüidade serão analisadas as contribuições dos Filósofos da Natureza até Aristóteles, que será analisado em separado, em virtude da importância e influência de suas idéias nos séculos subseqüentes. O poder das idéias de Ptolomeu, Heródoto e Estrabão nas origens da geografia e nas concepções determinísticas, também será comentado nesta seção. A transição da Antigüidade para a Idade Média e o desenrolar deste período, erroneamente conhecido como Idade das Trevas, serão revistos a partir da análise de dois atores, aparentemente antagônicos, mas altamente complementares em termos de concepções científicas: os muçulmanos e os cristãos. O determinismo como projeto divino será também motivo de exame no contexto das obras geográficas de Alberto o Grande e Robert Grosseteste. As enormes repercussões desencadeadas pelo projeto das grandes navegações iniciam o trajeto das ciências desde a Renascença aos tempos modernos. Os conflitos e superações acontecidos durante esse período, serão analisados a partir de ciências que apresentam forte correlação com a geografia: a astronomia, a geologia e a biologia. A importância da observação dos fenômenos, suas relações de causa e efeito e o uso da linguagem matemática, passam a ter enorme relevância e o determinismo ambiental ganha uma legitimidade provisória até o advento da contingência, que será tratada nas conclusões. O Determinismo na Antigüidade O Papel dos Filósofos da Natureza As civilizações mais antigas a perceberem a importância das linguagens, simbólica escrita e a cartográfica e a estruturar um corpo de 11 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... conhecimento astronômico, além do estabelecimento de tipologias para vegetais e animais, foram os egípcios e os povos da Mesopotâmia (Sumérios e Babilônicos), por volta de 3000 a.C. (Ronan, 1987, v.I: 31-38). A primeira referência às relações entre a natureza e as atividades humanas no campo da agricultura, foi uma espécie de almanaque do agricultor em forma de poema, feito pelos Sumérios à mais ou menos 2500 a. C.”, chamado “Instruções de Suruppak.” (Lafer, 1991: 17 ). Porém, foi Hesíodo no séc. VII a. C. na Grécia, que cria o trabalho de referência para a ciência, com o poema Os Trabalhos e os Dias, aludindo aos preceitos e regras que um agricultor deve ter, nas suas relações cotidianas com a natureza. A noção de relação de tempo entre fases de semeadura e de colheita, com a posição dos astros, é um bom exemplo: “...quando as Plêiades, filhas de Atlas, estão surgindo, comece a sua colheita, e a lavrar quando elas estão indo embora. Elas estarão escondidas durante quarenta noites e dias, e aparecerão novamente quando o ano se movimentar, quando você afiar pela primeira vez a sua foice. Esta é a lei das planícies e dos que vivem perto do mar”. (Ronan, vol I,1987: 67). Se por um lado, o poema de Hesíodo pode ser classificado como literatura sapiencial, pela preocupação em colecionar preceitos, conselhos e regras práticas e morais, usando a observação da natureza. Por outro, a contribuição dos filósofos da natureza foi o principal argumento para a gradual separação entre o que era mito e religião e o que seria ciência. É importante considerar que nesse estágio cultural da humanidade, o domínio da doxa era preponderante, e que somente a partir do que se convencionou chamar de período dos filósofos da natureza, foi que o conceito de epistemé começa a se estruturar. O mais antigo filósofo da natureza foi Tales de Mileto (624 - 547 a.C.), e sua contribuição na vinculação entre entendimento de um fenômeno natural e sua predição, é considerada como um dado importante na questão do determinismo. O episódio da previsão de um eclipse total do Sol em 28 de maio de 525a.C. feita por Tales e posteriormente historiado por Herodoto (484-425 a. C.), ainda é motivo de dúvidas quanto a data, porém a suposição de que Tales tenha usado um ciclo de eclipses compilado pelos babilônios - o saros - e tenha desenvolvido os cálculos de tempo, a ponto de poder arriscar um prognóstico correto é o que conta nessa questão. (Moreira, 1995: 34) e (Ronan, vol I, 1987: 69). Outro ponto importante no pensamento de Tales de Mileto foi a tentativa de definir que a água seria o elemento básico formador da terra. 12 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 Seu elaborado raciocínio sobre a origem dos terremotos, parte de um ponto de vista, que pode parecer ingênuo para nós hoje, mas altamente racional para o seu tempo, levando-se em consideração que ele era um observador da natureza que conhecia grande parte do litoral mediterrâneo. A Terra era um disco plano boiando na água. O encadeamento desse raciocínio para a explicação dos terremotos é, para aquela época, bastante lógico. As erupções de águas circundantes criavam os movimentos que originavam os terremotos. Outro filósofo da natureza, Anaximandro (610-547), contemporâneo de Tales, também via a água como o elemento básico para a evolução biológica, pois defendia a origem dos animais a partir de substâncias do mar, e do ser humano a partir do peixe (Casini,1975 : 25). Anaximandro foi o primeiro pensador a conceber a noção de infinito (apeiron), substância primitiva da qual derivavam todas as outras, à qual um dia retornariam e pela qual seriam absorvidos, já rejeitando as teorias de um só elemento. Além de apresentar uma cosmologia que, apesar de ser estranha a nós agora, na visão de Glacken (1990: 8-9) representava uma estrutura de universo ordenado, governada por uma lei geral. Também desenhou um mapa do mundo conhecido e escreveu um livro sobre a Terra e seus habitantes. Na visão de Anaxímenes (550-526 a.C.), discípulo de Anaximandro, o elemento primitivo básico era o ar, sendo que a água seria o ar condensado em primeiro estágio, e a terra seria o ar altamente condensado, o fogo seria o ar rarefeito. Para Anaxímenes, o ar era composto de minúsculas partículas, que estavam em todos os lugares, penetrando em tudo. Essa noção de partícula minúscula será desenvolvida por Leucipo e Demócrito 130 anos depois, ao estabelecer os primeiros conceitos sobre o atomismo. Heráclito (576-480 a. C.) elegeu o fogo como o principal elemento básico e argumentava que o universo era sustentado pelo equilíbrio de duas forças opostas em tensão perpétua e em constante mutação (o fluxo) . A escolha do fogo como elemento transformador dinâmico e o argumento da fluidez, que modifica permanentemente todas as coisas, foram as sementes dos sistemas dinâmicos de hoje. Parmênides (544 -450 a.C.) criou o conceito de Ser, uma realidade que estaria para além dos fenômenos naturais. Para ele o Ser era a essência de tudo, tomava todo o espaço, e em vista disso, o universo deveria ser uno e ilimitado. Note-se que tanto a noção de infinito (apeiron) de Anaximandro, quanto a de Ser de Parmênides e a de fluxo de Heráclito, extrapolaram a 13 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... simples constatação dos fenômenos naturais, e de suas relações de causa e efeito mais diretas, ampliando o pensamento humano para níveis mais complexos, e criando novas possibilidades de argumentação. Porém foi Empédocles (492 - 432 a. C.) de Acragas (atual Agrigento na Sicília), o primeiro formulador da teoria dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo), que posteriormente seria desenvolvida por Aristóteles. Essa teoria foi de grande significado para o pensamento científico e revelou-se dominante por toda a Idade Média e, em alguns segmentos do conhecimento, chegou a influenciar até o séc.XVIII. (Glacken, 1990: 9-10). Empédocles foi um médico importante, citado por Galeno, o grande cirurgião romano do séc. II, como fundador da escola de medicina da Sicília. Possuía um agudo senso de observação dos elementos do clima, e sabia tirar proveito disso para controlar a propagação de epidemias. Além disso, foi também um importante pesquisador experimental, provando a existência do ar atmosférico, através de experiências na água. Especulou sobre a luz, chegando a conjeturar que ela possuía movimento e que viajava pelo espaço, fato somente confirmado 2 000 anos mais tarde. (Ronan, 1987, vol I: 81-83). A cosmogonia de Empédocles conjugava os quatro elementos no interior de um universo esférico, submetidos as forças de repulsão (ódio) e de atração (amor) - luta entre opostos. Sua concepção de limite do universo se dava através da forma geométrica da esfera e da composição da esfera, cristal de rocha (único material de alta transparência conhecido na época). O movimento dos astros ocorria em função do movimento da esfera, já que as estrelas estavam fixadas no cristal. Apesar disso, afirmou que a lua recebia e refletia a luz do sol e dava uma explicação convincente para os eclipses. Duas outras concepções importantes de Empédocles tratavam do conhecimento biológico. A primeira dizia respeito à evolução do reino animal, considerado por Empédocles como um dos estágios da evolução do universo. Em sua visão, nos estágios primitivos, varias partes dos animais foram reunidas sem muito critério, daí a criação de monstros (conhecidos pelas lendas antigas), porém algumas espécies não se adaptaram ao meio ambiente e desapareceram, enquanto outras se mostraram adaptadas, procriaram e se desenvolveram. A semelhança com a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin é tão forte que o próprio Darwin fez uma citação a Empédocles no prefácio de sua principal obra. 14 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 A segunda concepção foi o desenvolvimento da teoria dos humores, a partir do conceito de fluxo, no caso, fluxo e refluxo do sangue, teoria essa que seria mais tarde descrita detalhadamente por Hipócrates de Cós (460-377) em sua obra Ares, Águas e Lugares. A relação entre observação da natureza (seres vivos e meio ambiente) e posterior estabelecimento de um encadeamento de causalidades visando uma determinada explicação de um fenômeno pode ser bem percebida na atividade médica, como nos casos de Empédocles e Hipócrates na doutrina dos humores. O conhecimento precário de anatomia podia ser substituído pela observação da excreta líquida do corpo - os humores- e sua correlação com os sintomas mórbidos. Uma série de observações sistemáticas conduzia à elaboração de uma doutrina (um corpo teórico, bem ao gosto grego, que já não se satisfazia apenas com a simplicidade da doxa (o senso comum), nem com a prática automatizada, sem um entendimento mais profundo. Além disso, para os pensadores gregos, o afastamento dos mitos religiosos era também fundamental para a estruturação da epistemé). No exemplo do corpo doutrinário da teoria dos humores, a relação entre catarro e resfriado, vômito e distúrbios estomacais, diarréia e problemas intestinais, perda de sangue além do normal nas mulheres e perturbações ginecológicas, eram entendidas como determinantes de morbidez, por estar a pessoa em desequilíbrio entre seus quatro humores e suas quatro qualidades - os humores eram: sangue, bílis negra, bílis amarela e catarro - as qualidades: secura, umidade, calor e frio. No século II, o cirurgião romano Galeno amplia a teoria com a inclusão de mais quatro temperamentos que corresponderiam às atitudes médias das pessoas e animais: sangüíneas (calorosas e agradáveis), fleumáticas (calmas, apáticas), melancólicas ( tristes, deprimidas) e coléricas (agressivas e explosivas). Além das questões relacionadas ao meio ambiente terrestre e suas vinculações com a vida dos seres humanos, os estudos astronômicos também foram altamente considerados, sendo a escola de Alexandria, o seu principal ponto de referência. Essa escola concentrou os melhores cérebros do norte da África e da Grécia em diversas especialidades, tais como medicina, mecânica, matemática, astronomia e geografia. No contexto geográfico, os principais nomes da Geografia Matemática ou Astronômica de Alexandria foram Eratóstenes (276 - 195 a.C.), nascido em Cirene (atual Shahhat na Líbia) e Claudius Ptolomeu (100 - 170), nascido em Ptolemais Hermiou (Alto Egito). 15 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... Os trabalhos de Eratóstenes no campo da matemática incluíram estudos geométricos visando a solução para a duplicação do cubo e os cálculos aritméticos para a descoberta de números primos, através de um método chamado “crivo de Eratóstenes” até hoje usado. No âmbito da Geografia, Eratóstenes desenvolveu os estudos geodésicos que aperfeiçoaram o que mais tarde foram chamadas de linhas de latitude e de longitude. Sua obra mais conhecida, Geografia foi considerada como trabalho padrão até ser substituída pelo Almagesto de Ptolomeu. Era obra de consulta constante dos imperadores romanos, principalmente Júlio César, pois, dava informações sobre lugares e povos, como convinha a um tratado geográfico da época. A Geografia de Eratóstenes foi o primeiro livro a tentar dar aos estudos geográficos uma base matemática, referindose à Terra como um globo e dividindo-a em zonas. Eratóstenes descreveu ainda alguns processos geomorfológicos, mas enfatizou a cartografia, baseado principalmente nos estudos geodésicos que desenvolvia. Como linha base para seu mapeamento, usou um paralelo que se estendia de Gibraltar, pelo meio do Mediterrâneo, até o Himalaia. Com isto, corrigiu os mapas anteriores, que tinham em Delfos o seu centro e que careciam de maior precisão. Seu mapa mostrava um oceano circular que envolvia toda a massa terrestre (argumento que Eratóstenes justificava através de observações das semelhanças entre as marés do Oceano Índico e do Mediterrâneo ), enquanto sua linha imaginária de base bipartia o mundo então conhecido. Usando também informações de viajantes, criou uma nova malha de paralelos e meridianos e, com base nelas, dividiu a Terra em zonas frígida, temperada e tórrida. Seu trabalho de medição da circunferência da Terra utilizando-se da mensuração das projeções de sombras em latidudes diferentes na mesma hora, aumentou enormemente a precisão dos estudos anteriores feitos por Aristóteles e por Arquimedes. O trabalho do segundo geógrafo, Claudius Ptolomeu consolidou uma corrente de estudos matemáticos com objetivos de precisão cartográfica, através de seus compêndios: um matemático que chegou à Idade Média com o nome árabe-latino de Almagest. Em grego, a obra foi primeiramente denominada de Mathematike syntaxis (Compilação matemática) ,e depois, como He megiste syntaxis (A maior compilação), que os árabes chamaram de Al Majisti; e outro, geográfico/cartográfico chamado Geographike syntaxis. Ptolomeu também escreveu sobre astrologia em outra obra importantíssima, dividida em quatro seções ou livros, que ficou conhecido 16 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 como o Tetrabiblios, embora o título original grego fosse mais explícito quanto ao tema : Apotelesmatika (Influências astrológicas). Glacken (1990: 111112) em sua seção Etnologia Ambiental e Astrológica nos fala sobre a importância da Astrologia no pensamento ptolomáico e sobre as ligações entre ambientalismo e teorias astrológicas. Prognoses e relações de causa e efeito, são tratadas por Ptolomeu, em relação aos habitantes de diferentes regiões do mundo conhecido em virtude das condições ambientais e das influências astrológicas em seu Tetrabiblios. O Almagest é uma obra que sintetiza o corpo de conhecimentos sobre a astronomia grega anterior a Ptolomeu, e o autor acrescenta novos resultados de seu trabalho original sobre a teoria dos movimentos planetários, assim como um catálogo das posições das estrelas. Embora mantendo a concepção aristotélica de geocentrismo, preocupa-se com o desenvolvimento matemático das órbitas planetárias. Seu trabalho sobre o movimento da lua foi considerado o mais completo da Antigüidade. Baseado em dados babilônicos, Ptolomeu melhorou sensivelmente a teoria de Hiparco e com isso, conseguiu calcular com muita precisão as datas de futuros eclipses do Sol e da Lua. Neste contexto, o livro de Kuhn (1990) sobre as conseqüências dos estudos de Nicolau Copérnico, mostra como a influência de Ptolomeu na Astronomia se estendeu para além da Idade Média. Geographike syntaxis ou Geografia foi sua obra geográfica/cartográfica mais valiosa (Ronan, vol I, 1987:129). Ptolomeu tentou mapear todo o mundo conhecido, além de listar os lugares mais importantes, com suas respectivas localizações determinadas em latitude e longitude, um sistema de coordenadas que já existia desde os tempos de Eudoxio de Cnido (408330 a.C.), mas que nunca havia sido tão amplamente aplicado. Seu mapeamento foi o mais completo da época (início da cristandade) e assim como o Almagest, sua representatividade estendeu-se por toda a Idade Média. Determinismo e Geografia na Antigüidade Assim como a observação do comportamento dos seres vivos criou procedimentos intelectuais deterministas que chegaram até o séc. XVII, como no caso da doutrina dos humores, também a observação do meio ambiente legou concepções de causa e efeito, que persistem até hoje, mesmo com todo o aparato teórico estatístico em constante avanço. Para Vilá Valentí (1983: 64-66) os principais objetos de estudo dos geógrafos da antigüidade eram: Cosmologia e Cosmogonia - que tratavam das 17 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... origens e dos processos formadores do universo (uma área com fortes conotações mitológicas, mas também aberta a conjecturas e observações ). Astronomia - observação das formas e movimentos dos astros, incluindo entendimento de suas respectivas grandezas. Geografia Astronômica ou Matemática - determinação dos cálculos dos movimentos dos astros, das distâncias astronômicas e terrestres. Cartografia - confecção de mapas sobre a superfície terrestre conhecida, com maior ou menor rigor matemático, conforme o apoio de conhecimentos da área anterior. Geografia Física observações e especulações sobre determinados fatos que ocorrem na superfície da Terra, principalmente relacionados com processos geológicos e geomorfológicos, climáticos e ecológicos. Corografia - descrição de lugares, com as respectivas anotações escritas ou cartografadas, geralmente com comentários históricos, culturais, políticos e/ou econômicos. O maior exemplo disso, foram as observações sobre o clima e suas relações com as atividades humanas, relações essas, que preocupam os seres humanos desde a antigüidade babilônica e egípcia, até os nossos dias, culminando com as recentes pesquisas sobre o comportamento caótico da atmosfera, a partir das pesquisas de Edward Lorentz sobre o fenômeno do El niño, o efeito estufa e outros. (Pires & Costa, 1992:35). (meteorologista americano, que em 1960, iniciou os estudos sobre o caos determinístico no comportamento atmosférico), até os estudos ainda inconclusos sobre o fenômeno. Na antigüidade, o mais completo estudo sobre as relações entre o clima e a saúde humana foi o tratado de Hipócrates de Cós chamado de Ares, Águas e Lugares , que trata dos efeitos do clima e do meio ambiente sobre as condições médicas, especialmente sobre a difusão de epidemias. A qualidade da água e dos alimentos, condições de temperatura, umidade e suas vinculações com as atividades humanas e a saúde foram estudadas por Hipócrates e suas determinações são aceitas até hoje. (Glacken, 1990: 8288 e Ronan, vol I, 1987: 98-100). No contexto da observação do meio ambiente e de suas relações com as atividades humanas, pesquisadores com diferentes interesses estruturaram um acervo de conhecimentos sobre a geologia, o clima, os mares, a vegetação, os animais, a vida cultural e econômica das diversas civilizações conhecidas, e subsidiaram os governos e chefes militares com informações sobre os territórios conquistados ou ainda por conquistar. Além dos exemplos já citados, de Tales de Mileto com a observação dos terremotos e do mapa de Anaximandro, podemos lembrar também a descrição geográfica de Hecateu (540-480 a.C.) sobre as terras próximas ao 18 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 Mediterrâneo, a percepção de Xenófanes (490-440 a.C.) pelos fósseis marinhos encontrados nas montanhas (questão que nos séculos XVI e XVII ainda causavam polêmicas quanto a sua origem - ver Rossi, 1992 : 21-25 ) e os estudos de mineralogia, botânica e zoologia de Teofrasto (371- 327 a.C.) . Na visão de Bergevin (1992), em sua obra sobre as relações entre o determinismo e a Geografia, os estudos geográficos de Heródoto (484 425a.C.) e Estrabão (63a.C. - 24d.C.), são os marcos de referência da concepção determinística na geografia da antigüidade. Heródoto de Halicarnasso viveu durante a era de ouro da cultura clássica helenística e Estrabão de Amaséia acompanhou o início das fases da derrocada do Império Romano. Ambos foram geógrafos e historiadores, pois conjugaram o conhecimento dos fenômenos naturais aos movimentos políticos, militares e econômicos de seus respectivos períodos de observação. Na época de Heródoto o poderio persa já detinha o controle de todas as cidades gregas da Ásia e Halicarnasso era uma delas. Para Bergevin, Heródoto era um exilado que pesquisava o mundo. Suas pesquisas ao longo do Mediterrâneo e no interior do Egito (Vale do Nilo) descrevem as condições naturais e explica os costumes culturais dos povos. Em particular, o estudo climático e hidrológico do Nilo é, para Bergevin:35-41 e Glacken :88-91, um referencial importante no determinismo natural, em virtude do encadeamento coerente de causas e efeitos, entre condições climáticas e volume d’água do grande rio africano e dos costumes agrícolas e religiosos das populações ribeirinhas. No que concerne a Estrabão, Bergevin o distingue como um grego neo-estóico, descrevendo um mundo romano, preferindo os valores da cultura latina aos da cultura grega, seduzido particularmente pelo senso prático dos Romanos. Estrabão direciona seu trabalho para a descrição das regiões habitadas do mundo, que em sua época, grande parte pertencia ao Império Romano relacionando-as à características físicas da Terra, como forma, condições meteorológicas e movimento dos astros (Estrabón, 1980: 22-25). Seu projeto filosófico estava associado à tradição estóica, através da primazia dada às sensações e a intuição sobre o raciocínio, a crença que a Providência governava a natureza como Poder Maior. Para Moreira (1995:34) anteriormente, já no período helenístico, “os estóicos afirmavam um determinismo rigoroso da natureza, enquanto os epicuristas rejeitavam o determinismo estrito”. Essas concepções deterministas afloram na obra de Estrabão, como por exemplo, ao definir um esquema geral do mundo habitado a partir de um critério climático baseado na incidência do sol, com uma zona 19 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... equatorial, zonas temperadas e glaciares (Estrabón,1980: XXXII). Os trabalhos anteriores de medição da Terra feitos por Eratóstenes, Possidônio e Hiparco que determinavam a circunferência do planeta, foram suas bases de referência, (Glacken, 1990 : 51-54 e104-105). No entanto, além de Estrabão, um outro estudioso, esse sim, romano de nascimento, deve ser lembrado, Gaius Plinius Secundus (23-79) ou somente Plínio (também chamado de Plínio o Velho). Clément Rosset (1989: 259-265) nos faz uma importante avaliação da monumental obra de Plínio Historia Naturalis e mostra que ele foi o primeiro a ter preocupações ecológicas com a relação ser humano-terra. Sua obra, apesar de mostrar uma grande preocupação com o inventariamento de todas as espécies naturais conhecidas apresenta, nas palavras de Rosset...(rererência completa – ano e página)(Rosset,1989:259-265) Já citado na terceira linha do parágrafo: “um segundo elemento que dá às descrições de Plínio uma importância de ordem filosófica: a angústia, constantemente repetida, diante da degradação da natureza, a qual Plínio será o primeiro escritor conhecido a expressar com precisão. Plínio não sabe e não procura determinar o que é a natureza- supostamente conhecida e experimentada por todos os homens, mediante um “senso comum” que evoca Rousseau e Kant ,porém está penetrado do sentimento de que esta natureza caminha para a extinção.” A preocupação de Plínio com o mantenimento da qualidade dos solos para a agricultura, das águas, dos recursos minerais para a garantia da sobrevivência dos seres humanos, pode ser sintetizada na frase “A natureza é a Terra, porque a Terra é o ambiente mais propício ao homem: o domínio do homem, como o céu é o domínio de Deus” (citado em Rosset: 263). Pode-se, com Plínio, antever determinadas questões ligadas ao determinismo natural que só viriam se estabelecer a partir dos séculos XVI-XVII com Bodin , Montesquieu e Rousseau e desaguar nas querelas ecológicas do final do século XX, como a hipótese de Gaia trabalhada por Lovejoy. Entretanto, não é possível atravessar os limites da Antigüidade para a Idade Média sem nos deter no legado de Aristóteles, que constituiu o pré-requisito básico para o desenvolvimento do pensamento científico da Idade Média até a Renascença. O Sistema Aristotélico: a natureza encarada como um processo integrado Nas palavras de Alexandre Koyré (1991: 27), Aristóteles (384 - 322 a.C.) construiu uma obra que “forma uma verdadeira enciclopédia do saber humano. Além da medicina e das matemáticas, ali se encontra de tudo: lógica - o que é 20 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 de importância capital - física, astronomia, metafísica, ciências naturais, psicologia, ética, política...” Aluno de Platão na Academia por vinte anos e, mais tarde, estruturador do Liceu, escola e centro de pesquisas, no qual deu aulas por mais treze anos até sua morte. O Liceu continuou sua obra sob a direção de Teofrasto. A obra de Aristóteles pode ser dividida em dois períodos : o da Academia, sob influência de Platão e o do Liceu, onde se nota um estado de espírito mais independente. Aristóteles foi o sistematizador dos conhecimentos legados pelos filósofos da natureza, e tudo que se conhece hoje sobre o trabalho desses pensadores, deve-se unicamente a ele. Seus principais trabalhos foram: A Analítica Posterior, Física e Metafísica que trataram de temas ligados à filosofia da ciência e aspectos do método científico. .As principais linhas do pensamento de Aristóteles estão ligadas: à prevalência dos sentidos, pois não existe nada na consciência que já não tenha sido experimentado antes pelos sentidos, à questão da forma de uma coisa e da substância que a compõe. Para ele a forma de um objeto ou ser, era tão ou mais importante do que a substância que o compunha. Além disso, sua visão sobre as relações de causa e efeito na natureza levouo a conjeturar sobre a noção de causa final, finalidade ou propósito da natureza. Propósito este, que estaria subjacente a todas as coisas, e que garantiria o encadeamento dos processos naturais. O método pelo qual esse encadeamento seria entendido era a lógica, procedimentos de raciocínio que, por dedução, estabelecem a validade ou não de uma proposição ou argumentação formal (silogismo). O trabalho de Losee (1979: 15-21), dá uma boa mostra do que foi o método indutivodedutivo desenvolvido por Aristóteles. A noção teleológica ou de finalidade acompanha o pensamento de Aristóteles em seu projeto ordenador da natureza, quando separa as coisas inanimadas, das criaturas vivas e quando admite um processo de continuidade na escala da natureza que, evolutivamente, direciona as coisas inanimadas à tornarem-se criaturas vivas (visão inicial da idéia da grande cadeia do ser) , além de estabelecer uma classificação das criaturas vivas entre animais e seres humanos (Glacken, 1990 : 46-48). Seus estudos astronômicos e os de física, estão relacionados com a teoria dos quatro elementos de Empédocles, que Aristóteles sistematizou e ampliou. Questões como os movimentos regulares do astros, determinação de distância, grandeza e forma, assim como o entendimento do movimento dos objetos na Terra eram encarados por ele como um 21 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... grande campo de conhecimento. Aristóteles considerava o universo como uma esfera finita, com a Terra no centro, estrelas e demais corpos celestes moviam-se em órbitas circulares impulsionadas por uma força motriz que dirigia todo o sistema (Casini,1975 : 47-48). No contexto terreno, a teoria dos quatro elementos passava a vigorar, para que fosse explicado a questão relativa aos movimentos dos corpos na Terra. Para Aristóteles, não havia dúvida que a Terra era redonda, mas isso só não explicava esses movimentos. A solução engenhosa foi a argumentação de que tudo na Terra tinha o seu lugar natural. O dos materiais sólidos era o centro da Terra, e quanto mais material sólido um corpo contivesse, mais rápido ele tenderia a chegar lá. Com isso era possível explicar a queda mais ou menos rápida de diferentes corpos na superfície terrestre. O lugar natural da água era a superfície terrestre, por isso as águas formavam os mares e lagos e os rios conduziam essas águas de locais mais altos para os mais baixos. O local natural do elemento ar era em torno da Terra, cobrindo-a como um véu e o lugar natural do fogo era um nível um pouco acima de nossas cabeças e abaixo do ar. As chamas queimavam para cima pois procuravam retornar ao seu lugar natural. A doutrina de Aristóteles, na medida em que se preocupa com a natureza dos seres, apresenta um encaminhamento qualitativo, não se utilizando da abstração matemática. Seu objetivo é delimitar essa natureza, entender a essência, pois é em função dela que os seres se comportam dessa ou daquela maneira. A argumentação do lugar natural é perfeitamente assimilada em sua época, e até bem depois. A gravidade fica sendo um mecanismo interno aos corpos sólidos, que os conduz em direção ao centro da Terra, seu lugar natural. Para explicar os movimentos dos objetos, Aristóteles também se utilizava de três espécies distintas de movimentos: natural, quando era notado que um corpo caía em virtude de sua procura por seu lugar natural o centro da Terra, ou por sua leveza, como a fumaça, procurando o lugar natural do ar. O segundo movimento era o movimento forçado, causado por forças externas e que interferia no movimento natural, como levantar um peso ou atirar uma pedra. O terceiro era o movimento voluntário causado pelo movimento das criaturas vivas. Essa concepção era tão coerente em sua época, que só perdeu a validade entre os séculos XVII e XVIII após os estudos de Isaac Newton. Entretanto Koyré (1991:27 e 34), nos mostra que a viagem de Aristóteles da Antigüidade até a Idade Média, não foi tão simples assim. Aristóteles foi o único filosofo grego cuja obra completa foi traduzida para 22 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 o árabe e só, posteriormente, foi vertida para o latim. Nesse processo de transliteração, o aristotelismo sofreu modificações e Koyré argumenta que “..o aristotelismo, mesmo o de um Averróis ( seu tradutor) e, a fortiori, o de um Avicena ou, para só falar dos filósofos da Idade Média ocidental, o aristotelismo de Santo Alberto Magno, de Santo Tomás ou de Sigério Brabante, não era tampouco, o de Aristóteles. Aliás, isso é normal. As doutrinas mudam e se modificam no curso de sua existência histórica... O aristotelismo medieval não podia ser o de Aristóteles, uma vez que vivia num mundo diferente: um mundo que se “sabia” que havia e só podia haver um único Deus. Os escritos aristotélicos chegam ao Ocidente-inicialmente através da Espanha, em traduções do árabe, depois, em traduções diretas do grego - no decorrer do século XII. Talvez, mesmo em fins do século XII. Com efeito, desde 1210 a autoridade eclesiástica proibiu a leitura -vale dizer, o estudo - da física de Aristóteles. Prova cabal de que era obra conhecida desde um tempo já suficientemente longo para que os efeitos nefastos de seu ensino se fizessem sentir. A proibição quedou letra morta: a difusão de Aristóteles caminha paralela à das escolas ou, mais exatamente, à das universidades.” A argumentação de Koyré é importante, pois foi na universidade que o saber científico se fez presente na Idade Média. Além disso, a contrário de Platão, que centrava sua filosofia na noção de alma, Aristóteles centrava-se na natureza e, as questões sobre fatores naturais que ele desenvolveu, garantiam um avanço na ciência da Idade Média. O Determinismo na Idade Média O Legado Árabe Além de Koyré, também na visão de Ronan (1987, vol II: 83), o legado da ciência Árabe foi muito mais importante para a ciência ocidental da Idade Média, do que se imagina normalmente, pois além de traduzir as obras gregas, combinou-as com as da Índia e China... “Interpretaram a herança, comentaram-na e adicionaram análises valiosas de seu conteúdo; e, acima de tudo, contribuíram significativamente com suas observações. Na verdade, o mundo árabe produziu algumas mentes científicas originais; educou-as e encorajou-as a darem suas próprias contribuições. Assim, quando pensamos na dívida do Ocidente para com a cultura árabe, é importante apreciar ambos os aspectos - tanto o trabalho original quanto as idéias transmitidas em uma época anterior.” Um fato importante nas relações entre estudiosos árabes e cristãos a criação da escola de Edessa - no sul da Turquia, no século V, mostra que os contatos científicos e teológicos eram intensos e positivos entre sírios e cristãos nestorianos - seguidores dos ensinamentos do patriarca de Constantinopla, Nestório. O patriarca argumentava, que se deveria 23 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... distinguir em Cristo duas pessoas, assim como se distingue duas naturezas. Suas argumentações foram rejeitadas pelos cristãos ortodoxos no Concílio de Éfeso e, Nestório e seus seguidores foram considerados hereges. A Igreja Cristã do Irã, no entanto aceitou a doutrina nestoriana e rejeitou a ortodoxia de Éfeso. Com isso, Edessa foi transformada em centro de estudos que combinava os saberes dos cristãos nestorianos com os dos sírios. A importância dos nestorianos foi a de preservar a ciência grega e de difundi-la para os árabes, traduzindo as principais obras do grego para o siríaco (aramaico) e posteriormente para o Árabe. Outro centro importante, foi a Casa da Sabedoria em Bagdá, criada pelo califa Al-Ma’mum, que considerava que a fé muçulmana deveria ser apoiada por argumentações racionais, como os faziam os filósofos gregos e os de Alexandria. A criação da Bayt al - Hikmah (Casa da Sabedoria), foi a sua maior obra cultural. O recrutamento de tradutores, filósofos e astrônomos, muitos deles cristãos, criou um clima de bom relacionamento entre cristãos e muçulmanos em torno das grandes obras gregas, principalmente as de Aristóteles. O maior cientista da Casa da Sabedoria foi Abu Yusuf al - Kindi, considerado o primeiro filósofo muçulmano. Seus amplos conhecimentos das ciências naturais, matemáticas, filologia e filosofia pura, criaram um legado importante para os cientistas ocidentais da Idade Média. Porém, a região muçulmana que melhor representou a relevância da ciência árabe para o ocidente foi a Espanha entre 718 e 1492 ( data da expulsão dos muçulmanos da Espanha para o norte da África). O contato intelectual foi intenso entre cristãos, judeus (como Moisés Maimônides, líder intelectual do judaísmo medieval e médico particular do sultão Saladino do Egito) e muçulmanos como o astrônomo Al-Battani, que corrigiu os cálculos angulares de Ptolomeu no Almagesto, Ibn Siná ( Avicena), Abu’l - Walid ibn Ruchd (Averóis) médicos e filósofos que traduziram e explicaram a filosofia de Aristóteles e que foram considerados os verdadeiros divulgadores da ciência e filosofia grega na Idade Média, além de Ibn Khaldun, o maior historiador e filósofo do islamismo, conforme nos mostra Lacoste (1991). No campo geográfico, a tradução da obra de Ptolomeu Geografia por Al- Farghani e a edição do Livro da Forma da Terra escrito por AlKhwarizmi , que já corrigia o mapa de Ptolomeu, em função dos novos cálculos de latitude e longitude levantados e guardados na Casa da Sabedoria em Bagdá. Um outro tipo de trabalho geográfico de grande importância para o planejamento administrativo e militar dos governos da 24 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 época era a descrição das terras, dos povos e dos meios de comunicação entre eles, das atividades econômicas mais relevantes e rotas de comércio. Alguns geógrafos muçulmanos tornaram-se especialistas em obras como o Livro das Estradas e Províncias de Ibn Khurdadhbih e os estudos sobre as comunidades judaicas na Europa de Leste, feito por Ibn Ya’qub Ibraim, mercador judeu espanhol e diplomata de califas da Espanha muçulmana e do Magreb. O próprio Ibn Kaldun escreveu sobre o comércio do ouro entre o Sudão e o Magreb, e estudou a composição do poder social e econômico das comunidades do Magreb, além de Ibn Batuta que percorreu e descreveu com detalhes a geografia do norte da África. O precursor do determinismo ambiental na geografia muçulmana foi Abu’l-Hassan al-Mas’udi, que viajou por todo o mundo islâmico entre 915 e 950. Foi historiador e geógrafo e tinha uma grande preocupação com os fatos da natureza, enfatizando o ponto de vista de que o meio ambiente afetava fortemente a vida animal e vegetal de uma área. Possuía uma perfeita noção de localização do mundo conhecido e não aceitava a noção religiosa de que a Meca era o centro do mundo, tampouco aceitava a noção de terra incógnita no sul do mapa de Ptolomeu e acatava as informações dos navegadores que diziam não ter limites para o oceano após o Mediterrâneo. Foram os resultados desses contatos multi-raciais e religiosos que ocorreram em terras espanholas (principalmente em Toledo) e no Magreb norte-africano, que garantiram a continuidade da ciência grega (agora incrementada pelos conhecimentos e revisões feitas pelos árabes, que se utilizaram também dos conhecimentos indianos e chineses ) no mundo ocidental, no período medieval. A Ciência Cristã Ao se levar em consideração que, tanto a religião muçulmana, quanto a judaica e, por conseguinte, o cristianismo tinham como referência principal a aceitação de um único Deus e que a natureza era a expressão organizacional máxima desse Deus. Fica claro que a noção de finalidade ( teleologia ) e a idéia de desenho divino da natureza ( onde há lugar para tudo e tudo está em seu devido lugar ), foram argumentos poderosos que tinham de ser trabalhados para uma adaptação das idéias aristotélicas, que foram concebidas em contexto muito diferente. Os muçulmanos foram os primeiros a realizarem esses trabalhos e Koyré (1991: 38-43), nos informa sobre os grandes choques de idéias que ocorreram entre Avicena e Averóis ao traduzirem, com adaptações, as 25 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... idéias platônicas e aristotélicas para o árabe. No caso de Avicena, Koyré traça uma linha de comparação com Santo Tomás, analisando a concepção de eternidade ... ”Avicena não é, como Duns Scoto observa muito bem, um aristotélico de estrita observância: Avicena é um crente. Além disso, Avicena - tanto quanto Aristóteles - supõe expressamente um mundo eterno: é indispensável um motor infinito para manter eternamente o movimento. Mas, se o mundo não é eterno e se é finito, um motor finito é amplamente bastante...Enfim, mais lógico do que Avicena, Aristóteles não faz de seu Deus Motor um Deus Criador. Avicena e, também Santo Tomás, partem de um Deus Criador. É também por esse motivo que eles chegam a isso: um, sendo muçulmano, e o outro, cristão, transformam, conscientemente ou não, a verdadeira filosofia de Aristóteles.” Entretanto, é de suma importância, entender que o primeiro filósofo cristão que se preocupou com a importância da ciência para a glorificação da obra divina, foi Santo Agostinho(354-430) . Considerado por Corbisier (1974:60) como um dos precursores do existencialismo, ao dar relevância ao aparecimento das noções de interioridade do espírito e subjetividade infinita, Santo Agostinho “descobre a alma”, o mundo interior e faz a distinção entre os dois reinos o de Cesar e o de Deus. Nas palavras de Corbisier, Agostinho “não foi apenas um pensador, um grande filósofo e teólogo, mas um homem que fez a experiência do pecado e da morte, da incredulidade e da conversão, e cuja meditação sobre o tempo parece ter sido escrita nos dias que correm. No contexto histórico do cristianismo, inaugura a linguagem dos pensadores existenciais, que não separam a teoria da prática, a vida do pensamento”. Santo Agostinho não escreveu nenhuma obra científica, nem participou de experiências no campo das ciências, entretanto, suas obras marcaram um estágio decisivo no desenvolvimento do pensamento científico, que iria marcar fortemente a filosofia da ciência ocidental até o século XIII. É com Aurélio Agostinho que se harmoniza o dogma, com a razão. Para a ciência cristã, na visão de Agostinho, a razão se distingue da fé, embora, em princípio, o testemunho de uma não deva contrariar o da outra, na medida em que são ambas manifestações do mesmo Deus. É reconhecida a relativa autonomia da razão, mas as imposições do dogma continuam a ser as últimas instâncias da verdade. A teologia da Agostinho é a tentativa do reconhecimento racional de Deus. Uma solução de compromisso, em que a razão é utilizada como auxiliar da fé. Sua teoria da natureza divina do conhecimento só começa a ser rompida no século XIII, por João Duns Scot e Guilherme de Occam, que separam a razão humana da Divina, colocando Deus em um patamar muito superior de entendimento. Para eles, Deus, em seu ser infinito, era 26 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 incognoscível pela observação física e poderia, se quisesse, sobrepujar as leis físicas e naturais. A única restrição, era que Deus não podia fazer coisa alguma que fosse autocontraditória. No contexto das primeiras fases da Idade Média, o desenvolvimento científico cristão ocidental ficou restrito aos problemas de ordem prática, pois as questões teóricas foram deixadas de lado e, somente os muçulmanos lidavam com as antigas idéias gregas. Essas questões de ordem prática garantiram a continuidade do determinismo ambiental nessa época e os dois melhores exemplos foram os dois ingleses: Beda, o Venerável (673-735) e Robert Grosseteste (1168-1253). Beda, monge que se preocupou com os cálculos do calendário, foi o criador da data inicial da era cristã, que usa como referência o nascimento de Cristo como Anno Domini (ano do Senhor). No campo do determinismo ambiental, Beda estudou detalhadamente o comportamento das marés (a região das cidades de Jarrow e Wearmouth, onde se situava o mosteiro em que vivia o bispo, a amplitude das marés eram acontecimento notável). As anotações de Beda criaram técnicas de observação de amplitude das marés, que mesclavam leis gerais com particularidades locais, e que mais tarde foram adotadas como referência básica para a determinação do estabelecimento de um porto marítimo em todo o mundo. Robert Grosseteste (1168-1253) foi bispo da cidade de Lincoln e professor em Oxford. Foi o maior incentivador cultural da ordem dos franciscanos, enfatizando o estudo das ciências naturais. Seu conhecimento dos trabalhos de Aristóteles, o estimulou a escrever sobre a sistemática da pesquisa científica. As palavras de Ronan (1987, vol II: 139), nos dão uma noção clara de suas concepções deterministicas. “A ciência, dizia, começou com a experiência dos fenômenos pelo homem, que era usualmente complexa. A finalidade da ciência era descobrir as razões para a experiência - encontrar as sua causas. Então, tendo descoberto as causas - os agentes causais - , o próximo passo seria analisá-las, selecionando-as em suas partes ou princípios componentes. Depois disso, o fenômeno observado deveria ser reconstruído a partir desses princípios, com base numa hipótese, e finalmente a própria hipótese teria de ser testada e verificada - ou invalidada - pela observação. Esses eram pontos de vista importantes, e o procedimento recomendado era valioso, pois continha a base essencial de toda a ciência experimental. Ele fez também uma análise dos agentes causais como ponto de partida de um procedimento aristotélico, e a classificação das ciências para mostrar como algumas eram dependentes de outras. Declarava também que a ótica e a astronomia eram subordinadas à geometria, pois ambas usavam técnicas geométricas para explicar o comportamento dos raios de luz refletidos por espelhos ou refratados em vidro ou água, assim como o movimento dos corpos 27 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... celestes. Por outro lado, declarava que a própria matemática só poderia fornecer um agente causal para um fenômeno, pois as causas materiais e, em termos de Aristóteles, ‘eficientes’, só podiam ser fornecidas pelo próprio mundo físico.” Colocações com essas no século XIII, só poderiam vir de religiosos muito especiais - os professores universitários - aos quais Koyré fez referência anteriormente. Esses homens foram os que iniciaram um processo lento e gradual, porém irreversível, de separação das questões da fé, dos conhecimentos adquiridos através do estudo das ciências naturais. E nesse contexto, o determinismo ambiental foi um poderoso êmulo nesse processo. Outras figuras importantes do século XIII foram Alberto de Lauingen ou Alberto o Grande ou ainda Alberto Magno (1193- 1280) e seu aluno Tomás de Aquino (1227-1274), ambos da ordem dos dominicanos e grandes lutadores por um avanço nas concepções religiosas da época, avanço esse que significava a aceitação das idéias aristotélicas no ensino universitário católico. Para Bergevin (1992: 87) a figura de Alberto foi considerada como um marco no desenvolvimento do determinismo na geografia, assim como foram Heródoto, Strabão e Sebastião Münster. Glacken (1990: 265-270) define que a principal obra de Alberto, De natura locorum foi a mais importante e a mais elaborada discussão de um teoria geográfica relacionada à cultura humana e ao meio ambiente desde o tratado de Hipócrates Ares, Águas e Lugares. Alberto o Grande foi um dos introdutores da ciência grega e muçulmana nas universidades da Europa Ocidental, apesar da forte oposição da alta hierarquia eclesiástica, que em 1210, já haviam condenado os trabalhos científicos de Aristóteles, condenação que se prolongou até 1234. A partir de 1240 Alberto inicia os trabalhos de sua grande obra De natura locorum, realizando um feito sem precedentes para a época, pois além de explicar Aristóteles em toda a sua obra científica e filosófica, comentou também os filósofos e cientistas árabes. Suas observações da natureza cobriram a geologia, classificando mais de cem minerais, zoologia, seu tratado Sobre os animais contém algumas descrições de espécies imaginárias e de animais verdadeiros, inclusive retificando alguns mitos de época. Observou o comportamento dos insetos, peixes, mamíferos e aves, inclusive os mecanismos de acasalamento. Teceu considerações sobre a relação entre cor dos pêlos dos animais do extremo norte da Europa e a incidência de neve. No campo da botânica, além do monumental trabalho de descrição, também iniciou uma classificação sistemática segundo a forma da planta e 28 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 dos frutos. Além de ter sido o primeiro estudioso a observar e correlacionar temperatura e luz no crescimento das árvores. Seu estudo sobre enxertia, foi o que houve de mais importante no campo da botânica da Idade Média. Seus estudos sobre o clima convergem para uma teoria climática que, implicitamente agrega a noção de esfericidade da Terra. Ronan (1987, vol II:153) alude as dificuldades que os teólogos cristãos se defrontaram para adaptar o conteúdo da filosofia grega ao contexto religioso da Idade Média, pois esse pensamento tinha uma ... “perspectiva pagã e era inimigo da religião revelada, pois fora nutrido numa cultura em que se prestava a falsa reverência a deuses e deusas, sobre cuja existência os intelectuais tinham reservas. Além do mais, havia muitos aspectos na filosofia aristotélica que estavam em conflito com as Escrituras aceitas como autênticas pela Igreja cristã, como Grosseteste já verificara”. Neste ambiente conturbado, um aluno de Alberto em Paris encampa a tarefa de amalgamar a doutrina cristã com o pensamento aristotélico. Seu nome Tomás de Aquino (1225-1274). A tarefa de Tomás foi colossal, pois mesmo não sendo um cientista, conseguiu modificar o pensamento acadêmico da teologia vigente, separando razão e fé. A consideração de que todo o conhecimento começa com a experiência sensível, sobre a qual se desdobram vários graus de abstração, e que o processo de conhecimento de Deus, também segue os caminhos da experiência, pois Deus é conhecido a partir de seus efeitos, foi fundamental no encaminhamento da reconciliação entre a ortodoxia cristã e a ciência grega. Tomás pagou um alto preço por sua luta, pois foi duas vezes condenado por seus escritos. De todas as sínteses escritas na Idade Média sua Suma Teológica foi a mais importante obra da filosofia escolástica. Morreu em 1274 sem ver os resultados de sua obra gigantesca. Cinqüenta anos mais tarde, seus escritos tornam-se referência no pensamento teológico e sua canonização em 1323, o recoloca como um dos principais filósofos da época. O trabalho de São Tomás de Aquino teve seguidores importantes: João Duns Scot (1266-1308) e Guilherme de Occam (1286-1350). Ambos iniciam uma corrente filosófica, definida por Corbisier (1974: 148) como neotomismo, pois apesar de representar um “retorno ao platonismo augustiniano” reforçam uma orientação de separação entre razão e fé e encaminham a filosofia em direção às ciências naturais. Duas profundas e eruditas análises de Maurice de Gandillac (1995: 81-90 e 91-134) mostram as principais áreas de confronto e adoção nos pensamentos de Scot e Occam com os de São Tomás no campo filosófico. 29 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... No contexto das ciências naturais, John Losee (1979: 41-54) analisa os diferentes padrões explicativos por que passou o pensamento aristotélico na Idade Média, fazendo uma espécie de exposição comparativa dos métodos de cinco grandes filósofos da ciência da época: Robert Grosseteste(1168-1253), Roger Bacon (1214-1292), João Duns Scot (12661308), Guilherme de Occam (1286-1350) e Nicolau de Autrecourt (13001355). Questões sobre indução/dedução na ciência experimental, relações de causa e efeito, comprovação/refutação, generalizações/particularizações a partir de experiências são alguns dos temas que Losee compara, dando uma boa visão do pensamento científico da Idade Média. O Determinismo da Renascença aos Tempos Modernos O Início de uma Era de Revoluções e Descobertas No contexto geográfico, o personagem que melhor delimita a fronteira entre a Idade Média e a Renascença foi Marco Polo (1254-1324), considerado o maior viajante da época e também o último geógrafo do lendário, através de sua obra O Livro das Maravilhas (1985), redigido por Rusticiano de Pisa em 1298, a partir de um relato de Marco Polo. A incrível aventura de Nicola e Mafeu Polo, respectivamente pai e tio de Marco, inicia-se em 1260 com uma viagem partindo de Veneza em direção a Ásia central, chegando a China em 1266 e retornando a Europa em 1269, como embaixadores de Cublai Kan. Em 1272, os irmãos Polo novamente põem-se em marcha, agora acompanhado de Marco Polo, ainda um adolescente. Permanecem na China até 1291, quando retornam por mar, contornando o litoral do sudeste asiático, atravessando o Índico até a costa leste da Índia e bordejando seu litoral, seguem até a Arábia e daí por terra até Veneza, chegando em 1295. (referências...) (Polo, 1985:10) Em 1298, Marco Polo é aprisionado por genoveses, em função das guerrilhas comuns que aconteciam entre venezianos e genoveses por conta do controle de rotas comerciais. Durante prisão, Marco dita suas memórias para Rusticiano, praticamente eliminando o pai e o tio da estrutura narrativa e construindo uma nova geografia, completamente diferente do padrão habitual da Idade Média, tanto em termos de quantidade de novidades, quanto em qualidade dessas novidades. Para Stéphane Yerasimos, que escreveu a introdução do livro de Polo (1985:17), ao informar sobre pavimentação das ruas nas cidades chinesas ou comentar sobre o carvão de pedra e sua utilização, Marco Polo inaugura um novo enfoque de descrição geográfica, centrado no que é diferente, mas calcado 30 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 na realidade isto é, com pouco espaço para a fantasia. Nas palavras de Yerasimos: “Marco Polo não age como um geógrafo do legendário. Basta ler, por exemplo, Mandeville, para compreender a diferença. Utiliza seu espírito crítico -positivopara refutar uma lenda, quando isto é possível. É o caso do amianto: com informações que tem de fonte segura sobre a extração e a fabricação deste produto, refuta suas origens animais a partir da legendária salamandra. Ou quando, aplicando a definição legendária do unicórnio ao rinoceronte de Sumatra, ele apercebe-se da diferença e constata que este nada tem a ver com o animal gracioso seduzido por uma donzela” (p.26-27). O contexto histórico da aventura da família Polo vincula-se a derrocada dos empreendimentos de conquista dos cruzados europeus no Oriente Médio que culminou com a perda da cidade de Acre para os muçulmanos em 1291. Yerasimos (Polo,1985:12) argumenta que para os católicos europeus do século XIII, o império mongol seria uma esperança capaz de deter a marcha avassaladora do Islam. Esperança essa que não se concretiza em termos políticos, mas que abre oportunidades para comerciantes e navegadores e, mais tarde, missionários tomarem conhecimento da Ásia e de suas potencialidades comerciais, culturais e científicas. Entretanto, a aventura de Marco Polo começa hoje a ser questionada por estudiosos que contestam, além da inclusão de fatos absurdos, a não inclusão de fatos reais como: a Muralha da China, os caracteres da escrita chinesa, a deformação dos pés das mulheres como característica de beleza e muitas outras. Para Frances Wood, chefe do Departamento da China da British Library, provavelmente Polo não chegou a ir além de Constantinopla. Alfred W. Crosby, em seu livro Imperialismo Ecológico (1993: 71) mostra que, da mesma forma, partir da tomada de Acre, os europeus iniciaram outro projeto de conquista, agora por mar, rumo ao oeste e sul pelo Oceano Atlântico, inaugurado pela aventura mortal dos irmãos genoveses Vadino e Ugolino Vivaldi em 1291 ao navegarem para além do estreito de Gibraltar e não mais retornando. Essa viagem inaugurou uma nova rota de conquistas que se iniciou com as ilhas Canárias, Madeira, Açores e Cabo Verde, estendeu-se pela África e alcançou a Ásia, mas também as Américas entre os séculos XIV e XV. No capítulo Ventos, Crosby (1993: 99) mostra que esse novo projeto, só foi possível graças aos subsídios técnicos trazidos pelos cruzados que tiveram oportunidade de conhecer técnicas e equipamentos já utilizados pelos árabes e pelos asiáticos e descreve as diversas fases da 31 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... chamada era das grandes navegações em função das técnicas de domínio dos ventos. Período que vai caracterizar a Renascença do século XV. A descoberta dessas novas rotas e o aparecimento de um inesperado Novo Mundo no hemisfério ocidental repercutiu profundamente no pensamento europeu. Clarence Glacken (1990: 358) explora muito bem a conotação revolucionária desse novo tempo para a comunidade científica européia. A descoberta da existência de antípodas, de climas e ambientes naturais diferentes, e de outras concentrações humanas com características fisionômicas estranhas aos europeus, adquiriu uma escala ainda desconhecida no saber da época. Mas acabou criando uma nova consciência de que era possível ao ser humano modificar o meio ambiente. As bases para essa nova consciência eram sustentadas, de um lado, pelo desenvolvimento científico que estava ocorrendo nas universidades européias, e nas corporações de artesãos que criavam instrumentos que ampliavam essa nova consciência, conforme alude Paolo Rossi (1989: 1719), por outro, pela imensidão das novas terras e pelas infinitas possibilidades de se testar toda e qualquer idéia modificadora desse novo ambiente. E isso foi avidamente tentado, apesar dos conflitos teológicos que advieram. Cientistas, religiosos, comerciantes, militares e minorias perseguidas em vários contextos, tomaram os caminhos do oceano e foram vivenciar esses novos tempos nas novas terras. Porém, as tradições e os dogmas cristalizados nas instituições e na sociedade européia, ainda iriam causar muitas querelas no desenvolvimento científico do ocidente. E é justamente com a Renascença que acontece o surgimento das novas arenas de disputa científica. E novos discursos são postos a prova, ou para romper com a religião, pagando o preço, ou para criar soluções de compromisso. Religiosos vão conhecer as novas terras e tentar adaptar os ensinamentos da religião às novas realidades culturais. Um exemplo interessante pode ser visto no livro de Jonathan Spence (1986), sobre a viagem do jesuíta italiano Matteo Ricci à Índia e a China entre 1578 e 1610, quando falece na cidade imperial de Pequim. Ricci era um erudito e foi enviado à China para apresentar à elite chinesa a religião cristã e ao mesmo tempo oferecer sua erudição e habilidades lingüísticas e de treinamento da memória. Suas informações subsidiaram os europeus no processo de entendimento de uma cultura antiga e de características muito diversas das ocidentais. Mas podem-se citar outros como Frei Bartolomé de las Casas, o primeiro religioso a condenar o processo de ocupação do novo mundo 32 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 levado a efeito pelos espanhóis na América Central, além de Antônio Vieira e José de Anchieta, que também se envolveram em conflitos com os objetivos materiais imediatos dos colonizadores portugueses no Brasil. Crosby (1993) mostra os resultados da expansão da biota européia nas novas terras, estudando um horizonte de tempo que vai do ano 900 ao 1900, mostrando que o papel dos animais, vegetais e doenças, representaram uma verdadeira revolução no desenvolvimento científico ocidental, pois as experiências estavam agora ocorrendo em um laboratório vivo e de escala real. Foi nesse contexto, que os geógrafos da Renascença deram sua contribuição para o entendimento e a ordenação desse novo mundo, que começa a se modificar com uma velocidade nunca vista antes. Um geógrafo que representou bem essa época foi Sebastian Münster (1489-1552), teólogo, lingüista, filólogo e cosmógrafo de grande erudição, além de produzir obras como uma Bíblia Hebraica (1534-1535), uma gramática e dicionário armênio . Em 1544 escreveu a Cosmographia Universalis, que foi considerada por Bergevin (1992: 119) como um verdadeiro monumento editorial da Renascença, com inúmeras traduções do alemão para o Latim (1550), Francês (1552), Inglês(1553), Tcheco (1554) e Italiano (1558). Foi uma das primeiras obras a utilizar os caracteres móveis de Gutemberg em suas mais de 1300 páginas. A obra de Münster foi considerada na Alemanha, por mais de um século, um verdadeiro tesouro da cultura germânica, uma espécie de bíblia laica que as famílias católicas e protestantes consultavam e ensinavam seus filhos. Na visão de Clarence Glacken (1990 : 364-366) a obra de Münster é descritiva e não teórica, pois, para ele, conhecimento geográfico abarcava o ensino, e a informação sobre os lugares, para subsidiar os negócios ou os assuntos religiosos. Embora tenha sido publicada cinqüenta anos após a descoberta de Colombo, o livro V que trata da Ásia e do Novo Mundo é considerado por Glacken como pobre, em virtude das esparsas informações sobre as viagens de Colombo e de Vespúcio e pela ausência de informações sobre as conquistas do México e Peru. O fervor religioso de Münster é explicado por Bergevin (1992 : 156163) quando trata da questão determinismo, alegando um determinismo a serviço da fé. A realidade terrestre para o geógrafo alemão é determinada pela realidade celeste e o sol tem um papel fundamental. É através dele que Deus organiza a distribuição do calor e determina a vida. Portanto, é um retorno a Estrabão (1980: XXXII), que colocava uma precedência da Providência Divina sobre os processos naturais e que também elegia o sol como a principal ferramenta divina de ordenação da natureza terrestre. 33 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... A Revolução Científica da Renascença aos Tempos Modernos: as contribuições da Astronomia, Geologia e Biologia A escolha dessas três áreas do saber para servir como base de referência ao processo de desenvolvimento do pensamento científico da Renascença, vincula-se à afinidade com que essas disciplinas tiveram com a geografia durante esse período. O discurso sobre a ordem do mundo de que nos fala Paulo Cesar Gomes (1996:342) está fortemente atrelado às mudanças ocorridas nos campos da matemática e da física que trabalharam as principais questões da astronomia, assim como as mudanças de escala temporal nos estudos sobre a idade da terra, vincularam-se às descobertas geológicas (Stephen Jay Gould, 1991: 15 cita Paolo Rossi ao tentar mostrar essa violenta modificação no conceito de tempo geológico “Os homens no tempo de Hooke tinham um passado de 6 000 anos; no tempo de Kant, estavam conscientes de um passado de milhões de anos”); da mesma forma, é possível perceber também outra forte vinculação entre os avanços das observações nos mundos animal e vegetal, campo da biologia, com as novas concepções integradoras entre natureza e cultura que se desenvolveram na geografia do final da Renascença e alcançaram seu apogeu na Idade Moderna. Astronomia Colin Ronan (1987, vol III: 64-65 ) nos informa que as verdadeiras modificações que ocorreram no campo da astronomia, se deram após a segunda metade do século XVI, mas que ainda no século XV, um teólogo e filósofo alemão Nikolaus Krebs (1401-1464) ou Nicolau de Cusa (como ficou conhecido) alicerçou as bases dessas modificações. Profundo estudioso das obras de Platão, Aristóteles e de Averróis, Nicolau percebe a inadequação da lógica de Aristóteles para lidar com idéias que deveriam considerar o infinitamente grande e rejeita o sistema ptolomáicoaristotélico vigente, com a terra como centro de todas as coisas. Sua alusão à possibilidade de vida em outros astros é, sem dúvida, um grande salto para a época. Porém seus argumentos eram expressos em linguagem teológica, com circulação altamente restrita e, por isso, não foram devidamente discutidos em seu tempo. Maurice de Gandillac (1995: 183200) escreveu um ensaio altamente erudito sobre as diferenças de Nicolau com os pensamentos de Platão e Aristóteles no contexto do século XV. A mais importante revolução ocorrida no conhecimento astronômico da Renascença deve-se a Nicolau Copérnico (1473-1543), que no século XVI, derruba a concepção ptolomáica de geocentrismo e inaugura uma nova visão do sistema planetário com o heliocentrismo. O 34 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 livro de Thomas Kuhn (1990) A Revolução Copernicana revela, com muito detalhe, todo o processo de crítica ao antigo conceito ptolomáico do universo de duas esferas. No capítulo sobre a astronomia que vigia na época de Copérnico (pg.147), Kuhn mostra quão grandes eram as modificações políticas, culturais e filosóficas que abalavam a Renascença... ”Inovações radicais na ciência têm acontecido repetidamente durante períodos de convulsão nacional ou internacional, e a vida de Copérnico ocorre durante um desses períodos. Mais uma vez, os Muçulmanos ameaçavam absorver vastas áreas de uma Europa agora convulsionada por rivalidades dinásticas através das quais a nação-Estado substituiu a monarquia feudal. Uma nova aristocracia comercial, acompanhada por mudanças rápidas nas instituições econômicas e na tecnologia, começou a rivalizar com as mais antigas aristocracias da Igreja, e com as nobrezas rurais.”(pg.148) Questões como as grandes navegações começaram a revelar os problemas da geografia de Ptolomeu e os preparativos para a reforma do calendário Juliano para o Gregoriano passaram a exigir reformas nos conceitos astronômicos e Copérnico foi o grande empreendedor da tarefa de preparar os cálculos para essa reforma que aconteceu em 1582. Kuhn também alude uma certa conjunção de objetivos entre a tradição humanista que existia fora das universidades ( que fazia críticas à esta instituição durante a Idade Média) e o esforço de introdução de novas idéias nos estudos científicos afetos à academia, que começou a ocorrer na Renascença ... ”Em conseqüência, o primeiro efeito científico do dogma humanístico antiaristotélico foi facilitar para outros o corte com os conceitos de raiz da ciência de Aristóteles. Um segundo efeito, mas mais importante foi a surpreendente fertilização da ciência devido ao forte impulso para o exterior que caracterizava o pensamento humanístico.”...”cientistas renascentistas, como Copérnico,Galileu e Kepler, parece terem esboçado decididamente duas idéias não aristotélicas: uma nova crença na possibilidade e importância da descoberta de regularidades aritméticas e geométricas simples da natureza, e uma nova visão do Sol como fonte de todos os princípios vitais e forças do universo.” (pg.151). A teoria copernicana foi um produto típico da renascença, pois foi um enfoque totalmente novo de se encarar a natureza. A observação vinha em primeiro lugar, e sua resposta era mais forte que o dogma e estava acima da autoridade. Ao abraçá-la, alguns cientistas da época pagaram um alto preço por tal decisão, Giordano Bruno(1548-1600) foi queimado vivo em Roma, após longo processo e mais tarde Galileu Galilei (1564-1642) teve de se retratar perante a inquisição para não sofrer o mesmo destino. O primado da observação emerge com todo o vigor nas relações entre dois astrônomos que viveram a transição dos séculos XVI e XVII. 35 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... Tycho Brahe (1546-1601) e Johanes Kepler (1571-1630). O dinamarquês Brahe foi o introdutor da precisão nas observações astronômicas, através do projeto e construção de instrumentos de medição altamente precisos para a época. Suas observações sobre a supernova de 1572 e do cometa de 1577 incrementa o processo de descrédito nas concepções aristotélicas das esferas de Aristóteles que havia se iniciado com Copérnico. Tycho Brahe trabalhou como principal astrônomo de Rodolfo II, sacro imperador romano germânico em Praga, e seu principal assistente foi Johanes Kepler um extraordinário matemático, que conviveu apenas um ano com Brahe (1600 -1601) e que nesse período, ganhou a confiança e o respeito de seu tutor, que lhe deixou um novo conjunto de tabelas sobre o movimentos dos planetas. O trabalho de Kepler sobre a órbita de Marte, a partir das tabelas de Brahe e de suas próprias observações, começa a demonstrar que a teoria planetária de Brahe não era aceitável. Kepler, em 1609 , lança sua nova astronomia, concluindo que os planetas giram em torno do Sol e entre 1619 e 1621 completa seu trabalho sobre o movimento planetário com a publicação de Epítome da Astronomia Copernicana. Mas se Brahe e Kepler tiveram apoio institucional para suas pesquisas, Galileu Galilei (1564-1642), assim como Bruno anteriormente, sofreu pressões fortíssimas da Igreja católica, que era contra a divulgação de tais pesquisas para o grande público, isto é, os de fora da academia. Galileu era, como Kepler, um extraordinário matemático que se dedicou ao estudo dos movimentos dos corpos. As técnicas matemáticas utilizadas por Galileu nesses trabalhos eram tão inovadoras, que o que se convencionou chamar de nova física, que iria despontar nos séculos XVII e XVIII, somente teve segmento em função de seus estudos pioneiros e por isso é conhecido como pai da física matemática. Estudiosos do pensamento científico como Koyré (1991), Kuhn (1973 e 1990), Rossi (1989 e 1992) e até críticos literários como Ítalo Calvino (1993) escreveram sobre sua importância no processo de ruptura conceitual entre as concepções aristotélicas-ptolomaicas e as novas teorias advindas da observação, da experimentação e do apoio lógico-matemático que eram as marcas registradas da Renascença. O uso científico do telescópio, (não descoberto por ele) mais a base matemática e as experimentações com pêndulos e demais corpos, garantiram a Galileu um lugar de excepcional destaque na história da ciência. Suas principais obras: O Ensaiador (Il Saggiatore) 1623, Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo - o ptolomaico e o copernicano 1632 e Discursos 36 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 referentes a duas novas ciências 1638 são ainda hoje peças de referência nos estudos de história da física (ver, por exemplo, Carneiro, 1989). O contexto histórico do mundo de Galileu mostra uma inflexão em direção à ciência experimental, e a ciência tornou-se experimental porque os práticos (vide Rossi,1989) passaram a ocupar um lugar importante nesse mundo, anteriormente ocupado por filósofos religiosos. A noção de eficácia passa a dominar essa nova sociedade, que precisava de um outro sistema de mundo, que não o da religião. A prova da eficácia era agora mais importante e já não podia mais se satisfazer com o milagre sem explicações ou somente com a fé. É nesse contexto que a importância de Galileu melhor se apresenta, pelo seu gosto pela experiência e pela aplicação da matemática. A Revolução copernicana continuou seu curso pelo século XVII com René Descartes (1596-1650) deduzindo outras leis do movimento dos corpos, precursoras do conjunto de Leis da Inércia , definidas mais tarde por Isaac Newton . Descartes apoiava a teoria copernicana e, em função de seu prestígio, visitava muitas universidades e, em Cambridge, transmitiu seus conhecimentos a um grupo de alunos, um dos quais era Isaac Newton. Os estudos de Descartes sobre evolução dos planetas, cometas e estrelas, mais tarde se revelaram equivocados, mas para o século XVII, a filosofia cartesiana constituía uma doutrina revolucionária. Sua grande aceitação foi incentivada mais pela sofisticação de seus escritos sobre o método, do que pelos resultados práticos de suas experiências. A relação entre método e experimentação atingiu níveis nunca alcançados com a obra de Isaac Newton (1642-1727). Para ele, o processo científico deveria incluir tanto um estágio indutivo quanto outro dedutivo, que chamou de “método da análise e da síntese”. Suas habilidades manuais, somadas ao seu enorme conhecimento matemático o auxiliaram na confecção de numerosos instrumentos de experimentação e de medição dos fenômenos, e essa combinação de habilidade com inteligência abriu uma nova era nas ciências naturais, da qual a mecânica e a ótica são os maiores marcos de referência. O livro de Westfall (1995) detalha pormenorizadamente a vida de Newton, desde suas pesquisas científicas até suas experiências com a alquimia e seus estudos sobre a Arte Hermética, prática que ocorria paralelamente com suas geniais descobertas, como a da gravitação universal, a formulação das leis da inércia, da refração da luz, do cálculo diferencial e integral (trabalhando independentemente de Leibniz, que também criara um método equivalente). 37 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... A publicação do Philosophiae naturalis principia mathematica em 1687, causou um impacto tão forte, que foi considerado o maior livro científico de todos os tempos. Nas palavras de Ronan (1987: 99)... “... Newton rescrevera toda a ciência dos corpos em movimento com uma incrível precisão matemática. Ele completou o que os físicos do fim da Idade Média haviam começado e Galileu tentara trazer à realidade; suas três leis do movimento formam a base de todo o trabalho posterior. Newton tinha também resolvido um problema astronômico de 2 000 anos- o do movimento dos planetas no espaço. Com uma análise matemática que era assombrosa em perfeição, mostrou como uma lei do inverso do quadrado resultava em um movimento em elipse e forçava os planetas a obedecer às leis que Kepler tinha deduzido com tanto esmero a partir das observações de Tycho Brahe.” Geologia Se na astronomia, o grande empecilho para o desenvolvimento das idéias copernicanas e newtonianas foi a crença que a terra era a principal referência na existência humana e que o ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, não poderia habitar um mero planeta do sistema solar. Na geologia do século XVII, os obstáculos eram outros, e estavam vinculados às crenças da formação original e completa das espécies no momento da Criação e do dilúvio como acontecimento histórico, agregando a questão da preservação das espécies através de Noé e sua Arca. Gould (1991) em seu Seta do Tempo Ciclo do Tempo e Rossi (1992), com Os Sinais do Tempo trataram brilhantemente dessas questões geológicas, que abalaram os dogmas cristãos criacionistas entre os séculos XVII e XVIII. Gould nos mostra as tremendas dificuldades por que passaram os cientistas que estudavam a crosta terrestre para aceitar a noção de tempo profundo ou tempo geológico, na concepção entendida hoje. Em sua explanação, o autor confessa-se paroquial, pois analisa tão somente o exemplo inglês, através dos trabalhos de três pesquisadores: Thomas Burnet (1623-1691), James Hutton (1726-1797) e Charles Lyell (17971875) o primeiro, encarado como vilão, e os outros dois como heróis. Nas palavras de Gould (1991:16)... ”Brunet, vilão porque infectado de dogmatismo teológico, escreveu sua Sacred theory of the Earth na década de 1680. O primeiro herói, James Hutton, trabalhou exatamente cem anos mais tarde, escrevendo a versão inicial de Theory of the Earth na década de 1780. Charles Lyell, o segundo herói e codificador da modernidade, escreveu então o influentíssimo tratado Principles of Geology não mais de cinqüenta anos depois, por volta de 1830. ( A ciência, afinal, parece 38 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 realmente avançar por aceleração, como sugere esta redução pela metade da distância temporal).” O pressuposto fundamental para Brunet era que sua fonte documental - a Bíblia- não podia ser contestada. Com isso, questões como a do dilúvio e a Arca de Noé e a infalibilidade de Deus ao criar todas as coisas em um só momento, suscitaram argumentações que, claramente ferem a lógica que geralmente acompanha a observação. No caso do dilúvio, a determinação divina inundou todo o planeta de uma só vez, daí a necessidade da Arca. Se assim não fosse, Noé poderia ter levado seus animais para qualquer outra região seca, caso o dilúvio tivesse sido apenas regionalizado. Mas em termos de ciência natural, o texto sagrado conflitava-se com uma realidade, que era do conhecimento de Brunet: a quantidade de chuva dos quarenta dias e quarentas noites, era muito aquém da demanda necessária para inundar o planeta. A solução proposta foi especular sobre uma camada subterrânea de água, que existiria abaixo da superfície, proposta já colocada por Descartes em 1617 em Princípios de filosofia. Outro exemplo de conflito entre as escrituras, e o que Brunet verifica, situa-se no dilema entre a imposição, pelas escrituras, de um vetor de história que não aceita grandes modificações estruturais, pois seria reconhecer um erro divino. Entretanto, a noção de ciclo era fundamental para Brunet, e ele adapta uma explicação engenhosa alternando os ciclos da água em primeiro e prevendo um futuro ciclo de fogo (Gould,1991: 55-58). Essas soluções de compromisso seriam a marca registrada de inúmeros trabalhos das ciências naturais nos séculos XVII e XVIII, principalmente na geologia e na biologia (Glacken, 1990: 407-415). No caso da Geologia gerou uma corrente de pensamento chamada de Catastrofismo. Uma catástrofe divina era sempre empregada quando surgia um impasse que não poderia ser resolvido por causas normais. Cem anos mais tarde, o conceito de ciclo é recolocado por James Hutton, não como sucessão de cataclismos determinados por Deus, e sim através de uma concepção de machina mundi onde estava embutido um contínuo processo de mudanças cíclicas. Nas palavras de Gould (1991: 7273)... “A machina mundi auto-renovável de Hutton opera em um ciclo de três estágios que se repetem eternamente. Primeiro, a topografia da Terra se decompõe à medida que os rios e as ondas desagregam as rochas, formando solos nos continentes e transportando os produtos da erosão para os oceanos. Segundo, os fragmentos erodidos dos continentes antigos são depositados em estratos horizontais nas bacias dos oceanos. À medida que os estratos vão se acumulando, 39 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... seu próprio peso gera calor e pressão suficientes para movimentar as camadas inferiores. Terceiro, o calor de sedimentos em processo de liquefação e de intrusão de magmas faz com que a matéria se expanda - com espantosa força -(1788,226), produzindo extensos soerguimentos e gerando novos continentes onde antes havia oceanos (enquanto as áreas erodidas dos antigos continentes se tornam novos oceanos). Cada estágio provoca automaticamente o seguinte. O peso e o acúmulo de sedimentos gera calor suficiente para consolidar, e em seguida soerguer, os estratos; a topografia íngreme do levantamento irá então forçosamente ser erodida sob a ação das ondas e dos rios. o ciclo do tempo rege a machina mundi da erosão, deposição, consolidação e soerguimento; continentes e oceanos trocam de lugar numa lenta coreografia que jamais poderá ter fim, nem sequer envelhecer, enquanto poderes superiores mantiverem a atual ordem das leis da natureza.” James Hutton passou a ser considerado o pai da geologia, em função de sua teoria sobre os processos formadores da terra e influenciou muitas gerações de geólogos e de geomorfólogos, um exemplo importante foi o geomorfólogo americano Willian M. Davis(1850-1934) e o seu famoso ciclo geomórfico apresentado em seu livro The rivers and valleys of Pennsylvania (1909). A diferença está apenas no ampliado conhecimento das eras geólogicas, e no detalhamento das explicações sobre os processos de peneplanização, mas na base, a machina mundi de Hutton sinaliza a referência primeira ( Thornbury, 1966: 6-13 e 245-6). Entretanto Rossi (1992: 335-363), em surpreendente ensaio, nos apresenta ao conjunto revolucionário de idéias sobre os processos geológicos desenvolvidos por um pesquisador italiano chamado Anton Lazzaro Moro, que nas palavras de Rossi “era um fervoroso adepto de Newton”. Suas teorias foram publicadas em 1740 na obra De’crostacei e degli altri corpi marini che si truovano su’monti, portanto 48 anos antes de Hutton e republicadas em lingua alemã em 1751(Leipzig) e 1765 (Bremen). A questão de Moro era explicar o processo de aparecimento de... “produções marinhas, aqueles peixes, crustáceos e os outros empedrados produtos do mar que se encontram sobre os montes”. Suas respostas foram divididas em duas negativas e numa terceira afirmação. A primeira rejeita o já tradicional recurso do dilúvio universal para explicar esses fósseis, a segunda também não aceita as teorias, até então vigentes, sobre o recobrimento total da crosta pelo mar, e que por isso, tais fósseis teriam aparecido nas montanhas. A terceira e surpreendente afirmação, aponta para um processo de soerguimento da crosta, que teria se elevado “saindo do seio da terra coberta de água se elevando àquelas alturas em que agora os vemos”. Para Moro, não foi o mar que se elevou e sim as montanhas que emergiram do leito marinho. É importante assinalar que Moro havia 40 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 pesquisado sobre a súbita emergência de uma ilha no mar Egeu (Néa Kaiméni), que pertencia ao conjunto vulcânico de Santorini em 1707. Além disso, faz uma investigação histórica sobre processos semelhantes como em Pozzuoli, onde em 1538 ocorrera o soerguimento do monte Novo, além das referências de Plinio e Estrabão ao aparecimento de novas ilhas no Mediterrâneo ( Delos é um dos exemplos). Considerações como essas, em meados do século XVIII, revelam-se revolucionárias aos nossos olhos, particularmente se lembrarmos que as questões sobre a geologia ainda eram um amálgama de dogmas e teorias que envolviam... “a narração do Gênese, com temas cosmológicos da formação e da destruição do Universo, com o milenarismo1 e o catastrofismo, com os grandes princípios teológico-naturais da plenitude e da cadeia dos seres, com os problemas relativos ao Dilúvio e a existência dos primeiros homens sobre a Terra”. Rossi descreve com muitos detalhes as refutações de Moro às teorias vigentes, e com isso, percebe-se que Moro trabalhou com uma combinação entre observação e dedução. A não aceitação gradual de um determinismo divino, para uma incorporação gradual de um determinismo orientado por processos emanados dos próprios elementos da natureza. A concepção newtoniana de Ordem, claramente, mostrava sua força treze anos após sua morte. No século XIX, mais precisamente 1830, outro personagem entra em cena, para dar sua contribuição à noção de tempo geológico, Charles Lyell publica sua obra Principles of Geology , lutando contra um contexto que ainda trabalha com o catastrofismo, como solução para os inúmeros problemas que a geologia se debatia. A noção de uniformidade trabalhada por Lyell, consistia em quatro princípios básicos: -Uniformidade das leis. As leis naturais são constantes no espaço e no tempo. - Uniformidade dos processos. Se um fenômeno passado pode ser representado como o resultado de um processo hoje atuante, não se deve inventar uma causa extinta ou desconhecida para explica-lo. - Uniformidade de grau. A taxa de mudança é geralmente lenta, constante e gradual ( catástrofes ocorrem, mas são estritamente de escala local ) - Uniformidade de estado. As mudanças ocorrem, mas a Terra está em equilíbrio dinâmico, portanto, não era possível aludir a uma teleologia em termos geológicos. Doutrina herética defendida por Joaquim de Flora (séc.XIII) e que desenvolveu-se ao longo do Cristianismo e que determinava que a existência do mundo conhecido teria apenas a duração de um milênio ou milenário, conforme a interpretação do Apocalipse de São João. 1 41 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... É possível perceber a importância das colocações de Lyell, num contexto em que as sagradas escrituras ainda tinham uma relativa força. Sua concepção do ciclo imponente do tempo conforme nos fala Gould (1991:145), pode não ser hoje totalmente aceita, em virtude do advento da contingência de fatores externos, como no caso da extinção dos dinossauros, ou mesmo quando nos reportamos à teoria da translação continental de Alfred Wegener (1880-1930), mas para época em que foi apresentada, representou uma ferramenta teórica importante para a aceitação de uma escala de tempo de dimensão ainda não compreensível pela maioria das pessoas. Sua importância pode ser também medida pela influência que causou em Darwin, que usou suas teorias para desenvolver sua teoria da evolução. Biologia A expansão das ciências biológicas durante o período que vai da Renascença aos tempos modernos foi considerável por duas razões: o aperfeiçoamento dos instrumentos óticos como o microscópio e a incrível ampliação do espaço de pesquisa na botânica e na zoologia, em função da ocupação por europeus, de vastas áreas dos novos continentes. Com isso, dois tipos de biólogos tomam posição de destaque nas ciências naturais: os microbiologistas, que vão ampliar o desenvolvimento da medicina, auxiliando os médicos no entendimento dos processos biológicos dos seres humanos e dos animais e os naturalistas, que sistematizaram o mundo vegetal e animal que se abriu, após o século XVI. Clarence Glacken (1990), Numa Broc (1974) e Alfred W. Crosby (1993), embora apresentando visões diferentes dessa epopéia científica de reconhecimento da Terra, conseguem dar uma noção de escala razoável desse empreendimento científico e das dificuldades enfrentadas pelos naturalistas europeus no novo mundo e das querelas intelectuais decorrentes das inúmeras possibilidades de avaliação desse material que vinha do Novo Mundo. Glacken trata dessa fase, na parte quatro de sua ciclópica obra, no Ensaio Introdutório (501-503) e no cap. 14 A Época do Homem na História da Natureza (655-705) ; Broc, principalmente, no livro III As Grandes Revelações (101-150) e Crosby , ao analisar o caminho inverso: a biota européia chegando ao Novo Mundo, as vantagens e catástrofes ocorridas com essa invasão, nos capítulos: 6-Fácil de Alcançar, Difícil de Agarar, 7- Ervas, 8- Animais e 9- Doenças. 42 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 A estreita relação entre os naturalistas, geólogos e cartógrafos no trabalho de reconhecimento das novas terras acaba criando um profissional eclético: o geógrafo explorador, diferente de Estrabão ou de Ibn’Kaldun, em virtude de sua maior bagagem de conhecimentos específicos, normalmente adquirida em grandes universidades européias. Os dois melhores exemplos desse profissional foram Charles - Marie de La Condamine (1701-1774) e Alexandre von Humboldt (1760 - 1859). La Condamine participou de uma expedição de medição geodésica sob a linha do equador na América do Sul e depois retornou a Europa, cruzando latitudinalmente o continente através do Rio Amazonas até sua foz, rumando para Caiena e de lá para Paris. O livro que derivou de seu relatório Viagem pelo Amazonas: 1735-1745 ( La Condamine, 1992), em particular a introdução histórica escrita por Hélène Minguet, que fez também a seleção de textos, apresenta dois quadros bem interessantes, Um do ambiente científico europeu no século XVIII, e outro, que mescla de curiosidade científica, ganância e pretensões gerenciais dos europeus que estavam conquistando esse mundo novo. O relatório de La Condamine apresentado em 28 de abril de 1745 para a Academia de Ciências da França mostra a extensão de seus interesses intelectuais: cartografia, lingüística, botânica, antropologia, zoologia, mineralogia e hidrologia. Alexandre von Humboldt também viajou pela América do Sul no período entre 1799 e 1804 e pela Ásia em 1829. Excelente botânico e geomorfólogo, Humboldt, porém não sente nenhuma dificuldade em escrever sobre as relações entre população e atividades agrárias em seu Ensaio Político sobre o Reino de Nova Espanha (1811). Na visão de Mendoza, Jiménez & Cantero (1982: 25-31), Humboldt foi muito mais do que um geógrafo naturalista explorador, foi o sistematizador da relação entre natureza e ocupação humana. Gomes (1996: 151) nos fala que, quem lê a Viagem às regiões equinociais do novo continente, publicado em 1799... “não deixa de ficar impressionado com a capacidade de Humboldt em ligar diferentes fenômenos levando em conta aquilo que havia então de mais recente nas ciências naturais, e isso a propósito de uma região muito pouco conhecida. Seu olhar tinha por objeto os elementos mais variados do meio físico, mas não se limitava a eles, Humboldt observava também a sociedade local. Cada observação era analisada separadamente e em seguida recolocada em conexão com as outras, a fim de resgatar uma verdadeira cadeia explicativa.” Essa característica eclética de Humboldt chega a confundir seus críticos, pois o cruzamento de idéias racionalistas com o romantismo alemão, foi sempre motivo de incerteza quando da tentativa de enquadra- 43 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... lo em determinados padrões de pensamento. Entretanto, Gomes (1996: 155) coloca um fim nessa incerteza, conjeturando que o geógrafo naturalista alemão, provavelmente, fosse realmente um racionalista e cita um exemplo esclarecedor... “quando Humboldt fazia estudos de botânica, no fim do século XVIII, ele se mostrou bastante hesitante sobre a questão da análise das fibras nervosas: não estava certo da escolha entre uma concepção racionalista e experimental e uma outra vitalista, que acentuava a especificidade metafísica dos processos vitais. Só alguns anos mais tarde, ele se pronunciou em favor do método experimental como sendo o único verdadeiramente científico”. Uma pequena amostra dessa capacidade de Humboldt em sistematizar idéias com um nível de erudição elevado, pode ser apreciada na antologia de textos selecionados por Mendoza, Jimenez & Cantero (1982: 159-167) no fragmento de Cosmos. Ensayo de una Descripcion Fisica del Mundo (1862). Enquanto alguns naturalistas pesquisavam nas novas terras, outros, na Europa analisavam os novos dados e criavam um corpo de teorias de ciências naturais que, em algumas escalas, correlacionavam-se com outros vetores do conhecimento: filosofia, ciência política, direito, antropologia e geografia. Alguns desses cientistas / filósofos criaram relações importantes entre as ciências naturais e as ciências humanas sob vários aspectos: Montesquieu (Charles de Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu 1689-1755), formulador de teorias que ampliaram o escopo do determinismo ambiental, ao correlacionar os diferentes climas da Terra com as diferentes culturas conhecidas, para explicar os diferentes tipos de legislações que foram comparadas com as européias em seu trabalho De L’espirit des Lois 1748. Sobre a importância do pensamento de Montesquieu e seus efeitos no corpo de concepções filosóficas de sua época, Pierre Bourdieu (1980) escreveu um ensaio muito interessante sobre as origens míticas de suas idéias. Outro cientista e filósofo foi Buffon ( Georges Louis Leclerc, Comte de Buffon 1767-1788) o mais importante naturalista francês do século XVIII. A vastidão de seus interesses intelectuais é impressionante, porém, mais impressionante ainda, foi sua contribuição inovadora em diferentes ramos das ciências naturais. Na geologia, Buffon em sua Teoria da Terra, atribuiu ao nosso planeta a idade de 74.000 anos, em contraposição aos 6.000 que a Igreja ainda admitia. Foi também o precursor do evolucionismo, juntamente com o enciclopedista e botânico Denis Diderot ( 1713-1784 ), suas idéias iniciais sobre transformismo e adaptação, influenciaram os trabalhos de Lamarck (Jean-Batiste Pierre 44 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 Antoaine de Monet Chevalier de Lamarck 1744 - 1829 ) e mais tarde, Charles Darwin. Na botânica, Buffon foi o criador do maior jardim botânico da europa no século XVIII, o Jardin du Roi em Paris, e figura extremamente influente na Academia de Ciências francesa (as carreiras de La Condamine, Lamarck, Cuvier e Saint-Hilaire foram impulsionadas por Buffon) Sua principal obra foi Histoire Naturelle, Génerále et Particuliére (1749) e lá estão suas principais contribuições ao pensamento científico da época, como a crítica a Lineu por sua classificação botânica, a noção da grande cadeia do ser (que vai do mais simples ao mais complexo organismo), a noção de ser humano como agente modificador do ambiente, comparável a outros agentes naturais e o monogenismo, que estabelece uma única origem à todas as raças (as modificações ocorrem por influência de fatores climáticos e por mestiçagem). Por tudo isso, a obra de Buffon cristalizouse como uma referência obrigatória nos estudos das ciências naturais pós século XVIII. Porém, as contribuições de Buffon foram apenas o início de uma nova era de grandes impactos na concepção histórica da Terra e de seus habitantes. Paolo Rossi em seu livro Os Sinais do Tempo (1992), oferece um bom panorama da fase anterior a Buffon. Clarence Glackem (1990) e Numa Broc (1974) cobrem detalhadamente o período da influência de Buffon, e L. Jordanova (1984), Denis Buican (1990) e Stephen Jay Gould (1990) apresentam essa nova era pós Buffon, conhecida por evolucionismo. As figuras de Jean-Batiste Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882) foram os atores centrais desse drama intelectual que ocupou as mentes dos cientistas naturais, geógrafos, historiadores da ciência, sociólogos e teólogos entre os séculos XVIII , XIX e XX. A constatação da ampliação do número e variedade de tipos de organismos em função das descobertas de novas terras incentivou um esforço intelectual em busca de uma teoria biológica que explicasse o processo de ocupação da Terra pelos seres vivos. Os trabalhos de Lamarck (na França) e do avô de Charles, Erasmus Darwin (na Inglaterra) entre 1790 e 1815 tentaram uma explicação, recorrendo a uma longa seqüência de transformações e modificações, no bojo de uma antiga concepção de vida como uma “grande cadeia do ser”, idéia perfeitamente aceita no século XVIII e que inicialmente contava com um ingrediente teleológico de origem divina, pois ia da matéria bruta simples, passando para a 45 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... biológica até alcançar Deus, o ápice da complexidade. Nas palavras de Jordanova (1984: 32)... “Na segunda metade do século XVIII, os naturalistas foram ignorando cada vez mais a parte sobrenatural da série, porém as idéias de hierarquia e continuidade entre formas associadas com a grande cadeia do ser garantiram uma influência considerável no estudo dos seres vivos.” Para Gould (1990: 84-93), em seu ensaio Sombras de Lamarck , a vinculação automática da hereditariedade dos caracteres adquiridos a uma teoria lamarckiana é de certa forma um reducionismo, pois “esta não era certamente a peça central da sua teoria evolucionista, nem sequer uma idéia original sua”. A argumentação de Lamarck que a vida é urdida por uma força que tende necessariamente à complexidade, esbarra nos constrangimentos ambientais locais. É um mecanismo que garante aos filhos algumas modificações de forma que os pais adquiriram, porém isso só não garante o processo evolutivo. Na ótica de Gould... “A teoria da seleção natural de Darwin é mais complexa que o lamarckismo porque requer dois processos separados, em vez de uma força única. Ambas as teorias tem raízes no conceito de adaptação - a idéia de que organismos respondem às mudanças ambientais desenvolvendo uma forma, função ou comportamento mais adequado às novas circunstâncias. Assim, em ambas as teorias, a informação do ambiente tem de ser transmitida ao organismo. No lamarckismo, a transmissão é direta. Um organismo dá-se conta da mudança ambiental, responde-lhe da maneira certa e passa diretamente à descendência a sua reação apropriada. O darwinismo, por outro lado, é um processo em duas fases, sendo diferentes as forças responsáveis pela variação e direção. Os darwinistas falam do primeiro passo, a variação genética, como acontecendo ao acaso. Esse termo é infeliz porque não queremos dizer acaso no sentido matemático de igualmente provável em todas as direções. Simplesmente, entendemos que a variação ocorre sem orientação preferida nas direções adaptativas.” A obra mais importante de Charles Darwin A Origem das Espécies 1859 foi o resultado de mais de vinte anos de acumulação de dados e experimentações em animais e vegetais e seus principais argumentos podem ser listados da seguinte maneira: - Superprodução de jovens que na maioria dos casos morrem nas primeiras fases de vida; - Luta pela existência através da competição entre os seres por alimentação e espaço; - Variação e seleção natural através da sobrevivência dos mais aptos; - Transmissão hereditária dos caracteres através dos sobreviventes mais aptos; 46 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 - Formação de novas espécies a partir da transmissão hereditária e por seleção sexual. O somatório de suas análises à atividade de observador da natureza da Terra através de sua viagem no Beagle entre 1828-1831 garante a Darwin um lugar de destaque entre os cientistas que tiveram ao seu dispor a observação direta, a experimentação e o trabalho intelectual de expor suas idéias numa arena científica. O impacto de suas teorias nas ciências foi o que de mais importante aconteceu no final do século XIX. No contexto geográfico, D. R. Stodart (1972: 52-76) em artigo que já se tornou clássico, analisa a influência de Charles Darwin no pensamento geográfico através de quatro temas constantes na obra do naturalista inglês: - A idéia de transformação através do tempo; - A idéia de organização; - A idéia de luta e seleção; - O caráter contingente das variações na natureza. Na idéia de transformação através do tempo o principal influenciado é o geomorfólogo americano Willian Moris Davies (1850-1934) autor dos estudos sobre os ciclos de erosão. A relação estreita das obras dos geólogos Hutton e Lyell com a de Darwin encaixa-se perfeitamente nos trabalhos de Davies. A idéia de organização influenciou os sociólogos e geógrafos da escola de ecologia humana como R. E. Park , R.D. Mackenzie e o geógrafo H. H. Barrows. Além de influir decisivamente nos trabalhos de geografia física e política do alemão F. Ratzel e nas idéias organicistas do francês Camile Vallaux. A concepção de luta e seleção influenciou fortemente a geografia política de Ratzel, Kjellen e do russo Kropotkin e criou uma escola de pensamento denominada Darwinismo Social e garantiu as bases do moderno determinismo geográfico. Quanto ao caráter contingente dos fatos, a influência de Darwin inicia timidamente sua influência através dos trabalhos dos geógrafos estatísticos que estão tentando operacionalizar processos estocásticos em geografia como T. Hägerstrand e R.L. Morrill. Neste mesmo campo vemos hoje muitos debates sobre contingência e determinismo principalmente na física e na matemática ( Pomian K., 1990, Speyer E., 1993 e Moreira I.,1996). Essa visão panorâmica de Stoddart mostrou como foi e, ainda é, poderosa a influência das idéias de Darwin na história das ciências. 47 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... Vimos que o processo evolucionário constituiu-se na multiplicação das espécies, e que este fenômeno foi condicionado principalmente pelo fracionamento de espécies mais antigas. Além disso, as informações obtidas pelos estudos de geologia e paleontologia mostram que o processo ocorreu em períodos de tempo de escala geológica. É Gould (1990: 328), quem nos diz que... “É importante ressaltar também, que a evolução é necessariamente um princípio subjacente à ordem da vida porque nenhuma outra explicação é capaz de coordenar os diversos dados relativos à embriologia, à biogeografia, ao registro fóssil, aos órgãos vestigiais, aos relacionamentos taxonômicos e assim por diante. Darwin rejeitou de modo explícito a idéia ingênua porém bastante aceita de que uma causa precisa ser diretamente observada a fim de que se possa qualificar como uma explicação científica”. Conclusões Determinismo x Contingência: as conseqüências possíveis Os desdobramentos do esquema determinista que se cristalizou após a síntese newtoniana criaram variados tipos de determinismo nas ciências, entre eles o mecanicismo que foi transposto da física para as demais ciências naturais e posteriormente para as ciências sociais. Paulo César Gomes (1996: 177) nos mostra que ... “A ciência em sua forma determinística se propõe a tudo explicar sobre um base lógica e o que não pode ainda figurar neste plano explicativo deve ser considerado como um desafio a alcançar. Na base desta concepção, está a hipótese da ordem global e racional que se exprime pelas regularidades fenomenais e que pode ser compreendida pela ciência”. Neste contexto, a noção de leis naturais, que organizam a ordem do mundo a partir de uma sucessão de causas e efeitos, foi perfeitamente absorvida pelas ciências como um modelo a ser seguido. Muito embora, como veremos mais adiante, várias controvérsias, como as vinculadas às noções que envolvem a teoria quântica, como as de probabilidade, contingência, variações escalares, enfim tudo que foge ao senso comum estão atualmente em grande ebulição, tanto na física, quanto na matemática e nas ciências naturais. No ambiente geográfico, em virtude de ser um ramo do conhecimento que opera simultaneamente com os quadros físico e social, tal aceitação não aconteceu sem polêmicas. De um modo geral, os geógrafos que trabalharam com o quadro físico, adaptaram-se melhor ao determinismo ambiental, pois na escala de observação desses fenômenos, uma relação de causa e efeito é normalmente bem visível. No campo das 48 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 relações sociais, o avanço do determinismo foi mais lento e com muito mais conflitos. Paulo César Gomes (1996: 180-185) fez uma análise desses conflitos e afirma que o embate entre determinismo e possibilismo ocorrido no início do século XX entre a escola alemã de Ratzel e a escola francesa de Vidal de La Blache, restringe-se: “a um único gênero de determinismo, a saber, aquele preconizado por Ratzel, associado ao aspecto mesológico, e o debate é considerado encerrado desde os anos vinte deste século. Essa visão um pouco caricatural corresponde, todavia, a um aparente consenso em torno da questão do determinismo na geografia.”(pg.181). Uma singela defesa de Friedrich Ratzel foi feita contemporaneamente por Luciana de Lima Martins (1992), no sentido de romper com o preconceito classificatório e de alertar para a importância de sua leitura sistemática, para que se possa ter uma avaliação mais isenta de seu papel para a Geografia. Apesar do aparente encerramento dos debates nos anos vinte, a questão do determinismo na geografia está inconclusa. No final dos anos sessenta o biólogo alemão Ludwig von Bertalanffy edita sua Teoria Geral dos Sistemas, obra que, embora pouco comentada, provocou grandes modificações na metodologia e no tratamento dos dados no âmbito das ciências da terra. As concepções de sistema fechado e aberto e todo o arsenal estatístico para tratar com essas entidades criaram novos níveis de conflitos entre os geógrafos físicos e humanos. Os geógrafos físicos, bem mais treinados nas técnicas estatísticas usadas corriqueiramente no ambiente laboratorial que sempre os cercou, acolheram sem reservas a TGS. A maior dificuldade era de cunho operacional, pois os computadores ainda eram equipamentos caros e de pouca eficiência para a massa de dados demandada. O advento, nos anos setenta, do movimento chamado de Nova Geografia, que preconizava a utilização de modelos, uma vinculação à lógica matemática e a um uso cada vez mais intenso de técnicas estatísticas na Geografia Humana, veio tentar uma equalização com a geografia física, que já estava mergulhada nesse processo. A invocação do recurso da observação sistemática das regularidades que acontecem nas atividades humanas é o passaporte para a geografia passar para o ambiente das ciências naturais modernas. Gomes (1996: 258), mostra como Ian Burton encarava a recusa dos velhos geógrafos em pagar essa passagem... “resistência da comunidade geográfica, frente à ciência moderna, é interpretada por ele como estando ligada à tradição possibilista. Na medida em que o 49 Roberto Schmidt de Almeida – Determinismo natural: origens e conseqüências... possibilismo afirmava o livre arbítrio e a impossibilidade de se prever cientificamente os fenômenos, contrariava diretamente os fundamentos da ciência moderna.” Portanto, é com esse pano de fundo, de cunho fortemente determinista, que se deve avaliar a evolução do pensamento geográfico moderno. O cenário alternativo, que se poderia chamar de antagônico ao determinismo preconizado pela Nova Geografia, mostrou-se tão determinista quanto. Novamente Gomes (1996: 283) nos oferece as pistas... “No plano teórico, a ciência inspirada no marxismo busca as determinações atuantes sobre os elementos ou, em outras palavras, as regras do movimento geral do sistema social: a lei da acumulação lei da composição orgânica do capital, a lei dos rendimentos decrescentes, as leis da renda diferencial,etc.,e através delas, podem ser gerados modelos abstratos prospectivos”. Não é preciso mais que uma rápida observação para detectar-se que as sombras do determinismo na geografia não foram dissipadas nos anos vinte deste século. No entanto, em outras ciências, um conflito entre determinismo e contingência começa a se configurar. Na física, o livro de Edward Speyer ( Seis caminhos a Partir de Newton, 1995) aponta para novas possibilidades da mecânica quântica e do caos determinístico. A descrição de um evento macroscópico desencadeado por um evento de escala atômica (o gato de Schrödinger) é um bom exemplo dos paradoxos da física atual. Expressões como indeterminismo preditivo ou determinismo estocástico, podem ser lidas nos artigos de física contemporânea. Conclui-se que a mecânica quântica é indeterminística mas permite predições, contrastando com as situações do caos determinista da mecânica de Newton, em que certas soluções não podem ser previstas em função de se tornarem totalmente estranhas às condições iniciais do processo. No campo da História Natural (área do conhecimento que cobre setores da biologia, geologia, paleontologia, ecologia e outras) os trabalhos de divulgação da ampliação dos horizontes do conhecimento escritos por Stephen Jay Gould, também apontam para a questão da contingência no processo de ocupação dos seres vivos no planeta Terra. A redescoberta e a reclassificação dos fósseis do Cambriano de Burgess Shale por Harry Whittington, Simon Conway Moris e Derek Brigss e a teoria do impacto de Luie Alvarez, que relaciona a extinção de grande parte da fauna do Cretáceo com o choque de meteoros na superfície da terra (na Península do Yucatan). São provavelmente os eventos mais intrigantes para quem 50 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 9-54 estuda a evolução dos seres vivos. As palavras de Gould dão uma noção da importância desses eventos para o entendimento da existência humana... “Em minha opinião, essas são as duas descobertas paleontológicas mais importantes dos últimos vinte anos. Penso que elas são igualmente importantes e que ambas contam basicamente a mesma história (enquanto exemplos da extrema incerteza e contingência da história da vida: dizime de forma diferente os animais de Burgess e nossa própria espécie jamais chegaria a ser produzida pela evolução; desvie aqueles meteoros para órbitas inofensivas e os dinossauros ainda dominariam a Terra, impedindo o surgimento dos grandes mamíferos, inclusive o homem). Em minha opinião, as duas descobertas estão hoje bem documentadas, a revisão de Burgess provavelmente com mais segurança do que a afirmação de Alvarez.” Apesar desses avanços, a conclusão essencial em relação ao determinismo na geografia é que esta perspectiva ainda hoje é perfeitamente considerada no dia a dia de uma grande parte dos geógrafos, pois como disse com muita propriedade, Paulo Cesar Gomes (1996: 175)... “O determinismo é talvez tão antigo quanto a faculdade de refletir”. Bibliografia ACANFORA, Michele. 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Abstract The purpose of this article is to present a panoramic and critical view about the development of the tourism in the countries peripheries of the capitalism. The article points out the situation of workers in the touristic sector of economy. The main argument of this article is based on the thesis that the touristic development is incapable to change the peripherical condition. But, at the same time, the touristic activity will be seen both as a key element for the capitalism contemporany modernization, as well a factor of introduction of the capitalist social relationships. Key words: periphery, tourism, social relationships. Este texto é uma versão substancialmente modificada e ampliada de artigo publicado na Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, que inclui também uma atualização (dos dados estatísticos) e alterações textuais de uma parte de um capítulo da tese de doutoramento defendida pelo autor em 2003 junto ao programa de pós-graduação em Geografia da UNESP de Presidente Prudente (OURIQUES, 2003). 2 Doutor em Geografia pela UNESP de Presidente Prudente e Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFSC. Correio: [email protected] 1. Introdução3 Diante das disparidades regionais causadas pelo desigual desenvolvimento capitalista, tanto no espaço quanto ao longo do tempo, em muitas localidades periféricas o turismo acabou sendo disseminado por poderosos mecanismos ideológicos, notadamente os meios de comunicação. Tal disseminação, inicialmente, é feita tanto pelo meio político quanto pelo meio empresarial. Posteriormente, quando a ideologia do desenvolvimento turístico está arraigada, até mesmo o mais humilde dos cidadãos passa a acreditar que o turismo é uma atividade benéfica, capaz de proporcionar o desenvolvimento das localidades atrasadas ou mesmo que enfrentam dificuldades econômicas locais. Com muita freqüência, é apresentada a maneira mais adequada de promoção do desenvolvimento do turismo, já que a notável expansão desta atividade em escala mundial acaba atraindo lugares da periferia que lidam com problemas relativos ao crescimento. Melhor dizendo, com males relativos à carência desse crescimento! Assistimos assim, nas zonas periféricas, à competição entre regiões e lugares para que sejam receptoras dos grandes projetos e empreendimentos turísticos. Mas essa prática não seria possível se já não fosse socialmente aceita a crença de que o turismo se configura como uma grande fonte de oportunidades de emprego e renda para as populações locais. Ao mesmo tempo, atribui-se ao turismo a capacidade de incrementar as receitas municipais. Tendo, portanto, impacto positivo sobre a distribuição de renda, já que cidades com mais arrecadação de impostos teoricamente têm mais recursos para investir nos meios de consumo coletivo. Por fim, é difundida também a idéia de que o turismo é uma atividade econômica não poluidora, capaz de promover um desenvolvimento ecologicamente sustentável. Enfim, em linhas gerais, é esse o conjunto de argumentos que sustentam a defesa da atividade turística. Ora, que questões merecem ser destacadas em uma análise crítica sobre o desenvolvimento turístico e que não são tratadas de forma adequada pelo pensamento dominante? Tais questões serão apresentadas a seguir. 1 3 Registre-se que a apreciação aqui efetuada pretende pontuar as tendências mais gerais, utilizando exemplos apenas e tão comente como ilustrações, quando for o caso. 56 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 55-67 2. Uma perspectiva crítica sobre o desenvolvimento turístico De início, é necessário destacar que, em regiões periféricas, a introdução da atividade turística tem, inicialmente, um efeito desestabilizador, de desestruturação da economia pré-existente. São inúmeros os relatos de processos de decadência e mesmo de desaparecimento das atividades econômicas tradicionais a partir do advento do turismo. Esse processo é comum em comunidades litorâneas, que sempre viveram da pesca e demais atividades artesanais, que aos poucos vão abandonando seu sustento tradicional. Mas não por escolha! De um lado, pela concorrência promovida pela pesca industrial (algo que já aconteceu em várias partes do litoral brasileiro, aliás). De outro lado, pelo processo de aquisição dos terrenos e expulsão dos pescadores e suas famílias da orla marítima, promovido pelas atividades imobiliárias especulativas, ligadas direta ou indiretamente ao turismo, como destacado no artigo de BURSZTYN (2003) sobre o litoral cearense. Situações similares ocorrem com comunidades que vivem próximas a rios e lagos, inclusive. Temos assim uma desestruturação inicial da economia local, aliada a um processo de mudança no uso e ocupação dos melhores espaços à beira dos mares, lagoas e rios4. Além disso, uma nova estruturação da economia local aflora, com o surgimento de uma rede hoteleira, de restaurantes, de atividades de comércio etc. Parte dos excluídos pelo processo anterior até encontra ocupação nessas novas atividades econômicas, mas parece que o essencial, isto é, o padrão de vida dessa população, não se altera significativamente. No litoral do Nordeste brasileiro, que há duas décadas vem crescendo de forma espantosa do ponto de vista turístico, por exemplo, os homens e mulheres que agora trabalham na indústria do turismo ainda sobrevivem nos mesmos bairros precários, com as mesmas condições precárias de habitação e saneamento de suas residências. E, principalmente, com níveis salariais muito baixos. Aliás, essa é a tônica geral em toda a periferia do capitalismo: - as atividades do turismo remuneram muito mal. A própria Organização Mundial do Turismo (2001) reconheceu as características básicas da ocupação no turismo: sazonalidade, precariedade, baixos salários. Some-se a isso a informalidade, característica marcante dos 4 Há inúmeros relatos na literatura internacional sobre esse tipo de situações. Para uma compreensão inicial sobre os efeitos (de um ponto de vista crítico) da globalização turística sobre os povos indígenas ver PERA, Lee e McLAREN, Deborah (2001), CHÁVEZ (1999), PLEUMARON (1999) e VARGAS (1999). 57 Helton Ricardo Ouriques – Um breve panorama sobre o desenvolvimento do... mercados de trabalho nas economias periféricas, e tem-se um quadro nada agradável a caracterizar o turismo, sob essa ótica. É por essa razão que CASTELLS (1999), ao redigir sua trilogia sobre a sociedade em rede, sentenciou o seguinte em relação ao turismo internacional: ...a globalização das atividades econômicas oferece a oportunidade de ganhos substanciais ao se empregarem crianças, obtidos a partir das diferenças entre o custo da mão de obra infantil nos países em desenvolvimento e o preço dos bens e serviços cobrados nos mercados mais abastados. Esse é, claramente, o caso do setor de turismo internacional. Os serviços de luxo dos quais os turistas de uma renda média podem usufruir em muitos “paraísos tropicais” dependem, em grande medida, da superexploração da mão de obra local, inclusive de um número significativo de crianças. (p. 182) Com a clareza que não se vê nos livros e artigos de muitos pesquisadores do turismo, a Organização Mundial de Turismo (OMT) explicitou os mecanismos capitalistas de exploração que regem o setor, ao enumerar as dez principais características do mercado de trabalho turístico mundial: - elevada porcentagem de trabalhadores em meio período; - elevada porcentagem de trabalhadores temporários e ocasionais; - importante presença de mulheres com contratos de meio período em hotelaria e restaurantes, maior do que em outros setores econômicos; - escasso número de mulheres em cargos de maior responsabilidade; - presença importante de trabalhadores estrangeiros com contratos de meio período. Nos países em desenvolvimento, os estrangeiros geralmente ocupam os cargos de responsabilidade; - também na hotelaria e alimentação se observa uma importante presença de jovens com escassa qualificação ou estudantes empregados no setor esporadicamente; - grande número de trabalhadores clandestinos; - menor retribuição que em outros setores econômicos; - maior número de horas semanais trabalhadas para os empregados do setor, com horário e turnos de trabalho especiais; - grau de sindicalização inferior a outros setores (OMT, 2001:352-3). Em terceiro lugar, o turismo se inscreve no contexto maior da transformação mercantil de todos os aspectos da vida social. O turismo aparece assim como um veículo da mercantilização de tudo, desde um lugar ao sol até a transformação do folclore em espetáculo programado para os turistas. Afinal de contas, já existem muitos lugares à beira-mar privatizados, nas quais o acesso é exclusivo. Em algumas praias nas periferias do mundo, inclusive, não é sequer permitido o acesso dos “nativos”. Ao mesmo tempo, esses “nativos” são objetos de fotografias 58 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 55-67 quando dançam suas danças típicas, quando praticam seus “rituais bárbaros” ou se vestem de “forma primitiva”, como descrito por CANCLINI (1983), KRIPPENDORF (1989) e TURNER & ASH (1991). O fato é que, nos países e regiões periféricas, todos os esforços vêm sendo feitos no sentido de desenvolver o turismo. Depois dos sucessivos fracassos dos processos de modernização, o turismo apareceu, especificamente a partir da década de cinqüenta do último século, como a alternativa de desenvolvimento. É inegável que a introdução do turismo na periferia acabou por gerar várias “ilhas de prosperidade”, criando um circuito privilegiado de consumo e produção. Mas essa prosperidade restringiu-se a poucos. Para os trabalhadores, significou apenas a diminuição e/ou substituição de atividades econômicas tradicionais por outras, direta e indiretamente turísticas, como guias, garçons, cozinheiros, faxineiros, etc. Ao mesmo tempo, as condições estruturais de vida pouco se modificaram, como apontado por TURNER & ASH (1991), BOUHDIBA (1981) e SAAL (1987). Isto é, de modo geral os residentes não se beneficiaram e não se beneficiam do “progresso” que o turismo promete. E mesmo todo o esforço empreendido pelas elites periféricas (isenções, incentivos, doações de terra, etc.), durante mais de cinqüenta anos, foram incapazes de alterar a estrutura mundial da economia turística. Ao analisarmos os números apresentados pela Organização Mundial do Turismo, que cobrem o período 1990 – 2004, podemos ter uma apreensão mínima sobre como os mecanismos de manutenção da estratificação da economia mundial também se manifestam para o caso do turismo, como evidenciam os fluxos de turistas e receitas cambiais das Tabelas 1 e 2. TABELA I CHEGADA DE TURISTAS POR REGIÃO DO MUNDO (EM %) Região Europa Eua + Canadá México + Am. Central Caribe América do Sul Ásia + Oceania África Oriente Médio Total 1990 60,45 12,42 4,35 2,59 1,76 12,77 3,47 2,19 100,00 1995 58,24 11,17 4,22 2,59 2,17 15,30 3,78 2,53 100,00 2000 57,55 10,30 3,63 2,48 2,21 16,19 4,11 3,52 100,00 2004 55,38 8,51 3,44 2,36 2,09 18,98 4,50 4,73 100,00 Fonte: Organização Mundial do Turismo, 2006. Elaboração própria. 59 Helton Ricardo Ouriques – Um breve panorama sobre o desenvolvimento do... Do ponto de vista da evolução do número de turistas, os dados mostram que, mesmo com uma ligeira queda relativa, a Europa concentra os fluxos mundiais (55,38% em 2004, o que significou aproximadamente 425 390 milhões de turistas), seguida pelos conjuntos Ásia/Oceania, com 18,98% (pouco mais de 145 milhões de turistas) e Estados Unidos/Canadá, com 8,51% (65 milhões de turistas, aproximadamente)5. O fato é que os países europeus, os Estados Unidos e o Canadá concentraram, em 2004, 63,89% do fluxo turístico mundial. A tabela também evidencia a evolução do conjunto representado pela Ásia e Oceania, que se deve, principalmente, à notável expansão do turismo na China6. Isso pode ter duas razões: de um lado, a abertura política e econômica promovida pelo país ao longo dos anos 1980, que diminuiu as restrições à presença de estrangeiros; de outro, o câmbio favorável aos turistas. A situação do conjunto composto pelo México, Caribe e as Américas Central e do Sul, é que pouco se alterou no período. Do ponto de vista do movimento de turistas, embora tenham obtido incrementos absolutos no número de visitantes (de 38,2 milhões em 1990 para pouco mais de 60 milhões em 2004), a participação relativa desse conjunto de países teve uma pequena redução, já que era de 8,7% em 1990 e passou a ser de 7,89% em 2004. Do ponto de vista das receitas turísticas (Tabela 2), a situação manteve-se estável, porque, em termos relativos, era de 7,43% em 1990, passando para 7,41% em 2004. Quer dizer, o incremento no número de visitantes não foi suficiente para aumentar a participação desse conjunto de países na apropriação das receitas oriundas do turismo mundial. Por outro lado, o conjunto composto pela África e Oriente Médio apresentou pequenos incrementos relativos tanto no fluxo de visitantes quanto na participação nas receitas cambiais turísticas. Quanto ao primeiro aspecto, a participação passou de 5,66% em 1990 para 9,23% em 2004. Em É importante destacar que a significativa redução de fluxo turístico para o conjunto EUA/Canadá em 2004 deve-se, provavelmente, aos reflexos dos acontecimentos de 11.09.2001. 6 Em 1990 a China recebeu 10,5 milhões de visitantes. Esse número chegou a quase 42 milhões em 2004. Em termos percentuais, a China passou de 2,38% do total do turismo receptivo em 1990 para 5,44% em 2004. Caso sejam agregados Hong Kong e Macau, esse total, para 2004, chega a 8,31% do turismo receptivo mundial (Fonte: Organização Mundial do Turismo, 2006). 5 60 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 55-67 relação às receitas turísticas, a África teve um insignificante crescimento em sua participação (de 2,37% em 1990 para 3,15% em 2004) e o Oriente Médio passou de 1,90% em 1990 para 4,04% em 2004. De qualquer forma, os números do conjunto citado também são modestos e as condições sociais e econômicas atuais não parecem indicar que essas regiões venham a se tornar dinâmicas na economia mundial em geral e na economia turística, em particular. TABELA 2 RECEITA TURÍSTICA INTERNACIONAL POR REGIÃO DE DESTINO (EM %) Região 1990 1995 2000 2004 Europa 52,89 51,66 48,28 51,01 Eua + Canadá 18,83 17,74 19,70 16,08 México + Am. Central 2,37 1,93 2,40 2,58 Caribe 3,23 2,98 3,56 2,99 América do Sul 1,83 1,75 1,91 1,84 Ásia + Oceania 17,20 19,65 18,73 20,62 África 2,37 2,07 2,18 3,15 Oriente Médio 1,90 2,66 3,65 4,04 Total 100 100 100 100 Fonte: Organização Mundial do Turismo, 2006. Elaboração própria. A Tabela 2, que trata da receita turística internacional, acaba complementando a Tabela 1. Nela enxerga-se, claramente, que a Europa, os Estados Unidos e o Canadá, juntos, concentravam 71,16% das receitas mundiais em 1990 e passaram para 64,96% em 20047. Apesar dessa redução, é inegável a concentração das riquezas do setor nesses países. Já o conjunto composto pela Ásia e pela Oceania apresentou importante desempenho no mesmo período, passando de 17,20% para 20,62% das receitas turísticas. Isso pode ser explicado pela conjugação do processo de Helton Ricardo Ouriques – Um breve panorama sobre o desenvolvimento do... desvalorização das moedas locais com o aumento do número de visitantes, o que fez com que entrassem mais dólares nessas economias. Aliás, o fator cambial parece ter sido o principal mecanismo de incremento turístico dos países da periferia ao longo do período. Quando o câmbio é desfavorável (isto é, quando a moeda nacional é valorizada frente ao dólar), o país tende a se tornar emissor líquido de turistas (ou seja, o número de residentes que viajam é superior ao de visitantes)8. Ora, é necessário assinalar novamente que o desempenho aparentemente impressionante do conjunto composto Ásia e Oceania foi puxado pela China, que vem tendo significativos índices de crescimento econômico há quase duas décadas. Na verdade, essa é uma evidência de que não é o turismo que, por si só, leva ao desenvolvimento, mas é o desenvolvimento econômico, como processo de expansão geral de uma dada economia (isto é, expansão da indústria, da agricultura, dos serviços...), que proporciona as condições para que o turismo se desenvolva. Voltando ao tema da concentração das riquezas mundiais no setor turístico, é preciso mencionar que até mesmos autores pró-turismo (como os abaixo citados) reconhecem essa situação: “as receitas do turismo contemplam essencialmente o mundo desenvolvido, onde se localizam as principais agências de viagem” (ROBINSON, 1999:22). Isso também já foi ressaltado por CAZES (1996), que destacou a crescente dependência dos países do Sul em relação ao sistema turístico multinacional, através de dois movimentos complementares: De um lado, no quadro da irreprimível evolução mundial em vista da liberalização e da privatização, que só poderia atingir também o turismo, por um processo geral e acelerado de desengajamento do Estado que, em numerosos países do Sul, retrocede ao setor privado: companhias aéreas e outros transportes, hotéis e resorts, cassinos, centros de convenção, marinas, complexos turísticos, mesmo centrais de aprivisionamento, agências e escritórios de turismo, escolas de formação profissional... Por outro lado, e simultaneamente, a constituição ou reforço de uma rede turística transnacional de algumas firmas mundiais levadas, segundo as oportunidades, nas operações de controle vertical (transporte-produção e distribuição de viagens, hospedagem turística, etc; ilustrada na França por Nouvelles-Frontières, na Alemanha pelo primeiro operador do mundo, TUI) ou do 7 Os números absolutos da evolução das receitas internacionais turísticas indicam a expansão da Ásia, da Oceania e do Oriente Médio. Em termos de países, na Ásia destacamse a China (que passou de 2,2 bilhões de dólares em 1990 para mais ou menos 29,3 bilhões de dólares em 2004); a Tailândia (que passou de 4,3 bilhões de dólares em 1990 para 10,1 bilhões de dólares em 2004) e a Índia (que passou de 1,5 bilhões de dólares em 1990, para 7,3 bilhões de dólares em 2004). Na Oceania, destaca-se a Austrália (que passou de 4,2 bilhões de dólares em 1990 para 16,8 bilhões de dólares em 2004). No Oriente Médio, menciona-se aqui o Egito (que passou de 1,1 bilhões de dólares em 1990 para 6,8 bilhões de dólares em 2004). (Fonte: Organização Mundial do Turismo, 2006). 61 8 Esse foi o caso do Brasil, por exemplo, que implantou em 1994 uma política monetária de valorização cambial que refletiu no saldo negativo da conta turismo do balanço de pagamentos. 62 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 55-67 desenvolvimento horizontal (como a constituição de megagrupos hoteleleiros (...). Como nos outros setores econômicos, as modalidades de intervenção destas firmas multinacionais nos países do Sul modificaram-se; suas implicações e seus investimentos diretos deixaram lugar a formas mais sutis, menos onerosas, sem ser menos constrangedoras: franchisings hoteleiros e comerciais, aportes tecnológicos e profissionais diversos. (p. 82) Particularmente o primeiro movimento, de privatização e desregulamentação, aparece em publicação recente da Organização Mundial do Turismo (2001) como crucial para o “desenvolvimento” do turismo na periferia. A OMT está defendendo abertamente os princípios da Organização Mundial do Comércio, que apregoa a abertura total das economias nacionais, especificamente para as atividades de serviços, que contemplam o setor turismo. Abertura esta traduzida na eliminação de restrições à entrada de capitais estrangeiros, controle de recursos naturais e acesso ao crédito e às isenções locais. Em outras palavras, a OMT prescreve para o turismo a mesma receita genérica de abertura total e indiscriminada de mercados, relativa a outros setores da economia, que significa a capitulação final das políticas nacionais de desenvolvimento da periferia, substituídas pela dominação pura e simples dos grandes grupos industriais e financeiros internacionais. Contrariando os mitos ideologicamente estabelecidos, afirma-se aqui que, na periferia do capitalismo, o turismo não se constitui em “motor do desenvolvimento”. Por isso, registre-se a concordância com ARCHER & COOPER (2001), que afirmaram: “nos casos mais extremos o turismo internacional impôs aos países emergentes uma forma de desenvolvimento de tipo neocolonial. Esse neocolonialismo retira poder dos níveis local e regional e o concentra nas mãos das companhias multinacionais” (p. 91). E mesmo o aporte de divisas estrangeiras àqueles países pequenos que têm no turismo sua principal atividade econômica, acaba não beneficiando a maioria de suas populações. É isso o que também diz CAZES (1996): ...muitos países frágeis e pouco diversificados economicamente devem importar o essencial dos equipamentos e dos produtos exigidos pelos visitantes estrangeiros... Um cálculo minucioso das contas exteriores do turismo, levando em consideração o conjunto das entradas e das saídas financeiras produzidas pela recepção do turismo internacional, conduz o mais freqüentemente, a confirmar o pensamento pessimista de François Ascher: não é o turismo que permite o desenvolvimento, mas é o desenvolvimento geral de um país que torna o turismo rentável (grifos nossos) (p. 80). 63 Helton Ricardo Ouriques – Um breve panorama sobre o desenvolvimento do... Quando é analisado o que acontece em vários locais do planeta, onde as canalizações de água e esgoto que servem a hotéis luxuosos passam por bairros pobres sem ser a elas ligadas; onde a eletricidade que ilumina e aquece o banho dos turistas não chega até as comunidades locais; onde o asfalto que passa pelos roteiros turísticos contrasta com as ruelas esburacadas e enlameadas dos bairros pobres, muitas vezes a poucos metros da modernidade automobilística, pode-se concluir que a especificidade do desenvolvimento pelo turismo, para a imensa maioria dos habitantes do mundo periférico, não passa de uma ilusão. Ao mesmo tempo, parece claro que o turismo está mudando a geografia do mundo, inserindo nos circuitos econômicos globais localidades, regiões e países da periferia capitalista. A questão que se coloca, nesse sentido, relaciona-se com as potencialidades do turismo em transformar a história de subdesenvolvimentos em uma inserção ativa, dinâmica, que modifique essas economias no sentido de promover um desenvolvimento endógeno, capaz de diminuir os males oriundos do atraso econômico. Ora, o turismo não é, por si só, mais indutor do desenvolvimento do que as atividades agrícolas ou industriais. E tem se mostrado incapaz de reduzir a enorme distância que separa o centro da periferia. Passados mais de cinqüenta anos de distintos projetos de desenvolvimento turístico nos países e regiões periféricos, alguém poderia afirmar que o Egito, a região do Caribe ou as Ilhas Maldivas, para ficar somente nesses exemplos, saíram da condição periférica? Algum dos principais destinos turísticos da periferia efetivamente alcançou o desenvolvimento? 3. Considerações finais O que se pode concluir acerca da discussão precedente? Em primeiro lugar, evidencia-se que o turismo é um veículo da modernização capitalista. Talvez seja essa sua principal função na globalização contemporânea: introduzir as relações sociais especificamente capitalistas, subordinando e mesmo extinguindo, muitas vezes, as formas sociais arcaicas, tradicionais. A jornalista Naomi KLEIN (2005), ao discutir a relação entre o Tsunami e o capitalismo, diretamente tocou no assunto, quando comentou: Ahora el Banco Mundial esta usando el tsunami del 26 de diciembre para empujar sus políticas cortantes. Los países mas devastados que casi no ha visto alivio de su deuda y la mayor parte de la ayuda de emergencia del Banco Mundial ha ido en 64 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 55-67 forma de prestamos, no a fondo perdido. Mas que enfatizar la necesidad de ayudar a las pequeñas comunidades pesqueras – mas de 80% de las víctimas de las olas – el banco esta empujando la expansión del sector turístico y granjas piscícolas industriales. Para las infraestructuras públicas dañadas, como carreteras y colegios, los documentos del banco reconocen que reconstruirlos “podría pensionar las finanzas públicas” y sugiere que los gobiernos consideren las privatizaciones (si, solo tienen una idea). “Para ciertas inversiones”, según se dicen en el plan de respuesta al tsunami del banco, “podría ser apropriado utilizar financiación privada” (p. 3-4). De acordo com a jornalista citada, a Secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, provocou uma pequena controvérsia quando descreveu o Tsunami como “uma maravillosa oportunidad que ha pagado grandes dividendos para nosotros” (idem). Qual o sentido dessa declaração? É que o desastre natural literalmente varreu das zonas costeiras populações inteiras, facilitando a acumulação de capital turístico. Por isso, diz a autora, citando uma entidade ligada à reconstrução local da Tailândia (Thailand Tsunami Survivors and Supporters), “para los políticos negociantes, el tsunami era la respuesta a sus oraciones, ya que literalmente barrió estas áreas costeras de las comunidades que habían previamente paralizado sus planes turísticos, hoteles, casinos y sus granjas de gambas. Para ellos, todo esta área costera era ahora tierra abierta!” (idem). Assim, enquanto os povos pescadores estão sendo forçados a viver no interior, nas barracas de estilo militar, “los gobiernos, las corporaciones y los donantes extranjeros se están agrupando para reconstruirla como a ellos les gustaria que fuera: playas como campos de juegos para turistas, los oceanos como minas de água para flotas pesqueras corporativas, servidos por aeropuertos privatizados y carreteras construidas con el dinero prestado” (idem). Trata-se, nesse caso, do aproveitamento de uma oportunidade oriunda de um desastre natural para instituir rapidamente a lógica das relações capitalistas, alterando a forma de propriedade e levando a parte da população que voltará à costa litorânea modificada a inserir-se nas relações assalariadas de trabalho. Em síntese, eis uma forma acelerada de modernização turística. Em segundo lugar, o turismo é um poderoso agente de transformações sociais e espaciais. Menciona-se isso porque as atividades ligadas ao turismo são “consumidoras” de espaço, através da criação das infra-estruturas hoteleiras, de alimentação, de comércio e de especulação imobiliária (o leitor deve ter em mente os grandes prédios que surgem na paisagem das orlas marítimas) e mesmo das infra-estruturas públicas, como rodovias pavimentadas. É por isso que, para retomar as afirmações feitas no início desse texto, o turismo desponta nas regiões periféricas como a mais recente promessa de desenvolvimento e, em alguns discursos 65 Helton Ricardo Ouriques – Um breve panorama sobre o desenvolvimento do... (inclusive acadêmicos), como a única chance de se alcançar o tão almejado desenvolvimento. Finalmente, cabe uma observação de caráter político. Pensar que uma nação possa realmente galgar melhorias econômicas e sociais somente com a preponderância de atividades servis – que caracterizam a economia turística – é desejar muito pouco para o futuro. Mesmo porque os principais centros turísticos do mundo, que não por acaso são os países centrais, só alcançaram esse estágio por conta da diversidade de atividades econômicas, notadamente as industriais. Limitar-se à venda das paisagens ou da beleza plástica do povo é condenar esse povo a existir como “museu vivo” do turismo internacional. É continuar reproduzindo o colonialismo através da existência dos habitantes locais exclusivamente como servidores do turismo, como fontes de deleite sexual (o turismo sexual) ou como seres exóticos que existem como temas de fotografias e filmagens. Referências Bibliográficas ARCHER, B. e COOPER, C. Os impactos positivos e negativos do turismo. In: THEOBALD, W.F. (org.). Turismo global. São Paulo, SENAC, 2001. BOUHDIBA, A. Turismo de massa e tradições culturais. O correio da Unesco. Rio de Janeiro, ano 9, n. 4, p. 4-8, abril de 1981. BURSZTYN, Ivan. Especulação imobiliária no litoral cearense. Instituto Virtual de Turismo, Rio de Janeiro, Caderno Virtual de Turismo, n. 7, junho de 2003, 12 folhas. Disponível em www.ivt-rj.net. Acesso em 10.06.2003. CANCLINI, Nestor G. As culturas populares no capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1983, 149 p. CASTELLS, Manuel. Fim de milênio. São Paulo, Paz e Terra, 1999. 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Inicialmente fizemos um breve histórico dos eventos que constituíram tais movimentos com o intuito de reafirmarmos a importância da história no processo de compreensão dos fenômenos e na construção das identidades de movimentos que assumem, por meio de novas nuances, pautas sociais há tempos negadas à maioria da população. Em seguida tratamos da questão dos movimentos sociais no interior das análises geográficas e os esforços pela busca de abordagens particulares desses fenômenos pelos geógrafos através da construção de conceitos geográficos para análise desses movimentos. Palavras chaves: Cursinhos Alternativos e populares; Estado; hegemonia; escala geográfica; movimento territorial. ALTERNATIVE AND POPULAR PREPARATORY COURSES: origin, contest and possibility Abstract: The present text is an introduction and, at the same time, reflection related to our master’s tesis oriented to by teacher Jayro Gonçalves Melo, presented in December 2005. Refers to trajectory of the territorial movements which has in its basis the struggle for the access to free higher education in Brazil by the poorest layers of the society. At first, we did a brief background of the events which constituted such movements with the intention of reassuring the importance of history in the process of understanding the phenomenos and building the identity of movements which assume, though new paths, social issues neglected in past by the most of the people. Then, we treated the issues about the social movements within the geographic analysis and the efforts towards private copproaches of such phenomenos made by geographers who have built geographical concepts to analyse these movements.. Word-Key: Alternative and popular preparatory courses; State; hegemony; geographical scales; territorial movement. INTRODUÇÃO Este texto aborda os Cursinhos Alternativos e Populares no Brasil a partir de suas origens. Trabalhamos as trajetórias de diversas experiências dos pré-vestibulares alternativos e populares para ser possível compreendelos enquanto movimentos sociais, e, em nossa análise geográfica, de movimentos territoriais. Os eventos que possibilitaram o surgimento dos movimentos territoriais de luta pela democratização do acesso ao ensino superior público no Brasil datam por volta dos anos de 1950. Eles estão relacionados com pelo menos três experiências distintas que produziram diferentes práticas políticas e que tiveram como questão central a inclusão social através da educação. Entre os esforços que procuraram contribuir para o acesso ao ensino superior, vale frisar o pioneirismo de duas experiências oriundas no interior das universidades públicas por meio da iniciativa das entidades de representação estudantil. Trata-se do Cursinho da Poli (USP) e do Cursinho do Centro Acadêmico Armando Sales de Oliveira (CAASO), na USP de São Carlos. O primeiro foi fundado pelo Grêmio da Politécnica da USP em 1950, associação dos alunos dos cursos de Engenharia da Universidade de São Paulo. Segundo Fábio Sato, um dos atuais coordenadores do Cursinho da Poli, não há muitas informações daquela experiência que perdurou até o ano de 1982. Isso porque não se teve o cuidado em preservar os documentos guardados no prédio do Grêmio (antiga moradia dos estudantes da USP), nem o interesse de tentar reconstituir tal história por meio de depoimentos dos atores2 que construíram aquela experiência (CASTRO 2005). O segundo surgiu em 1957 por iniciativa dos alunos do Centro Acadêmico Armando Sales de Oliveira (CAASO), na USP de São Carlos. Tais alunos perceberam que os calouros estavam chegando à universidade carente das formações necessárias para dar continuidade aos estudos na chamada área de exatas. Decidiram então criar um Cursinho Pré-Vestibular Embora tenhamos usado na dissertação o conceito de atores sociais, após reflexões compreendi se tratar de um conceito incompatível com nossa opção metodológica, pois os atores desempenham papéis determinados na sociedade; Já os sujeitos caracterizam-se pela autonomia, além de a noção de sujeito ter surgido no Brasil a partir dos discursos dos movimentos e comunidades de bases durante os anos de 1970, onde os Cursinhos Populares encontraram férteis terrenos na construção de suas identidades. 2 Doutorando em Geografia no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP. Professor de Geografia no ensino fundamental do município de Descalvado - SP. 1 70 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 para atender a uma população de menor poder aquisitivo e possibilitar àquelas pessoas ingressarem na universidade pública com uma boa base nos conteúdos. O desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil, efetivado através das transferências de capitais oriundos da produção cafeeira e dos investimentos de capitais externos, e o movimento migratório para as grandes cidades da região sudeste, desencadearam na explosão do processo de urbanização brasileira e exigiram a ampliação e diferenciação das estruturas educacionais oferecidas até o momento em questão (LEFEBVRE, 2004). Enquanto a chamada “burguesia nacionalista”, associada aos setores médios e aos representantes de trabalhadores e comunistas, enxergavam a educação como meio para um desenvolvimento capitalista que atenuasse a miséria e desenvolvesse as forças produtivas, uma outra fração burguesa, muito mais conservadora e com forte influência na máquina estatal, considerava a escolarização popular apenas como uma forma de transmissões dos conhecimentos básicos para que os trabalhadores fossem capazes de operarem os instrumentos relativos à produção de mercadorias que o momento exigia. Sobre essa política, que resultou na expansão oficial do ensino no Estado de São Paulo, o professor Celso Rui Beisiegel afirma: [...] a constituição de um certo modo de produção de bens e serviços, que se faz dominante, no Estado de São Paulo , nesse período, explica a emergência e generalização de aspirações educacionais voltadas para a realização de expectativas de ascensão social vertical, despertadas pelas mudanças do mercado de trabalho. Com a abertura do processo político, após a queda do Estado Novo, essas aspirações encontram canais de expressão e provocam o alargamento da oferta de oportunidades escolares. A das oportunidades e a transformação qualitativa deste ramo de ensino encontram, assim, no crescimento e procura de vagas, um elemento explicativo e privilegiado: o desenvolvimento social fomenta a emergência e a generalização da procura; esta, por sua vez, conduz às progressivas alterações introduzidas na organização e no funcionamento de todo o ensino de nível médio (BEISIEGEL, 1989, p. 3). Podemos dizer que as progressivas alterações introduzidas na organização e funcionamento do ensino de nível médio apontadas por Beisiegel (1989) marcaram o início do processo histórico de sucateamento que o ensino público no Brasil tem experimentado justamente por causa da 71 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... “emergência e generalização da procura” por vagas. Não que a procura e a expansão do ensino seja a causadora da deterioração do ensino público; longe disso. Mas tem sido uma estratégia de gestores públicos o constante esvaziamento, principalmente no quesito investimentos, dos serviços públicos de educação nos níveis fundamental e médio na medida em que as classes abastadas vão trocando tais serviços públicos pelas organizações educacionais privadas. Tal processo se iniciou justamente no período histórico anteriormente relatado, ou seja, a diferenciação dos “serviços de educação” oferecidos pelo Estado se deu a partir do instante em que as classes populares passam a ter acesso a tal serviço público usufruído anteriormente apenas pela classe abastada. Mas a procura e a generalização das vagas causaram mais que simples emergência do serviço público de educação: causaram a diferenciação do ensino destinada às classes sociais, e com isso, o avanço do ensino privado e a concepção cada vez mais corrente de que a educação está no campo dos serviços (sem aspas), o que faz dela uma mercadoria (CHAUÍ, 2001). Esse é apenas mais um exemplo das contradições produzidas pelo modo de produção capitalista que também na educação, ao expandir o ensino público, por conta da diferenciação e preconceito de classe, automaticamente contribui para expansão do ensino privado. Essas contradições podem se dar primeiramente pelo fato dos agentes que têm operado os interesses do ensino privado serem os mesmos que hegemonizam a Sociedade (Estado) brasileira e comandam o aparelho de Estado. Por isso, na medida em que há “pressões” ou necessidades para expandir determinado grau do ensino público, o setor privado avança sob o mesmo grau de ensino e também para o grau superior, pois a classe social que usufruía daquele serviço “público” se abstém da convivência com as chamadas classes “inferiores”. Com a ausência da classe dominante naquele espaço público, não há razão para manter nem ampliar os investimentos existentes naquelas instituições. Enquanto isso, tais investimentos são compensados cada vez mais nas facilidades adquiridas pelo setor privado da educação nos seus mais diversos campos de atuação. A radicalização da sociedade brasileira nos idos do ano de 1950 e o descolamento dos movimentos populares do populismo tradicional permitiram o surgimento de novas e ricas experiências que tiveram no centro de suas ações a emancipação das classes trabalhadoras. Enquanto isso, no campo, as Ligas Camponesas se organizavam e chamaram os trabalhadores rurais a resistirem às violências dos latifundiários que, por 72 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 meio de ações criminosas, contribuíram para o êxodo rural, o aumento das pastagens e as monoculturas, visando apenas o mercado externo. Entre as cidades, a experiência de Recife acontecia como uma das mais importantes, senão a mais importante experiência educacional vivenciada pelas classes trabalhadoras ao longo da história do Brasil. Tratase, pois, do método de alfabetização que ficou conhecido como “método Paulo Freire” onde a alfabetização emerge como sinônimo de libertação, e a educação, como prática de liberdade. Não com o professor no comando de tal processo, como detentor unívoco do conhecimento, mas num processo dialógico de ensinar e apre(e)nder o povo e com o povo e que se resume na afirmação do professor Freire(1970): “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. Essa experiência se espalhou pelo país por meio dos movimentos sindicais, populares e principalmente clericais e estudantis os quais participaram das campanhas de alfabetização utilizando métodos inovadores e propondo a “conscientização” dos pobres e dos deserdados do mundo. O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) contribuiu de forma expressiva para a difusão de tais práticas que em breve fariam coro com as inovações no teatro e cinema; estes passariam a expor a realidade cotidiana da maioria da população em seus trabalhos. A partir do ano de 1966 começaram a se reproduzir com força os cursinhos pré-vestibulares nas faculdades de várias universidades a exemplo dos que já existiam na Politécnica da USP e o do CAASO, USP de São Carlos. Dentre as novas experiências produzidas, a mais expressiva foi a do Cursinho da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (USP). Essa expressividade se deu porque o Cursinho foi construído na luta cotidiana dos estudantes daquela faculdade durante os difíceis anos do regime militar na década de1960. Tais eventos marcaram a história do Brasil e fizeram do prédio onde se localizava a FFCL-USP, na Rua Maria Antônia, um patrimônio histórico cultural. A conjuntura política vivida no Brasil durante o final dos anos 1960 exigiu posturas difíceis de todos os que, de alguma forma, haviam se posicionado contra o regime autoritário. Tais posturas também influíram no rumo que tomaria o Cursinho da FFCL-USP. Entre mantê-lo sob a gestão do Centro Acadêmico que sofreria em breve uma intervenção e fechamento por meio de decreto-lei do regime militar, ou preservá-lo, 73 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... ampliando as experiências construídas até aquele momento, mesmo que fosse sob as asas da iniciativa privada, prevaleceu a segunda alternativa. E assim, do Cursinho da Faculdade de Filosofia surgiu o Colégio Equipe, importante alternativa educacional aos desmandos do regime autoritário. Seus métodos inovadores e professores qualificados estavam voltados para um público social e financeiramente seleto. Dando continuidade à tarefa de reconstituição dos processos que contribuíram para a ação dos cursinhos alternativos e populares a partir dos anos 1990, não poderíamos deixar de situar o papel dos movimentos populares, principalmente no Município e Grande São Paulo a partir da metade dos anos 1970. Diante do fato de a Igreja Católica ter sido o único espaço institucional “respeitado” pelo regime militar, coube a sua ala progressista o papel de contribuir para a construção de um canal em que o povo expressasse suas demandas (SADER, 1988). Por meio do diálogo com outras demandas semelhantes, constituíram-se alternativas para problemas locais do cotidiano daqueles que estavam oprimidos pelo custo de vida, pela ausência de creches, moradia, saúde, educação e por um intenso aparelho repressivo que intimidava qualquer possibilidade de contestação. Tais diálogos se deram majoritariamente nos espaços da Igreja e foram preparados pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Elas transformaram os territórios das Igrejas nas periferias do Município de São Paulo e Região Metropolitana em verdadeiros espaços de socialização política (FERNANDES, 1997). Segundo Sader (1988, p. 144), para que isso tenha sido possível, foi importante a reconstituição das matrizes discursivas das instituições em crises que abriram espaços para novas elaborações. Cada uma delas experimentou a crise sob a forma de um deslocamento de seu público. Setores da Igreja Católica que perderam a influência junto ao povo construíram as comunidades de base; dos grupos de esquerda desarticulados por uma derrota política, surgem buscas por “novas formas de integração com os trabalhadores”; e, da estrutura sindical esvaziada por falta de funções, surge um “novo sindicalismo”. Hoje, já velho. Sader acentua, entre várias características dos movimentos sociais emergidos na segunda metade dos anos de 1970, a importância do cotidiano enquanto espaço de resistência. Tal debate continua atual e transcendeu o campo da Sociologia, ocupando hoje espaços nos debates produzidos pelos geógrafos nos últimos trinta anos. 74 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 Durante os anos de 1980, tendo como referência o Cursinho da Poli, emergiram novas experiências de pré-vestibulares não comerciais nos campi das universidades públicas brasileiras. Mas é a partir de 1990 que os estudantes de vários campi de diversas universidades resolveram repensar suas práticas no interior do movimento estudantil. Passaram a contribuírem para a construção do movimento em seus campi e a viabilizarem o ingresso na universidade pública de novos atores sociais que, presentes nos discursos e manifestos, não estavam presentes nas políticas públicas governamentais e muito menos nos cursos das universidades públicas. É nessa conjuntura que emerge a experiência do Cursinho do DCEUNICAMP/Gestão Identidade. Em meio às manifestações pelo “Fora Collor”, os estudantes da UNICAMP se organizaram e construíram a primeira experiência de pré-vestibular alternativo no município de Campinas. Essa trajetória é relatada por Custódio (1999) e a nosso ver, com as assimilações das experiências que estavam por vir, foi um dos precursores do Movimento dos Sem Universidade - MSU3. Os Centros Acadêmicos da Universidade de São Paulo não deixaram por menos, principalmente depois da perspectiva democrática no 43º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1993, na capital do Estado de Goiás, ter sido derrotada. Foi uma grande frente que se articulava em torno da chapa “Movimento UNE Democrática” (MUDE). Tinham como princípios reverem as práticas dos dirigentes do movimento estudantil que ainda se encontravam encantados com o “ovo da serpente” representado pela gestão dos milhões de reais providos das carteiras estudantis que “garantem” o pagamento de meia-entrada em eventos culturais aos que as possuem independente da forma, infelizmente. A ausência de perspectivas com a entidade nacional de representação estudantil permitiu que centros e diretórios acadêmicos dos diversos cantões do país rediscutissem suas pautas e incluíssem nelas, alternativas para inserção nas listas dos aprovados nos exames vestibulares das universidades públicas do país um outro ator social, presente apenas nas estatísticas dos piores indicadores sociais e nos discursos de políticos demagogos. Para tanto, a tática escolhida foi o exemplo das experiências históricas (Cursinho da Poli, CAASO e da Filosofia) e das que iniciaram naquela conjuntura, no caso, o Cursinho do DCE-UNICAMP, criado na gestão IDENTIDADE, em 1992, e o Pré-Vestibular Para Negros e 3 Falaremos mais adiante sobre o MSU. 75 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... Carentes (PVNC) criado em 1993 na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, por religiosos, estudantes e lideranças populares locais. Esse processo incentivou outras experiências de Pré-Vestibulares Alternativos a partir da nova práxis de um setor do movimento estudantil e possibilitou que atualmente, praticamente todos os campi da UNESP tenha um PréVestibular Alternativo voltado (pelo menos em tese) às comunidades mais pobres das cidades e regiões em que essa universidade é abrigada.4. Fora do campo do movimento estudantil, mas articulado no interior da universidade pública, surgiu o Cursinho da Consciência Negra, organizado pelo Núcleo da Consciência Negra da USP. Ele foi criado a partir da necessidade de se discutir os porquês (?) da majoritária ausência do negro na universidade pública, ou quando sua presença se torna visível, é na realização de trabalhos “desprestigiados” socialmente. Assim, em 1987, uma articulação das entidades de representação da comunidade uspiana (DCE, SINTUSP e ADUSP) fundou o Núcleo da Consciência Negra da USP com o objetivo de ampliar a discussão sobre a questão do negro no espaço da Universidade de São Paulo. Quase dez anos depois, em 1996, o mesmo grupo criou o Cursinho do Núcleo da Consciência Negra, cujo objetivo central é contribuir na preparação de afro-brasileiros e egressos das escolas públicas que não tenham condições de custear um pré-vestibular comercial para o exame vestibular das universidades públicas. Continuando a trajetória dos pré-vestibulares alternativos e populares que se constituíram fora do espaço da universidade pública, temos a experiência da Educação para Negros e Carentes (EDUCAFRO); Ela se encontra como uma das mais bem sucedidas práticas de Cursinhos Alternativos associadas ao movimento popular. Foi na campanha da fraternidade promovida anualmente pela Igreja Católica, em 1988, com o tema do centenário da abolição da escravatura que surgiu a idéia de formar um pré-vestibular para negros e pobres em geral. A Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) passou a incentivar a formação de agentes de pastoral negros. Nessa discussão apareceu a questão do acesso à universidade e da representação da comunidade negra nos bancos das universidades públicas do país (CASTRO, 2005, p. 49). Vale esclarecer que os Cursinhos “da” UNESP estão institucionais, o que não significa estar fora do raciocínio histórico da trajetória dos Cursinhos Alternativos e Populares. Trata-se, pois da prática de uma das atividades fins da universidade pública, ou seja, extensão universitária. 4 76 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... Estava posto o desafio da construção de um projeto de educação popular que viabilizasse o acesso da comunidade negra e de outros setores de baixa renda ao ensino superior gratuito: um projeto que apontasse para a superação das desigualdades e contribuísse para a aquisição de capitais culturais suficientes para a aprovação nos exames vestibulares. Tal perspectiva materializou-se na EDUCAFRO, que surgiu na Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, em meio ao mesmo processo do Pré-Vestibular Para Negros e Carentes (PVNC). Na cidade de São Paulo, a EDUCAFRO encontrou terreno fértil na tradição dos movimentos sociais ligados à Igreja e no Movimento Negro Paulistano. A partir de 1994, a organização foi acolhida pelos frades franciscanos que, na fala de Frei David, coordenador geral da EDUCAFRO, “foi um gesto político de solidariedade e opção pelos excluídos do sistema público de ensino” (DAVID, 2004). Atualmente, os núcleos da EDUCAFRO encontram-se territorializados em todas as regiões da grande São Paulo. O mapa a seguir expressa a receptividade das comunidades mais empobrecidas do município de São Paulo em acolher os diálogos que podem pôr fim, ou ao menos amenizar suas histórias de exclusões sociais. Percebe-se que os núcleos da EDUCAFRO se encontram majoritariamente na periférica da cidade e nos bairros que compõem o centro da cidade e se tornaram lugares insalubres devido à ausência de políticas de reestruturação urbana. A transmissão das experiências vividas nos cursinhos dos diversos campi das universidades públicas do país contribuiu para que tais vivências fossem reconstruídas fora dos muros daquelas universidades. Isso foi possível com a colaboração de atores que usufruíram dos projetos desenvolvidos pelo movimento estudantil e pelas extensões universitárias e que ingressaram na universidade pública. Posteriormente, levaram para seus espaços do cotidiano a alternativa de se construir um pré-vestibular popular e ao mesmo tempo, se transformaram em sujeitos sociais e agentes locais. Assim, o lugar da luta pelo acesso ao ensino superior gratuito chega pela primeira vez na história do Brasil à periferia dos grandes centros urbanos do país. Em Campinas, isso se transformou em realidade na Associação dos Moradores da Vila União, onde foi criado o Cursinho Hebert de Souza, a partir das experiências dos Cursinhos do DCE da UNICAMP e da Moradia Estudantil da UNICAMP (CUSTÓDIO, 1999). 77 78 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 Em Presidente Prudente, os dois projetos populares de prévestibular estão associados ao pioneirismo do Cursinho “Ideal” da UNESP5, e com as práticas dos estudantes da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP (FCT-UNESP) e lideranças populares ligadas à Igreja Católica. O primeiro, surgiu em 2003 e foi resultado de pelo menos dois anos de diálogos entre atores ligados a UNESP (alunos e professores), gestores da UNESP e lideranças da Comunidade São Pedro, na Vila Líder, Presidente Prudente; funcionou apenas durante o segundo semestre do ano em que foi criado e teve uma boa aceitação e participação popular. No entanto, faltaram empenho e vontade política das lideranças locais para que o projeto continuasse no ano seguinte. Em 2004, calouros da FCT-UNESP se empenharam num processo de rearticulação do movimento estudantil local. Eram majoritariamente alunos do curso de Geografia, mas o fato mais interessante foi que a maior parte daqueles atores se prepararam para o exame vestibular em Cursinhos Alternativos e Populares e levaram para o espaço da FCT a voz e a pauta da periferia. A primeira por meio do Rapp e Hip-Hopp; a segunda, por meio de eventos que há tempos não estavam na pauta do movimento estudantil local, como por exemplo, a questão racial e a aglutinação de pessoas por meio da criação de um cineclube. Durante o ano seguinte, o tal grupo se consolidou e em parceria com o Movimento Negro e a Cúria Diocesana do município construíram um projeto político, até agora, o mais importante da atual geração dos estudantes da FCT-UNESP. Trata-se do Cursinho Popular Rosa Luxemburgo, que desenvolve suas atividades em uma sala cedida na Cúria Diocesana de Presidente Prudente. Foi durante o ano de 2001 que despontou no cenário político nacional o Movimento dos Sem Universidade – MSU. É originário do acúmulo de pelo menos dez anos dos atores que militam no campo dos Cursinhos Alternativos e Populares. No entanto, suas práticas superam e muito as dos milhares de Cursinhos deste campo. Sua intensa relação com os movimentos populares e a clareza com que afirma ser os Cursinhos apenas um meio para aglutinar os descontentes com as regras de acesso ao ensino superior e, não um fim para por abaixo as “cercas” das instituições públicas de ensino superior6 que impedem a universidade pública de ser uma instituição verdadeiramente democrática. Sua inspiração é oriunda da 5 Sobre o Cursinho Ideal da UNESP, ver CASTRO, 2002. 6 Para saber mais sobre o Movimento dos Sem Universidade ver Castro, 2005. Acesse também www. msu.org.br. 79 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST. O nome que carrega é uma alusão à fala do Bispo de São Felix do Araguaia-MT quando homenageado com o título de doutor honóris causa na Universidade de Campinas. Durante o evento, D. Pedro convocou os despossuidos do Brasil à luta para acabar com esse Brasil “dos Sem Terras, Sem Tetos, Sem Universidades...”. O MSU está entre os grandes movimentos sociais do Brasil. A riqueza e legitimidade da sua pauta e a coerência com que a reivindica, o lançou no cenário nacional. Protagonista do lema “menos presídios e mais universidades”, o MSU comandou a luta pela construção da universidade popular de São Paulo no espaço onde funcionava o pavilhão nove do presídio do Carandiru. Para o movimento, uma universidade naquele lugar tinha um valor simbólico, pois seria a possibilidade de plantar esperança num lugar em que a desesperança e a falta de perspectiva reinaram durante décadas. No mais, a luta contra a implosão do pavilhão nove, se tratou de uma luta pela inclusão social e ao mesmo tempo pela preservação da memória da cidade e deram ao MSU espaço em noticiários internacionais. Por último, também é justo debitar na conta do MSU a política de bolsas públicas nas universidades privadas, o PROUNI. Em meados do ano de 2003, o MSU comandou uma manifestação que teve como título: “Filantropia ou Pilantropia? O povo quer saber”. Foi a primeira vez que se contestou publicamente o status de filantropia das organizações particulares de ensino superior. Segundo a Constituição Federal elas devem reverter 30% do valor dos impostos federais não-pagos, em razão da filantropia, em benefícios sociais; isso nunca aconteceu. Ao mesmo tempo não há força política suficiente que permita rever aquela lei. Posto isso, o MSU sugeriu ao governo uma política para transformar os valores não revertidos em benefícios sociais pelas universidades privadas, exigido pela lei da filantropia, em bolsas públicas nas faculdades e universidades privadas. Portanto, ao contrário do discurso que se viu corrente, principalmente no interior das universidades públicas, o PROUNI se diferencia e muito do que foi o PROER. Enquanto o primeiro, por meio de uma engenharia política, resgata o fundo público surrupiado por detrás de leis caducas e incluí milhares no ensino superior, o segundo onerou os cofres públicos liberando milhões de dólares para alimentar o sistema financeiro nacional e internacional.. Outra importante trincheira ocupada pelo MSU é uma antiga reivindicação do movimento negro e dos estudantes da escola pública. Trata-se das cotas nas instituições de ensino superior pública para afro- 80 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 brasileiros e estudantes de escolas públicas. Esse debate tem sido travado com muita intensidade nos últimos cinco anos no Brasil e foi assumido pela EDUCAFRO, pelo PVNC e pelo MSU. No entanto, o mais importante é que o debate sobre as cotas foi recolocado de forma qualitativa na pauta da sociedade brasileira justamente pela ação dos movimentos sociais de luta pelo acesso ao ensino superior. Eles souberam transformar em ação os anseios da imensa massa que, nos últimos quinze anos, fez parte das estatísticas da universalização do ensino médio e se encontra ansiosa por uma vaga na universidade pública... 2 - A QUESTÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA GEOGRAFIA Há quase três décadas se consolidava o mais importante e radical movimento que a Geografia brasileira construiu até o momento. Importante, pois colocou o Homem (ser social) no centro de suas preocupações. Radical, no sentido etimológico do termo e que nos remete novamente à questão da centralidade do homem como objeto em qualquer atividade que produza conhecimento, seja científico ou não, mas ao se tratar de conhecimento científico (que é conhecimento humano), há o recorte que diferencia uma ciência das outras, permitindo análises particulares sobre os mesmos objetos. No caso da Geografia esse recorte é o espacial. A preocupação da Geografia brasileira com os estudos dos movimentos sociais é um fato recente. Suas causas datam em torno de aproximadamente trinta anos, e foi fruto do processo que culminou na renovação da Geografia brasileira iniciada em meados dos anos de 1970. Segundo Bernardo Mançano Fernandes: “[...] uma referência é o trabalho de Oliveira (1991, p.9), que registra os estudos de Orlando Valverde e Manuel Correa de Andrade a respeito da questão agrária e dos movimentos camponeses nas décadas de 1950 e 60. Ainda assim, desde a década de 1980 vem crescendo o número de estudos geográficos a respeito dos movimentos sociais. São várias teses e dissertações em Geografia referentes a esse tema” (Fernandes, 2000, p. 60 e 2001, p.50). Isso talvez justifique a interpretação de Pedon (2004) sobre a posição do filósofo François Dosse em seu livro “A história do estruturalismo”, no segundo volume, expressa no título do capítulo 81 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... dedicado à Geografia: “A Geografia, essa convidada de última hora” (SPOSITO, 2004, p. 9). Para Pedon (2004, p. 99), o fato que “enquanto as outras ciências estão preocupadas com as correções epistemológicas, buscando se atrelar às atualizações teóricas, a Geografia reluta em incorporar novas formulações e perspectivas”, e em seguida, afirma: “sim, seu pescoço estaria sempre voltado para trás” (PEDON, 2004, p. 100). Embora o tema dos movimentos sociais tenha passado a incomodar os geógrafos brasileiros nos idos dos anos de 1970, seria coerente associar a crítica de Dosse ao recente interesse da Geografia pela análise dos movimentos sociais como sugere Pedon? Se a resposta for afirmativa, também não estariam os pescoços voltados para trás as ciências sociais que não conseguem incorporar em suas análises a problemática do espaço, indissociável da categoria tempo? Na verdade, em nosso modo de ver, a contribuição de Dosse se refere muito mais às diferentes temporalidades e peculiaridades da aquisição do status científico das disciplinas a que às opções de investigações que estão sempre postas nos espaços e tempos dos homens, visíveis ou não às lentes dos pesquisadores. Por isso, enxergamos com ressalvas a abordagem de Pedon (2004) por compreender ser fruto dos que reproduzem e aceitam passivamente o mito da superioridade entre as ciências por meio do estabelecimento de supostas hierarquias ou “atrasos”. Ora, o tempo das coisas é desigual e o conhecimento, acumulativo. O conhecimento acumulado sobre os movimentos sociais por meio das diversas análises de diferentes campos do saber foram os ombros onde pesquisadores da Geografia se apoiaram para construírem análises geográficas sobre os movimentos sociais e ousarem nos esforços para produzirem conceitos, e por que não, categorias geográficas que permitam abordagens particulares sobre o tema em questão. A produção desses conceitos e categorias tem como ponto de partida as análises dos movimentos sociais a partir do significado do que o espaço e o território representam enquanto elementos particulares para a pesquisa em Geografia e ao mesmo tempo como expressões do significado que eles têm (ou passam a ter) para os sujeitos que operam e atuam nos movimentos sociais. Dentro dessas perspectivas surgiram vários trabalhos que abordaram os movimentos sociais através da Geografia. Muitos deles, analisando a ação dos movimentos sociais que lutam pelo acesso a terra e 82 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 pela reforma agrária no Brasil, entre os quais, destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Bernardo Mançano Fernandes estudou a formação do MST no Brasil por meio da análise de dois processos geográficos: o de espacialização e o de territorialização7. Tal reflexão suscitou no amadurecimento de questões já “ensaiadas” nos meados dos anos de 1990, publicada por Jean-Yves Martin em 1997. Naquele trabalho, o autor propõe o conceito de movimentos sócio-espaciais para aqueles movimentos que tem o espaço como trunfo: Contudo, mais do que um abstrato “espaço de cidadania”, o ponto comum desses movimentos é, simplesmente, a luta pelo direito ao espaço concreto: espaço de vida/ou que é sempre a sua base e seu trunfo, a atividade fundamental desses movimentos. É por esse fato que eles não são somente sociais, mas também espaciais, que podem ser denominados de movimentos sócio-espaciais (MARTIN, 1997, p. 32). Já no ano de 2002, Jean-Yves Martin chama de movimentos sócioespaciais “[...] todas as organizações, como partidos políticos e os sindicatos tradicionais, mais ou menos burocratizados [...]”, e de movimento sócio-territorial “[...] uma organização que tem a vontade e cria as capacidades de introduzir no espaço [...] verdadeiras mutações territoriais [...]”. Em outra publicação, Fernandes aponta para a necessidade de os geógrafos produzirem conceitos e categorias para a análise dos movimentos sociais sugerindo o conceito de movimento sócio-territorial aos movimentos que têm como trunfo o território (2001, p.52). Maria Franco García, na introdução da sua tese de doutorado, parte para uma instigante polêmica relativa à noção de movimento sócioterritorial proposta por Fernandes: “[...]parece-nos uma contradição em termos utilizar o conceito “movimento sócio-territorial”, já que, acaso o território não é uma entidade social? Se bem que nem todo movimento social é territorial, como por exemplo o antigo Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), hoje Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MCM-Brasil) entre outros, mas todo movimento territorial é social” (García, 2004, p. 16). 7 Cloves Alexandre de Castro – Cursinhos alternativos e populares: origens... Num primeiro momento, pensamos que nos cabe aqui uma pergunta fundamental: Qual o sentido de se pensar o espaço ou o território como um trunfo na analise dos movimentos sociais? Creio que ao pensálos como trunfos, atribuímos a eles importâncias fundamentais para as conquistas dos objetivos que estimulam a organização dos movimentos sociais, ou seja, significa que são primordiais para a vitória do movimento social. Nesse sentido, acaso existe movimentos sociais, lutas ou contramovimentos que não tenham no espaço ou no território os meios que possibilitam consolidar suas estratégias? Milton Santos (2005, p. 21) nos lembra que historicamente a geografia se interou mais pela forma do que pela formação das coisas, e em seguida adverte: Se a Geografia deseja interpretar o espaço humano como o fato histórico que ele é, somente a história da sociedade mundial aliada à sociedade local pode servir como fundamento da compreensão da realidade espacial e permitir a sua transformação a serviço do homem. Pois a História não se escreve fora do espaço e não há sociedade a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social (SANTOS, 2005, p. 22). Os Cursinhos Alternativos e Populares, as organizações que surgiram dessas vivências, como a EDUCAFRO, o MSU e o PVNC, são movimentos sociais de luta pelo acesso ao ensino superior público no Brasil, pois por meio de organização e luta produziram espaços viabilizadores de contestações às formas atuais de acesso às universidades públicas e à organização social na forma que a tem sido, e ao mesmo tempo e lugar, articulam a preparação das comunidades pobres para o exame vestibular nos moldes que o próprio movimento critica. Atualmente, apenas na Grande São Paulo, existe mais de 300 prévestibulares popular. Cada um deles com suas espacialidades acumuladas pelas suas histórias próprias e dos lugares onde se localizam. No entanto, as agendas do acesso ao ensino superior os unificam seja em torno do Fórum dos Cursinhos do Município de São Paulo, da EDUCAFRO, e/ou do MSU. Estes operam o movimento articulando as escalas produzidas em cada uma das experiências vividas, partilhadas entre os pré-vestibulares populares, e também, produzem escalas políticas no momento em que operam as táticas para viabilizar a agenda do movimento nos níveis do poder. E isso, os fazem movimentos territoriais. Ver Fernandes, 2000. 83 84 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 69-86 Referências Bibliográficas BACCHETTO, João Galvão. Cursinhos pré-vestibulares alternativos no município de São Paulo (1991-2001): A luta pela igualdade no acesso ao ensino superior. 2003. 159f. Dissertação de Mestrado em Educação. Faculdade de Educação da USP. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. – 17º ed. – Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, 184p. ______& BETTO, Frei. Essa Escola Chamada Vida: Entrevista ao repórter Ricardo Kotscho. – 6º. Ed. - São Paulo: Ática, 1991, 95p. BEISIEGEL, Celso Rui. 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[email protected] Resumo: Com a implementação de um amplo conjunto de políticas neoliberais na economia brasileira, a partir da década de 1990, sob o governo Collor e nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, chegou ao fim o movimento histórico de formalização das relações de trabalho no Brasil, além do desencadeamento de transformações profundas na estrutura produtiva e econômica nacional. Num contexto de abertura comercial e financeira indiscriminada, de altas taxas de juros, de valorização das importações, de desmonte do Estado Nacional e de manutenção do câmbio sobrevalorizado, assistiu-se a explosão do desemprego sem precedentes na história do país, da precarização das condições e relações e trabalho e da informalidade do trabalho. Mesmo com a posse de um governo dito “popular”, sob a liderança do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, com a continuidade do processo de assalariamento verificado a partir do ano 2000, permaneceram os problemas históricos do mercado de trabalho nacional, apontando para a emergência de transformações na luta e na representatividade sindical e política dos trabalhadores, além da necessidade de criação de novas formas de (re) inserção e permanência no mercado de trabalho para amplas camadas de trabalhadores diante da adoção dos preceitos da reestruturação produtiva do capital no Brasil. Palavras-chave: Desemprego; informalidade; precarização do trabalho; instabilidade do emprego formal. NEOLIBERALISMO AND MARKET OF WORK IN BRAZIL UNEMPLOYMENT AND PRECARIOUSNESS OF THE WORK IN THE YEARS OF 1990 AND HIGH INSTABILITY ROTATION OF THE FORMAL JOB UNDER THE LULA GOVERNMENT. Abstract: With the implementation of an ample neoliberal set of politics in the Brazilian economy, from the decade of 1990, under the Collor government and in the two mandates of president Fernando Henrique Cardoso, arrived the end of the historical movement of formalizes of the relations of work in Brazil, beyond the desencadeamento of deep transformations in national the productive and economic structure. In a context of indiscriminate commercial and financial opening, high taxes of interests, valuation of importing, of dismounting of the national state and maintenance of the sobrevalorizado exchange, attended explosion to it of the unemployment without precedent in the history of the country, of precariousness of the conditions and relation of work and of the informality work the same with the ownership of a said government " popular ", under the leadership of the president Ignacio Luis Lula Silva, with the continuity of the process of assalariamento verified from not the 2000, had remained the historical problems of the market of national work, pointed with respect to the emergency of transformations in the fight and the syndicalism representation and politics of the workers, beyond the necessity of creation of new forms of (reverse speed) insertion and permanence in the work market with respect to ample layers of workers ahead of the adoption of the rules of productive reorganization of the Brazil capital. Key words: unemployment; informality; precariousness of the work; instability of the formal job. Introdução A década de 1990, no bojo de uma ampla abertura comercial e financeira indiscriminada, da manutenção artificial do câmbio, de taxas de juros elevadas e de um movimento de desmonte do Estado nacional, segundo os preceitos do Consenso de Washington, além de uma política de valorização das importações, foi marcada pelo redirecionamento da base produtiva e econômica nacional (estruturada desde a década de 1930, com base na industrialização substitutiva de importações e conformada por políticas desenvolvimentistas estatais) e pelo processo de desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, que já sofrerá transformações significativas com as oscilações econômicas da década de 1980, apresentando elevação das taxas de desemprego, precarização das condições e relações de trabalho e altas taxas de informalidade do trabalho. 88 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 Com a adoção do receituário neoliberal, implementado pelo governo de Fernando Collor de Mello e aprofundado nos dois governos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, principalmente com a criação e aplicação do Plano Real, em 1994, as transformações estruturais do capital, iniciadas a partir da crise do fordismo na década de 1970 (permeadas pela retomada da globalização econômica e financeira, pela consolidação das políticas neoliberais diante da crise do Estado-de-bemestar-social e pela aplicação dos preceitos da Terceira Revolução Tecnológica na produção, ensejando a adoção de métodos flexíveis de acumulação de capital) foram desencadeadas na economia brasileira, configurando também a crise do mundo do trabalho no Brasil, com a explosão do desemprego e da informalidade do trabalho. Não obstante verificar-se a recuperação do assalariamento formal no mercado de trabalho brasileiro a partir de 2000, resultado de mudanças no regime cambial e da retomada das exportações vinculadas ao setor primário da economia, permaneceram os problemas históricos do mercado de trabalho formal no Brasil, mesmo com a posse do Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, tendo como referência a formação de um governo popular, com a manutenção de altas taxas de desemprego, da precarização das condições e relações de trabalho, da informalidade do trabalho e da instabilidade para os trabalhadores formais, colocando desafios para a classe trabalhadora, tais como a necessidade de renovação nas formas de luta e representatividade sindical e da necessidade de criação de novas formas de (re) inserção e permanência no mercado de trabalho tornado mais competitivo ainda neste início de século XXI. Governo Collor e FHC – neoliberalismo e desestruturação do mercado de trabalho brasileiro ao longo da década de 1990. O processo de desestruturação do mercado de trabalho ao longo da década de 1990 e parte da década de 1980 deixaram marcas profundas na estrutura social do país, aprofundando os problemas sociais históricos: bastou pouco mais de uma década para se destruir toda uma história de estruturação e formalização das relações de trabalho no Brasil, constituindo-se um cenário caracterizado pela explosão do desemprego em massa e pela informalização das relações de trabalho, além do surgimento de formas precárias de ocupação e da ampliação das desigualdades de rendimento entre os trabalhadores, mesmo diante da recuperação do 89 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... assalariamento formal verificado nos dois últimos anos do segundo Governo Fernando Henrique Cardoso. Dessa forma, a partir do Governo do Presidente Fernando Collor de Mello, no bojo do processo de redemocratização política no Brasil e das primeiras eleições presidenciais diretas, foi posto em marcha um conjunto de medidas liberalizantes para dar conta da crise econômica dos anos de 1980 (quando se tentou, sem sucesso, um ajuste pelo viés da modificação do nível de remuneração do trabalhador, já representando sinais de precarização do trabalho e de aumento dos índices de desemprego), subjacente ao discurso direcionado para a necessidade da modernização da economia brasileira como forma de inserção do país no grupo dos países desenvolvidos. Nesse sentido optou-se por um ajuste macroeconômico pelo viés do mercado, através da redução da intervenção estatal na economia e pelo estabelecimento da livre-concorrência como principio norteador das relações sociais e econômicas, permeadas pela adoção do ideário neoliberal, expresso na desregulação da concorrência no mercado mundial e na globalização financeira internacional. Com base num conjunto de propostas elaboradas pelo Banco Mundial em Washington (o Consenso de Washington) e direcionadas aos países periféricos do capitalismo mundial, a partir de um amplo conjunto de medidas macroeconômicas tais como a redução do Estado, a liberalização de mercados e a desregulamentação financeira, Collor promoveu a abertura comercial e financeira indiscriminada da economia brasileira, com a eliminação das barreiras não-tarifárias, a abolição das restrições à importação de determinados bens e a rápida redução de tarifas, além da ampliação da mobilidade dos fluxos de capitais no mercado financeiro, conformando uma reestruturação do padrão de crescimento econômico iniciado na década de 1930 e engendrando a desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, que já apresentava forte estagnação do emprego formal, ampliação das taxas de desemprego e aumento da informalidade, desencadeadas durante as oscilações nos ciclos econômicos da década de 1980. Como resultado da aplicação desse conjunto de políticas macroeconômicas, por um lado, aprofundou-se o comportamento negativo da economia e verificou-se o início de uma forte recessão econômica, com a redução do PIB em torno de 4% no ano de 1990, além do desempenho negativo do setor industrial, que apresentou redução de 7,4% do PIB no ano de 1990, mantendo-se estagnado no ano seguinte (DEDECCA; BRANDÃO, 1993). Nesse cenário recessivo, as taxas de 90 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 desemprego passaram a apresentar ampliações significativas e o tempo de procura por trabalho aumentou consideravelmente, tornando ainda mais difícil a possibilidade de reemprego (estabelecida com a recuperação econômica a partir de 1984) para amplas camadas de trabalhadores ao longo da década. Por outro lado, assistiu-se a deterioração dos rendimentos dos trabalhadores, engendrada pela política salarial adotada pelo governo Collor, pelas reduções expressivas nos níveis de emprego formal, com a perda de combatividade dos sindicatos nas negociações salariais (setoriais ou por empresas) e, pela adoção, por parte das empresas, de “processos de reorganização de suas estruturas ocupacionais e salariais, derivados de uma reestruturação produtiva provocada pela recessão e/ou pelos novos padrões tecnológico e organizacional, associados ao processo de gestação de uma nova divisão internacional do trabalho” (DEDECCA; BRANDÃO, 1993, p. 336). Além da liberação comercial e da desregulação financeira, num cenário caracterizado pela recessão econômica, a reforma do Estado foi desencadeada a partir do governo Collor (como parte substancial do receituário neoliberal implementado no país), através do encolhimento do setor público com as privatizações e o fechamento de empresas, consubstanciando a demissão de milhares de funcionários públicos, paralelamente a destruição de postos de trabalho no setor formal da economia, que “contabilizou o corte de 2,2 milhões de postos regulares somente nos anos de 1990/92 em todo o país” (POCHMANN, 1999, p. 88). Esse conjunto de políticas neoliberais implementadas no Governo Collor, segundo Alves (2000), além de determinar um cenário econômico nacional caracterizado pela recessão, pelo crescente desemprego na indústria e pelo predomínio da racionalização predatória de custos nas empresas, principalmente através da redução de custos com a mão-de-obra empregada, criaram as condições macroeconômicas para o sucesso do plano de estabilização monetária do Governo Fernando Henrique Cardoso e para a consolidação do processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil. Com a crise política que se abateu sobre o Governo do Presidente Fernando Collor de Mello, houve um relativo refluxo no processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, sendo revigorado com a aplicação do Plano Real, em 1994, no primeiro Governo de Fernando Henrique Cardoso, através da consolidação da abertura comercial e 91 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... financeira, articulada a adoção de um conjunto de políticas econômicas permeadas, principalmente, pela sobrevalorização cambial e a ancoragem do real ao dólar (como forma de financiar a economia brasileira, num contexto de liquidez financeira internacional) e pelos juros elevados (para atrair o capital financeiro internacional, altamente especulativo e volátil), tendo como corolário uma profunda desestruturação produtiva, com sucessivos desequilíbrios nas contas públicas nacionais, além do aumento do déficit comercial e do saldo negativo em transações correntes, já que de um superávit de cerca de 10,5 bilhões de dólares no final de 1994, passou-se para um déficit acima de 6 bilhões de dólares no final da década de 1990 (MATTOSO, 2000), devido sobretudo ao aumento das importações que já apresentavam significativo crescimento nos governos Collor e Itamar Franco. Com a implantação do Plano de Estabilização Monetária pelo Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, as transformações neoliberais foram aprofundadas principalmente através da intensificação da reforma do Estado iniciada por Collor, conformada pela ampliação das privatizações, das concessões públicas ao capital privado e pelas reformas institucionais, tais como a Reforma da Previdência Social e a Reforma Administrativa. Não obstante a alienação de aproximadamente 75% do patrimônio público nacional, segundo Biondi (1999) e do discurso político que afirmava que as privatizações seriam necessárias para a geração de divisas para o pagamento dos juros e para a redução da dívida pública externa e interna (ressalte-se as privatizações da Companhia Vale do Rio Doce, da Companhia Siderúrgica Nacional, de importantes bancos públicos estaduais, tais como o Banespa e o Banerj, do sistema de telefonia fixa e móvel nacional e da Embratel, da indústria aeronáutica brasileira Embraer e as concessões de rodovias ao capital privado, com a instalação de pedágios que se espalharam pelo país, como marcas do aprofundamento do desmonte do Estado nacional), houve uma ampliação do endividamento estatal e um significativo aumento da dívida liquida do setor público, derivadas da política de juros elevados e do baixo crescimento econômico brasileiro. Dessa forma, a relação dívida/PIB, que era de aproximadamente 29%, no final de 1994, chegou a um patamar de 41% em 1998, atingindo cerca de 50% em meados de 1999 (MATTOSO, 2000). Com isso: (...) Supostamente para combater seu crescimento, mas efetivamente para assegurar o pagamento dos juros, o governo FHC lançou-se em sucessivos ajustes fiscais, cujo 92 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... único resultado foi o agravamento do desmonte do Estado nacional, com a deterioração dos serviços públicos e de sua capacidade de investimento, geração de emprego e crescimento (MATTOSO, 2000, p. 28). Para Biondi (1999), numa crítica ao processo de privatização do patrimônio público nacional desencadeado no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso, representando o desmonte do Estado nacional, as privatizações não contribuíram para a redução da dívida pública brasileira, pelo contrário, até contribuíram para aumentá-la (como demonstrado anteriormente), já que no processo de privatização o governo ficou com as dívidas das estatais privatizadas que deveriam ser pagas pelos compradores, como no caso da Companhia Siderúrgica Paulista, com o governo assumindo uma dívida de 1,5 bilhões de reais e da Companhia Siderúrgica Nacional que transferiu uma dívida de 1 bilhão de reais para o governo brasileiro, além de investir maciçamente nas empresas estatais antes das privatizações (nas empresas telefônicas o investimento foi de 21 bilhões de reais em dois anos e meio, por exemplo) e reajustar as tarifas e preços dos serviços públicos (para o autor esses reajustes variaram de 100% a até 500% antes das privatizações, com reajustes de última hora, como no caso das contas de energia elétrica no Rio de Janeiro que sofreram um aumento de 58% antes do leilão da estatal de energia Light). Houve também a transferência de compromissos financeiros dos fundos de pensão e de aposentadorias para o governo, como no caso da Fepasa, com o governo assumindo a responsabilidade pela folha de pagamento de aproximadamente 50 mil ferroviários aposentados. Com a venda das estatais o governo ficou com as dívidas e sem as fontes de lucros para pagá-las, dificultando dessa forma o equilíbrio das contas do Tesouro Nacional, pois as estatais sempre foram utilizadas para cobrir os rombos nas contas do governo e para financiar o desenvolvimento da economia nacional. Em 1998, com o agravamento da crise internacional e a redução dos fluxos de capitais no mercado financeiro internacional, derivado da volatilidade e do caráter especulativo desse tipo de capital, o governo assegurou a valorização artificial do real, garantindo a vitória nas eleições presidenciais e um segundo mandato para o Presidente Fernando Henrique Cardoso, direcionando o desempenho produtivo nacional para um baixo crescimento econômico que se transformaria em recessão econômica, com o PIB apresentando um dos piores desempenhos da década, com uma queda de 0,12%, menor apenas que o desempenho do PIB no período 93 recessivo de 1992, fazendo com que a década de 1990 apresentasse o pior resultado em termos de crescimento econômico do século XX. Nível real de atividade econômica - Brasil - Século XX 10 8,8 9 8 7,3 7 5,7 6 5 4,5 em % 4,3 4 4,3 3,7 5,1 7,1 6,1 5,3 2,9 3 2,2 2 1,5 1 0 1900-49 0 10 20 30 40 50-98 50-79 80-99 50 .60 70 80 90 Fonte: Dados 1900-1947, série Haddad; 1949-1999, dados IBGE; em 1999 considerou-se uma queda de 1% apud MATTOSO, 2000, p. 21. Num cenário macroeconômico caracterizado pela recessão, pela abertura comercial e financeira indiscriminada, sem a proteção de políticas industriais e agrícolas no mercado interno, com sobrevalorização cambial e juros elevados, além da reforma e da redução do papel do Estado nacional na formulação de políticas de desenvolvimento e do aumento da concorrência com produtos estrangeiros, através da importação de bens e serviços, conformou-se um baixo desempenho da economia nacional, com baixo investimento e sem a geração de empregos suficientes para assegurar a incorporação de cerca de 2 milhões de trabalhadores que ingressam todos os anos na População Economicamente Ativa (POCHMANN, 2006), representando também a ampliação do desemprego e a precarização das condições e relações de trabalho. Ao longo dos anos de 1990, sobretudo no período compreendido entre os anos de 1995 e 1998, houve redução na geração de empregos 94 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 formais em praticamente todos os anos, com uma concentração significativa na indústria de transformação e na construção civil. No total, foram destruídos cerca de 3,3 milhões de postos de trabalho na década, sendo 1,8 milhões a partir de 1995 (MATTOSO, 2000), após a implementação do Plano Real pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso. (....) Até maio de 1999 a indústria de transformação reduziu seus empregos formais na década em cerca de 1,6 milhões (cerca de 73% do que dispunha em 1989) e os subsetores mais atingidos foram os das indústrias têxtil (- 214 mil), metalúrgica (- 293 mil), mecânica (- 214 mil), química e produtos farmacêuticos (- 204 mil) e material de transporte (92 mil). A construção civil viu desaparecem cerca de 322 mil empregos formais. O comércio também foi duramente atingido (-294 mil). O setor financeiro reduziu sua mão-deobra em cerca de 354 mil. Apenas apresentou um comportamento positivo o heterogêneo subsetor Serviços, compreendido por alojamento, alimentação, reparação e diversos (cerca de 160mil) (MATTOSO, 2000, p. 18). A partir de 1999, como forma de gerar saldos comerciais positivos, houve um redirecionamento do regime cambial brasileiro, representando o aumento das exportações e uma redução significativa das importações. Entretanto, as modificações observadas no comércio externo foram direcionadas por uma especialização econômica e produtiva vinculada ao setor primário (papel e celulose, agrobusiness, siderurgia, processamento mineral e alumínio), com baixo valor agregado, pouco conteúdo tecnológico e não intensivo em mão-de-obra, não sendo suficiente para reverter o quadro de desemprego elevado e de redirecionar a base produtiva nacional para a recuperação dos empregos formais destruídos ao longo dos anos de 1990 (os resultados dessa modificação no regime cambial brasileiro seriam sentidos somente a partir de meados do ano 2000, com a relativa recuperação do assalariamento formal, como será destacado adiante). Dessa forma, na década de 1990, configurou-se a mais grave crise do emprego no mercado de trabalho nacional e a constituição do desemprego em massa, sem precedentes na história do Brasil, colocando o país, a partir de 1994, na quarta posição mundial em número de desempregados, atrás somente da Índia, Indonésia e Rússia (POCHMANN, 2006). Em maio de 1999, segundo pesquisa publicada pelo Datafolha, o desemprego atingia cerca de 10 milhões de trabalhadores 95 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... no país. No período compreendido entre os anos de 1992 e 2002, por exemplo, o índice de desemprego passou de 6,7% para 9,3% da PEA nacional, representando um aumento relativo de aproximadamente 40% na taxa de desemprego no mercado de trabalho brasileiro. Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e utilizando-se de outra metodologia, o IBGE divulgou, no ano de 2003, a taxa de desemprego aberto abrangendo cerca de 8,5 milhões de trabalhadores no Brasil, ou 4,8 vezes a taxa de desemprego observada em 1985, sendo que de cada cem trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho no período entre 1985 e 2005, apenas 82 conseguiram ocupação formal, portanto 18 ficaram desempregados. Para Pochmann (2006), a explicação para a ampliação e a generalização do desemprego para praticamente todos os segmentos sociais, estaria no baixo crescimento da economia brasileira nas últimas décadas do século XX, associada à adoção de medidas de cunho neoliberal, implementadas a partir de 1990 sob o governo Collor e, aprofundadas durante os dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, pois o avanço tecnológico no Brasil ficou circunscrito às grandes empresas internacionalizadas e sempre articulado a adoção de métodos de reorganização produtiva e do trabalho, tais como a reengenharia, a terceirização dos contratos e subcontratação de trabalhadores, a implementação da gestão participativa e da remuneração variável, entre outros exemplos de medidas reestruturantes nas grandes empresas localizadas no país. Acrescente-se ao conjunto das grandes empresas, o incremento tecnológico de base microeletrônica e informática, articuladas a processos de reorganização produtiva e do trabalho (tais como a instituição de programas de qualidade total, da remuneração variável do trabalhador, da contratação por tarefas e da terceirização de atividades), no setor financeiro, principalmente nos bancos, através da substituição do atendimento nas agências bancárias para o atendimento eletrônico, com a difusão dos caixas automáticos, das centrais telefônicas de atendimento, do telemarkenting na venda de produtos bancários (cartão de crédito, consórcios, empréstimos com desconto em folha, etc.), da Internet, da interligação do sistema bancário ao computador do cliente e da substituição do tradicional papel-dinheiro pelo cartão magnético, permitindo saques, depósitos, transferência de valores, pagamento de contas diretamente nos caixas automáticos, entre outras tarefas realizadas pelo próprio usuário, representando a redução do número de trabalhadores 96 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 bancários no país, que passou de aproximadamente 812 mil trabalhadores em janeiro de 1989, para 497 mil bancários em dezembro de 1996 (Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho apud www.dieese.org.br) e, a precarização das condições e relações de trabalho nos bancos, com a fragilização dos sindicatos da categoria e a redução do número de greves em todo o país. Ressalte-se também o enorme potencial de incorporação de novas tecnologias em inúmeros ramos associados ao heterogêneo setor de serviços e o enorme impacto que isso representaria sobre o mercado de trabalho e a eliminação de empregos formais, tais como o auto-serviço nos postos de combustível (reduzindo o número de frentistas empregados), a utilização de catracas eletrônicas no transporte coletivo urbano (com a possível eliminação do cobrador) ou a venda de passagens on-line no transporte rodoviário interestadual e no transporte aéreo, o sistema de compras on-line nas grandes redes de supermercados ou a adoção do sistema de auto-serviço, através da ampliação do uso do código de barras, entre outros exemplos da considerável possibilidade de incorporação tecnológica no setor produtivo de serviços e o potencial de desemprego subjacente. O aumento do desemprego no Brasil, por um lado, deve ser creditado, além das causas delineadas anteriormente, também a forma subordinada e passiva de inserção do país no processo de globalização econômica e financeira em curso, através da ampliação das importações de produtos e serviços que representou a exportação de cerca de 1,2 milhões de empregos, somente no setor industrial, nos anos de 1990, “dessa forma, a aquisição de bens e serviços importados contribuiu para a destruição de parcela significativa dos empregos internos e criação de parte dos postos de trabalho no exterior (Estados Unidos, Argentina, China, entre outros)” (POCHMANN, 2006, p. 70). As importações de equipamentos foram intensificadas, segundo Biondi (1999), sobretudo pelas privatizações das estatais brasileiras, já que as multinacionais passaram a controlar grande parte do patrimônio dessas empresas e a remeter dólares para suas matrizes no exterior ou passaram a utilizar equipamentos e componentes importados, agravando o movimento de saída de dólares do país, desequilibrando a balança de pagamentos e aumentando a dívida pública brasileira. Nesse sentido, alguns equipamentos de telefonia “chegaram a utilizar 97% de peças e componentes importados – e aparelhos celulares de algumas marcas chegaram a utilizar de 85% a 100% de peças vindas do exterior; isto é, são 97 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... apenas montados no país” (BIONDI, 1999, p. 16). Também se verificou o aumento do peso das telecomunicações no saldo negativo da balança comercial brasileira, no período de 1993 a 1998, já que “as compras da área de telecomunicações no exterior aumentaram dez vezes, 1.000%, de 280 milhões de dólares para 2,8 bilhões de dólares, deixando um déficit setorial de 2,5 bilhões de dólares” (BIONDI, 1999, p.17). Ressalte-se que a participação do capital estrangeiro na aquisição de estatais brasileiras foi possibilitada pela publicação do decreto presidencial de 24 de maio de 1997 que alterou a legislação que proibia o BNDES de financiar empresas estrangeiras na compra de estatais nacionais, pois até então ao Banco de Desenvolvimento cabia o financiamento de empresas nacionais através de um conjunto de políticas industriais de fomento a produção interna. Com isso, o capital estrangeiro passou a controlar grande parte das ações das ex-estatais, tais como o Grupo Santander no Banespa e a espanhola Telefonica em substituição a Telesp, em São Paulo. Como corolário dessa política de “estímulo” as privatizações e as importações, o faturamento de fabricantes brasileiros recuou, empresas nacionais quebraram e o desemprego aumentou devido ao saldo negativo na balança comercial e a ausência de políticas industriais de desenvolvimento econômico nacional e de proteção aos produtores internos. Por outro lado, as mudanças permeadas pela reforma do Estado e a redução de sua participação na formulação de políticas públicas de desenvolvimento econômico sustentável, com geração de emprego e renda, contribuíram para o aumento das taxas de desemprego, através da adoção de programas de demissão voluntária nas esferas públicas federais, estaduais e municipais, a demissão de funcionários públicos não estáveis, o fechamento e a privatização de empresas estatais, representando um saldo negativo de 2,5 milhões de postos de trabalho durante a primeira metade dos anos de 1990, no setor público, diante de um saldo positivo de 1,6 milhões de empregos públicos na década de 1980 (BIONDI, 1999). Ressalte-se também a não realização de concursos públicos para suprir a demanda por trabalhadores em vários setores estatais, diante das demissões voluntárias e das aposentadorias, com a deterioração dos serviços prestados à população, principalmente nas áreas de saúde, previdência social, segurança pública e educação. A estruturação de um cenário econômico marcado por forte ampliação do desemprego no mercado de trabalho brasileiro, apontou para a constituição do desemprego estrutural no período compreendido entre 98 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 os anos de 1993 e 1997, pois mesmo com a recuperação econômica da produção interna em torno de 23,4%, não houve a geração de empregos formais no período. Pelo contrário, observou-se a eliminação de empregos assalariados com carteira assinada (redução de 1,4%) e o aumento do desemprego em torno de 18,5% (POCHMANN, 2006), apontando para um cenário macroeconômico caracterizado pela possibilidade de crescimento econômico sem a correspondente geração de empregos na economia nacional. Na segunda metade do segundo Governo Fernando Henrique Cardoso, observou-se uma relativa recuperação do assalariamento formal, com todos os setores econômicos apresentando ampliação de empregos formais (no total foram 2.287.638 empregos criados no período ou uma variação relativa positiva de 11% no estoque total de empregos formais), com exceção da construção civil, que reduziu o estoque de empregos em 64.456 postos de trabalho ou uma redução relativa de 5,6% no estoque do setor. A recuperação do emprego formal foi alavancada principalmente pelo setor de serviços, com a criação de 1.182.396 empregos formais no período analisado, isto é, praticamente metade dos postos de trabalho criados entre janeiro de 2000 e dezembro de 2002, sendo que a maior variação relativa foi verificada no setor de comércio (16,4%), seguido pelos serviços (12,9%) e pela indústria (8,7%). Evolução e dinâmica do mercado de trabalho formal - Brasil janeiro de 2000 a dezembro de 2002. Indústria Comércio Serviços C. Civil Agrop. Out. Ign Totais Admitidos 6.476.326 6.636.845 10.806.426 3.201.951 2.695.613 14.993 29.832.154 Demitidos 6.015.201 5.968.307 9.624.030 3.266.407 2.662.367 8.204 27.544.516 Total 461.125 668.538 1.182.396 - 64.456 33.246 6.789 2.287.638 8,7% 16,4% 12,9% - 5,6% 3,32% - 11% 5.754.460 4.733.945 10.307.200 1.081.646 1.034.013 -945 22.910.319 Variação relativa Estoque dez/2002 Fonte: CAGED 2000-2002 disponível em http://www.mte.gov.br acesso em 06/2007. Elaboração e organização do autor. Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... regime cambial efetuadas em 1999, num contexto de crise de liquidez internacional e de fuga de capitais, fazendo com que o governo brasileiro tivesse de recorrer aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional nos anos de 1999, 2001 e 2003. Vale destacar que esses capitais especulativos e altamente voláteis financiavam o déficit externo e em conta corrente do Brasil desde 1994, com a implantação do Plano Real no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso. Esse processo de desvalorização da moeda nacional provocou alterações na política de comércio exterior, visando à geração de saldos comerciais, sobrevalorizando os setores exportadores, principalmente o agronegócio em expansão nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte do país (a soja e o milho são os produtos em destaque, representando cerca de 80% da produção de grãos no país). Com isso, o saldo comercial externo brasileiro, voltou a ser positivo em 2001, mantendo-se crescente nos anos seguintes, em virtude principalmente do envio de recursos internos para o exterior. Segundo Delgado (2005) esse movimento de recuperação da economia brasileira e do mercado de trabalho formal, foram financiados pela agricultura capitalista moderna (denominada de agronegócio pelos estudiosos da questão fundiária brasileira), já que, “sob o impulso da demanda externa, o produto agrícola tem crescido 4,8% entre 2000 e 2003, bem à frente do PIB geral que só cresceu 1,8%” (DELGADO, 2005, p. 48), ou seja, observa-se um crescimento econômico do agronegócio e de outros setores exportadores, sem encadeamento à demanda interna e sem a generalização do crescimento para todo o conjunto da economia, pois os outros setores produtivos são mantidos na recessão, buscando-se com isso assegurar metas inflacionárias, de acordo com os preceitos macroeconômicos adotados desde 1994, com a implantação do Plano Real. Mesmo com a recuperação da economia nacional e a ampliação dos empregos formais, entretanto, os problemas estruturais do mercado de trabalho foram mantidos, tais como a alta rotatividade da mão-de-obra empregada, os elevados índices de desemprego, a precarização das condições e relações de trabalho, a desigualdade de rendimentos entre os trabalhadores e a informalidade, como estratégia de sobrevivência dos trabalhadores diante da crise do emprego formal estabelecida no início da década de 1990, com a aplicação do receituário neoliberal pelo governo do Presidente Fernando Collor de Mello. A relativa recuperação do assalariamento formal no mercado de trabalho nacional entre os anos de 2000 e 2002, refletiu as modificações no 99 100 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 Governo Lula, trabalho e emprego – o desemprego e a rotatividade da mão-de-obra como fatores de ajuste estrutural do capitalismo brasileiro. Com a posse do novo Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, tendo como referencial a formação de um governo “popular”, configurou-se um conjunto de propostas de investimentos na área social, articuladas a manutenção do controle inflacionário e do plano de estabilização monetária do governo anterior. Com isso, tornou-se possível identificar um processo caracterizado por continuidades e descontinuidades no novo governo a partir de 2003. Descontinuidades, já que houve modificações significativas na condução da política externa e na área de comércio exterior, com a busca de novos parceiros comerciais (Índia, África do Sul e China), o fortalecimento do Mercosul e a reformulação dos termos em torno da implementação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), além da exigência de abertura comercial dos mercados agrícolas dos países desenvolvidos como salvaguarda para uma maior abertura da economia brasileira para os produtos manufaturados das economias avançadas, principalmente da União Européia. No que concerne à condução da política interna, o novo governo direcionou esforços para a implementação de medidas de cunho social, tais como as políticas sociais de combate à pobreza (o Programa Fome Zero) e a ampliação do Programa Bolsa Família para todo o país. Também, verificou-se a formulação de uma política de não-privatização do aparato estatal (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Petrobrás) e de recuperação do serviço público, com a realização de concursos para suprir as carências de servidores públicos em diversas áreas do governo federal. Continuidades, pois a política de estímulo às exportações foi mantida e até aprofundada pelo novo governo, através da forte desvalorização cambial, além da manutenção de taxas de juros elevadas (mesmo com o movimento gradual de queda dos juros básicos da economia, os juros reais permaneceram os mais altos do mundo) e de metas inflacionárias anuais, como forma de manter a estabilização monetária da economia brasileira. A manutenção de um superávit primário em torno de 4,25% do PIB constituiu-se um elemento imprescindível da política econômica do Governo do Presidente Lula, assegurando o pagamento dos juros da dívida pública brasileira e apontando para um cenário de baixo crescimento 101 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... econômico, com pouco investimento em infra-estrutura (modernização dos portos, aeroportos e recuperação da malha rodoviária federal), além do aumento da carga tributária (onerando a produção e, consequentemente inibindo o crescimento econômico e a geração de empregos) e da ausência de reformas estruturais no aparato estatal, como forma de assegurar o crescimento sustentado da economia brasileira. Portanto, o Governo Lula tem se caracterizado como um governo contraditório, apresentando um pólo de poder mais ligado a elaboração e aplicação de políticas de cunho social e um outro pólo de poder (hegemônico e dominante na condução das políticas mais significativas do governo Lula) articulado ao sistema financeiro internacional, promovendo a manutenção da política macro-econômica ditada pelo mercado e pelos institutos financeiros internacionais sediados em Washington (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial) e inaugurada pela implementação do Plano Real em 1994. Com isso, nos dizeres de Chossudovsky (1999), fazendo-se um paralelo com a realidade política brasileira, “nenhuma política alternativa é oferecida para os eleitores. Como em um Estado monopartidário, os resultados das urnas não têm virtualmente qualquer impacto sobre a real conduta da política econômica e social do Estado” (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 21), ou seja, as mudanças econômicas e sociais ficaram somente nas promessas de campanha e a busca pelo controle inflacionário, pelo ajuste fiscal e pela manutenção das políticas monetaristas, conformadas pelo ideário neoliberal, dá o tom do governo do Partido dos Trabalhadores desde 2003, em detrimento de um projeto de desenvolvimento econômico nacional independente, com geração de empregos e renda e da construção de um país mais justo e igualitário. Sader (2003), numa análise sobre o distanciamento do Partido dos Trabalhadores em relação à produção teórica e a intelectualidade nacional, rumo à institucionalização partidária (através da formulação de posições mais em função do debate político do que da produção teórica propriamente dita), ressalta que a vitória eleitoral de Lula em 2002 representou o fracasso das políticas de governo de Fernando Henrique Cardoso e da crise do bloco no poder. (....) Porém, o triunfo eleitoral de 2002 não foi resultante nem de um grande ciclo de mobilizações populares, nem de grandes construções teóricas ou políticas. Tanto que o Partido dos Trabalhadores chega ao governo sem dispor de uma alternativa para sair das políticas neoliberais – como Lula se havia proposto ( SADER, 2003, p. 16). 102 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 Nesse contexto, de continuidade política do ideário neoliberal na economia nacional, com algumas variações pouco significativas de investimentos na área social, o processo de recuperação do assalariamento formal, iniciado nos últimos anos do governo Fernando Henrique Cardoso, teve continuidade no novo governo, apresentando um saldo positivo de pouco mais de três milhões de empregos formais no período compreendido entre janeiro de 2003 e junho de 2006, com o setor de serviços mais uma vez gerando quase metade dos postos de trabalho, acompanhado da variação relativa positiva do setor agropecuário (em torno de 25%) e do comércio (16,7% a mais no estoque de empregos formais do setor). Evolução e dinâmica do mercado de trabalho formal – Brasil janeiro de 2003 a junho de 2006. Indústria Admitidos Demitidos Total 7.978.178 7.085.247 892.931 Comércio Serviços C. Civil Agrop. Out. Ign Totais 8.174.623 12.776.339 3.320.692 3.680.423 1.361 35.931.616 7.381.675 11.283.084 3.190.040 3.415.361 426 32.355.833 792.948 1.493.255 130.652 265.062 935 3.575.783 14.7% Variação relativa 15,5% 16,7% 14,4% 12% 25,6% - Estoque Junho/06 6.647.391 5.526.893 11.800.455 1.212.298 1.299.075 -10 26.486.102 Fonte: CAGED 2003–2006 disponível em http://www.mte.gov.br acesso em 06/2007. Elaboração e organização do autor. Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... Em primeiro lugar, as taxas de desemprego permaneceram elevadas, mesmo com a geração crescente de empregos formais no mercado de trabalho brasileiro, devido, sobretudo ao fato de os postos de trabalho criados não serem suficientes para suprir os empregos destruídos nas décadas anteriores e para absorver os quase 2 milhões de trabalhadores que passam a fazer parte da PEA todos os anos (POCHMANN, 2006). Com isso, em segundo lugar, a informalidade representa uma das poucas formas de inserção no mercado de trabalho para aproximadamente 53% dos trabalhadores ativos do Brasil, segundo o IBGE, configurando a precarização das condições de trabalho na economia nacional. Observa-se o aumento crescente do setor informal, principalmente através da ampliação do número de camelôs ou da criação e consolidação dos denominados “camelódromos”, que se espalharam pelas principais cidades brasileiras, sendo característica marcante mesmo de municípios pequenos e médios do interior do país. Em terceiro lugar se observa a continuidade do processo histórico de desigualdade de rendimento entre os trabalhadores, no tocante as relações de gênero e as diferenças de níveis de escolaridade. Assim, a remuneração do trabalhador aumenta de acordo com a elevação da escolaridade, configurando, no entanto, por mais paradoxal que seja uma maior diferenciação de rendimento entre os homens e as mulheres conforme aumenta o nível de escolaridade, pois no nível de escolaridade compreendido pelos analfabetos, as mulheres recebem em média 18% menos que os homens ou uma diferença salarial de R$ 84,93 centavos, sendo que essa diferença aumenta para 32% para as trabalhadoras com 8ª série completa, chegando a 35% no nível de escolaridade compreendido pelo grau superior completo de instrução ou uma diferença de remuneração de R$ 1.111,43 centavos entre ambos os sexos, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS – séries históricas) do Ministério do Trabalho. Todavia, mesmo com o aumento relativo de 14,7% no estoque total de empregos formais no período analisado, permaneceram os problemas estruturais e históricos do mercado de trabalho brasileiro, aprofundados ao longo das oscilações econômicas da década de 1980 e da implantação do neoliberalismo na década de 1990, tais como o desemprego elevado, a informalidade nas relações de trabalho, a precarização e a instabilidade no mercado de trabalho, a alta rotatividade da mão-de-obra empregada e as desigualdades de rendimentos entre os trabalhadores, no que tange as relações de gênero e ao grau de instrução da classe trabalhadora. 103 104 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 rotatividade é mais elevada no setor agropecuário (74,3%), seguido da construção civil (64,2%) e do comércio (31%), conforme pode ser observado no gráfico a seguir. Remuneração média, segundo gênero e grau de instrução - Brasil 2005 3500 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... Rotatividade dos trabalhadores por setor produtivo - Brasil 2004 3.243,25 3000 80,0% 2500 2.131,82 2000 1.877,67 1500 500 808,53 776,30 772,82 468,25 632,19 730,58 733,07 495,51 505,38 562,42 573,58 474,83 383,32 64% 50,0% 40,0% 0 30,0% o leta leto l e ta leta leto l e ta leto leto bet mp comp comp comp comp comp comp comp alfa o n c n n A i in u ie ie ior u in ie i 8ª gra sé r sé r rior uper gra sé r 2º 8ª 4ª pe S 2º 4ª Su Masculino 70,0% 60,0% 1.140,20 1.164,02 1000 74% 31,0% 25,3% 29,0% 22% 20,0% 10,0% Feminino Fonte: RAIS/2005 – MTE disponível em http://www.mte.gov.br acesso em 09/2007. Por fim, se de um lado a precarização das relações de trabalho se configura como uma marca indissolúvel dos trabalhadores informais, por outro lado, a instabilidade no emprego se constitui como característica marcante do mercado de trabalho formal no Brasil após o ajuste neoliberal da década de 1990, através da alta rotatividade da mão-de-obra empregada. Dessa forma, através da comparação da média de desligamentos (já que nem todos os trabalhadores são demitidos, sendo que muitos se aposentam, rescindem o contrato por conta própria ou até falecem no período que são empregados de determinada empresa) e admissões em relação ao estoque total de empregos formais, observa-se que a cada doze meses, de cada 100 trabalhadores empregados, pelo menos 29 trocaram de emprego ou ficaram desempregados no Brasil, no ano de 2004. Se compararmos o número de trabalhadores admitidos em relação aos trabalhadores desligados, no acumulado do ano, a rotatividade aumenta significativamente, representando cerca de 80% de instabilidade nos contratos de trabalho formais. No que concerne aos setores produtivos, a 105 0,0% Indústria Comércio Serviços C. Civil Agrop. Total Fonte: CAGED 2003 – junho de 2006 – disponível em http://www.mte.gov.br acesso em 09/2007. Elaboração e organização do autor. O mês de dezembro tem se tornado o símbolo da instabilidade e da rotatividade dos trabalhadores no mercado de trabalho brasileiro, apresentando saldos negativos elevados entre contratados e desligados (mesmo com o saldo positivo ao longo dos outros meses do ano), com a destruição de postos de trabalho em praticamente todos os setores de atividade, em todos os anos analisados, salvo exceção do comércio, devido, sobretudo a sazonalidade característica desse setor, com relação às festas de final de ano. Destarte, a elevada rotatividade da mão-de-obra empregada, tem se configurado como o principal instrumento de ajuste do capital diante da não flexibilização legal do trabalho no Brasil. Constituiu-se, dessa forma uma flexibilização real e brutal para amplas camadas de trabalhadores que ficam a mercê da lógica seletiva do mercado e sem proteção e estabilidade 106 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 no emprego, principalmente ao final de cada ano de atividade produtiva e de ajuste estrutural do capital. Se nas economias avanças do capitalismo mundial, esse ajuste estrutural se dá pela incorporação tecnológica ao processo produtivo e pelas modificações organizacionais na gestão da mão-de-obra empregada, permeadas pela adoção do sistema de acumulação flexível do ideário japonês, no Brasil, esse ajuste estrutural ocorre pela manutenção de altas taxas de desemprego e pela instabilidade no mercado de trabalho formal em amplos segmentos produtivos, através da alta rotatividade estabelecida para os trabalhadores empregados. Considerações finais Com a manutenção da crise do emprego formal, do desemprego elevado, da informalidade e da instabilidade no mercado de trabalho formal no Brasil, permeada pela alta rotatividade da mão-de-obra empregada, novos desafios são colocados para os trabalhadores, tais como a necessidade de formulação de novas formas de (re) inserção no mercado de trabalho formal ou a constante atualização e (re) qualificação profissional, diante da fluidez e da complexidade do mundo do trabalho atualmente, além do redirecionamento das formas de representatividade política e a formulação de novos instrumentos de luta diante do capital reestruturado e da competição brutal estabelecida no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas. Em primeiro lugar, a atual estrutura sindical está em descompasso com as transformações produtivas do capital e com a crise do mundo do trabalho, salvaguardando as especificidades brasileiras relativas à formalização das relações de trabalho no país. É preciso e necessário representar todos os trabalhadores, independentemente do tipo de vínculo empregatício que eles tenham, reformulando também o conceito de classe trabalhadora, como faz Antunes (2001) ao propor uma luta englobando toda a classe-que-vive-do-trabalho. Em segundo lugar, torna-se fundamental a organização dos trabalhadores antes da inserção dos mesmos no mercado de trabalho e não somente depois que eles estão empregados, através de um sindicalismo do tipo cooperativista e solidário, antecipando-se ao capital com a formação de cooperativas sindicais de trabalhadores, resgatando, assim os laços de pertencimento de classe e a união coletiva dos trabalhadores. 107 Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... A renovação das formas de luta dos trabalhadores, como terceiro ponto da discussão, se configura como condição sine qua non para o enfrentamento dos desafios colocados a classe trabalhadora nesse início de século XXI, com o estabelecimento de novas formas de greve, por exemplo, com a paralisação de setores públicos e privados essenciais para a acumulação de capital, com a exigência de mais e melhores empregos, a redução da jornada de trabalho, o retorno da estabilidade no emprego, etc., além da exploração das potencialidades da informática como nova forma de luta e de comunicação classista. O capital se tornou mais dinâmico e mais complexo nas últimas décadas e as formas de representatividade e de luta dos trabalhadores não foram renovadas, permanecendo os mesmos instrumentos de luta e organização do século passado. Em quarto lugar, é preciso incluir os trabalhadores informais na representatividade política e sindical. Ressalte-se que já existe um sindicato dos informais no Estado de São de Paulo, ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Não é isso o que se propõe aqui. Mais uma vez, não basta apenas organizar os trabalhadores, mas sim incluí-los na luta juntamente com os demais trabalhadores desempregados e, fundamentalmente, com os trabalhadores inseridos no mercado de trabalho formal, como forma de resgatar os sentimentos de pertencimento de classe social e da luta coletiva dos trabalhadores. No que concerne ao papel do Estado no processo de superação e resolução dos problemas sociais e econômicos relacionados ao desemprego que assola o país, a retomada da capacidade de investimento produtivo e infra-estrutural se faz necessária e urgente, no sentido de restabelecer a posição estratégica e essencial do Estado brasileiro na elaboração e liderança de um projeto de desenvolvimento econômico sustentável para a nação, com geração de emprego e distribuição de renda para toda a população brasileira, no bojo da substituição de um conjunto de políticas de cunho monetaristas para a reorientação das políticas públicas para um projeto desenvolvimentista e nacionalista para o Brasil. A redução das taxas de juros básicas da economia, a desvinculação da política econômica nacional das amarras das metas de controle inflacionário e do superávit primário para saldar os compromissos com os juros da dívida externa brasileira, além de uma ampla reforma no sistema tributário brasileiro, como forma de “desfinanceirizar” a economia e estimular o investimento produtivo, tornam-se urgentes para a retomada do desenvolvimento econômico e social, com geração de empregos, com registro em carteira e com todas as proteções que a legislação trabalhista 108 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 87-111 proporciona aos trabalhadores e para a superação da informalidade e da precarização das condições e relações de trabalho no mercado de trabalho brasileiro. Por fim, se deve estimular a formação de cooperativas solidárias de trabalhadores, explorando as potencialidades produtivas, turísticas e agrícolas locais e regionais, como forma de (re) inserção no mercado de trabalho, diante de taxas elevadas de desemprego, da instabilidade/precarização e da informalidade estabelecidas no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas do século XX e neste início de século XXI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Nildo Aparecido de Melo – Neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil... DELGADO, Guilherme C. A questão agrária no Brasil, 1950-2003. In: Questão agrária no Brasil: perspectiva histórica e configuração atual. São Paulo: INCRA, 2005. DIEESE – Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos SócioEconômicos. Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), In: www.dieese.org.br GONÇALVES, Wenceslau. Estado e Agricultura no Brasil: Política Agrícola e Modernização econômica brasileira 1960 - 1980. São Paulo: HUCITEC, 1997. pág. 141-225. 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Palavras-chaves: logística, competitividade, circulação, transportes. o da a de Logistics: Searching a Conception for a Geography Abstract: This assay aims at to supply a preliminary contribution to understanding of the circulation in the present time, through the conceptualization of logistics. With that, it will also be a reference to the movements of goods, consequently for the dynamics of flows in the direction of the fluidity. Keywords: logistics, competitiveness, circulation, transports. 1. Introdução Tudo se passa como se a economia dominante devesse, incansavelmente, entregar-se a uma busca desatinada de fluidez. Aqueles que reúnem as condições para subsistir, num mundo marcado por uma inovação galopante e uma concorrência selvagem são os mais velozes. Daí essa vontade de suprimir todo obstáculo à livre circulação das mercadorias, da informação e do dinheiro, a pretexto de garantir a livre-concorrência e assegurar a primazia do mercado, tornado um mercado global. (MILTON SANTOS, 1996, p.219). Nunca se falou tanto em logística no Brasil como na última década. Esta situação pode ser constatada pelo fato de empresas de setores Professor do Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, campus de Irati, líder do GESTER (Grupo de Estudos e Pesquisas para a Gestão Territorial) e Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP de Presidente Prudente, orientando do Prof. Dr. Eliseu Savério Sposito. Endereço: R. Nereu Ramos, 23. CEP: 84500-000. Irati-PR. E-mail: [email protected]. 1 relacionadas ao movimento de mercadorias se adaptarem ao imperativo da fluidez do mundo contemporâneo e também por empresas multinacionais do ramo se instalarem no país. Além desses fatores, existe uma maior consciência de que a precária infra-estrutura dificulta cada vez mais o escoamento de grãos, resultando no dito “Custo Brasil”. A intensificação das trocas e o aumento da circulação decorrem do processo de mundialização do capital em todo seu estatuto econômico, político e social, bem como do progresso das tecnologias, sobretudo àquelas que dotam a circulação de maior velocidade, como é o caso das tecnologias da informação e das comunicações (TIC). Com isso, há a possibilidade da existência de novos conteúdos nas relações de produção e de troca em relação aos períodos anteriores, em que as comunicações eram realizadas sem o aparato da informática. O aumento da capacidade informacional favorece o surgimento de um novo conteúdo técnico. Esta forma de atuação no espaço geográfico corrobora com as idéias de Raffestin em seu clássico “Por uma Geografia do Poder” (1993): “o ideal do poder é agir em tempo real”. O conteúdo da logística se modificou significativamente com o implemento das tecnologias da informação, fazendo dela, um elemento essencial para as empresas para a reprodução do capital e para a manutenção da competitividade. A logística praticamente submeteu o setor da produção a operar conforme a sua dinâmica sistemática, complexa e veloz. É fundamental pensar a logística como conseqüência do desenvolvimento técnico e científico, pois ela é uma técnica pensada cientificamente (em universidades e outras instituições de pesquisas). É uma técnica de planejamento vital para as empresas, todavia, a sua compreensão ainda é um tanto obscura a maioria dos geógrafos. Estes, por suas vezes, têm a visão de que a logística se resume ao planejamento da infra-estrutura de transportes e aos processos de reestruturação produtiva. A logística também é mais caracterizada por ser estudada principalmente por profissionais que visam à otimização das empresas a partir da criação de novas formas e novos métodos de organização empresarial, como é o caso principalmente dos profissionais em administração de empresas e engenheiros de produção, além de outros especialistas em logística. Nesse sentido é que se faz necessária uma definição de logística para a Geografia, para que esta possa colaborar no entendimento crítico das 114 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 novas formas de atuação no espaço geográfico pelas empresas, bem como as conseqüências desta atuação no mundo da mercadoria. Este artigo foi escrito a partir da dissertação de mestrado intitulada “Geografia de redes e da logística no transporte rodoviário de cargas: fluxos e mobilidade geográfica da capital”, portanto, maiores detalhes estão aí incluídos, tais como mapas, gráficos, tabelas, figuras e fotos2. 2. Logística: da arte da guerra à circulação do capital A logística possui uma etimologia muito interessante e o seu resgate visa o seu melhor desenvolvimento teórico. O intento também objetiva contribuir para uma Geografia da Circulação e dos Transportes e deixar inteligível em que esta pode contribuir para a discussão sobre a logística. O conceito surge para fins militares. Etimologicamente, buscou-se o étimo logis que em francês significa ‘alojamento’ e loger que significa ‘alojar, aquartelar, abarracar’, apesar de outros etimólogos verem no conceito, uma extensão do sentido original, ou seja, o sentido numérico dos cálculos, estimativas, estatísticas e antevisões quantitativas que a técnica militar requeria3. Segundo consta na Enciclopédia Mirador (1987, p.6983), “a primeira tentativa séria” de definição de logística foi elaborada pelo Barão Antoine Henri Jomini, principal teórico militar da primeira metade do século XIX, na obra intitulada Précis de l’art de la guerre, 1836. Nesta obra, o autor dividia a arte da guerra em cinco ramos: estratégia, grande tática, logística, engenharia e pequena tática. Segundo Jomini, logística era a “arte prática de movimentar os exércitos”4, abrangendo não somente as questões de transporte, mas também o trabalho de estado-maior, medidas administrativas e atividades de reconhecimento e de informação necessários para o deslocamento e a manutenção de forças militares organizadas. O vocábulo logística era derivado do posto de maréchal de logis, existente no exército francês nos séculos XVII e XVIII e ao qual correspondia, no exército prussiano, título de Quartermeister, competindo, a ambos, as atividades administrativas relativas aos deslocamentos das tropas Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... em campanha. O vocábulo logistics foi introduzido nos Estados Unidos pelo almirante Alfred Mahan somente na década de 1880, designando ainda o seu aspecto militar. Posterior a consolidação do vocábulo logística e seu conceito para utilização militar, várias foram as adaptações do termo para a circulação do capital elaboradas por acadêmicos. Para citar alguns dos mais importantes fatos: 2.1. O contexto de formação e formulação da logística científica e industrial O Pós-Segunda Guerra Mundial (1946-1973) foi um momento de grande crescimento do capitalismo e da idéia de eficácia para o sistema produtor de mercadorias. Esta é a era, denominada por Ernst Mandel (1982, p.188) de capitalismo tardio. Para o autor: A era do capitalismo tardio, com sua inovação tecnológica acelerada e a extensão maciça e concomitante do trabalho intelectualmente qualificado, conduz a contradição básica do modo de produção capitalista a seu mais alto grau. A socialização do trabalho é levada a sua mais extrema dimensão na medida em que o resultado total acumulado do desenvolvimento científico e técnico do conjunto da sociedade e da humanidade se torna cada vez mais a pré-condição imediata para cada Disp. em: <www.biblioteca.unesp.br/bibliotecadigital/document/?did=2526> A Mirador (1987, p.6983) aponta ainda, que há autores que lhe indicam como origem a palavra latina logista (grego), ‘recebedor, cobrador’, e que teria sido título designativo do encarregado dos assuntos administrativos nos exércitos romano e bizantino. 4 Grifo nosso. O termo ‘movimentação’ tem importância fundamental para a discussão conceitual sobre a logística e a Geografia. 2 3 115 1901 - A logística é examinada pela primeira vez sob o prisma acadêmico no início do século XX através de um artigo de John Crowell, no artigo Report of the Industrial Commission on the Distribution of Farm Products, tratando dos custos e fatores que afetavam a distribuição dos produtos agrícolas; 1912 - Arch Shaw em seu artigo An Approach to Business Problems aborda os aspectos estratégicos da logística; no mesmo ano, L.D.H. Weld introduziu os conceitos de utilidade de marketing (momento, lugar, posse) e de canais de distribuição. 1927 - Ralph Borsodi, em sua obra The Distribution Age define o termo logística conforme utilizado hoje. 1956 - artigo publicado pela Harvard Business School introduz o conceito de análise de custo total na área de logística. 116 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 processo particular de produção em cada esfera particular de produção. Tendo em vista a tese de Mandel, entende-se, neste artigo, que a logística emerge como condição necessária ao processo de produção. No início dos anos 1960 surge como disciplina científica com a implantação dos primeiros cursos de graduação em Logística nos Estados Unidos (na Universidade do Estado de Michigan e na Universidade do Estado de Ohio). Os cursos visavam a formação de "logisticians”. No mesmo período houve a criação do National Council of Physical Distribution Management, mais tarde mudado para Council of Logistics Management, primeira organização a congregar profissionais de logística em todas as áreas com o propósito de educação e treinamento. Esses fatos corroboram a tese de Ernst Mandel, pela logística se tratar também, de um elemento que bule um fator do sistema produtor de mercadorias: a competitividade. Com a implantação da logística (logistics em inglês) como disciplina acadêmica, a já encarniçada competitividade atinente ao capitalismo5 acabava de se tornar “sinônimo de guerra”, com estratégias específicas para a movimentação de mercadorias com uma gestão “em separado” da gestão da indústria. Ballou (1993, p.28) afirma que a prática moderna da logística configura nova disciplina. Isto não significa que não havia planejamento mínimo acerca das atividades essenciais de transporte, controle de estoques e processamento de pedidos, todavia, apenas recentemente passou a haver uma “filosofia integrativa” para estes processos6. Segundo o autor, até 1950 não havia nenhuma tendência em gerir a logística, cujas atividades chaves eram fragmentadas, ou seja, o transporte era encontrado freqüentemente sob a gerência da produção; os estoques ficavam por conta do marketing, produção ou finanças e o processamento de pedidos era controlado por finanças ou vendas, resultando em conflito de “objetivos e responsabilidades” para as atividades logísticas. Ballou (1993) destaca ainda, que o grande vulto das atividades logísticas militares da Segunda Guerra Mundial influenciou muito na formulação de muitos conceitos logísticos empresariais no período. Por volta de 1945, algumas empresas já haviam posto transporte e Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... armazenagem de produtos acabados sob um único gerente. As indústrias alimentícias foram pioneiras neste aspecto. Já no período de 1950 a 1970, segundo Ballou (1993), além das condições econômicas e tecnológicas do período, quatro “condiçõeschave” foram identificadas: alterações nos padrões e atitudes da demanda dos consumidores, pressão pela redução de custos nas indústrias, avanços na tecnologia da informação e influências da logística militar. Tomando o caso dos Estados Unidos, alterações nos padrões e atitudes da demanda dos consumidores se deram em função do crescimento e de uma maior concentração populacional nos grandes centros urbanos. Segundo Ballou (1993, p.30) Houve migração das áreas rurais com direção aos centros urbanos já estabelecidos. Isto em si poderia reduzir a distribuição pelo incremento de volumes movimentados para uma menor quantidade de centros de demanda. Ao mesmo tempo, populações começaram a migrar do centro das cidades para os subúrbios circundantes. Varejistas seguiram a população para os subúrbios com ponto de vendas adicionais. Servir com entregas uma maior área metropolitana e manter maiores estoques totais requeridos pelas filiais adicionais incrementaram o custo da distribuição. Além destes fatores, uma maior variedade de produtos passou a ser ofertada. “Os produtos proliferaram de poucos milhares de itens para 12000 nos grandes supermercados. Automóveis eram oferecidos em diversas cores, motores e tamanhos”. Variedade constitui maiores custos para o controle de estoques. “Se um produto é substituído por três para atender a mesma demanda, o nível de estoque para todos os produtos pode aumentar até 60%”. Segundo o autor (1993, p.30): Os padrões de distribuição em si começavam a mudar. Onde antes o varejista tipicamente carregava estoques substanciais – por exemplo, num bem estocado depósito (sic) nos fundos de uma mercearia – ele passou a manutenção do estoque para seu fornecedor ou para centrais de distribuição mais especializadas e, portanto, passou a demandar entregas mais freqüentes para ressuprimento. Isto aumentou a importância da distribuição, pois Sobre a competitividade e seu discurso ver Petrella (1996) que apresenta uma discussão mais aprofundada sobre o assunto. 6 Nesse sentido, entende-se, assim como Kobayashi (2000, p.17), a logística como sendo uma técnica e ao mesmo tempo uma ciência. 5 117 118 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 maiores níveis de inventário deviam ser administrados e, ao mesmo tempo, maior disponibilidade de estoque e entregas mais velozes deviam ser providenciadas. Nos Estados Unidos, por volta dos anos 1950, havia um ambiente econômico interessante para o fomento da logística. Segundo o autor (1993, p.31), houve um crescimento econômico substancial após a Segunda Guerra Mundial, seguido de recessão, que “tipicamente” forçam os capitalistas a procurar maneiras de melhorar a produtividade. Esta afirmação do autor é problemática, pois, é por demais reconhecido que o ano em que é marcada a entrada de uma forte recessão no capitalismo é 1973 (data simbólica). Dos anos 1950 aos anos recessivos da década de 1970 se foram pelo menos 20 anos, sendo que os anos 1960 foram os “anos dourados” do capitalismo. O autor se equivoca também, ao dizer que a recessão força os capitalistas a procurar maneiras de melhorar a produtividade, quando na realidade, muito pelo contrário, a recessão pode prejudicar a produtividade e o nível de inovação técnica e tecnológica. Uma hipótese razoável para o fomento da logística apreendemos em Rezende (1997, p.239), que afirma que o crescimento tecnológico que a Segunda Guerra Mundial incitou e a reorganização que sustentou, ligado à diminuição da eficácia do capital fixo, levou a um grande aumento da produção industrial que foi mais elevada que a capacidade global de consumo, o que requereu o estabelecimento de “sistemas de planejamento meticuloso e a longo prazo, e à emergência de novas técnicas de marketing e publicidade, a fim de aumentar a elasticidade da curva do consumo, com a predominância do setor de bens e serviços sobre a atividade econômica como um todo”. Assim, vemos que a diversificação de atividades e o abrupto crescimento do setor terciário, muito favoreceram o desenvolvimento da logística. Na análise do “capitalismo tardio”, Mandel (1982, p.182) elabora a tese de que a atividade científica somente é força produtiva se for incorporada à produção material. “No modo de produção capitalista isso significa: se fluir para a atividade de produção de mercadorias”. Assim, o autor analisa as relações entre educação, ciência e desenvolvimento tecnológico que ocorreu de forma acelerada entre os anos 1940 e início dos anos 1970, quando houve o desenvolvimento da microeletrônica, da informática e das tecnologias da informação de uma forma geral. O veloz crescimento de P&D gerou uma ampliação da demanda por força de trabalho intelectual altamente qualificada. A partir deste fato, é que o autor 119 Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... utiliza o termo “explosão da universidade”. A universidade vem acompanhada por uma grande oferta de candidatos à força de trabalho intelectualmente capacitada. O padrão distintivo desse crescimento do trabalho intelectual científico – obtido a partir do crescimento cumulativo do conhecimento científico, da pesquisa e do desenvolvimento e determinado em última análise pela inovação tecnológica acelerada – é a reunificação em larga medida das atividades intelectual e produtiva e o ingresso do trabalho intelectual na esfera da produção. Uma vez que esse reintrodução do trabalho intelectual no processo de produção, corresponde às necessidades imediatas da tecnologia do capitalismo tardio, a educação dos trabalhadores intelectuais deve, analogamente, subordinar-se de maneira estrita a essas necessidades. (...). A tarefa primordial da universidade não é mais a produção de homens “educados”, de discernimento e de qualificações – ideal que correspondia às necessidades do capitalismo de livre concorrência – mas da produção e circulação de mercadorias. (MANDEL, 1982, p.183) Já com relação à pressão por redução de custos nas indústrias, Ballou (1993, p.31) diz que os setores de produção já haviam sido bastante investigados e que estas atividades já encontravam limites à produtividade. A administração podia olhar para a logística como “a última fronteira para redução de custos nas empresas americanas”. Como incentivo adicional, começou-se a reconhecer que os custos logísticos eram substanciais. Em meados dos anos 50 [anos 1950], poucas firmas tinham uma idéia clara de quanto eram seus custos logísticos. Quando analistas iniciaram suas pesquisas, os níveis de custo mostraram-se surpreendentes. Se for considerada a economia como um todo (nos Estados Unidos), os custos logísticos podem ser estimados como 15% do produto nacional bruto. Se for retirado o valor do setor de serviços do PNB, estes seriam cerca de 23% do PNB entre produtos tangíveis. Destes custos, o transporte totaliza aproximadamente dois terços e o controle e manutenção de estoques toma o terço restante. Foi estimado por volta de 120 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 1973 que cerca de 19% da riqueza nacional estava investida em atividades logísticas. Com relação às empresas avalia que os custos logísticos variam de empresa para empresa. Assim, os custos logísticos para as seguintes indústrias são: petróleo, 43%; químicos, 39%; produção de alimentos e varejo em geral, 36%; papel, 30%; madeira, 26%; automóveis e materiais de construção, 20%; metalúrgica, 18%; utensílios, 17%; farmacêutica, 16%; máquinas, 12%; borracha, 11%; equipamentos elétricos e têxteis, 10%; vestuário, móveis e fumo, 8% e todas indústrias, 22,5%. Nota-se que os custos logísticos são substanciais, entretanto, como vimos enfocando, este reconhecimento começou a elevar-se durante as décadas de 1950 e 1960. Segundo Magee (1977, p.16): Em meados da década de 60, os administradores perceberam que a produção não é a única medida de progresso econômico, nem o único ingrediente necessário. É necessário que existam os sistemas e as instituições para levar o produto – tanto o agrícola como o industrial – às pessoas. Reconhece-se hoje que o sistema de distribuição, inclusive distribuição física, é um elemento básico para o desenvolvimento econômico. O período posterior a 1970, Ballou (1993, p.34) chama de “os anos de crescimento” e afirma que a logística adentra essa década em estágio de “semimaturidade”. Os princípios básicos estavam estabelecidos e algumas firmas estavam começando a colher os benefícios do seu uso. Retrospectivamente, a aceitação do campo transcorria vagarosamente, pois as empresas pareciam estar mais preocupadas com a geração de lucros do que com o controle de custos. Expansão de mercado muitas vezes mascara ineficiências tanto na produção quanto na distribuição. Entretanto, forças de mudança se acumulavam pouco antes desta década. A competição mundial nos bens manufaturados começou a crescer, ao mesmo tempo que falta matérias-primas de boa qualidade passou a ocorrer. Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... estagflação, controle de custos, produtividade e controle de qualidade passaram a ser cada vez mais interessantes, contudo, as funções logísticas foram mais afetadas do que as outras áreas das empresas. Os preços do petróleo afetaram diretamente os custos de transporte, ao mesmo tempo que a inflação e forças competitivas impulsionaram os custos de capital para cima e, portanto, os custos de manutenção de estoques. Com custos de combustíveis crescendo de 2 a 4% acima do custo de vida e juros preferenciais variando entre 10 e 20%, os assuntos logísticos tornaram-se relevantes para a alta administração. O autor afirma que desde então, os princípios e conceitos formulados durante anos de desenvolvimento passaram a ser utilizados amplamente até hoje. 3. Em busca do conceito de logística: da administração para a Geografia. Uma busca conceitual da logística não é usual na Geografia, desta forma, estabeleceremos uma proposta a partir das obras de autores ligados a outras áreas do conhecimento. Na obra intitulada “Logística Empresarial. Transportes, administração de materiais e distribuição física”, Ballou (1993, p.15) nos fornece pistas para o entendimento da logística, que para ele trata da “administração dos fluxos de bens e serviços”. Na mesma linha de raciocínio, Magee (1977, p.1) define logística industrial como sendo “a arte de administrar o fluxo de materiais e produtos, da fonte ao usuário”. Isto é muito significativo para o entendimento de que os fluxos não são apenas produzidos ou “criados” como estabeleceu Milton Santos (1996), mas também são controlados. Feita a consideração inicial, passemos às definições. Segundo Ballou (1993, p.24) a logística: Trata de todas as atividades de movimentação e armazenagem, que facilitam o fluxo de produtos desde o ponto de aquisição da matéria-prima até o ponto de consumo final, assim como dos fluxos de informação que colocam os produtos em movimento, com o propósito de providenciar níveis Ballou (1993, p.35) cita o choque do petróleo em 1973 como um evento fundamental, um teste para a logística. Assim, com o período de 121 122 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 de serviço adequados aos clientes a um custo razoável. Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... responsabilidade na organização”. Diante disso, o autor procurou distinguir os termos: Segundo o Council of Logistics Management (citado por Kobayashi 2000, p.18): 1. É o processo de planejar, implementar e controlar eficientemente, ao custo correto, o fluxo e armazenagem de matérias-primas e estoque durante a produção e produtos acabados, e as informações relativas a estas atividades, desde o ponto de origem até o ponto de consumo, visando atender aos requisitos do cliente. 2. Para Christopher (citado por Kobayashi 2000, p.18): É o processo com o qual se dirige de maneira estratégica a transferência e a armazenagem de materiais, componentes e produtos acabados, começando dos fornecedores, passando através das empresas, até chegar aos consumidores. 3. Já Uelze (1974, p.X) afirma que: 4. Logística empresarial, ou distribuição física, é o termo empregado para descrever o largo espectro de atividades relativas à movimentação eficiente de produtos acabados do final da linha de montagem de produção ao consumidor e, em alguns casos, inclui a movimentação da fonte de suprimentos de matériaprima até a linha de produção. Nota-se nas três primeiras definições uma idéia essencial, ou seja, a idéia de movimentação de matérias-primas até o lugar da produção e a de produtos acabados até os consumidores. A diferença fica por conta da conceituação de Uelze (1974), onde comparece também o termo distribuição física, ou seja, para o referido autor, logística e distribuição física são sinônimos. Magee (1977, p.1) traz uma contribuição sobre a discussão do conceito de sistema logístico. Para o autor, as atividades relacionadas à logística são freqüentemente designadas de outros modos, tais como distribuição, distribuição física e administração de materiais, assim sendo, “às vezes, estes termos são usados para definir uma posição ou 123 5. Distribuição. Refere-se à combinação de atividades e instituições ligadas à propaganda, venda e transferência física de produtos ou serviços. Diz respeito, portanto, a assuntos mais amplos do que apenas a logística. Logística. Como já foi mencionado, refere-se à arte de administrar o fluxo de materiais e produtos, da fonte ao usuário. O sistema logístico inclui o fluxo total de materiais, desde a aquisição da matériaprima até a entrega dos produtos acabados aos usuários finais, apesar de, tradicionalmente, as empresas isoladas controlarem, diretamente, somente uma parte do sistema total de distribuição física de seu produto. Distribuição física. Refere-se à parte de um sistema logístico que diz respeito à movimentação externa dos produtos, do vendedor ao cliente ou consumidor. Suprimento físico. Refere-se à parte de um sistema logístico no tocante à movimentação interna de materiais ou produtos, das fontes ao comprador. Planejamento e controle da produção. Diz respeito aos fluxos de materiais, desde o recebimento da matéria, passando pelas etapas de fabricação e processamento, até o estoque de produtos acabados. Assim sendo, o autor atribui à logística, um conceito mais amplo que o de distribuição física (não sendo sinônimos como quer Uelze), mas não tão abrangente quanto o conceito de distribuição. Entretanto, o autor esclarece que o seu objetivo, ao fazer as distinções, não é o de tornar a logística tão ampla que possa tudo conter, mas enfatiza que se faz necessário diferenciar os conceitos, pois se dá muita atenção aos sistemas de distribuição física. Quando se pensa em distribuição física, é importante, senão vital, compreender os objetivos e interesses de suprimento dos consumidores, uma vez que o sistema de distribuição física de um é o sistema de suprimento do outro. 124 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 Segundo Magee (1977, p.3) “normalmente associa-se transporte com logística e, às vezes, o transporte é erroneamente equiparado ao processo total de distribuição física”. 7 No sentido de esclarecer melhor a atmosfera logística, Magee (1977) continua e descreve os componentes que formam o sistema logístico que são: Estoque de produtos – os estoques são elementos reguladores entre as atividades de transporte, fabricação e processamento; Aquisição e controle da matéria-prima; Meios de transporte e de entrega local – o transporte inclui além do transporte da fábrica ao armazém e de armazém a armazém, o transporte do armazém ao consumidor; Capacidade de produção e conversão – Os componentes de produção do sistema logístico devem ter capacidade, “não só de produzir os requisitos médios, mas também de enfrentar as flutuações da procura total e as variações da procura entre os produtos”; Armazéns; Comunicações e controle; Recursos humanos Nota-se na apresentação da discussão conceitual sobre a logística, a presença do vocábulo “movimentação”. Entendemos que este termo tem importância fundamental para uma leitura geográfica da logística. A movimentação vai compreender os processos de produção do espaço, produção de escalas e T-D-R (territorialização, desterritorialização e reterritorialização). Entendemos, portanto, a logística como sendo um dos elementos fundamentais responsáveis pela circulação de mercadorias e se define como sendo um conjunto de técnicas e tecnologias utilizadas com a finalidade de proporcionar fluidez a partir da aceleração da circulação, obtida com a realização de operações mais velozes e racionais. Em ampla escala temporal, entendemos que a logística é a organização técnica do capital baseado em infra-estrutura fixa de transportes (como rodovias, ferrovias e hidrovias), meios de transportes (como por exemplo, trens e caminhões) e nas tecnologias da informação e 7 Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... comunicações, tendo como objetivo proporcionar a otimização dos processos produtivos. Na base desses processos, está a redução dos custos sempre com aumento da fluidez. A partir da Revolução Industrial, a separação física entre os lugares de produção e de consumo final se tornou realidade, fazendo com que capitalistas passassem a exigir dos governos uma logística eficiente, integrada em sua organização e se necessário, articulada internacionalmente, necessitando inclusive de diplomacia. 3.1. Analisando o exemplo das transportadoras de cargas fracionadas atuantes no Estado de São Paulo: Fluxos e escalas de atuação – do empírico ao teórico. A logística carrega consigo uma manifestação territorial que se dá pelo controle e uso do território. Constatamos a situação através de uma investigação sobre o transporte, sua atividade mais fundamental. Realizamos uma pesquisa tendo como foco as empresas de transporte rodoviário de cargas fracionadas em três cidades médias do interior paulista: Bauru, São José do Rio Preto e Presidente Prudente. A organização dessas empresas se dá pelo uso estratégico do território, diferentemente do que geralmente se pensa sobre o transporte rodoviário de cargas. A imagem é de um caminhão carregado de mercadorias em determinada origem que segue diretamente para o seu destino final sem outras intermediações, todavia, a existência de uma transportadora de cargas fracionadas depende, necessariamente, da existência de pelo menos dois terminais de cargas. Através da instalação de terminais de cargas (seja franquia, filial ou representante), as transportadoras podem promover a distribuição física fracionada e pulverizada. Esta relação faz com que haja a formação de redes com grande complexidade. Os fluxos criados são resultados diretos da relação existente entre transportadoras e seus clientes (embarcadores) e resultados indiretos da relação entre embarcadores e seus clientes (comércio, indústrias e prestadores de serviços). De forma mais ampla, os fluxos são resultados da relação existente entre produtores e consumidores, sempre mediatizado pelas transportadoras. Tendo os fluxos como elementos importantes para explicar determinada situação (SANTOS, 1996), neste caso, os fluxos de mercadorias que circulam e o papel direto exercido pelo transporte Kobayashi (2000) e Ballou (1993) também mencionam este equívoco. 125 126 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 rodoviário de cargas nas economias locais, entendemos, que se faz necessário primeiro, uma apresentação pontual dos fluxos criados pelas transportadoras para em seguida prosseguir no esforço de ensaiar uma generalização. Além do espaço nos veículos e da mudança de lugar (fluxos), as transportadoras também oferecem como serviço a ser vendido, as escalas de atuação, mantendo como base, uma lógica de coleta/entrega (de mercadorias) – transferência (de mercadorias) – coleta/entrega (de mercadorias). Deste esquema, decorre o mais freqüente tipo de fluxo, que denominamos de pendular. O nível de atuação escalar de uma transportadora que funciona somente dessa maneira, não passa de uma área com raio aproximado de 100 km. As outras escalas de atuação identificadas foram a escala estadual e a escala interestadual. Nessas escalas, atuam principalmente as empresas padrão, semi-padronizadas e grandes não-padronizadas, existindo a necessidade de se manter um ponto de transbordo. A lógica de funcionamento dessas duas escalas é a mesma. O transbordo concentra as mercadorias procedentes de diversas regiões e estados para serem direcionadas para outras regiões e estados em fluxo permanente. Este ponto pode ser mais bem explorado a partir de exemplos extraídos da realidade, discorrendo topicamente, sobre a especificidade de rotas selecionadas das transportadoras estudadas. A Viação Motta e a Empresa de Transporte Andorinha, ambas transportadoras prudentinas possuem transbordo em Presidente Prudente. Suas rotas mais importantes tem ligação com o Mato Grosso do Sul, Norte do Paraná, São Paulo capital e interior. As empresas também têm importante ligação com Rio de Janeiro, Minas Gerais, restante do CentroOeste e com Rondônia. A Braspress, empresa paulistana, vem apresentando um forte crescimento. Em 2000, a transportadora atuava em três Estados (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro); em 2001 passou a atuar também na região Sul, Centro-Oeste e no Espírito Santo (concorrendo com grandes transportadoras do Sul, como a Translovato, a Tegon Valenti e a Mercúrio, além da Expresso Araçatuba no Centro-Oeste); em 2002 passou a atuar também no Nordeste (concorrendo com a Itapemirim e a Rapidão Cometa); e finalmente em 2003 passa a operar no Norte (concorrendo com a Expresso Araçatuba). Hoje, a BTI (Brasil Transporte Intermodal / Braspress é o nome fantasia) é a única transportadora que atua em todo Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... território brasileiro sem a necessidade de complemento de operações com outras transportadoras. Diante desta situação, clientes podem embarcar mercadorias para qualquer lugar do Brasil com a mesma transportadora, sem necessariamente ter que apelar para outra. Vemos que um grande problema da transportadora Braspress é possuir dois transbordos na cidade de São Paulo, sendo que um recebe e distribui mercadorias para o Estado de São Paulo e outro que recebe e distribui mercadorias para todo o Brasil. Grande parte das grandes transportadoras vem deslocando esta etapa para o interior a fim de fugirem da deseconomia de aglomeração e se situarem no centro do Estado. Quando questionados sobre este problema logístico, os gerentes da transportadora em Presidente Prudente e Bauru afirmaram que existe um projeto para se implantar o transbordo em Bauru, todavia, existe também uma contenda entre o presidente da empresa e demais executivos sobre qual é realmente a melhor opção logística. 8 A empresa possui, no Estado de São Paulo, terminais de cargas em Bauru, Birigui, Campinas, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Santos, São José do Rio Preto e São José dos Campos (todas filiais). Desta forma, seus fluxos convergem para São Paulo e se espalham pelas filiais. A Mercúrio, empresa gaúcha, possui diversos terminais de cargas em cidades médias do interior paulista, que são terminais de redistribuição de mercadorias para as respectivas regiões. No caso da transportadora em questão, os terminais de cargas no Estado de São Paulo se localizam nas seguintes cidades: Presidente Prudente, Birigui, Marília, São Carlos, Franca (franquias), São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Campinas, Sorocaba, Santos, São José dos Campos (filiais), São Paulo e Bauru (chamadas pela empresa de filiais pólos, que na realidade são transbordos – Bauru para o Estado de São Paulo e a Capital para Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo). A referida empresa tem forte inserção na região Sul do Brasil, o que lhe confere tradição e confiabilidade das empresas sulistas. Note o leitor, a diferença entre duas grandes transportadoras na escala interestadual, a Mercúrio, que mantém a etapa de transbordo em Bauru e a Braspress, cujo transbordo se localiza em São Paulo. No caso da Braspress, uma mercadoria que parte de Presidente Prudente com destino a São José do Rio Preto tem que passar antes por São Paulo e, no caso da Mercúrio, tendo em vista o mesmo trajeto, a mercadoria passa antes por Bauru. A diferença é muito grande em termos 8 127 A capital paulista ainda é a cidade mais utilizada para a etapa de transbordamento. 128 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 de redução no tempo de distribuição das mercadorias para os clientes e redução de custos fixos e variáveis para a transportadora. Outra diferença constatada é que a Expresso Mercúrio, para transportar mercadorias para a maior parte da região Norte (Acre, Amazonas, Rondônia e Roraima) e para a região Centro-Oeste, existe a necessidade de complemento de operações9 com a transportadora Expresso Araçatuba, e, para transportar para a região Nordeste, mais Pará e Amapá, a empresa conta com o complemento da transportadora Rapidão Cometa. Além da cobertura do país, a Mercúrio possui filiais no Chile, Argentina, Uruguai e complemento de operações com a UPS para fora do continente através de transporte aéreo.10 A Expresso Araçatuba, até a atuação da Braspress, era a única transportadora do Sul e Sudeste a atuar na região Norte e Centro-Oeste sem acordos operacionais. A Expresso Araçatuba também foi responsável, além da abertura de rotas para o Centro-Oeste e Norte do Brasil, pela abertura de rotas de transporte de cargas para o Pacífico com ligação aos portos do Norte do Chile e Sul do Peru, a partir de cidades como Campo Grande, Cuiabá, Porto Velho e Rio Branco, por volta de 1995. Esta rota serve para facilitar as exportações brasileiras para o Oriente reduzindo em 40% o valor do frete. Isto se devia a uma estratégia de mercado baseado numa logística eficiente, já que os custos são altos. A transportadora coleta nas regiões Sul e Sudeste e entrega no Norte e Centro-Oeste. A empresa transporta mercadorias a partir de 357 cidades localizadas nos principais pólos industriais do Brasil, com destino a outras 877 cidades. Segundo funcionários administrativos da Expresso Araçatuba11, os custos da transportadora aumentam em função de não haver carga de retorno na maioria das expedições. Diante da mostra de fluxos, temos então, níveis escalares que se dão em rede, ou seja, cada ponto (transportadora) é um nó de rede de onde irradia e para onde convergem fluxos. Os fluxos revelam uma intencionalidade baseada nas ações consonantes de ambos agentes, tanto o transportador quanto o embarcador. Como a logística trata da administração de fluxos, ocorre uma Esses complementos de operações são realizados através de acordos operacionais. A empresa estadunidense UPS (United Parcel Service Inc.) é a maior empresa do mundo em transporte expresso e entrega de pacotes. Diariamente, gerencia o fluxo de bens, fundos e informações em mais de 200 países. 11 Em entrevista realizada em 2004. Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... série de relações entre agentes para sua materialização no território constituído por diversas redes. Os setores que elaboram a logística necessariamente devem atuar em rede, denotando um atributo do Poder como explicita Raffestin (1993, p.200-220). Apesar de tratar essa questão mais para o sentido político, o referido autor elabora uma definição importante que se relaciona a este trabalho: A rede é por definição móvel, no quadro espaçotemporal. Ela depende dos atores que geram e controlam os pontos da rede, ou melhor, da posição relativa que cada um deles ocupa em relação aos fluxos que circulam ou que são comunicados na rede ou nas redes. (RAFFESTIN, 1993, p.207). O Poder pode ser entendido aqui, como uma busca de competitividade, rentabilidade e lucro por parte das empresas de transporte rodoviário de cargas. A qualificação dada aos fluxos de mercadorias através da observação da atuação dos agentes envolvidos em sua criação, modifica substancialmente o olhar sobre o território. As transportadoras ‘costuram’ o território produzindo escalas. A produção de escalas marca o entendimento das diferenças e desigualdades nos usos das redes técnicas, das tecnologias, enfim, do território. Essas escalas têm mais a ver com a gestão do tempo do que propriamente com o domínio territorial. No setor, o fator velocidade (redução do tempo de circulação das mercadorias e conseqüentemente do capital, para os embarcadores e para as próprias transportadoras) é o mais importante, já que, os embarcadores exigem isto das transportadoras, que, em contrapartida, buscam formas de se adaptarem a esta exigência. É a exigência por fluidez no mundo contemporâneo de que fala Milton Santos (1996). Esta preocupação maior com a velocidade faz da escala uma relação baseada na competitividade e nos fluxos. Nesse sentido, é melhor falarmos em escala de atuação a área de atuação, devido ao fator de descontinuidade do território12. Santos (1996, p.118), ao tratar das escalas, se refere à “área de ocorrência”, entretanto, esta “área”, que preferíamos denominar de área de atuação, dá um sentido de continuidade territorial, de espraiamento da 9 10 129 12 Sobre a descontinuidade ver com maior profundidade em Sposito (1996) e Raffestin (1993) 130 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 113-133 atividade produtiva, de comércio ou de um serviço. Quando se trata de fluxos, fica praticamente impossível mensurar a área de atuação. São os fluxos das transportadoras que diferenciam escalas, que por sinal são fluidas, além de descontínuas. Ao falar da “área de ocorrência” Santos (1996, p.121) faz menção à sua extensão, por isso é que esta tal área tem a ver com escala do fenômeno, que por sua vez, surge da confluência da “escala das forças operantes” e sua “área de ocorrência”. Diante disto, o autor afirma que: A palavra escala deveria ser reservada a essa área de ocorrência e é nesse sentido que se pode dizer que a escala é um dado temporal e não propriamente espacial: ou, ainda melhor, que a escala varia com o tempo, já que a área de ocorrência é dada pela extensão dos eventos. (em itálico grifo do autor e em negrito grifos nossos) Nesse sentido é que dissemos a pouco que as escalas das transportadoras têm mais relação com o tempo do que propriamente com a contigüidade territorial. Já Santos (1996, p.119-122) considera o tempo como extensão de um evento, e este, como fluxos a partir da escala de sua origem. 4. Considerações finais Com esta pesquisa pode se verificado o nível de articulação de escalas proporcionado pelo transporte de cargas fracionadas no Brasil, e, em especial, em Presidente Prudente, São José do Rio Preto e Bauru. A mobilidade geográfica do capital pode ser comprovada pela capacidade de transporte de mercadorias para os diversos pontos do território, proporcionada por diversas empresas de transporte rodoviário de cargas que concorrem entre si em um mercado extremamente competitivo nas escalas locais e concentrado na escala nacional, demarcado por grandes diferenças de níveis logísticos entre transportadoras. Para a maioria das transportadoras, a logística é apenas uma palavra da moda, pois não têm conhecimento de quais são os reais elementos que a caracterizam. Já para as grandes transportadoras brasileiras e para os reais operadores logísticos, a logística é parte intrínseca da competitividade, elemento ideológico sempre presente. A mobilização em torno da otimização da circulação geográfica das mercadorias, que se traduz na logística industrial e científica, reforça o 131 Roberto França da Silva Júnior – Logística: em busca de uma conceituação... argumento de Marx (em os “Grundrisse” e em “O Capital vol. II”), quando se referia à “indústria de transporte”. Para o pensador, o transporte de mercadorias faz parte do processo de produção. A redução dos custos e dos tempos, juntamente às melhorias na regularidade e confiabilidade dos serviços de transporte, segundo Harvey (1990, p.380) citando Marx, se deve, ao “desenvolvimento das forças de produção pelo capital”. Nesse aspecto, vimos que existem diversas formas de gestão do trabalho e de movimentação de mercadorias (logística empregada e uso das TIC) por parte das empresas. Harvey (1990, p.380) também afirma que: A continuidade na circulação do capital só se pode assegurar por meio da criação de um sistema de transporte eficiente e espacialmente integrado, organizado ao redor de alguma hierarquia de centros urbanos (como está representado na teoria dos lugares centrais de Lösch e Christaller). (Tradução livre) Isto pode ser bem observado através do papel exercido pelas cidades pesquisadas, que polarizam as cidades do entorno. São como entroncamentos. Assim, as transportadoras utilizam esse sítio para definir sua logística, suas estratégias, suas rotas e sua gestão. Para finalizar, esperamos, com este artigo, contribuir para a discussão de uma temática ainda pouco estudada pelos geógrafos e esperamos contribuir também, para o desenvolvimento econômico e social do Brasil, através do estudo da logística, buscando através da Geografia, definir parâmetros de análise e conceituações. 5. Referências Bibliográficas Logística Empresarial. 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Prudente Resumo: Diante das transformações em curso no cenário urbano brasileiro, torna-se relevante compreender as diferentes dinâmicas que se processam na cidade e no urbano. Este texto busca abordar alguns pontos a respeito das cidades médias e pequenas, situando-as no contexto da rede urbana em transformação. É neste contexto que se destacam as mutações nas relações hierárquicas das cidades na rede urbana, bem como as novas morfologias urbanas decorrentes de processos como a aglomeração urbana. Palavras-chave: Cidade média, Pequena cidade, Rede urbana, Aglomeração urbana. MIDDLE-SIZED CITIES AND SMALL CITIES: A GEOGRAPHIC READING Abstract: In front of the transformations that are happening in the Brazilian urban scenery, become relevant to understand the different dynamics that are processing in the city and in the urban. This text looks for to approach some points about the middle-sized and small cities, in the context of the urban network in transformation. It’s in this context that stands out the mutations in the hierarchical relationships from cities in the urban network, and also the new urban morphologies resultants of processes as the urban agglomeration. Key words: middle-sized, small city, urban network, urban agglomeration. INTRODUÇÃO: Compreender os processos e dinâmicas das cidades médias e pequenas na atualidade constitui-se em tarefa fundamental, uma vez que permite analisar a configuração socioespacial destes espaços na perspectiva do processo de urbanização excludente e do acirramento das desigualdades sociais e espaciais. Neste sentido, o presente artigo pretende contribuir nos debates e pesquisas sobre o tema, apresentando as características das cidades médias e pequenas no Brasil, enfocando principalmente alguns casos do Estado de São Paulo, bem como os diferentes processos que estão presentes no contexto interurbano, ou seja, na rede urbana. Assim, na primeira parte abordaremos o tema cidades médias, a partir da discussão dos critérios e variáveis que devem ser consideradas na classificação destes centros urbanos. Esta preocupação quanto à classificação é retomada na segunda parte deste artigo, mas agora enfocando o caso das pequenas cidades brasileiras. Em seguida, apresentamos uma breve análise das recentes transformações da rede urbana, focalizando o processo de aglomeração que passa a se manifestar também nas cidades de porte médio e pequeno. Por fim, são realizados alguns apontamentos sobre a configuração atual das cidades brasileiras, destacando os desafios que surgem frente à uma realidade cada vez mais complexa. 1. SOBRE CIDADES MÉDIAS Entendemos que a definição do que é uma cidade média é bastante polêmico e controverso, sendo que grande parte das discussões teóricas sobre o tema emerge na geografia a partir da década de 1970. A seguir, remetemo-nos ao debate a respeito dos critérios mais relevantes para identificar as cidades médias. O primeiro e mais utilizado dos critérios é o demográfico, com parâmetros bastante objetivos, mas que é capaz de identificar apenas o grupo ou faixa em que pode enquadrar as cidades médias. Neste contexto, vale ressaltar que não há uma correspondência direta entre o tamanho demográfico de uma cidade e seu papel na rede. Porém, as cidades que apresentam uma demografia igual ou superior à 100 mil habitantes, como observado na tabela 1, geralmente assim são classificadas. Ainda considerando a variável demográfica, existem diferentes classificações do que vem a ser uma cidade média. Algumas pesquisas consideram o intervalo entre 100 e 500 mil habitantes, outros entre 50 e 136 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 250 mil, enfim, verifica-se a utilização de diferentes intervalos. Nota-se assim que este critério define muito mais o porte das cidades. Tabela 1 – População e taxa de urbanização de algumas cidades médias do interior paulista Município Taxa de Urbanização (%) População São José do Rio Preto 94,08 358.523 Marília 96,14 197.342 Presidente Prudente 97,91 189.186 Araçatuba 97,16 169.254 Bauru 98,22 316.064 Fonte: IPEA – Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000. Um segundo critério que podemos destacar seria a relevância regional destas cidades. Neste caso, analisa-se a forma como as cidades interagem e se inter-relacionam com as outras ao seu redor, com suas semelhantes e com as metrópoles. Dessa forma, neste critério é fundamental a compreensão da rede urbana. As cidades médias seriam aquelas que estariam num nível em que o oferecimento de serviços, sua produção, sua capacidade de oferecer empregos, etc influenciam o direcionamento dos fluxos que deixam de se dirigir para as metrópoles, estabelecendo-se como centros intermediários. É importante considerar também a dinâmica da produção do espaço intra-urbano. Pelo que as pesquisas revelam, as cidades médias constituem-se em localidades potenciais de absorção de empreendimentos, principalmente indústrias e de serviços de novas tecnologias, pois apresentam algum tipo de economia de aglomeração de potenciais. Numa economia em transformação, a partir da disseminação da organização flexível do trabalho, sua capacidade de absorção de investimentos também é relevante. Assim sendo, as cidades médias seriam aqueles centros urbanos de porte médio e distantes das áreas metropolitanas, mas com capacidade atrativa dos investidores em relação às cidades ao seu redor; o que reafirmaria seu destaque regional. Aceitando-se esse raciocínio, a distância de grandes centros urbanos poderia ser uma das determinantes de maior ou menor importância de uma cidade. Conforme argumenta Sposito (2001), tanto maiores poderão ser os papéis urbanos de uma cidade, quanto mais distante estiver de outras que, pertencentes a níveis superiores da hierarquia urbana, possam oferecer mais bens e serviços à sociedade. 137 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... Além dessas características as cidades médias tal como analisado em Andrade e Serra (2001) caracterizam-se por uma renda per capita média superior às médias das cidades brasileiras, bem como outros índices sociais. Assim, ao analisarmos o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, alguns municípios considerados como cidades médias possuem percentuais médios superiores e melhores que os apresentados pela realidade brasileira em geral. Todos os municípios apresentam IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) superior ao índice sintético de 0,8, enquanto o índice atingido pela média nacional é de 0,766, mostrando que uma das características das cidades médias do interior paulista são melhores condições de vida quando comparados às médias brasileiras, como observamos na tabela 2. Tabela 2 - Índice de Desenvolvimento Humano, 2000 LongePosição vidade Estado de SP/Brasil São J. do Rio Preto 0,834 0,916 0,814 0,772 25/95 Marília 0,821 0,908 0,782 0,773 58/212 Presidente Prudente 0,846 0,924 0,804 0,81 14/43 Araçatuba 0,848 0,909 0,811 0,825 12/38 Bauru 0,825 0,908 0,81 0,758 47/175 Brasil 0,766 0,849 0,723 0,727 Fonte: IPEA – Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil Município IDHm Educação Renda No entanto, apesar dessas características econômicas e sociais, as cidades médias, como reflexo do próprio país, apresentam uma distribuição de renda desigual, gerando, dessa forma, enormes problemas sociais, refletidos na configuração do espaço urbano. 2. SOBRE PEQUENAS CIDADES Podemos classificar as pequenas cidades brasileiras, tanto quantitativamente como qualitativamente. O IBGE (Instituto brasileiro de Geografia e Estatística) classifica cidades pequenas como sendo aglomerados urbanos com contingente populacional de até 50 mil habitantes. Nesta perspectiva, 5.037 dos municípios têm um contingente populacional de até cinqüenta mil habitantes, representando 36,78% da população total do país. Como podemos observar na tabela 1, os municípios pequenos no 138 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 Brasil representam, estatisticamente, uma parcela considerável da população brasileira. No entanto, continuam sendo deixados de lado pelos pesquisadores. Tabela 3 - Número de municípios por porte populacional e população residente1, 2000 Município por porte Total de População residente Populacional Municípios Total Brasil 5.561 169.799.170 Até 5.000 1.382 4.617.749 De 5001 até 10.000 1.308 9.346.280 De 10.001 até 20.000 1.384 19.654.828 De 20.001 até 50.000 963 28.831.791 De 50.001 até 100.000 299 20.786.695 De 100.001 até 500.000 194 39.754.874 Mais de 500.000 31 46.806.953 Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2000. Elaboração: Adaptado de Rafael Faleiros de Pádua. Além da escassez de pesquisas envolvendo os processos que ocorrem nas pequenas cidades, temos a dificuldade de caracterizar o que seria uma cidade pequena do ponto de vista qualitativo e não apenas considerando-as quantitativamente. Nesta perspectiva, Santos (1978 e 1981) propõe uma classificação das cidades pequenas, levando em consideração as dinâmicas que ocorrem em seus espaços e não o número de habitantes que estas possuem. Santos (1978, p.75) realiza um esforço de classificação das cidades, apontando o que poderíamos considerar como uma cidade regional, "pequena" ou local. Segundo o autor, cidades regionais seriam aquelas “possuidoras de uma função de relação, desempenhando um papel regional”, e aquelas em que uma boa parte do comércio de alimentos é oriunda da própria região, enquanto outra parte dos alimentos pode ser importada, e, ainda, são aquelas cidades onde se encontra um comércio tradicional, entre outras características. Como exemplo desta delimitação de Santos, podemos citar as cidades de Dracena, Adamantina e Osvaldo Cruz, localizadas na 10ª Região 1 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... Administrativa do Estado de São Paulo. Estas cidades desempenham um papel de atração, em relação às cidades menores de seus entorno, e grande parte do comércio de alimentos são oriundos de suas regiões. No entanto, mesmo desempenhando relações comerciais com suas proximidades, dependem de serviços mais especializados oferecidos em cidades maiores como Presidente Prudente, Araçatuba e Marilia. Santos (1981) classifica como cidade local, ou seja, “pequena cidade” o aglomerado urbano que atende as necessidades básicas de sua população, ainda que esta recorra ou receba de outras cidades mão-deobra, serviços e equipamentos mais especializados. Como, por exemplo, a cidade de Mariápolis, localizada na 10ª Região Administrativa do Estado de São Paulo, que oferece equipamentos e serviços básicos como escolas, posto de saúde para primeiros socorros, um incipiente comércio, dentre outros, mas que necessita recorrer a cidade de Adamantina para usufruir de serviços mais especializados. Mesmo tomando as definições realizadas por Santos, verifica-se uma lacuna quanto à classificação de cidade pequena, pois cidades como Dracena, Adamantina e Osvaldo Cruz podem ser consideradas cidades regionais, segundo determinados parâmetros, e apresentarem características típicas de cidades locais. Vale ressaltar que as pesquisas realizadas nas cidades pequenas são pouco expressivas para a realidade brasileira. Os pesquisadores no momento estão muito mais voltados para as grandes metrópoles e cidades médias, nas quais, os problemas são mais intensos, só que nas pequenas cidades, ocorrem as mesmas dinâmicas, ainda que em menor escala. 3. PROCESSOS E DINÂMICAS PARA ENTENDER PEQUENAS E MÉDIAS CIDADES BRASILEIRAS Dentre diversos pontos que poderíamos discutir para entender as cidades médias e pequenas, nos debruçaremos nos aspectos referentes à configuração da rede urbana brasileira. O estudo da rede urbana permite entender quais os papéis das cidades médias e pequenas no contexto brasileiro. Assim, podemos compreender as definições de cidade média, regional, local “pequena”, e ainda refletir sobre o processo de aglomeração urbana presente na atual configuração da rede urbana, já que dessa forma é possível apreender as relações entre algumas cidades médias e pequenas do interior paulista. Tabela de dados apresentada pela Professora Dra. Arlete Moysés Rodrigues na disciplina Sociologia Urbana, 2005. 139 AS 140 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... relação direta com a demanda de sua região, e à proporção que cada região se especializa: uma especialização regional, que é, também, especialização da demanda ligada ao consumo produtivo. A cidade se dobra a essa demanda, reforma-se, reorganiza-se, refaz-se, recria-se. (SANTOS, 2005, p.137). 3.1. A rede urbana brasileira Inúmeros trabalhos sobre a configuração das redes urbanas foram realizados. É a partir da década de 1930, com a teoria das Localidades Centrais do geógrafo alemão Walter Christaller (1933), influenciado diretamente pelas idéias da Escola de Chicago (1920), que o tema das redes urbanas surge com maior destaque. A análise de Christaller está baseada na organização espacial da distribuição de bens e serviços (a projeção espacial da produção), pautada numa rede hierarquizada, orientada por localidades centrais (CORRÊA, 2001a, p.20). A rede urbana brasileira, em muitos casos, se encaixava perfeitamente na teoria das localidades centrais, ou seja, uma cidade local se ligava a uma cidade regional, que por sua vez realizava interações com as cidades médias e estas com as metrópoles. Com o fortalecimento do processo de globalização, as redes urbanas reconfiguram-se e este processo hierárquico passa a ser acompanhado por uma superposição e/ou justaposição de relações. É neste contexto de mudanças das relações existentes nas redes urbanas que podemos melhor apreender os papéis das cidades médias e pequenas brasileiras. Na atual fase do sistema capitalista de produção, na qual os fluxos e as redes (re)definem os papéis dos diferentes centros urbanos, além da escala de atuação do capital produtivo e financeiro atingirem a escala global, compreender e analisar o impacto da globalização na redefinição das redes urbanas é de fundamental importância. Tais aspectos são necessários para entendermos a espacialidade e a espacialização do capital e da sociedade, pois como aponta Corrêa (1989), é no bojo do processo de globalização e da intensificação da urbanização que a rede urbana passou a ser o meio através do qual produção, circulação e consumo se realizam efetivamente. Uma importante contribuição sobre essas mudanças é oferecida por Santos (2005, p.137) que, já no início da década de 90, apontou algumas tendências da urbanização brasileira para o final do século XX. Dentre os elementos destacados naquela ocasião, o autor chamou atenção para a tendência crescente à diferenciação e complexificação do sistema urbano e, neste contexto, para a insuficiência dos níveis hierárquicos na interpretação da rede urbana. Para o autor: (...)esse tipo de classificação em níveis sucessivos deixa de ter significação à proporção que cada cidade passa a ter uma 141 De acordo com Endlich (1998), as relações interubanas não obedecem mais a limites rígidos e definitivos quanto à determinada área de influência. Cada atividade instalada numa cidade pode ter uma configuração de fluxos diferenciada. A velha hierarquia urbana não é mais suficiente para se explicar os fenômenos urbanos na atualidade. Para Xavier (2002, p.5), “uma concepção hierarquizada das cidades está a dar lugar a uma organização reticular. (...) Num mundo global, é a interacção e não a localização que se revela importante”. Neste sentido, na atual fase do processo de globalização, (re)configuram-se as redes urbanas, uma vez que a Divisão Internacional e Territorial do Trabalho é intensificada pelas novas tecnologias, políticas públicas, revoluções logísticas (meio técnico-científico-informacional), criação, (re)funcionalização e especialização funcional de inúmeros núcleos urbanos. A partir desses elementos, além de verificar diferentes configurações de redes urbanas, constatando-se, como já apontamos, uma superposição e/ou justaposição de diferentes redes urbanas que se complementam. Esta superposição e/ou justaposição que se verifica na rede urbana é reforçado quando se considera a globalização como um processo desigual, na qual as mudanças e as transformações, tais como a introdução de novas tecnologias e o avanço das técnicas não se dão de forma homogênea e instantânea em todo o território. Como já destacou Santos (2003), as cidades nos países subdesenvolvidos possuem duas áreas de influência, uma no circuito inferior e outra no superior, resultando em interações espaciais cada vez mais complexas. Para Corrêa (2001b), o que se verifica no país, principalmente após a década de 60, são padrões de rede urbana cada vez mais complexos no contexto de múltiplos circuitos. No contexto atual, a análise de múltiplos circuitos faz-se de extrema necessidade para que possamos entender as superposições e/ou justaposições das redes urbanas. Corrêa (1989) frisa que se formos realizar uma classificação das cidades, inserindo-as na classificação de circuito superior e inferior, teríamos as grandes cidades inseridas em um circuito 142 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 superior e as pequenas cidades no circuito inferior, isto porque, as empresas de alto padrão tecnológico, dentre outras inúmeras características, estão localizadas nos grandes centros, enquanto nas cidades pequenas temos, como nos aponta o autor, uma reserva de mão-de-obra ligada principalmente à agricultura. Mas, o próprio autor (CORRÊA, 2001) e Santos (2003) enfatizam a existência de múltiplos circuitos, ou seja, uma cidade pequena inserida no circuito inferior pode, ao mesmo tempo, estar ligada a núcleos do sistema produtivo, econômico ou cultural atrelados diretamente ao circuito superior. Por exemplo, na cidade de Mariápolis, no interior do Estado de São Paulo, há uma reserva de mão-de-obra de trabalhadores ligados à canade-açúcar, composta por pessoas que em seus cotidianos não têm noção da existência de redes. Mas nesta mesma cidade verifica-se a presença do circuito produtivo da cana-de-açúcar, que está diretamente ligado ao sistema de rede mundial. Dessa maneira, deve-se refletir cada vez mais na questão dos múltiplos circuitos, pois as superposições e/ou justaposições das redes estão cada vez mais complexas. Entretanto, ainda verifica-se a presença de uma rede hierárquica (figura 1), pautadas em aspectos como centralização política, oferecimento de serviços médicos especializados, dentre outros. Porém, ao mesmo tempo, esta rede hierárquica encontra-se inserida em outras mais complexas (figura 2), com profundas diferenciações no espaço de acordo com cada realidade, resultando em espaços luminosos e opacos (Santos, 2001). Figura 1 - Caso ilustrativo de uma rede hierárquica Org.: Alexandre Vieira, Cláudia Roma, Júlio Zandonadi, Vitor Miyazaki, 2005 143 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... Figura 2 - Caso ilustrativo de uma rede urbana face à globalização Org.: Alexandre Vieira, Cláudia Roma, Júlio Zandonadi, Vitor Miyazaki, 2005 Sobre o assunto, vale destacar as contribuições de SILVEIRA (1994), quando diz que: A rede urbana local transforma-se sob a tensão entre globalização e localização. Por uma parte, a globalização inclui uma tendência à hierarquização da produção em função das atividades mais modernas e uma outra tendência, aquela do consumo a se difundir espacialmente. Por outra parte, a localização significa que a cidade local oferece oportunidades e resistências diferenciais à chegada dos vetores da modernização. Esse jogo dialético nos permitiria a pensar a rede urbana através dos conceitos de zonas luminosas e opacas (SILVEIRA, 1994, p.125). Contexto que reforça a constatação das transformações nas relações interurbanas e suas implicações para a rede urbana que se torna cada vez mais complexa. Neste processo de mudanças, surgem novas lógicas de relações nos diferentes níveis escalares, desde o local, regional, nacional e até mesmo global. Por fim, para que possamos pensar na complexidade das relações interurbanas, deve-se abrir um leque de implicações referente ao processo 144 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 de constituição e fortalecimento dessas redes. Neste leque podemos encontrar processos econômicos, culturais, políticos, dentre outros, sendo que cada um destes poderá influenciar diferentemente na configuração das redes. Neste sentido, Rochefort (1998) aponta na configuração das redes urbanas os papéis econômicos e políticos. O autor afirma que as redes urbanas são determinadas ou fortalecidas pelo poder que as grandes empresas exercem sobre a configuração do espaço, apoiadas pelas políticas públicas que fortalecem seus interesses. Assim, os lugares centrais, os circuitos de produção, os espaços opacos ou luminosos, segundo essa visão, são determinados e reforçados pelo poder das grandes empresas, fazendo com que o sistema produtivo seja o motor da constituição das redes urbanas. Na tabela 3 podemos observar que foram criados mais de 70 municípios no estado de São Paulo somente na década de 1990. Tabela 3 - Municípios paulistas criados durante a década de 1990, por tamanho Quantidade de Participação no total Classe de tamanho municípios criados (%) Até 5.000 habitantes 51 70 Entre 5.001 e 10.000 hab. 11 15 Entre 10.001 e 20.000 hab. 07 9,5 Entre 20.001 e 30.000 hab. 03 4,2 Entre 30.001 e 50.000 hab. 00 0 Entre 50.001 e 100.000 hab. 00 0 Entre 100.001 e 200.000 hab. 01 1,3 Total do Estado de São Paulo 73 100 Fonte de dados brutos: Fundação Seade e Secretaria do Estado de Economia e Planejamento. Org.: SIQUEIRA, 2005 Dentre estes novos municípios, nota-se que 70% referem-se a núcleos com até 5 mil habitantes. A partir do momento que novas cidades são inseridas na configuração espacial das redes, os papéis dos diferentes centros urbanos poderão ser redefinidos, pois entram em cena novos agentes e atores, com maior ou menor poder de decisão. 145 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... 3.2 - Novas configurações da rede urbana brasileira e o processo de aglomeração urbana A intensificação do processo de urbanização no país, principalmente após a década de 1970, gera transformações em todo o território tornando a realidade urbana brasileira cada vez mais complexa. Neste contexto, Mota e Ajara (2001) destacam algumas características resultantes deste intenso processo de urbanização, tais como: a interiorização do fenômeno urbano, a acelerada urbanização das áreas de fronteira econômica, o crescimento das cidades médias, a periferização dos centros urbanos e formação/consolidação de aglomerações urbanas de caráter metropolitano e não-metropolitano. Dentre estes diferentes aspectos do atual cenário urbano brasileiro, destaca-se o crescimento das cidades médias, seja nos aspectos populacionais e econômicos quanto nos papéis desempenhados por estes centros no contexto regional. Atualmente, nota-se que fenômenos antes presentes apenas nas grandes cidades e metrópoles passam a se manifestar também nos centros urbanos de menor porte. Vale lembrar que este fato não se traduz em uma simples reprodução das características metropolitanas nas cidades de menor porte, uma vez que as especificidades locais tendem a reconfigurar estes diferentes processos. Neste contexto, as cidades médias e pequenas passaram por profundas transformações nas últimas décadas. Braga (2005) destaca que “o crescimento das cidades médias e a formação de aglomerados urbanos em torno de alguns desses centros são processos fundamentais na dinâmica urbano-regional brasileira nas últimas décadas”. No caso do Estado de São Paulo, nota-se que as cidades de porte médio do interior passaram por um forte acréscimo populacional nas últimas décadas, como podemos verificar na tabela a seguir. Tabela 4 – Evolução da população das principais cidades de porte médio do interior do Estado de São Paulo, Brasil. Município População População População População total, 1970 total, 1980 total, 1991 total, 2000 São José dos Campos 148332 287513 442370 539313 Ribeirão Preto 212879 318496 436682 504923 Sorocaba 175677 269830 379006 493468 São José do Rio Preto 122134 188601 283761 358523 146 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 Piracicaba 152505 214295 283833 329158 Jundiaí 169076 258808 289269 323397 Bauru 131936 186664 261112 316064 Franca 93638 148997 233098 287737 Limeira 90963 150558 207770 249046 Taubaté 110585 169265 206965 244165 Marília 98176 121774 161149 197342 São Carlos 85425 119542 158221 192998 Jacareí 61216 115732 163869 191291 Presidente Prudente 105707 136846 165484 189186 Americana 66316 122004 153840 182593 Araraquara 100438 128109 166731 182471 Santa Bárbara d'Oeste 31018 76621 145266 170078 Araçatuba 108512 129304 159557 169254 Rio Claro 78040 110212 138243 168218 Indaiatuba 30537 56237 100948 147050 Itu 49091 74204 107314 135366 Pindamonhangaba 48222 69562 102063 126026 Itapetininga 63606 84384 105132 125559 Bragança Paulista 63676 84048 108980 125031 Mogi Guaçu 42710 73549 107454 124228 Jaú 56301 74011 94116 112104 Atibaia 36838 57807 86336 111300 Botucatu 51954 64539 90761 108306 Catanduva 58251 72866 93317 105847 Guaratinguetá 68869 84879 102072 104219 Araras 53422 65017 87459 104196 Barretos 65574 72769 95414 103913 Fonte: Sistema Nacional de Indicadores Urbanos/Ministério das Cidades, 2002. Um estudo sobre a rede urbana brasileira, denominado “Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil”, classificou as distintas formas espaciais que configuram a rede em: aglomerações urbanas metropolitanas, aglomerações urbanas não-metropolitanas e centros urbanos que não constituem aglomerações urbanas. No Estado de São Paulo, este estudo detectou onze aglomerações urbanas nãometropolitanas, como mostra a figura 3. 147 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... Figura 3 – Aglomerações urbanas no Estado de São Paulo Fonte: Braga, 2005. A partir da figura, nota-se que há uma maior concentração destas aglomerações no entorno da capital paulista. Este aspecto está relacionado ao processo de desconcentração industrial do Estado de São Paulo, frente a um “arrefecimento da concentração econômica na Grande São Paulo e sua realocação nas regiões do entorno metropolitano” (BRAGA, 2005). No entanto, cabe ressaltar que o processo de aglomeração urbana também está presente em cidades médias mais distantes da metrópole paulistana, como veremos mais adiante. Antes de analisarmos alguns exemplos do Estado de São Paulo, é preciso discutir sobre o que se entende por aglomeração urbana. No Brasil, a Constituição Federal Brasileira de 1988 conferiu autonomia aos estados brasileiros para a criação de entidades regionais para promover a gestão das funções urbanas de interesse comum. Estas entidades são as regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas. No Estado de São Paulo, a Constituição Estadual de 1989 prevê a criação de aglomerações urbanas, denominando-as como “agrupamento de municípios limítrofes que apresentem relação de integração funcional de natureza econômico-social e urbanização contínua entre dois ou mais municípios ou manifesta tendência nesse sentido”. 148 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 Muitos autores pesquisam e discutem o processo de aglomeração urbana, apresentando diferentes concepções e abordagens. De acordo com Davidovich e Lima (1975), são identificadas como aglomerações de caráter urbano aquelas áreas que apresentam de fato problemas sociais e econômicos comuns, reforçando a necessidade de um planejamento adequado para a ordenação do processo de expansão urbana. Ainda de acordo com o trabalho realizado pelas autoras, constatase uma diferenciação entre os aglomerados que contam com espaço urbanizado contínuo e aqueles sem espaços urbanizados contínuos (na qual a integração se realiza pela complementaridade das funções urbanas). Outro aspecto importante a ser destacado foi apresentado por Moura e Ultramari (1994), quando apreendem o processo de aglomeração urbana como o espaço de comutação diária entre as cidades, no contexto das relações de dependência entre centro-periferia. Neste mesmo sentido, Pierre George (1983) já apontava que uma cidade e sua periferia constituem uma aglomeração, frente à sedimentação resultante da relação entre a expansão urbana e o reajustamento dos limites administrativos. Essa discussão a respeito da relação centro-periferia contribui para compreendermos os fenômenos como os movimentos pendulares, quando a periferia constitui-se apenas em um local de concentração de mão-deobra, caracterizando o que muitos autores chamam de cidades dormitórios. Já Souza (2003) caracteriza a aglomeração urbana como um minissistema urbano em escala local, constituído a partir da junção de duas ou mais cidades, seja pelos vínculos ou pela conurbação. O autor destaca ainda que as cidades, muito frequentemente, situam-se tão próximas umas das outras que a interação entre elas vai, à medida que crescem e se relacionam mais e mais entre si, sofrendo uma transformação importante. Assim, além da junção do tecido urbano, certos fluxos surgem ou se intensificam, ligando fortemente essas cidades. Assim, o fenômeno da aglomeração urbana não necessita obrigatoriamente de uma contigüidade espacial do tecido urbano. Os deslocamentos diários da população, ou até mesmo os fluxos de ligações telefônicas e de mercadorias caracterizam a integração presente em um aglomerado. Numa aglomeração urbana, as cidades podem estar ligadas por uma intensa vinculação socioeconômica, como já foi apresentado por Villaça (1998). Após estas considerações, a aglomeração urbana pode ser compreendida como o processo em que há uma expansão territorial de 149 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... núcleos urbanos distintos, gerando e/ou intensificando fluxos que acabam por extrapolar os limites político-administrativos dos municípios. Para explicitar melhor estas considerações, partiremos para a análise de algumas aglomerações urbanas referentes às cidades médias paulistas, a partir do estudo realizado por Sposito (2005). Como já foi ressaltado, as cidades médias e pequenas do interior passam por transformações importantes em suas dinâmicas, resultando em novas morfologias urbanas. A figura 4, elaborada a partir da leitura de imagem de satélite QuickBird, disponibilizada pelo Google, apresenta a área urbana de São José do Rio Preto e das cidades localizadas em seu entorno. Vale lembrar que o estudo “Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil” considera como aglomeração urbana apenas os municípios de São José do Rio Preto, Mirassol e Bady Bassitt. Porém, observando a figura, nota-se que outros municípios também já apresentam tendência à continuidade territorial urbana, além de manter intensos vínculos por meio dos fluxos. A aglomeração urbana de São José do Rio Preto é um exemplo de uma configuração mononucleada, uma vez que o núcleo (no caso, São José do Rio Preto) concentra a maior parte de população, bem como o maior número e diversidade de comércio e serviços em geral. Figura 4 – São José do Rio Preto e seu entorno Fonte: Miyazaki, 2007. 150 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... Já as figuras 5 (aglomeração urbana de Araçatuba) e 6 (aglomeração urbana de Araraquara-São Carlos) apresentam outra situação: a polarização por apenas um centro urbano não ocorre, havendo uma certa competição e complementaridade entre as cidades da aglomeração, constituindo-se assim uma configuração polinucleada. Figura 5 – Aglomeração Urbana de Araçatuba Fonte: Miyazaki, 2007. Figura 6 – Aglomeração urbana de Araraquara-São Carlos Fonte: Miyazaki, 2007. Além das aglomerações classificadas pelo estudo “Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil”, ressalta-se que outros centros urbanos do interior paulista também apresentam tendência à aglomeração, num processo que envolve cidades médias e pequenas. Como exemplo, podemos citar o caso de Presidente Prudente (figura 7) que além de manter fortes vínculos com as cidades de seu entorno, já apresenta uma tendência à continuidade territorial urbana. As transformações que ocorrem atualmente nas cidades brasileiras, sejam nos aspectos intra-urbanos quanto nas relações interurbanas, tornam a realidade urbana cada vez mais complexa. No caso das aglomerações urbanas, percebe-se que as aglomerações configuram uma morfologia cada vez mais dispersa, frente às descontinuidades do tecido urbano. Fonte: Miyazaki, 2007. Cabe ressaltar que o processo de aglomeração não se limita somente aos aspectos espaciais, no sentido da contigüidade do tecido urbano, pois a intensidade dos fluxos e a vinculação socioeconômica entre as cidades também devem ser consideradas. CONSIDERAÇÕES FINAIS No contexto da intensificação do processo de urbanização e globalização, principalmente após a década de 1970, nota-se que as cidades médias e pequenas passam a desempenhar um papel cada vez mais relevante na configuração e estruturação da rede urbana brasileira. Figura 7 – Presidente Prudente e seu entorno 151 152 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 133-155 Em muitas cidades médias, verifica-se um crescimento demográfico superior aos das metrópoles, absorvendo populações atraídas pelas melhores condições de vida, bem como o aumento do PIB, pela atração de novos investimentos e serviços. Por outro lado, vale lembrar que esse crescimento se dá no contexto de uma urbanização desigual e excludente. As pequenas cidades também passam por mudanças significativas. Estes núcleos urbanos sofrem transformações frente às dinâmicas relacionadas à expansão agrícola e desconcentração industrial, sendo que, em alguns casos, superam a velha hierarquia urbana da rede, estabelecendo relações no contexto nacional e até mesmo internacional. E neste contexto de transformações a configuração espacial destes centros urbanos se altera, frente à processos como a aglomeração que torna a realidade urbana ainda mais complexa, lançando novos desafios para as pesquisas e políticas públicas de planejamento urbano. BIBLIOGRAFIA ANDRADE,Thompson Almeida e SERRA, Rodrigo Valente (orgs.). Cidades médias brasileiras. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. BERNARDELLI, M. L. F. da H. Pequenas cidades na região de Catanduva-SP: papéis urbanos, reprodução social e produção de moradias. 2004. 350f. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente. BRAGA, R. Cidades médias e aglomerações urbanas no estado de São Paulo: novas estratégias de gestão territorial. In: Encontro de Geógrafos da América Latina, 10., 2005, São Paulo. Anais do X EGAL. São Paulo: USP, 2005. Alexandre B. Vieira, Cláudia M. Roma, Vitor K. Miyazaki – Cidades médias e... DAVIDOVICH, F. R., LIMA, O. M. B. 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Eliseu Savério SPOSITO1 Thiago Aparecido TRINDADE2 Resumo: O objetivo central deste artigo é analisar os conflitos de poder em torno do projeto de expansão do Aeroporto Internacional de Viracopos em Campinas, Estado de São Paulo. A partir da discussão sobre a globalização e o uso do território, buscamos mostrar como as disputas entre os diferentes atores envolvidos no projeto de expansão se relacionam com a dinâmica de produção do espaço urbano e com a apropriação do território pelos diferentes grupos sociais. Palavras-chave: Território; Espaço Urbano; Movimento Social; Poder Público; Aeroporto de Viracopos. PRODUCTION OF THE URBAN SPACE: POWER AND CONFLICT IN THE EXPANSION PROJECT OF THE VIRACOPOS AIRPORT IN CAMPINAS, SP. Introdução Os conflitos entre as diferentes instâncias do poder público em suas três esferas de poder (federal, estadual e minicipal), e entre elas e os moradores residentes nos arredores do Aeroporto de Viracopos, no município de Campinas, motivaram um estudo que resultou na elaboração deste texto. Seu principal objetivo é demonstrar que o fator que motivou os conflitos sociais que serão analisados, foi o projeto de ampliação do aeroporto3. A ampliação foi planejada para ocupar uma área contígua àquela onde já está toda a infra-estrutura aeroportuária. Na área prevista para ser desapropriada vivem, atualmente, mais de 16 mil pessoas de acordo com os números do poder municipal e, de acordo com lideranças dos moradores, o número ultrapassa 40 mil pessoas que habitam, em conjunto, de 17 loteamentos. A referida área, considerada a mais pobre do município, caracterizase pela ocupação rarefeita, de baixo padrão habitacional e população de baixa renda, além de uma carência significativa de infra-estrutura de serviços como saneamento básico e energia elétrica, além de estar a aproximadamente 14 quilômetros do centro de Campinas. Abstract: The prime goal of this article is to analyze the power conflicts round the expansion project of the Viracopos International Airport in Campinas, São Paulo State. Starting from of discussion about globalization and the use of the territory, we seek to show how the disputes between the different actors engaged in the expansion project related with the dynamic of the production of urban space and the appropriation of the territory by different social groups. Key-words: Territory; Urban Space; Social Movement; Public Power; Viracopos Airport. Professor Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia/UNESP, Campus de Presidente Prudente. Pesquisador CNPq [email protected] 2 Geógrafo pelo Curso de Geografia da Faculdade Ciências e Tecnologia/UNESP, Campus de Presidente Prudente. Mestrando em Ciência Política pelo IFCH/UNICAMP [email protected] 1 O tema torna-se mais atualizado por causa da crise que vem vivendo o setor aeroviário brasileiro, que motivou o governo federal cogitar em ampliar o aeroporto com investimentos federais a partir de 2008. 3 158 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 Figura 1 – Área urbanizada de Campinas e situação do Aeroporto de Viracopos 1. Globalização e uso do território: partindo da proposta de expansão do Aeroporto de Viracopos As discussões referentes ao projeto de ampliação do Aeroporto de Viracopos tiveram início em meados da década de 1970. Em 1979, o governo do Estado de São Paulo emitiu o primeiro decreto de 159 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... desapropriação, que tornava de utilidade pública uma área de oito milhões de metros quadrados próxima do aeroporto, visando à construção de uma segunda pista de pouso e decolagem. O início das conversações sobre a expansão e a emissão do decreto ocorre no mesmo contexto histórico em que o processo de desconcentração industrial no Estado de São Paulo começa a ganhar evidência. Para evitar os prejuízos causados pelas deseconomias de aglomeração na metrópole e que, certamente, se agravariam com o tempo, a produção industrial migrou em direção a algumas áreas do interior do estado, caracterizando-se por ser um movimento seletivo; isto é, a desconcentração industrial não atingiu o interior paulista em sua totalidade, mas apenas as áreas mais dinâmicas que já eram dotadas de infra-estrutura. O projeto de expansão do aeroporto está atrelado, nesse momento, à mesma lógica do processo de desconcentração industrial: como os aeroportos de Congonhas e Cumbica, os dois principais do estado, já demonstravam sinais de saturação, o principal objetivo do referido projeto é fazer com que ele absorva parte do movimento operacional aeroviário. Esse processo de redefinição territorial nas diversas escalas (local, regional e até mesmo nacional), está diretamente relacionado com a dinâmica do processo conhecido como globalização. Santos e Silveira (2001) afirmam que, com o advento da globalização, o “(...) o território ganha novos conteúdos e impõe novos comportamentos, graças às enormes possibilidades da produção e, sobretudo, da circulação dos insumos, dos produtos, do dinheiro, das idéias, das informações e dos homens” (p. 52-53). Assim, abrem-se novas possibilidades de uso do território para as grandes corporações, que são os atores hegemônicos do mundo atual. Para esses dois autores, “(...) o uso do território pode ser definido pela implantação de infra-estrutura, (...) mas também pelo dinamismo da economia e da sociedade” (p. 21). Santos (1993) já esboçava essa idéia quando analisava a produção do espaço necessário à reprodução dos grandes capitais no meio urbano, na fase do capital monopolista. O autor afirmava que, para que isso ocorra, “(...) é preciso dotar as cidades de infraestruturas custosas, indispensáveis ao processo produtivo e à circulação interna dos agentes e dos produtos” (p. 102). Dessa forma, pode-se afirmar que somente a partir de determinadas condições materiais o capital se reproduzirá em larga escala. No que se refere à ampliação de Viracopos, a construção de uma segunda pista de pousos e decolagens torna-se de suma importância para que as empresas, 160 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 voltadas para o mercado externo, continuem a se utilizar das vantagens competitivas proporcionadas pelo aeroporto, principalmente no que se refere à velocidade da circulação de mercadorias, já que este é um dos principais fatores que definem sua capacidade de concorrer com as outras, no mercado global. Sobre a articulação da economia nacional com o mercado externo, Santos e Silveira afirmam que O peso do mercado externo na vida econômica do país acaba por orientar uma boa parcela dos recursos coletivos para a criação de infra-estruturas, serviços e formas de organização do trabalho voltadas para o comércio exterior, uma atividade ritmada pelo imperativo da competitividade e localizada nos pontos mais aptos para desenvolver essas funções (SANTOS e SILVEIRA, 2001, p. 21-22). O município de Campinas e, mais especificamente, o Aeroporto de Viracopos, pode ser considerado território apto para desenvolver as funções a que os autores se referem. Quanto maior a importância de uma cidade no âmbito nacional, mais propícia ela está para receber os impactos decorrentes das reorganizações na sua configuração territorial; portanto, os impactos da globalização são mais visíveis nas grandes cidades, justamente pela importância que elas têm no conjunto de relações que orienta o sistema econômico e político de um país. As obras de ampliação que estão previstas no plano diretor de Viracopos têm, como objetivo em longo prazo, atender a uma demanda de 55 milhões de passageiros e um total de 470 mil operações de pouso e decolagem por ano. A Infraero4 pretende atingir essa meta a partir da construção da segunda pista5. Isto quer dizer que os investimentos serão feitos com a intenção de ampliar a capacidade operacional do aeroporto tanto no que tange ao transporte civil como ao comercial. A Infraero pretende equilibrar os índices do transporte aéreo no Estado de São Paulo, desconcentrando o tráfego dos Aeroportos de Congonhas (localizado dentro da área urbana da cidade de São Paulo) e de Cumbica (localizado no município de Guarulhos, na Grande São Paulo), ampliando a capacidade de operação de Viracopos. A Infraero Aeroportos Brasileiros é uma empresa ligada ao Ministério da Defesa e gere inúmeros aeroportos no Brasil. 5 Informações disponíveis em www.infraero.gov.br. 4 161 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... Segundo dados disponíveis no site da Infraero, Viracopos realizou, em 2004, 24.584 operações de pouso e decolagem. O Aeroporto de Cumbica, por sua vez, efetivou 149.497 operações, enquanto que o Aeroporto de Congonhas realizou 217.782 operações dessa natureza. Fica claro, portanto, que a desconcentração do movimento operacional dos Aeroportos de Cumbica e Congonhas em direção a Viracopos está prevista como um processo que, mesmo lento e gradual, é necessário para as dinâmicas territoriais do capitalismo no Brasil. 2. A resistência dos moradores ao projeto de remoção Nos últimos anos, mais especificamente a partir de 2001, o projeto de ampliação do Aeroporto de Viracopos enfrentou grande resistência da população residente no seu entorno. Os conflitos entre moradores e poder público atingiram seu ponto mais alto exatamente quando, no início de 2001, os moradores ameaçaram fechar a rodovia Santos Dumont (SP 75), caso eles continuassem a ser ignorados pelas autoridades nas discussões referentes à ampliação do aeroporto. Os moradores chegaram a realizar manifestações em algumas ocasiões com a finalidade de pressionar o poder público, a fim de que ele atendesse às suas principais reivindicações. Essas manifestações, como a passeata realizada no dia 9 de julho de 2001 pela Rodovia CampinasVinhedo, tensionaram o debate sobre a expansão, mostrando que os moradores dos bairros a serem desapropriados estavam dispostos a participar do processo de negociação e fazer valer os seus interesses. As reivindicações dos moradores eram bastante claras e específicas, resumindo-se em dois pontos: em primeiro lugar, eles queriam permanecer no local onde estavam, ou seja, não aceitavam ser removidos para a expansão do aeroporto e, em segundo, reivindicavam que o poder público investisse em infra-estrutura e equipamentos coletivos nos bairros onde residiam. Durante quase 30 anos os governos municipais não investiram em melhorias naqueles bairros em função do decreto de desapropriação, o que fez com que toda aquela área ficasse praticamente abandonada por muito tempo. O fato é que as reivindicações dos moradores estão diretamente relacionadas a uma problemática mais ampla: as precárias condições habitacionais dos pobres nos centros urbanos. Como se sabe, a produção capitalista do espaço urbano na cidade dá-se de maneira desigual e 162 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 contraditória, refletindo a desigualdade existente entre as diferentes classes que compõem a sociedade. A mobilização dos moradores dos bairros que estavam previstos para serem desapropriados em função da expansão de Viracopos dá exemplo concreto de uma forma de organização das populações mais pobres em lutar pela produção de uma cidade menos desigual. A população, organizada em associações de bairros, constitui o que podemos chamar de ativismo de bairro. De acordo com Souza, (2000, p. 140), o “(...) ativismo de bairro é o ativismo social urbano por excelência”. Souza (1988) destaca que o ativismo de bairro surge como uma forma de enfrentar problemas “(...) com imediata expressão espacial: insuficiência dos equipamentos de consumo coletivo, problemas habitacionais, segregação socioespacial, intervenções urbanísticas autoritárias, centralização da gestão territorial, massificação do bairro e deterioração da qualidade de vida urbana” (SOUZA, 1988, p. 42). Um ponto que merece destaque é justamente o conjunto de fatores principais que levou os moradores a se manifestarem contrários à sua saída da área. Dois fatores principais explicam a mobilização motivada pelo desejo de permanência na área: em primeiro lugar, a falta de confiança no poder público e, em segundo, o apego que têm em relação ao espaço vivido e, portanto, ao seu local de moradia. Com relação ao primeiro ponto, a desconfiança em relação ao poder público explica-se pelo projeto elaborado e imposto “de cima para baixo”. Há três décadas os diferentes governos municipais vinham alegando que não podiam investir na área em decorrência do decreto desapropriatório, embora a população sempre tenha reivindicado melhorias na infraestrutura dos bairros. De maneira repentina, apresenta-se um projeto de remoção da população em direção a um complexo habitacional proposto, planejado e dotado de toda a infraestrutura básica. No entanto, esse projeto de remoção nunca foi algo concreto porque a falta de informação concisa e coerente era o principal fator que fazia com que os moradores se sentissem desconfiados em relação às propostas do poder público. Outro fator ainda mais complexo era o desejo de permanência dos moradores na área por causa do apego que eles têm para com o lugar (espaço de vivência). Para os agentes interessados nas obras de ampliação de Viracopos, a remoção dos bairros representava apenas mais uma etapa 163 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... no cronograma das obras. Mas, para a população local, aquele lugar possuía um significado diferente, pois era ali que a maioria dos moradores tinha passado o maior tempo de suas vidas, estabelecendo laços familiares e de vizinhança. Sobre as relações emocionais que os indivíduos desenvolvem com o lugar de vivência, Leite se referencia em dois importantes autores para explicá-las: Como afirma Relph (1979), os lugares só adquirem identidade e significado através da intenção humana e da relação existente entre aquelas intenções e os atributos objetivos do lugar, ou seja, o cenário físico e as atividades ali desenvolvidas (...) Tuan (1975) afirma ainda que há uma estreita relação entre experiência e tempo, na medida em que o senso de lugar raramente é adquirido pelo simples ato de passarmos por ele. Para tanto seria necessário um longo tempo de contato com o mesmo, onde então houvesse um profundo envolvimento (LEITE, 1998, p. 10). Percebe-se, portanto, que a afetividade com o lugar resulta de um processo de convivência e construção do cotidiano, ou seja, não é uma relação que se estabelece automaticamente. Por fim, cabe destacar uma questão que se mostrou de grande importância: o motivo pelo qual a resistência dos moradores se mostrou muito mais forte e aguerrida no Jardim Campo Belo I e II. As duas associações de bairro (tanto a do Campo Belo I quanto a do Campo Belo II) sempre foram muito atuantes e seus representantes fizeram um trabalho forte junto à população procurando, justamente, organizar e mobilizar a população contra a desapropriação da área. O papel das lideranças é muito importante na organização de uma população para que ela se mobilize politicamente a faça suas reivindicações, mesmo que antagonizando com o poder público. No caso em pauta, isso ficou comprovado, uma vez que os representantes dos Jardins Campo Belo I e II sempre estiveram na “linha de frente” da mobilização. 3. A expansão de Viracopos e os conflitos entre as esferas de poder O projeto de ampliação do Aeroporto de Viracopos envolve responsabilidades das três esferas de poder, ou seja, dos governos federal, estadual e municipal. Nos últimos anos, ficou evidente uma disputa envolvendo essas três esferas. Em determinados momentos, os conflitos entre as pessoas envolvidas assumiram uma dimensão muito maior na 164 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 ampliação de Viracopos do que os conflitos entre moradores interessados na não desapropriação e o poder público. Notou-se, ao longo do tempo6, como as alianças e as divergências entre as três esferas se refaziam e se desfaziam ou se reorganizavam depois dos processos eleitorais, redesenhando o quadro de poder formatado anteriormente. Em um primeiro momento, a Infraero e o governo do estado atuavam de maneira conjunta e coordenada, estabelecendo-se um conflito entre essas duas esferas e a Prefeitura Municipal de Campinas. Posteriormente, com as eleições presidenciais de 2002, a Infraero passa a ser uma aliada da prefeitura, sendo que essas duas instâncias passam a submeter o governo do estado a um isolamento cada vez maior nas discussões concernentes ao aeroporto. Antes de explicar de maneira mais detalhada como se deram os conflitos entre as distintas esferas de poder, convém fazer uma breve reflexão sobre o papel do Estado na sociedade capitalista. Primeiramente, é necessário lembrar que ela é fracionada em classes sociais, caracterizandose basicamente pela desigualdade, uma vez que uma minoria detém os meio de produção e a maioria se vê obrigada a vender sua força de trabalho, simplesmente para sobreviver. Outra característica importante dessa sociedade é o conflito entre as diferentes classes, uma vez que os interesses das mesmas são, na grande maioria dos casos, divergentes. Em última instância, a função do aparelho de Estado é garantir as condições de reprodução do sistema, beneficiando a classe dominante. O Estado é, na realidade, o resultado de uma correlação das forças que compõem a sociedade em um determinado momento histórico. Souza (2001), analisando o papel desempenhado pelo Estado na formulação de políticas de planejamento urbano, observa que: O Estado não é ‘neutro’ e nem pode sê-lo. O Estado é, antes, uma ‘condensação de uma relação de forças entre classes e frações de classe’, para usar uma sugestiva expressão de Nicos POULANTZAS (1985:147). O Estado tende a reproduzir, como vetor resultante em termos de ações, intervenções conformes aos interesses dos grupos e classes dominantes, que dispõem de mais recursos e maior capacidade de influência (SOUZA, 2001, p. 326). De acordo com Vieira (2000, p. 24), “as políticas do Estado reproduzem dinamicamente uma determinada correlação de forças entre as 6 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... diversas classes e frações de classe”. Como o Estado tende a reproduzir a correlação de forças da sociedade, teoricamente ele vai beneficiar as classes que dispõem de mais recursos e capacidade de influência. Entretanto, isso não significa que, por meio da ação do Estado, outros setores da sociedade não possam ser beneficiados. O aparelho estatal não pode, e nem deve, ser entendido como um agente homogêneo, livre de relações conflituosas e contraditórias. Justamente por não ser imune a tais relações, deve-se ter em mente que o Estado é passível de sofrer influência de setores mais desfavorecidos da sociedade, redirecionando sua atuação para outro sentido em conjunturas específicas. Ainda que do ponto de vista estrutural sua função seja a manutenção do status quo, é possível que, conjunturalmente, a ação do Estado leve em conta determinados interesses das classes subordinadas. O caso da expansão do Aeroporto de Viracopos é um exemplo ilustrativo da complexa teia de relações que envolve o aparelho de Estado em suas diferentes esferas de poder. O ano de 2001 foi marcado por várias divergências entre as diversas instâncias políticas, pois houve tensão entre a prefeitura, na época comandada pelo petista Antônio da Costa Santos (Toninho do PT), a Infraero e o governo estadual. A disputa foi motivada porque era necessário decidir como seriam divididas as responsabilidades de cada parte no processo de ampliação do aeroporto e como seria realizada a remoção das famílias. A administração petista posterior à de Toninho do PT não quis enfrentar o desgaste político que poderia resultar da expansão do aeroporto, sobretudo porque os moradores da área não aceitavam ser removidos e resistiram a essa possibilidade. No entanto, em julho de 2002, foi firmado um acordo entre as três partes para viabilizar a expansão de Viracopos. Segundo o convênio, a Infraero ficava encarregada de realizar um censo socioeconômico e imobiliário da área para traçar um perfil da população residente e elaborar um plano de remoção; o governo do estado ficou encarregado de construir novas unidades habitacionais para os moradores por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU); a prefeitura, por sua vez, se responsabilizou por definir uma nova área para as unidades habitacionais após a remoção dos moradores. Com as eleições presidenciais de 2002, que levou o Partido dos Trabalhadores à presidência da república, o relacionamento da Infraero com a prefeitura de Campinas na questão de Viracopos mudou significativamente. Em 2003 e 2004, período em que o PT ainda As observações empíricas foram realizadas de 2001 a 2006. 165 166 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 permaneceu na Prefeitura de Campinas, não houve nenhum desentendimento importante entre a estatal e o governo municipal. Esse período foi marcado por uma série de entraves de natureza burocrática no processo da expansão, especialmente no que se refere à remoção das famílias. Com as eleições municipais de 2004, o pedetista Hélio Santos assume a prefeitura de Campinas e logo no início do seu mandato dá sinais de que está preocupado em resolver o impasse em torno da ampliação do aeroporto. A partir do momento em que ele assumiu a prefeitura, as relações entre as esferas municipal e federal se estreitaram rapidamente. Isso ocorre porque o prefeito de Campinas estava mais alinhado politicamente com o presidente Lula do que alguns segmentos do próprio PT de Campinas. Com a vitória de Hélio Santos, as discussões sobre a expansão de Viracopos ganharam novo fôlego. Em janeiro de 2005, logo no início do mandato, o prefeito havia pedido ao presidente da Infraero para que ele fizesse pressão junto ao governo estadual para que fosse realizada a emissão das licenças ambientais para a expansão do aeroporto. O foco da divergência em torno da questão de Viracopos havia mudado: ao invés da remoção das famílias, passou a ser a emissão das licenças ambientais que dependiam da Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Entretanto, o debate sobre a desapropriação voltou à tona no dia 30 de janeiro de 2006, quando o prefeito, surpreendendo a todos, fez um anúncio oficial dizendo que a remoção das famílias residentes na área para a expansão de Viracopos estava descartada, já que as obras seriam redirecionadas para o lado oposto dos bairros que anteriormente estavam previstos para serem removidos. Além disso, o prefeito anunciou um pacote de investimentos nos bairros em parceria com o governo federal de aproximadamente 100 milhões de reais. Dois dias após o anúncio do prefeito, o Jornal Correio Popular informou que o governo estadual não tinha conhecimento dessa mudança nos planos de expansão, e havia sido excluído de todo o processo de discussão da ampliação do aeroporto. A assessoria de imprensa da Secretaria de Transportes do Município de Campinas informou, por meio de uma nota oficial, que não houve convite da prefeitura para que o governo estadual participasse dos anúncios da mudança nos planos de ampliação do aeroporto. O discurso do presidente Lula, na cerimônia de lançamento do edital do aeroporto-indústria, que ocorreu em Viracopos no dia 7 de abril de 2006, confirmou que houve uma articulação nos 167 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... bastidores entre a esfera municipal e a esfera federal visando uma mudança nos planos de expansão: (...) “o Hélio (Santos), assim que ganhou as eleições (municipais), foi a Brasília e reivindicou muitas coisas, entre elas o Hospital Ouro Verde e outra era em relação à população próxima de Viracopos”. “Eu disse para o companheiro Hélio: eu vou conversar com a Infraero e você pode dizer para o povo de Campinas, que se for preciso fazer um aeroporto redondo, a gente faz. Mas a gente não tira o povo do bairro onde está”, relatou o presidente (Correio Popular, 07/04/06). Essa articulação silenciosa entre o prefeito de Campinas e o presidente da Infraero revela, claramente, a natureza conflituosa do Estado. Os dois dirigentes formularam um novo plano de expansão do aeroporto que atendia às reivindicações históricas dos moradores que estavam ameaçados de desapropriação, isolando dessa discussão o governo estadual, forte adversário político das duas outras instâncias. O mais importante é observar que, neste caso específico, a ação do Estado acabou beneficiando diretamente uma camada da população que pertence às classes dominadas, que geralmente vêem seus interesses relegados ao segundo plano pelo Estado em benefício das classes dominantes. Contudo, é necessário lembrar que a atuação do Estado não se fará apenas em um único sentido, beneficiando sempre esse ou aquele grupo específico. Entendemos que, acima de tudo, o Estado deve ser visto como um espaço de conflito, um espaço de disputa entre os diferentes atores e grupos de interesses que compõem a sociedade. Por isso, o Estado pode se constituir no resultado de um pacto social conflituoso que contém tendências contraditórias que se manifestam quando é preciso tomar decisões que revelem o confronto entre atores, grupos, classes, entidades ou movimentos. O Estado, entendido nesses termos, seria uma arena de conflito social, onde os diferentes grupos se confrontam para tentar fazer valer os seus interesses: Hofling (2001) lembra as diferentes posturas teóricas existentes no âmbito das ciências humanas em relação à natureza do Estado: A tradição marxista desdobra-se num amplo espectro de tendências e mesmo teorias - aliás, coerente com seus pressupostos referentes à construção histórica de conceitos. Enraizadas nas clássicas formulações de Marx em relação ao Estado e às ações estatais - as quais estariam, em última instância, voltadas para garantir a 168 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 produção e reprodução de condições favoráveis à acumulação do capital e ao desenvolvimento do capitalismo -, outras se desdobram na análise da complexa questão da autonomia e possibilidade de ação do Estado capitalista frente às reivindicações e demandas dos trabalhadores e dos setores não beneficiados pelo desenvolvimento capitalista (HOFLING, 2001). O caso de Viracopos é um exemplo concreto de que, em determinados momentos, devido à correlação de forças estabelecida, a ação do aparelho estatal pode beneficiar os setores de população considerados excluídos do sistema capitalista. Para Souza, Embora a lógica da ação do Estado, em uma sociedade capitalista, tenda7 a ser a da reprodução da ordem vigente, isso não precisa ser sempre uma verdade; aquilo que é verdade ‘no atacado’, ou estruturalmente, não é, necessariamente, sempre verdade ‘no varejo’, ou conjunturalmente. Contradições e conflitos, se bem explorados podem conduzir a situações bem diferentes de um simples reforço da dominação, perpetuamente renovado, por parte do Estado (SOUZA, 2001, p. 29). No entanto, para que essa discussão não fique com um caráter superficial, é necessário questionarmos quais são os fatores que conduzem o Estado a redirecionar sua atuação e beneficiar as camadas desfavorecidas em conjunturas específicas. 3.1 Os motivos da mudança nos planos de expansão de Viracopos Para explicar a mudança no plano oficial de expansão do Aeroporto de Viracopos, anunciada pelo prefeito de Campinas, partimos de uma hipótese: a idéia era de que a decisão do prefeito baseava-se principalmente no momento eleitoral, visando obter benefícios para os seus aliados políticos mais próximos, especialmente o presidente da república, nas eleições que ocorreram em 2006. Esse raciocínio faz sentido, uma vez que o presidente Lula, como já foi destacado anteriormente, possuía estreitas relações políticas com o prefeito de Campinas, e o plano de revitalização urbanística dos bairros que estavam ameaçados de desapropriação conta com a ajuda financeira do governo federal. Além disso, não podemos esquecer que o acordo para a Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... mudança nos planos de expansão de Viracopos foi articulado entre o prefeito e o próprio presidente, que disputou a reeleição em 2006. No entanto, a questão eleitoral não foi o único fator que motivou a decisão de redirecionar as obras de ampliação do aeroporto. Havia outros motivos não podem ser ignorados pois foi um conjunto de motivos interrealcionados que levou o prefeito de Campinas e o presidente Lula a elaborarem uma alternativa para a expansão de Viracopos. Em primeiro lugar, cabe destacar o adensamento populacional na área que estava prevista para ser desapropriada. O prefeito de Campinas, na ocasião dos anúncios referentes à mudança nos planos de expansão, destacou que a decisão havia sido tomada com base em critérios técnicos, uma vez que o censo realizado em 2005 por uma empresa contratada pela Infraero havia constatado o aumento populacional e, portanto, imobiliário, nos arredores de Viracopos: o número de imóveis residenciais e comerciais nas imediações do aeroporto teve aumento de 16,4% entre 2001 e 20058. O adensamento foi utilizado como principal motivo para a mudança repentina. Todavia, entendemos que o argumento de uma decisão pautada em critérios estritamente técnicos foi utilizado para camuflar o pano de fundo essencialmente político da decisão. O fato é que a decisão não foi tomada por causa do estudo da Infraero realizado em 2005. O estudo realizado por um consórcio contratado pela estatal foi comparado com um estudo realizado pela COHAB9 em 2001, sob a coordenação do ex-prefeito Toninho do PT. Nesse momento, havia 5.635 unidades residenciais e comerciais, e em 2005 constatou-se o aumento ao longo desse período para 6.245 imóveis. Será que um aumento de 880 imóveis durante quatro anos inviabilizava, de fato, a remoção? Podemos afirmar que o adensamento populacional e imobiliário existente em 2001 já tornava difícil a remoção da população. A questão é que o adensamento populacional e imobiliário no entorno do aeroporto implicava em dois grandes problemas: a dificuldade para se realizar a remoção tanto do ponto de vista técnicourbanístico como do ponto de vista político. Sobre o primeiro, basta lembrar da dificuldade que seria construir um complexo habitacional para um número tão grande de moradores que ultrapassa 16.000 pessoas. Sobre o segundo ponto, que se refere à dificuldade política de se realizar a remoção, basta lembrar a fala do presidente da Associação de 8 7 Grifo do autor 9 169 Correio Popular, 08/01/2006. Companhia de Habitação Popular de Campinas. 170 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 Moradores do Campo Belo I: “isso é um problema que, se começasse a mexer, podia até começar, mas não sabia como terminava, e alguém ia pagar o preço político por um projeto mal sucedido”10. Isso exigiria um trabalho cuidadoso e muita negociação com os moradores. A situação se tornava ainda mais complicada porque a população estava oferecendo resistência ao projeto de remoção, o que poderia complicar mais o processo. Acreditamos que os moradores não tinham força suficiente para resistir e permanecer no local caso fosse ordenada a remoção, mas a resistência dos mesmos poderia trazer grandes problemas para o governo municipal, dependendo do rumo que os acontecimentos tomassem. Esse foi o principal motivo pelo qual, a partir de um determinado momento, as gestões anteriores nunca se emprenhavam para apressar a ampliação de terminal: o receio de que a resistência dos moradores se tornasse um barril de pólvora. Portanto, a própria resistência dos moradores também se constituiu em um fator significativo para a reviravolta no caso do aeroporto. Este é um exemplo concreto do movimento da história: a quantidade se transforma em qualidade dependendo de sua intensidade, do momento em que os fatos ocorrem e de acordo, também, com a densidade dos sujeitos envolvidos na ação. Isso significa, do ponto de vista teórico, que compreender o movimento da realidade significa compreendê-la pela leitura do método, pois é ele que possibilita a construção teórica da leitura e interpretação da realidade. Há um outro elemento que merece ser ressaltado: a redução do custo financeiro do projeto de expansão com a mudança dos planos. As obras de expansão do aeroporto, segundo a Infraero e a prefeitura, seriam redirecionadas para uma área rural, e com isso, o custo financeiro foi bastante reduzido. O plano inicial (remoção dos moradores dos Jardins Campo Belo I e II) previa um gasto de 360 milhões reais, sendo que o plano alternativo implicaria em um custo de 90 milhões de reais. Isto significava uma economia de 270 milhões de reais para o caixa da companhia estatal. Ainda que isso não tenha sido o principal fator de motivação para a mudança, ele foi, sem dúvida, relevante no contexto mais geral do processo. A mudança no direcionamento da expansão do aeroporto teve influência, portanto, da magnitude da renda de situação porque as áreas rurais têm o solo com preços menores em relação aos preços do solo urbano. A expansão do aeroporto, se se concretizar como 10 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... previsto, deverá ampliar a valorização do solo nessa área quando ela se transformar em terra urbana. Por último, cabe destacar uma questão que foi de extrema relevância para a reviravolta nos planos de expansão: o próprio perfil e posicionamento políticos dos dois grandes responsáveis pela mudança: o prefeito de Campinas e o presidente da República. A partir da entrevista realizada com o presidente da associação do Jardim Campo Belo I11 e de uma cautelosa análise da conjuntura política atual, podemos afirmar que a mudança no plano diretor de Viracopos foi fortemente influenciada pela visão política dos dois chefes executivos e, portanto, por sua decisão política. A decisão de mudar os rumos da expansão foi eminentemente política, e toda decisão política implica em escolhas que, por sua vez, beneficiam determinado(s) grupo(s) em detrimento de outro(s). É importante ressaltar que descartar a remoção das famílias e investir nos bairros não é uma decisão que implique em prejuízo político; ao contrário, a capacidade de tomar decisão é uma característica dos políticos bem sucedidos porque ela capta os momentos do movimento da sociedade como uma decisão que permite a representação de que ela foi tomada pela capacidade individual do envolvido e não como movimento concreto da sociedade. Por mais que no senso comum prevaleça a idéia de que políticos e partidos são todos iguais, deve-se ter em mente que eles não o são, na medida em que suas contribuições históricas, enquanto atores sociais, se fazem a partir de relações com diferentes setores da sociedade, ora antagonicamente, ora de maneira complementar, mas sempre em decisões que se contradizem e complementam dialeticamente. 11 Entrevista com Justino da Silva: “É bem verdade que a postura de Hélio surpreendeu muita gente. A população residente no entorno do aeroporto não esperava tamanho respaldo por parte do prefeito na questão da ampliação, e isso acabou sendo uma agradável surpresa para os moradores. Apesar de que logo que venceu as eleições em 2004, Hélio garantiu aos moradores apoio da administração municipal na questão da expansão”. Com relação ao presidente Lula, ele “relatou que dentro da Infraero havia resistência para a reformulação do projeto oficial, já que este vinha desde a época do governo militar, o que desencorajava os dirigentes da estatal a tomarem outra iniciativa”. Isso “exigiu que o presidente interviesse diretamente na Infraero com o objetivo de minar essa resistência interna” e ele afirmou que “não se surpreendeu com a atitude do presidente de apoiar um projeto alternativo de ampliação para atender às reivindicações dos moradores por conta da trajetória política do presidente”. É evidente que, para se analisar a fala de Justino da Silva deve-se levar em conta que ele é militante do PT. Edson Santana, em depoimento pessoal aos autores em novembro de 2005. 171 172 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 Isso significa reconhecer que existem diferenças entre políticos e partidos em razão de suas distintas formações históricas. Neste caso específico, entendemos que, ao longo de suas trajetórias políticas, tanto o presidente Lula como o prefeito Hélio Santos construíram relações com determinados grupos sociais que lhes conferem atributos e concepções político-filosóficas específicas. Como veremos no tópico seguinte, a decisão resultante do acordo entre o presidente Lula e o prefeito de Campinas não somente beneficiou os moradores como também prejudicou um grupo pertencente à classe dominante, o que levou a um conflito entre o poder executivo e o poder judiciário para se definir a direção que as obras de ampliação deveriam tomar. 4. A ação civil e os interesses na remoção das famílias No dia 15 de fevereiro de 2006, cerca de 15 dias depois dos anúncios do prefeito Hélio Santos sobre as alterações na ampliação do aeroporto e o redirecionamento das obras para uma área rural, no sentido oposto aos bairros já consolidados, o promotor público12 de Campinas ingressou com uma ação civil para impedir os investimentos da prefeitura nos bairros que seriam, anteriormente, desapropriados. A ação popular visava impedir os investimentos nos bairros até que fosse realizado o EIARIMA da nova área que seria, agora, alvo das obras de expansão de Viracopos. Essa ação civil, a princípio, poderia ser vista como uma reação normal do poder judiciário à decisão do executivo, já que, de fato, é necessária a realização do Estudo de Impacto Ambiental para obras desse porte. Mas o fato é que, em se tratando de uma questão tão complexa como a expansão de Viracopos, que envolve vários conflitos de interesses, é necessário olhar os fatos com bastante cuidado e atenção. Em março de 2006, em reunião que congregou cerca de 200 moradores dos Jardins Campo Belo I e II, as lideranças dos moradores e os advogados contratados pela associação para prestar assessoria jurídica 12 Sr. José Roberto Albejante. O promotor público, na entrevista que nos concedeu, afirmou que a ação foi de caráter preventivo, para evitar que a prefeitura investisse nos bairros sem antes fazer uma análise técnica de qual projeto de expansão seria menos agressivo para o meio ambiente. As lideranças dos moradores, entretanto, afirmaram que o promotor sempre foi ligado ao setor imobiliário da cidade, e que a ação na verdade tinha a intenção pura e simples de impedir os investimentos em melhorias nos bairros. 173 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... afirmaram que a ação civil era fruto de uma articulação entre o Ministério Público e o setor imobiliário de Campinas, que estaria interessado na remoção dos moradores esperando uma alta valorização imobiliária da área para a realização de futuros empreendimentos. A especulação imobiliária que vinha ocorrendo no entorno de Viracopos já havia sido noticiada pelo Jornal Correio Popular em 2005. No dia 20 de junho daquele ano, uma matéria desse jornal demonstrou que o metro quadrado das terras próximas ao aeroporto que não estavam previstas para serem desapropriadas foram valorizadas em 10% nos últimos anos. Os conflitos de interesses envolvendo a ocupação e o uso do solo urbano mostram como a luta entre as diferentes classes sociais se materializam na cidade. A partir dessa idéia, pode-se fazer uma breve reflexão sobre o território e as disputas envolvendo os diferentes grupos sociais pela sua apropriação. Santos et alii (2000) afirmam que Para os atores hegemônicos, o território (...) é um recurso, garantia da realização de seus interesses particulares. (...) Os atores hegemonizados têm o território como um abrigo, buscando constantemente se adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo em que recriam estratégias que garantam sua sobrevivência nos lugares (p. 12-13). Em se tratando de uma sociedade desigual, na qual existem atores hegemônicos e dominados, certamente haverá conflitos pela apropriação do território que colocarão diferentes territorialidades em confronto. Nesse contexto, os espaços metropolitanos, como é o caso de Campinas, constituem-se importante campo de análise. O caso de Viracopos é ilustrativo pois, nele, podemos identificar as disputas envolvendo as três esferas de governo - federal, estadual e municipal - os moradores ameaçados de desapropriação, os empresários do setor industrial, sobretudo aquele mais voltado para o mercado externo, e o setor empresarial ligado ao capital imobiliário. Nesse conflito, as diversas territorialidades se manifestam com o objetivo de se sobrepor às demais e garantir a prevalência de seus interesses. Haesbaert (2004), analisando o conceito de territorialidade, faz a seguinte afirmação: (...) a territorialidade é definida por Sack como ‘a tentativa, por um indivíduo ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos, pela 174 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... delimitação e afirmação do controle sobre uma área geográfica’ (HAESBAERT, 2004, p. 87). e especulação imobiliária em áreas rurais, envolvendo loteamentos clandestinos voltados para a população de alta renda. Analisando a questão de Viracopos, a definição de Sack é adequada para este caso. Afinal, é exatamente isso que aconteceu; ou seja, diferentes grupos tentando influenciar os acontecimentos referentes ao processo de ampliação do aeroporto, tendo como território de ação aquela área. Miranda (2002) analisou um tema relacionado aos conflitos de interesses envolvidos na ampliação do aeroporto, que por sua vez, estão ligados à produção do espaço urbano. Em trabalho cuja temática é a incorporação de áreas rurais à cidade de Campinas, ele analisa, entre outras questões, os conflitos de interesses envolvidos na regulação do uso do solo pelo poder público, levando em conta a apropriação da máquina pública por determinados grupos ligados ao setor empresarial imobiliário. Esse autor enfatiza o papel da especulação imobiliária e da implantação de condomínios residenciais em áreas rurais convertidas em urbanas por meio de alterações pontuais na lei de zoneamento urbano, como resultado de manobras do legislativo municipal, que sofre forte influência do segmento empresarial ligado ao mercado imobiliário. Por esse motivo, os proprietários fundiários acabam exercendo pressão sobre o Estado, “(...) especialmente na instância municipal, visando interferir no processo de definição das leis de uso do solo e do zoneamento urbano” (Corrêa, 1989, p. 16). Contudo, devemos lembrar que nem sempre as alterações na legislação são frutos de pressão dos proprietários fundiários e empresários imobiliários sobre o poder público, mas sim resultado de uma sutil e discreta articulação entre esses setores da sociedade civil. Nos arredores de Viracopos há muitas áreas rurais que certamente seriam alvos de empreendimentos imobiliários quando a ampliação do aeroporto estivesse concluída, com grandes possibilidades de serem convertidas em terras urbanas. Por isso, os moradores acreditam que a ação do Ministério Público foi resultado de uma articulação entre os empresários do setor imobiliário e o promotor que definiu a ação exigindo a emissão do relatório de impacto ambiental, o que é uma obrigação para qualquer intervenção territorial. Com relação a essa possibilidade, Miranda (2002) fornece um elemento que comprova tal articulação. Ela entrevistou pessoas ligadas a entidades ambientalistas, empresários do setor imobiliário e representantes do poder público questionando, sobre a expansão urbana Com relação às pressões para expansão urbana nesta região, um dos entrevistados Promotor do Ministério Público lembrou que em 1994/95, quando da demanda do Departamento de Meio Ambiente da Prefeitura para que sua promotoria atuasse nos processos de embargo e reversão de loteamentos urbanos clandestinos, (...) ele [um representante do MP] avaliou que não tinha competência legal para interferir, ainda que fosse em uma área de proteção ambiental legalmente constituída. Seu entendimento era, e ainda é, de que não havia instrumentos legais em matéria ambiental para tanto, e o caso deveria ser tratado pela Promotoria de Habitação e Urbanismo. Sua atuação na Promotoria do Meio Ambiente tem se restringido mais à questão do tratamento e disposição de esgotos e lixo, procurando fazer com que as Prefeituras da região assinem acordos se comprometendo num prazo de 5 a 10 anos a resolver estes problemas (MIRANDA, 2002, p. 198). 175 Pelo trecho acima, podemos deduzir que o promotor entrevistado tem uma preocupação muito maior com a infra-estrutura urbana do que com a expansão urbana sobre áreas rurais, ainda que essas áreas sejam de proteção ambiental. O promotor que exigiu a emissão do EIA-RIMA para a ampliação de Viracopos afirmou que “o esforço [que ele despendia] vem no sentido de promover uma adequada destinação para o problema do lixo, para os resíduos em geral produzidos no município, a questão do tratamento dos esgotos, que foi algo que levou a um equacionamento através de um termo de compromisso de longo prazo, cujo cumprimento vem sendo acompanhado.” Há, ainda, uma outra questão que merece ser ressaltada: nem mesmo para a área onde residem os moradores havia sido elaborado o EIA-RIMA, ou seja, durante muitos anos, não houve preocupação em requisitar da Infraero um estudo dessa natureza. Isso significa afirmar que em todo esse tempo a discussão do projeto de ampliação de Viracopos girou em torno da desapropriação das famílias para a expansão do aeroporto, e não pela exigência do EIA-RIMA. Há um movimento, quando se trata da relação sociedade-natureza, que precisa ser ressaltado. Quando se inicia um processo socioespacial como a ocupação de uma área por loteamentos, como a ocupação de uma área de proteção ambiental ou qualquer outro que seja o exemplo, não há como estabelecer padrões de controle fora da legislação vigente ou dos 176 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 limites próprios da ação. Por isso, para descontentamento dos empresários ligados ao setor imobiliário de Campinas, pelo menos aqueles que estavam interessados na remoção das famílias, a ação do Ministério Público não conseguiu barrar os investimentos públicos nos bairros anteriormente ameaçados de desapropriação. O que ocorreu foi exatamente o inverso: algumas obras já começaram a ser implantadas, principalmente aquelas referentes à infraestrutura.. No dia 19 de maio de 2006, o jornal Correio Popular noticiava que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por três votos a zero, revogou a liminar que impedia a prefeitura de investir nos bairros. Assim, as obras para a melhoria dos bairros começaram no início de agosto de 2006, sendo que os primeiros investimentos estavam sendo feitos na implantação da rede energia elétrica e na rede de água e esgoto. O promotor entrevistado reconheceu que, com os investimentos nos bairros, dificilmente aquela área seria desapropriada no futuro, consumando, portanto, o fato que os empresários queriam evitar: a permanência dos moradores nas proximidades de Viracopos. Depois de anos sendo ameaçados de sofrerem um processo de desterritorialização, no sentido que explicou Haesbaert (2004), os moradores conseguiram garantir que suas reivindicações fossem atendidas e, dessa forma, contrariaram os interesses do setor imobiliário que, na maioria dos casos, são diretamente beneficiados pelo poder público. Esses setores, quando beneficiados, contribuem para a produção de uma cidade onde impera a lógica capitalista da produção do espaço, territorializando cada vez mais o problema da segregação socioespacial, exemplificada pelas dificuldades de acesso à terra urbana pelos grupos economicamente desfavorecidos. Assim, como afirmou SOUZA (2006), “algumas vezes com o aparato estatal local, algumas vezes a despeito do Estado, algumas vezes contra o Estado”, a sociedade vai elaborando “estratégias alternativas visando a organização espacial”. Por isso, os “movimentos sociais podem e devem conceber” (...) “estratégias socioespaciais radicais e complexas” (p. 339). 5. Considerações finais Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... porque as obras de ampliação ainda não foram finalizadas, sendo que novos acontecimentos podem surgir no decorrer do tempo. Um dos acontecimentos não previstos foi o acidente com avião no Aeroporto de Congonhas, em julho de 2007, que resultou na morte de 199 pessoas. Esse acidente acirrou a crise aérea que se instaurara no Brasil em 2006 e trouxe à tona, como uma das soluções, a aceleração da ampliação do Aeroporto de Viracopos como uma alternativa para diminuir a sobrecarga de pousos e decolagens em Congonhas por causa da localização daquele aeroporto, no município de Campinas, a 90 quilômetros de São Paulo. A localização (fator geográfico inquestionável), a necessidade de se reorganizar o movimento do tráfego aéreo na metrópole (São Paulo) com a conseqüente ampliação do Aeroporto de Viracopos e a resistência dos moradores nos Jardins Campo Belo I e II, nas proximidades do aeroporto, que seriam fatalmente atingidos pela desapropriação e remoção para outras áreas, provocando sua desterritorialização, imbricam-se como elementos que se contradizem e se complementam na dinâmica socioespacial da produção, apropriação e uso do espaço urbano. Por outro lado, podemos afirmar que a dimensão política do processo de produção do espaço urbano não pode ser ignorada, pois ficou evidente que, para se entender os conflitos que regem a lógica de produção da cidade, devemos levar em conta interesses diversos, que se manifestam em escalas locais e supralocais em diferentes momentos históricos, criando condições para a emergência e atuação de atores políticos que disputam poder entre si e que, portanto, territorializam-se em diferentes momentos e de forma diversa. A análise, mesmo que privilegie uma escala (local), não pode negligenciar atores e fatos em outras escalas de poder (estadual, federal e mesmo internacional) que têm influência, em diferentes magnitudes, na produção do espaço e na apropriação do território na cidade. Bibliografia CASTELLS, M. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Acreditamos que, com este texto, demonstramos como a apropriação do espaço urbano pode se concretizar por diferentes grupos sociais a partir de um exemplo de como se dão os conflitos entre diferentes atores. É necessário ressaltar que de forma alguma consideramos esgotado o assunto envolvendo a expansão do Aeroporto de Viracopos, até mesmo 177 CASTELLS, M. Cidade, democracia e socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CORRÊA. R. L. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989. 178 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-180 Eliseu Savério Sposito e Thiago Aparecido Trindade – Produção do espaço... CORREIO POPULAR. Disponível em <www.cpopular.com.br> Data de acesso: março a setembro de 2006. pensamento autonomista. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: UFRJ, 1988. COSTA. N. R. Políticas públicas, justiça distributiva e inovação: saúde e saneamento na agenda social. São Paulo: Hucitec, 1998. SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. GOTTDIENER, M. 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O que pode o ativismo de bairro: Reflexão sobre as limitações e potencialidades do ativismo de bairro à luz de um 179 180 Leandro Bruno dos Santos – Resenha: Chang Ha-Joon. Chutando a escada... RESENHA CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada. A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004, 266 p. Leandro Bruno dos SANTOS1 Este livro foi publicado originalmente em inglês [Kicking away the ladder: development strategy in historical perspective] no ano de 2002. O autor do livro, Ha-Joon Chang, é coreano e professor na University of Cambridge, onde é diretor-assistente de estudos sobre o desenvolvimento. Chang, além de ter sido consultor de diversas organizações internacionais (Unctad, Wider, Banco Mundial etc.), recebeu prêmios por publicações e por seu trabalho em desvendar os problemas enfrentados pelos países pobres em suas trajetórias de desenvolvimento. O título do livro, Chutando a escada, é uma referência à obra The National System Of Political [O sistema nacional de economia política], de Friedrich List – economista alemão considerado o pai da indústria nascente e defensor do papel do Estado no desenvolvimento das indústrias em países com estágios de desenvolvimento atrasados. List cunhou a expressão “chutar a escada” para designar o papel que a Inglaterra, depois de lançar uma série de políticas “ruins” visando chegar ao desenvolvimento, exerceu sobre os demais países por meio da idéia de laissez-faire. Os economistas ingleses Adam Smith, Jean Baptiste Say, David Ricardo e William Pitt, com suas obras, ajudaram a cimentar a doutrina cosmopolita do livre comércio como o principal responsável pelo desenvolvimento da Inglaterra. Ha-Joon Chang, nesse livro, mostra que os países em desenvolvimento têm sofrido pressões pelos países desenvolvidos e das políticas internacionais controladas pelo establishment a adotar “políticas boas” e “boas instituições” para promover o desenvolvimento. As “boas políticas” são as macroeconômicas restritivas, a liberalização do comércio internacional e dos investimentos, a privatização e a desregulamentação e as “boas instituições” são a democracia, o judiciário independente, Mestrando do programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected]. 1 proteção aos direitos de propriedade privada, governança empresarial, banco central independente etc. Curiosamente, os dados históricos presentes no livro mostram que as “políticas boas” e as “instituições boas” contradizem a visão ortodoxa da história do capitalismo, isto é, o papel das políticas de laissez-faire e das instituições no desenvolvimento econômico dos atuais países desenvolvidos. As políticas e instituições recomendadas são, pois, na argumentação de Chang, uma forma de esconder os segredos do sucesso e de, ao mesmo tempo, “chutar a escada” pela qual subiram ao topo para impedir que os atuais países em desenvolvimento consigam alavancar o desenvolvimento de suas economias. O livro está organizado em quatro capítulos. No primeiro, questiona as políticas utilizadas pelos atuais países desenvolvidos. No segundo, avalia as políticas industrial, comercial e tecnológica dos países atualmente desenvolvidos (PADs). No terceiro, analisa o surgimento e o papel das instituições no desenvolvimento dos PADs. No quarto, argumenta que os PADs estão tentando “chutar a escada” pela qual chegaram ao topo. No primeiro capítulo, Como os países ricos enriqueceram de fato?, destaca que são raros os estudos que abordam as experiências históricas dos países atualmente desenvolvidos, fato que contribui para a predominância da idéia de livre comércio defendida pelos neoclássicos. Chang utiliza-se, assim, da abordagem histórica do desenvolvimento para criticar a prevalência do discurso em prol das “políticas boas” e das “instituições boas”. A análise histórica, cujo início deu-se com List e depois foi a base da escola histórica alemã, não se restringe a compilar e catalogar fatos históricos na esperança de que isso venha a gerar naturalmente um modelo. Pelo contrário, exige uma busca persistente de modelos históricos, a construção de teorias que os expliquem e a aplicação dessas teorias a problemas contemporâneos, ainda que sem deixar de levar em conta as circunstanciais alterações tecnológicas, institucionais e políticas (CHANG, p. 18). A partir da análise histórica, Chang conclui que: i) os PADs recorreram a políticas industriais “ruins” para proteger suas indústrias nascentes e subsidiaram a exportação, práticas hoje condenadas pela OMC; ii) os PADs não tinham, antes do final do século XIX e início do século XX, as instituições agora consideradas essenciais aos países em 182 Caderno Prudentino de Geografia, nº29 - 157-160 desenvolvimento. A resposta para a pergunta do primeiro capítulo, como os países ricos enriqueceram de fato, é “que eles não seriam o que são hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que agora recomendam às nações em desenvolvimento” (p. 13). No segundo capítulo, Políticas de desenvolvimento econômico: perspectiva histórica das políticas industrial, comercial e tecnológica, avalia os tipos de políticas industriais, científicas e tecnológicas adotas pelos PADs (Grã-Bretanha, EUA, Alemanha, França, Suécia, Bélgica, Holanda, Suíca, Japão e NIPs) quando eram ainda países em desenvolvimento. Ghang demonstra “que a maioria deles aplicou políticas quase opostas ao que a ortodoxia atual diz que eles aplicaram e recomenda aos atuais países em desenvolvimento” (p. 38). A análise histórica das políticas pró-desenvolvimento de um elevado número de países desenvolvidos indica que houve diversos modelos de promoção à indústria nascente, como subsídios à exportação, concessão do direito de monopólio, acordos para a cartelização, redução das tarifas de insumos usados para a exportação, créditos diretos, planejamento dos investimentos, apoio à P&D, promoção de instituições que viabilizassem a parceria público-privada etc. Com base nesses “achados”, Chang destaca que os países em desenvolvimento têm sido menos protecionistas que os PADs em suas trajetórias de desenvolvimento. No terceiro capítulo, Instituições e desenvolvimento econômico: a “boa governança” na perspectiva histórica, debruça-se na análise histórica de um elevado número de instituições e de suas evoluções nos PADs, tendo como objetivo demonstrar que, mais do que rejeitar o transplante das instituições ou deixar que elas evoluam naturalmente, é preciso aprender com a história. Com esse objetivo, estabelece uma análise histórica da consolidação das seguintes instituições: democracia; burocracia e judiciário; regimes de direito de propriedade; governança empresarial; instituições financeiras; instituições de bem-estar social. Feita a análise histórica, conclui que o processo de desenvolvimento institucional dos países em desenvolvimento de outrora foi lento e irregular. Comparando os níveis de progresso institucional dos PADs com os em desenvolvimento de hoje, pode-se dizer que estes últimos “têm níveis muito mais elevados de progresso institucional do que tinham os PADs em estágios comparáveis de desenvolvimento” (p. 188) e, levando-se em conta que as instituições foram desenvolvidas durante décadas e mesmo 183 Leandro Bruno dos Santos – Resenha: Chang Ha-Joon. Chutando a escada... gerações, “a exigência atual e tão generalizada de que os países em desenvolvimento adotem, imediatamente ou nos próximos cinco a dez anos, instituições de “padrão mundial”, ou que sofram punições por não terem feito, parece contrariar a experiência histórica dos próprios PADs” (p. 200). No quarto, Lições para o presente, discute se é deveras possível afirmar que a pressão exercida pelos países desenvolvidos para que os países em desenvolvimento adotem “boas políticas” e a “boa governança” seja um ato de “chutar a escada”. Adoção de políticas neoliberais, pelos países em desenvolvimento, criou um paradoxo: as “políticas boas”, em vez de crescimento, foram uma decepção2. Aliás, as “políticas ruins”, implantadas durante os anos de 1960 e 1980, produziram melhores efeitos do que as “boas”. O interessante é que as “políticas “ruins” são basicamente as que os PADs aplicaram quando eram países em desenvolvimento. Diante disso, só podemos concluir que, ao recomendar as tão proclamadas políticas “boas”, os PADs estão, efetivamente, “chutando a escada” pela qual subiram ao topo” (p. 214). O que fazer, então, após o fracasso das políticas impostas pelo establishment? Chang, diante dessa pergunta, propõe: i) divulgar os fatos históricos ligados ao processo de desenvolvimento dos países desenvolvidos; ii) mudar as condicionalidades impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial no socorro financeiro dos países em desenvolvimento; iii) estimular o aprimoramento institucional sem confundir com a imposição de instituições anglo-americanas; iv) permitir que os países adotem políticas e instituições mais apropriadas ao seu estágio de desenvolvimento. Ha-Joon Chang oferece um livro com muitos dados históricos, de leitura agradável, e uma leitura original sobre o desenvolvimento dos países desenvolvidos e sobre os seus reais interesses nos países em desenvolvimento. É um livro que pode, e deve, ser lido por economistas, historiadores, geógrafos e por todos aqueles que, direta e indiretamente, têm preocupações com o desenvolvimento dos países pobres e em estágio de desenvolvimento. Sobre os resultados da implantação das políticas neoliberais nos países em desenvolvimento, especialmente no Brasil, ver: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Macroeconomia da estagnação. Crítica da ortodoxia convencional no Brasil pós 1994. São Paulo: Editora 34, 2007. 2 184 Compêndio – Caderno Prudentino de Geografia: 1981/2007 COMPÊNDIO - CADERNO PRUDENTINO DE GEOGRAFIA: 1981-2005 Ano 1, nº 1 – 1981 GARMS, Armando. O Pantanal Matogrossense e Corumbá: roteiro de uma excursão. p. 7-27. ANTONIO, Armando Pereira. A presença do imigrante alemão no município de Presidente VenceslauSP (Primeiras notas).p. 28-34. LITHOLDO, Augusto. Geografia e dialética. p. 35-50. ABREU, Dióres Santos. Que é História? p. 51-53. SALGADO, Fernando Carlos F. 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Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior - Universidade Estadual Paulista (UNESP campus de Pres.Prudente) - Pres.Prudente, SP. Profa. Dra. Beatriz Ribeiro Soares - Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Uberlândia, MG. Prof. Dr. Everaldo Santos Melazzo - Universidade Estadual Paulista (UNESP Pres.Prudente) - Presidente Prudente, SP. Prof. Dr. Eliseu Savério Sposito - Universidade Estadual Paulista (UNESP campus de Pres.Prudente) - Pres.Prudente, SP. Profa. Dra. Helena Copetti Callai - Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (UNIJUI) – Ijuí, RS. Prof. Dr. João Lima Sant’Anna Neto - Universidade Estadual Paulista (UNESP – campus de Pres.Prudente) – Presidente Prudente, SP. Profa. Dra. Lana de Souza Cavalcanti - Universidade Federal de Goiás (UFG) – Goiânia, GO. Profa. Dra. Luzia Neide Coriolano - Universidade Estadual do Ceará (UECE) – Fortaleza, CE. Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Campinas, SP. Profa. Dra. Vanda Ueda - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre, RS. Prof. Dr. William Rodrigues Ferreira - Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Uberlândia, MG. Prof. Ms. Xisto Serafim de Santana de Souza Júnior - Universidade Estadual Paulista (UNESP- Pres.Prudente). 1. O Caderno Prudentino de Geografia é uma publicação anual da Associação dos Geógrafos Brasileiros, Seção Local de Presidente Prudente. O periódico publica artigos, notas, resenhas e comunicações de pesquisa de todas as áreas do conhecimento geográfico, em português, espanhol e inglês. Os textos devem representar trabalhos originais e inéditos. Serão aceitas traduções de artigos publicados recentemente no exterior e também de Revistas Eletrônicas. As resenhas serão priorizadas sempre que possível, a partir de obras publicadas recentemente no Brasil e no exterior. 2. Os artigos deverão ter de 15 a 30 laudas, incluindo tabelas, mapas, figura, etc; as comunicações de pesquisa, de 5 a 8 laudas e as resenhas, de 3 a 5 laudas (texto em fonte Garamond, tamanho 11, espaçamento simples). Na primeira folha, deve constar título (Garamond, tamanho 12, negrito, centralizado, espaçamento simples), nome do(s) autor(es) (Garamond, tamanho 12, sobrenome em maiúsculas e negrito, espaçamento simples, centralizado), identificação funcional (endereço completo, telefone/FAX, e-mail e instituição na qual atua). A configuração das páginas deve seguir a formatação: Tamanho do papel personalizado com largura de 15,8 cm e altura de 21,9 cm; margens superior e externa de 2cm , inferior e interna de 2,5 cm, medianiz de 0 cm; cabeçalhos e rodapés com as opções “diferentes em páginas pares e ímpares” e “diferente na primeira página” selecionadas; cabeçalho de 1,0 cm e rodapé de 1,27 cm e alinhamento vertical superior. Os originais devem ser enviados para [email protected], obrigatoriamente no programa word for windows da Microsoft Corporation, a partir da versão 6.0. 3. As notas de rodapé (Garamond, tamanho 9, espaçamento simples e justificada) devem se restringir a 3 linhas e não devErão ser usadas para referências bibliográgicas. 4. Deverão ser encaminhados, necessariamente: resumo e abstract de no máximo 200 palavras em um só parágrafo cada um, título em português e inglês e palavras chave (até 5) em português e em inglês (key-words), seguindo as seguintes especificações: Garamond, tamanho 10, espaçamento simples, justificado. 201 5. Cabe ao Conselho Editorial a decisão final de publicar os trabalhos. 6. As menções a idéias e/ou informações no decorrer do texto devem subordinar-se ao esquema (Sobrenome do autor, data) ou (Sobrenome do autor, data, página). Ex.: (TOLEDO, 1991) ou (TOLEDO, 1991, p.25). Caso o nome do autor esteja citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses. Ex.: “Nesse sentido, Monteiro (2003) afirma que...”. Diferentes títulos do mesmo autor publicados no mesmo ano devem ser identificados por uma letra minúscula após a data. Ex.: (TOLEDO, 1994a), (TOLEDO, 1994b). 7. A bibliografia deve ser apresentada no final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome do(s) autor(es) e deve obedecer às normas da ABNT. a) no caso de livro: SOBRENOME, Nome.Título: subtítulo.Edição. Local de publicação: Editora, Data. Número de volumes ou páginas. Ex.: CORRÊA, Roberto Lobato. Trajetórias geográficas. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 235p. b) no caso de capítulo de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org). Título do livro. Local de publicação: Editora, data. Página inicial-final. página inicial-página final. Ex.: SIQUEIRA NETO, José Francisco. Contrato coletivo de trabalho. In: OLIVEIRA, Carlos Alonso (Org.). O mundo do trabalho. São Paulo: Página Aberta, 1994. p. 233- 264. c) no caso de artigo de periódicos: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico, Local de publicação, número do volume, número do fascículo, página inicial-final, mês abreviado e ano. Ex.: ALVES, Giovanni. As dimensões do proletariado tardio. Debate Sindical, São Paulo, n.33, ano 14, p. 51-53, maio, 1984. d) no caso de dissertações e teses: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. data de publicação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de concentração) - Nome da Escola, Universidade, Cidade da defesa e data da defesa, mencionada na folha de aprovação (se houver). Ex: BUENO, M. S. S. O salto na escuridão: pressupostos e desdobramentos das políticas atuais para o ensino médio. 1998. 257 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. 8. Ilustrações, gráficos, figuras, fotografias, mapas, quadros, tabelas, etc., deverão limitar-se ao espaço de diagramação da revista e ser de boa qualidade gráfica, e apresentados em tons de cinza.