Rascunhos Culturais V2 N3.indd
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Revista Rascunhos Culturais | Coxim, MS | v. 2 | n. 3 | p. 1 - 220 | jan./jun. 2011 1 WPKXGTUKFCFG"HGFGTCN FG"OCVQ"ITQUUQ"FQ"UWN CURSO DE LETRAS - CAMPUS DE COXIM REITORA Célia Maria Silva Correa Oliveira VICE-REITOR João Ricardo Filgueiras Tognini DIRETOR DO CAMPUS DE COXIM Gedson Faria COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS Marta Francisco de Oliveira EDITORA RESPONSÁVEL Geovana Quinalha de Oliveira IMAGEM DE CAPA Henrique Spengler, “Guaicuru II”, Co!on -1997 - 60 x 40 cm. Acervo do Museu Olho Latino. REVISÃO A revisão linguística e ortográfica é de responsabilidade dos autores CÂMARA EDITORIAL Eliene Dias de Oliveira Santana Flávio Adriano Nantes Nunes Geovana Quinalha de Oliveira Marta Francisco Oliveira Marcos Amorim Maria Luceli Faria Batistote CONSELHO CIENTÍFICO Ana Paula Squinelo (UFMS) Alberto Oliveira Pinto (FLUL) Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT) Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN) Clelia Maria Lima de Mello e Campigo!o (UFSC) Edgar Cézar Nolasco dos Santos (UFMS) Glaucia Muniz Proença (UFMG) Heloisa Helena Pacheco Cardoso (UFU) José Batista de Sales (UFMS) Luis Abel dos Santos Cezerilo (UEM) Maria Adélia Menegazzo (UFMS) Marcio Markendorf (UFSC) Marcos Menezes (UFG) Sheila Dias Maciel (UFMT) Rosana Carla Gonçalves Gomes Cintra (UFMS) Rosangela Patriota (UFU) Vera Lúcia Puga (UFU) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Revista rascunhos culturais / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (2010)- . Coxim, MS : A Universidade, 2010- . v. ; 22 cm. Semestral ISSN 2177- 3424 1. Cultura - Periódicos. 2. Línguas e linguagem – Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22) 050 2 Sumário Apresentação Artigos 11 29 A literatura brasileira no mapa espanhol 43 59 De Oswald à Ruffato: o sensível e (n)o cinema 75 103 127 Lucilene Machado Garcia Arf Homens de letras na República Velha: legitimadores e críticos da nova ordem social Luis de Almeida Marta Scherer João Guilherme Dayrell Subproduto do cinema? a chanchada e o caráter cômico e político do filme “Nem Sansão nem Dalila”, de 1950 Dolores Puga Alves de Sousa Átila Alixandre De Moraes A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade: “Garra negra”, de Jacques Martin Alberto Pinto Ferreira Gullar – Sobrevoo, Rasante Arthur de Vargas Giorgi Quanto vale ou é por quilo? – uma breve discussão sobre raça, gênero e ações afirmativas Bianca Buse 3 137 153 Por uma visão não metonímica de cultura 169 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 183 Oralidade e memória: aromas exalados de “Pé-de-perfume” 193 Singularidade cínica e enfrentamento: a coragem da verdade de Mersault em “O estrangeiro” 207 4 Natália Aparecida Tiezzi Martins dos Santos Edgar Cézar Nolasco Itinerários do imaginário contemporâneo: migração, projetos utópicos em “Lucy”, de Jamaica Kincaid Rogério Mendes Coelho David Castro Ne#o Andréia Maria da Silva Lopes Márcia Rejane Brilhante Câmpelo Hadoock Ezequiel de Medeiros Helano Jader Cavalcante Ribeiro A escritura autobiográfica de Clarice Lispector Leilane Hardoim Simões Edgar Cézar Nolasco Apresentação Rascunhar temas culturais exige um exercício crítico de reflexão sobre o que é cultura, quais suas formas de produção e seu impacto na construção do que consideramos sujeito e sociedade atual, em todos os seus desdobramentos. Por meio da linguagem escrita, abordar temas diversos que convergem neste amplo mosaico cultural equivale a reconhecer o direito ao conhecimento, e propagá-lo é um convite ao debate gerador de outros saberes, ao diálogo amplo e aberto. O terceiro número da Revista Rascunhos Culturais traz para o leitor discussões e desafios em torno do lugar ocupado pelas ciências humanas, em especial as de Letras e História. Contemplando, portanto, múltiplos projetos intelectuais, os artigos aqui reunidos estabelecem diálogos e interfaces com pesquisas voltadas para os estudos literários, históricos, cinematográficos e linguísticos. Acreditamos que essa tessitura dialógica promove um intercâmbio crítico que se faz significativo para a pesquisa dessas áreas do conhecimento, como é caso da investigação de Lucilene Machado Garcia Arf em A literatura brasileira no mapa espanhol, na qual a autora nos conduz por uma viagem além-mar e além das letras, ao traçar os meandros dos caminhos que a literatura brasileira percorreu para encontrar em território espanhol um pequeno pedaço de solo onde enraizarse, embora aparentemente pouco fértil. Em seu esforço de delinear esta trajetória, fornece uma orientação rumo a futuros diálogos 5 possíveis. O artigo Homens de letras na República Velha: legitimadores e críticos da nova ordem social, de Luis de Almeida e Marta Scherer, demonstra como os sujeitos intelectuais que viveram a proclamação da República e a Belle Époque foram fundamentais para a construção de um discurso homogêneo e legitimador do estado nação. O texto ressalta, entretanto, as oposições ao modelo discursivo proposto por meio das vozes de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Sílvio Romero. Em De Oswald à Ruffato: o sensível e (n)o cinema, João Guilherme Dayrell investiga o diálogo que os livros “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade e “eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato mantém com a linguagem e as técnicas cinematográficas no cerne de suas construções. O artigo problematiza ainda a categoria do sensível experimentado pelo homem moderno a partir do que Guy Debord chama de “sociedade do espetáculo”. Dolores Puga Alves de Sousa e Átila Alixandre de Moraes em Subproduto do cinema? A chanchada e o caráter cômico e político do filme ‘Nem Sansão nem Dalila’, de 1950, analisam a arte cinematográfica como possível veículo de (re)presentação de discursos sócio-políticos de um dado momento histórico. Nesse sentido, por intermédio do filme “Nem Sansão nem Dalila”, de Carlos Manga, conhecido por ter características das “Chanchadas da Atlântida”, os autores investigam enunciados críticos dirigidos ao governo de Getúlio Vargas. A partir da leitura crítica do texto em quadrinhos “Garra Negra”, de Jacques Martin, Alberto Pinto discute o modo como o autor franco-belga construiu arquétipos identitários que apontam para uma descrição ultrapassada, exótica e colonial do homem africano e da África em A retórica colonial na narrativa histórica sobre Antiguidade: ‘Garra negra’ de Jacques Martin. A poesia de Ferreira Gullar recebe novos olhares a partir da análise empreendida por Arthur de Vargas Giorgi. Nela, o autor busca outras leituras para além das propostas pelo biografismo historicista e pela autonomia estética em Ferreira Gullar – Sobrevoo, Rasante. Bianca Buse propõe reflexões em torno da problemática 6 raça/gênero e ações afirmativas a partir da análise do filme “Quanto vale ou é por quilo?”. A autora discute a presença da impunidade e da violência, o preconceito dispensado à mulher no mercado de trabalho e, especialmente, as problemáticas surgidas pela ausência de ações afirmativas e de políticas públicas no Brasil oitocentista e contemporâneo em Quanto vale ou é por quilo? – Uma breve discussão sobre raça, gênero e ações afirmativas. Em Por uma visão não metonímica de cultura, Edgar Cézar Nolasco e Natália Aparecida Tiezzi Martins dos Santos discutem a conceituação de cultura na sociedade pósmoderna. Em contraponto à leitura universal que tende a englobar em sua estrutura os textos locais/regionais promovendo uma leitura homogeneizante e universalizante, o debate proposto pelos autores gira em torno da possibilidade de se ler a cultura local a partir do próprio local, não negligenciando, desta maneira, o espaço de onde fala o sujeito. As possíveis causas de deslocamento de sujeitos e, por extensão, seus processos de ressignificações sociais são discutidos por Rogério Mendes Coelho em Itinerários do Imaginário contemporâneo: migração, projetos utópicos em ‘Lucy’, de Jamaica kincaid. Ao analisar a escritura de Jamaica Kincaid, o autor destaca a migração como veículo formador de novas vozes que contribuíram para problematizar alguns paradigmas da Teoria e Crítica Literária na contemporaneidade. David Castro Ne#o se vale da história comparada para pôr em discussão a utilização da propaganda feita pelos militares brasileiros via AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas) com o intuito de promover a estabilidade do governo, e o uso que o complexo IPÊS/IBAD (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática) faz da propaganda para buscar a instabilidade do governo Goulart no artigo O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974. Andréia Maria da Silva Lopes, Márcia Rejane Brilhante Câmpelo e Hadoock Ezequiel de Medeiros ressaltam a relevância que a oralidade desempenha na construção da memória cultural e, por extensão, na literatura contemporânea 7 de São Tomé e Príncipe. Assim, a reescritura do gênero oral sóias em “Pé-de-perfume”, da escritora santomense Maria Olinda Beja, é objeto de análise do artigo Oralidade e memória: aromas exalados de ‘Pé-de-perfume’. O último curso de Michel Foucault “Le courage de La vérité” e o conceito de singularidade proposto por Gilles Deleuze são discutidos por intermédio da leitura crítica de “O estrangeiro”, de Albert Camus em Singularidade cínica e enfrentamento: a coragem da Verdade de Mersault em O estrangeiro, por Helano Jader Cavalcante Ribeiro. Finalmente, Leilane Hardoim Simões e Edgar Cézar Nolasco, voltados à reflexão das representações sobre si e o outro, se valem do conceito de autoficção para investigarem traços biográficos de Clarice Lispector dispersos/ (trans)postos no livro “Água Viva” no artigo A escritura autobiográfica de Clarice Lispector. Agradecemos aos autores e leitores por tecer Rascunhos Culturais e os convidamos a (re)pensar e refletir sobre os temas apresentados costurando, assim, essa grande colcha de retalhos do qual se compõe o conhecimento e a pesquisa. Geovana Quinalha de Oliveira Marta Francisco de Oliveira 8 Artigos 9 10 A literatura brasileira no mapa espanhol Lucilene Machado Garcia Arf * Resumo: Já há algum tempo o Brasil se colocou no mercado espanhol como um agente de bens simbólicos e culturais, exportando músicas, danças, telenovelas, cinema e também as chamadas “artes impuras” que circulam nos circuitos minoritários a que foram destinadas, como é o caso de vídeos, revistas que exploram o carnaval e a sensualidade da mulher brasileira. A literatura brasileira tem uma história bastante superficial na Espanha. A questão pode ser idiomática, ou estar relacionada a fatores geográficos ou econômicos como costumam justificar os estudiosos e, pode sim refletir no âmbito cultural, porém são pontos poucos discutidos e seria pertinente uma discussão mais profunda a respeito do assunto. O que este artigo faz é um inventário da presença da literatura brasileira na Espanha até os anos oitenta e os caminhos que percorreu para ser lida, discutida e abrir espaço para o que vieram posteriormente. Palavras-chave: recepção, história, literatura brasileira Resumen: Desde hace algún tiempo, el Brasil se ha colocado en el mercado español como un agente de bienes simbólicos y culturales, ha exportado músicas, danzas, telenovelas, películas y también lo llamado “arte impuro” que circula en los circuitos minoritarios para el cual fueron diseñados, como es el caso de los videos y revistas que explotan el carnaval y la sensualidad de la mujer brasileña. La literatura brasileña tiene una historia * Doutoranda em Teoria da literatura pela Universidade Julio de Mesquita Filho – UNESP, São José do Rio Preto/SP. Bolsista da FUNDECT 11 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 bastante superficial en España. La cuestión puede ser idiomática, o estar relacionada con factores geográficos o económicos como tienden a justificar los académicos, y puede, sí, reflejar en el ámbito cultural, pero son puntos son pocos discutidos y sería importante una amplia discusión sobre el tema. Lo que este artículo hace, es un inventario de la presencia de la literatura brasileña en España hasta los años ochenta y los caminos que tomaron para ser leído, discutido y hacer espacio para lo que vino después. Palabras claves: recepción, historia, literatura brasileña A literatura brasileira, apesar de oferecer uma variedade de gêneros, não deixou raízes profundas na Espanha e, talvez, na Europa. Isso se deve a diversos fatores, mas os principais deles estão ligados à língua. A socióloga francesa Pascale Casanova, em seu livro La Republique mondiale des Le!res (1999), defende a idéia de que a literatura pode ser pensada em termos de mapas mundiais, distribuídos conforme a área lingüística de cada produção. Nessa república de letras, a literatura brasileira pertence à área do português e, portanto, situa-se na periferia, ou conforme ela mesma sustenta, é uma literatura excêntrica. Isso explica o fato de a literatura sulamericana, nossa vizinha geograficamente, tornar-se comercialmente tão interessante na Europa, o mapa linguístico é o espanhol que está em uma posição muito superior a do nosso idioma, além de poder entrar na Espanha sem a necessidade de tradução. Jorge Schwartz no texto “Abaixo Tordesilhas” menciona o clássico entrave linguístico que faz o castelhano mais acessível ao leitor brasileiro do que o português para o leitor de língua espanhola. Nisso reside, segundo ele, uma das barreiras que afastaram o leitor hispânico das obras escritas em português. Os críticos literários brasileiros se debruçaram com muito maior curiosidade sobre a literatura de língua espanhola do que eles pela brasileira. Para ele: 12 A literatura brasileira no mapa espanhol Não encontraremos, até meados do século XX, qualquer intelectual hispânico que tivesse pelas letras do Brasil o interesse abrangente e sistemático que José Veríssimo, Mário de Andrade ou Manuel Bandeira dedicaram às literaturas do continente. (Schwartz, 1993, p. 175) Exemplo citado por Schwartz é Alfonso Reyes , mexicano que muito jovem é exilado na Espanha onde escreve livros em versos, prosa e ensaios. Após ter ficado famoso, o México o incorpora no serviço diplomático e o envia ao Brasil, onde permanece desde o ano de 1930 até 1937. Reyes aproveita sua experiência diplomática para promover um intercâmbio mais próximo com a literatura brasileira e, durante quatro anos dirige no Rio de Janeiro o Correio Literário de Alfonso Reyes, publicado integralmente em espanhol, em que dedica um reduzido espaço ao Brasil. O mesmo pode-se dizer da mexicana Gabriela Mistral em semelhante missão. O Brasil pouco influenciou em suas reflexões literárias. Salvo um caso excepcional em que refletiu sobre o diálogo de Sóror Juana com Padre Vieira, ou a evidente influência de Gôngora e Quevedo na obra de Gregório de Matos, o maior poeta barroco brasileiro. Fatores estes que nos permitem afirmar que o Brasil, como um país considerado parte da América Latina, não consegue tirar proveito disso, ao contrário, torna-se um grande estrangeiro dentro dela, vide as diferenças linguísticas e culturais. Também os projetos culturais desenvolvidos nos países latinos não contribuíram para a ida da literatura brasileira para a Europa. Aina Pérez Fontdevilla, da Universitat autônoma de Barcelona, declarou no IV Encontro Internacional de Investigadores de la Literatura Hispánica celebrado na Universidade de Lisboa (2010) que a literatura brasileira padece, na Espanha, uma dificuldade congênita de difusão, a julgar pelo modo em que se referem aos autores brasileiros e à produção literária do país. Segundo ela, os autores brasileiros têm na Espanha “uma existência fantasmal” e, mesmo ultrapassado os anos 2000, o Brasil continua a ser “uma ilha 13 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 inexplorada, insular, introvertida e desconhecida”, com exceção de Clarice Lispector, Machado de Assis e Guimaraes Rosa, considerados a trindade literária brasileira na Espanha. Para Cristina Peri Rossi, tradutora de vários livros brasileiros para a língua espanhola (2003), a literatura brasileira é pouco conhecida tanto na Espanha como na América Latina. Desde a vasta selva amazônica e o deserto nordestino até a costa luminosa e sensual do Rio de Janeiro, o Brasil abarca muitas regiões, climas, milhares de habitantes de diferentes culturas, sendo que os microcosmos que originam esta diversidade se refletem na literatura que vai desde o regionalismo de Graciliano Ramos até os relatos urbanos de Rubem Fonseca. Segundo ela, a dialética entre as correntes européias e as culturas autônomas, ou de herança africana permite que existam poetas românticos que publicaram manifestos de poesia em Paris, até narradores naturalistas ou existencialistas. Mesmo com as difíceis condições políticas, no caso o período da ditadura brasileira, a narrativa e a poesia do Brasil continua a produzir autores de grande interesse, ainda que poucos difundidos fora de sua fronteira. Rompendo as fronteiras A primeira informação sobre Literatura de língua portuguesa produzida no Brasil chegou à Espanha em 1855. O escritor Juan Valera, depois de dois anos em uma missão diplomática no Rio de Janeiro escreve uma coleção de artigos para a Revista Española de Ambos Mundos que mais tarde reuniu em forma de ensaio sob o título de La poesia del Brasil, em Madrid. Também escreve uma vasta correspondência para seus amigos espanhóis. Em algumas cartas pode-se encontrar sua opinião sobre as obras de autores brasileiros, o que, segundo Calderaro (2009), talvez sejam as primeiras críticas acerca da produção literária no Brasil. Do Rio, em uma carta a Serafín Estébanez Calderón – escritor romântico espanhol – com data de 13 de fevereiro de 1852, Valera escreve: 14 A literatura brasileira no mapa espanhol Los brasileños son muy amigos de la música y de la poesía (…). De poetas hay por aquí un enjambre, y algunos buenos; Magalhães que está ahora en Nápoles de ministro, y Gonçalves Dias son los mejores; pero en particular este último, que ha sabido dar a sus composiciones la novedad, el primor, las galas del país en que nacieron, y la vida y el fuego de este clima. (Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro. 1996 p. 68)1 Em outra carta, datada de 09 de março de 1853, resume a história da obra Marilia de Dirceu ao mesmo amigo Estébanez Calderón: Se trata de la Marilia de Dircéo. Por los años de 1783, vivía esta hermosa dama en Villa-Rica, capital de la provincia de Minas-Geraes, y era amada con el más tierno y ferviente cariño por el magistrado Gonzaga, que no es otro sino el poeta Dircéo. Favorito este por las musas, e inspirado de Amor, compuso en elogio a la bella, tan lindos, inocentes y delicados versos, que vivirán siempre en la memoria de cuantos saben la lengua portuguesa. (Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro. 1996: 68)2 Valera continuaria a escrever ao mesmo amigo em carta datada de 12 de Julio de 1853, referindo-se agora ao romântico brasileiro Manuel Araújo Porto-Alegre: La mayor novedad literaria de por aquí es el “Poema de Colón”, que está escribiendo Porto-Alegre. He visto algunos fragmentos en el Guanabara Revista Literaria. Dejo para otra vez hablar de ellos. Luego 1 Os brasileiros são mui amigos da música e da poesia (...). De poetas, há por aqui um enxame, e alguns bons; Magalhães que está agora em Nápoles de ministro, e Gonçalves Dias são os melhores; porém este último, particularmente, soube dar a suas composições a novidade, o primor, os enfeites do país em que nasceu e a vida e o fogo deste clima. (Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro. 1996 p. 68). 2 Trata-se de Marilia de Dirceu. Por volta dos anos 1783, vivia esta bela dama em Vila Rica, capital do estado de Minas Gerais, e era amada com o mais terno e fervente carinho pelo magistrado Gonzaga, que não é outro senão o poeta Dirceu. Favorito este pelas musas e inspirado de amor, compôs o elogio à bela, tão lindos, inocentes e delicados versos que viveram na memória de todos os que conhecem a língua portuguesa. ( Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro, 1996:68) 15 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 que el poema se publique, le mandaré a usted y en cambio espero que usted me envíe el de Campoamor sobre el mismo asunto. (idem)3 Seguindo os moldes da época, na Revista Española de Ambos Mundos o autor comenta a diferença existente entre a paisagem brasileira e portuguesa, a natureza imponente e bela, assim como as distintas raças e populações que habitam o país. Fala do índio e do diferencial do negro escravo, acentuando seus excelentes dotes musicais. São quatro os poetas a quem se refere o escritor cordobês: dois do século XVIII e dois do século XIX. Todos eles são destacados pela temática indigenista e a grandeza das descrições paisagísticas sempre belas e exuberantes. O primeiro poeta destacado é Basílio da Gama, autor do poema épico “Uraguai”, publicado no Brasil em 1769, que Valera reproduz várias estrofes na língua original. O segundo é Santa Rita Durão, autor do poema “Caramuru”, publicado em 1781. Dele também se explora o conteúdo e se reproduz alguns versos. O terceiro poeta é Gonçalves Dias, de quem se menciona algumas composições, citando como exemplo o poema “Juca-Pirama”, em que pinta maravilhosamente as feras e os costumes das tribos selvagens. Finalmente se compromete a falar com mais profundidade da nova poesia que está surgindo no país sul-americano, especialmente de Manuel Araujo Porto-Alegre. Entretanto, Juan Varela não cumpriu a promessa, tampouco nenhum outro escritor de sua geração se ocupou da literatura brasileira. Também é importante citar outra referência ao Brasil escrita pelo famoso filólogo, poeta e historiador espanhol Menéndez Pelayo, em carta enviada a seu amigo romancista José Maria de Pereda e datada de Lisboa, em 31 de outubro de 1876, onde faz comentários sobre Gonçalves Dias e denuncia o desconhecimento dos portugueses sobre a literatura produzida no Brasil: 3 A maior novidade literária daqui é o “Poema de Colombo” que está escrevendo Porto-alegre. Vi alguns fragmentos no Guanabara – Revista literária. Em outra oportunidade, falo sobre eles. Logo que o poema seja publicado eu lhe mandarei e, em troca, espero que o senhor me envie o de Campoamor sobre o mesmo assunto (idem). 16 A literatura brasileira no mapa espanhol El Brasil es aún más rico que Portugal en poetas líricos, y los ha tenido de primer orden, como Gonçalvez Dias, en lo que va de siglo. La literatura brasileña, a parte de sus ingenios más esclarecidos, no es tan conocida como debiera en su antigua metrópoli. (Menendez Pelayo, apud Calderaro, 2009)4 Entrando no século XX, a literatura brasileira aparece na revista Electra, que circulou apenas entre os meses de março a maio de 1901 e teve como responsáveis nomes de valores como Valle-Inclán, Villaespesa, Pio Baroja e Manuel Machado e contou com colabores como Rubén Darío e Juan Ramón Jiménez, por exemplo. Nas páginas da efêmera revista foi feita uma das primeiras apresentações de poetas brasileiros por Viriato Diaz, o que não se sabe, ao certo, é quais poetas fizeram parte da publicação. Depois de Electra, outras marcas começam a ser mais nítidas nas revistas culturais de Espanha. Cosmópolis, revista de Enrique Gómez Carrillo com duração de janeiro de 1919 a setembro de 1922 e periodicidade mensal, foi uma publicação amplamente cultural com destaque para a literatura. Foi dedicado grande espaço para os escritores estrangeiros, incluindo os portugueses Guerra Junqueira e Eça de Queiróz, entre outros. Mas, no número 3, de março de 1919, dedica treze páginas na apresentação da mais saliente e importante personalidade do Brasil: Rui Barbosa. O número 5, de maio de 1919, dedica três páginas aos poemas de Olavo Bilac, além de um artigo que começa anunciando a morte do poeta. Em janeiro de 1927, surge uma das revistas consideradas mais importantes do final da década de vinte e início da seguinte, La gaceta literária, fundada e dirigida por Ernesto Giménes Caballero e 4 O Brasil é um país mais rico que Portugal em poetas líricos e os tem de primeira ordem, como Gonçalves Dias, até o momento, neste século. A literatura brasileira, à parte de seus engenhos mais esclarecidos, não é tão conhecida como deveria em sua antiga metrópole. (Menendez Pelayo, apud Calderaro, 2009) 17 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 Guillermo de Torre como secretário de redação. A revista teve uma trajetória mais longa que as anteriores chegando a 123 números, numa periodicidade quinzenal, durando até o ano de 1932, sendo que nos seis últimos números circulou com o nome de Robinsón Literário. Segundo Calderaro, além de ser uma publicação comprometida com o desenvolvimento do vanguardismo espanhol, em edital do seu primeiro número declara que queria ser ibérica, americana e internacional. Em 1929, a partir do número 49, surgem as sessões “La gaceta portuguesa” e “La Gaceta Americana”, de modo que o Brasil participa das duas. No número 50, de 15 de janeiro de 1929, “La gaceta portuguesa” apresenta em sua quinta página um estudo intitulado “La literatura brasileña contemporânea” que começa defendendo o poder imaginativo do brasileiro, falando da fauna e flora fantásticas que evidentemente haveriam de provocar nos homens uma exaltação, uma imaginação muito superior a das gentes do amável Portugal. Na sequência, cita um exagerado número de escritores brasileiros que vão desde os naturalistas até os parnasianos, deixando transparecer a superficialidade do texto. Além disso, não comenta nada sobre as propostas modernistas e sobre os novos rumos que tomaria então a literatura brasileira. Um ano depois, em 15 de janeiro de 1930, a literatura brasileira volta a aparecer na Gaceta literária, dessa vez na coluna “La gaceta americana” em artigo de uma página e meia, redatado pelo escritor chileno Gerardo Seguel, que demonstra uma visão mais crítica de acordo com os últimos acontecimentos culturais da época. O texto analisa uma das mais importantes revistas do modernismo brasileiro que é Antropofagia e apresenta na sequência uma série de traduções dos poemas de Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Ronald de Carvalho, Meno#i del Picchia, Cecília Meirelles, Augusto Meyer, Jorge de Lima e Tasso da Silveira, entre outros. Depois da década de XX, do passado século, Rafael Cansinos-Assens traduziu para a editora América de Madrid, uma seleção de contos de 18 A literatura brasileira no mapa espanhol Machado de Assis, que foi publicado com o título de Sus mejores cuentos. Em 1930, o poeta Francisco Villaespesa iniciou suas traduções da poesia de língua portuguesa na América. O grande projeto de Villaespesa era – por encargo do governo brasileiro – criar uma “Biblioteca brasileira” de oitenta volumes que acolhesse as obras mais importantes dos mais significativos autores do Brasil. Villaespesa inicia o projeto, mas, infelizmente, uma súbita enfermidade fez com que abandonasse o trabalho e regressasse à Espanha, onde morreu em 1936. Em 1978 a Revista de Cultura Brasileña, correspondente ao mês de junho, organiza um livro com as versões não publicadas de Villaespesa. Nela se pode observar a extraordinária capacidade versificadora do poeta espanhol, o que permite supor que a “biblioteca brasileira” teria sido fundamental para a história da tradução e difusão da literatura brasileira na Espanha. Este fato, bem como a perda de um baú em que transportava seus documentos, impediu que a proposta se concretizasse como anteriormente projetada. Apenas vieram à luz três livros: Sonetos e poemas de Olavo Bilac, El navío negrero y otros poemas de Castro Alves e Toda la América de Ronald de Carvalho. No ano de 1946, surge na Espanha a revista Ínsula, fundada por Enrique Canito e Luis Cano, com o objetivo de recuperar a literatura do exílio e colocá-la em contato com as novas gerações espanholas, instituindo a primeira publicação verdadeiramente independente do pós-guerra que ainda continua a funcionar. Junto com as revistas La estafeta literária e Índice de artes y letras constituem, nos anos 50 um relevante meio para os debates literários em torno dos gêneros e dos autores. Os textos de literatura brasileira, ou sobre esta, foram freqüentes no decorrer dos anos, do que se pode aferir que a literatura brasileira era comentada em algumas importantes revistas culturais da época com relativa circulação nos meios intelectuais e artísticos, no entanto, é irrisório se comparado com a literatura de outros países, além se ser apresentada de forma descontínua, fragmentada e com pouca profundidade. 19 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 Vinte anos após o projeto frustrado de Villaespesa, Oswaldo Rico publicou, em 1948, por meio do Instituto Cervantes, uma antologia com o título Poetas del Brasil, bastante incompleta, entre outras razões, por ignorar a poesia escrita na primeira metade do século XX. Pouco depois, Alfonso Pintó traduziu a Antologia de poetas brasileños de ahora, dentro de uma coleção chamada “O livro inconsútil”, editada em uma imprensa artesanal do poeta João Cabral de Melo Neto, então diplomata em Barcelona nos anos de 1947 a 1950. A antologia em questão, completa, em parte, a seleção de Rico, ao publicar poemas de autores não citados pelo primeiro. Por outro lado, João Cabral teve a oportunidade de contatar, em Barcelona, intelectuais e artistas espanhóis e reuniu na mencionada coleção, de escassa tiragem, ainda que com boa qualidade tipográfica e estética, poetas catalães como Joan Brossa ou Juan Eduardo Cirlot e os brasileiros Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes ou ele mesmo. Posteriormente, em 1952, Renato de Mendoza publicou a Antologia de la poesia brasileña, muito mais completa que as mencionadas anteriormente, traduzidas por Rafael Morales e Rafael Santos Torroella, e, por entusiasmo e iniciativa de Cabral, criou-se a Revista de cultura brasileña, editada pela embaixada do Brasil na Espanha, cuja primeira série, dirigida por Ángel Crespo, perdurou de 1962 até 1968. Durante os seis anos, a revista reproduziu poemas, entre outros, de Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, Raúl Bopp, bem como uma seleção de poetas parnasianos, simbolistas e românticos que foram traduzidos pelo próprio Crespo e pelo poeta e acadêmico Dámaso Alonso. Recuperando as antigas traduções e acrescentando outras novas, Crespo publica, em 1973, a Antologia de poesía brasileña, com uma introdução rigorosa e extensa que, juntamente com as versões poéticas, é referência obrigatória para o conhecimento da poesia em língua portuguesa produzida na América. 20 A literatura brasileira no mapa espanhol Mesmo reconhecendo todo o esforço desses intelectuais em abrir caminhos para a literatura brasileira na Espanha, o que tivemos foi uma publicação ínfima em relação, por exemplo, a nossos vizinhos sul-americanos, talvez hispano-americanos que, segundo estudos mais recentes da recepção, têm obtido grandes projeções na Espanha desde o ano de 1967 quando o guatemalteco Miguel Ángel Asturias ganhou o prêmio Nobel de literatura. No mesmo ano surgiu Cem anos de solidão de Gabriel Garcia Marques, que em pouco tempo se converteu em um best-seller. Nos anos seguintes vieram as publicações de Isabel Allende, Octavio Paz e Mario Vargas Llosa. Não há dúvidas de que a literatura hispano-americana gozou de muita popularidade, alavancando a literatura sul-americana de língua espanhola, o que não ocorreu com o Brasil. Latinos e estrangeiros O Brasil não se beneficiou do famoso boom latino americano que atribuiu fama a García Marques, Vargas Llosa ou Borges. Lawrence Venuti, em sua obra Escândalos da tradução, assegura que: O boom foi em grande parte um aumento nas traduções das literaturas hispânicas que negligenciou as evoluções brasileiras contemporâneas: entre 1960 e 1979, as editoras britânicas e americanas publicaram 330 traduções do espanhol, mas somente 64 traduções do português brasileiro. (2002: 318). Segundo a professora Gilda Oswaldo Cruz O Brasil não teve a vantagem de contar, como seus vizinhos de continente, com a vigorosa caixa de ressonância que a renascida Espanha dos finais da década de sessenta significou para os países do sul. O empobrecido Portugal imerso, até 1975, na letargia salazarista, não pôde funcionar como porta literária para sua ex-colônia. (2001: 14) O português, apesar de ter evoluído do galego (idioma falado na Galícia-ES), é ainda visto, por parte dos espanhóis, como uma língua 21 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 “rara”, uma insularidade geográfica e cultural diante das Américas hispânicas. Em geral, as publicações brasileiras foram bastante fragmentadas, poucos títulos por autor e por diferentes editoras, o que não permitiu ao público espanhol a oportunidade de constituir uma opinião mais precisa sobre a narrativa brasileira, dificultando o trabalho dos críticos em relacionar as novas traduções com as publicações anteriores; tínhamos então apenas uma porção de nomes soltos. Sem contar que as publicações brasileiras compunham-se, em sua maioria, de uma literatura romântica e realista/naturalista que se afinavam com os relatos de viagem, populações coloniais, sejam elas índios, escravos ou negros, ou aspectos relacionados com a vegetação, ecossistema, como é o caso de Jorge Amado e Raquel de Queirós, cuja literatura está voltada para temática do nordeste e romance social. Antonio Maura em artigo publicado na Revista de Cultura Brasileña, nº 5, adverte que na década de sessenta a literatura brasileira era praticamente desconhecida na Espanha. Nem mesmo os autores do regionalismo haviam sido traduzidos para a Península espanhola, com exceção de Lins do Rêgo com a obra Cangaceiros, editada em 1957 com tradução de A. Fernandes pela editora Caralt de Barcelona. Angel Crespo passa a ser, a partir dos anos sessenta, o grande divulgador da cultura brasileira na Espanha. Em 1963, em artigo publicado na série antiga da Revista de Cultura Brasileña, faz referência ao escritor Guimarães Rosa. Ele mesmo que traduziria Grandes sertões veredas três anos depois, falava de um autor que descrevia o sertão brasileiro e seus habitantes de um ponto de vista tão pessoal que superava de uma só vez a tradição brasileira do romance regionalista. No mesmo artigo, Crespo acrescenta que a particularíssima linguagem de Rosa era praticamente intraduzível, algo que o próprio crítico faria posteriormente para oferecer aos espanhóis a única tradução de uma das mais importantes obras brasileiras. 22 A literatura brasileira no mapa espanhol Em junho de 1967, a Revista de Cultura Brasileña nº 27 é dedicada a Guimarães Rosa. Ángel Crespo, então diretor da publicação, relata sua viagem ao interior de Minas Gerais, passando pelos lugares mencionados nos textos de Rosa, bem como a difícil tarefa de traduzilo. Também fazem parte da encadernação outros autores como Renard Pérez e Julio E. Miranda.5 Em 1969, é publicado Primeras historias também pelo selo da Seix Barral de Barcelona e depois o escritor ficará, por muitos anos, praticamente esquecido. Nos anos setenta, o autor brasileiro mais popular na Espanha era Jorge Amado, com sua obra Los viejos marineros editada em 1971 com tradução de Basílio Losada. Talvez ainda o seja. O ISBN espanhol registra 95 obras de amado, computando, evidentemente, as várias edições. É, de longe, o escritor mais publicado na Espanha, embora a crítica tenha se atentado mais a Clarice Lispector. Recordemos também que em 1974, outro grande nome do regionalismo, Graciliano Ramos teve o seu Vidas secas traduzido e, em 1978, Angústia. Também em 1974, Avalovara de Osman Lins. Em 1977 é feita a tradução de Macunaíma de Mário de Andrade e de Perto do coração selvagem de Clarice Lispector. No ano seguinte, 1978, temos em espanhol Tebas de mi corazón de Nélida Piñon. 5 O número contem os seguintes estudos: “Guimarães Rosa”, de Renard Pérez, “Modos, lenguaje y sentido em Gran sertón: veredas, de João Guimarães Rosa” de Julio E. Miranda, “Elementos geográficos en Gran sertón: veredas. Algunos aspectos” de Silvia Moodie, “El quehacer poético de Guimarães Rosa” de Sandra Márcia Haute y “Notas sobre las versiones y traducciones de Gran sertón:veredas”, de Pilar Gomes Bedate. A revista se completa com uma carta do próprio Guimarães Rosa ao então embaixador do Brasil na Espanha, Antônio C. Cámara Canto, e o texto “Poshomenaje introductorio”, de Ángel Crespo e sua tradução de cinco textos do autor mineiro: “La ceguera”, de Sagarana; “Cara de bronce”, de Corpo de baile; El juicio de Zé Bebelo”, de Grandes sertões: veredas; “Los hermanos Dagobé” e “Ninguno, ninguna” de Primeiras estórias. 23 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 Segundo a professora Áurea Fernándes Rodrígues, da Universidade de Vigo, a literatura brasileira na Espanha é pouco conhecida e, sobretudo, pouca representativa da diversidade e realidade do Brasil. As obras chegaram muito tarde à Espanha em relação a outros países europeus, como é o caso da França. E, apesar de a Espanha contar com numerosos tradutores da língua portuguesa, como Basílio Losada e Ángel Crespo, por exemplo, no inicio dos anos 70 a obra de Jorge Amado chegou a ser foi silenciada pelo franquismo6. A recepção da literatura brasileira não estava imune ao contexto sociopolítico que a Espanha vivia durante a agonia da ditadura franquista. Tanto que, no período que se caracterizou o pós-guerra, a literatura foi caracterizada pela pobreza de temas. A que chegava do exterior era suspeita de perverter os leitores e sofria o controle dos mecanismos da censura. Havia originalíssimos escritores estrangeiros com sérios inconvenientes doutrinais ou morais e as respectivas leituras eram desaconselhadas.. Apenas nos últimos anos desse período, apesar da censura e da repressão cultural, autores catalogados como marxistas iam acedendo pouco a pouco ao mercado cultural. Com a poesia, a professora ressalta haver alguns diferenciais, pelo fato de ser um gênero hermético com interpretações distintas a censura não exercia uma avaliação tão rígida, de modo que a abertura para a poesia brasileira, nesse período, foi mais ampla que a prosa. Nos anos 50, as revistas de literatura espanhola ofereciam uma poesia de contínua renovação que incluiu a brasileira. O poeta e crítico madrilenho Dámaso Alonso já era uma figura importante na produção poética dos anos 40, desde que havia publicado seu famoso livro Hijos de la ira (1944) que rompia com os moldes formais da teoria. Dámaso desempenhou um importante papel na difusão 6 A pesar de que los textos de Amado contaron con numerosos traductores en España el mejor conocedor de los mismos es el gallego Basilio Losada quien afirmó en una ocasión que la obra de Jorge Amado fue silenciada por el franquismo. “La difusión de la literatura brasileña traducida en España y Francia”, p. 101. 24 A literatura brasileira no mapa espanhol dos poetas brasileiros, em colaboração com Ángel Crespo uniu-se ao movimento “postista” fundado por Carlos Edmundo de Ory que traduziu um número relativo de textos de língua portuguesa. Bandeira veio com a fama de ser um dos maiores poetas do Brasil, em 1962 publicou-se Poemas de Manuel Bandeira, depois Ledo Ivo em 1963; Antonio Gonçalves Dias, 1964; Walmir Ayala, 1965; Murilo Mendes, 1965 e Vinicius de Moraes. Segundo Áurea Fernández Rodrígues (2010), estes poetas divulgados por revistas especializadas só podiam ser lidos por poucos, em geral, intelectuais. Entre os galegos, alguns poucos admiradores como Noriega Varela que evocava com freqüência os versos de Olavo Bilac; entretanto, os poetas traduzidos na Espanha ficaram reduzidos a essas publicações especializadas, além do que, eram obras que não refletiam a identidade brasileira, ou uma região, ou temas que giravam em torno dessa realidade. Em geral, a maioria das traduções brasileiras foi simples manifestação isolada que apenas deixou um eco porque não foi devidamente contextualizada. Uma edição obedece a suas próprias exigências como expectativa do público, mediadores, assessores ou agentes literários informados, leitores especializados, além de tradutores qualificados. E o que se percebe é que as traduções publicadas na Espanha partiram da iniciativa de tradutores que buscaram as editoras, que não foram as grandes, mas editoras com poucas possibilidades no mercado. E o fato de não haver, até então, uma difusão da literatura brasileira, vide a tiragem pequena das obras literárias, entre outros fatores, acarretou em dificuldades para se avaliar a recepção da literatura brasileira enquanto fenômeno coletivo. O máximo que se fez foi uma análise restrita dessa literatura enquanto reação individual. Porém, mais adiante, outro fator relevante vai se assomar a estes, é que, a partir de 1964, instala-se no Brasil um regime ditador militar que durante vinte e um anos dificultará o envio da boa literatura produzida continuamente no Brasil, para o exterior. 25 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011 Para Sérgio Massucci Calderaro, o conhecimento que se tem na Espanha sobre a literatura brasileira está longe de ser considerado bom. Ele chega a dizer que é muito pobre. E não é necessária uma investigação muito profunda para se comprovar isso, a conclusão é óbvia. O pesquisador não esconde sua visão pessimista sobre o tema: Si esbozáramos un ranking de los países sobre los cuales el público español tiene más conocimiento literario, Brasil seguramente estaría en una posición muy baja. Estaría por detrás de por lo menos media docena de países europeos y otra media docena de países americanos. Así, Brasil iría después de Francia, Inglaterra, Alemania, Rusia, Italia, Estados Unidos, Argentina, Chile, Uruguay, Colombia, Cuba y México, entre otros. (CALDERARO, Espéculo, 2009)7 A questão pode ser idiomática, ou estar relacionada a fatores geográficos, ou econômicos como costumam justificar os estudiosos e, pode sim refletir no âmbito cultural, porém são pontos poucos discutidos e seria pertinente uma discussão mais profunda a respeito do assunto. 7 Se esboçarmos um ranking dos países sobre os quais o público espanhol tem mais conhecimento literário, o Brasil certamente estaria em uma posição muito baixa. Estaria detrás de pelo menos meia dúzia de países europeus e outra meia dúzia de países americanos. O Brasil viria depois da França, Grã-Bretanha, Alemanha, Rússia, Itália, EUA, Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia, Cuba e México, entre outros. (CALDERARO, Espéculo, 2009) 26 A literatura brasileira no mapa espanhol Referências __________. El mundo, los mundos: novelas fundacionales en la literatura brasileña del siglo XX. In: La narrativa en lengua portuguesa de los últimos cincuenta años. Org. Maria Josefa Postigo aldeamil. Revista de filología románica. Madrid: Universidad Complutense, 2001. BEDATE, Pilar Gómez. Ángel Crespo. El poeta y su invención. Barcelona: Galaxia Gutenberg / Círculo de Lectores, 2007. CALDERARO, Sérgio Massucci. “La literatura brasileña en España a lo largo del tiempo: intentos de divulgación”. Madrid: Espéculo: Revista de estudios literarios, nº 43, Universidad Complutense de Madrid, 2009. FONTDEVILLA, Aina Pérez. “Una imagen unívoca para una obra plural: la recepción de Clarice Lispector en la prensa española”. Diálogos Ibéricos e iberoamericanos: actos del VI Congreso Internacional de ALEPH. Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa, abril de 2009. GARCÍA, José Luis Martin. Juan Valera. Cartas a Estébanez Calderón (18511858). 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O papel fundamental dos homens de letras era difundir conceitos políticos, vulgarizar valores burgueses e ajudar a construir a hegemonia junto à massa populacional não letrada, construindo um discurso legitimador desta nova ordem nacional. Como exceções, surgem os nomes de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto, que criticamente se opunham ao modelo proposto e tornam-se vozes dissonantes dentro da intelectualidade da primeira República. Palavras-chave: História da Literatura; República; Sílvio Romero; Euclides da Cunha; Lima Barreto Abstract: This article aims to demonstrate the great importance of intellectuals, who lived through the proclamation of the Republic and the Belle Epoque, in legitimizing the nation state that was formed, as well as the bourgeoisie that emerged. The fundamental role of the men of le#ers was to spread political concepts, common bourgeois values, helping to form hegemony among the population mass that was not literate, building a 1 Professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), junto ao Curso de Jornalismo. Doutor em Teoria Literária pela mesma instituição. 2 Mestre em Literatura Brasileira e Doutoranda em Teoria Literária no Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Email: [email protected] 29 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 legitimizing discourse of this new national order. As exceptions, appear the names of Silvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto, who critically opposed to the proposed model and become dissonant voices within the intelligentsia of the First Republic. Keywords: History of Literature; Republic; Sílvio Romero; Euclides da Cunha; Lima Barreto A partir da virada do século, quando o arranjo oligárquico se estabeleceu e a crise interna do republicanismo brasileiro foi parcialmente superada, a legitimação da nova ordem se tornou imprescindível para manutenção do equilíbrio social. É neste contexto que o intelectual se fez necessário para atender a demandas do “establishment” que necessitava de sua atuação na imprensa, nas revistas ilustradas, através de artigos, crônicas, conferências, discursos, elogios, artigos de fundo. Os tempos do desprezo pela figura do “homem de letras” haviam chegado ao fim. A política de valorização institucional da cultura começou a se fazer notar na metade da última década do século XIX e teve o auge nos anos que antecederam à Primeira Grande Guerra. Antonio Gramsci escreveu – como sabemos – que o papel do intelectual é fundamental para garantir a hegemonia do discurso que o grupo dominante exerce sobre a sociedade. O papel atribuído ao intelectual da virada do século corresponde exatamente a essa definição. O prestígio que adquiriu e a força discursiva com que se jogou na legitimação da nova ordem encontraram pouca resistência num cenário precário de vida sociocultural independente. Sua atuação, nas esferas públicas e sociais, dentro e fora da máquina burocrática, tornou-se eixo central na definição da forma com que o grupo dominante passou a se relacionar com a sociedade brasileira. (...) Os intelectuais são os ‘comissários’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas de hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes 30 Homens de letras na República Velha massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social (...); 2) do aparato de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’, nem ativa e nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo. (GRAMSCI, 1990, p. 10) Com o governo modernizador de aparências, que surgiu com o advento da República, renasceu o sentimento de nação e as condições objetivas para que os problemas estruturais, de fato, mostrassemse aos olhos críticos dos intelectuais estudados neste trabalho. A definição do nacional, que vinha dos tempos de combate à monarquia, dominou a pauta temática na afirmação do novo regime. A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para construção da nação, seria a tarefa que iria perseguir a geração intelectual da primeira república (1899-1930). Tratava-se , na realidade, de uma busca das bases para a redefinição da República, para o estabelecimento de um governo republicano que não fosse uma caricatura de si mesmo. (CARVALHO, 1990, p. 32) O projeto republicano vencedor passou a existir acima da multidão de analfabetos que era como se constituía a população brasileira aos olhos da elite. Aos arranjos políticos institucionais que deram continuidade ao mesmo modelo social excludente monarquista, seguiu-se a forte campanha de afirmação de uma brasilidade ufanista, de pouca consistência intelectual, mas de forte apelo formal e retórico. É comum pesquisadores atribuírem pouca importância à cultura oficial da “belle époque” porque seus modelos importados e afetados estavam longe de representar a cultura brasileira. Como verdade estética e cultural pode ter sido mera imitação, mas seu conteúdo ideológico era de importância inquestionável. Os olhos da elite dirigente nunca estiveram tão postados no continente europeu como neste período. As reformas urbanas que representavam também uma forma de vida moderna e industrial – que 31 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 de modo algum eram encontradas no Brasil – foram absorvidas com prazer e exagero. Para harmonizar hábitos e costumes populares com a modernidade das reformas urbanas da cidade do Rio de Janeiro, a Prefeitura proibiu festas populares como Bumba-meu-boi e Malhação do Judas; censurou as fantasias de carnaval, principalmente as de índios, e os desfiles de cordões populares; estimulou o comedimento dos pierrôs e colombinas; proibiu o jogo do bicho. “O prefeito chega à demasia de importar pardais, pássaro-símbolo de Paris, para fazer coro às estátuas francesas que passaram a enfeitar as novas praças.” (FISCHER, 2003, p. 49) O papel desempenhado pelo indivíduo letrado, neste contexto de defesa de frágeis aparências, é, de maneira evidente, esvaziarlhe a representação e transformar a vida social e a dureza pela sobrevivência num ato diletante e restrito a setores sociais com capacidade de organização. Assim deixa os círculos fechado da vida literária aristocrática, para lançar-se no jornal popular, nas conferências de salão, nas polêmicas na tentativa de justificar o papel e as atitudes do estado. Se o “homem de letras” teve papel fundamental para, no Romantismo, validar a existência da nação alheia à consangüinidade real – atuando algumas vezes até no conceito de intelectual orgânico -, a partir da Proclamação da República tocou a ele legitimar a formação do estado nação e a sociedade burguesa que surgia. A visão de uma existência nacional limitada a Rua do Ouvidor era útil politicamente na representação que o regime fazia de si mesmo, como também na exclusão a que submetia a população do país. Ou seja, os problemas do Brasil eram os problemas de sua elite. Daí a síntese representada na frase “com um sorriso levar a vida” e todas suas variáveis. Essa superficialidade, esse sorriso da sociedade era um discurso consistente e hegemônico produzido pela cultura oficial – era sua ideologia. 32 Homens de letras na República Velha Na sua grande maioria – para não dizer a quase totalidade – temos a intelectualidade da época engajada organicamente na construção de um discurso legitimador desta nova ordem nacional. O papel fundamental dos intelectuais era difundir conceitos políticos, vulgarizar valores burgueses e ajudar a construir a hegemonia junto à massa populacional não letrada. Com relação à extensão, a hegemonia gramsciana (...) abarca, com suas entidades portadoras, não só o partido, mas todas as outras instituições da sociedade civil (...) que tenham um nexo qualquer com a elaboração e a difusão da cultura. (BOBBIO, 1987, p. 48) O surgimento da imprensa comercial e de uma produção cultural incipiente (com conferências, revistas, teatro, folhetim) proporcionou o surgimento do intelectual profissional que passou a ter leitores (ou consumidores) e a sobreviver da atividade – como nem mesmo medalhões da geração anterior (Machado de Assis, Bernardo Guimarães ou José de Alencar) haviam conseguido. “(...) eram polígrafos que se esforçavam para satisfazer a todo tipo de demandas que lhe faziam a grande imprensa, as revistas mundanas, os dirigentes e mandatários políticos da oligarquia.” (MICELI, 1979, p.30) Como vozes destoantes, temos Lima Barreto, Euclides da Cunha e Sílvio Romero, intelectuais que denunciaram as fissuras e as contradições na construção deste nacional. Dois fatores circunstanciais são fundamentais para a compreensão do pensamento desenvolvido por estes três intelectuais, seus pontos em comum e seus desencontros. Em primeiro lugar, o conteúdo: a reação apresentada por eles ao discurso hegemônico que propunha a fundação do estado-nação. Os três contra-atacam com um nacionalismo pessimista, onde a sociedade brasileira é representada mais pelas fissuras do que por um campo harmônico. Em segundo, pela forma: a ausência de partidos políticos de oposição jogou sobre eles a responsabilidade de formular pensamentos e lançar as bases de uma leitura crítica da realidade nacional. 33 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 Do ponto de vista intelectual, a construção do discurso hegemônico tratou de dar autoridade ao grupo dominante no estabelecimento do estado nação. Entenda-se estado nação como a afirmação estável da nova ordem liberal burguesa num ‘pacto político’ com a sociedade. O direito de escolher seus representantes na esfera de poder e elegê-los ou destituí-los periodicamente; a separação dos espaços públicos e privados nas garantias jurídicas coletiva; obrigações pecuniárias com o estado; usufruto comum de serviços estatais; enfim, desfrutar do convívio de uma coletividade sob direitos e deveres iguais no espaço definido de suas fronteiras. Para a elite agrária exportadora que estava no poder, a aplicação deste ‘pacto social’ republicano significava abrir mão do poder. A sociedade brasileira, recém saída do regime escravocrata e com números elevadíssimos de excluídos, foi sendo submetida a mecanismos de controle, de fraude e de repressão na tentativa de manter o ordenamento institucional e sua elite no poder. Para isso, o emprego do aparelho policial estatal na repressão dos setores descontentes e a utilização do intelectual na formulação de um discurso legitimador. Assim, o establishment pretendia esconder as fissuras do modelo que já se mostrava evidente, mas que tinha ainda papel fundamental na criação das novas relações de trabalho que o capitalismo impunha aos países periféricos. É neste novo panorama que se desenvolverão mudanças fundamentais nas noções de civilidade, de vida urbana, no país. Tomemos dois marcos: a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1896, e a remodelação da cidade do Rio, promovida pelo prefeito Pereira Passos (...) Num caso e noutro, a marca principal será a de adequar a prática e o estatuto sociais da urbanidade às exigências do tempo (...) num processo que podermos definir como aristocratização da vida burguesa, mudança esta levada a efeito sob inspiração do grupo social que chegara ao poder político. (FISCHER, 2003, p. 48) Ao mesmo tempo em que o estado policial se fortalecia (são inúmeros os momentos de estado de sítio, guerras civis e a censura 34 Homens de letras na República Velha constante da imprensa), a ocupação dos espaços culturais pelo discurso oficial era absoluta (seja na criação de instituições de cultura, no rateio de cargos públicos ou na distribuição de verbas aos veículos de imprensa). A formulação de um discurso hegemônico tornou-se fundamental quanto maior eram os excluídos do novo projeto. Sua justificativa política para a legitimação do projeto exigiu uma imprensa repetindo a voz única do partido único, um estado disposto a cooptar e intelectuais capazes de formular o discurso político coerente. Ao se opor ao projeto, Lima Barreto, Sílvio Romero e Euclides da Cunha passaram a desenvolver trabalhos de estudos, artigos em jornais, produções ensaísticas no sentido contrário ao pensamento dominante naqueles anos de ufanismo republicano. Tentavam ocupar qualquer espaço: de uma cadeira na Câmara dos Deputados, aos livros e os pequenos jornais. Buscavam legitimações, na maioria das vezes inutilmente, mas sempre dispostos a se contrapor ao discurso hegemônico acenando com a existência de um “Brasil real”. Ou seja, salientavam o caráter artificial do discurso oficial associado ao desconhecimento completo da nação. A oposição que fizeram tinha a representatividade, na sua origem, de setores diretamente envolvidos na propaganda republicana pré-Proclamação. De modo que falavam uma linguagem comum e, por muito tempo, representaram setores descontentes dentro do próprio republicanismo brasileiro. Sílvio Romero tornou-se um excluído do projeto vencedor, apesar de ter sido um dos ideólogos do liberalismo no Brasil. Depois das humilhantes tentativas de participação na política partidária acabou se afastando ao perceber o continuísmo do projeto econômico e social que havia combatido durante a Monarquia. Sílvio Romero é a memória da propaganda e os anos imediatamente seguintes à Proclamação. Sua oposição se deu nas bases do que a República prometeu e não cumpriu. Ou seja, um modo revolucionário que 35 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 foi traído em sua concretização. O caráter cientificista, a crença genuína de que o estado deveria estimular a concorrência entre os homens (as empresas, as instituições) para que sobrevivessem os mais fortes e beneficiasse o todo social não se realizou. Sentiu-se traído porque acreditou “num grupo dirigente” capaz de comandar o país, uma vanguarda condutora do processo revolucionário de transformação que viria com a república. Seu último ato foi contra o povo que não se rebelava contra a condição social imposta pelo novo projeto político. A tragicomédia da soberania dos Estados, dos impostos interestaduais e intermunicipais, dos exércitos sob os disfarçados títulos de brigadas provincianas, das magistraturas particularistas, da multiplicidade das leis do processo, da desagregação das tradições, das tiranias caudilhas, das roubalheiras descentralizantes e impunidas, essa tragicomédia, que é o federalismo oligárquico da atualidade nacional, deve acabar, ou ela matará o Brasil. (ROMERO, 1980, p. 333) Euclides da Cunha viveu a vida adulta no momento pósProclamação e tornou-se um excluído do projeto republicano na medida em que os positivistas foram os derrotados na disputa interna do poder. Suas inúmeras tentativas pessoais de interferir nos rumos e nos governos militares foram provas da esperança que depositou por muito tempo no novo regime. Sua fé foi nas Forças Armadas e na imposição de um estado interventor, capaz de dobrar pela força as elites atrasadas e submetê-las a um projeto social coletivo. Daí viria a construção do novo Estado, capaz de proporcionar igualdade de competir, ao mesmo tempo em que abrigava e protegia os mais fracos. A idéia do governo forte nunca encontrou nos anseios de Euclides da Cunha o personagem capaz de exercer este papel – também ele um crente de uma vanguarda revolucionária. Os Sertões foi o gesto de sua desilusão e seu decreto de exclusão também das bases derrotadas do republicanismo – e seu livro talvez a última grande obra da produção intelectual positivista. O ataque de Euclides da Cunha foi 36 Homens de letras na República Velha contra governos ‘do litoral’ que desconheciam a própria nação e aos militares que perderam a oportunidade de revelá-la. [A nossa nacionalidade] não marcha, não progride, não civiliza, anarquiza-se no conflito assustador de interesses unicamente individuais, de ambições indisciplinadas que se digladiam, e os que arrebatados pela expansão das próprias idéias, tentam lutar fora do círculo isolador da individualidade, sem um só ponto de apoio às forças que o revigoram caem e extinguem-se na desilusão mais profunda. ( CUNHA, 1995, p. 627) Lima Barreto foi o excluído na origem: é o povo que assistiu “bestializado” a Proclamação. Em sua vida, a República chega quando ainda é uma criança, portanto assistiu o melhor momento daquela Primeira República, a “belle époque”, no período que vai até a Primeira Guerra Mundial. Tempo suficiente para mostrar por inteiro a fragilidade de um projeto que envolvia mais do que a mudança de regime. As condições mínimas de cidadania, com seus direitos respeitados e garantidos, espaços sociais de representação, dignidade na sobrevivência do trabalhador – foram os sonhos de república de Lima Barreto. Mas pode ver com entusiasmo as reações populares e as incipientes organizações populares – de reação ao projeto dominante. Pode assistir também a violência do estado contra a população e as inúmeras maneiras com que mecanismos legais “naturalizaram” a exclusão social. O sonho republicano de Lima Barreto carregava muito de uma solidariedade comunitária, de vagos ideais socialistas, de um sentimento de irmandade. Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a européia e a outra, a indígena. É isso que se faz ou se fez na Índia, na China, em Java, etc.; e em geral, nos países conquistados e habitados por gente mais ou menos amarela ou negra... Municipalidades do mundo inteiro constroem casas populares; a nossa construindo hotéis chics, espera que, a vista do exemplo, os habitantes da Favela e do Salgueiro modifiquem o estilo de suas barracas. (BARRETO, 1956, p. 218) 37 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 Cada um deles esboçou sua visão pessimista a partir de períodos sociais e temporais distintos e, embora distantes na origem, representaram críticas a momentos políticos diversos. De modo que durante mais de trinta anos (1890-1922) estes três intelectuais estiveram no núcleo opositor ao discurso hegemônico governamental, sucedendo-se uns aos outros, mas mantendo o fogo de uma oposição política perene. Além do isolamento, uniu-os um horror ao discurso elitista importado que tentava esconder a natureza da república instalada, entregue a acordos e a negociatas regionais que produzia a cada dia novos ricos a ostentar suas riquezas pelas ruas elegantes do Rio de Janeiro. Ao ouvir as vozes dissonantes desses três intelectuais, não deixa de ser curiosa a maneira como os homens de letras ‘do sistema’ reagiam em defesa do discurso hegemônico. Não se contrapunham diretamente, não faziam o debate claro e aberto, como no passado discutiram republicanos contra monarquistas ou liberais contra conservadores. A saída nunca era o enfrentamento, muito ao contrário. Quando algum tema, proposto como crítica ao novo regime, conseguia vencer a barreira quase intransponível do discurso hegemônico, chegava até a população praticamente destruído. O próprio “establishment” tratava de institucionalizar a crítica dos opositores, tirando-lhes o caráter político-ideológico. Assim, vemos Olavo Bilac tratar a condenação ao projeto republicano que não se realizava: “A República tem uma puberdade triste e apagada. Dizem alguns que a menina chegou à velhice, sem ter passado pela primavera e nem pelo outono... ‘não era esta a república que sonhávamos.’” (BILAC apud DIMAS, 2006, p.605). Nota-se que ele retira a seriedade no trato de um debate que se mostrava importante. Há um clima de caçoada, de distanciamento cínico, que o talento de Olavo Bilac enchia de brilho. A outra maneira de enfrentar as críticas ao projeto político foi ‘naturalizar’ as causas. Utilizando-se de um 38 Homens de letras na República Velha cientificismo de forte viés ideológico, o discurso do poder passou a atribuir a natureza perversa do país (clima quente, acidez do solo) ou as origens raciais do povo como causadoras do atraso institucional, do baixo índice de alfabetização, da pouca produtividade nas lavouras, do pequeno desenvolvimento industrial – enfim, do atraso econômico e social brasileiro. É bem verdade que estes fatores foram utilizados até por Sílvio Romero e Euclides da Cunha nos estudos que fizeram da realidade brasileira. Mas a leitura deles vinha ao encontro da compreensão “científica” do país e as elites o utilizavam ideologicamente para justificar o fracasso de seu próprio projeto político. A institucionalização e a naturalização funcionavam como amortecedores das críticas e dos discursos sociais que buscavam o embate e o confronto. Apesar da verdade de seus estudos sociais e culturais sobre o Brasil e a coerência de suas críticas políticas, até mesmo a jovem “elite letrada”, com natural potencial renovador, vivia num mundo de encantamento bem resumidos nas palavras de Alceu Amoroso Lima: Fomos todos, sobretudo a partir de 1918, levados a rever as nossas idéia e tudo aquilo que para nós passou a representar a configuração do que hoje chamamos de ‘belle époque’ (...) acabara para mim a fase da disponibilidade, do absenteísmo, da indiferença, do ceticismo e do intelectualismo puro. (LIMA, 1973, p. 57) A oposição a este “tempo moderno” se manifesta também no palco geográfico e simbólico do embate: a cidade. De maneira consciente ou não, também Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto partem de visões de mundo que sempre se mostram também lugares geográficos, onde o pensamento se estrutura e de onde as hierarquias se estabelecem. Também eles apresentam “lugares”, “suas cidades”, que se tornam também valores sociais e culturais relevantes no embate proposto com a cidade republicana. São as representações urbanas de valores ideológicos diversos, mas sempre apresentados como “mais” verdadeiros, “mais” genuínos. 39 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 De forma simbólica é possível afirmar que cada um deles falou de cidades distintas, mas que foram emblemas de suas formas de atuar e foco determinante de suas obras. Sílvio Romero parece nunca ter saído da cidade de Recife. Sempre magoado, ressentido com a capital federal, desenvolveu seus estudos na direção apontada na juventude com Tobias Barreto, na Faculdade de Direito. Seu olhar é a do nordestino – recifense em especial – depositário do rancor e das injustiças com a capital econômica dos tempos coloniais. Sempre dando a Recife a primazia, a vanguarda, nos assuntos intelectuais e nas ações políticas. O “bando de idéias novas” sobrevoou a cidade de Recife, não o Rio de Janeiro carola e conservador. Euclides da Cunha nunca mais saiu de Canudos, da “cidade de taipas”. Os Sertões e toda sua visão política vão girar em torno da descrença num estado que se tornou estrangeiro em sua própria terra. O desconhecimento de seu território e a ignorância com relação ao seu povo (“o cerne” de nossa raça) tornou o estado brasileiro uma administração litorânea e irreal. A figura mítica do “cidadão” de sua cidade vai pairar na lenda do nordestino-forte, na superioridade vinda do isolamento e do passado. Euclides da Cunha vai ver o Brasil como um morador nascido e criado em Canudos, preferindo as picadas aos bulevares, sempre de dedo em riste denunciando o “grande massacre”. Lima Barreto falava do Rio de Janeiro, da capital federal, cidade absolutamente desconhecida em sua periferia, em sua população pobre, em suas cantigas e em seus enterros no cemitério de Inhaúma. O Rio de Janeiro de Lima Barreto se aproxima muito de Canudos, de Euclides da Cunha, seja no caráter excludente de sua população miserável, seja na revelação que o governo se escondia de si próprio dentro de sua capital. Lima Barreto vai falar de um Rio de Janeiro definitivamente fragmentado (para usar a feliz expressão de Beatriz Resende), onde as reformas de embelezamento são artificiais, 40 Homens de letras na República Velha frágeis, e escondem a corrupção e o autoritarismo da administração republicana. O Rio de Janeiro de Lima Barreto é tão distante do oficial quanto a Recife de Sílvio Romero ou Canudos de Euclides da Cunha. É importante relembrarmos que o Brasil era visto como um país sem povo. O olhar dos visitantes europeus solidificou no discurso hegemônico o conceito de que o povo brasileiro, na sua pobreza existencial e intelectual, tornara-se um problema para o desenvolvimento das instituições democráticas. O país só existia pela sua perseverança institucional e pelo esforço vanguardista de sua elite. “O Brasil foi visto, portanto, como um país despossuído de povo, ao qual faltava identidade para constituir uma nação moderna (...) não possuía face, não possuía identidade.” (NAXARA, 2002, p. 39) A vertente pessimista que surge do pensamento social desta vanguarda propôs um contraponto ao discurso hegemônico baseado na “realidade brasileira”. Desta forma, criavam uma “nação verdadeira” para se opor àquela “república artificial”. A dicotomia, a todo instante, reafirmada no discurso destes três intelectuais, retoma de inúmeras maneiras a estratégia oposicionista utilizada pelos próprios republicanos para combater a monarquia. Havia uma nação vivendo fora e além da Corte; agora havia uma nação vivendo fora e além da República. Daí o descobrimento das oligarquias, por Sílvio Romero, para revelar o caráter continuísta daquele regime; do “cerne de nossa nacionalidade”, de Euclides da Cunha; e da periferia das grandes cidades, por Lima Barreto, para mostrar a existência de um povo à margem da vida oficial. Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto acabaram por identificar e tematizar a precariedade do processo de modernização do Brasil e de países periféricos que viveram o mesmo destino neocolonial. Desta forma, a crítica que poderia ser temporal e circunscrita tornou-se pioneira. 41 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011 Referência BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1956. BOBBIO, Norberto. O Conceito de Sociedade Civil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987. CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CUNHA, Euclides. Obra completa. Vol.1. (Org) Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 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Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1980. 42 De Oswald à Ruffato: o sensível e (n)o cinema João Guilherme Dayrell1 Resumo: O artigo visa investigar as produções de Oswald de Andrade e Luiz Ruffato – levando em conta, principalmente, os textos Memórias Sentimentais de João Miramar e eles eram muitos cavalos – usando como ponto de toque entre as duas obras suas respectivas relações com o cinema. Para tanto, faz-se necessário estabelecer as estratégias postuladas por cada autor perante o contexto nos quais se encontram, tendo em vista que a arte cinematográfica é entendida aqui como corolário de uma nova sensibilidade que experimenta o homem moderno, se coadunando, por fim, ao que posteriormente Guy Debord chamará de Sociedade do Espetáculo. Palavras-chave: Oswald de Andrade e Luiz Ruffato, cinema, espetáculo, sensível. Abstract: The article intends to investigate the productions by Oswald de Andrade and Luiz Ruffato – a#ending for the texts Memórias Sentimentais de João Miramar and eles eram muitos cavalos – using as a point of contact between the two works their relations with the cinema. Therefore, it is necessary to establish the strategies postulated by each author to the context in which they find themselves, given that the art of cinema is understood here as a corollary of a new sensibility experienced by the modern man in line, finally, with what Guy Debord calls Society of the Spectacle. Keywords: Oswald de Andrade and Luiz Ruffato, cinema, spectacle, sensitive. 1 É doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). e-mail: [email protected] 43 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 “Espelho, a forma mais simples de espetáculo” Paulo Leminski, Catatau, 1975. I. O ano é 1924. Ainda que a concepção da obra tenha se iniciando por volta de 1917, a primeira data referida é a da única publicação de Memórias Sentimentais de João Miramar que Oswald de Andrade presencia em vida. A data – situada dois anos após a publicação de Ulysses, de James Joyce, como nos lembra Haroldo de Campos (CAMPOS, 2008) –, é a mesma em que vemos, por parte do Oswald, o elogio da cópia, do erro, e de uma língua sem arcaísmos e erudição, tal qual destaca o manifesto do Pau Brasil (ANDRADE, 2003). No mesmo manifesto, por meio da citação dos aparelhos fotográficos, é evidenciado o que parece ser o cerne da experiência de Miramar, que sublinhamos: a vivência do sujeito mediada por máquinas. Tal constatação permite a Oswald, 26 anos depois, em A Crise da filosofia Messiânica, a demarcação de seu corolário se dando sob forma de um movimento dialético, qual seja: 1) tese, o homem primitivo, pertencente à sociedade matriarcal, antropofágica, 2) antítese, o homem civilizado, patriarcal, que compartilha a filosofia messiânica e 3) a síntese, que seria o homem tecnizado. (ANDRADE, 1990, p. 100) Miramar experimenta a São Paulo do início do século vinte em 163 passagens numeradas em série. Trata-se de um des-monte de sua experiência, que é remontado na subsunção dos fragmentos à imagem da personagem. Para Haroldo de Campos, o homem evocado por Oswald, no caso, se compraz mais ao cinema que à fotografia, “uma vez que a ideia de uma técnica cinematográfica envolve necessariamente a montagem de fragmentos”. Ainda, para Haroldo de Campos, o fragmentário evoca uma: (...) sistemática ruptura do discursivo, com sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa seqüência linear, mas como 44 De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema partes móveis de um grande ideograma crítico-satírico do estado social e mental de São Paulo nas primeira décadas do século, esta prosa participa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelo menos de um cinema entendido à maneira eisensteiniana” (CAMPOS, 2008, p. 54) O cinema perpassa a obra de Oswald, seja pelo Miramar empregado da Itacolomi Films, ou Serafim Ponte Grande, que fazia filhos com “a cara enquadrada nas claridades cinematográficas da janela.” (ANDRADE, 2007) 2 Tal panorama deixa entrever a afinidade entre arte cinematográfica e a modernidade, tendo em vista, principalmente, a experiência nas grandes metrópoles, nas quais a pluralidade de realidades simultâneas coexistem no turbilhão do tecido urbano. Em Memórias Sentimentais, o caráter excessivo do espaço urbano – que foi tão convincentemente “presentificado” pela montagem cinemática – encontra seu correlato, como temos: 2. Avessos aos favores da cidade íamos perna aqui perna ali eu e Dalbert de sorte excepcional. Ruas quartos a chave bars desertos vibrações revoltas adultérios ênfases. A estacada foi num casarão azul em vol-plané sobre o Val-del-lírios inculto do Anhangabaú. A coroa do Teatro Municipal punha patetismos pretos no vermelho das auroras noturnas. (ANDRADE, 1973, p. 82) No fragmento supracitado é reconhecível um sujeito: a cidade, que embora tome o discurso, fazendo-o ser atravessado por suas “vibrações”, ainda se situa hierarquicamente inferior à posição de João. Os fragmentos, destarte, se organizam como uma amálgama, sendo parte de um todo maior, no caso, as sensações, ainda que alquebradas, de João Miramar – que cresce, casa, viaja à Europa e assina suas cartas – e seu amigo, ao caminhar por São Paulo. O espírito da época encontra, por sua vez, contrapartida no estilo telegráfico de Miramar, dando-se sob o viés da polifonia poética, que instaura, pela poética do fragmentário, uma espécie de paródia do 2 Texto de 1933. 45 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 homem civilizado que ensaia sua tecnização. A inserção da técnica no contexto da economia de mercado, todavia, não se prontifica ao restabelecimento emancipador da condição humana, restituindo-lhe o ócio. A modernidade, para Oswald, segue sob o viés da mensuração do tempo por meio do trabalho – iniciada na Idade Média –, tendo sua imagem na invenção do relógio mecânico, no qual “alvorece o capitalismo europeu e onde começa a escrituração comercial.” (ANDRADE, 1990, p. 161) 3 O estado de classes, da propriedade privada e patriarcal, transforma o ócio pertencente, outrora, ao sacer-dócio – ócio sagrado – em sua negação, vá dizer, neg-ócio. (ANDRADE, 1990, p. 106) Desse modo, o homem aceita o trabalho como moeda de troca para ócio ao final de sua vida, mais conhecido como previdência, instaurando o messianismo da sociedade capitalista: a aposentadoria, o desenvolvimento econômico, a salvação porvir, o sentido final. O que parece ser caro a Oswald em um momento tão inicial quanto o de Memórias Sentimentais, e que encontra seus desdobramentos na obras posteriores citadas por nós, é, entretanto, uma espécie de uso das máquinas, de passagem por elas, do reconhecimento de sua presença e da necessidade de se estabelecer uma nova relação, visando, talvez, a tal emancipação do sujeito. II. Paralelamente a Oswald de Andrade, a novidade do cinema era bem cara a outro pensador do messianismo, Walter Benjamin. Por volta de 1936, em seu ensaio sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin marca um curioso dado sobre o cinema. Dizia o filósofo que: A difusão se torna obrigatória porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. [...] Em 1927 calculou-se que um filme de longa metragem, para ser rentável, precisaria atingir um público de nove milhões de pessoas. (BENJAMIN, p. 172, 1996) 3 Texto de 1960. 46 De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema O enunciado demarca não apenas certa subserviência do cinema em relação a sua técnica de produção, mas igualmente o diagnóstico de que tal arte deflagra a passagem do povo à população, ou seja, não se dirige doravante a um corpo individual, contudo, a um enorme grupo de indivíduos convertidos em números. Para Michel Foucault, esse seria o ponto crucial para a operação do que o autor denomina de biopolítica, ou seja, uma política estatal baseada na manutenção e vigilância da vida humana, computada, por sua vez, como número nos dados do estado. (FOUCAULT, 2005) O Estado nacional, a partir de tal modo de procedimento, abandona sua preocupação com a morte, fazendo com que a política se transmute do “fazer morrer e deixar viver” ao “fazer viver e deixar morrer”; que captura, por fim, a vida no âmbito de sua soberania e decide abandoná-la quando conveniente for. A passagem de um homem-corpo a um homem-espécie condiz, por outro lado, com uma determinada alienação sensorial que experimenta o sujeito na modernidade. No conto O homem na multidão, de Edgar Alan Poe, ou mesmo nos trabalhos das Passagens, de Walter Benjamin, deflagramos o caráter fantasmagórico das cidades e das multidões, nas quais o sujeito testemunha seu desaparecimento, sua própria fantasmagoria em meio à massa. Coadunando-se ao fato referido, presencia-se, na modernidade, exagerados estímulos promovidos por um ambiente tecnologicamente alterado, como lembra Susan Buck-Morss. De tal forma, o enunciado célebre de Benjamin, dizendo que os soldados voltavam mudos das guerras porque as experiências ali vividas eram impossíveis de serem retratadas (BENJAMIN, 1985, p. 115), passa a caracterizar o cotidiano no espaço urbano, que se torna, como descreve o filósofo: […] o lugar onde se dão […] as transformações mais violentas, onde guindastes e escavadeiras trabalham incessantemente, onde o solo treme com o impacto dessas máquinas, com as colunas de automóveis e com o rugido dos trens subterrâneos, onde se escancaram, mais 47 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 profundamente que em qualquer outro lugar, (suas) vísceras [...] (BENJAMIN, 1985, p. 57) O choque, as experiências extremas, os acontecimentos desmoralizantes e os estímulos da publicidade, entre outros, se tornam não apenas numerosos como se encontram normatizados no dia a dia. O corpo e seu aparato sensorial extremamente “expostos a choque físicos, que tem correspondente em choques psíquicos”, faz com que os estímulos das “percepções que antes suscitavam reflexos conscientes” se coadunem em “fonte de impulsos de choques dos quais a consciência deve se esquivar” (BUCK-MORSS, 1996), como explica Susan Buck-Morss ao ler Benjamin. Ou seja, a excitação agressiva e contumaz deste corpo, para a autora, não cria um sujeito mais sensível, mas precisamente seu o contrário; o sujeito da anestesia, anestético. O cinema, para Buck-Morss, seria uma espécie de paradigma da referida lógica de funcionamento da experiência moderna. É no cinema – através da câmera, ou melhor, da máquina –, que o olho chega onde jamais poderia, assiste a cabeças cortadas, pés separados dos corpos e a fantasmagoria de pessoas que não estão mais lá – o que levava as primeira multidões espectadoras ao horror –, às mais eróticas provocações e aos mais absurdos atos de violência “e não fazemos nada”, cortando-se “a continuidade entre ação e cognição”, o que produz a “neutralização da sensação, um entorpecimento do sistema nervoso que é equivalente a uma anestesia corpórea.” (BUCKMORSS, 2010, p. 19) O mágico, como o pintor, diz Buck-Morss citando Benjamin, “preserva a distância natural entre ele e a realidade”; já o contrário aconteceria com o cirurgião e o cinegrafista, que se abstêm de abordar o paciente “homem a homem”, diminuindo radicalmente o espaço natural entre as pessoas para penetrar profundamente no corpo e mover-se entre os órgãos (BUCK-MORSS, 2010, p. 30). BuckMorss nos resume o efeito de penetração da técnica na realidade conferido pelo cinema, assim como seu ganho cognitivo, que, obviamente, não veio sem um preço: 48 De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema A guerra moderna não pode se compreendida como experiência crua. Como muitas das realidades da modernidade, a guerra precisa do órgão protético da tela do cinema para ser “vista”. Virilio declara diretamente: “A guerra é o cinema e o cinema é a guerra”. Não precisamos ir tão longe para perceber que o que conhecemos como guerra não pode ser separado de sua representação cinemática. Isto não é verdade só em relação ao público. Nenhum general moderno, nenhum piloto de bombardeio pode atuar sem a percepção simulada da imagem cinética. A questão é que certos eventos só podem ter lugar na superfície protética da tela. Certos fenômenos só podem existir dentro das dimensões da percepção cinemática. Walter Benjamin acreditava que a cidade só poderia ser experimentada verdadeiramente por este meio, e resta claro que as multidões das ruas e dos lugares públicos das cidades modernas (Paris, Berlin, Moscou) se tornaram objeto privilegiado da iniciante construção cinemática. Pudovkin escreveu que para receber “uma impressão claramente definida” de uma demonstração de rua, o observador precisava vê-la do telhado de uma casa, da janela de uma primeiro andar, e misturando-se à multidão – um simultaneidade de pontos de vista que somente a câmera móvel e a montagem podem prover. (BUCK-MORSS, 2010, p. 20) Emanuelle Coccia, por sua vez, define o que chama de sensível como as imagens que se formam precisamente entre a matéria e a memória, o que o diferencia de Henri Bergson, para o qual a formação destas imagens dava-se sobre o sujeito. Para Coccia, a singularidade do corpo em contato com os objetos externos possui a capacidade de gerar imagens (COCCIA, 2010, p. 1-20) 4, que agem, por sua vez, 4 Completa o autor: “Vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o mundo que nos circunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as imagens que nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se escreveu, não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o nada. (...) A experiência, a percepção, não se torna possível através da imediatez do real, mas sim a partir da relação de contigüidade (per continuationem suam cum videntem). Esse espaço não é um vazio. Sempre é um corpo, sem nome específico e diferente em relação aos diversos sensíveis, mas com uma capacidade comum aquela de poder gerar imagens. No cerne desse meio, os objetos corpóreos se tornam imagens e assim podem agir imediatamente sobre nossos órgão perceptivos. Há percepções apenas porque há metaxus. O sensível tem lugar apenas porque, para além das coisas e das mentes, há algo que possui natureza intermediária.” 49 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 sobre os órgãos perceptivos, criando uma extimidade. O cinema, para o autor, não seria, então, um objeto, mas “algo que existe sobre um objeto”, pois “um corpo que se encontra anestesiado, não seria nosso corpo, mas apenas um dos tantos objetos sensíveis que é possível perceber e é possível fazer experiência” (COCCIA, 2010, p. 65).5 O cinema, portanto, media as imagens que se formam entre a matéria e a memória, as captura. O sensível, em meio a sua hipersensibilização conferida pela absurda penetração do cinematógrafo na realidade, se polariza mais na matéria que na memória, pois é impedido de compreender e responder tudo que se passa.6 Como contrapartida, as máquinas nos oferecem o conforto narcisista de que “por meio dos media”, podemos percorrer com uma “câmera olho cada momento da realidade que acontece fora” de nosso alcance (BUCK-MORSS, 2004, p. 15). Isto quer dizer que a máquina, ao apreender as imagens, nos oferece uma produção de presença sem precedentes na história, lembrando que, para Jacques Derrida, a metafísica ocidental atua justamente sob o significante da presença. Entretanto, de acordo com a assertiva do próprio Derrida, a metafísica nos faz acreditar que o suplemento adiciona alguma coisa, quando na verdade ele apenas acresce uma falta (DERRIDA, 2004). Ou seja, o que está no écran são imagens, e não há nada por detrás. A ciência e a tecnologia não nos livrarão da finitude, da morte. Portanto, o que resta, para nós, do assalto das imagens de nosso sensível pelas máquinas, é exatamente aquilo que Guy Debord chamava de Sociedade do Espetáculo. Cito: É pelo princípio do fetichismo da mercadoria, a sociedade sendo dominada por ‘coisas supra-sensíveis’, que o espetáculo se realiza 5 Ibidem. Para Coccia, nosso corpo é uma “série de percepções em atos […] É nosso corpo que se define a partir de uma atualidade de percepções. ‘Outros’ são os corpos que geram essas percepções, os corpos que se fazem sentir, os sensíveis”. Ou seja, o cinema é a captura do sensível pela máquina. 6 FLUSSER, 1985. Para Vilém Flusser, não se trata apenas na quantidade de dispositivos, mas o fato de que os próprios aparelhos são infinitos, sendo impossível decifrá-los. 50 De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema absolutamente. O mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, ao mesmo tempo em que se faz reconhecer como o sensível por excelência. (DEBORD, 2003, p. 21) III. O ano é 2001. Então publicado, eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, traz a mesma São Paulo que João Miramar experimentava um século antes, dividida, agora, em setenta fragmentos. Logo ao início da obra, temos a sugestão de que tudo ali se passa numa terça-feira, 9 de maio de 2000 (RUFFATO, 2001, p. 11). Demarcamos o caráter sugestivo tendo em vista que como os fragmentos não possuem relação hierarquizada, sendo que a não relação entre as passagens nos fornece relações possíveis, fazendo o texto subscrever: há um vestígio de ser São Paulo o espaço receptáculo das inúmeras temporalidades que ali se inscrevem, há um vestígio de que tudo se dá em um só dia, mas a certeza é o que falta, conferindo, sobretudo, a possibilidade. A amálgama, que constatávamos em Memórias Sentimentais de João Miramar, dá lugar, em eles eram muitos cavalos, a uma rede heterogênea destituída de unidade que lhe sirva de pivô, descentralizada, como o protótipo rizomático de Deleuze7. Numa das sequências de passagens, temos: 3. hagiologia Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadeira de um mosteiro em Bolonha. No natal de 1456 recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha como única preocupação cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463. 7 DELEUZE, 2007, p. 15. “É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n -1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos são rizomas. (...) O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos.” 51 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 4. A caminho O neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum-tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda e à direita, um anel comprado na Portobello Road, satélite no dedo médio direito, tumtum tum-tum, o bólido zune na direção do aeroporto de Cumbica, ao contrário cruzam faróis de ônibus que convergem por toda parte (...) (RUFFATO, p. 11, 2001) O último fragmento, em consonância com a passagem de Memórias sentimentais citada ao início desta apresentação, é perpassado, de modo caótico, pelos aspectos citadinos, as luzes, os sons das máquinas, das ruas. Já em contraponto ao mesmo fragmento da referida obra de Oswald, o sujeito da ação, aqui, é a própria máquina. Portanto, quem “vaga veloz por sobre o asfalto irregular” é o neon, e se há condutor do veículo citado, ele apenas é falado pelos dispositivos, tendo seu corpo situado no mesmo patamar que o carro: carro/corpo. É preciso, portanto, salientar: em eles eram muitos cavalos, não há mais subjetividade a ser remontada, assim como não há unidade possível: o sujeito foi solapado. Tal assertiva é deflagrada no texto de Ruffato pela radical anomia das personagens em correlação ao desamparo dos corpos. No contemporâneo é acentuada a metamorfose das estratégias do poder – indicada outrora por Gilles Deleuze (1992) –, passando da disciplina ao controle, do molde à modulação, ou como diria Lytoard, de um projeto moderno a um programa, intensificada no mundo pós-68 (LYOTARD, 1997). A própria linguagem – ou melhor, o sensível – passa a ser alvo do poder, atuando, por sua vez, sob a égide dos Estados pós-democráticos espetaculares – para usar um termo de Giorgio Agamben (2002) –, outrossim, por meio da multiplicação infinita dos dispositivos. Para Agamben, a pletora referida se ocupa de uma dessubjetivação dos sujeitos sem visar contrapartida (AGAMBEN, 2009), contando apenas que ele seja mais 52 De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema um consumidor, como um número no ibope da televisão: carro/corpo. Isto nos faz ressaltar: a miséria em “eles eram muitos cavalos”, não é mais a da falta, mas, sim, a do excesso. Próxima à leitura que Deleuze realiza acerca do cinema neo-realista italiano, as personagens em Ruffato se tornam espectadoras; não se movem ou desenvolvem qualquer ação, se tornando absolutamente fantasmagóricas e permitindo com que as máquinas sejam as grandes protagonistas do romance. A metrópole, por fim, seria essa grande máquina, espécie de personagem central do texto. A interrupção dos fios de linearidade, como no vagar de um néon pela cidade precedido por um tratado sobre a vida de um santo – o texto é perpassado por elementos como listas de livros, anúncios de jornal, entre outros – inviabiliza a autonomia de qualquer relato acerca de uma suposta realidade social. A estratégia é simples: copiar e colar, fazer imagens de segunda mão como protagonistas. Diferentemente de um Miramar que assinava suas cartas, em eles eram muitos cavalos os enunciados apócrifos interrompem o lamurio das personagens miseráveis, jogando o texto numa zona de indeterminação: tudo ali é falso, tudo é verdadeiro. A falsificação – e lembramos que o primeiro capítulo de Marco Zero I A revolução melancólica, de Oswald de Andrade, se intitula “A posse contra a propriedade” – através do uso de um objeto copiado, saqueado, produz, usando o termo de deleuziano, uma potência do falso, que produz “o desenvolvimento da atitude elas próprias.” (DELEUZE, 1985, p. 231) É como se a câmera olho que percorre a cidade fosse interrompida pela transmissão de outras câmeras, criando um jogo de espelhos, de multiplicação, que no fim revela apenas o próprio ato de se filmar, a materialidade do suporte. O estilo telegráfico de Miramar como procedimento de leitura citadina se metamorfoseia, em eles eram muitos cavalos, em algo como o fuzil cronofotográfico, citado por Paul Virílio (2005), sendo última arma de guerra e dispositivo cinemático usado para a visualização 53 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 dos confrontos. Este bombardeio se dá por meio de uma convulsão enunciativa, exemplificada pelo fragmento “a caminho”, que corta, oblitera as consequências, os efeitos das causas, inviabilizando a linearidade: de onde, como frisava Benjamin ao ler o Teatro Épico, de Bertold Brecht, emergem os gestos (BENJAMIN, 1985, p. 80). O corte na ligação causal entre dois pontos de ação produz uma espécie de ato performático, onde o corpo movimenta por movimentar, em uma espécie de dança sem finalidade. A escrita aqui, se torna um lançar de significantes sem propósito, sendo colocada enquanto tal: se Ruffato, então, confere testemunho de um sensível capturado, o último se dá como um arquivo eternamente aberto ao futuro (DERRIDA, 2001). Um sopro, produtor de intensas repetições calcadas em um imensurável (DELEUZE, 2006), como potência de algo vir a ser, e não o retorno do idêntico. A câmera que passeia pela cidade em eles era muitos cavalos nos faz desabar bruscamente da impressão “narcisista do controle total” (BUCK-MORSS, 2010), que o cinema nos fez acreditar que possuíamos, numa absurda fantasmagoria da imagem. Na descrição dos corpos sem ação política – desta vida nua (AGAMBEN, 2002) – ao lado de idioletos, recortes de revistas, papeis achados no lixo, temos o que resta deste sensível capturado: o fim de uma vida como uma TV fora dor ar. IV. O cineasta Robert Bresson, em suas Notas sobre o cinematógrafo, dizia que: O que nenhum olho humano é capaz de captar, nenhum lápis, pincel, caneta, de reter, sua câmera capta sem saber o que é e retém com a indiferença escrupulosa de uma máquina (BRESSON, 2005, p. 33) Destarte, a montagem cinemática não se destaca por juntar fragmentos ou por sobrepor imagens, isto a poesia sempre fez. Muito menos por, como afirma Georges Didi-Huberman (2008) – e como vemos nos filmes de Andrei Tarkovsky através dos longos planos 54 De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema sequência –, propor a coexistência de temporalidades heterogêneas em um mesmo espaço, requerendo uma montagem. A literatura já nos fornecia o mesmo. O que o corte e a repetição, ou seja, a montagem (AGAMBEN, 2008), no cinema, propicia, é o brusco desmonte do sensível, sua mediação, que quer dizer: sua captura. É com os olhos voltados para este panorama, que Oswald e Ruffato tecem suas afinidades literárias com o cinema. Di Cavalcanti (2008), em 1943, afirmava que Oswald amava o espetáculo. A constatação é, de fato, vislumbrada em suas peças de teatro, como O Homem e o cavalo, planejada como espetáculos em nove quadros. Em A morta – ambas partes da Trilogia da Devoração – presenciamos o capítulo intitulado “O país da anestesia” (ANDRADE, 2005), no qual integrantes de uma comunidade em que todos haviam se suicidado instauram um diálogo entre si. O olhar do espectador da citada peça assiste, como destaca Carlos Gardin: [...] a autópsia do poeta e da poesia e, por conseguinte, é instigado a assistir à sua própria autópsia [...] o elo processo de des-montagens das estruturas do indivíduo que, portanto, ver-se-á em desmontagem. (GARDIN, 2005, p. 163) O discursivo passa ao dialógico (FLUSSER, 2008), conjunto de gestualidades. “É preciso visitar a morte” (GARDIN, 2005, p. 164), e retirar, como propunha Oswald, o sujeito do exílio entre as máquinas. Miramar, que celebrava a vida, o caráter indissolúvel de seu espírito, era a primeira testemunha deste exílio. A deglutição antropófaga exila o sujeito de si mesmo, fazendo não coincidir a imagem do corpo com a que se vê no espelho: o sujeito está onde não está (AGAMBEN, 2005). eles eram muitos cavalos, ainda que não multiplique as anacronias, devido ao seu débito com o com o contexto no qual se vê, faz exilar a própria mão que escreve: não há escrita, apenas seleção de material de toda ordem. O autor está na borda do texto, se inscreve também como um gesto. (AGAMBEN, 2008) 55 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011 Cada autor detecta, à sua maneira, que um sensível expropriado – daí a afinidade com o cinema – é também a oportunidade para que ele seja colocado em sua medialidade, fazendo in-operar a captura pelo poder. (AGAMBEN, 2006) Ao ser cortado por uma página-tela negra, na penúltima passagem, eles eram muitos cavalos demarca a fratura primeva: não há nada por detrás da linguagem, a imagem, mesmo a especular, é, como diz Derrida (2008), a morte. Só assim poderíamos negar, como fazia Oswald, um messianismo transcendental, para evocar, como Agamben (1995), um de uma imanência radical: que cada momento do passado, cada relato ou palavra obliterada, cindida, fraturada, possa ser uma pequena fresta pela qual entra o profeta. Que as máquinas se transformem em brinquedos. De corpos silenciados, para outros infinitamente multiplicados. Referências _____. Bataille e o Paradoxo da Soberania. In: CAPELA, Carlos Eduardo Schimidt e SCRAMIN, Susana. Revista Outra Travessia. A Exceção e o Excesso. Florianópolis, p. 91-94, 2005. _____. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal. 2º Edição, 2006. _____. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. 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Chapecó: Argos, 2009. _____. O rei da vela. 2º ed, 11ª reimpressão. São Paulo: Globo, 2011. _____. Panorama do fascismo. O homem e o cavalo. A morta. São Paulo: Globo, 2005. _____. Passagens. Organização da edição brasileira por Willi Bolle. Belo _____. Pau Brasil. 2. ed, 1. reimpressão. São Paulo: Globo, 2003. _____. Post-scriptum. Sobre as sociedades de controle. In: Conversações, 19721990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 219-226. _____. Serafim Ponte Grande. 9. ed. Estabelecimento de texto de Maria Augusta Fonseca. São Paulo: Globo, 2007. ______. Estética e anestética: O ‘Ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderado. In: Travessia – revista de Literatura – n.33. UFSC – Ilha de Santa Catarina, ago-dez. 1996; p. 11-41 AGAMBEN, Giorgio. La comunidad que viene. Trad. José Luis Villacañas y Claudio La Rocca. Valencia: Pre-textos, 2006. ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Editora Globo Secretaria de Estado da Cultura, 1990. BENJAMIN, Walter. 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Lisboa: Editorial Estampa, 1997. POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. 3. ed. São Paulo: Globo, 1999. RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001. VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. Logística da percepção. Trad. Paulo Roberto Pires. São Paulo: Boitempo, 2005. 58 Subproduto do cinema? A chanchada e o caráter cômico e político do filme Nem Sansão nem Dalila, de 1954 Átila Alixandre de Moraes1 Dolores Puga Alves de Sousa2 Resumo: Este artigo tem a finalidade de fomentar um diálogo entre História e Cinema, Arte e Sociedade. Propõe não apenas uma reflexão sobre como um filme representa a perspectiva de sujeitos que pensam e constroem mensagens sócio-políticas de seu momento histórico, como uma avaliação acerca das próprias ideias a respeito do que era considerado o “verdadeiro cinema” nos anos de 1950, período da obra Nem Sansão Nem Dalila, de Carlos Manga (1954). Por meio de uma ficção cômica, característica das “Chanchadas da Atlântida”, embora salientada como produção de “má qualidade”, foi possível promover uma análise da visão crítica criada sobre o governo de Getúlio Vargas. Palavras-chave: Chanchada; Nem Sansão Nem Dalila; Getúlio Vargas. Abstract: This article aims to foster a dialogue between History and Cinema, Art and Society. Offers not only a reflection on how a film represents the perspective of individuals who think and build socio-political messages of his historical moment, as an assessment on their own ideas about what was considered the “real cinema” in the 1950s, period of the work Nem Sansão Nem Dalila, of Carlos Manga (1954). Through a fictional comic character from “Chanchadas da Atlântida”, although thought as a production of “poor quality”, it was possible to promote a critical analysis of the vision built upon the government of Getúlio Vargas. Keywords: Chanchada; Nem Sansão Nem Dalila; Getúlio Vargas. 1 Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Coxim (UFMS / CPCX). 2 Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) na linha de pesquisa Linguagens, Estética e Hermenêutica. Professora do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Coxim (UFMS / CPCX). 59 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 “O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável”. Umberto Eco Para os estudiosos, já não é novidade a existência de transformações dentro da própria metodologia histórica, assim como não o é a busca cada vez maior por um novo espaço no qual possam inseri-la. Tratase da construção de uma abordagem que dialogue com a literatura: “[...] a escrita da história, como discurso, organiza-se sob a forma de uma narração literária, só que se diferencia desta na medida em que procura produzir um efeito de realidade/verdade por meio da citação de documentos [...]”. (RAMOS, 2001, p. 24). Neste aspecto, a análise positivista dos fatos não consegue mais dar vazão ao cuidado destinado aos fragmentos históricos, aos valores e representações dos sujeitos, tão bem observados pelas obras de arte, como o cinema. Dessa forma, a relação entre História e Ficção tornou-se conhecida. Afinal, era possível encontrar a “história” existente em filmes que não fossem simplesmente documentários. A partir desse ponto, houve a maior mudança: esses documentários, como qualquer outra produção cinematográfica, contêm uma linguagem e uma mensagem específicas de seus produtores e diretores. O quê cada um desses elaboradores buscavam dizer com os filmes? Por quê? De quais formas? Estas passaram a ser análises importantes. Contudo, dentro da própria reflexão desses novos objetos e temas, ainda existe a influência de uma tradição hierárquica. Acostumamos a enxergar e pensar o mundo sob o ponto de vista trágico. A história e seus acontecimentos são “sempre trágicos”. E, nesse sentido, parecenos a tentativa de um “engrandecimento” da história; afinal, ela deve ser levada a “sério”. A idéia da “grandeza” trágica vem ainda da antiguidade clássica, quando Aristóteles, pela sua Poética (ARISTÓTELES, 1966), determinou uma tradição teórica capaz de se fundamentar como um 60 Subproduto do cinema? manual a ser seguido. Segundo ele, a tragédia serviria para que os homens aprendessem o caminho certo, e por este viés, ela tomaria características de cunho moral. Assim, a tragédia seria ponderada de maneira superior, pois seria um importante fundamento para a evolução humana. Já a comédia, seria relegada a segundo plano, uma vez que representaria somente o ridículo, o menor, o inferior e, por isso, não passível de maiores considerações. A Poética se estabeleceu de tal forma que se constituiu até mesmo no pensamento de intelectuais contemporâneos, perpassando os tempos históricos e exercendo sobre eles um “poder hipnótico” – contemplando uma expressão de Carlos Vesentini: A capacidade de a memória impedi-lo [impedir o movimento histórico] parece fluir, em boa parte, da força auferida por se localizar em um fato – memória e fato se unem, sobrevivendo aquela e, nesse movimento, ela decide onde as interrogações serão postas, da mesma forma que exclui ângulos onde sua coerência poderia ser colocada em questão. (VESENTINI, 1997, p. 19) Quando a coerência não é necessariamente o que importa, ou ainda, quando já existe uma coerência pré-determinada, é possível compreender essa hierarquia da tragédia sobre a comédia ao analisarmos a recepção de algumas produções cinematográficas do Brasil nos anos de 1950. Neste período, muitos dos críticos do cinema brasileiro determinam seus pontos de vista. O sonho de alcançar o progresso e a modernidade era, cada dia mais, exigido pelos brasileiros. Nestes termos, o bom cinema era aquele que pudesse fomentar a grandiosidade técnica, bem como a seriedade na concepção de nação e seus elementos. O “Cinema” com “C” maiúsculo, nunca deveria ser cômico, de “humor chulo” e “grosseiro”, segundo os críticos das chanchadas brasileiras da produtora Atlântida – estas obtendo o nome na década de 1950, já com um tom pejorativo –, mas sim, “altivo” e “grave”, que retratasse o Brasil com “discrição” e “discernimento”. A comédia seria um fator que marcaria o subdesenvolvimento, ao invés de ressaltar a busca pelo avanço. Não obstante, os críticos: 61 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 Diziam que os cenários eram apressados, as situações ilógicas, o corte descuidado, as histórias mal costuradas, os diálogos ridículos, o som ininteligível, a fotografia chapada, a produção paupérrima. [...] [Mas] o sucesso das chanchadas provara que podia haver no Brasil uma atividade cinematográfica contínua e rendosa: porque não poderia haver Cinema? [grifo nosso]. (GALVÃO; SOUZA, 1984, p. 484) Por isso, compreender os motivos do “ridículo” sempre foi tarefa difícil de ser realizada dentro da tradição. Este foi um movimento uma vez ousado por Bakhtin, na tentativa de decifrar a comicidade e o “grotesco” presentes nas obras do poeta Fonte: www.adorocinemabrasileiro.com.br Rabelais, da Renascença. (BAKHTIN, 1993). Pensar dessa forma é analisar as chanchadas em seu contexto histórico, na medida em que compõem implicações estéticas que são, ao mesmo tempo, políticas. Como afirmou Rosangela Patriota ao se remeter às discussões feitas por Umberto Eco: [...] o riso tem a capacidade de liberar e produzir questionamentos, pois a comédia, ao contrário da tragédia, não propicia a identificação do espectador com o que ocorre em cena, pelo contrário, ela pode suscitar o “estranhamento”, a crítica, bem como permite romper o espaço das hierarquias estabelecidas. Assim, redimensionar o lugar da tragédia e da comédia na história das manifestações artísticas é de suma importância, na medida em que possibilitará repensar, por exemplo, o lugar atribuído a estes gêneros na história do teatro, do cinema, da literatura. (PATRIOTA, 1999, p. 840). De maneira relevante, Patriota explora na comédia, o que Michel de Certeau aponta para a escrita da história: o lugar social. Somente compreendendo a chanchada dentro de seu “[...] lugar de produção sócio-econômico, político e cultural” (CERTEAU, 2002, p. 66), compreendemos também as razões da forma como ela é concebida. 62 Subproduto do cinema? Se pautarmos em uma das produções da Atlântida, podemos realizar uma análise mais profunda. Como documento, é possível construir reflexões sobre o filme Nem Sansão Nem Dalila, lançado no Brasil em 1954, sob direção de Carlos Manga. Uma paródia ao filme Sansão e Dalila de Cecil B. Demille, de 1949, de inspiração bíblica. As chanchadas do país até os anos de 1970 eram alvo de muitas críticas por parte dos estudiosos das produções brasileiras, e após esse período, alguns trabalhos buscaram repensar o valor dessas obras cinematográficas, principalmente pelos seus significados sócio-culturais, apontando essas películas como grandes detentoras de críticas da realidade nacional da época, como Bernardet, que considera o referido filme como “um dos melhores filmes políticos brasileiros”. (Cf. BERNARDET, 1979). Elas também revelam a riqueza e a razão de compreendermos que uma produção suscita reflexões sócio-históricas de seu tempo e, muitas vezes, sobretudo de seu espaço: o Brasil daqueles anos. O enredo se baseia na trajetória do barbeiro Horácio, que vai para o momento histórico do “Reino de Gaza”, antes de Cristo, depois de sofrer um acidente em uma máquina do tempo. Conhece Sansão, um homem de força extraordinária, vinda de uma peruca. Horácio procura trocar espertamente a peruca por um isqueiro – que naquele tempo não era sequer conhecido – e, ao convencer Sansão, transforma-se num homem forte e influente, reinando em Gaza como um “ditador bonachão”.3 Alusão explícita à figura de Getúlio Vargas – naquele ano presidente do Brasil, mas, dessa vez, por voto popular em 1951 –, o filme constrói uma crítica ao seu governo populista e autoritário ao longo de sua trajetória política. Para isso, utiliza-se da história 3 A pesquisa feita sobre a sinopse do filme e as fotos coletadas foram retiradas do site www.adorocinemabrasileiro.com.br no ano de 2006. 63 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 de Sansão. Na bíblia, se referia a um homem responsável por salvar o povo de Israel do poderio Filisteu, por meio de um dom divino: uma força fantástica advinda dos seus cabelos. Por meio dos gestos e das falas do ator Oscarito (que interpreta o barbeiro Horácio, o qual toma o lugar do Sansão), um “Getúlio Vargas” cômico entra em cena ao elaborar leis, satirizando sua imagem, tantas vezes passada como um “salvador” e “pai” do “povo brasileiro”, quase “enviado por Deus”. A própria troca de Sansão por um barbeiro no poder, já demonstra outra alusão: o golpe de estado de Vargas – o Estado Novo. Existe, nesse contexto, a discussão sobre o papel do representante do governo dentro da sociedade – esta vista cada vez mais dependente e obediente aos seus mandos, dando a falsa impressão de que há uma união popular rumo à construção do progresso brasileiro. Na realidade, de acordo com Marilena Chauí, o Estado seria encarado como “[...] o único sujeito político e o único agente histórico” (CHAUÍ, 2004, p. 28). No filme, durante a criação das leis, o rei Horácio/Sansão se depara com um problema administrativo que o faz multar alguns comerciantes por não cumprirem seus novos mandos. Nesta cena, a secretária o questiona: “Não achais, poderoso Sansão, que essas novas leis estão criando confusão?” 4 E o rei responde: “Deixa a confusão, o governo é isso mesmo, pelo menos na minha terra é assim”. Falas como essas demarcam a alusão às leis vigentes no Brasil impostas pelos políticos que apenas queriam manter a “ordem” por vias autoritárias. 4 Todas as falas aqui citadas foram transcrições retiradas da película. Nem Sansão Nem Dalila, 1954. 64 Subproduto do cinema? Com essas personagens, o filme procurava, de forma debochada, desconstruir um discurso populista fomentado inclusive por intelectuais crentes nos ideais progressistas e nacionalistas do governo Vargas. Alertava que a “cultura política” – expressão da época salientada por Angela de Castro Gomes acerca dos planos educativos do governo ao acesso do “povo à política” – era uma estratégia que, para se atingir a elite, precisaria, na realidade, dos menos favorecidos apenas para se ganhar o voto. A obra retratava, então, uma crítica à crença da unicidade de pensamento e “povo brasileiro”: “O estado novo não pode ser caracterizado como apresentando uma doutrina oficial compacta, isto é, homogênea ao ponto de afastar diversidades relevantes”. (GOMES, 1994, p. 173). Outros elementos de Nem Sansão Nem Dalila podem nos apontar os motivos da escolha cômica e seu caráter necessariamente político. Dentre eles, podemos destacar o enfoque do filme dado ao trabalho da rádio daquele período, no Brasil. Horácio, ainda buscando efetivar-se no poder político com sua peruca “milagrosa”, aponta o desconforto que sente em relação à rádio do lugar. Ele afirma que ela apenas consegue funcionar pelo seu apoio poderoso e exige que ela, ao invés de falar besteiras e colocar músicas, anuncie sempre seu nome – incorporando Sansão – para ganhar votos eleitorais, através de uma campanha e uma propaganda política esculachadas em “prol do povo”. Sobre esta questão, Marilena Chauí explica: [...] os vários nacionalismos desse período [que se iniciam nos anos de 1930] contaram com a nova comunicação de massa (o rádio e o cinema) para “transformar símbolos nacionais em parte da vida cotidiana de qualquer indivíduo e, com isso, romper as divisões entre a esfera privada e local e a esfera pública e nacional”. [...] Passeatas embandeiradas, ginástica coletiva em grandes estádios, programas estatais pelo rádio, uniformes políticos com cores distintivas, grandes comícios marcam esse período como época do “nacionalismo militante”. (CHAUÍ, 2004, p. 20) 65 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 Pela propaganda política, muito bem explorada pelo filme, era necessário ser um militante das idéias impostas, visto que essa perspectiva estava diretamente associada à defesa da nação. Portanto, quem não estava de acordo com as idéias governamentais do líder Horácio/Sansão, estava contra o ideal de toda a Gaza. Segundo Mônica Pimenta Velloso: É nesse período que se elabora efetivamente a montagem de uma propaganda sistemática do governo, destinada a difundir e popularizar a ideologia do regime junto às diferentes camadas sociais. Para dar conta de tal empreendimento é criado um eficiente aparato cultural: O Departamento de Imprensa e Propaganda, diretamente subordinado ao Executivo. [...] Vargas defendera a necessidade de o governo associar o rádio, cinema e esportes em um sistema articulado de “educação mental, moral e higiênica”. (VELLOSO, 2003, p. 157). Como Vargas, o rei Horácio/Sansão também adota essas medidas como forma de se ter uma melhor aproximação com o público, em especial as camadas sociais mais baixas para se ter uma maior aprovação dentro do âmbito político. Nesse aspecto, semelhante à criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (o DIP) – órgão de controle e manipulação do governo por vias de comunicação de massa – a rádio se torna uma grande aliada do líder de Gaza para se obter o domínio das pessoas. Essas considerações se tornam claras no momento em que, no filme, o barbeiro se dirige à rádio para conferir de perto o programa que ele mandou criar. Segundo a personagem principal da obra, que se enfurece com o locutor da rádio: “Esse cara fala de tudo, menos da minha propaganda política”. Nesse ínterim, podemos observar que a propagação de um governo populista foi justamente a vontade de Horácio/Sansão ao implantar propagandas. Seus adversários políticos chegam a enfatizar, no filme, que a razão de sua popularidade estava nessa publicidade que o exaltava, enaltecendo seu governo. Eis uma crítica e uma mensagem direta ao público que assistiria a obra para refletirem o sentido 66 Subproduto do cinema? da rádio como forte elemento de manipulação política. A atitude do líder de Gaza em conferir aquilo que era transmitido pode ser comparada à eficácia da criação do DIP por parte de Getúlio Vargas e seus assessores: uma entidade segura que viabilizasse os ideais políticos da centralização do Estado e da busca de confiabilidade total da população em seu governante. Ainda segundo Pimenta Velloso: “Essa estrutura altamente centralizada iria permitir ao governo exercer eficiente controle da informação, assegurando-lhe considerável domínio em relação à vida cultural do país” (VELLOSO, 2003, p. 158). No filme, podemos observar essa busca de uma formação política específica aos cidadãos de Gaza. A influência por meio da rádio foi de suma importância para a implantação do governo de Getúlio Vargas, que utilizava desse recurso para mascarar uma política de muitos anos de comando, ocultando qualquer rótulo de “autoritário” e “ditador”. Justamente pelo acesso à vida cultural é que o governo de Vargas sustentava uma “educação política” dos brasileiros. Mas “povo brasileiro”, enquanto discurso e prática daquela ideologia governamental não se ampliava para qualquer pessoa; simbolizava, sobretudo, os trabalhadores do país, que se tornaram ícones da “construção da nação”, do “futuro e do progresso brasileiros”. Representavam soldados em nome dos mandos do Estado para exaltação daquilo que se acreditava ser a grandiosidade nacional. A demonstração da tentativa em se formar politicamente os trabalhadores brasileiros estava no programa apresentado pelo Ministro do Trabalho de Vargas, Alexandre Marcondes Filho, intitulado “Falando aos trabalhadores brasileiros”. De acordo com Angela de Castro Gomes: “o título resume a intenção do ministro e com isto o veículo escolhido para as emissões” (GOMES, 1994, p. 196). O governo, como no filme, utiliza recursos para atingir as camadas sociais mais baixas e para se autopromover. Na película, de maneira bem debochada, podemos 67 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 observar esse ponto por meio do nome do programa do rei: “Votai em Sansão, para um governo de ação”. Com um título bem objetivo, mostra-se a face do autoritarismo do governo na expectativa de formar opiniões com os meios de comunicação de massa. Em suas falas, Horácio/Sansão dizia: “Trabalhadores de Gaza, a situação política nacional... está uma vergonha! As mamatas andam soltas por aí, todos querem se defender!”. Com esse discurso, imitando os trejeitos de Getúlio Vargas ao se dirigir à população do país, a personagem começa a decretar que se cobrem mais impostos e, nesses termos, o discurso inicial era apenas para encobrir a sua real intenção. Durante o chamado Estado Novo, momento político do governo utilizado como estratégia de convencimento populacional aliado ao autoritarismo, a aproximação entre o Estado e um “povo brasileiro” idealizado era essencial para que o populismo continuasse sendo esse elo entre eleitores – diga-se de passagem, sobretudo trabalhadores – e o poder público. Em outra cena do filme, Horácio/Sansão afirma: “Ficando estabelecido que todos os dias do ano são feriados, com exceção do dia do trabalho!”, suscitando, por vias cômicas, o que Angela de Castro Gomes apontou como ótima referência dessa aproximação entre o governante e o trabalhador: a determinação dos dias festivos. Constrói-se, assim, uma sátira explícita à criação de feriados e dias comemorativos pelo governo como estratégia de manipulação e construção de uma memória nacional oficial. Trata-se da consolidação histórica do líder do país como grande herói responsável por criar as leis trabalhistas; um dia representativo do símbolo da melhoria e da valorização da vida do trabalhador e do progresso do Brasil. São questões que ainda nos dizem respeito hodiernamente, porque foram fundamentadas como parte necessária de uma lembrança contínua e anual, coletiva e comum, cristalizadas de tal maneira na vida social que se legitimaram como história: uma parte da história da nação. Segundo Júlio Pimentel: 68 Subproduto do cinema? [...] uma memória coletiva ou história pública determinam ou reiteram uma identidade que pode, muitas vezes, parecer frágil, mas que é continuamente nutrida pelo exercício da lembrança e por sua ligação a temporalidades passadas, a episódios de que não participamos, mas que ilustram um vínculo comum a homens em sociedade. Na operação histórica, o passado é tornado exclusivamente racional, destituído da aura de culto, metamorfoseado em conhecimento, em representação, em reflexão; na constituição de memória, ao contrário, é possível reincorporar a ele, passado, em um grau de sacro, de mito (PIMENTEL PINTO, 1998, p. 208-209). O mito Vargas, assim como o mito do esperto Horácio/Sansão estavam, dessa maneira, legitimados como memória. Ao apontar que todos os dias do ano seriam feriado, com exceção do dia do trabalho, Nem Sansão Nem Dalila faz uma grande crítica a essas questões, transmitindo ao público que o trabalhador, no governo de Getúlio era, na realidade, lembrado apenas no “Dia do Trabalho”, uma visão interessante de repúdio ao populismo da época, entre tantas outras discutidas nesse artigo, muito embora os produtores do próprio filme tenham mantido o cuidado de afirmar, logo ao início, que a semelhança com a realidade era “mera coincidência”. Todavia, há que se pensar que toda e qualquer mensagem de uma obra-de-arte tem um significado, antes de tudo político.5 E após alguns anos de censura, a sátira política e o amplo número de produções de chanchadas no Brasil passaram a ser referência nos anos posteriores, já na presidência de JK. (Cf. VELLOSO, 2002). De maneira geral, Vargas consegue, em seu governo, atingir as classes sociais imaginadas, fundamentando, ao longo de toda a história, a visão de um governo, que era uma ditadura nos anos de 1930 e 1940, em um ideal político conjunto, de caráter populista, utilizando-se dos meios de comunicação com objetivo de controle e legitimação estatal. Até hoje, 5 Segundo o crítico teatral Paulo Francis, “Toda arte é política, a despeito de si própria, ainda que o artista descreva as relações individuais entre duas pessoas numa ilha deserta”. FRANCIS, Paulo. Polêmica interminável – apresentação de Paulo Francis. In: BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1969, p. 10. 69 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 pensar em governo getulista é estudar a “Revolução de 1930”; o “pai dos pobres e trabalhadores”; o “progresso nacional”. Talvez, como grande ferramenta para a investigação histórica, cabe ao historiador lançar mão de documentos como esse para repensar criticamente a cristalização de uma memóriahistórica brasileira: as chanchadas. Não apenas pelos traços sociais que nos fazem repensar, mas também pela força como atingiu milhares de espectadores em todo o Brasil. De acordo com, Sérgio Augusto, um de seus principais estudiosos: Na passarela cinematográfica, só a alegria comandava o espetáculo. Atraindo filas e mais filas de espectadores religiosamente fiéis ao seu humor quase sempre ingênuo, às vezes malicioso e até picante, o filme musical carnavalesco impôs-se como um entretenimento de massa de singular expressividade. Quando encontrou sua forma ideal, os representantes de Hollywood, por estas bandas, ao invés de rir, franziram o cenho. Não era para menos. De qualquer modo, as chanchadas transpiravam brasilidade por quase todos os fotogramas – e não apenas por colocar em relevo aspectos e problemas do cotidiano de sua claque, como a carestia, a falta de água, as deficiências do transporte urbano, a demagogia eleitoreira, a corrupção política, a indolência burocrática. Até quando pretendiam ser meros pastichos de tolices estrangeiras, algo lhes traía a inconfundível nacionalidade. (AUGUSTO, 1989, p. 13, 14 e 16). Embora de caráter ficcional, foi justamente pela imaginação de artistas e da escolha pelo viés do cômico e do riso que Nem Sansão Nem Dalila se torna um ótimo objeto de estudo que não pode ser reduzido somente a uma paródia de uma obra estrangeira. O filme representa esse caráter, antes de tudo nacional, de denúncia sobre os anos de 1950 e as discussões sócio-políticas e culturais do país. 70 Subproduto do cinema? Mesmo assim, dentro da apreciação temática do filme, é possível nos deparar claramente com uma perspectiva cômica da história bíblica de Sansão e Dalila, representada pelo filme de Cecil B. Demille. De que forma uma personagem trágica – que possui um destino fatal ao contar à Dalila o segredo de sua força, não se firmando na ordem divina e se deixando seduzir por essa figura, responsável por cortar seus cabelos e retirar seu dom – se transforma, pelo filme de Carlos Manga, em uma personagem completamente cômica e “chula”? [...] a forma de entender estes acontecimentos se faz não apesar da comicidade, mas exatamente a partir dela e com base nela. A comicidade, aqui, não é mero ornamento. É uma das formas de conferir concretude ao pensamento. Portanto, ter um olhar trágico ou cômico sobre os acontecimentos é, sobretudo, uma forma de interpretá-los. [...] Por isso, se num determinado momento histórico, acontecimentos que, socialmente falando, antes eram vistos como trágicos, passarem a ser encarados como cômicos é porque uma importante transformação política ocorreu. A passagem do trágico para o cômico, neste caso, só pode ser explicada a partir da própria história. (RAMOS, 2001, p. 25). Sem dúvida, é preciso não deixar para segundo plano a análise das chanchadas. Sua grande recepção popular nos demonstra que suas discussões e sua comicidade fazem sentido dentro de seus contextos históricos. As chanchadas produzidas na década de 1950 são obras repletas de exames críticos da sociedade e com uma grande importância histórica para o cinema nacional, revelando problemas políticos e sociais vividos no Brasil. É por essa razão que, em meio a um novo período, em plena década de 1970, momento em que o país passava por grande censura e perseguição governamental é que os intelectuais – parte fundamental da recepção dessas obras fílmicas – desenvolveram novas leituras, compreendendo não apenas a importância das chanchadas como instrumento de discussão política, como também aprofundando a perspectiva do humor enquanto ferramenta para a construção de críticas sociais. 71 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011 Referências ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966. AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras/Cinemateca Brasileira, 1989. BAKTHIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. 2.ed. São Paulo/Brasilia: Hucitec/Ed. da UNB, 1993. BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. CERTEAU. Michel. 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Apesar da data da sua primeira edição, 1957, dois anos depois da Conferência de Bandoung, preconizadora das independências africanas e asiáticas, Garra Negra espelha ainda uma visão exótica e colonial da África e do homem africano. Palavras-chave: Jacques Martin; banda desenhada; história; Roma; Cartago; África. Resumé: Cet article se veut une réfléxion sur La Griffe Noir de Jacques Martin, une oeuvre de la bande dessinée franco-belge de thématique historique au sujet d’un voyage en Afrique subsaharienne aux années 50 av. J.-C., en reconstituant le controversé itinéraire décrit dans le Périple de Hannon, récit carthaginois daté de la première moitié du Vème siècle av. J.-C. et traduit en grec a la fin du IVème siècle av. J.-C. Malgré la date de sa première édition, 1957, deux ans aprés la Conférence de Bandoung, laquelle préconisait les indépendences africaines et asiatiques, La Griffe Noir réproduit encore une vision exotique et coloniale de l’Afrique et de l’homme africain. Mots-clés: Jacques Martin; bande dessinée; histoire; Rome; Carthage; Afrique. 1 Doutor em História de África pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). 75 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 Jacques Martin, a censura francesa e a África colonial desconhecida Jacques Martin (Estrasburgo, 1921- Bruxelas, 2010) distinguiu-se como um dos grandes nomes da banda desenhada franco-belga do século XX, na vertente realista e dramática. Se no final da IIª Guerra Mundial, depois de se ter instalado na Bélgica, onde estudara engenharia e artes e ofícios, assinou durante cerca de dois anos, dispersos por várias revistas da especialidade, séries tendencialmente humorísticas com o pseudónimo Marleb, só em 1948 é que ingressou na revista Tintin, semanário destinado ao público juvenil, fundado dois anos antes pelo empresário Raymond Leblanc, igualmente responsável pelas Éditions du Lombard. Jacques Martin confessa ter, ao tempo, apresentado à redacção da revista três projectos de séries dramáticas de banda desenhada de temática histórica, tendo por pano de fundo, respectivamente, a Antiguidade, a Idade Média e o Império Napoleónico (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p.55). Foi, porém, o da Antiguidade, com acção a decorrer nos anos de 50 a.C. e protagonizado pela personagem Alix Graccus, um adolescente gaulês tornado cidadão romano pela via da adopção, aquele que obteve a aprovação, quer de Raymond Leblanc, quer de Hergé (Georges Rémi), criador, em 1929, da série Tintin e agora director artístico do semanário homónimo. Nas décadas que se seguiram, Jacques Martin viria, até 1972, a colaborar, na qualidade de desenhador, em seis álbuns da autoria de Hergé, e a desenvolver, até à data da sua morte, em 2010, sete séries de banda desenhada de sua autoria: Alix (século I a.C., triunvirato César-Pompeu-Crasso, 28 álbuns, contando os 19 primeiros com argumento e desenho de Jacques Martin e os 9 restantes apenas com o seu argumento); Lefranc (século XX/Pós - IIª Guerra Mundial/ Guerra Fria, 19 álbuns, contando os 3 primeiros com argumento e desenho de Jacques Martin e os restantes apenas com o seu argumento); Jhen (primeira metade do século XV/Baixa Idade Média, 10 álbuns, todos 76 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade apenas com argumento de Jacques Martin); Arno (viragem do século XVIII para o século XIX/Consulado e Império Napoleónico, 6 álbuns, todos apenas com argumento de Jacques Martin); Orion (século V a.C./governo de Péricles em Atenas, 3 álbuns, contando os 2 primeiros com argumento e desenho de Jacques Martin); Keos (c. 1213 a.C/fim do reinado de Ramsés II e êxodo do Egipto de Moisés e seus seguidores, 3 álbuns, todos apenas com argumento de Jacques Martin); e, finalmente, Loïs (segunda metade do século XVII/reinado de Luís XIV, 4 álbuns, todos apenas com argumento de Jacques Martin). Das 73 narrativas romanescas que Jacques Martin escreveu desde 1948 – das quais, repita-se, 24 desenhou integralmente -, só duas, ambas da série Alix, contemplam o espaço africano subsahariano: La Griffe Noire (1959) e Le Fleuve de Jade (2003). Se excluirmos Le Fleuve de Jade – cuja acção decorre entre o antigo reino de Meroé, na margem leste do rio Nilo, na Núbia, e o território que se estende para sul, actualmente partilhado pelo Egipto e pelo Sudão -, pelo facto de esta obra não haver sido desenhada por Jacques Martin e sim por Rafael Morales, resta-nos La Griffe Noire. Esta quinta aventura de Alix, publicada em língua portuguesa pelas Edições 70 em 1987 e pelas Edições Asa em 2010, ano da morte do autor, com o título Garra Negra, surgiu pela primeira vez na revista Tintin (edição belga) entre 25 de Dezembro de 1957 (nº 52, 12º ano) e 25 de Fevereiro de 1959 (nº8, 14º ano), sendo nesse mesmo ano publicada em álbum pelas Éditions du Lombard e só mais tarde, em 1965, pela Casterman (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 110-113 e ROBERT, 1999, p.96). A data da publicação de Garra Negra na revista Tintin e nas Éditions du Lombard é, portanto, anterior à das independências do Congo Belga (depois, sucessivamente, Congo-Kinshasa, República do Zaire e República Democrática do Congo) e do Congo Francês (depois Congo-Brazzaville ou República Popular do Congo), ambas ocorridas em 1960 (M’BOKOLO, 2007, p. 502-503). Por sua vez, a 77 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 data da publicação de Garra Negra na Casterman é posterior, quer às independências destes dois países africanos subsaharianos, quer à independência da Argélia, obtida pela FNL, movimento nacionalista argelino, três anos antes, em 1962, após um longo conflito armado, remontando a 1954, com a potência colonizadora, a França (FERRO, 1994, p. 334-344). A relevância destes elementos conjunturais reside no facto de terem estado na origem de um dos episódios mais impressionantes vividos por Jacques Martin ao longo da sua carreira. Em 1965, ano da sua publicação na Casterman, editora belga, Garra Negra foi alvo de censura em França, país natal de Jacques Martin, ao abrigo de uma lei de 1949 sobre publicações destinadas à juventude que admitia arbitrariamente qualquer proibição em nome do que se entendesse por princípios morais. A proibição da edição francesa de Garra Negra em 1965 relacionou-se directamente com o então ainda recente conflito argelino e com o trauma por este causado na sociedade francesa. Sectores políticos da direita estabeleceram analogias indevidas entre os cinco oficiais romanos que destroem a fictícia Ícara e os generais franceses Bigeard, Massu, Trinquier e Erulin, e consideraram, consequentemente, Garra Negra um livro ofensivo para a OAS (Organisation Armée Secrète), formada por políticos e militares franceses em reacção ao referendo de 8 de Janeiro de 1961 sobre a autodeterminação da Argélia, organizado por Charles de Gaulle (FERRO, 1994, p. 441-428). Por sua vez, os sectores da esquerda julgaram entrever na personagem que figura encapuçada na(s) capa(s) – quer a das Éditions du Lombard de 1959, quer a da Casterman de 1965 – uma alusão aos cagoulards, membros de uma antiga organização terrorista de extrema-direita, activista pró-fascista, extinta e dispersada em 1937. A esta situação absurda, impregnada de desinteligência, como o são todas as que resultam de actos de censura, veio a pôr fim a coragem de um outro brilhante autor de banda desenhada francês, René Goscinny (1926-1977), criador e argumentista de Astérix, que tudo fez junto das autoridades do seu país para que fosse levantada a proibição da 78 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade obra de Jacques Martin (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 112-113 e ROBERT, 1999, p.20). Tal medida, porém, não incentivou o público franco-belga, decerto receoso das retaliações dos políticos, a comprar o álbum Garra Negra, do qual muitos exemplares permaneceram nas livrarias e nos armazéns durante os anos subsequentes. Mas qual será, afinal, a verdadeira componente ideológica subentendida em Garra Negra? Garra Negra, o Périplo de Hanão e a arqueologia: a fictícia vingança de Ícara, as feitorias cartaginesas na costa ocidental africana e a emergência das populações bantu Entre 149 e 146 a.C., durante a Terceira Guerra Púnica, Ícara, pequena cidade costeira da África do Norte situada a norte de Cartago e ligeiramente a sul da baía de Útica, escapou milagrosamente ao massacre perpetrado pelas legiões romanas de Cipião Emiliano. Com uma população maioritariamente cartaginesa, Ícara prosperaria durante os setenta anos que se seguiram à queda de Cartago, até aproximadamente 80 a.C., mantendo-se independente de Roma e salvaguardada por um velho tratado das eventuais hostilidades das VIª e VIIª legiões, aquarteladas em Útica. Embora os navios mercantes de Ícara fundeassem com frequência em Útica e comerciassem com os romanos, nunca os munícipes de Ícara permitiram o desembarque de nenhum navio estrangeiro, sobretudo romano, na sua cidade. Se o governador romano de Útica se mostrava complacente perante a arrogância desta atitude, o mesmo não acontecia com os militares das VIª e VIIª legiões, particularmente os seus chefes, quer o comandante supremo, Gallas, quer os oficiais superiores Flavius, Sulla, Marcus e Petrónio, sujo agastamento contra Ícara haveria de conduzir à tragédia. Uma ocasião, durante uma violenta tempestade, os vigias romanos de Útica avistaram ao longe um navio de uma esquadra romana que se afastava perdido no meio das vagas e supuseram que procurava 79 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 refúgio da baía de Ícara, onde, em situação de perigo, teria direito de asilo, mesmo tratando-se de um inimigo. O navio, porém, veio a naufragar antes de alcançar o porto, desaparecendo com pessoas e bens. Não havendo obtido notícias durante vários dias, os cinco oficiais romanos não hesitaram em imaginar que os habitantes de Ícara tivessem massacrado a tripulação e feito desaparecer o navio. Convenceram, por isso, o governador de Útica a enviar emissários a Ícara a fim de inquirir sobre os factos. O tempo decorreu sem que os emissários enviados voltassem, até que um viajante númida de passagem por Útica assegurou ao governador tê-los visto conferenciar junto aos muros de Ícara cerca de cinco dias antes, o que veio a agravar consideravelmente a desconfiança dos romanos, uma vez que a missão deveria demorar, no máximo, três dias. Gallas obteve então do governador a tão ansiada autorização para partir com os seus doze mil homens em expedição punitiva a Ícara. As suas duas legiões seguiram pelo desfiladeiro de Harrar, para não serem localizadas, e na madrugada seguinte arrasaram a cidade cartaginesa, incendiando-a, saqueando-a, e massacrando a maior parte da população. Ao inspeccionarem os escombros da cidade em ruínas, Gallas e os seus companheiros de armas receberam uma notícia assombrosa trazida por um mensageiro. Os emissários romanos tinham efectivamente tentado regressar a Útica, mas sucumbiram, durante a viagem, a um assalto de ladrões nómadas. Se Gallas e as suas legiões tivessem seguido para Ícara pela estrada normal e não pelo desfiladeiro de Harrar, ter-se-iam cruzado com eles. Junto dos seus corpos, foi encontrada intacta a mensagem do arconte, chefe religioso e militar de Ícara, autorizando os romanos a efectuar o inquérito sobre o navio desaparecido. Desconcertados, os cinco oficiais regressaram a Útica, onde o governador, encolerizado, lhes ordenou que encontrassem a todo o custo os destroços do navio naufragado, o que de facto veio a acontecer no dia seguinte, a mais de três léguas do porto, em promontório inóspito para onde a embarcação fora 80 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade arrastada pela tempestade. Gallas, Flavius, Sulla, Marcus e Petrónio tiveram então que se render à evidência: eram responsáveis por um massacre de inocentes. Contudo, no momento em que as suas consciências mais pesavam, os cinco oficiais receberam com surpresa a notícia de que Roma os felicitava pelo seu erro militar, o qual não desagradara ao Senado, pois permitira a eliminação de uma cidade incómoda. Recebidos em triunfo, aceitaram as honrarias e riquezas com que foram distinguidos. Partindo da tragédia de Ícara, relatada trinta anos depois a Alix pelo próprio Gallas (MARTIN, 2010, p. 20-23), a história narrada em Garra Negra desenrola-se cerca do ano 50 a.C., iniciando-se na baía de Nápoles, nos arredores da cidade de Pompeia, onde os cinco antigos oficiais romanos de Útica possuíam agora luxuosas residências de vilegiatura. Juntamente com Enak, o jovem egípcio que o acompanha desde a sua segunda aventura, A Esfinge de Ouro (1951), Alix é hóspede de um desses antigos oficiais, Petrónio - primo do seu pai adoptivo Honorus Gala Graccus, falecido na primeira aventura, Alix, o Intrépido (1949) –, e assiste em Pompeia a uma sequência de crimes que se processa em poucos dias: todos os responsáveis pelo massacre de Ícara – exceptuando o seu chefe, Gallas, que morre afogado numa piscina – ficam subitamente paralisados por acção de um veneno desconhecido ministrado pela via das arranhaduras de uma arma africana em forma de garra. O herói logra descobrir que o instigador dos atentados é o mago Rafa, sacerdote de uma seita cartaginesa adoradora do deus Baal e possuidor de poderes ocultos. Rafa consegue, efectivamente, consumar a vingança de Ícara, mas recusa-se, por fanatismo, a ceder a Alix o antídoto que pode salvar uma criança inocentemente vítima da garra negra, o jovem Claudius, sobrinho e herdeiro do velho Gallas. Alix, que por inadvertência fora o culpado da paralisia e letargia de Claudius, ao haver deixado sobre as almofadas onde a criança dormia uma garra negra apreendida aos malfeitores (MARTIN, 2010, p. 24-25) – Jacques Martin haveria de 81 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 evocar muitas vezes esta cena ao longo da sua vida, orgulhando-se de ter sido pioneiro numa história de banda desenhada onde o herói comete um acto de negligência e reconhece o seu erro -, decide então fretar um navio romano tripulado por legionários a fim de perseguir Rafa, o qual, por sua vez, conseguira fugir de Pompeia num veleiro comercial, aproveitando a confusão gerada no porto por um incêndio provocado pelos seus cúmplices Sudra e Hasdrúbal. É a partir deste ponto que se levantam aquelas que nos parecem ser as questões essenciais a respeito da concepção da África e dos africanos na narrativa histórica de Jacques Martin. A primeira relaciona-se com o lugar onde Rafa se refugia: “Durante semanas, o navio do mago navega em direcção a sul; atravessa tempestades e bonanças, espera por vento sob um sol escaldante… Depois é de novo sacudido por ciclones e mares hostis… Mais de um mês depois, o barco chega finalmente ao seu destino: um antigo posto de comércio cartaginês. Um porto minúsculo, perdido na costa africana do Atlântico” (MARTIN, 2010, p.31). Qual a localização deste porto, onde o velho mago cartaginês é calorosamente acolhido por uma população heterogénea – na qual se misturam indivíduos de aspecto semítico, que se apresentam vestidos, ao lado de outros de pele escura e cabelo encarapinhado que com eles contrastam pelo facto de se exibirem quase nus - submetida à autoridade do arconte Niarcas, igualmente cartaginês? Atribuir-lhe verosimilhança histórica implica dar credibilidade à interpretação mais extensiva e benévola do Périplo de Hanão (ou de Hannon), narrativa da viagem realizada por um rei de Cartago, possivelmente na primeira metade do século V a.C., “para além das colunas de Hércules” (estreito de Gibraltar) com vista a “fundar cidades de Libifenícios” (nome pelo qual os gregos designavam os cartagineses: fenícios de África), ao longo da costa ocidental do continente africano (JABOUILLE, 1994, p. 9, 36-55, 77). 82 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade Escrito inicialmente em púnico, o Périplo chegou aos nossos dias numa tradução grega, que se supõe datar de finais do século IV a.C., do original que, segundo a tradição, teria sido depositado em Cartago, pelo próprio rei, no templo de Baal Hamon (ou Cronos, no sincretismo greco-fenício), a mesma divindade de cujo culto o mago Rafa é sacerdote. Havendo, porém, desaparecido o original, as versões gregas e latinas do Périplo de Hanão têm suscitado interpretações orientadas para três vertentes: 1) O Périplo é falso, não passando de uma efabulação grega posterior a Heródoto (485? - 420 a.C.) e concebida a partir dos conhecimentos transmitidos por este historiador (JABOUILLE, 1994, p. 21-25). 2) O Périplo é verídico mas, atendendo à precariedade das técnicas de navegação cartaginesas e à ausência total de vestígios arqueológicos a sul de Marrocos, a viagem que relata é curta. Embora logrando dobrar as Colunas de Hércules, a navegação atlântica de Hanão não teria ido além do Cabo Juby/Bojador, situado na latitude das Ilhas Canárias, pois se daí para sul os alísios e as correntes eram favoráveis aos barcos à vela (quadrada ou rectangular) utilizados pelos fenícios, o mesmo não acontecia na viagem de regresso, dificuldade só superada em 1435 pelo português Gil Eanes, quer pelo recurso à capacidade de bolinar da vela latina, quer por uma navegação dirigida para Oeste até 30º de latitude Norte (JABOUILLE, 1994, p. 25-35). 3) O Périplo relata uma viagem autêntica e de grande extensão, passando o Senegal e chegando a alcançar o Golfo da Guiné, sendo a ilha das Górgonas (ou das “Gorilas”), descrita no parágrafo 18, identificada com as ilhas de Fernando Pó e do Príncipe. Segundo os defensores desta tese, Hanão teria logrado defrontar os alísios e as correntes adversas durante a viagem de regresso graças ao facto de a frota, como aliás o parágrafo 1 do Périplo o refere, ser constituída por 83 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 birremes, navios onde os remadores se repartiam por dois andares, capazes de transportar grande número de passageiros e mantimentos. Argumentam também que o enigma da viagem de Hanão se deve à política de sigilo seguida pelos cartagineses quanto à fundação de feitorias na costa africana, de resto recuperada muitos séculos mais tarde pelos portugueses (JABOUILLE, 1994, p. 36-55). À luz desta última interpretação, a viagem de Rafa, a bordo de um navio cartaginês de vela rectangular onde não se avista qualquer remador, parece-nos plausível, uma vez que, como verificámos, da Itália até, presumimos, ao Golfo da Guiné, demorou pouco mais de um mês. Já temos dúvidas, contudo, é quanto à verosimilhança da viagem de Alix de regresso à Itália, efectuada a bordo de um veleiro romano que, sendo igualmente de vela rectangular, apresenta a particularidade de também não se divisar nele nenhum remador (MARTIN, 2010, p.58). Ainda assim, Jacques Martin parece aderir, em Garra Negra, à terceira interpretação do Périplo de Hanão, o que justifica a existência, ainda no século I a.C., de feitorias cartaginesas na costa ocidental da África, nomeadamente a dirigida pelo arconte Niarcas, que acolhe Rafa. O recorte da região representada no mapa rudimentar exibido por Niarcas a Rafa assemelha-se, precisamente, ao do Golfo da Guiné, podendo abranger, numa escala não muito rigorosa, o Cabo Lopez, ligeiramente a sul, no actual Gabão (MARTIN, 2010, p.32). Assim sendo, podemos considerar Niarcas e a população semítica por ele governada descendentes dos cerca de 30000 homens e mulheres que, segundo o parágrafo 1 do Périplo de Hanão, teriam navegado, no século V a.C., a bordo dos 60 navios com 50 remos que constituíram a frota do rei cartaginês (JABOUILLE, 1994, p. 17-18 e p.77). E qual a origem da população negra que, quase nua, recebe Rafa tripulando pequenas embarcações que se assemelham a dongos, canoas de mafumeira, a árvore da sumaúma (RIBAS, 1998, p. 87 e 84 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade p. 160)? A arqueologia data do século IV a.C., e mesmo de períodos mais antigos (como -1000/-900), os vestígios da indústria metalúrgica e da cerâmica nos Camarões, assim como dos séculos II e I a.C. (ou em -900/-800) no Gabão e do século II a.C. no Kongo/Zaire. Tais dados arqueológicos permitem-nos considerar bantu a população negra da pequena feitoria cartaginesa, assim como as dos povoados limítrofes que interferem no enredo de Garra Negra, sendo, portanto, descendentes da vaga migratória que, dominando a metalurgia do ferro, a domesticação de algumas plantas, as primeiras formas de criação de gado e o uso da cerâmica, teria em tempos – segundo uns nos anos 1000 a.C., segundo outros nos anos 3000 a.C. – avançado para oeste, atravessando a floresta tropical e seguindo as vias da água da bacia do Kongo/Zaire (M’BOKOLO, 2003, p. 68-75). Encontram-se, pois, sumariamente delineados, o enquadramento ficcional, geográfico e histórico desta narrativa de Jacques Martin. Resta saber como vai o autor trabalhar estes elementos, seja através das personagens, seja através dos espaços naturais. O homem africano na Antiguidade visto em meados do século XX: o tribalista, o guerreiro, o feiticeiro e o escravo resgatado A primeira armadilha do discurso colonial na qual Jacques Martin se deixa enredar é, desde logo, a da nudez dos africanos subsaharianos, manifesta inverosimilhança, tendo em conta que a domesticação das plantas e dos animais determinam, necessariamente, o conhecimento da tecelagem. Esta inexactidão histórica só pode ser entendida como uma reminiscência da classificação negativista da animalização/zoomorfização dos africanos, clássico processo de retórica de enselvajamento proveniente da Idade Média que, com o darwinismo social, daria lugar à puerilização/infantilização. A esse propósito, poderíamos acrescentar a indolência, uma vez que os africanos de Jacques Martin não trabalham. Embora assistamos, logo após o desembarque de Rafa, à cena onde o 85 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 arconte Niarcas incita a população do pequeno porto a regressar ao seu “trabalho” e às suas “ocupações” (MARTIN, 2010, p.32), não se mostra nunca, nem nesta nem em nenhuma outra passagem de Garra Negra, que “ocupações” são essas. Haverá, entre estes africanos, ferreiros, oleiros, tecelões e agricultores? Não o sabemos. Ao mostrar o mapa da região a Rafa, Niarcas estabelece a distinção entre os territórios que são habitadas por “tribos nossas amigas” (sic.) e aqueloutros que o são por “tribos inimigas” (MARTIN, 2010, p.32). O primeiro aspecto a registar é que os africanos vivem em “tribos”, termo que, nas línguas francesa e portuguesa era, nas décadas de 1950 e de 1960, sinónimo de “etnia”, noção redutora de nação respeitante a povos de determinadas raças - preferencialmente as “negras” - que por esse facto não eram considerados culturalmente “evoluídos” para se organizarem sob a forma de Estado-nação (AMSELLE, 1999, p.15 e p. 18-19). As “tribos”, por sua vez, são inimigas umas das outras, aliandose umas aos cartagineses e sendo-lhes outras hostis. Encontra-se, portanto, salvaguardado o argumento de retórica colonial do belicismo atávico das sociedades africanas, que, nos séculos XIX e XX, legitimou a política das campanhas militares de “pacificação dos indígenas”, evidenciando o homem branco como pacificador, apaziguador ou conciliador de cizânias ancestrais (ou “tribais”) e, consequentemente, como o único capaz de conferir uma ordem ao continente africano através da “acção civilizadora” do colonialismo. O belicismo atribuído aos africanos confundiu-se na linguagem do mundo ocidental, até às independências africanas iniciadas na década de 1960, com a impostura a que se chamou “tribalismo”, a qual subsistiu até aos dias de hoje, substituída pela expressão “etnicidade”, num tempo dito “moderno” ou “pós-colonial” (AMSELLE, 1999, p.39-42). Ao transferir o “tribalismo” para o século I a.C. e ao atribuir o papel de colonizadores civilizadores e pacificadores aos cartagineses, os verdadeiros “maus” de Garra Negra, Jacques Martin 86 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade – que declarou por diversas vezes ser esta a primeira história de Alix onde não existiam “maus” nem “bons”, mas enganava-se – procede, sem dúvida, a uma operação de transcendência, própria do romance histórico pós-modernista, estabelecendo paralelismos entre o tempo diegético e um tempo contemporâneo. Mas, em contrapartida, não consegue mitigá-la, como seria desejável para se livrar do discurso colonial, com a auto-reflexividade, pois não se assiste em Garra Negra a qualquer atitude epistemológica pela qual o narrador ou as personagens questionem o tempo passado (WESSELING, 1991). Sabemos apenas, por enquanto, que os africanos de Garra Negra não trabalham mas, em contrapartida, guerreiam-se, e as suas guerras são “tribais”. Mesmo sendo Rafa, conforme o declarou o próprio Jacques Martin, “uma espécie de guerrilheiro avant la le!re, um produto da opressão” (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p.110), não deixa por esse facto de se socorrer da argumentação utilizada nos séculos XIX e XX pelos franceses e pelos portugueses nas suas colónias ao dividirem os africanos em “inimigos”, os novos Maus Selvagens, e “amigos”, os novos Bons Selvagens, consoante fossem ou não refractários aos desígnios coloniais. A fim de dominar os africanos que se lhe submetem, Rafa chega mesmo ao ponto de utilizar, com êxito, um argumento introduzido no discurso colonial pelos europeus depois da abolição do tráfico de escravos e da escravatura e da sua substituição pelo indigenato com o fim de servir a exploração dos recursos naturais da África: o de se auto-isentarem de um passado esclavagista, atribuindo-o a outros seus congéneres colonialistas. Tal aconteceu, por exemplo, entre portugueses e franceses, como pudemos ver noutro lugar (PINTO, 2006). Daí que Rafa não hesite, pelo menos por três vezes, em dizer aos africanos que Alix e os romanos os querem reduzir à escravatura (MARTIN, 2010, p.39, p.47 e p.51), quando na realidade – e Jacques Martin mostra-o noutros trabalhos seus – a maioria dos escravos africanos de que os romanos 87 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 dispunham eram capturados no interior da Núbia ou nas costas atlânticas pelos fenícios ou pelos cartagineses e posteriormente por eles transaccionados em portos mediterrânicos, gregos ou latinos. A percepção do preconceito do “tribalismo” em Jacques Martin permite-nos uma análise mais nítida da primeira parte de Garra Negra, a decorrer, como o dissemos, em Pompeia. Embora Rafa seja um cartaginês e um conhecedor de ciências ocultas próximas do sobrenatural, dispondo nomeadamente do poder de hipnose, o veneno misterioso que paralisa os chefes romanos do massacre de Ícara não é da sua autoria e sim uma invenção… de “feiticeiros africanos”! Instalado em Pompeia, com a anuência dos romanos, na qualidade de sacerdote de um templo consagrado ao deus Baal, Rafa circula livremente na cidade acompanhado de três acólitos negros, que na realidade são escravos de Antonus Marcus, um dos ex-oficiais romanos do massacre de Ícara, revoltados contra o seu amo. Um deles, Núbio – nome assaz ambíguo, pois é mais alusivo à região homónima do vale do Nilo do que à costa atlântica do continente africano, de onde parece ser oriundo -, é o executor dos crimes da garra negra, introduzindo-se furtivamente, à noite, nas mansões dos cinco “carrascos” de Ícara. A sua indumentária, uma curta túnica verde e uma cógula da mesma cor que lhe cobre o rosto – a mesma com que se apresenta na capa de Garra Negra, ameaçando Alix, e que levou os esquerdistas franceses, em 1965, a identificar a personagem com os cagoulards pró-fascistas -, assim como a arma que empunha, um curto bastão com uma garra metálica na ponta, foram inspiradas a Jacques Martin por objectos similares expostos no Musée Royal de l’Afrique Central, em Tervueren, perto de Bruxelas. Teriam pertencido aos aniotas, os homens-leopardo, membros da associação política secreta anticolonialista que operou no Congo durante o século XIX e o início do século XX, os quais utilizavam tais garras nos seus ataques aos chefes africanos coniventes com os brancos (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p.111). Aniota ou anioto deriva do verbo kuana, que 88 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade significa em kikongo, precisamente, arranhar (MAIA, 1994, p. 51). Martin acrescenta, aliás, nas suas declarações a Groensteen, que uma personagem de Hergé, o feiticeiro Muganga, já envergara em 1930 a vestimenta dos aniotas, em Tintim no Congo (HERGÉ, 1996, p.30-32). Ele próprio, de resto, reutilizá-la-á no mesmo livro, Garra Negra, mas mais adiante e agora em pele natural de leopardo, ao desenhar o chefe/feiticeiro africano Aguro (MARTIN, 2010, p.43-44 e p.47-50). Para vingar Ícara, os cartagineses de Garra Negra servem-se, portanto, não apenas da zoomorfização, do “tribalismo” e do “belicismo” dos africanos, mas também do seu “animismo” ou da sua “filosofia primitiva”, que o olhar ocidental confunde com a diabolização das suas crenças e o carácter oculto das suas ciências, consideradas “magias” ou “feitiços” (MUDIMBE, 1988, p. 44-64). Eis a razão pela qual, sendo o veneno paralisante, aliás de origem vegetal, concebido por “feiticeiros” africanos, o seu antídoto só pode ser fornecido por outros “feiticeiros” igualmente africanos, mas pertencentes a “tribos” inimigas das dos primeiros. Não obstante, Jacques Martin consegue, em Garra Negra, estabelecer uma distinção, ainda que tímida, através de três personagens, entre o que antropologia designou por “magia branca” – a que tem por objectivo chamar os espíritos bons dos antepassados a fim de afastar os espíritos maléficos, quer pela cura de pessoas que foram vítimas desses espíritos, quer pelo exercício da arte divinatória – e a “magia negra”, que pretende subjugar os espíritos perversos com vista à prática do mal (PANNOF e PERRIN, s.d., p.113). A primeira das três personagens, a mais desenvolvida na narrativa mas também a mais ambígua, é o já aludido chefe/feiticeiro Aguro. O seu nome tanto pode ter sido inspirado a Jacques Martin pelo substantivo indiano guru, significando mestre espiritual, como pelo latino auguriu, que, significando presságio ou vaticínio, deu origem ao termo português agoiro. Ainda que a segunda hipótese seja a mais 89 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 aceitável, não é de excluir a primeira, tanto mais que o exotismo de Jacques Martin levou a que Aguro pronuncie, em dado passo, uma palavra que não é africana e sim indonésia, tabu, referindose à interdição que pesa sobre os seus homens de pisarem o solo amaldiçoado das montanhas Rukazori (MARTIN, 2010, p. 50). Embora o seu nome seja alusivo a eventuais conhecimentos da arte divinatória, Aguro aparenta ser essencialmente um “feiticeiro” maléfico, o que nas línguas bantu é designado por mulôji (ou mulôdi ou ndoki) por contraposição ao kimbanda ou ao nganga (RIBAS, 1998, p. 193-194). Dois elementos levam a esta presunção. O primeiro é o já referido uso da pele de leopardo como indumentária, evocativa dos aniotas, seita congolesa de feiticeiros maléficos que, na realidade, só viria a ser fundada cerca de 1900 anos depois do tempo de Alix, num contexto colonial franco-belga. O segundo é o facto de Aguro dispor de poder hipnótico, com o qual consegue defrontar Rafa (MARTIN, 2010, p. 50). A intervenção das duas outras personagens é muito mais passageira do que a de Aguro. Uma delas é um ancião que, acocorado à porta de uma cubata da aldeia de outra “tribo” aliada a Rafa e a Niarcas, consulta desenhos na areia e prediz aos chefes cartagineses o fracasso do ataque dos seus homens ao acampamento romano. Se Niarcas não hesita em chamar-lhe “feiticeiro idiota”, o mesmo não acontece com Rafa, que reconhece no estado derreado dos guerreiros que voltam da batalha a consumação do presságio vaticinado por este perito na arte da adivinhação, a umbanda (MARTIN, 2010, p. 39). A última personagem, um kimbanda ou curandeiro, nem chega a aparecer, sendo apenas mencionada. Trata-se do “feiticeiro” da “tribo” dos Umbassas, de quem Alix obtém o antídoto que curará o jovem Claudius (MARTIN, 2010, p. 58 e p.63-64). A propósito dos Umbassas – termo que não é de origem bantu e sim voltaica, uma vez que corresponde a um topónimo do actual Ghana -, importa agora caracterizar um dos seus membros, que se 90 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade evidencia como a personagem africana subsahariana mais relevante de Garra Negra. Referimo-nos a Sérvio que, tal como Núbio e os dois outros acólitos de Rafa, é um corpulento escravo doméstico do romano Antonus Marcus, em Pompeia. Mas, ao contrário deles, Sérvio alia-se a Alix e salva-lhe a vida, atirando pedras a Rafa e aos outros negros, num momento em que estes perseguem o herói (MARTIN, 2010, p. 17-18). Os motivos desta atitude de Sérvio são de ordem “tribalista”, conforme as suas declarações a Alix e a Petrónio: “Fi-lo porque a minha tribo e aquela de onde provêm os homens do mago Rafa se odeiam…” (MARTIN, 2010, p. 19). Depois da tragédia ocorrida em casa do procurador Gallas, da qual resulta a morte deste e o envenenamento paralisante do seu jovem sobrinho Claudius, Sérvio oferece-se para acompanhar Alix a África a fim de obter o antídoto do “feiticeiro” da sua “tribo”. Havendo deixado os legionários romanos aquartelados num promontório do litoral, Alix, Enak e Sérvio, perseguidos pelas “tribos” aliadas a Rafa, entre as quais a de Aguro, logram chegar à “tribo” dos Umbassas, da qual Sérvio é oriundo. É então, através da conversa com um ancião, Bwamé, a quem o outrora cativo dos fenícios vendido aos romanos não hesita em perguntar onde estão os seus pais, que ficamos a conhecer a verdadeira identidade de Sérvio (MARTIN, 2010, p. 52). Se entre os romanos é conhecido por este nome, Sérvio, decerto derivado do latim servu e por isso alusivo à sua condição de escravo, o seu nome de origem é Usumba, substantivo adjectivante que, nas línguas bantu, deriva do verbo sumba (comprar ou vender) (MAIA, 1994, p. 130, 540-541 e 642-643). Tal nos faz supor que o baptismo da personagem pelos seus com este nome obedeceu, durante a sua infância, a desígnios premonitórios, uma vez que Usumba significará, neste contexto, literalmente, O Resgatado ou O Alforriado. De facto Sérvio, mercê da sua aliança com Alix, parece reconquistar efectivamente a sua liberdade. Contudo, não o podemos incluir entre aqueles que o discurso colonial (e “pós-colonial”) designou por 91 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 “retribalizados” e sim na condição inversa, a dos “destribalizados” (AMSELLE, 1999, p.41). O mesmo Sérvio que percorre as páginas de Garra Negra descalço e quase nu, envergando apenas um saiote amarelo, vamos reencontrá-lo, na última vinheta do livro, confraternizando em Pompeia com patrícios romanos e, como eles, vestindo uma elegante toga e calçando cáligas (MARTIN, 2010, p. 64). Acresce que Sérvio, depois de Garra Negra, reaparecerá numa outra aventura de Alix que lhe é posterior em quase meio século, Roma, Roma… (2005), desta vez na qualidade de chefe dos carregadores da liteira da matrona Júlia Curtia, viúva do senador Caius Quintus Arenus, dos quais se distingue precisamente por não andar descalço e usar cáligas (MARTIN, 2005, p. 34-41). Assume, pois, a condição do que na Angola colonial se designou por “pretos calçados” ou kimbares (PARREIRA, 1990, p. 58-59), na maioria dos casos escravos forros que se tornavam chefes de caravanas comerciais ou pequenos agricultores, vivendo junto dos brancos. O espaço natural africano: a “tarzanização” de Alix ou Jacques Martin rendido aos mirabilia que vão de Hanão a Hergé A hipótese de a feitoria de Niarcas se situar na costa gabonesa permite-nos supor, dando alguma liberdade à imaginação, que a incursão de Alix e dos seus companheiros Enak e Sérvio pelo interior do continente africano atinge o território do actual Congo-Brazaville ou mesmo o do Congo-Kinshasa, os países sobre os quais Jacques Martin confessa haver obtido maior número de informações, através de um tio por afinidade, Pierre Dungelhoef, antigo chefe de distrito no Congo Belga (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 111). Mas o mais interessante a registar é que a narração das aventuras dos três amigos durante o seu percurso até à “tribo” dos Umbassas apresenta todos os ingredientes do que M’Bokolo designou por mirabilia, isto é, dos relatos fantasistas acerca dos mistérios do continente africano que, radicando 92 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade no Périplo de Hanão, teriam continuidade até ao século XX (M’BOKOLO, 2003, p. 48), abrangendo, ao lado de tantas outras obras da literatura e do cinema, a banda desenhada de Hergé em Tintim no Congo (PINTO, 2007). Os mirabilia, no fundo, mais não evidenciam do que o processo de retórica que Spurr teorizou como sendo a vigilância, a qual envolve tudo o que diz respeito à descrição, à dominação e à transformação, por parte do colonizador, da componente físico-geográfica do universo colonizado, nomeadamente o território, a fauna e a flora e até mesmo os homens como seres enselvajados e coisificados que fazem parte da paisagem (SPURR, 1993, p. 13-27). Sendo um europeu, o único capaz de controlar a natureza africana e conferir uma ordem ao que nela é adverso à vida humana, Alix assemelha-se, a partir deste ponto, a Próspero, a Robinson Crusoé, a Tarzan e a Tintim. Sérvio chega a fazer lembrar Sexta-Feira, Coco e mesmo Caliban. Quanto a Enak, na sua feminilidade – o próprio Jacques Martin reconhece que os tons de azul das roupas de Enak representam a noite, o mistério e a feminilidade (ROBERT, 1999, p. 15) -, desempenha em Garra Negra um papel muito próximo dos de Miranda, Jane e Milu. Além de que Enak é um egípcio, indivíduo que pode ser encarado somática e culturalmente como pertencendo a um estádio intermédio entre o europeu e o africano (DIOP, 1979, p. 49-286). Logo que o navio romano fundeia numa pequena enseada, Alix, Sérvio e um legionário fazem um reconhecimento em busca do curso de água mais próximo, embrenhando-se numa floresta densa e verdejante, o que faz supor que o litoral é de facto o do Golfo da Guiné e não o território sahélico a sul do rio Kongo/Zaire. O primeiro animal selvagem com o qual Alix se confronta é um gorila (MARTIN, 2010, p.34). Se o enorme símio que figura em Tintim no Congo, desenhado por Hergé em 1930 e redesenhado em 1946 (HERGÉ, 1996, p.16-18), deixava o leitor na dúvida sobre se o havia de integrar na espécie dos gorilas ou dos chimpanzés (PINTO, 2007), o grande quadrúmano concebido por Jacques Martin em 1958 pertence inequivocamente à 93 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 espécie de grandes macacos antropóides que, na primeira metade do século XIX, o médico e missionário norte-americano Thomas S. Savage identificou na Libéria como sendo o troglodytes gorilla (MARGARIDO, 2003). O próprio Savage terá, aliás, recuperado um termo cuja fórmula escrita só era até então conhecida no texto do parágrafo 18 do Périplo de Hanão e que provavelmente correspondia a uma deformação gráfica do substantivo grego Górgona (das ilhas Górgadas), no caso aplicado às “mulheres peludas” encontradas pelos cartagineses nas, presumivelmente, ilhas de Fernando Pó e do Príncipe, das quais três foram capturadas e as suas peles levadas para Cartago (JABOUILLE, 1994, p. 111). Também neste passo, Jacques Martin parece homenagear Hanão, uma vez que o gorila que Alix defronta é uma fêmea, enfurecida pelo facto de um rapazinho africano haver maltratado a sua cria. O monstro – e a visão teratológica dos quadrúmanos (MARGARIDO, 2003) está aqui bem presente – ameaça o jovem galo-romano, que não consegue evitar trespassá-lo com o seu gládio. Os homens da “tribo” a que pertence a criança salva da fúria do gorila mostram-se reconhecidos a Alix e a Sérvio e deixam-nos partir de volta ao navio, mas advertem-nos de que têm ordens superiores para os impedir de atravessar a floresta (MARTIN, 2010, p.35). Estes guerreiros, que se apresentam, à semelhança dos masäi e dos zulus, quase nus, armados de escudo e zagaia, envergando na cabeça toucados emplumados e evidenciando no corpo escarificações, braceletes e gargantilhas de marfim, constituem, portanto, a primeira “tribo” africana ao serviço de Rafa e dos cartagineses com a qual Alix se cruza. Não obstante os ouvirem dar o alerta a outras “tribos” através do toque dos proverbiais tam-tãs durante a noite (MARTIN, 2010, p.36) – também aqui se verifica o contra-senso antropológico de que enfermavam os filmes de Tarzan, uma vez que para a quase totalidade dos africanos a noite é o espaço dos espíritos e não dos homens (MARGARIDO, 2003) -, Alix, Enak e Sérvio têm a coragem de abandonar o acampamento romano furtivamente de madrugada e 94 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade iniciar de canoa a subida do rio mais próximo. Os três companheiros logram ludibriar os seus perseguidores africanos embrenhando-se no matagal espesso de uma das margens e Alix tem tempo de esmagar a cabeça de uma serpente ameaçadora com um golpe seco do remo (MARTIN, 2010, p.37-38). O terceiro monstro do continente africano que, depois do quadrúmano e do ofídio, ameaça Alix, é o crocodilo, animal com o qual, aliás, o herói já se confrontara, não na África e sim na Ásia Menor, na sua primeira aventura, Alix o Intrépido (MARTIN, 2010, p. 8-9). Embora a intervenção dos sáurios, semi-adormecidos na margem de um rio mas prontos a atacar a primeira presa, seja clássica, a reacção do herói de Jacques Martin é mais discreta e realista do que as das personagens de E. Rice Burroughs e de Hergé, uma vez que Alix não recorre ao punhal, como Tarzan, e muito menos, obviamente, à carabina, como Tintim. Surpreendidos por uma violenta catarata que lembra Ielala, Alix, Enak e Sérvio debatem-se com o torvelinho das águas depois de a canoa se virar. É nesse momento que aparecem três gigantescos crocodilos, um dos quais só não abocanha a perna direita de Alix devido a um golpe de sorte (MARTIN, 2010, p.40-41). Este incidente separa Alix e Sérvio de Enak, que é arrastado para a margem oposta do rio. O jovem egípcio é então capturado por uma outra “tribo inimiga”, desta vez a que é liderada por Aguro, o homemleopardo. E é precisamente para salvar Enak – aqui notoriamente na sua feminilidade de Miranda, Jane ou Milu -, prestes a ser vítima da zagaia de Aguro, que Alix se tarzaniza: saltando de uma árvore agarrado a uma liana, consegue içar de um só golpe o egípcio, ao mesmo tempo que Sérvio, impulsionado pelo mesmo processo tarzaniano, pontapeia violentamente o homem-leopardo (MARTIN, 2010, p.43-44). A perseguição prossegue fora da floresta, noutro espaço natural africano que a substitui, a savana (MARTIN, 2010, p.48). Neste ponto Sérvio, o Caliban da história, fraqueja e quase desiste da empresa, 95 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 a pretexto de uma insolação de que Alix fora vítima. Mas o herói convence-o a prosseguir e, ao anoitecer, os três companheiros apercebem-se de que os guerreiros de Rafa e de Aguro se encontram próximos, ao avistarem ao longe uma manada de girafas em fuga. A presença passageira destes ruminantes serve ao desenhador para reforçar a ideia de que as suas personagens se encontram na savana, à qual as girafas naturalmente pertencem. Mas não deixa de ser curioso notar que Alix as designa por girafas, termo árabe só muito mais tarde italianizado e banalizado, e não por camelopardalis, como efectivamente os romanos chamavam a estes animais, que acreditavam, ignorando as leis da genética, serem o produto do cruzamento da fêmea do camelo com o macho do leopardo. Alix, Enak e Sérvio são então quase encurralados pelos guerreiros de Aguro incitados por Rafa, mas conseguem escapar-lhes, afugentando-os graças a um estratagema de Alix que evoca outra clássica representação colonial, a da sua cobardia e pusilanimidade atribuída aos africanos: incendiando raízes, com o fogo das quais repelem os atacantes e logram alcançar mais uma floresta (MARTIN, 2010, p.49). Depois desta floresta, sempre perseguidos pelos guerreiros africanos, Alix, Enak e Sérvio atingem um outro espaço natural, a montanha, no sopé da qual os seus perseguidores, que a consideram amaldiçoada, se detêm. É então que Rafa tenta, pela última vez, ludibriar os africanos, procurando desmitificar a sua superstição. Não havendo conseguido subjugar pela hipnose o seu chefe, Aguro, igualmente feiticeiro, o velho cartaginês, pisando o solo da montanha, convence os guerreiros do homem-leopardo de que ela é inofensiva. Porém, poucos passos andados, os mesmos guerreiros fogem em debandada, apavorados com a visão que se lhes depara: um grupo de cadáveres petrificados pela lava de uma remota erupção vulcânica. Abandonado, Rafa tem que fugir, mais uma vez escorraçado pelas pedradas de Sérvio (MARTIN, 2010, p.50-52). 96 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade A localização desta montanha suscita, ao lado da feitoria de Niarcas, uma das questões mais enigmáticas que emergem em Garra Negra. O chefe/feiticeiro Aguro designa-a por montanha Rukazori (MARTIN, 2010, p.47), o que nos faz pensar nos Montes Ruwenzori, cordilheira da África Central situada na fronteira entre o Uganda e a República Democrática do Congo (o antigo Congo Belga), cujas maiores elevações atingem os 5109 metros. Jacques Martin parece, de resto, confirmálo, ao afirmar que a imagem dos homens petrificados corresponde a fotografias tiradas no antigo Congo Belga pelo seu tio Pierre Dungelhoef (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 111). No entanto, o autor de Alix declara igualmente ter perdido as ditas fotografias, irrecuperáveis num tempo em que Dungelhoef já havia falecido. Acresce que não se conhecem manifestações vulcânicas nos Montes Ruwenzori, pelo que a cordilheira que Alix e os seus companheiros transpõem até atingirem a aldeia natal de Sérvio corresponderá, com maior probabilidade, ao Suporte dos Deuses ou Trono dos Deuses, mencionado no parágrafo 16 do Périplo de Hanão e que, segundo a interpretação mais benévola da tradução grega do texto púnico, será o Monte Camarão, montanha com 4187 metros de altitude e único vulcão em actividade na costa ocidental africana (JABOUILLE, 1994, p. 107). Mas, do ponto de vista da estética narrativa, o aparecimento de homens petrificados pela lava de um vulcão no continente africano pode entender-se, quer como o desfecho harmonioso de uma história que se inicia em Pompeia e em cuja primeira página se mostra um Vesúvio aparentemente extinto (MARTIN, 2010, p.3), quer como um presságio insinuado da tragédia que em 79 d.C. viria efectivamente a desencadear-se no Golfo de Nápoles. Conclusão Garra Negra de Jacques Martin é, indubitavelmente, uma ficção onde a ideologia colonial franco-belga dos séculos XIX e XX acerca do continente africano se espelha, pela via metafórica, na Antiguidade greco-romano- 97 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 cartaginesa. Pelo facto de haver sido concebido em 1957, dois anos depois da Conferência de Bandoung e na esteira da conjuntura internacional saída da IIª Guerra Mundial, favorecedora das independências africanas e asiáticas, Garra Negra é um livro de banda desenhada que se encontra aparentemente desprovido e isento dos clássicos argumentos de retórica do discurso colonial que afectaram tantos outros autores, nomeadamente o grande mestre de Jacques Martin, Hergé, em Tintim no Congo (1930), conforme o mostrámos noutro lugar (PINTO, 2007). Contudo, além de a transformação das mentalidades ser sempre morosa e contingente, as aparências podem iludir, sobretudo quando um autor, sendo europeu, pretende debruçar-se sobre um continente que desconhece e que é proverbialmente tido por selvagem e exótico, a África. Pese embora a meticulosa preocupação de rigor científico que o caracterizou em todos os seus trabalhos, Jacques Martin não escapou em Garra Negra, sem que disso se tenha apercebido, às armadilhas do exotismo e do próprio discurso colonialista. Não hesitando em aderir à interpretação mais benévola mas também mais fantasista do Périplo de Hanão, conseguiu dar credibilidade à existência de feitorias cartaginesas na costa ocidental africana, em detrimento dos resultados da arqueologia. Mas, em contrapartida, não dispunha, nos anos de 1950, de conhecimentos que lhe permitissem, na caracterização do homem africano, ir além dos estereótipos do “tribalista”, do guerreiro, do feiticeiro e do escravo resgatado ou, se preferirmos, do “destribalizado”. Também na descrição dos grandes espaços e dos animais africanos, ainda que manifestando uma tímida e embrionária preocupação ecológica, Jacques Martin não deixou de sucumbir à milenar tentação dos mirabilia. As suas leituras enselvajadoras da geografia e dos homens africanos acabaram, mal grado seu, por se revelar muito próximas, quer das dos seus antecessores, como Hergé, quer mesmo, nos nossos dias, das dos seus discípulos e seguidores, como Gilles Chaillet ou André Juillard. 98 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade Referências Bibliografia Activa MARTIN, Jacques. Garra Negra, Trad. Paula Caetano, Prefácio de Carlos Pessoa. Porto: Edições Asa, 2010, 64 p. MARTIN, Jacques. La Griffe Noire2. Tournai: Casterman, 1965, 64 p. Bibliografia Passiva Obras de Hergé e de Jacques Martin citadas HERGÉ. Tintim no Congo3. Lisboa: Difusão Verbo, 1996, 62 p. HERGÉ. Tintin au Congo (1930), in Archives Hergé. Tournai: Casterman, 1978, p. 181-293. MARTIN, Jacques. Alix o Intrépido, Trad. Paula Caetano, Prefácio de Carlos Pessoa. Porto: Edições Asa, 2010, 64 p. MARTIN, Jacques. Alix l’Intrépide4. Tournai: Casterman, 1973, 64 p. MARTIN, Jacques. A Esfinge de Ouro, Trad. Ricardo Pereira, Prefácio de Carlos Pessoa. Porto: Edições Asa, 2010, 64 p. MARTIN, Jacques. Le Sphinx d’Or5. Tournai: Casterman, 1971, 64 p. MARTIN, Jacques. O Rio de Jade, Desenhos de Rafael Morales, Colaboração de Marc Henniquiau, Trad. Pedro Cleto. Porto: Edições Asa, 2004, 48 p. 2 Primeira publicação na revista Tintin (edição belga) entre 25 de Dezembro de 1957 (nº52, 12º ano) e 25 de Fevereiro de 1959 (nº8, 14º ano). Primeira edição em álbum em 1959 (Lombard). 3 Título original: Tintin au Congo. Primeira publicação no Petit Vingtiéme, suplemento juvenil do jornal católico de Bruxelas Le Vingtiéme Siécle, em 1930. Primeira edição em álbum em 1930 (Le Vingtiéme Siécle). Segunda edição revista em álbum em 1946 (Casterman). 4 Primeira publicação na revista Tintin (edição belga) entre 16 de Setembro de 1948 (nº38, 3º ano) e 17 de Novembro de 1949 (nº46, 4º ano). Primeira edição em álbum em 1956 (Lombard). 5 Primeira publicação na revista Tintin (edição belga) entre 1 de Dezembro de 1949 (nº48, 4º ano) e 31 de Janeiro de 1951 (nº5, 6º ano). Primeira edição em álbum em 1956 (Lombard). 99 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011 MARTIN, Jacques. Le Fleuve de Jade, Dessins de Rafael Morales, Participation de Marc Henniquiau. Tournai: Casterman, 2003, 48 p. MARTIN, Jacques. Roma, Roma…, Dessins de Rafael Morales, Participation aux personnages de Marc Henniquiau, Coloriages de Dina Kathelyn. Tournai: Casterman, 2005, 48 p. Estudos AMSELLE, Jean-Loup. Ethnies et espaces: pour une anthropologie topologique, in Jean-Loup Amselle e Elikia M’Bokolo (sous la dir. de), Au coeur de l’ethnie. Ethnies, tribalisme et État en Afrique. Paris: La Découverte, 1999, p.11-48. AMSELLE, Jean-Loup e M’BOKOLO, Elikia (Dir. de). Au coeur de l’ethnie. Ethnies, tribalisme et État en Afrique. Paris: La Découverte, 1999, 226 p. DIOP, Cheikh Anta. Nations Nègres et Cultures. Paris: Présence Africaine, 1979, 564 p. FERRO, Marc. Histoire des colonisations. Des conquêtes aux indépendences. XIIIe-XXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 1994, 595 p. GROENSTEEN, Thierry e MARTIN, Jacques. Avec Alix. Tournai: Casterman, 1987, 238 p. JABOUILLE, Victor (Estudo e Tradução de). Périplo de Hanão. Mem Martins: Editorial Inquérito, 1994, 111 p. MAIA, P. António da Silva. Dicionário Complementar Português-KimbunduKikongo. Luanda: Cooperação Portuguesa, 1994, 658 p. MARGARIDO, Alfredo. Tarzan: paradigma da branquização da África, in HENRIQUES, Isabel Castro (Coordenação e Prefácio de). Novas Relações com África: Que Perspectivas? Actas do III Congresso de Estudos Africanos do Mundo Ibérico. Lisboa, 11, 12 e 13 de Dezembro de 2001. Lisboa: Editora Vulgata, 2003, p. 105-121. MARTIN, Jacques, FUMEUX, Christophe e MILQUET, Jean-Marc. Alix. 60 ans de couvertures. Tournai: Casterman, 2008, 64 p. M’BOKOLO, Elikia. África Negra. História e Civilizações. Tomo I. Até ao Século XVIII, Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Editora Vulgata, 2003, 584 p. M’BOKOLO, Elikia. África Negra. História e Civilizações. Tomo II. Do século XIX aos nossos dias, Trad. Manuel Resende, Revisão Científica de Alfredo Margarido e Isabel Castro Henriques. Lisboa: Colibri, 2007, 626 p. 100 A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade MUDIMBE, V.Y. The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy, and the Order of Konwledge. London-Oxford: James Currey Ltd-Indiana University Press, 1988, 241 p. PANNOF, Michel e PERRIN, Michel. Dicionário de Etnologia, Trad. Carlos Veiga Ferreira. Lisboa: Edições 70, s.d. (Edição francesa de 1973), 195 p. PARREIRA, Adriano. Dicionário Glossográfico e Toponímico da Documentação sobre Angola. Séculos XV-XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1990, 248 p. PINTO, Alberto Oliveira. Um Capitão de Quinze Anos ou Angola na obra de Júlio Verne, in Via Atlântica. 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Amsterdam/Philadelphia: John Benjamin’s Publishing Company, 1991. 101 Ferreira Gullar - Sobrevoo, Rasante Artur de Vargas Giorgi1 Resumo: Este artigo pretende armar um contato com Ferreira Gullar por meio da leitura de dois poemas: “Uma fotografia aérea”, publicado no livro Dentro da noite veloz, em 1975, e “Poema sujo”, escrito em 1975, em Buenos Aires, e publicado em 1976. A proposta é desencadear alguns movimentos dissímeis dentro dos próprios poemas, assim como entre eles, movimentos esses que apresentam um cenário que se distancia tanto daquele formado pelo biografismo historicista quanto do assegurado pela autonomia estética. De outra maneira, é possível dizer que da aproximação de um poema com o outro resulta o próprio espaçamento, uma situação indecidível que aponta para a complexidade contemporânea. Palavras-chave: Ferreira Gullar, Contato, Singularidade. Abstract:This article aims a contact with Ferreira Gullar through the reading of two poems: “Uma fotografia aérea”, published in the book Dentro da noite veloz, in 1975, and “Poema sujo”, wri#en in 1975, in Buenos Aires, and published in 1976. The proposal is to unchain some dissimilar movements in the poems themselves and between them as well. These movements offer a scenery that gets some distance from the biography constructed by historical lectures and, in the same time, from the aesthetic autonomy. In other way, it is possible to say that the approximation of the poems results in the spacing itself, an undecided situation that points towards contemporary complexity. Keywords: Ferreira Gullar, Contact, Singularity. Bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (UNAERP-SP), licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Literatura (UFSC) e mestre em Literatura (UFSC/CNPq). Cursa o doutorado em Teoria Literária (UFSC) com pesquisa sobre Ferreira Gullar e León Ferrari. É bolsista do CNPq. Contato: [email protected] 1 103 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 Em 1971, clandestino em seu próprio país, após ter vivido as tensões do golpe militar de 1964, quando então era presidente do Centro Popular de Cultura (CPC), criado pela União Nacional dos Estudantes (UNE)2 em 1961, e depois de ter sido perseguido, desde 1968, quando foi assinado o Ato Institucional n° 5 e a repressão à esquerda tornou-se mais intensa, um homem de nome José Ribamar Ferreira, chamado Ferreira Gullar, partiu para o exílio – Moscou, Santiago, Lima, Buenos Aires – como tantos outros que se encontravam em semelhante situação, exílio este que, no seu caso, duraria até 1977. Dentro da noite veloz foi lançado em 1975. Trazia poemas escritos nos últimos treze anos, desde 1962, portanto. E é importante frisar: em 1975, Gullar estava em Buenos Aires, ameaçado não só pela ditadura brasileira mas também pela da Argentina, e lá, nesse mesmo ano, ele escrevia seu “Poema sujo”, publicado no Brasil em 1976, com o poeta ausente3. Em Traduzir-se: ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar (2004), publicado em 19824, tomando o período que se estende de A luta corporal (1954) a Na vertigem do dia (1980), João Luiz Lafetá realiza uma leitura que traça paralelos entre a realidade histórico-cultural e os posicionamentos, em relação a essa realidade, que ele encontra no trabalho do poeta. Mas, além disso, os paralelos que identifica desdobram-se, exatamente, no que ele salienta como uma característica 2 Sobre a relação de Ferreira Gullar com o CPC da UNE, conferir a entrevista concedida a Carla Siqueira, em 03 de novembro de 2004, disponível em arquivo no site Memória do Movimento Estudantil (www.mme.org.br/) através da página “Depoimentos”. 3 Antes da publicação, fitas com a voz de Gullar lendo o longo poema circularam no Rio de Janeiro. Estas fitas foram copiadas de uma primeira, trazida de Buenos Aires por Vinicius de Moraes (GULLAR, 1998). 4 No volume O nacional e o popular na cultura brasileira: artes plásticas e literatura (São Paulo, Brasiliense, p. 57-127). Valho-me aqui da edição organizada por Antonio Arnoni Prado, em 2004, A dimensão da noite e outros ensaios (São Paulo, Duas cidades, Ed. 34). 104 Ferreira Gullar marcante da poesia de Gullar: este não é apenas um “poeta-cronista”, comprometido com os acontecimentos do seu tempo; ao longo de sua produção, ele mantém principalmente um constante questionamento do “eu” – o que se vê, segundo Lafetá, em suas diferentes “fases”, em suas rupturas com os movimentos e por meio de soluções diversas, na tensão de uma exploração da subjetividade –, questionamento este que move / é movido pela necessidade de uma definição de identidades: pessoal, cultural, nacional5. 5 “Dos textos escritos durante a fase mais repressiva da ditadura, se não podemos dizer que eles reflitam as correntes literárias da época (mas essas foram tão pobres...), podemos entretanto dizer que eles, a seu modo, refletem a atmosfera brasileira daqueles anos. Lá estão representados o golpe de 1964, com seu cortejo de ilusões perdidas, a guerra do Vietnã, a guerrilha boliviana do Che, a sucessão de exílios. E sobretudo está ali o clima da vida intelectual de então, em poemas como ‘Agosto 1964’, ‘O prisioneiro’, ‘Exílio’, ‘Por você por mim’, ‘Dentro da noite veloz’, e ainda outros, que tematizam momentos de esperança ou desencanto, às vezes de raiva e amargura, mas sempre guardando a perspectiva do futuro. Essa linha ampla e complexa, que revela o poeta amadurecido buscando uma cada vez maior compreensão das coisas e dos fatos, terá prosseguimento no último livro, intitulado Na vertigem do dia (1980), que forma com os dois anteriores um conjunto bastante homogêneo, do ponto de vista temático-estilístico. “Esse paralelismo rudimentar basta para nos mostrar a ligação que existe entre a obra poética de Gullar e a história recente do país. No entanto, serve apenas para explicar seu aspecto mais superficial e para situar-nos diante da sucessão de estilos que ela apresenta; não nos leva à compreensão interna das várias passagens nem à motivação dessas. Porque Ferreira Gullar não é apenas (como um repórter) um poeta preocupado em perseguir os acontecimentos e em retratá-los. Se ele faz isso, se ele busca esta sintonia constante, é porque obedece a alguma necessidade profunda que certamente estará inscrita em seus poemas e que – descoberta – nos dará a chave para entendê-los melhor” (LAFETÁ, 2004, p. 122-123, grifos meus). João Luiz Lafetá segue em busca dessa chave que permita desvendar as necessidades do poeta e as motivações dos poemas, na trajetória ascendente de um Gullar que “amadurece”. E, encontrando, enfim, a “homogeneidade do conjunto”, agora do ponto de vista “interno”, afirma, sobre o “Poema sujo”, a respeito da síntese da relação antes tensa entre subjetividade e objetividade, relação que marca, segundo ele, a obra de Gullar: “E nesse caso creio que o processo se completa: a procura de si mesmo (que é o primeiro nível do texto) se dá dentro de uma realidade cultural (os hábitos de vida em São Luís do Maranhão) e acaba por nos oferecer a imagem de pelo menos uma parcela da sociedade brasileira. Ou seja: a identidade pessoal revela-se como uma identidade cultural, inserida dentro de uma mais ampla identidade nacional” (2004, p. 207, grifado no original). 105 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 Se seguirmos com o pensamento do crítico, poderíamos afirmar que a dureza dos anos da ditadura tem na poética de Gullar uma função “benéfica” (assim como o exílio, apesar de tudo, guardaria a sua parcela “positiva” para aqueles que sofrem a sua experiência, esta sempre, a priori, segundo essa dialética, “negativa” ou “traumática”6). Afinal, se “o peso da propaganda política mata a arte”, como afirma Lafetá (2004, p. 199) em relação às produções do CPC e dos poemas de cordel, após o golpe de 64 o poeta inicia uma nova etapa, dentro ainda de sua orientação “participante”, mas que se constitui como “um verdadeiro retorno à poesia” (2004, p. 199). Assim, “As composições dessa época, reunidas no volume Dentro da noite veloz”, continua ele, “têm como principal característica a procura de um equilíbrio entre a expressão dos sentimentos subjetivos e a comunicação da visão de mundo” (2004, p. 199)7. E mais adiante encontramos uma sentença em que esse equilíbrio – identificado por Lafetá em poemas como “Maio 1964” e “Agosto 1964” – parece ser atribuído, pelo próprio crítico, como na moral cristã, apenas por meio do pagamento de uma pena, espécie de redenção de uma “falta” cometida (a morte da arte pela política), o que consequentemente impossibilitará, daí para frente, a “ingenuidade” e o “otimismo excessivo” (2004, p. 206) que guiavam a panfletagem cepecista do poeta: “Penso que a diferença entre o engajamento pós-1964 e o anterior nasce, em boa parte, da própria experiência da derrota” (2004, p. 206). 6 Esta parece ser a inclinação de Edward Said: “While it perhaps seems peculiar to speak of the pleasures of exile, there are some positive things to be said for a few of its conditions. Seeing ‘the entire world as a foreign land’ makes possible originality of vision. Most people are principally aware of one culture, one se#ing, one home; exiles are aware of at least two, and this plurality of vision gives rise to an awareness of simultaneous dimensions, an awareness that – to borrow a phrase from music – is contrapuntal” (2000, p. 186). 7 Assim como no “Poema sujo” “parecem ter sido superadas as angústias de A luta corporal, a objetividade dos poemas concretos e neoconcretos, e o desvio populista do cordel: pelo mergulho na memória e na infância, o poeta consegue fazer emergir um quadro que é ao mesmo tempo seu (individual) e brasileiro (social), buscando uma linguagem que equilibre rigorosamente a liberdade individualista da expressão e a necessidade socializante da comunicação” (LAFETÁ, 2004, p. 121-122, grifos meus). 106 Ferreira Gullar No entanto, João Luiz Lafetá – assim como Aracy Amaral, num contexto mais amplo – apresenta um ponto sobre o qual é difícil discordar: a repressão da ditadura foi minando os esforços mais explícitos da esquerda intelectual e artística, que parece ter se voltado, cada vez mais, para outras “especulações” – não ligadas a partidos políticos, mas ainda potencialmente críticas e ligadas à polarização que frequentemente se estabelece entre arte e política8: Nesses anos, a poesia explicitamente política quase desapareceu, alijada pela repressão que se desencadeia sobre a luta armada e sobre toda a esquerda. Talvez por isso não seja possível situar Ferreira Gullar dentro de qualquer movimento mais amplo da época. Enquanto tudo acontecia, ele vivia no exílio, dentro ou fora do Brasil, a sua “noite veloz”. Nos primeiros tempos, antes do Ato 5, sua participação política se dá principalmente no teatro, no grupo Opinião, de forma muito ativa. E alguns poemas de resistência surgiram ainda nas páginas da Revista Civilização Brasileira, no contexto de oposição à ditadura, num espírito que mantinha sem dúvida pontos de contato com a canção de protesto. Mas como se pode ver hoje, tratava-se de afinidade apenas aparente: na verdade, o poeta começava a modificar outra vez sua técnica e sua concepção de poesia, abandonando o discurso simplificado e didático dos tempos do CPC, e adotando uma postura reflexiva, mais densa, nada propagandista, vazada numa linguagem em que o tom direto e coloquial coloria-se de emoção profunda e de participação afetiva, pessoal, nos acontecimentos políticos (2004, p. 120-121). 8 Escreve Aracy Amaral: “Impossibilitados de qualquer crítica aberta do sistema com a implantação do Ato Institucional n° 5, a censura e a autocensura se impõem nos meios artísticos. E à retração do artista plástico em termos de participação política em qualquer nível, mais do que em qualquer época, corresponderia, no âmbito do mercado, o surgimento de uma intensificação das atividades comerciais paralelas ao ilusório ‘milagre brasileiro’. [...] O dado político, na obra da maior parte dos artistas de inícios e meados dos anos 70, é quase nulo, embora a presença crítica, através da metáfora, seja evidente [em Antônio Henrique Amaral, Cildo Meirelles, Antônio Manuel, Humberto Espíndola etc.]. Não se trata, contudo, nestas duas últimas décadas, de um alinhamento, a partir de uma opção do artista, como ocorrera em fins de 40 e primeira metade da década de 50, em relação a um partido político, ou mesmo de uma atuação intensa (como a que ocorrera com elementos do teatro em inícios de 60), porém de ‘comentários’ do artista em relação a eventos de seu tempo” (2003, p. 336-337). 107 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 Em termos linearmente históricos – se quiséssemos sustentar essa correspondência – é como se, após a perda do entusiasmo com a modernização e o desenvolvimento, que foi acompanhado de perto pelas experiências concretas9, também se perdesse o entusiasmo com a preocupação social e a conscientização, que vinha acompanhado pela “arte popular” e a participação fortemente engajada. Afinal, veio o golpe, veio a ditadura, desiludindo essas expressões; mas é exatamente assim que a poesia de Gullar, segundo a leitura de Lafetá, consegue verdadeiramente “retornar”: pela “derrota”, equilibrando o engajamento, isto é, não pendendo de maneira alguma para o didatismo, a simplificação, a propaganda. De modo que a poesia assim seria – insisto – a própria síntese, superação da adversidade. Mas talvez seja possível ler as coisas de outro modo. Suspendendo a função “cronista” do poeta e a necessidade das demarcações identitárias. Suspendendo a obrigatória superação (pela síntese ou por uma escolha finalmente inequívoca) do dilema arte/política, pureza/participação. Como se outra resolução – irresoluta – pudesse ser dada apontando para outros percursos e outras marcas da cultura. Então aproveito essa impossibilidade, mencionada por Lafetá, de situar Ferreira Gullar dentro de um movimento mais amplo e proponho um sobrevoo e um rasante, breves, para tentar deslocar, ao menos um pouco, o poeta e dois dos seus poemas, entre risco de extermínio e possibilidade de existência. Sobrevoo Gullar inscreve em “Uma fotografia aérea”, poema em cinco momentos de Dentro da noite veloz, de 1975, a imagem de um avião 9 “Toda a teoria modernizadora que ele [o Concretismo] contém possui relações estreitas com o mundo racional da indústria, da produção em massa de objetos para o consumo; e a equivalência que ele estabelece entre o poema e a produção material de signos revela o desejo de enraizar-se numa realidade atual, presente à nossa volta” (LAFETÁ, 2004, p. 162). 108 Ferreira Gullar que “às três e dez de uma tarde / há trinta anos / fotografou” (2008, p. 213) São Luís do Maranhão. E com essa imagem, uma voz que ressoa em todo o poema da seguinte maneira: “Eu devo ter ouvido aquela tarde / um avião passar sobre a cidade”; “eu devo ter ouvido / aquela tarde”; “eu devo ter ouvido no meu quarto / um barulho cortar outros barulhos”; “devo ter ouvido / (sem ouvir) / o ronco do motor enquanto lia”; “eu devo ter ouvido esse avião” (GULLAR, 2008, p. 210-213)... Esse “eu”, que deveria ter ouvido o avião, há trinta anos, é agora um “eu” tateante, que parece querer se convencer do que (não) conservou daquele tempo, quando rente à cidade. O avião não o viu, não o veria; assim como ainda agora, enquanto seu rosto sobrevoa “sem barulho / essa fotografia aérea” (GULLAR, 2008, p. 213), ele mesmo não se vê. Pois desse lugar que é em ambos os casos o alto, vertical – primeiro o avião, depois o olhar sobre a imagem –, só se pode ver a heterogeneidade: do avião o olhar acompanha a superfície que passa, e sobre a terra o homem está presente em sua ausência: são os vestígios deixados na superfície que o denunciam. Nesse sentido, de dentro do avião não se poderia ver “o homem”; tal identidade escapa mesmo ao instrumento mais minucioso, que do alto capta apenas indícios, como escreve o piloto de guerra Saint-Exupéry em 1942: La terre est vide. Il n’est plus d’homme quand on observe de dix kilomètres de distance. Les démarches de l’homme ne se lisent plus à ce#e échelle. Nos appareils photo à long foyer nous servent ici de microscope. Il faut le microscope pour saisir, non l’homme – il échappe encore à cet instrument – mais les signes de sa présence, les routes, les canaux, les convois, les chalands. L’homme ensemence une lamelle de microscope. Je suis un savant glacial, et leur guerre n’est plus, pour moi, qu’une étude de laboratoire (1982, p. 297). De dentro do avião o olhar encontra a passagem do homem, isto é, o trânsito que é o próprio da sua essência (o inapropriável), sua 109 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 existência10; e assim não se vê “o homem”, que se põe (se expõe) atravessado, espaçado, abrindo a condição de “um homem”, singularmente, existir, condição de uma forma de vida ser colocada em jogo, possível em sua pluralidade11. Mas assim é a imagem do sobrevoo: potencializa um desfazimento dos ideais identitários enquanto, simultaneamente, está marcada pela guerra, que através de seus dispositivos mais precisos (clinicamente, poderia ser dito) busca reconstituir a ruptura para manter a guerra, isto é, busca o homem em sua identidade, inteiro em si mesmo, para ser incorporado na igualdade ou aniquilado na diferença. E a guerra, segundo Paul Virilio, “consiste menos em obter vitórias materiais (territoriais, econômicas...) do que em apropriar-se da imaterialidade dos campos de percepção” (1993, p. 15); de modo que é possível afirmar que a relação entre o imaginário da vista aérea e as formas contemporâneas de dominação se inicia ainda com os pés no chão, antes das guerras mundiais, e antes mesmo da aviação12. 10 Baseio-me em Jean-Luc Nancy, que retoma o pensamento a respeito do existir/ ek-sistir (a partir de Heidegger) em diversos trabalhos. Cito de Infinita finitud o seguinte trecho: “A esto se le llama existir. Existir transita la esencia (su ‘propria’): la atraviesa, la transporta fuera de sí (pero no habrá habido un ‘adentro’), y para empezar, y por ejemplo, deporta la esencia de su generalidad y de su idealidad hasta este estatuto barroco, paradojal, de ‘esencia singular’ (o de infima species) que Leibniz quería reconocerle a la individualidad (conversión o convulsión de un pensamiento de la esencia en pensamiento de la finitud). El singular como esencia es la esencia existida, ek-sistida, expulsada de la esencia misma, desenquistada de la esencialidad, y ello, una vez más, antes de que el quiste se haya formado” (NANCY, 2003a, p. 57). 11 Afirma Nancy em Cosmos basileus: “Existir no se hace solo, si es que puede decirse así. Es el ser el que está solo, al menos en todos los sentidos comunes que se pueden dar al ser. Pero la existencia no es otra cosa que el ser expuesto, es decir, sacado de su simple identidad consigo mismo y de su pura posición, expuesto al surgimiento, a la creación, por tanto, al afuera, a la exterioridad, a la multiplicidad, a la alteridad y a la alteración. (En un cierto sentido, seguramente, no es más que el ser expuesto al ser mismo, a su proprio ‘ser’, y también, en consecuencia, el ser expuesto en tanto que ser: la exposición como esencia del ser.)” (2003b, p. 147). 12 “Foi em 1861, observando o funcionamento da roda com pás que impulsionava o navio em que viajava, que o futuro coronel Gatling se inspirou para criar a 110 Ferreira Gullar “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”, afirmou Walter Benjamin em 1940, nas teses de Sobre o conceito de história (1994, p. 225). E é neste ponto indecidível que as experiências de Marey podem ser fundamentais para o entendimento da relação entre a pesquisa do movimento e a interpretação do momento13; assim como para o aprofundamento dessa relação entre guerra, vista aérea e formas de percepção da realidade, com o que me detenho nos comentários de Paul Virilio: Com a fixidez do front, a guerra de posição, a aviação de reconhecimento transforma-se em órgão de percepção do Alto Comando, a prótese privilegiada do estrategista caseiro do Estado-maior [sic]. É a aviação que ilumina a guerra e torna os locais visíveis [...]; mas estes olhos serão, antes de mais nada, os olhos das objetivas das primeiras câmeras de bordo. metralhadora com tambor cilíndrico movida a manivela. Em 1874, o francês Jules Jansen se inspirou no revólver com tambor (patenteado em 1832) para criar seu revólver astronômico, capaz de obter fotografias em série. Servindo-se dessa idéia, Jules Étienne Marey aperfeiçoou seu fuzil cronofotográfico, que permitia focalizar e fotografar um objeto que se desloca no espaço. “É graças às informações transmitidas pelo Entreprenant, o primeiro balão de observação a sobrevoar um campo de batalha, que o general Jourdan obtém a vitória de Fleurus em 1794. Em 1858, Nadar obtém suas primeiras fotografias aéreas, tiradas de dentro de um balão. Durante a guerra civil americana, as forças da União utilizam balões equipados com um telégrafo cartográfico aéreo. Logo os militares lançariam mão das mais variadas combinações: pipas equipadas com câmeras, pombos carregando pequenas máquinas fotográficas, balões com câmeras, precedendo assim ao uso intensivo da cronofotografia e do cinema em aviões de reconhecimento [...]. Em 1967 a Força Aérea americana utilizou vôos não pilotados para sobrevoar o Laos e transmitir informações aos centros da IBM instalados na Tailândia e no Vietnam do Sul. A partir de então, não mais existe a visão direta: em um espaço de 150 anos, o campo de tiro transformou-se em campo de filmagem, o campo de batalha tornou-se uma locação de cinema fora do alcance dos civis” (VIRILIO, 1993, p. 23-24). 13 “[1904] é o ano da morte de Etienne-Jules Marey, elo essencial entre a arma automática e a fotografia instantânea. [...] Marey foi o inventor do fuzil cronofotográfico, que não só precedeu à câmera dos irmãos Lumière como também descendia das armas com tambor e cano móvel, como o revólver Colt e a metralhadora Gatling, uma arma automática inventada no início da guerra de Secessão e que viria a encerrar sua carreira militar neste mesmo ano de 1904, na tomada de Port Arthur” (VIRILIO, 1993, p. 157-158). 111 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 A realidade da paisagem de guerra torna-se cinemática, pois a partir de então tudo muda, tudo se transforma, as referências desaparecem umas após as outras, tornando inúteis os mapas do Estado-Maior [sic] e os antigos relevos topográficos. Somente o obturador da objetiva pode conservar o filme dos acontecimentos, a forma momentânea da linha de frente, as sequências de sua progressiva desintegração. Novas localizações de combate, impactos de tiros de longo alcance, grau de destruição das posições: somente a fotografia instantânea pode compensar a potência das armas de uma destruição igualmente instantânea. O que para Marey representava o cuidado de isolar as fases sucessivas de um movimento ou de um gesto, torna-se aqui o cuidado de interpretar da melhor maneira possível as sequências de uma violação, de uma súbita dissolução da paisagem que não é captada em toda sua amplitude pelas sequências fotográficas. Ainda aí existe a conjunção entre a potência da máquina de guerra moderna, o avião, e as novas performances da máquina de observação, como a fotografia aérea e o fotograma cinematográfico. Mesmo se o filme militar é feito para ser visto em uma projeção que dissimula a análise das fases do movimento em questão – deixando assim sua utilidade prática às séries fotográficas –, a situação é inversa à desencadeada pelos trabalhos de um Muybridge ou de um Marey: não mais se trata de observar um cavalo ou um homem, ou seja, um corpo inteiro para estudar as deformações inerentes ao seu deslocamento, é necessário agora tentar reconstituir as linhas de ruptura das trincheiras, a infinita fragmentação de uma paisagem minada que é animada por incessantes virtualidades (1993, p. 161). Do alto não há só o possível distanciamento em relação à violência dos ideais humanistas em seu desdobramento contemporâneo – biopolítico – mas também o movimento de aproximação incisiva desta mesma violência que uma vez mais enxerga a suposta propriedade, a legitimidade dos ideais de humanidade, ser, verdade etc. O sobrevoo no poema é então recusa e risco. Se há a possibilidade de existência, indissociavelmente há a possibilidade de aniquilamento do próprio corpo e sua propriedade única que é na passagem14. Pois a pretensa 14 Em El vestígio del arte, Jean-Luc Nancy não se refere a “o homem”, mas ao ser como “el que pasa”: “Pasa, es en el pasaje: cosa que también se llama existir. Existir: el ser pasante del ser mismo” (2008, p. 132). 112 Ferreira Gullar totalidade que a fotografia aérea busca abarcar pode fazer sumir “o homem”, para deixar seus indícios de vida e existência, assim como pode guiar a morte que mergulha sobre o corpo singular. Poderia ser dito: encontrar na imagem o homem inteiro é minar uma vida possível, pois neste caso o que se faz visível é a rejeição da diferença e do limiar, pelo esforço de limitar, de demarcar as fronteiras entre um e outro. Para o poeta, de outra maneira, o sobrevoo indica o invisível no visível, ou ainda, não a reconstituição do (que nunca foi) inteiro e sua aparência, mas a inscrição de uma pungência ausente, de um espaço indomesticável, de modo que em “Uma fotografia aérea” cria-se acesso para um sentido que vai contra a postura militarista que decide a vida ou a morte15: [...] lá embaixo no escuro sonoro do capim dentro do verde quente do capim lá junto à noite da terra entre formigas (minha vida!) nos cabelos do ventre e morno do corpo por dentro na usina da vida em cada corpo em cada habitante dentro de cada coisa 15 No procedimento militar há a pretensão do fechamento, a tentativa de exaustão do campo visual e semântico: “Esta propriedade de tornar visível o invisível – experiência que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar um sentido ao que, a primeira vista, parece um caos de forma sem significação – ou a análise manual do filme [...] estão próximas ao procedimento militar de avaliar a paisagem inimiga a partir das destruições realizadas por elementos geralmente camuflados (trincheiras, acampamentos, bunkers) [...]” (VIRILIO, 1993, p. 47). 113 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 clamando em cada casa a cidade sob o calor da tarde quando o avião passou [...] em meu corpo a clamar (entre zunidos de serras entre gritos na rua entre latidos de cães no balcão da quitanda no açúcar já-noite das laranjas no sol fechado e podre àquela hora dos legumes que ficaram sem vender no sistema de cheiros e negócios do nosso Mercado Velho – o ronco do avião) [...] (GULLAR, 2008, p. 210-212). Tendo sido perseguido, exilado, detido, o poeta, através do “eu”, se situa no ponto que está próximo ao extermínio, mas ainda à margem, onde seu poema tem lugar enquanto gesto, esta aparição momentânea que talvez seja o sentido mesmo, a/à escuta do sentido (ressoa: “eu devo ter ouvido”16) que se abre não no “caos de forma 16 Em A la escucha, Jean-Luc Nancy aborda a questão da escuta como um pensamento filosófico radical, para além do signo da visão e do entendimento: “Lo sonoro [...] arrebata la forma. No la disuelve; más bien la ensancha, le da una amplitud, un espesor y una vibración o una ondulación a la que el dibujo nunca hace otra cosa que aproximarse. Lo visual persiste aun en su desvanecimiento, lo sonoro aparece y se desvanece aun en su permanência” (2007, p. 12). E ainda: “Si ‘entender’ es comprender el sentido (ya sea en sentido figurado o en el que denominamos sentido propio: oír una sirena, a un pájaro o un tambor ya es comprender en cada ocasión, por lo menos, el esbozo de una situación, de un contexto, si no de un texto), escuchar 114 Ferreira Gullar sem significação” que os procedimentos militares buscam evitar com a atribuição de um sentido próprio, mas na própria ausência do sentido, nessa ausência do sentido que mostra uma propriedade: o inapropriável como sentido. Um “eu” passa, e assim é: [...] Aqui está num papel a cidade que houve (e não me ouve) com suas águas e seus mangues aqui está (no papel) uma tarde que houve com suas ruas e casas uma tarde com seus espelhos e vozes (voadas na poeira) uma tarde que houve numa cidade aqui está no papel que (se quisermos) podemos rasgar (GULLAR, 2008, p. 215). Rasante “Uma fotografia aérea” e “Poema sujo” são dobras: sobrevoo e rasante. O que passou, em “Uma fotografia aérea”, e o que vem, no “Poema sujo”, são aparições de um mesmo momento, presente, mas potencialmente heterogêneo. Proliferam acontecimentos articulados entre o que já não existe (o que muda e passa no homem e na cidade) e o que ainda pode ser (a memória, a imaginação) – “Quantas tardes numa tarde!” (GULLAR, 2008, p. 244). es estar tendido hacia un sentido posible y, en consecuencia, no inmediatamente accesible” (2007, p. 18). 115 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 O que não se vê no sobrevoo, quando o rosto do poeta está sobre “Uma fotografia aérea” – tirada “às três e dez de uma tarde / há trinta anos” (GULLAR, 2008, p. 213) –, agora, lá embaixo, no “Poema sujo” – escrito “às quatro horas desta tarde / de 22 de maio de 1975 / trinta anos depois” (GULLAR, 2008, p. 251) –, pode ser experienciado por meio deste presente compartilhado pelos poemas, no qual surge a cidade de São Luís do Maranhão com o corpo que toca/é tocado por sua matéria pungente. No “Poema sujo”, o corpo cria ao rés-do-chão os caminhos, as palafitas, as frutas e as galinhas, os mercados e as praças, o trilho do trem e a fábrica, o capim e a hortelã, os cheiros, o sexo – os excessos do próprio corpo, com os quais ele mesmo é criado: [...] Meu corpo que deitado na cama vejo como um objeto no espaço que mede 1,70m e que sou eu: essa coisa deitada [...] meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio de tudo como um monturo de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias sambas e frevos azuis de Fra Angelico verdes de Cézanne matéria-sonho de Volpi [...] (GULLAR, 2008, p. 239/240). E agora, os pés na cidade, “entre jovens que se beijam e se esfregam / junto à cancela / no escuro / e quando o tesão é muito decidem casar” (GULLAR, 2008, p. 254-255); agora, “quando a gente acorda cedo e fica / deitado assuntando / o processo do amanhecer” (GULLAR, 2008, p. 256); agora lemos no “Poema sujo” uma alteração da visão, que deixa de ser aérea, mas aponta a seu modo, novamente, para a singularidade que escapa ao sobrevoo: 116 Ferreira Gullar [...] e o quintal da Rua das Cajazeiras? O tanque do Caga-Osso? a Fonte do Bispo? a quitanda de Newton Ferreira? Nada disso verá de tão alto aquele hipotético passageiro da Braniff [...] (GULLAR, 2008, p. 272). Para armar de outra maneira: é como se em “Uma fotografia aérea” estivéssemos diante do studium, diante da ausência de punctum, ou melhor, diante da presença dessa ausência (do seu assédio), a qual só pode ser sentida quando em contato com um “eu” que se deseja incluído nessa imagem aérea, um “eu” invisível como o restante das pungências possíveis para o seu corpo, mas impossíveis para a distância do sobrevoo; enquanto no “Poema sujo”, diferentemente, o punctum prolifera, disseminado na superfície da cidade17. Se o studium está “sempre codificado”, como diz Barthes (1984, p. 80), reduzido a uma forma de significação e controle, o punctum é um “suplemento”, cria ou permite adivinhar uma “espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (BARTHES, 1984, p. 89). (E, na violência da guerra, o que são as imagens de reconhecimento aéreo – e os voos da ESMA durante a “guerra antissubversiva”18 – senão formas de eliminar os pontos cegos, os extracampos por onde o corpo faz(-se) passagem). 17 “Me extravio / na Rua da Estrela, escorrego / no Beco do Precipício. / Me lavo no Ribeirão. / Mijo na Fonte do Bispo. / Na Rua do Sol me cego, / na Rua da Paz me revolto / na do Comércio me nego / mas na das Hortas floresço; / na dos Prazeres soluço / na da Palma me conheço / na do Alecrim me perfumo / na da Saúde adoeço / na do Desterro me encontro / na da Alegria me perco / Na Rua do Carmo berro / na Rua Direita erro / e na da Aurora adormeço” (GULLAR, 2008, p. 278). 18 Horacio Verbitsky, em El vuelo (1995), narra os diálogos que manteve com o excapitão de corveta da ESMA Francisco Scilingo, nos quais este confessou (o primeiro oficial da Escola de Mecânica da Armada a fazê-lo) os voos que foram realizados, de 1976 a 1983, para lançar ao mar, nus e anestesiados, prisioneiros da “guerra antissubversiva”. Esses aviões podem ter sobrevoado, bem perto, a cabeça de Gullar. Ele deve tê-los ouvido. 117 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 Em “Uma fotografia aérea” alguém pode rasgar a imagem como forma de poder esburacá-la, pontuá-la, como maneira de vazá-la para além da previsibilidade do código e seu poder. E no “Poema sujo” estão esses buracos alargados, a vertigem de uma imagem longa, deslocada, tocada de perto e toda pontuada de desbordamentos, de movimentos de vida e morte. Movimentos que podem ficar mais intensos se pensarmos que em A Câmara Clara o rigor conceitual de um artefato se mantém flexível e brincalhão, como afirma Derrida19. Refiro-me ao texto de 1981 traduzido como Las muertes de Roland Barthes. Nele, Derrida faz uma leitura de como os conceitos de studium e punctum se relacionam metonimicamente. Isto é, há um deslocamento entre eles, um assédio que se manifesta pela ausência mesma, de modo que não se trata de uma oposição irredutível, mas de um contato: “Porque, sobre todo y en primer lugar, esta aparente oposición (studium / punctum) no sólo evita la prohibición sino que, por el contrario, favorece cierta composición entre los dos conceptos. ¿Qué debemos entender por composición? Un par de cosas que se componen en conjunto. 1) Separados por un límite infranqueable, los dos conceptos establecen entre ellos compromisos, uno con otro se componen, reconoceremos ahí, de inmediato, una operación metonímica, sutil, del ‘fuera del campo’, que corresponde al punctum, que, en su calidad de exterior al campo se compone según el campo ‘siempre codificado’ del studium. Le pertenece sin pertenecerle, es ilocalizable, no se inscribe jamás en la objetividad homogénea de su espacio enmarcado, pero lo habita o más bien lo asedia: ‘Es un suplemento, es lo que añado a la foto y que no obstante ya estaba ahí’. Somos presa del poder fantasmático del suplemento, ese emplazamiento ilocalizable. Eso es precisamente lo que da lugar al espectro. ‘El Spectator somos nosotros, todos los que compulsamos las colecciones de fotos en los periódicos, en los libros, en los álbumes, en los archivos. Y aquel o aquella que es fotografiado es el blanco, la referencia, suerte de pequeño simulacro, de eidolon emitido por el objeto, que yo llamaría gustosamente el Spectrum de la Fotografía, porque esa palabra conserva, a través de su raíz, una relación con el ‘espectáculo’ y le añade esta cosa un tanto terrible que hay en toda fotografía: el retorno del muerto.’ Desde el momento en que cesa de oponerse al studium manteniéndose al mismo tiempo heterogéneo, desde el momento en que no puede siquiera distinguir entre dos lugares, dos contenidos o dos cosas, el punctum no se somete completamente al concepto, si entendemos por ello una determinación predicativa distinta y oponible. Ese concepto del fantasma es tan poco aprehensible, en persona, 19 118 Ferreira Gullar O “Poema sujo” é então o punctum, os punctums invisíveis que alguém vê em “Uma fotografia aérea” (não) se anunciando – precisamente – na forma dessa “cidade / geograficamente / desdobrada / em si mesma / e escondida”, tal como lemos no poema de Gullar (2008, p. como el fantasma de un concepto. Ni la vida ni la muerte, sino el asedio de uno por el otro. El versus de la oposición conceptual es tan inconsistente como el obturador fotográfico. ‘La Vida / la Muerte: el paradigma se reduce a un simple obturador, el que establece la separación entre la pose inicial y el papel final.’ Fantasmas: el concepto del otro en lo mismo, el punctum en el studium, la muerte completamente otra que vive en mí. Ese concepto de la fotografía, fotografía toda oposición conceptual, descubre en ella una relación de encantamiento que constituye quizá toda ‘lógica’” (DERRIDA, 1999, s/p). Apenas esse fragmento bastaria para expor a relação dos dois conceitos de Barthes com os poemas em questão. Mas Derrida ainda oferece um outro ponto: “Pienso en un segundo sentido de la composición. De esta manera 2) en la oposición fantasmática de dos conceptos, en la pareja S / P (studium/ punctum), la composición es también la música. Se abriría aquí un largo capítulo: Barthes músico. Podría colocarse, como una nota, este ejemplo analógico (para comenzar): entre los dos elementos heterogéneos S y P, puesto que la relación no es ya la exclusión simple, cuando el suplemento del punctum parasita el espacio asediado del studium, es posible decir entre paréntesis, discretamente, que el punctum viene a conferir su ritmo al studium, a escandirlo: ‘El segundo elemento viene a quebrar (o escandir) al studium. Esta vez no soy yo quien va a buscarlo (como he investido con mi consciencia soberana el campo del studium), es él quien parte de la escena, como una flecha, y viene a atravesarme. Una palabra existe en latín [...] punctum’. Cuando la escansión ha sido marcada, la música llega, al pie de la misma página, de otro lugar. La música es más precisamente la composición: analogía de la sonata clásica. [...] Barthes dará a entender [...] que no tratará el par de conceptos S y P como esencias venidas de un más allá del texto que está por escribirse y que autoriza cierta pertinencia filosófica general. No llevan la verdad sino al interior de una irreemplazable composición musical. Son motivos. Si se les quiere trasladar a otro lugar, y es posible, útil, necesario, es preciso proceder a una trasposición analógica, y la operación no tendrá éxito más que en la media en que otro opus, otro sistema de composición los arrastre consigo de manera también original e irreemplazable. Escribe acerca de esto: ‘Habiendo distinguido en la Fotografía dos temas (puesto que, en resumen, las fotos que amo estaban construidas a la manera de una sonata clásica) podía ocuparme sucesivamente de uno y del otro’” (1999, s/p). 119 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 210), como escutamos20. É o que irradia por um instante e escande o studium, o que “se mantiene como lo radicalmente otro que viene a duplicarlo [doubler], a ligarse a él, a componerse con él” (DERRIDA, 1999, s/p). Studium, punctum: “Uma fotografia aérea”, “Poema sujo”21. Barthes pergunta-se em A Câmara Clara: “O que meu corpo sabe da fotografia?” (1984, p. 20). E talvez a resposta esteja propriamente nessa expropriação, nesse deslocamento para o outro de si, na exposição. É sempre o excesso e o distúrbio da singularidade: ser plural. E por isso o torvelinho no tempo, esta dobra: o passado e o futuro, agora22; por isso esta distância que parece adivinhar as proximidades, no primeiro poema – o “eu” “em meu corpo / a clamar”, “como eu / passava à margem do Bacanga / em São Luís do Maranhão / no norte / do Brasil / sob as nuvens” (GULLAR, 2008, 211/212) –, e as proximidades mais imediatas que, entretanto, parecem se distanciar, no segundo23: 20 No “Poema sujo”: “A noite nos faz crer / (dada a pouca luz) / que o tempo é um troço / auditivo” (2008, p. 256). 21 “Si es algo más y algo menos que él mismo, disimétrico –respecto de todo y en sí mismo–, el punctum puede invadir el campo de studium al cual sin embargo, hablando rigurosamente, no pertenece. Es preciso recordar que está fuera tanto del campo como del código. Lugar de la singularidad irreemplazable y del referencial único, el punctum irradia y, esto es lo más sorprendente, se presta a la metonimia. Así, cuando se deja arrastrar hacia esos relevos sustitutivos, lo puede invadir todo: objetos y afectos. Eso singular que no se encuentra en parte alguna dentro del campo, moviliza todo y por todas partes, se pluraliza” (DERRIDA, 1999, s/p). 22 A experiência de Barthes: “Sei agora que existe um outro punctum (um outro ‘estigma’) que não o ‘detalhe’. Esse novo punctum, que não é mais de forma, mas de intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (‘isso-foi’), sua representação pura. [...] Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. O que me punge é a descoberta dessa equivalência. [...]. Esse punctum, mais ou menos apagado sob a abundância e a disparidade das fotos de atualidade, pode ser lido abertamente na fotografia histórica: nela há sempre um esmagamento do Tempo: isso está morto e isso vai morrer” (1984, p. 141-142). 23 Interessante pensar em como se dá o contato para Nancy. No epílogo de Noli me tangere. Ensayo sobre el levantamiento del cuerpo, texto em que o filósofo realiza uma 120 Ferreira Gullar Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama, ou dentro de um ônibus ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico acima do arco-íris perfeitamente fora do rigor cronológico sonhando Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do jantar, voais comigo sobre continentes e mares E também rastejais comigo pelos túneis das noites clandestinas [...] (GULLAR, 2008, 235). análise não religiosa do cristianismo, ou ainda, uma desconstrução do cristianismo por meio do próprio cristianismo, sua “auto-desconstrução”, valendo-se do episódio do evangelho de João, há um pensamento que pode ser fundamental para esse entendimento: “Es esencial a la pintura no ser tocada. Es esencial a la imagen en general no ser tocada. Es su diferencia com la escultura; o, al menos, ésta puede ofrecerse alternativamente al ojo y a la mano, así como al caminar que da vueltas a su alrededor, aproximándose hasta tocar y alejándose para ver. Pero ¿qué es la vista sino, sin duda, un tocar diferido? Pero ¿qué es un tocar diferido sino un tocar que aguza o que destila sin reserva, hasta un exceso necesario, el punto, la punta y el instante por el que el toque se separa de lo que toca en el momento mismo en que lo toca? Sin esa separación, sin ese retroceso o esa retirada, el toque no sería ya lo que es y no haría ya lo que hace (o bien no se dejaría hacer lo que se deja hacer). Comenzaría a cosificarse en una aprehensión, en una adhesión, una unión, incluso en una aglutinación que lo agarraría en la cosa y a la cosa en él, emparejándolos y apropiándolos uno al otro, y después al uno en el otro. Habría identificación, fijación, propiedad, inmovilidad. ‘No me retengas’ equivale también a decir: ‘Tócame con un toque verdadero, retirado, no apropiador, y no identificante’. Acaríciame, no me toques” (2006a, p. 79-80). 121 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 Assim segue o combate entre as imagens, os corpos, os poemas24. E, no “Poema sujo”, há um “eu” que avança: [...] meu corpo nascido numa porta-e-janela na Rua dos Prazeres ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo sob as balas do 24° BC na revolução de 30 e que desde então segue pulsando como um relógio num tic tac que não se ouve (senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração) tic tac tic tac enquanto vou entre automóveis e ônibus 24 Ainda Nancy, em Guerra, derecho, soberanía – Tejne, publicado em Les Temps Modernes, em junho de 1991, e depois recolhido em Ser singular plural, de 1996, elabora um pensamento que, aqui, dialoga com Paul Virilio, com a guerra presente no imaginário, além de servir de contrapondo ao entendimento das imagens pelo viés do “espetáculo” situacionista: “En fin, tampoco se olvidará el gusto tan claramente extendido, durante la preparación y la primera fase de la guerra, por el espectáculo de la belleza épica y de la virtud heroica. Después de todo, estas imágenes no diferirían de todas aquellas con las que se hacen las películas de guerra. No puedo, sin embargo, unirme a los críticos de la ‘sociedad del espectáculo’, que no han dejado de calificar esta guerra de ‘espectacular’ (negación simétrica a la que obraría el discurso del derecho). Porque las imágenes de guerra forman parte de la guerra –y quizá la guerra misma sea como una película, más bien que lo de que una película imite la guerra. Ante el horror y la piedad, por los que es preciso terminar, no habría guerra sin un ímpetu guerrero del imaginario. Su espectáculo está inextricablemente mezclado con la exigencia mecánica, a veces entorpecida, que hace avanzar al soldado. A los psicólogos del ejército norteamericano les ha encantado explicar (por televisión) que los boys no marchaban por una causa, el derecho o la democracia, sino solamente para no mostrar flaqueza ante sus compañeros. Los resortes del honor y de la gloria pertenecen ya por sí mismos al orden del ‘espectáculo’, y no se los puede desmontar mediante la simple denuncia de una edad moderna de la simulación generalizada y comercializada” (2006b, p. 128-129). E a isso é possível acrescentar: se a guerra é como um filme, isto é, uma imagem com (com/contra) a outra, movida pelo imaginário, facilmente a guerra toca a própria história da arte, por meio das palavras de Carl Einstein, logo no início dos seus Aforismos metódicos, de 1929 (muito antes, portanto, de Nancy ou Virilio): “La historia del arte es la lucha de todas las experiencias visuales, los espacios inventados y las figuraciones” (2009, p. 39). 122 Ferreira Gullar entre vitrinas de roupas nas livrarias nos bares tic tac tic tac pulsando há 45 anos esse coração oculto pulsando no meio da noite, da neve, da chuva debaixo da capa, do paletó, da camisa debaixo da pele, da carne, combatente clandestino aliado da classe operária meu coração de menino [...] (GULLAR, 2008, p. 240-241). Neste caso, contudo, aquele que avança não o faz para mostrarse forte e inteiro e aniquilar a diferença; aquele que avança o faz, ao contrário, movido por um desejo imprevisto e singular – não comum – que pode criar em meio à destruição, em meio ao próprio risco de apagamento. Ele avança, acredito, para viver a diferença, como diferença: [...] busca de cobre e alumínio pelos terrenos baldios economia de guerra? pra mim torresmo e cinema [...] (GULLAR, 2008, p. 242). Enfim, entre “Uma fotografia aérea” e o “Poema sujo” – e entre risco de extermínio e possibilidade de existência – algo é feito visível, é animado para identificar-se, sim, mas com o não-idêntico da identidade, com o desfazimento da identidade (pessoal, cultural, nacional): um espaço de ausência cavado no tempo em que a completude mesma do sujeito se ausenta, se retira (e quem sabe se apresenta como memória, isto é, como diferimento, imaginação, esquecimento), e de modo que ficam suspensas as responsabilidades e correspondências com o 123 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011 que é mais imediatamente dado a ver, com o que é comunicado no presente, pois há visões, presentes. Esta a condição de uma “identidade própria”, para onde uma “identidade própria” se desloca: sendo a sua propriedade, absolutamente, ser neste deslocamento inapropriável. Entre os poemas e com eles algo é feito visível ou ressoa para identificarse com o que se abisma em linguagem e escapa à igualdade, à síntese: [...] a cidade está no homem quase como a árvore voa no pássaro que a deixa cada coisa está em outra de sua própria maneira e de maneira distinta de como está em si mesma a cidade não está no homem do mesmo modo que em suas quitandas praças e ruas (GULLAR, 2008, p. 290-291). Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. AMARAL, Aracy A. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira 19301970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 3 ed. São Paulo: Studio Nobel, 2003. BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: _________. 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Apesar da grande diferença temporal, os dois períodos assemelham-se, conforme apresentado no filme, na manutenção da impunidade e da violência, nas diferenças sociais e econômicas. É possível verificar, após a análise de algumas cenas do filme, alguns pontos pertinentes à discussão sobre a raça negra, ao preconceito com o lugar que a mulher ocupa no mercado de trabalho e, sobretudo, aos problemas que surgem na ausência de ações afirmativas e políticas públicas. Palavras-chave: Ações afirmativas; Quanto vale ou é por quilo; raça. Resumen: Este artículo trata de identificar problemas relacionados con la raza, el género y las acciones afirmativas que pueden encontrarse en la película Quanto vale ou é por quilo, lanzado en 2005, del director Sergio Bianchi. En esta película, se ve un paralelo entre dos épocas bien diferenciadas: el siglo XVIII, la época de la esclavitud, y el presente, siglo XXI. A pesar de la gran diferencia temporal, los dos períodos son similares, tal como se muestra en la película, en el mantenimiento de la impunidad y de la violencia, en las diferencias sociales y económicas. Es posible verificar, después del análisis de algunas escenas de la película, algunos de los puntos Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura. [email protected] 127 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011 relevantes para la discusión acerca de la raza negra, de los prejuicios contra el lugar que las mujeres ocupan en el mercado de trabajo y, especialmente, de los problemas que surgen en la ausencia de medidas de acción afirmativa y políticas públicas. Palabras claves: Acciones afirmativas, Quanto vale ou é por quilo; raza. Falar sobre a intersecção raça/gênero e sobre ações afirmativas não é algo tão simples e tranquilo, até porque cada qual apresenta suas complexidades. O próprio conceito de raça e de gênero sofreu diversas alterações ao longo do tempo, e continua em discussão, pois já é sabido que não são conceitos estáticos, mas sim que são construções sociais. Por exemplo, em se tratando da discussão a respeito de raça, podemos considerar os apontamentos de Kabengele Munanga que assevera que “[...] o conceito de raça, tal como empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação” (MUNANGA, 2003, p. 6). E na mesma direção de Munanga, reconhecemos, segundo José de Sousa Miguel Lopes, que o racismo também é uma ideologia e “como toda ideologia se materializa em práticas sociais. A constatação, por mais importante que seja, de que não existem raças, não é suficiente para eliminar o preconceito e as consequências nefastas ocasionadas por ele” (LOPES, 2009. p. 179). Logo, o conflito que rodeia essa questão de raça e racismo está fundamentado em questões sociais, culturais, políticas e econômicas, todavia, “não é um problema para ser resolvido somente pelos negros, mas é um problema global, além de ser uma questão histórica de toda a sociedade” (LOPES, 2009, p. 182). Da mesma maneira, a conceituação de gênero, conforme nos afirma Joan Sco#, é culturalmente construída: “O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14). O que 128 Quanto vale ou é por quilo? já de antemão podemos perceber é que tanto o conceito de raça e racismo, como o de gênero são construídos socialmente e que estão impregnados de relações de poder. A problemática onde isso tudo irá desembocar é a questão de (des)igualdade de raça e de gênero. Pensando agora exclusivamente no Brasil, onde existiu, e ainda persiste, um falso mito de democracia racial, no qual o preconceito racial é velado, silencioso – mas bastante cruel, como qualquer tipo de preconceito –, a discussão sobre a problemática da desigualdade de raça e gênero é muito complicada, já que, muitas vezes, ela é negada, ou ainda atenuada com argumentações que buscam mostrar que, aqui, os problemas em geral ficam na esfera das classes sociais – o que seria equivalente a dizer que, por exemplo, uma mulher negra pobre apresenta maiores problemas que uma mulher branca rica, não por conta do gênero e da raça, mas sim pela condição socioeconômica em que se encontra. Isso, é claro, não é uma total inverdade; contudo, não exclui as outras duas condições (gênero e raça) do “balaio”, mas acrescenta-se ao mesmo. Quando identificamos que só a aceitação da existência dessas desigualdades já é algo polêmico, não fica difícil perceber que a implementação de ações que procurem, ao menos, diminuir essas disparidades é também um assunto bastante controverso. Falamos aqui da questão das ações afirmativas que, conforme Lopes: definem-se como políticas voltadas para a concretização do princípio constitucional da igualdade material e para a neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Assim, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. (LOPES, 2009, p. 185) Dentre essas ações afirmativas, podemos destacar, por exemplo, a questão das cotas para afrodescendentes, que é uma medida que ainda suscita muitas divergências. Todavia, é fato que ações precisam 129 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011 ser tomadas com o intuito de lutar contra as desigualdades existentes no âmbito de raça e gênero – aliás, desigualdades estas notórias, apesar do discurso contrário de alguns. Para pensarmos um pouco mais a respeito deste emaranhado de assuntos levantados (raça, racismo, gênero, ações afirmativas etc.), buscamos, no cinema brasileiro, uma retratação da realidade vivenciada no Brasil, em especial sobre as questões pertinentes à raça negra e às ações afirmativas, ou melhor, no caso deste filme, os problemas que surgem na ausência de ações afirmativas e políticas públicas eficazes. O filme aqui escolhido é Quanto vale ou é por quilo, lançado em 2005, do diretor Sérgio Bianchi. Trata-se de uma livre adaptação do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis (1903) – que retrata o período da escravidão no Brasil. No conto desse renomado autor brasileiro, há uma escrava grávida – Arminda – que foge de seu “senhor”. Cândido Neves, que está passando por uma crise financeira e por isso talvez tenha que deixar seu filho recém-nascido na “roda dos enjeitados”, vai atuar como caçador de escravos foragidos na tentativa de levantar fundos e ter condições de, assim, criar seu filho. Ele vai, então, à caça de Arminda, a captura e a leva de volta ao seu “senhor/dono”. A escrava implora pela compaixão de Cândido, para que a deixe ir, porém, mesmo após os inúmeros apelos da moça, ele a leva de volta para a casa de onde ela fugira. No desespero de tentar escapar, Arminda acaba abortando na frente do seu “dono” e do seu “caçador”. Após receber pela captura da escrava, Cândido volta pra casa com seu filho, com o pensamento de que “nem todas as crianças vingam” (ASSIS, 1997). No filme de Bianchi, além da representação desta cena do conto, há também, no decorrer do enredo, cenas baseadas nas crônicas de Nireu Cavalcanti sobre a escravidão, extraídas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. 2 CAVALCANTI, Nireu. Crônicas históricas do Rio colonial, 2004. 130 Quanto vale ou é por quilo? O filme Quanto vale ou é por quilo vai projetar um paralelo entre duas épocas distintas: o século XVIII, momento da escravidão – retratado no conto de Machado de Assis – e o presente, século XXI. Apesar da grande diferença temporal, os dois períodos assemelhamse, conforme apresentado no filme, na manutenção da impunidade e da violência, nas diferenças sociais e econômicas. Enquanto no século XVIII havia a exploração da escravidão com todas as crueldades possíveis e com os “capitães do mato”, que caçavam os escravos foragidos para vendê-los aos senhores da terra, visando ao lucro – ainda que imoral –; hoje, como mostrado no filme, o chamado Terceiro Setor, as ONGs, aparecem também, em alguns casos, explorando a miséria com atividades assistencialistas. Essa superposição das duas épocas retratadas permite a visualização e o confronto das situações representadas. O filme inicia com uma cena do período da escravidão, onde uma escrava alforriada reclama o roubo de um dos seus escravos por um senhor branco, de posses. Apesar de ter como provar que o escravo entregue na casa do senhor pertence a ela, a ex-escrava é condenada por ofensas morais e raciais. Após isso, há uma sequência de cenas que reportam ora ao presente, ora ao período da escravidão. O interessante é que, em alguns casos, os mesmos autores aparecem atuando em ambos os momentos, com papéis diferentes, mas com uma certa relação de contiguidade – mais uma forma de fazer uma analogia entre os dois períodos. Por exemplo: em cenas representando o século XVIII, há uma personagem que é escrava e que, em muitos momentos, aparece sofrendo as torturas que eram comuns no período da escravidão, como o tronco, a máscara de folha-de-flandres etc. A mesma atriz também atua na cena, anteriormente citada, do conto de Machado de Assis, na qual ela é a escrava fugitiva grávida que acaba abortando ao ser capturada. Já na representação do tempo presente, a mesma atriz encena a personagem chamada Arminda (mesmo nome 131 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011 da personagem do conto de Machado de Assis) que é uma mulher negra, pobre, moradora de uma favela carioca, engajada na busca de melhorias para um projeto de informática para a sua comunidade. Outra personagem retratada nos dois momentos é o Cândido Neves, ou Candinho: na cena do filme que reproduz o conto “Pai contra Mãe”, ele é o caçador de escravo refugiado e, nas cenas do século XXI, ele aparece como um rapaz pobre, desempregado, com um filho recém-nascido e sem condições financeiras para criá-lo e dar tudo aquilo que sua esposa sonha em ter. Na tentativa de melhorar de vida, Candinho torna-se matador de aluguel. Há outras cenas, no filme, que também retomam os dois momentos, com os mesmos autores, como no caso da personagem Maria do Rosário que, no século XVIII, é uma senhora branca que, dispondo de alguma posse, compra escravos para poder revendê-los depois, sempre almejando seu lucro. Já no período atual, a mesma atriz encabeça uma ONG, mostrando-se uma pessoa que só pensa no bem dos outros, mas que, na realidade, se beneficia do “bem” que presta aos que precisam. Esse artifício de usar os mesmos autores representando personagens diferentes – mas que apresentam algum aspecto relacional entre si – em períodos de tempo bastante distantes, só vem reforçar a tentativa do diretor de Quanto vale ou é por quilo de mostrar que há muitas semelhanças – cruéis semelhanças – entre o período da escravidão e o século XXI. E que por mais mascaradas que elas possam estar, às vezes “atuando na forma de outra personagem”, a impunidade, a violência, a discriminação, as diferenças socioeconômicas do presente são similares as do século XVIII. O filme de Bianchi traz uma grande crítica ao abuso do poder, onde o que fala mais alto é o lucro, seja ele conquistado na exploração dos escravos, como no século XVIII, seja por meio de projetos ditos sociais, mas que, na verdade, objetivam vantagens e benefícios com a exploração da miséria alheia. Como nos aponta Lucas, o Terceiro Setor envolve 132 Quanto vale ou é por quilo? [...] uma gama imensa de ações voluntárias, instituições filantrópicas destinadas à prestação dos mais diversos serviços sociais, ONGs com projetos de intervenção sistemática e organizações de defesa de direitos de grupos sociais específicos. Pode-se dizer que engloba ações desde o assistencialismo mais paternalista e conservador até organizações com intervenções bastante estruturadas no seio da sociedade orientadas por concepções mais amplas de cidadania. (LUCAS, 2007) As ONGs surgem para suprir os “buracos” deixados pelo Estado na realização (ou na falta) de políticas públicas eficazes. Não se pode negar que estas instituições ajudam muito, e com certeza há muitas entidades honestas realmente interessadas em ajudar a quem precisa; no entanto, a realidade está aí para que todos enxerguem – há muita gente desonesta envolvida nisso; muitos que usam as ONGs para desviar verbas, lavar dinheiro sujo, mascarar negócios ilícitos. No filme, o Terceiro Setor visa à obtenção de lucro, explicitamente. A solidariedade e a responsabilidade social, para as empresas, são evidenciadas como uma questão de marketing. Tanto é que contratam empresas especializadas para desenvolver projetos e ações de responsabilidade social, sendo que isso deveria ser desenvolvido pela própria empresa. Em Quanto Vale ou é por quilo, a empresa Stiner – especialista em marketing social – buscar captar recursos de empresas para desenvolver projetos sociais, como o “Informática na Periferia”, no qual a mesma seria responsável pela implantação de computadores para atender a uma comunidade carente. Contudo, os computadores que são disponibilizados neste projeto são todos sucateados e uma das funcionárias que trabalha na Stiner descobre que houve superfaturamento na compra. Além disso, fica óbvio, durante todo o filme, que entre o recurso captado e o beneficiário, há uma série de irregularidades e corrupção, como desvio de verbas, superfaturamentos, contas fantasmas etc. Apesar do filme todo ser uma crítica feroz ao chamado Terceiro Setor, alguns trechos serão abordados, na sequência, com a intenção de destacar pontos a respeito da questão de raça, gênero e ações 133 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011 afirmativas. A primeira cena analisada é a preparação para a filmagem de um comercial em prol das crianças negras. O contratante – uma ONG (Stiner) – exige que, no elenco, haja 75% de crianças negras, 15% de brancas e 10% de “outros” para retratar a realidade do Brasil. Na separação do elenco, é nítido que o critério para a identificação da raça são os traços corporais (cabelo, pele). Quando o produtor encontra um menino com a pele bem escura, ele exclama: “Esse é 100% negro, tem até pedigree”. Este comentário, ao ser ouvido por Lourdes (funcionária da ONG e negra), gera uma grande discussão, na qual Lurdes resgata todo um discurso sobre “dívida histórica” com a raça negra. Entretanto, o diretor do comercial rebate dizendo para que ela não se faça de vítima “só porque é negra”; e ele ainda afirma que não persegue e não se recusa a contratar negros. A fala final desta cena é bastante representativa da situação da população negra no país: “Você não pagou? Pois então você venceu! Hoje, aqui neste set, negro é lindo”! [...] – Ô Bira, pinta todos esses moleques de preto!”. O dinheiro e o poder falam mais alto e o preconceito é mascarado na hipocrisia. Num discurso inflamado, o diretor do comercial sugere que, desde que seja bem pago, não há nenhum preconceito contra os negros. Isso, aliás, demonstra que o preconceito racial existe sim, ainda que disfarçado. Além disso, também há uma ironia velada com o movimento cultural “Black is beatiful”, que se iniciou nos Estados Unidos, em 1960, objetivando eliminar a ideia de que a negritude e seus traços característicos são feios. Ainda nesta mesma cena, podemos pensar, além da questão da identificação do que é negro e no autorreconhecimento da raça (já que, no comercial, os meninos negros aparecem afirmando que são negros e devem fazer isso de forma a demonstrar orgulho), também nos preconceitos e estereótipos relacionados à raça negra e, é claro, não se pode deixar de lado todo o discurso impostado pela personagem Lourdes, na posição de mulher negra, numa clara referência à intersecção de gênero e raça. 134 Quanto vale ou é por quilo? Para retomar a discussão sobre ações afirmativas, mostrando como a falta de ações afirmativas sérias pode acarretar no oportunismo de pessoas e empresas que se dizem solidárias com os menos favorecidos, mas que, de fato, almejam lucrar com isso, destacamos aqui uma cena do filme de Bianchi que representa bem essa situação. Nesta cena, a empresa Stiner está sugerindo mudanças num vídeo institucional de uma empresa chamada “Sorriso de criança”. O diretor da Stiner diz ao cliente que a estratégia do vídeo já está ultrapassada, pois apresenta crianças sujas, tristes, sofrendo. Ele informa que é necessário melhorar a imagem do “produto”, que deve estar “vinculada ao êxito”, pois “quem financia a solidariedade está preocupado com o retorno”. Logo, a Stiner pode melhorar a visão do “produto”, colocando imagens de crianças felizes, o que atrairia mais investidores. Em outra cena, também retratando o falso assistencialismo, uma socialite – Marta Figueiredo – aparece fazendo doações, o que, conforme narrado no filme, apesar do contato com a “miséria humana” despertar nojo, espanto e piedade, também colabora para uma “boa dieta na consciência”. Em outro momento, outra cena de assistencialismo absurdo, onde famílias de crianças com câncer são levadas para passar uma semana em um hotel cinco estrelas: como se essa ação fosse mudar a vida daquelas pessoas. A última cena destacada é a cerimônia de entrega do prêmio Inovação Solidária, concedido ao projeto “Manual de Captação de Recursos” – que só pelo nome já deixa clara a ideia de “ensinar” como conseguir captar fundos para “projetos assistenciais”. Na sequência da entrega do prêmio, o filme apresenta uma série de dados interessantes, como: existe mais de 20 mil entidades assistenciais no Brasil; o capital movimentado neste “mercado assistencialista” passa de 1 milhão de dólares por ano; cada criança carente “gera” 5 empregos etc. Tudo isso para mostrar que o “mercado assistencialista” aqui é bastante promissor e pode, se bem organizado e planejado, trazer bons lucros (tanto é que, no filme, ainda há uma cena de um curso voltado para a elaboração de estratégias de desenvolvimento de projetos para ONGs). 135 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011 Enfim, o filme Quanto vale ou é por quilo, do diretor Sérgio Bianchi, pode ser visto até como um excesso de críticas pesadas, principalmente às direcionadas ao Terceiro Setor, já que o filme mostra apenas o lado “sujo” do assistencialismo, retratando exclusivamente pessoas e empresas gananciosas que procuram explorar a miséria alheia para obter lucros. Como já mencionado anteriormente, não podemos esquecer que há pessoas e entidades sérias envolvidas em projetos assistenciais e que isso realmente ajuda e traz alívio para muitas famílias menos favorecidas; contudo, as críticas apresentadas no filme servem para que a população fique de olhos bem abertos, fiscalizando toda essa questão. A imagem de um país que está em permanente crise de valores fica muito evidente no filme de Bianchi – e isso, realmente, ninguém pode negar! Referências ASSIS, Machado. “Pai contra mãe”. In ______. Os melhores contos. Seleção de Domício Proença Filho. São Paulo: Global, 1997. BIANCHI, Sérgio. Quanto vale ou é por quilo? Direção e Roteiro de Sérgio Bianchi. Brasil. Europa Filmes, 2005. CAVALCANTI, Nireu. Crônicas históricas do Rio colonial, 2004. LUCAS, Marcilio Rodrigues. “Os sentidos e os limites da responsabilidade social empresarial: Estudo de caso sobre os projetos do Instituto Algar”. 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Este presente trabalho propõe uma leitura atual e fundamentada do tema, partindo da premissa de que a cultura local pode ou deve ser lida também a partir do local. Esse propósito se cumpre ao estabelecer uma relação entre a metonímia e a conceituação de cultura na sociedade pós-moderna recortando literariamente a obra de Otávio Gonçalves Onde Cantam as Seriemas e geograficamente o estado de Mato Grosso do Sul. Palavras-chave: Estudos Culturais; Mato Grosso do Sul; Cultura Local. Abstract: This article is a part of a research project CNPq/UFMS “(In) definitions in Local Cultures of Mato Grosso do Sul”. The present paper proposes a current reading of the theme and reasoned, based on the premise that local culture can or should also be read from the site. This purpose is accomplished by establishing a relationship between metonymy and conceptualization of culture in postmodern society literally cu#ing the work of Otávio Gonçalves Gomes where to Onde Cantam as Seriemas and geographically the state of Mato Grosso do Sul. Keywords: Cultural Studies; Mato Grosso do Sul; Local Culture. 1 Acadêmica do 4º Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CCHS), membro do NECC-UFMS (Núcleo de Estudos Culturais Comparados) bolsista de Iniciação Científica pelo PIBIC/CNPq, com o Plano de trabalho “(In) Definições Culturais nas Culturas Locais de Mato Grasso do Sul”, o qual faz parte do projeto “Cultura Local”. 2 Professor Doutor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação do DLE/CCHS/UFMS. E-mail: [email protected] 137 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, árvores e rios. (BARRROS, 1997, p. 107) 1. Relações metonímicas e culturais Este trabalho visa estabelecer uma relação entre a figura de linguagem denominada metonímia e a conceituação de cultura na sociedade pós-moderna, entretanto deve-se dizer que nossa reflexão objetiva romper com essa visão metonímica de cultura e dessa forma enfatizar que a cultura local tem de ser lida a partir do local. Esse local está delimitado geograficamente pela região que compreende o estado de Mato Grosso do Sul e teoricamente pela obra de Otávio Gonçalves, Onde Cantam as Seriemas, todavia não podemos nos esquecer que (...) uma região não é na sua origem, uma realidade natural, mas uma divisão do mundo social estabelecida por um ato de vontade, demonstra, na praxis, uma das premissas básicas do comparativismo, que afirma a arbitrariedade dos limites e a importância de reconhecimento das zonas intervalares, das fronteiras e das passagens e ultrapassagens. (...) A região deixa de ser um espaço natural, com fronteiras naturais, pois é, antes de tudo, um espaço construído por decisão arbitrária, política, social, econômica, ou de outra ordem qualquer que não, necessariamente cultural e literária. (BONIATTI apud SANTOS, 2006, p.72) Como toda reflexão do que quer que seja, passa necessariamente pelo campo lingüístico, precisamos primeiramente compreender como se dão os processos de modificação semântica das palavras dentro de uma língua, para em seguida refletirmos sobre a relação entre metonímia e cultura. Segundo Moritz a língua, expressão consciente de impressões exteriores e interiores, está sujeita a uma perpetua transformação. As palavras mudam de significado ou por que as coisas se modificam ou porque a ‘constelação psíquica’ sob cuja influencia nasce o sentido do objeto, se altera graças a causas diversas. (apud Bechara, 2007, p. 397). 138 Por uma visão não metonímica de cultura Com relação às causas que motivam a alteração de significados, encontramos as figuras de linguagem, dentre essas encontramos uma em particular que nos ajudará a compreender a convenção sobre os conceitos de cultura global e cultura local instituídos na pósmodernidade. John Fiske (1993) argumenta que a metonímia opera por associação de significados no mesmo plano, sendo entendida e conceituada num sentido mais amplo como um recurso que toma a parte pelo todo. Na gramática esse recurso define-se como “translação de significado pela aproximação de idéias”. (Bechara, 2007, p. 398). Vejamos alguns exemplos, nas frases: a) Diz a escritura que Deus criou o céu e terra em sete dias e b) Precisamos encontrar um teto amigo. Em ambas as frases, ocorre um processo metonímico: em a) o termo escritura contempla o todo, no caso a bíblia, entretanto refere-se a uma parte, um versículo da bíblia; já em b), as palavras teto e amigo contemplam uma parte de uma residência visto que ela é constituída por paredes, chão, teto, móveis, etc; entretanto , nesse caso, refere-se ao todo, ou seja, a casa. Analisando dessa forma, podemos pensar que a representação da realidade envolve inevitavelmente um processo metonímico, uma vez que escolhemos uma parte dessa realidade para representar o todo ou fazemos o movimento contrário. Considerando um acontecimento ou fato, e querendo atuar sobre ele através do uso da metonímia, é importante levar em conta que é a partir dele que constituímos o restante da realidade desconhecida; é também esta seleção que define o resto da imagem que construímos do acontecimento ou fato. A aleatoriedade de uma determinada seleção metonímica encontrase, muitas vezes, disfarçada ou simplesmente ignorada, passando desapercebida e dessa forma, a metonímia institui-se como índice natural recebendo o estatuto do “real” e “inquestionável”. É o que acontece, por exemplo, com o par cultura global/cultura local. Tomase a cultura global, englobando nela a cultura local, contudo lê-se a 139 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 cultura local a partir de uma ótica homogeneizante e universalizante. Em outras palavras, lança-se mão do já referido processo metonímico, no qual se opta por uma parte da realidade como referência ao todo e dessa forma, negligencia-se o local, enquanto um espaço de onde e do qual se possa falar. De fato é humanamente impossível que conheçamos tudo que se passa no mundo; por essa razão, é que justamente recorremos à parte como forma de entender o todo. O problema é que tal situação opera intensamente sobre a “consciência global”, obrigando-nos a conhecer o mundo através de imagens e ideias selecionadas, em outras palavras, é apenas uma fração da realidade que nos atinge de forma unilateral e que nos leva a construir signos e mitos (como o de que a cultura local numa escala hierárquica estaria submetida à cultura global, e, portanto tem menos importância do que esta). Nesses signos e mitos pode haver maior ou menor consistência entre significantes, realidades, significados a que eles se relacionam, entretanto, eles são inevitavelmente uma necessidade para que consigamos entender o real e partilharmos e produzirmos cultura de alguma forma. Bhabha, por sua vez, se vale do “processo de identificação” na analítica do desejo para formular o seu conceito de “metonímia da presença”3. Nesse sentido, o local existe ainda que contra a vontade ou à revelia dos anseios da globalização, que se fazendo presente tende a esconder e silenciar o local enquanto um espaço de produção cultural e intelectual. Segundo tal acepção, embora as imagens do passado emerjam no presente, elas não têm condições de interpelar ou reconhecer a identidade como presença, em razão de serem 3 Jacques Derrida em “Gramatologia” trata do conceito ‘metafísica da presença’. O logocentrismo metafísico, segundo Derrida, se basearia em um sistema de oposições binárias de conceitos, onde secularmente um dos termos seria valorizado enquanto outro desvalorizado, como: causa-efeito, presença-ausência, centro-periferia, positivo-negativo, essência-aparência, natureza-cultura, fala-escrita, etc. 140 Por uma visão não metonímica de cultura criadas na ambivalência de um tempo duplo de interação que, na feliz frase de Derrida, ‘desconcerta o processo de aparição ao deslocar qualquer tempo ordenado no centro do presente’. O efeito desse desconcerto [...] é inaugurar um princípio de indecidibilidade na significação de parte e todo, passado e presente, eu e Outro, de modo que não possa haver negação ou transcendência da diferença. (BHABHA, 2008, p.89) Dessa forma, a metonímia, figura de contigüidade, não deve ser lida simplesmente como forma de substituição ou equivalência simples. Do contrário, a exemplo do que ocorre no poema analisado por Bhabha da negra Meiling Jim, no qual um “eu” é relocado por um “olho” (an I for an eye), urge que a circulação de parte e todo, identidade e diferença, seja compreendida como um movimento duplo que segue o jogo derridaiano do “suplemento”. A instância subalterna da metonímia, em momentos que estruturam o sujeito da escrita e do sentido, é a dupla procuração da presença e do presente: o tempo (que tem lugar em) e o espaço (que toma o lugar de). A diferença cultural então, se contrapõe a noções relativistas de diversidade cultural ou ao exotismo da diversidade de culturas. Por essas razões, nosso trabalho vê-se obrigado a lidar com questões de natureza sociológica e antropológica, como identidade, pertencimento e seus contrários, lutando contra ao senso comum habituado a descortinar apenas distancia e ausência na cultura da região; essa circunstancia, por sua vez, decorre da condição geográfica do local, do afastamento dos centros de legitimação cultural e ao possível descaso a que foi relegada a região, após extinção do ciclo de exploração do ouro, exploração da mão-de-obra indígena, exploração agrícola, ou mesmo ao interesse que a região desperta como terra de ninguém, exposta a toda sorte de aventureiros”. (SANTOS, 2008, p. 11) O local por ele mesmo Optamos por discutir a produção cultural local a partir da literatura local, pois entendemos que 141 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 a literatura é um exercício de reflexão, em que o escritor escreve e reflete acerca da sua espacialidade – dos elementos que a constituem. Daí, indagando-se acerca das formas ideológicas, culturais, políticas, econômicas etc., que encontra na sua vida cotidiana. Com suas indagações, insinua sugestões e elabora críticas que vêm ao encontro de outras leituras e interpretações, e de outros olhares e valores necessários para a compreensão ou estabelecimentos de formas alternativas aos padrões hegemônicos, ou seja, aponta formas de relações territorializadas, seus limites e possibilidades colocadas dentro da sociedade. (PINHEIRO, FERRAZ, 2009, p.92) A cultura local a que nos referimos é a cultura delimitada geograficamente pelo território do estado de Mato Grosso do Sul. “Nesse sentido convém lembrar que a produção literária regional se produz pela fusão de elementos provenientes da tradição oral, da cultura popular ibérica, com textos absorvidos de outras literaturas”. (MASINA, 2002, p.98-99). Dentre os escritores que podem ser mencionados como representativos do local, a partir do qual enunciamos, temos: “Hélio Serejo, como representante do chamado crioulismo e do chamado ciclo da “erva-mate”; Brígido Ibanhes, que recupera, no romance, a Décima Gaúcha”, do romanceiro popular, cujo autor é o “bandoleiro-herói” Silvino Jacques; e ainda Raquel de Naveira; Lobivar Matos, Manoel de Barros e Hernani Donato “(SANTOS, 2008, p. 12), entre outros Contudo, nosso trabalho, foca especificamente a obra de Otávio Gonçalves Gomes, Onde Cantam as Seriemas: trata-se de uma obra memorialística e histórica, pois retrata histórias de personas locais que vão sendo contadas conforme a lembrança permite ao autor. Nas palavras de Luís da Câmara Cascudo, autor do prefácio da obra em questão, Otávio Gonçalves Gomes reuniu as figuras e episódios que o canto das seriemas evocara no espaço e tempo das lembranças indeformáveis (...). É um documentário que os acontecimentos, permanentemente esquecidos pelo historiador mecânico dos sucessos convencionais. O canto das Seriemas sobrevive à cronologia das lutas políticas e das sucessões administrativas, moldura imóvel das exposições oficiais, 142 Por uma visão não metonímica de cultura ressuscitando ‘casos’ que foram emoções coletivas. São ‘instantâneos’ reais e não retratos da galeria protocolar e semelhante às galerias de todos os recantos da amada terra do Brasil. (GONÇALVES, 1975, p. 13) A obra divide-se em 68 capítulos, nos quais Otávio Gomes versa sobre as pessoas que conhecera na infância/adolescência, transformadas em “personagens” de sua evocação terna e sensível. Assim, lemos a respeito do circunspecto e misterioso Professor Pimenta, de sua escolinha e de seu “fordeco”, o primeiro carro a percorrer as ruas de Ribas do Rio Pardo; de seu Olivério, agente da EFNB e instrutor dos escoteiros, grupo do qual Gomes fez parte durante certo tempo de sua infância; do pai Domingos Gonçalves Gomes, “homem bom e de coração aberto” (1975, p. 75), cujo maior orgulho foi ter conseguido formar em curso superior todos os filhos, ele que cursara apenas o primário (“Um homem às direitas”, 1975, p. 75-79); da mãe, mulher bonita, bem vestida e grande cozinheira, enérgica e nervosa, “dona de casa na verdadeira acepção da palavra” (“Minha mãe”, 1975, p. 81-82); da madrinha Delminda, do velho Cleves e de diversos outros, como Geraldo, companheiro de infância de Otávio e que serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Itália, durante a segunda guerra mundial (ver “Um herói da FEB que não fala em guerra”, 1975, p. 151-155), e Rui, menino extremamente peralta e endiabrado, que matava animais por puro sadismo e pegava dinheiro dos pais, mesmo com o cofre trancado a cadeado. Em sua juventude, entrou para o serviço militar com o desejo de tornar-se aviador, mas, como era epilético, foi desligado da Escola de Aeronáutica, fato que não o impediu de ser convocado pelo Exército e de ter servido na FEB. Foi para a segunda guerra mundial e retornou ao Brasil. Sem conseguir, a seu ver, ser “nada na vida”, recusou-se a voltar ao Mato Grosso e se matou em Belo Horizonte. (BUNGART NETO, 2008, p. 03-04) Otávio Gonçalves, nascido em Coxim, norte do Mato Grosso do Sul, e criado em Ribas do Rio Pardo, além de poeta era agrônomo, fato que incide diretamente sobre aprodução literária do autor. O título de sua obra faz menção a uma ave típica do cerrado e da região Centro-Oeste, a Seriema. Para definí-la, ele recorre à etimologia do vocábulo, que na língua indígena, segundo ele, “Seri mais ema quer 143 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 dizer: ema com crista”. (GOMES, 1975, p. 21). No mesmo capitulo, Gomes descreve o andar da ave que dá título a sua obra: “O andar da seriema é hirto; quando caminha parece uma donzela elegante, de salto alto, desfilando na passarela arenosa das estradas” (GOMES, 1975, p. 21). Segundo o autor As seriemas vivem cantando, andam bradando seu clangoroso chamamento, sibilante e penetrante às vezes, tal qual um clarim. Seu canto é plangente e evocativo, ecoa triste pelas campinas. (...) Ouve-se o seu grito-canto a qualquer hora, desde alta madrugada até à noite. É justamente o som altissonante que chama a atenção dos viajores. É capaz de cantar horas a fio. (GOMES, 1975, p. 22) Por ser agrônomo, o poeta se detém nas formas e cores da ave: “a coloração das pernas e do bico é vermelha e penas são pardacentas. Tem o pescoço comprido e um topete filiforme na cabeça, daí o nome científico Cariama Cristata”. (GOMES, 1975, p. 21). Além disso, o poeta trata da alimentação e reprodução dessas aves. Elas alimentam-se “de insetos, lagartos, minhocas, pequenos animais, frutas e serpentes” (1975, p.21) e quando em época da reprodução “macho se reveza com a fêmea na época do choco” (1975, p. 22). Gomes também retrata a estreita relação da ave com os seres humanos, “as seriemas podem viver junto ao homem, alimentadas com carne picada, guardam os galinheiros atacando os ofídios e os paióis dando caça aos ratos”. (GOMES, 1975, p. 22). Ao encerrar o capítulo, Gonçalves afirma: Há uma modinha caipira que diz: Seriema de Mato Grosso Seu canto triste me faz lembrar Daqueles tempos que eu viajava Tenho saudade do seu cantar. (GOMES, 1975, p. 23) Além da Seriema, há outros elementos retratados na poesia de Gomes muito específicos do local, como outras aves (Sabiá), frutos 144 Por uma visão não metonímica de cultura (Guavira), lugares (Ribas do Rio Pardo) e pessoas da região. Da fruta Guavira o autor fala: “Guavira ou guabiroba, como dizem alguns, é uma frutinha silvestre com o formato de uma goiaba, mas do tamanho de uma azeitona”. (GOMES, 1975, p. 115). Sobre a forma e o sabor, descreve a fruta da seguinte maneira: “A casca é lisa e tem um sumo picante. O seu conteúdo é constituído de sementes em uma substancia gelatinosa, doce e muito saborosa. Sua cor é amarelo-esverdeada, ou amarelada simplesmente, quando madura”. (GOMES, 1975, p. 115). Com relação às pessoas, podemos citar o capítulo intitulado “O Professor Pimenta”: que era maranhense e cujo nome era “Franscisco Augusto de Aguiar Pimenta. Era letrado, bem falante, gostava de fazer discursos”. (GOMES, 1975, p. 51). Por sua profissão recebia o status de “orador obrigatório das festas sociais. Tinha a mania das declamações. A mais famosa delas era uma poesia francesa, que ninguém entendia, é claro”. (GOMES, 1975, p. 51). Relata o escritor: “o vi bocejar e observei que sua abóboda platina, não era como a das outras pessoas, mas vermelha, cor de lacre. [...] O céu da boca vermelho era uma dentadura com material daquela cor, nada mais”. (GOMES, 1975, p. 51). Sobre a escola em que estudava, Gomes afirma que o regime da escola “era o de antigamente: decorar, e soletrar cantando. As pessoas antigas lembram-se com saudades daquela cantiga: um mais um dois. Dois mais dois – quatro. Dois mais três - cinco. A classe cantando alto, compassado”. (GOMES, 1975, p. 54). Sobre a palmatória, falava: Havia a palmatória, “santa luzia” de cinco olhos – de cinco furos. O terror da meninada; dos vadios, dos menos inteligentes, dos meninos rudos como dizem. Rudos eram as crianças que tinham dificuldade em aprender. Na hora da palmatória não se fazia distinção entre aluno inteligente, rudo ou retardado. No sábado havia a argüição com rodada de palmatória. Um aluno argüia outro sobre a taboada. O que não sabia “levava bolo” de palmatória do outro. Havia aluno que apanhava de ficar com as mãos inchadas. [...] O método deplorável sob todos os aspectos. Ensinar a criança a ser má. Despertando-lhe os instintos primitivos. (GOMES, 1975, p. 54). 145 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 No que se refere aos lugares, podemos mencionar o capítulo “A Vila de Rio Pardo”. Nele o autor descreve o local: “Na rua principal da vila, ampla e em linha reta instalavam-se, o comércio, a escola, o cartório e tudo mais que havia de importante no lugarejo. Uma rua comprida, cortada pelos trilhos da E.F. Noroeste, cujo comércio se fazia de um único lado, porque o “corte” da via férrea impedia o livre transito para o outro lado”. (GOMES, 1975, p. 25). Segundo Otávio Gomes, depois da estrada de Ferro, foram construídos os sobrados feitos pelo Filadelfo Alves da Silva que era seu tio-avô. O primeiro deles foi construído na fazenda Esperança. “Esse sobrado da vila sustinha-se em esteios de aroeira lavrada. [...] Na frente do sobrado havia três mangueiras naquela época, o ponto mais importante das reuniões da Vila”. (GOMES, 1975, p. 25). Esse espaço é lugar de convívio social em que as pessoas locais se relacionam e socializam saberes locais. “Ali se faziam o ‘ponto’ de conversa e reuniões dos desocupados, dos filadores de cafezinho. Servia-se café na loja, à hora certa. Ali se trocavam de pontos de vista e realizavam-se negócios também”. (GOMES, 1975, p. 25). O espaço que envolvia a mangueira funcionava como uma espécie de assembléia popular, como expõe o próprio autor: “Debaixo da mangueira se decidiam todos os negócios da vila”. (GOMES, 1975, p. 25). O espaço é, portanto, sistemas de formas e conteúdos interligados e interdependentes. Uma cidade, um porto, uma área rural não estão no espaço, são o espaço, ou seja, formas dotadas de conteúdo. Como menciona Lefévre ‘não existe conteúdo sem forma, não existe forma sem conteúdo’. Nesta perspectiva, o espaço é uma construção e, simultaneamente, uma moldagem das relações sociais, e deve ser concebido com uma instância na sociedade, onde cada ação humana contribui para a sua produção. (ARAÚJO; FACINCANI, 2009, p.11) Mais adiante, o autor trata sobre o crescimento do vilarejo. “O vilarejo crescia em marcha de carro de boi, pachorentamente”. (GOMES, 1975, p. 25), do comércio feito à base do carro de boi e à beira da Noroeste. 146 Por uma visão não metonímica de cultura Esses carros vinham desde a divisa de Goiás; Baús, Capela, Sucuriú, Figueirão, Camapuã, Lontrinha, Entre-Rios (atual Rio Brilhante) e do rio Pardo abaixo até Porto XV. Esse mundo todo vinha comprar suas mercadorias na estrada de ferro, em Rio Pardo, na Casa Fontoura. Laucídio Coelho foi freguês na Casa Fontoura quando morava em Entre-Rios. (GOMES, 1975, p. 26). Quanto aos fatos históricos, podemos mencionar o capítulo intitulado “A Revolução de 1924” que narra as repercussões do movimento tenentista ocorrido no estado de São Paulo na vila de Rio Pardo. Segundo ele, “o movimento rebelde de 1924 foi para nós, meninos daquela época, fonte perene de indagações e de sobressaltos”. (GOMES, 1975, p. 81). Sobre a vida no vilarejo nesse período ele afirma: “Soldados chegavam e saíam da vila. Os boatos e as notícias de roubos, assaltos, incêndios, depredações e outras judiarias por parte dos rebeldes, corriam de boca em boca”. (Gomes, 1975, p. 81). Os revoltosos não eram bem visto pelas pessoas “comuns”, sua presença trazia insegurança “embora, considerado herói por uma parcela da população das grandes cidades, no interior do Brasil, revoltoso era sinônimo de bandido, assassino e tudo de mau e ruim juntos”. (GOMES, 1975, p. 81). Antes do movimento tenentista “o vilarejo de Rio Pardo vivia pacatamente com seus destacamentos de soldados da policia militar mineira fieis ao Presidente da República: Arthur Bernardes”. (GOMES, 1975, p. 81). Certa feita “os revoltosos chegaram de surpresa à fazenda dos Cuiabanos, próximo à vila. Prenderam o Tito, filho de Velho Chico Goiano, morador do vilarejo.”. (GOMES, 1985, p. 81). Depois de Tito ser interrogado foi mandado campear animais “quando os animais dispararam, ele correu atrás, e com isso distanciou-se, meteu-se no mato e fugiu. [...] Viajou o mais rápido que pode e foi avisar foi avisar a tropa legalista e o povo de Rio Pardo. (GOMES, 1985, p. 82) do ataque. No ataque que os revoltosos fizeram a vila ... 147 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 os mineiros, destemidos defensores da vila, se haviam entrincheirado por de trás do lenheiro, e cerraram fogo nos revoltosos. [...] A salvação da vila foi um rapazinho, jovem franzino, mas calmo e valente. Entrincheirou-se atrás do forno da casa do Zé Domingos e de costas para estação, mas guarnecendo a retaguarda, foi matando os atacantes que conseguiam com muita dificuldade passar o brejo, as cercas de arame e surgiam por trás. [...] O ataque foi furioso, mas a resistência, tenaz. Os revoltosos, numerosos, não esperavam por isso. Eles costumavam atacar de surpresa, roubavam, destruíam e desapareciam. (GOMES, 1985, p. 83) Depois de tratar do confronto entre o povo de Rio Pardo e a tropa Legalista, Gomes encerra este capítulo dizendo que embora a situação fosse séria, para as crianças era apenas uma brincadeira de “matar as curiosidades” inerentes a todas as crianças: no meio dessa confusão toda, sempre havia um menino, bisbilhotando e querendo ver o que estava acontecendo. Quantas vezes foi preciso o meu pai nos ameaçar de bater, porque estávamos querendo ver, e as balas andavam zumbindo por toda parte. Foi assim que transcorreu o primeiro combate a bala a que assisti em minha vida. Não tendo noção do perigo, aquilo para mim foi mais uma divertida brincadeira de “bang bang”. (GOMES, 1985, p.84) A obra de Otávio Gomes ao mesmo tempo em que resguarda a memória local, engendra um construto da cultura desse local através de histórias, que narradas e relembradas nas páginas de “Onde cantam as seriemas” delimitam esse local como um espaço de múltiplas vivencias que exala reminiscências. O autor reafirma a força viva de sua espontaneidade comunicativa. “O livro leva a todos os olhos leitores o encantamento peculiar e local, patrimônio da região, testemunha das criaturas humanas que viveram sua hora de notoriedade peculiar”. (GOMES, 1985, p. 14). Conforme Heidegger “uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (apud BHABHA, 2003, p.19). Esse algo apontado por Heidegger corresponde ao lugar de existência 148 Por uma visão não metonímica de cultura do homem contemporâneo que vive nas fronteiras do presente, um entre-lugar, onde encontramo-nos em trânsito, em situação intervalar, onde espaço e tempo se cruzam e se bifurcam, produzindo, por conseguinte, “figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão”. (BHABHA, 2003, p.19). Nesse sentido, o que está para além das fronteiras também se faz presente no aquém dessa mesma fronteira. Não há um lugar específico ao global, nem um lugar restrito ao local, mas sim, um terceiro lugar, no qual ambas as esferas circulam e se movimentam. Ou seja, aqui e lá, para todos os lados, para lá e para cá, para frente e para trás, esse distúrbio de direção, essa sensação de desorientação, esse movimento exploratório que capta o “além” é onde se situa o que queremos denominar aqui de local de uma cultura. Nas palavras do crítico hindu-britânico “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. [...] O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver”. (BHABHA, 2008, p.27) O autor de “Onde Cantam as Seriemas” escreve como quem morre de amor pela sua terra. É bom que assim seja, pois que, lembrando Flaubert, “O que me parece mais belo é o que mais desejaria fazer”. E tudo repassado de um constante pintalgar de distantes clarões da infância, pondo em evidencia as palavras de Érico Veríssimo: “Não canso de repetir que nenhum adulto, por mais que se esforce, jamais conseguirá livrar-se completamente do menino que um dia foi.” (GOMES, 1985, Aba) O conceito de cultura local para além da metonímia Como expõe o próprio Bhabha (2008), a linguagem é uma das formas de construção de identidades, ao mesmo tempo em que institui as relações de poder entre os indivíduos; cria, reforça, projeta as diferenças culturais. Se é possível criar diferenças na e pela linguagem, é possível também, que se possa fazer com a mesma linguagem um movimento contrário, no qual, ainda que a diferença 149 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 já esteja constituída ela não atue como agente marginalizante, como ocorre quando se toma conceito de cultura e de literatura baseado nas concepções canônicas como correspondendo a todas as formas de cultura e de literaturas existentes. Nesse sentido, podemos dizer que a obra “Onde Cantam as Seriemas” contribui, pois está a “nadar contra corrente” no sentido de que descreve esse local não impondo sobre os outros espaços e culturas uma preponderância ou supremacia cultural. Trata-se de um local que não se impõe, não rivaliza com outros, mas coexiste, coabita, dialoga, não só com outros locais, mas com outros universais. Como bem explicita Luís da Câmara Cascudo: Adotando uma linguagem simples, despojada, descarnada como a paisagem em que passeiam garbosas as seriemas, Otávio Gonçalves Gomes consegue fixar com êxito o cenário de uma pequena cidade do interior mato-grossense, com seus indefectíveis componentes: o rio, o sobrado, a mata e o homem que procura encher as horas com algo que lhe eleve a condição, utilizando os danos e as oportunidades que o destino lhe conferiu, numa época em que, à míngua dos meios de comunicação dos dias de hoje e dos hábitos de consumo que uniformizaram a vida das cidades interioranas, cada agrupamento humano podia ainda exibir suas características distintas, seu modus vivendi próprio, seu universo particular. (GOMES, 1985, Aba) Nesse sentido, pode-se tomar nossa fala como uma procura ou uma tentativa de estabelecimento do local a partir da narrativa desse mesmo local, como fez Gomes em Onde Cantam as seriemas. Por essa razão, precisamos refletir sobre como hoje, no interior de um sistema social no qual o fetichismo inicial da mercadoria tem sido já recompensado, redobrado e transbordado pelo “fetichismo das identidades e das diferenças”, essas ambiciosas empresas de nossa Consciência Humanitária, essa pretensão tão atual tão nossa e tão Ocidental de encarnar o Humano- com letra maiúscula- de saber significar de forma tão universal e tão definitiva seus limites, só se pode conseguir mediante uma sistemática depredação e recusa do Outro que se sustenta, mais do que no acréscimo da rivalidades e barreiras (econômicas, militares, religiosas, ideológicas, políticas, etc), na permanente exterminação de qualquer sinal de singularidade, de qualquer registro que pudesse ou romper a homologação lavrada 150 Por uma visão não metonímica de cultura e esculpida por nosso princípio de identificação/ diferenciação, de qualquer vestígio de alteridade no “ser-outro-do-Outro”; exterminação, ainda que paradoxal e presumivelmente nunca finalizada, visto que, entre outras coisas, corre paralela à extrapolação enlouquecida do Mesmo, e à constante reprodução diferencial e perpétua produção (real e virtual, simbólica e imaginária) também, do Outro. (PLACER, 2001, p.80) O Outro nesse texto é a literatura não hegemônica, eurocêntrica, branca, canônica, ou seja, é a literatura referente a um estado que não está localizado nos grandes centros culturais e que por isso, se pode dizer que é marginal. O fato é que retratar essa produção cultural faz com que ela saia da margem da sociedade e ocupe um lugar que lhe é de direito, um espaço no qual coabita até mesmo com os pressupostos universais e canônicos, contudo, essa coexistência não o coloca como um espaço subordinado numa hierarquia cultural. Nesse sentido, nos opomos a Candido que afirma que “a grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da sua relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento determinado e a um determinado lugar”. (CANDIDO, 2006, p.53). O fato é que não há como separar o espaço das relações sociais que o encampam, da mesma forma, não há como conceber qualquer produção cultural fora de um tempo ou espaço específico. Nesse sentido, a necessidade de existência de um espaço se faz no sentido de que no universo das relações sócio-espaciais ‘o espaço e a organização política do espaço expressam as relações sociais, mas também reagem contra elas’. Nesse sentido, o espaço e sua organização condicionam, mas também refletem a sociedade, contendo as ações que se realizaram no passado e que deixaram suas marcas na paisagem. As características de cada sociedade, seu modo de vida, sua cultura estão presentes no espaço como uma identidade. (ARAÚJO, FACINCANI, 2009, p.16) Como expõe Bhabha “é somente pela compreensão da ambivalência e do antagonismo do desejo do Outro que podemos evitar a adoção cada vez mais fácil da noção de um Outro homogeneizado, para uma política celebratória, oposicional, das margens ou minorias”. (BHABHA, 2008, p.87), como sempre fez e faz a tradição européia e etnocêntrica de mundo. 151 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011 Referências ARAÚJO, Ana Paula Correia; FACINCANI, Edna Maria. A construção geográfica do espaço: uma revisão teórica. OLIVEIRA NETO, Antonio Firmino; BATISTA, Luiz Carlos. (orgs.) In: Espaço e natureza: a produção do espaço sul-mato-grossense. Campo Grande: Ed. UFMS, 2009. BARROS, Manoel de. Livro Sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1997. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. BHABHA, Homi Komi. O local da cultura. Trad. de Miriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Sobre Ouro Azul , 2006. DERRIDA, Jacques. Gramatologia São Paulo: Perspectiva, 2006. FISKE, John. Introdução ao estudo da comunicação. Porto: Edições: Asa. 1995. GOMES, Otávio Gonçalves. Onde cantam as seriemas. 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Campo Grande: Ed.UFMS, 2006. 152 Itinerários do imaginário contemporâneo: migração, projetos utópicos em ‘Lucy’, de Jamaica Kincaid Rogério Mendes Coelho* 1* Resumo: Entre os diversos temas que emergem de maneira crescente em virtude da perspectiva posta, estudos sobre migração ganharam destaque na percepção de um sujeito que passou a relacionar-se – como ator, autor e/ou personagem – com a necessidade de transpor fronteiras na busca por uma cidadania reconhecida em meio a um sentimento de referencias globalizantes e/ou globalizadas, uma poética contemporânea. Assim: onde e como situarse? Onde e como reconhecer-se? A partir da leitura de “Lucy”, romance da escritora Jamaica Kincaid, pretende-se discutir as causas que poderiam levar um sujeito a estabelecer um projeto de deslocamento e discutir o processo de resignificação social que geraram novas vozes e estabeleceram novas relações que contribuíram, por exemplo, para problematizar os paradigmas da Teoria e Crítica Literária e se redimensionasse os critérios da percepção da obra de arte – Ética, Técnica e Poética – incluindo-se, desse modo, a Literatura. Palavras-Chave: Literatura; Migração; Estudos Culturais Abstract: Among the many themes that emerge in an increasing because of migration studies perspective brought to prominence in the perception of a guy who has to relate to - as an actor, author and / or character - the need to cross borders in search of a citizenship recognized in the midst of a globalizing feeling of references and / or global, contemporary poetics. So: where and how to lie? Where and how to recognize it? From the reading of * Professor Assistente 1 responsável pela disciplina Literatura Hispano-americana da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 153 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 “Lucy”, novel by Jamaica Kincaid, intends to discuss the causes that could lead an individual to establish an offset project and discuss the process of reframing social multiplied the agents who brought in new voices and established new relationships that contributed, for example, to question the paradigms of literary theory and criticism and resize the criteria of the perception of the artwork - Ethics, Poetics and Technical - including, in this way, literature. Keywords: Literature; Migrations; Cultural Studies Tendências da critica literária contemporânea alertam para a necessidade de ampliar o estatuto da Literatura além da perspectiva estética em razão de um nova configuração nas relações econômicas, políticas e culturais que se estabeleceram globalmente nas últimas décadas. Em decorrência do gradual processo de resignificação social multiplicaram-se os agentes que geraram novas vozes e estabeleceram novas relações que contribuíram, por exemplo, para problematizar os paradigmas da Teoria e Crítica Literária e se redimensionasse os critérios da percepção da obra de arte – Ética, Técnica e Poética – incluindo-se, desse modo, a Literatura. Em virtude da valorização do tão somente paradigma estético na percepção da obra literária minimizou-se a importância das prerrogativas éticas que fundamentam a emergência de novas representações – poéticas – que surgem em razão dos diferentes fenômenos e processos que constituem o que se convencionou chamar de uma circunstância contemporânea (Lyotard, 2000; Harvey, 2002; Jameson, 2000; Connor, 2000; Hall, 2000; Bhabha, 2003; Said, 2003). Por tempos cânones – ou metanarrativas, Hutcheon (1991) – fixaram hegemonias que por sua vez imobilizaram especificidades – identidades, espaços e locuções – que definem a base de uma cultura. Não por acaso houve, após a consciência de processos homogeneizantes, a necessidade de experenciar e, consequentemente, revisitar conceitos como Cultura, História, etnicidade, raça, sexo, 154 Itinerários do imaginário contemporâneo gênero, classe, estado e nação para que se (re)configurasse a pertinência e autoridade de outras realidades e disciplinas que até então haviam sido ignoradas ou não representadas/consideradas na Literatura. Em decorrência disso, não por acaso, ocorrem o surgimento de novos autores e poéticas que reivindicam a viabilidade e legitimidade de espaços mais amplos e democráticos. É dessa maneira que o teor e valor literários necessitam recondicionarem-se a uma viabilidade que se configure não tão-somente na perspectiva do valor estético mas a partir dele proporcionando a valorização da representatividade da ética como forma. Entre os diversos temas que emergem de maneira crescente em virtude da perspectiva posta estudos sobre migração ganharam destaque na percepção de um sujeito que passou a relacionar-se – como ator, autor e/ou personagem – com a necessidade de transpor fronteiras na busca por uma cidadania reconhecida em meio a um sentimento de referencias globalizantes e/ou globalizadas, uma poética contemporânea. Poder-se-ia também compreender o processo como busca por uma cidadania reconhecida no possível encontro da estabilidade – material e espiritual – matizado na vaga idéia de “felicidade”. “Felicidade”, imaginação, apelo utópico que para muitos dos que se deslocam apresenta-se inversamente proporcional às insuficiências sociais que não lhes são garantidas em sua locação de origem. Daí a justificativa, necessidades e projetos que procuram viabilizar dignidade e expansão de quem se desloca situados no devir como alternativa de sobrevivência. Pensar sobre o deslocamento, uma possibilidade que se vincula a um projeto de realidade alternativa sugere pensar a respeito do que se constitui o espaço para o qual se desloca pois muitas vezes deslocar-se para outro espaço significa habitar outra realidade constituída tão somente das imaginações – expectativas – de quem se desloca. Não por acaso a imaginação norteia-se da imprecisão 155 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 de espaços constituídos tão somente da necessidade de quem migra, o que gera conflitos no que diz respeito ao reconhecimento e adaptabilidade do espaço. Desse modo observa-se uma cisão que divide e situa o indivíduo entre uma realidade imaginada, constituída das expectativa de quem se desloca, e outra realidade, sensível, experenciada, constituída de referenciais reconhecíveis, familiares, previsíveis e, portanto, confortáveis. Assim: onde e como situar-se? Onde e como reconhecer-se? Desse modo, a partir da leitura de “Lucy”, romance da escritora Jamaica Kincaid, pretende-se discutir as causas que poderiam levar um sujeito a estabelecer um projeto de deslocamento. Pois, (…) the question is not simply about who travels but when, how and under what circumstances (...). If the circumstances of leaving are importants, so, too are those of arrival and se#ling down. How and in what ways do these journeys conclued and intersect in specific places, and specific social conjunctures? How and in what ways is a group or a subject inserted within the social relations of class, gender, racism, sexuality or others axes of differentiation in the country to which it migrates? (BRAH, 1996, p. 182) O romance de Jamaica Kincaid narra a história de Lucy que, aos dezenove anos de idade, deixa sua Ilha no Caribe e vai trabalhar como baby si!er, em Nova Iorque, na casa de uma família comum de classe média americana. O livro, narrado em primeira pessoa, evidencia os conflitos de uma adolescente que se desloca para outro país em busca de melhores condições de vida. O deslocamento de Lucy é apresentado no romance como possibilidade da protagonista suprir, além de insuficiências materiais e culturais, insuficiências relacionadas a sua afetividade, empreendidas como esperança através de um projeto de deslocamento que é resultado de um desejo/necessidade de mudança por meio de uma imaginação prospectiva por apresentar-se como alternativa “imediata” e possível para redimensionar uma realidade tida como insuficiente. 156 Itinerários do imaginário contemporâneo A harmonia entre as necessidades e esperanças dos indivíduos e dos grupos com as funções que asseguram o sistema não é mais do que uma componente anexa do seu funcionamento; a verdadeira finalidade do sistema, aquilo que o faz programar-se a si mesmo com uma máquina inteligente é a otimização da relação global entre os seus input e output (LYOTARD, 2004, p. 21) Nesse sentido, é interessante notar como as motivações que envolvem o processo de deslocamento da protagonista aproximar-seiam do que motivaria um projeto utópico. Principalmente por ele não se limitar a idealização de um espaço mas de querer materializá-lo promovendo um deslocamento, tornando-o possível, habitando-o: admitindo e conciliando a realidade insuficiente de um espaço de origem com a imaginação de um devir, que fundamentaria o projeto de deslocamento como plano de felicidade, pois, Um dos traços definidores do mundo contemporâneo é a intensidade e a interligação dos processos sociais; as migrações e diásporas intensificam-se, redefinindo redes e relações internacionais (...). Os motivos das migrações são variados, incluem a busca de melhores opções de vida, causas de ordem econômica e política, medo ante a violência ameaçadora ou outros tipos de razão. (CANCLINI, 2003, p. 153) No entanto, é preciso ressaltar levando-se em consideração a trajetória de Lucy que um projeto de migração pode desvirtuar-se em seu intuito quando o indivíduo pensa que através da execução de seu projeto reconstituirá as lacunas afetivas e sócio-culturais de seu passado, suas origens. Isso pode ser considerado um equívoco porque na transferência de espaço o lugar para qual se desloca o ator nem sempre assimila o que é considerado afetivamente e culturalmente significativo para o indivíduo que se desloca fazendo com que o projeto de migração distancie-se da idéia previamente concebida encontrando interferências capazes de comprometer a execução do projeto: “Em livros que lera – vez por outra, quando a trama o exigia – alguém era acometido de saudades. Uma pessoa 157 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 abandonava uma situação pouco agradável e ia para outro lugar muito melhor e, em seguida, ansiava por voltar para onde não era tão bom” (KINCAID, 1994, p. 2). Na casa em que Lucy passou a trabalhar, em Nova Iorque, observando as fotografias da família americana para quem trabalhava, ela percebia que “(...) eles sorriam para o mundo. Dando a impressão de que tudo que nele havia era intoleravelmente maravilhoso (...)” (KINCAID, 1994, p. 6). Para a protagonista, o núcleo familiar americano ou o que se estabelece como tradição através desse núcleo tornou-se emblema representativo, a “confirmação” de um espaço idealizado como necessidade pelo “estilo” de vida americano sugerir-se agenciador de uma possível mudança ao proporcionar o distanciamento de vínculos afetivos e culturais indesejáveis e insuficientes de sua realidade-origem e capaz de estimular um novo projeto de vida. Em verdade, uma oportunidade de redimensionar as condições de sobrevivência de acordo com os seus anseios como projeto e promessa de felicidade. No entanto, uma felicidade que dependeria, para legitimar-se e tornar-se real, da negociação entre as expectativas da imaginação de Lucy e as prerrogativas e condicionamentos da nova realidade deslocada. A tensão, o choque na tentativa de negociar as realidades envolvidas e firmar a “ontologia do sujeito” (Heidegger, 2009) fundamentam a representação imaginária de Lucy e literária de Kincaid. O curioso é que na casa onde Lucy trabalhava não havia indícios suficientemente capazes de justificar e sustentar as prerrogativas de um projeto de migração como felicidade. Pois, a família americana para quem Lucy passou a trabalhar era um exemplo comum de rotinas e dificuldades previsíveis e não o resultado de uma realidade idealizada por alguém. No entanto, para Lucy, as possibilidades de escolhas disponibilizadas pela organização social americana como cultura e o “suporte afetivo” da família para quem trabalhava 158 Itinerários do imaginário contemporâneo apresentavam-se como alternativa “feliz” porque eram capazes de suprimir as memórias de seu passado e viabilizar, enfim, seus anseios como projeto felicidade, transmutando uma perspectiva de futuro que antes se mostrava insuficiente em sua locação de origem para uma cômoda realidade presente do ponto de vista material de um porvir parcialmente materializado. Em Nova Iorque, era como se Lucy estivesse no lugar “certo” para viabilizar seus anseios. Mas, até que ponto a “nova realidade” experenciada correspondia a uma realidade idealizada? Como, por exemplo, situar Lucy em uma outra família se a mesma era ali uma filha sem mãe; uma irmã sem irmãos; uma empregada com carisma suficiente para agradar e servir os que por ela pagavam um salário e alguns dias de folga por mês? Como se reconhecer e ser reconhecida em um espaço tão díspar, de hábitos e valores tão distintos? Como viabilizar seus sonhos se o que poderia ser compreendido ali como sonho Lucy poderia ter uma compreensão diferente? A partir desse “estranhamento” como incerteza evidenciaram-se na protagonista lembranças de sua origem e passado que passaram a identificar a sua antiga realidade como “porto-seguro”, proteção diante das diferenças e “estranhamentos” que ameaçavam seu projeto de felicidade. Ao mesmo tempo eram memórias que Lucy tentava evitar porque elas poderiam significar o retorno das relações e experiências mal-sucedidas em sua origem e passado. As memórias poderiam atuar como “fantasmas” em sua rotina e comprometer seu projeto de felicidade. Porém, onde e como acomodar suas memórias, seu passado e seu presente? Ainda que seja certo que a solidariedade ética para com a parte submergida da experiência das pessoas passe por testemunhar os destroços das histórias e da representação, mediante linguagens suficientemente fiéis à dramaticidade dos sentidos, as marcas destas linguagens devem se trançar com narrativas em curso, para que novas constelações flutuantes consigam recombinar a memória, não 159 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 apenas temporalmente, mas também espacialmente, outorgando mutabilidade crítica a uma lembrança do passado que convida a se projetar em novas montagens de vida, em novas poéticas e políticas da experiência e da subjetividade (RICHARD, 2002, p.195). Como conciliar uma vida e duas realidades, dois mundos tão diversos em prol de um projeto de felicidade que aos poucos se deixava perceber como impressão fugaz? Como entender e conciliar esses lugares e conflitos por vezes tão incompreensíveis e inconciliáveis? As conseqüências são evidentes na voz da protagonista: “Estava à época no auge da minha ambigüidade ou seja, por fora parecia uma coisa, por dentro outra; por fora falsa, por dentro verdadeira” (KINCAID, 1994, p. 9). Diante disso, como poderia Lucy entender e zelar por um sonho que gradualmente se dissolvia em um espaço que não poderia ser reconhecido como sonho por ser apenas uma realidade distinta? Ao mesmo tempo, o que poderia ser estabelecido como parâmetro de realidade para Lucy? Onde situá-la: no delírio de um espaço idealizado possível apenas em devaneios ou na realidade do que se apresenta como espaço “necessário” e estrangeiro? Na negação de um passado? Na afirmação de um projeto-presente como porvir? É justamente nesses questionamentos, que situam Lucy entre um passado indesejado, um presente conflitante e uma condição otimista, porém, incerta do porvir que gerou na mesma o desconforto de não poder localizar-se e definir-se como ser-presente, resultando em uma realidade e identidade constituída por relações binárias: invenção/ realidade; lembrança/esquecimento; ausência/presença articulandose como vias que se indeterminam a partir da idéia de “conciliação” com a alteridade. É através dessas circunstâncias que Lucy se (in) define como indivíduo e afirma uma (nova) realidade e condição. Como as culturas entram em contato por meio dos homens o choque ou a assimilação cultural se faz sempre no seio de um território, a nação, a cidade, o bairro. Dentro desse quadro, o conceito de memória tornase fundamental para a análise, pois, sabemos que as trocas se fazem 160 Itinerários do imaginário contemporâneo em detrimento do grupo que parte, para se implantar, em condições adversas, em terras estranhas (...). A lembrança é possível porque o grupo existe, o esquecimento decorre de seu desmembramento. Entretanto, para ser vivificada, a memória necessita de uma referência territorial, ela se atualiza no espaço envolvente. (ORTIZ, 2003, p.75) Mas objetivamente o que lhe causara dispersão? Uma origem? Um destino? Uma imaginação? Um desejo? Necessidades? É possível que tudo ao mesmo tempo porque “tudo que estava experimentando – andar de elevador, estar num apartamento, comer comida da véspera guardada numa geladeira – eram tão boas que dava para imaginar que me acostumara sempre com tudo isso” (KINCAID, 1994, p.2). Justifica-se: “This transmigration is the form taken by a colonial desire, whose a#ractions and fantasies were no doubt complicit with colonialism itself” (YOUNG, 1995, p. 3). Trata-se de uma situação que foge do controle do indivíduo. Ele assim age porque naturalmente sente a necessidade de melhorias nas suas condições de vida, reconhecendo que a realidade de origem lhe é insuficiente para garantir as condições mínimas de sua sobrevivência. Nota-se, assim, que Lucy apenas reivindica um direito universal e inalienável que se mostra distante da sociedade a que pertencia. Entretanto a motivação material obscurece insuficiências de ordem subjetivas que também motivam e fundamentam o projeto de deslocamento da personagem. É comum observarmos estudos que fundam razões para o empreendimento de um projeto de deslocamento que circunstancializam insuficiências sociais, culturais, econômicas e ignoram a falência das estruturas emocionais que também fundamentam os mesmos projetos de deslocamentos. O curioso é que esse espaço ideal de sobrevivência torna-se possível apenas através da imaginação, porém, uma imaginação que se apresenta como idéia insuficiente para viabilizar o projeto de deslocamento de Lucy como felicidade, pois, não apreende a complexidade dos mecanismos de funcionamento que sistematizam outra organização social, real. Ao 161 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 invés de compreender os mecanismos que fundamentam um sistema real Lucy o desvirtua de sua natureza estrutural localizando-o no plano do impossível idealizando-o. Desse modo, como estabelecer um projeto de migração se se desconhece as condições que fundamentam a realidade de seu destino, um espaço que se apresenta real mas idealizado? É desse modo que a imaginação apresenta-se insuficiente na fundamentação do projeto de deslocamento de Lucy por fazê-la distanciar-se da realidade que se sustenta. Desse modo, a questão substancialmente repercute no fato da protagonista ter imaginado uma realidade porvir enquanto negou uma realidade presente e passada. Como conciliar imaginação e realidade nessas circunstâncias? No entanto, para a protagonista, essa idealização, apesar de inconciliável com o que se apresenta como realidade torna-se “acessível” como “lugar-feliz” por mobilizá-la a não permanecer no lugar insatisfatório de sua origem, garantindo-lhe as condições mínimas de estabilidade como fora almejado e fundamentando seu projeto de deslocamento. Entretanto, a felicidade seria viável tão somente no plano da idealidade. Porém, um risco: o convívio com esse espaço poderia ser relevante como sobrevivência espiritual e material mas também perigoso se compreendido como a possibilidade de construção de uma “nova origem” que estaria comprometida tão somente com a tentativa de suprimir particularidades genuínas e insuficientes de uma cultura, um outro espaço social, legitimado e apto, uma espécie de “Paraíso” capaz de cooptar indivíduos em detrimentos de sua subjetividade, necessidade, sonhos e anulando identidades; uma espécie de ilusão da geopolítica que se faz recorrente na Literatura do Caribe numa poética e preocupação contemporânea. As conseqüências disso podem provocar no imigrante uma dificuldade de situar-se entre um espaço insuficiente e outro idealizado como “perfeição” , desvirtuando-se como sujeito. É a impossibilidade de reivindicar uma origem para o Eu dentro de uma tradição de representação que concebe a identidade como satisfação de um objeto de visão totalizante. Ao romper a estabilidade 162 Itinerários do imaginário contemporâneo do ego, expressa na equivalência entre imagem e identidade, a arte secreta da invisibilidade da qual fala a poeta migrante quando muda os próprios termos de percepção da pessoa (BHABHA, 1998, p. 75) Essa instabilidade sugere ao sujeito que se desloca a ciência de que seu projeto de migração funda-se falho por colocar em xeque o desejo que o mobiliza, por tratar-se de um projeto possível tão-somente na imaginação. A necessidade de adaptar-se a um mundo desconhecido e distante do imaginado compromete e dilui a idéia de perfectibilidade e viabilidade por meio da percepção do que une o real e imaginário: “Agora que vira esses lugares, pareciam comuns, sujos, gastos tantas eram as pessoas que entravam e saíam deles na vida real que me ocorreu que eu não seria a única pessoa no mundo para quem isso tudo seriam temas de devaneio” (KINCAID, 1994, p. 1). O espaço idealizado aos poucos se desfaz e as conseqüências dessa desconstrução revertem a instabilidade do sujeito em uma consciência crítica capaz de redimensionar uma nova razão de sobrevivência. Talvez possamos chamar o despertar dessa nova consciência maturidade. É a partir dessa consciência que Lucy percebe que o espaço idealizado trata-se apenas de um espaço conveniente às suas necessidades; uma possibilidade de viabilizar seus anseios que antes eram “impossíveis” em sua locação de origem embora ainda repercuta como projeto de felicidade. No entanto, um projeto onde agora seriam visíveis as diferenças e impossibilidades de uma realidade comum que, apesar de deixar de ser concebido como imaginação, ainda apresente melhores condições para sobrevivência, graças a maturidade da experiência, percepção e consciência de vida. A emergência do sujeito humano como social e psiquicamente legitimado depende da negação de uma narrativa originária de realização ou de uma coincidência imaginária entre interesse ou instinto individual. Essas identidades binárias, bipartidas, funcionam em uma espécie de reflexo narcíseo do Um no Outro, confrontados na linguagem do desejo pelo processo psicanalítico de identificação. Para 163 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 a identificação, a identidade nunca é uma a priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de acesso a uma imagem da totalidade (BHABHA, 1998, p. 85) Isso fica evidente quando, a partir das fragilidades da família para quem trabalhava e de outras relações pessoais estabelecidas Lucy questiona o seu mundo idealizado. “Será que as pessoas em sua condição – ricas, bem instaladas, belas, com o melhor que o mundo tinha a oferecer ao alcance da mão – não conseguiam viver sãs?” (KINCAID, 1994, p. 45). Um questionamento compreensível já que o seu projeto de felicidade e deslocamento não apenas se fundamentava no acesso a possibilidades materiais, mas também afetivas, que não eram possíveis em seu local de origem. E continua: (...) via um sofá, duas cadeiras e uma parede de livros. Que luxo, pensei, ter uma sala vazia em casa, uma sala de que ninguém realmente precisa. E não é isso que todos no mundo deveriam ter – mais do que precisam ter? não era uma pergunta que fizesse a Mariah, pois, Ela pensava exatamente o contrário. Tinha tudo em excesso, por isso ansiava por ter menos. Menos, tinha certeza, lhe traria felicidade. Para mim era uma piada e um alívio observar a infelicidade que o excesso pode trazer; me habituara tanto a observar os resultados da carência. (KINCAID, 1994, p. 46) Lucy, em Nova Iorque, consegue sua autonomia, sua independência, concretiza, de certa maneira, o seu projeto de felicidade, ao menos do ponto de vista material. Consegue, enfim, alugar uma casa, ter um trabalho melhor remunerado e a liberdade de fazer, realmente, o que desejava. Uma condição idealizada que, por muito tempo, pensara ser suficiente. No entanto, tudo isso lhe parecia agora melancólico, vazio, por constatar que a realidade antes não fora promessa de felicidade. Nesse momento as razões afetivas ganham outra dimensão: tão importante quanto a dimensão material que tivera antes. Inclusive, a consciência de que o que a motivara como projeto não estava relacionado, de fato, com questões materiais de sobrevivência. Vejamos como isso se apresenta na narrativa, quando Lucy vai a um Museu, quando lembrou da Mãe e aos que estariam vinculados a seu passado afetivo negado e que impulsionou o estabelecimento de seu projeto de migração. 164 Itinerários do imaginário contemporâneo (...) tinha querido que visse quadros pintados por um homem, um francês, que atravessava meio mundo para ir viver em um lugar e pintara quadro de pessoas que encontrou por lá. Fora banqueiro e vivia uma vida confortável com a esposa e os filhos, mas isso não o fazia feliz; por fim ele os abandonaria e fora pra outro mundo, onde se sentiu mais feliz – não sei era a intenção de Mariah, mas imediatamente me identifiquei com os anseios desse homem; compreendia que alguém achasse o lugar onde nascera uma prisão insuportável e quisesse algo completamente diferente daquilo que lhe era familiar, mesmo sabendo que ele representa um porto seguro. Pusme a imaginar os detalhes de seu desespero, pois sentia que me consolaria conhecer. Naturalmente sua vida podia ser encontrada nas páginas de um livro; começara a reparar que as vidas dos homens sempre são. Era descrito como um homem que se rebelou contra a ordem estabelecida por achá-la corrompida; e embora estivesse destinado a fracassar – morreu ainda jovem – trazia em torno de si a aura de herói. Eu não era homem; era uma moça nascida nos confins do mundo, e quando parti da minha terra atirava sobre os ombros o meu manto de serviçal (KINCAID, 1994, p. 50) Com isso, Lucy, enfim, percebe que para construir uma nova realidade não precisaria desconstruir uma realidade anterior. Percebe ainda que não consegue romper com seu passado, pois, enquanto houvesse memória haveria um passado e uma relação afetiva com o que foi vivido. Mais: enquanto houvesse passado haveria amor por razões que não saberia explicar. Por isso, até que ponto seria legítimo o desejo de ruptura com seu passado? Lucy percebe, definitivamente aos poucos que, a aquisição de melhores condições materiais em sua sobrevivência não era suficiente para estabelecer/manter um projeto de felicidade. Havia outras questões que motivariam a sua felicidade. O amor poderia ser reconhecido como uma delas já que a mobilizara e estaria presente onde quer que estivesse. O amor que foi impossibilitado em suas relações anteriores, em seu local de origem, por não ser conivente com seus anseios de necessidade e liberdade e que em Nova Iorque poderia ser possível porém, Lucy descobriu que Nova Iorque não passou da extensão de ausências afetivas que continuavam a ser sentidas. Por isso, sua vida não era uma “nova vida” como imaginara e sim, a continuidade de uma antiga, também 165 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011 ausente do amor. Felicidade e infelicidade independeria de espaços. Os sonhos, presentes na imaginação de cada individuo representam a força mobilizadora que tornam possíveis realidades e transformações no mundo sensível, em todo espaço e qualquer realidade, e constituem a idéia de progresso e desenvolvimento. O ser humano é responsável por reparar e construir realidades. Mas não se deve esperar que as realidades constituídas sejam motivos suficientes para reparar e construir realidades interiores ou sonhos do indivíduo, como fez Lucy. A imaginação é para a sociedade o que os sonhos são para os indivíduos. Em toda utopia, trabalho artístico, fantasia religiosa e ritual mágico, a sociedade fala de seus sentimentos ocultos. Fala de suas frustrações e aspirações, e ainda desvela os seus anseios reprimidos, os quais não podem ser articulados em linguagem comum. Como os sonhos, à primeira vista parecem sem sentido. Tentando chegar-se aos seus significados por meio da lógica do senso comum, tudo o que se consegue obter é a falta de sentido (ALVES, 1986, p. 87) Um dia, ao encontrar-se sozinha em casa, em sua nova e almejada vida, independente e madura, ao encontrar a folha de um caderno em branco escreve: “(...) gostaria de ser capaz de amar alguém a ponto de morrer de amor” (KINCAID, 1994, p. 89), razão imprescindível de estabelecer um projeto de migração como felicidade que foi ocultado pelo equívoco de pensar que a necessidade espiritual do amor poderia ser substituída ou ocultada por aquisições ou transposições materiais. Referências ______. Culturas, Contextos e Contemporaneidade. IN: Revisões Culturais: entrelugares, diferenças e identidades-em-processo. Seminário ABRALIC Norte/ Nordeste (Anais). Maceió: Universidade Federal de Alagoas (UFAL); Salvador: Universidade Federal da Bahia (UFBA): EDUFBA, 1999. pp. 417-427. ALVES, Rubem. A Gestação do Futuro. Campinas: Papirus, 1986. 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Nossa pesquisa tenta se enquadrar na perspectiva de disputa de hegemonia, como no caso dos anos pré-golpe militar e depois os anos de manutenção e fortalecimento da nova hegemonia construída. Ainda, inscrevemos nosso trabalho, no campo da História Comparada, que traz um aporte metodológico harmônico com os nossos objetivos. Palavras–Chave: IPÊS/IBAD, AERP, Propaganda Resumen: Este artículo tiene como objetivo hacer una comparación entre dos momentos distintos de la História de Brasil, los anõs de instabilidad que van desde los años 1961-1963 hasta los anõs del “milagro brasileño” 1969-1974. El propósito de nuestra comparación es mostrar, en un primer momento, como la propaganda, hecha por medio del complejo IPÊS/ IBAD, ejerce influyéncia en el poder del Estado, creando una sociedad con aires de necessidad de lucha por el poder como siendo el único modo 1 Universidade Federal Do Mato Grosso do Sul, mestre pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Estadual de Maringá (Linha de Pesquisa: Política e Movimentos Sociais). E-mail: [email protected]. 169 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011 de mantener las instituiciones democráticas. En un segundo momento, la propaganda hecha por medio de la AERP, con intención de dar sutentación y legitimidad a los goviernos militares, con claros propósitos de crear un concesno y la sensación de pertenecimiento en el Primer Mundo. Nuestra investigación intenta ajustarse en la perspectiva de conflicto de hegemonía, como en el caso de los años antes del golpe militar y depués los años de mantenimiento y fortalecimiento da le nueva hegemonía. Además, inscribimos nuestro trabajo, en el campo de la História Comparada, que trae un aporte metológico armónico con nuestros objetivos. Palabras Claves: IPÊS/IBAD, AERP, Propaganda Introdução Nosso objetivo é analisar como a propaganda, em um determinando momento, desestabiliza o Estado e como pode auxiliá-lo a obter legitimidade, em outro. Para cumprir tal objetivo, nossa análise será pautada pela utilização do método da História Comparada. Após uma apresentação desta modalidade de prática historiográfica, será feita uma comparação entre a propaganda utilizada pelos militares, via AERP, e a propaganda exercida pelo IPÊS/IBAD, no contexto pré-golpe. Os usos dos métodos presentes dentro desse modelo têm uma função importante na medida em que ajuda a superar os modelos tradicionais de se construir a História, sobretudo aglutinando novos olhares ao trabalho do historiador. O uso da comparação cresceu logo após a segunda guerra mundial, como maneira de afastar o olhar eurocêntrico, marca da historiografia antes das duas guerras. Outro ponto importante é oferecer uma resposta aos nacionalismos exacerbados, já que essa maneira de fazer História, obrigatoriamente, necessita de dois, ou mais, pontos de partida para que se possam estabelecer comparações frutíferas. 170 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 A História Comparada trabalha com fenômenos diferentes, porém, com um horizonte de ajuda entre ambos. A ideia central é fazer com que esses fenômenos iluminem uns aos outros e buscar nesses contrapontos diferenças, rupturas, sequências e origens. Segundo BARROS (2007) a tipologia de História Comparada traçada por Charles Tilly, especialista em sociologia histórica, traz grandes evoluções para os estudos nesse campo, porque contribui para ampliar o conhecimento do historiador, ao observar e aproximar realidades históricas diferentes. O autor traça quatro tipologias para a comparação: A Individualizadora, que busca encontar as singularidades em cada caso, a diferenciadora, cujo objetivo é parecido ao da anterior, mas tem em mente a busca de diferenças em cada caso, a abordagem universalizadora, que tem como intuito encontrar partes comuns em todos os casos estudados e, por fim, a abordagem globalizadora que busca a construção de sistemas gerais comuns a todas as sociedades. Embora o uso da História comparada forneça novos elementos para o historiador, são necessários alguns cuidados durante o percurso da pesquisa (THEML e BUSTAMANTE, 2003), o principal deles: a chamada “ilusão sincrônica” (BARROS, 2007), onde tem se a ilusão de construção de sociedades estáticas e imobilizadas no tempo e no espaço, esquecendo-se do dinamismo próprio de seu tempo. A História Comparada, embora nos últimos anos tenha crescido dentro dos programas de pós-graduação, teve uma trajetória mais lenta do que à dos programas mais “tradicionais”, porém agora ganha fôlego cada vez maior para quem busca um conhecimento plural, desvinculado de paradigmas eurocêntricos e com um horizonte maior de resultados. Feito essa sumária apresentação iremos a parte prática de nosso artigo. 171 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011 O complexo IPES/IBAD e a propaganda contra João Goulart O IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) tinha uma larga estrutura patrocinada pelas elites brasileiras, passando pelos círculos industriais até os latifundiários, com sedes no Rio de Janeiro e São Paulo. Embora o IPES atuasse em várias “instâncias”, sua função principal era elaborar propostas para a resolução da crise econômica instalada no início dos anos 1960. O IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), declaradamente uma organização anticomunista, segundo DREIFUSS (1981), era quem divulgava para a sociedade as alternativas propostas pelo IPES de diversas maneiras, tais como, palestras, seminários e propaganda anticomunista. O complexo IPES/IBAD tinha subseções que atuavam diretamente na construção de uma opinião pública favorável aos seus princípios, destacamos aqui o GOP (Grupo de Opinião Pública). Viabilizados por essas subseções, um bombardeio políticoideológico foi disparado na sociedade contra o poder Executivo durante os anos de 1961- 1964, através da imprensa escrita, radiofônica e audiovisual. A ideia era a construção de um “clima” propício para que uma intervenção militar se fizesse necessária para assegurar a soberania nacional (contra o comunismo soviético), manutenção das instituições do país e que contasse com o apoio da sociedade, sobretudo da classe média. Nos setores militares, as propagandas tinham um tom específico. A mudança em direção a uma república trabalhista iria destruir a hierarquia militar e, em seguida, as próprias instituições da nação rumo ao regime comunista. A agência de publicidade ligada ao complexo IPES/IBAD, a Promotion S/A, patrocinou vários programas veiculados na TV e 172 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 retransmitidos por várias estações radiofônicas, somando um total de 140 milhões de cruzeiros a quantia total gasta com propaganda. Outro grande aliado era a ABA (Associação Brasileira de Anunciantes), fundada em 1959 pelos treze principais anunciantes2, com a função de proteger seus membros e discutir assuntos relacionados à publicidade e à promoção de vendas. Todos os treze membros, e seus futuros participantes, eram contribuintes diretos do IPES e seus diretores ocupavam cargos executivos no grupo. De maneira mais específica, trataremos agora dos filmes/ propagandas do complexo IPES/IBAD. O catálogo disponível para acesso lista um total de 15 filmes3. Esses filmes/propagandas tinham um grande alcance na população, tendo em vista o aparato logístico disponível para sua execução, feita nos mais variados lugares: em cinemas, “cinemas volantes” e dentro dos quartéis. Segundo ASSIS (2001), a principal função dessas propagandas era desestabilizar o governo Goulart, sobretudo entre os militares. É notável que alguns filmes tinham o intuito de motivar a população para ir as ruas protestar contra o Presidente e até manifestar apoio em sua derrubada. No filme “O Brasil precisa de você”, por exemplo, existe um claro chamamento da população para a união contra os subversivos, comunistas e agitadores em defesa da democracia como causa maior. Nesse filme são colocadas lado a lado figuras que eram ideologicamente opostas, como Hitler e Mussolini. Outras categorias de filmes foram feitos diretamente para classes de trabalhadores específicos: “História de um maquinista”, “A vida 2 Para a lista completa ver René Armand Dreyfuss: 1964: Conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes,1981, p. 249. 3 Todos os filmes citados neste artigo estão presentes no “Catálogo de filme do fundo IPÊS” no Arquivo Nacional, localizado no Rio de Janeiro, Ano: 2000. 173 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011 marítima” e “Portos paralíticos”, esses filmes mesclam um ataque às condições de trabalho da época, com portos depreciados e a defesa de melhores salários por parte do sindicato das categorias. Para um ataque mais direto ao governo visto com tendências comunistas, o Instituto lançou alguns filmes que instigam a população a lutar pela manutenção da democracia, apoiada em bases liberais e ligadas ao capital estrangeiro. São eles: “Depende de mim”, “A boa empresa”, “Uma economia estrangulada”, “Criando homens livres”. Nessa seção de filmes é notório o incentivo para que a população saísse as ruas, com cenas construídas a partir de várias categorias de trabalhadores, como no filme “Depende de mim”, focalizando o voto como arma para a defesa da legalidade e das tradições cristãs. Cabe dizer ainda, que toda a narrativa é permeada por imagens da invasão da Hungria pela URSS. Outros dois filmes, “A boa empresa” e “Uma economia estrangulada”, mostram a igreja como intermediária entre patrões e empregados, esta sendo uma solução para a manutenção dos valores morais cristãos e um aumento na produtividade, ainda é possível notar um apelo a modernização das frotas marítimas e uma maior racionalização da economia brasileira. Os últimos dois filmes, “O Ipês é o seguinte” e “O que é o Ipês”, são de caráter mais “informativo” e têm o objetivo de mostrar a população a função do instituto: a defesa da democracia, organização maior das instituições democráticas, críticas a quantidade exagerada de partidos e a sugestão de propostas para a estabilização da moeda, moralização governamental e a necessidade de ação por meio da mídia. O complexo IPES/IBAD ainda lançou um filme sobre os estudantes, “Deixem o estudante estudar”, no qual era previsto um maior aumento na qualidade do ensino e nas condições em que ele ocorria para que os estudantes se afastassem das agitações políticas. 174 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 Após essa análise sobre a produção do IPES, buscaremos agora entender um pouco sobre as criações da AERP, em um contexto mais avante, do final dos anos 1968 até os anos de 1974, e, por fim, estabelecer algumas comparações. A AERP Durante a ditadura militar uma agência pública era responsável pela propaganda pró – governo, a AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas) e tinha um caráter diferente dos órgãos de propaganda dos tempos de Getúlio (o DIP) e mais ainda dos tempos do nazismo e do fascismo. A criação dessa agência não ocorreu de forma linear, existia uma disputa interna no meio militar que poderia ser representada, basicamente, em duas linhas, os moderados e os da “linha dura”. Os militares moderados eram contra a criação do órgão, visto que um órgão de propaganda seria característico de governos ditatoriais, marca esta que os militares não queriam. A “linha dura” tinha como argumento a necessidade de mostrar a população os resultados do governo. Segundo FICO (1997), os militares da “linha – dura” venceram a disputa, e em 15 de novembro de 1968 foi criada a AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas), chefiada pelo coronel Hernani D´Aguiar e com a responsabilidade de divulgar as ações governamentais. Nos primeiros anos, a AERP procurou fatos que motivassem o “povo” (elementos como amor a pátria, coesão nacional, amor a família, foram utilizados para, segundo os diretores “motivar a vontade coletiva em prol do Brasil”) sugerindo, por exemplo: “a criação de um calendário anual do Executivo, assinalando fatos que pudessem provocar interesse público com ampla divulgação da mídia”. (FICO 1997, p. 93). 175 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011 Em Outubro de 1969, assume a chefia da AERP o Coronel Octávio Costa. Naquele momento ocorreu uma verdadeira profissionalização das produções e dos profissionais envolvidos, para alguns analistas como CAPARELLI (1982) as realizações da AERP inauguram a mais ampla propaganda de governo que já havia existido no Brasil. A construção dessa nova rede de comunicação social, como era chamada pelo general Presidente Costa e Silva, passava necessariamente pela nova chefia, a do Coronel Octávio Costa. Octávio Costa não compôs o perfil clássico dos oficiais militares do período. Para LIMA (1997), ele acreditava nos princípios que nortearam o movimento de 1964, ligado ao grupo moderado, era um grande apreciador de literatura, com uma excelente escrita além de uma grande habilidade para discursar, entendia que as campanhas e contestações contra o regime deveriam ser respondidas com campanhas que motivassem o sentimento de amor, participação e consciência patriótica. Um livro que reúne uma coletânea de artigos do coronel é lançado com o título “Mundo sem Hemisférios”. Dentro desses ensaios é possível encontrar um artigo que mostra bem o espírito que o coronel levara para a AERP: Minha pátria não é a ditadura fascista, nem a ditadura comunista, não é o militarismo, nem o caudilhismo, nem o cesarismo. Minha pátria é essa democracia plantada mais no coração dos homens que nas estufas políticas. É esse jeito de ser, essa vocação irreprimível de liberdade.4 Podemos ainda salientar que o sucesso da segunda fase da AERP ia ao encontro da cena econômica que o Brasil viveu a partir de 1969. O “milagre-brasileiro” estava em marcha, além da conquista do tri-campeonato mundial, em 1970, a expansão do crédito privado acelera a dispersão da televisão e ampliava o impacto na população da propaganda do governo. 4 COSTA, Octávio, “Mundo sem hemisférios”. Apud LIMA, 1998, p.86. 176 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 Naquele momento, existia um clima de euforia e de otimismo pairando sobre a nação e a AERP soube explorar e canalizar este clima para suas produções, intensificando campanhas publicitárias que incentivavam o civilismo, o nacionalismo e os “bons costumes”. Assim, os novos princípios que norteariam o trabalho da AERP, segundo FICO (1997), passavam por criar bases para uma leitura do país, permeada de otimismo com relação aos rumos econômicos do Brasil em contraposição ao pessimismo dos opositores do regime. As campanhas da AERP mostram essas metas, segundo LIMA (1997), podemos dividir sua produção em cinco grupos: a) apelo sentimental; b) exaltação da união; c) valorização; d) campanhas educativas; e) comemorativos de 1964. Os filmes ligados ao apelo sentimental mostram uma clara exploração de temas que suscitem o amor nas pessoas, a fraternidade e a solidariedade. O grupo de filmes, denominados aqui como exaltação da união, induzem a necessidade de somar esforços para a união da família, da nação, integração e comunitarismo. Na gama de filmes que compõem a valorização nota-se um grande apelo para o sentimento nacionalista com campanhas que incitam a valorização do Brasil, participação política, patrimônio nacional. O quarto grupo pode ser entendido como uma forma dos militares ensinarem a população de que maneira usar os serviços públicos e da normatização de comportamentos gerais. O último grupo de filmes tinha um caráter de propaganda política “mais tradicional”, já que apenas exaltava os “efeitos positivos” do movimento de 1964, como a construção das grandes obras e o crescimento econômico acelerado. As campanhas da AERP fizeram muito sucesso nesse período, favorecida pelo clima econômico e pelo otimismo que reinava no Brasil, a assessoria teve a capacidade de canalizar toda essa euforia em favor do governo, com propagandas de excelente qualidade 177 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011 e de muito bom gosto que até mesmo as agências de publicidade comerciais estavam modelando seus anúncios no mesmo tom para que pudessem ser mais bem vistos na sociedade. Conclusão Feito essas ponderações podemos passar a algumas conclusões. Comentaremos primeiro algumas diferenças, em seguida, alguns pontos em comum entre o IPÊS/IBAD e a AERP. Os dois tipos de propagandas escolhidos para comparação apresentam algumas diferenças importantes: as propagandas do IPÊS, feitas por Jean Mason, tinham um cunho mais agressivo (FICO, 1997), sua função específica era alarmar os diversos setores da sociedade brasileira, com destaque para os militares. As propagandas da AERP, por sua vez, trabalhavam num patamar mais ameno, mais suave, e, talvez, mais subliminar. Enquanto as propagandas do IPÊS mostravam imagens agressivas, como as de Hitler e Mussolini, além de invasões de exércitos soviéticos, revoluções, procurando gerar angústia na sociedade brasileira, as propagandas da AERP vinham no viés contrário, o da tranquilidade (tida como necessária pelos militares para o bom desenvolvimento da nação), de criar um clima de paz em meio ao contexto do AI-5, com filmes curtos, e geralmente sem identificação. É necessário ainda comentarmos uma diferença técnica, os filmes do IPÊS não tinham uma duração estabelecida, alguns são de 6 minutos, outros de 1 hora. Nos “filmetes” da AERP, a média era de 1 minuto, questão latente é, também, o financiamento, que pelo lado ipêsiano era vasto. Embora a AERP fosse um órgão ligado diretamente ao governo militar, seu orçamento era curto, Octavio Costa, chefe do órgão, não tinha todo aquele apoio logístico de setores do Palácio do Planalto, estes vendo seu trabalho como simplório e desnecessário. 178 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 Não podemos perder de vista o cenário político que cerca a produção dessas duas instâncias: no cenário pré-golpe (1961-1963), de extrema agitação das camadas nacionais, se fazia necessário o uso de propaganda agressiva para que a população sentisse um perigo iminente, no caso o comunismo. No segundo contexto, 1968/9 – 1974, embora a situação continuasse crítica, as propagandas da AERP, não queriam inflamar a sociedade, mas sim acalmá-la e até convencê-la de que o futuro do país estava sendo construído. Outro importante destaque deve ser feito com relação ao direcionamento das propagandas, no caso do IPÊS, as propagandas tinham a ideia de desestabilizar o governo instalado, criando um clima de tensão, para que a sociedade sentisse a necessidade de uma intervenção golpista. A AERP, por outro lado, direcionava as propagandas para um clima de consenso e de euforia com os resultados do “milagre brasileiro” e das conquistas esportivas. Embora as propagandas escolhidas aparentem apenas diferenças, podemos notar alguns pontos em comum entre elas. Mesmo existindo em contextos históricos diferentes, as propagandas revelam uma linha básica que, aparentemente, parece ser a mesma, embora explorada de maneiras díspares. Tanto o IPÊS, como a AERP, sempre utilizaram em suas produções o caráter nacionalista, participativo (Mais imponente no IPÊS e mais restritivo na AERP) e as duas alertavam para o sentimento nacional que a população deveria ter. O nacionalismo foi um fio condutor presente em todas as duas instâncias de produção de propagandas, claro, no caso do IPÊS, o nacionalismo contra o comunismo, na AERP, o nacionalismo cunhado pelos militares produziu o “milagre” brasileiro e nos levaria ao primeiro mundo. 179 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011 Outro ponto importante, seus idealizadores fizeram de tudo para que as propagandas circulassem nos meios de informação de maneira intensa, seja por meio de cinemas volantes (IPÊS), ou por meio de acordo com as transmissoras de televisão para a apresentação em horário nobre (AERP). Em nossa análise, o objetivo foi entender dois momentos diferentes da História do Brasil através da propaganda e mostrar algumas modificações ocorridas na sociedade brasileira. No decorrer do texto percebemos que existem muitas diferenças importantes entre os dois pontos escolhidos, essa é uma das funções da História Comparada, mostrar diferenças, explicando-as e ampliando o horizonte da pesquisa, mostrando permanências e continuidades. Referências ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: Edusc, 2005. ASSIS, Denise. Propaganda e cinema a serviço do golpe, 1962-1964. São Paulo: Mauad, 2001. BARROS, José D`Assunção. História Comparada: Um novo modo de ver e fazer a História.IN: Revista Eletrônica de História Comparada. Vol. 1, Nº 1 <h#p:// www.hcomparada.ifcs.ufrj.br/revistahc/artigos/volume001_artigo001.pdf> CAPARELLI, Sérgio. Televisão e capitalismo no Brasil. Porto Alegre: L&PM, 1982 DIAS, Reginaldo. Sob o signo da Revolução Brasileira: A experiência da Ação Popular no Paraná. Maringá, EDUEM, 2003. DREIFUSS, René Armand. 1964: Conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes,1981. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: Ditadura, propaganda e imaginação social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. 180 O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974 LIMA, Odair de Abreu. A tentação do consenso: O trabalho da AERP e o uso dos meios de comunicação como fontes de legitimação dos governos militares (1964 - 1974). 1997. 180 f. Dissertação (Mestrado História Social), PUC-Campinas, Campinas, 1997. OLIVEIRA, Carlos Fellipe. IPÊS E IBAD: A crise política da década de 60 e o advento do Golpe Civil-Militar de 1964. IN: Revista Eletrônica de História Comparada Vol. 4 Nº 4 – Dezembro de 2008 < h#p://www.hcomparada.ifcs. ufrj.br/revistahc/artigos/volume004_artigo005.pdf> SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. THEML, Neyde, BUSTAMENTE, Regina Maria da Cunha. História Comparada: Olhares Plurais. In: Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v.XXIX, n. 2, PP. 7-22, dezembro 2003. 181 Oralidade e memória: aromas exalados de “Pé-de-perfume” Andréia Maria da Silva Lopes1 Hadoock Ezequiel Araújo de Medeiros2 Márcia Rejane Brilhante Câmpelo3 Resumo: Os países africanos de Língua Portuguesa como Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe estão sendo visualizados por estudos de suas obras ficcionais. Desse modo, os escritos da autora santomense Olinda Beja evidencia o cenário particular de São Tomé e Príncipe, ressaltando a valoração da oralidade/escrita nesse contexto, assim como a consideração da sabedoria dos mais velhos e do conhecimento do jovem na mesma proporção. Portanto, nosso trabalho tem como objetivo fazer um estudo do conto “Pé-de-Perfume” (2005) da autora santomense, presente no livro de contos homônimo, analisando como se dá essa relação oralidade e escritura, que só é possível através do trabalho mnemônico. Palavras-Chave: Literatura Santomense, Olinda Beja, Oralidade, Memória Abstract: Country African of the Portuguese language as Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde and São Tomé e Príncipe there are being viewed by studies of their fictional works. This way, the writings of author Santomean Olinda Beja highlights the particular scenario of São Tomé e Príncipe, emphasizing the assessment of orality / writing in this context, as well as the consideration of the wisdom more older and of the knowledge of the young in the same proportion. Therefore, our work aims to make a study of the short story “Pé-de-Perfume” (2005) the Santomean author, in this storybook homonym, analyzing how is this relation between orality and writing, which is only possible through the work mnemonic. Keywords: Santomean Literature, Olinda Beja, Orality, Memory 1 Mestranda do Programa de pós-graduação em Linguagem e Ensino da UFCG. 2 Graduando em Letras pela UFRN, Campus de Currais Novos. 3 Graduanda em Letras pela UFRN, Campus de Currais Novos. 183 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 183 - 192 •jan./jun.2011 Introdução Os caminhos do Brasil e da África se cruzam desde os tempos do processo de colonização. Então, as contribuições da cultura africana são vistas na formação étnica brasileira, tendo sua representação nas danças, na culinária, na religião, nas artes etc. Essa interface Brasil/África é ressaltada com a lei 10639/03, que objetiva o estudo da história e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas brasileiras de todo e ensino básico, nas disciplinas de História, Educação Artística e Literatura. Nessa direção, muitos estudos produzidos no Brasil vêm adquirindo importância, principalmente, no tocante as literaturas africanas em Língua Portuguesa. As literaturas africanas dos países de língua portuguesa, como Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, são faladas hoje como literaturas que adquiriram traços próprios, e, que por isso, não podemos nos referir a todas essas criações como se fossem uma única literatura. Segundo Leite (1998) apud Ribeiro (2008), [...] processos literários de individualização nacional [...] não devem ser omitidos em detrimento de rótulos corriqueiramente adotados, como “literaturas africanas de língua portuguesa” ou “literaturas lusófonas”, que “levam a uma generalização do particular em favor de traços apenas comuns pelo uso de um mesmo instrumento lingüístico, e processos temáticos de contestação similares durante o período colonial” (RIBEIRO, 2008, p.95) A literatura de cada país africano, desde os tempos da préindependência aos tempos de hoje na pós-independência, vem se moldando face às singularidades de cada lugar, representando os seus costumes, as suas danças, os seus rituais, ressaltando um traço de singularidade, reafirmado pela língua autóctone que, muitas vezes, designa algo que não tem similar em nenhum outro lugar. 184 Oralidade e memória Mesmo sendo identificados traços que particularizam cada literatura dos países africanos em Língua Portuguesa, a relação oralidade e escritura é um aspecto que permeia toda a literatura desses países. Esse traço singulariza essas literaturas, pois diferente das criações no ocidente, esse entrecruzamento entre a oralidade e a escrita, coloca ambas numa relação de igualdade. Desse modo, muitos estudos se debruçam sobre as criações na oralidade e na escrita moçambicanas, angolanas e caboverdianas, dando menos ênfase a literatura da GuinéBissau e de São Tomé e Príncipe. Tentando suprir, em parte, esta lacuna, nos debruçaremos sobre a literatura santomense. Neste sentido, a literatura santomense, abarca em suas narrativas e poesias, a perpetuação de uma tradição, que vem na relação oralidade/escritura, onde a hierarquia entre passado, presente e futuro não existe, pois todos os tempos se equivalem. A identidade do povo santomense está nos escritos literários através da memória cultural; está nas suas lendas e mitos, nos seus rituais, nos costumes e danças; está nos cantares de revolta contra o colonizador e na sua afirmação identitária com a conservação da língua Forro, que sempre aparece em meio à portuguesa nos escritos literários. Alguns subgêneros na oralidade são recorrentes em São Tomé e Príncipe, como: as sóias4, as contágis5, os vessus6 e os poemas em Língua Forro. Muitas dessas criações são passadas para a escrita da 4 As sóias ou soyas são narrativas orais com um tom ficcional e, geralmente, são contadas à noite pelo Kontadô Soya. Essas narrativas são passadas de geração para geração, conservando a tradição santomense. 5 As contágis são narrativas orais com uma pretensão de verdade, pois geralmente são narradas a partir de um acontecimento real. Ao contrário das sóias, elas podem ser contadas todas as horas do dia. 6 Os vessus são os provérbios, que em São Tomé e Príncipe é um gênero literário. 185 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 183 - 192 •jan./jun.2011 mesma forma que são contadas pelo Kontadô Soya7 ou são recontadas e ficcionalizadas por autores contemporâneos. A literatura escrita de São Tomé e Príncipe passou por algumas fases que contemplam o período de Pré-independência até o período de Pós-independência, nas quais aparecem autores como Olinda Beja, que sempre canta as suas ilhas com imensa admiração. Portanto, nosso trabalho tem como objetivo fazer um estudo do conto “Pé-dePerfume” (2005) da autora santomense, presente no livro de contos homônimo, analisando como se dá essa relação oralidade e escritura. Olinda Beja e sua “Santomensidão” Maria Olinda Beja nasceu no arquipélago de São Tomé e Príncipe, na cidade de Guadalupe, mas aos dois anos de idade emigrou para Portugal, a terra de seu pai. Na Europa estudou e obteve Diploma Superior dos Altos Estudos Franceses da Alliance Française e, mais tarde, a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas. Olinda Beja é pesquisadora dedicando-se a escritura de contribuições sobre seu país em revistas e livros didáticos. As suas publicações aparecem no domínio da poesia e da prosa - são as obras poéticas - Bô Tendê?; Leve, Leve; No País de Tchiloli; Quebra-Mar; Água Crioula e Aromas de Cajamanga. No âmbito da prosa: A Pedra de Vila Nova; Pingos de Chuva; A ilha de Izuari; Pé- de- Perfume e 15 Dias de Regresso. Os cantares ao seu país de origem é percebido em toda a obra da autora Olinda Beja. Sua “santomensidão” como ela mesma se refere as suas ilhas, são arquipélagos que jorram chocolate em suas águas ou que têm em suas terras a planta nativa izaquente, que como reza a lenda, quem comer da fruta dessa árvore nunca deixará São Tomé e Príncipe. 7 O Kontadô Soya, equivalente ao Griot no restante dos países africanos de Língua Portuguesa, é um sábio respeitado por todos de seu clã. Ele é um contador de estórias que através de sua habilidade performática, a oralidade, o canto e a dança, perpetua a tradição para os mais novos. 186 Oralidade e memória Sendo assim, percebemos nos escritos de Olinda Beja um eterno regresso às suas origens, já que passou tantos anos sem ir às ilhas. Um regresso que é feito aos poucos com a redescoberta dos seus quatro sentidos deixados em suspenso por anos. Sendo assim, Olinda quando regressa se reencontra com seu falar de origem, com a escuta das canções e narrativas em Forro, com os cheiros e sabores da ilha do chocolate. O regresso de Olinda Beja, portanto, mais do que ficcionalizado e narrado no romance 15 Dias de Regresso (2007), pode ser visto em suas outras obras. Assim, o seu regresso é vivido aos poucos, mais intensamente. Nos aspectos textuais e estilísticos exalados de “Pé-de-Perfume” O livro Pé-de-Perfume (2005) de Olinda Beja é composto por 23 contos, recontos de Sóias santomenses. Em cada narrativa descobrimos um pouco mais de São Tomé e Príncipe, em suas várias nuances. Ao nos debruçarmos na leitura dos contos, a cultura santomense é vista em seus mais variados sabores e cheiros. A identidade do povo santomense se constitui no tecido da narrativa, pois durante toda a diegese vários elementos que definem a cultura das ilhas são postos aos olhos do leitor. O conto “Pé-de-Perfume”, nosso objeto de análise, traz alguns recursos que ilustram uma relação estreita entre a oralidade e escrita e alguns desses recursos só são possíveis através do trabalho mnemônico. Nesse sentido, caminharemos no rastro dos aspectos textuais e estilísticos exalados do conto “Pé-de-Perfume”. Apenas pela evocação do olfato com o cheiro da árvore pé-de-perfume8 a vida da personagem principal se modificará e elucidará como em vários países da África as coisas são resolvidas de forma simples, a partir da sabedoria popular. 8 A árvore pé-de-perfume, cientificamente chamada de Cananga Odorata ou mais popularmente conhecida como ylangue-ylangue, é uma planta de flores muito aromáticas usadas em perfumaria. 187 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 183 - 192 •jan./jun.2011 O conto “Pé-de-Perfume”, assim como todos os outros contos que compõem o livro é aberto por uma epígrafe constituída por um provérbio, escrito em Língua Forro santomense e traduzido em Língua Portuguesa. A inserção desses provérbios assume uma grande relevância para construirmos o sentido da narrativa, já que visitando a tradição santomense sabemos que esse gênero oral constitui um valor inestimável na perpetuação dos ensinamentos, pois um provérbio condensa toda uma sabedoria que se renova a cada vez que é proferido pela comunidade. Através do trabalho com a memória, se presentifica e se ressignifica a sabedoria percebida nos provérbios. Então, a autora no momento em que transpõe esse provérbio para a escrita cristaliza seu significado e esse cada vez que é lido perpetua o seu ensinamento, um traço característico da oralidade. Desse modo, o provérbio “Quem cá golo quadê cabeli”/ “Quem procura sempre alcança” anuncia e condensa o desfecho da narrativa, constituindose como uma chave de leitura para o conto. A relação oralidade e escrita é iniciada desde a abertura da narrativa, anunciando como os gêneros da oralidade permearão toda a estória. A inserção de palavras na Língua Forro santomense em meio à narrativa escrita em Língua Portuguesa também exemplifica uma afirmação identitária através dos aspectos que rodeiam a oralidade, já que a língua oficial de escrita é a língua do colonizador, no entanto, Olinda Beja traz para a sua narrativa a voz do povo santomense, como percebemos em algumas passagens do conto – “Mas... nem rumba, nem ússua, nem puíta lhe ofereceram o amor por que tanto suspirava”. (p.160); “Serviu Genebra, Cuca e Laurentina. D’jogó e izaquente.” (p.160) A utilização das duas línguas demonstra que as duas se equivalem, bem como há elementos da cultura santomense que outra língua não consegue traduzir ou encontrar equivalentes. 188 Oralidade e memória A narrativa, portanto, inicia com a apresentação em terceira pessoa de Baltazar Gógó, um tartarugueiro, que ao contrário de toda uma linhagem familiar que se dedicava ao mar, ele prefere tirar o seu sustento em terra firme. A sensibilidade artesanal da personagem é elucidada, pois a relação do artista com a sua arte vai muito além da necessidade econômica. Numa das primeiras passagens que caracterizam Baltazar Gógó identificamos esse sentido – Baltazar demorava dias, semanas, meses e às vezes até um ano, a retalhar, a desenhar, a aperfeiçoar. Mas quando os navios aportavam ao largo, ele sabia que alguém do outro lado do mundo, viria de propósito a Neves buscar-lhe a arte e a alma. (BEJA, 2005, p. 159) O conflito da personagem se instaura quando Baltazar Gógó decide “buscar mulher” (p.160), pois necessitava de um amor. No entanto, essa procura prolonga-se imensamente. A resolução para o seu problema foi os conselhos da sábia avó Domingas, que o recomenda a procura de um curandeiro. “Foi então que a avó Domingas lhe deu o mais sábio dos conselhos. Senhora de longa e experimentada vida entregou sempre o seu destino nas mãos de quem vê pelos olhos da noite”. (pp.160-161) O mais novo, presente, pois, necessita da sabedoria do mais velho, o passado, para a construção de um futuro. Nessa relação, os tempos se equivalem, pois não há uma hierarquia entre eles, o velho adquire a mesma importância do mais novo lhe cedendo sua sabedoria para a perpetuação de uma tradição. Isso ilustra que o papel que o velho assume é o de uma biblioteca viva. Para Bayer (2008), [...] o ancião constitui o depositário narrativo de um povo, que, por meio do processo mnemônico, preserva e propaga histórias ouvidas em todas as fases da vida. O velho não cumpre apenas o papel de divulgar e sedimentar os valores grupais, pois seu desempenho vincula-se à atuação do mais novo – criança ou jovem –, iniciando-o e colaborando para que ele tenha condições de desempenhar outras funções dentro da coletividade. Dessa forma, as atribuições exercidas 189 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 183 - 192 •jan./jun.2011 pelo velho e pelo novo representam os tempos passado e futuro, garantindo os lastros necessários à sustentação e à permanência da autoctonia. (BAYER, 2008, p.7) Na narrativa, os conselhos da velha Domingas abrem os caminhos para a resolução do conflito da personagem. A solução por meios não racionais, encontrada para o problema de Baltazar, ilustra mais uma característica marcante das tradições do país de São Tomé e Príncipe, bem como em toda a África. “Baltazar falou então com Candondô, o curandeiro que tocava a alma dos mortos no d’jambi de Morro Peixe. Candondô fez milongo, saltou, cantou.” (p.161) Como em um passe de mágica encontra-se a cura para a “enfermidade” da personagem – “Tudo se resumia a uma flor verde indiciada de amarelo e de secretos odores que teria de oferecer à amada.” (p.161) Baltazar Gógó encontra a flor da árvore chamada Pé-de-Perfume e depois disso Baltazar encanta todas as mulheres pelo seu perfume, passando a ser chamado pelo mesmo nome da flor, que lhe dera muitos amores. A solução do conflito se dá, portanto, por uma enigmática relação do homem com a natureza, um envolvimento respeitoso, já que esse é um costume recorrente na cultura popular dos países africanos, pois o mundo vegetal é visto com a mesma importância do mundo dos humanos. Os costumes africanos trazem com o nascimento de uma nova criança, a plantação de uma árvore ou esse novo ser ganha um nome de quaisquer elementos naturais. Então, esse elemento natural é uma extensão do homem. Nesse sentido, Baltazar é como se fosse o próprio Pé-de-Perfume exalando aromas por onde passa. Desse modo, Baltazar Gógó se confunde com o pé-de-perfume assumindo o cheiro característico dessa árvore. A partir da resolução do conflito da narrativa, Baltazar passa a plantar muitas árvores, muitos pés-de-perfume para curar as enfermidades dos outros, pois enquanto houvesse a árvore mágica nenhum coração padeceria solitário –“E plantou. No ôbô, no morro, na beira da estrada. Muitas muitas árvores. Tantas que nunca mais 190 Oralidade e memória na ilha, houve um coração a batucar sem ser correspondido”. A ação de Baltazar, então, não termina com o final da narrativa mais tem uma perpetuação, pois enxergamos uma continuidade, da mesma forma que acontece com a contação de uma lenda numa comunidade, à medida que se conta a estória ele se perpetua e nasce novamente. A mensagem principal passada pelo conto, portanto, tem um cunho de exemplaridade, já que como anuncia o provérbio “quem procura sempre alcança”. Dessa maneira, quando se têm iniciativa e paciência as coisas almejadas poderão ser alcançadas, mesmo que isso demande algum tempo. Considerações Finais A análise do conto “Pé-de-perfume”, de Olinda Beja (2005), possibilitou-nos perceber diversos aspectos característicos das culturas tradicionais africanas, dentre elas, merece destaque a relação de proximidade que há entre oralidade e escrita na literatura santomense, evidenciada pela utilização do provérbio que abre o conto, assim como as palavras em língua Forra, marcando assim uma valorização do idioma nativo, numa atitude de resistência. Outro ponto que precisa ser destacado, diz respeito às práticas culturais do povo santomense, presentes na narrativa em estudo. Assim, temos a valorização do mais velho, que não se opõe ao jovem, pois ambos caminham na mesma direção. Há também a valorização de recursos que extrapolam o racional na solução dos problemas cotidianos, atestando, dessa maneira, que a crença em elementos místicos também faz parte da constituição humana. Por fim, o conto joga luz sobre a questão do envolvimento do ser humano com a natureza, o que ocorre através da identificação da personagem com a árvore da qual assimila o nome. Esses aspectos, entre outros, atestam a qualidade estética da narrativa de Olinda 191 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 183 - 192 •jan./jun.2011 Beja, cuja sensibilidade permite abordar temas que primam pela conservação da memória coletiva de São Tomé e Príncipe. Em suma, cabe ressaltar a relevância de conhecer e estudar essas literaturas, tendo em vista a necessidade de, mediante o ensino, fortalecer o elo entre o Brasil e a África, relação que contribui e muito ainda tem a contribuir com a cultura brasileira. Referências _____. 15 Dias de Regresso. 3 ed. Coimbra: Pé de Página Editores. 2007. BAYER. Adriana Elisabete. Ao. Ao Pé-de-perfume, pássaros viajeiros. 2008. Disponível em: < h#p://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/04/ Artigos%20e%20Ensaios%20-%20Adriana%20Elisabete%20Bayer.pdf>. Acesso em: 07 de jun. 2010 (2008). BEJA, Olinda. Pé-de-Perfume. In: Pé-de-Perfume. 2 ed. Lisboa: Editorial Escritor Lda. 2005. p. 159-162. RIBEIRO, Giselle Rodrigues. Vida Escrita – Um breve olhar sobre o conto africano contemporâneo em língua portuguesa. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades. USP/São Paulo. Volume VII. Número XXVII. Out- Dez 2008.p. 93-103. 192 Singularidade cínica e enfrentamento: a coragem da verdade de Meursault em O estrangeiro Helano Jader Cavalcante Ribeiro1 1 Resumo: Este artigo pretende traçar uma análise entre o último curso de Michel Foucault Le courage de La vérité e o romance de Albert Camus O estrangeiro, mostrando como se dá a questão do discurso “verdadeiro” através de uma existência outra, uma existência bela, livre das convenções. Propomo-nos também a fazer a análise do personagem Meursault como uma singularidade segundo o conceito homônimo de Gilles Deleuze em seu livro A lógica do sentido, bem como através de seus interlocutores como o próprio Foucault. Palavras-chave: Coragem da verdade; O estrangeiro; Michel Foucault Abstract: This article seeks to draw a relationship between the last course of Michel Foucault, La courage de la vérité, and Albert Camus’ novel L’étranger, showing how is the question of real speech through an other existence, a beautiful existence, free from all conventions. We also propose to make the analysis of the main character Meursault as a singularity according to the homonymous concept of Gilles Deleuze in his book Logic of Sense, as well as through its partners Michel Foucault. Keywords: Courage of the truth; L’étranger; Michel Foucault Olhando fixamente para o mar 1 Mestrando em Teoria da Literatura pela UFSC, bolsista CNPq 193 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 Olhando fixamente par o sol Olhando fixamente para mim mesmo Refletindo nos olhos Do homem morto na praia Eu estou vivo Eu estou morto Eu sou um estrangeiro Matando um árabe (The Cure: Killing an Arab2) Se pudéssemos representar o homem do século XX na literatura, diante de todos os seus medos e angústias, diante da possibilidade de usar a “verdade” de seu discurso sem temer as consequências, teríamos o personagem Meursault do livro do escritor franco-argelino Albert Camus, que é, com Sartre, o escritor mais representativo do existencialismo francês. Camus lança O estrangeiro em 1942. Sartre o procura logo após ter lido o romance e aponta-o como um grande clássico da literatura francesa. Desenvolve o filósofo francês uma amizade com o escritor para rompê-la dez anos depois devido a conflitos ideológicos com a obra O homem revoltado3. Publicada em 1951, representou uma crítica aos regimes totalitários, atribuindo a eles culpa pela violência crescente da época. O homem revoltado trata da imposição da morte dada a outras pessoas. 2 Música da banda de rock inglês The Cure, composição baseada na obra de Albert Camus, O estrangeiro. Lançada em 1978 a música alcançou grande sucesso, não obstante a polêmica causada, já que a banda foi acusada de racista por tratar de um episódio em que alguém mata um árabe na praia. 3 O homem revoltado (em francês, L’homme révolté) é um ensaio filosófico escrito por Albert Camus. O livro analisa o conceito da Revolta de um ponto de vista histórico. Analisando suas características e seus desvirtuamentos. A revolta para Camus tem uma dupla significação. Não é apenas histórica (apesar do seu ensaio ser histórico, ou seja, analisa as manifestações históricas da revolta), a revolta encontra algo de irredutível à história. 194 Singularidade cínica e enfrentamento O estrangeiro é narrado em primeira pessoa através do protagonista Meursault, quem a crítica chamaria de “homem absurdo”. Segundo Fábio Barbosa e Aparecido Júnior (2010, p. 251-262): O absurdo remete a noções como a ausência de sentido, a inconformidade com as leis da coerência e da lógica. O termo é utilizado para designar textos que não possuem lógica interna e não obedecem a determinadas regras ou condições. Aqui, a desconstrução textual pode ser considerada uma tentativa de redução de um texto a um estado ad absurdum, isto é, a revelação das suas contradições internas e impossibilidades lógicas, quer sejam imanentes ao texto quer lhe sejam impostas. A literatura do absurdo, sob essa ótica, vale-se de uma série de características, nas quais encontramos a contraposição da idéia de vida individual e livre arbítrio. As decisões de um homem são seguidas de fatos aparentemente absurdos e irracionais, de modo que suas atitudes devem ser levadas até as últimas conseqüências. Na tradição racionalista da modernidade o homem é colocado no centro de tudo, é na literatura do absurdo que temos o seu despedaçamento, o afloramento de suas angústias e anseios. Na literatura do absurdo há um embate entre homem solitário e mundo sem sentido. Para Camus o absurdo sai da ótica do niilismo para chegar até ao ponto da revolta. O absurdo existe como uma forma de burlar os mecanismos de controle da própria modernidade, imposições da humanidade. O absurdo não representa a extrema falta de esperança, mas o contrário. O absurdo, na verdade, sempre foi motivo de indagações de Camus, que tentava compreendê-lo e combatê-lo. É este, pois, o ponto inicial do desenrolar dos questionamentos filosóficos em Camus, que recebe o título de existencialista, embora ele mesmo o contradiga, já que o autor afirma sua dedicação voltada aos temas do absurdo e da revolta. O Sr. Meursault (só é possível conhecer seu sobrenome) representa o homem que já não aposta mais no sentido do mundo e da ciência para seguir com sua existência, mas se lança à angustiosa promessa 195 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 sartreana de liberdade, pois é este o homem do século XX, aquele que sofre da exacerbação de subjetivismo, processo iniciado desde os primórdios da civilização moderna e dilacerado após as experiências das duas grandes guerras mundiais. O homem que se encontra só no mundo e livre depois da morte de Deus decretada pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Esse é um dos pontos principais de nossa discussão, que se inicia com a morte de Deus e a superação do homem pelo super-homem nietzschiano. O fim do homem e o início da era do super-homem, este ser com plena consciência de si, que busca o cuidado de si4 foucaultiano, para se ver livre dos aparelhos estatais de ordem, observação e punição, livre dos dispositivos5. É baseado no último curso de Michel Foucault Courage de la vérité6(1983-1984) que iremos seguir com nossa análise do personagem Meursault, de modo que possamos verificar que sua existência outra, livre das convenções sociais, representa uma forma bela de existência proposta pelo pensador francês. 4 O cuidado de si é uma forma de síntese, um ponto de conexão, entre a história da subjetividade e as formas de governabilidade. O exercício do cuidado de si está ligado a duas grandes zonas: ao poder e à governabilidade, ambos intrinsecamente ligados à ética. 5 Giorgio Agamben esclarece em seu livro O que é o contemporâneo? E outros ensaios (2006) a noção foucaultiana de dispositivo e diz: “chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das conseqüências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar” (AGAMBEN, 2009, p.41). 6 A coragem da verdade é seu último curso ministrado no Collège de France, cuja publicação se limita somente à língua francesa que abrange os estudos da noção de parrhesia. 196 Singularidade cínica e enfrentamento Há nos jogos de verdade, como nos jogos para cuidar-se e conhecerse7 o perigo de que, determinados sujeitos, procurem mostrar o que sabem, procurem conduzir outros sujeitos, buscando orientá-los, por meio de diferentes afetos, apresentando possibilidades para movimentar e vincular as pessoas entre si e visualizar no outro sua capacidade de pensar, decidir e participar, exercendo sua liberdade. A coragem da verdade deve se libertar de todas as formas de controle externas ao sujeito, e, através das várias práticas de exercícios de subjetivação propostos por Foucault é que podemos num ato transgressor fazer valer a verdade do sujeito, pois para que haja um sujeito, deve também haver verdade e esta deve ser alcançada longe das convenções. O dizer verdadeiro não deve ser jamais imposto pelas instituições de poder, mas sim, construídos pelo próprio sujeito: Nada é mais inconsistente do que um regime político indiferente à verdade; mas nada é mais perigoso do que um sistema político que pretende prescrever a verdade. A função do “dizer verdadeiro” não deve tomar forma de lei, como seria igualmente vão acreditar que ele consiste de pleno direito nos jogos espontâneos da comunicação. A tarefa do dizer verdadeiro é um trabalho interminável: respeitála em sua complexidade é uma obrigação que nenhum poder pode economizar. Exceto para impor o silêncio da escravidão (FOUCAULT, 2006, p. 251). Tal imposição da verdade ocorreu no século XX de forma paroxística por intermédio dos totalitarismos, em especial sob o comando do Nazismo. Por meio da imposição de um pensamento que correspondia à verdade hitlerista. Superar as convenções e substituí-las pelo desenvolvimento da própria subjetividade livre dos dispositivos é disto que nos fala Foucault. Meursault é a representação do homem na 7 O conceito de cuidado de si é um tema já tratado pela antiguidade clássica, desde Platão até os filósofos epicuristas e estoicos. O conceito de parrhesia implica no falar verdadeiro, ou dizer verdadeiro. 197 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 modernidade aprisionado pelos dispositivos impostos pela sociedade moderna, sua cruzada pela libertação do pensamento (presos aos dispositivos) também aponta para uma tentativa de ressurreição do sujeito. Grande parte do pensamento de Foucault foi voltado para a negação da noção de sujeito, pois para ele o sujeito existe para afirmar as relações de dominação e poder, podemos então dizer que o sujeito acaba por renascer dentro da lógica de combate foucaultiana, pois, a partir do momento em que negamos algo, damos-lhe a voz da existência de volta. Beatriz Sarlo em seu livro Tempo passado (2005) revela-nos ser esta uma tendência que floresceu depois do apogeu estruturalista nos anos 70: Quando essa guinada do pensamento contemporâneo parecia completamente estabelecida, há duas décadas, produziu-se no campo dos estudos da memória e da memória coletiva um movimento de restauração da primazia desses sujeitos expulsos durante os anos anteriores. Abriu-se um capítulo que poderia se chamar “O sujeito ressuscitado” (SARLO, 2008, p. 30). A aceitação dos relatos dos sobreviventes de Auschwitz, dandolhes credibilidade só corrobora a ideia de ressurreição do sujeito, a partir do momento em que a sua voz tem o poder jurídico de incriminar os algozes nazistas. O que restou de Auschwitz8 só pôde ser transmitido através dos judeus sobreviventes e dos soldados. Deles temos uma má testemunha de todo o ocorrido, já que não se encontravam livres do trauma experimentado e não vivenciaram as últimas conseqüências 8 Giorgio Agamben em seu livro O que resta de Auschwitz (1998) procura salientar a necessidade de se continuar narrando sobre Auschwitz principalmente a respeito daqueles que poderiam ter dado seu depoimento, mas que foram silenciados pela morte. 198 Singularidade cínica e enfrentamento assim como os muçulmanos9. Os relatos representam uma tentativa de libertação do sujeito até então silenciado. É nesse silenciar de vozes sufocadas que se dá a crise da produção narrativa, pois segundo o pensador alemão Walter Benjamin a sua fonte primeira era oriunda da oralidade. As histórias anteriormente contadas oralmente perdem com essa incapacidade do homem pósguerra de relatar o ocorrido. Sob a égide deste pensamento analisamos o personagem Meursault, como um silenciado, a representação de uma vítima do anseio nacional-socialista por destruição. Assim inicia seu relato Meursault: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem” (CAMUS, 1999, p.7). Meursault vai ao enterro de sua mãe e lá, ao contrário do que se esperava, não mostra nenhuma emoção, ou melhor, o que mostra é indiferença para com todos os trâmites relativos ao funeral de seu funeral. O personagem é posto à prova em várias situações, nas quais existe uma determinada expectativa por parte das pessoas em torno do enterro. Contudo, o que percebemos é um desarticular de tais expectativas em nome de sua verdade. Frédéric Gros (2004, p.11) nos fala disso ao analisar em seu livro sobre o curso de Foucault Le courage de la vérité, para quem a coragem da verdade é indissociável da ideia de discurso livre: “a parrhesia é a liberdade de linguagem, o dar a liberdade de falar, o falar francamente, a coragem da verdade”. Ao expor sua verdade, que vai 9 Os muçulmanos, no contexto da Segunda Guerra Mundial eram os seres quase abjetos que povoavam Auschwitz. Os muçulmanos eram considerados figuras pelo simples fato de que seus cadáveres pareciam com bonecos, já não possuíam aspectos que os caracterizassem como seres-humanos. A figura do Muselmann era uma espécie de morto-vivo, ou inumano e que dentro dos campos de concentração se encontravam em um estágio difícil de ser definido como ser - humano: “o muçulmano é um ser indefinido, no qual não só a humanidade e a não-humanidade, mas também a vida vegetativa e a de relação, a fisiologia e a ética, a medicina e a política, a vida e a morte transitam entre si sem solução de continuidade” (AGAMBEN, 2008, p. 56). Agamben os considera como as verdadeiras testemunhas, mas que foram silenciados pela morte, de modo que jamais poderíamos ter seu relato. 199 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 de encontro às convenções, Meursault está exercendo sua parrhesia. Ir ao cinema no dia do enterro da própria mãe é mais uma prova de desarticulação dos dispositivos ou das convenções existentes em nossa sociedade em nome de sua verdade10. A singularidade em Meursault é cínica. Os cínicos são apontados por Michel Foucault como aqueles que melhor souberam usar seu direito de parrhesia. A filosofia cínica tem como característica certa dureza no uso da fala, uma franqueza rude que se assemelha ao discurso de Meursault, o que torna seu modo de vida particular e único, do qual podemos extrair uma beleza singular. É através de sua coragem da verdade que o protagonista põe sua vida à prova, de forma escandalosa. Mas o que entender por verdade? Ou coragem? Desde os diálogos platônicos Laques e Alcebíades11 constatamos a relatividade destes dois vocábulos. A verdade como uma forma de provocação só será legitimada por Foucault depois de passar pelas seguintes formas de verificação: a verdade é o que não é oculto, o que não é dissimulado, mas é aparente. A verdade é o que é puro, sem alterações. A verdade é retilínea, mantém-se fiel em seu propósito. E por fim, a verdade é incorruptível e permanece idêntica a si mesma. Os cínicos, não obstante seus critérios outros de verdade, valiam-se de tais assertivas, mas de uma maneira transgressora. Fazem uma caricatura delas através de seu comportamento exagerado. Masturbar-se, por exemplo, em praça pública, surge como uma forma hiperbólica de exercer seu direito de verdade. Eles faziam suas necessidades físicas 10 Devemos ter muito cuidado com a palavra “verdade”. Interpretá-la em Foucault como “verdade cartesiana ou absoluta”seria subestimar o pensamento do autor francês. A coragem da verdade de Foucault nada mais é que a liberdade de assumir as idiossincrasias, mesmo que elas possam chocar. 11 Foucault diferencia os dois diágolos de forma que para ele no Alcebíades temos o cuidado de si determinado é guiado pela conduta da alma do sujeito. Trata-se, então, do conhecimento da alma. A outra linha deste pensamento vem representada através do diálogo Laques. Aqui o objeto do cuidado de si é a bios, a vida, segue através da vida aubmetida a regras do próprio sujeito, dá-se uma forma à própria existência. 200 Singularidade cínica e enfrentamento diante de todos simplesmente porque achavam que tais processos naturais dos seres vivos não precisavam ser escondidos dos olhos de todos. Sua verdade é de ruptura com as expectativas da sociedade: Parece-me que no cinismo, na prática cínica, a exigência de uma forma de vida extremamente caracterizada - com regras criações ou modas muito caracterizadas, muito bem definidas – está articulada muito fortemente sobre o princípio do dizer - verdadeiro, do dizer verdadeiro desavergonhado e sem temor, dizer-verdadeiro ilimitado e corajoso, do dizer-verdadeiro que empurra a sua coragem e sua ousadia até se tornar intolerável insolência. Esta articulação do dizerverdadeiro sobre o modo de vida, essa ligação fundamental, essencial no cinismo entre viver de uma certa maneira e dedicar-se ao dizer verdadeiro são tão mais notáveis quando se fazem, em certa medida, imediatamente, sem mediação doutrinal, ou, em todo caso, no interior de um quadro teórico bastante rudimentar12 (FOUCAULT, 2009, p.08). Meursault prossegue com uma vinda simples, sem objetivos, sem ambições, sem sobressaltos. É em sua vida simples e em seu discurso verdadeiro que identificamos o elemento cínico do personagem. Não menos ortodoxo é seu relacionamento com Marie, pois foge a todos os padrões e rompe com todas as expectativas da sociedade. Ao ser perguntado se ele gostaria de se casar com ela responde que “tanto fazia, mas se ela queria poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como, aliás, já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava” (CAMUS, 1999, p. 45). O personagem procura manter o equilíbrio necessário para continuar com sua existência, mas não consegue corresponder com as exigências da sociedade. Meursault pertence igualmente a essa força do pensamento que desarticula e não deixa de dizer. Ele é o representante de uma comunidade inoperante13, é uma figura que nem se fecha, nem 12 Tradução do prof. Dr. Pedro de Souza utilizada na disciplina “Vida e obra: retomada em torno do tema do estilo de existência”. Não há tradução do livro em português. 13 Jean-Luc Nancy diz que repensar a comunidade em termos distintos daqueles que, na sua origem cristã, religiosa, a tinham qualificado, repensá-la em termos do 201 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 deixa capturar sua singularidade. Leva seu pensamento através de caminhos sinuosos. Não somente o pensamento é força motriz, mas também o não-pensamento é potência. “I would prefer not to” do personagem Bartleby do escritor Herman Melville14, como exemplo do desarticular do outro através do não-pensamento, o que Gilles Deleuze em Crítica e clínica (1993) chama de fórmula. O advogado em Bartleby revela não encontrar nele nenhum traço humano, já que o protagonista não corresponde aos padrões comuns já determinados, principalmente, através da fala. Em “Bartleby, ou a fórmula”, Deleuze mostra que é esse o procedimento do personagem de Melville: A fórmula I WOULD PREFER NOT TO exclui qualquer alternativa e engole o que pretende conservar assim como descarta qualquer outra coisa; implica que Bartleby pára de copiar, isto é, de reproduzir palavras; cava uma zona de indeterminação que faz com que as palavras já não se distingam, produz o vazio da linguagem. Mas também desarticula todo ato de fala, ao mesmo tempo que faz de Bartleby um puro excluído, ao qual já nenhuma situação social pode ser atribuída (DELEUZE, 1997, p.85). A in-diferença é motor do acontecimento; a linguagem cria o evento, do mesmo modo que a não-linguagem. Na literatura podemos comum e a dificuldade de compreendê-lo em seu caráter não dado, não disponível e, nesse sentido, o menos comum do mundo. Mesmo a comunidade inoperante, como chama Nancy a partir de seus estudos de Bataille, com sua recusa dos Estados-nação, partidos, assembléias, povos companhias ou fraternidades, deixava intocado esse domínio do comum e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os fundamentalismos instrumentalizam crescentemente. A coragem da verdade de Meursault é que legitima e assegura sua singularidade em sua comunidade que enfrenta o comum. Tal pensamento se assemelha ao de Giorgio Agamben em seu livro A comunidade que vem quando este diz que essa comunidade é aquela que o Estado não pode tolerar. Uma singularidade qualquer que o recuse sem constituir uma cópia espelhada do próprio Estado em uma imagem que possa ser reconhecida nesse sistema. 14 Personagem de Bartleby, The Scrivener (traduzido para o português como Bartleby, o Escrivão – Uma História de Wall Street ou como Bartleby, O Escriturário), do estadunidense Herman Melville (1819-1891), publicado pela primeira vez em 1853. 202 Singularidade cínica e enfrentamento encontrar vários exemplos. Assim como o Bartleby de Melville temos também a personagem Macabéa do romance A hora da estrela,15 de Clarice Lispector em torno dessa mesma intrasitividade, o que a torna singular, do mesmo modo como o protagonista de O estrangeiro de Camus. Meursault paga com a própria vida pelo seu silêncio, pela sua indiferença, assim como Macabéa e Bartleby16. Através de sua verdade desliza-se entre o interlocutor. É dessa maneira uma singularidade. A morte do personagem Meursault é puro acontecimento. Segundo Michel Foucault, em relação à morte e ao acontecimento em seu “Theatrum Philosophicum”: “O acontecimento não é um estado de coisas que poderia servir de referente a uma proposição (o fato de estar morto é um estado de coisas em relação ao qual uma asserção pode ser verdadeira ou falsa; morrer é puro acontecimento que jamais verifica nada)” (FOUCAULT, 2000, p.236). Devemos, pois, pensar na morte como uma aliada do pensamento, do acontecimento, do fantasma, da diferença e da repetição. Sob esta dimensão é correto pensar a morte do personagem Meursault como puro acontecimento, um vislumbre. O estrangeiro é a representação da cada um de nós e sua coragem de verdade tem como preço sua própria vida. É na hora da nossa morte que o ser humano deixa de ser invisível às pessoas, que percebem que ele existe apenas quando já não existe mais. Toda morte é uma singularidade, um acontecimento. A morte de Meursault é um acontecimento, é, pois, uma singularidade. Deleuze em Crítica e clínica traduz a singularidade por originalidade e diz: 15 O romance de Clarice conta a história da datilógrafa alagoana Macabéa, que migra para o Rio de Janeiro, tendo sua rotina narrada por um escritor fictício \amado Rodrigo S.M. Macabéa recebe aqui uma leitura que a retira do lugar-comum de retirante e devolve-lhe sua singularidade. 16 Nos dois exemplos citados os dois personagens têm a morte como acontecimento. A morte é o acontecimento maior que cala, mas que assim como o silêncio de Bartleby ou a tolice de Macabéa é potência do pensamento. 203 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 Cada original é uma potente Figura solitária que extravasa qualquer forma explicável: lança flamejantes dardos-traços de expressão, que indicam a teimosia de um pensamento sem imagem, de uma questão sem resposta, de uma lógica extrema e sem racionalidade (DELEUZE, 1997, p. 95-96). A respeito de Meursault, vemos sua singularidade apenas pelo fato de ele existir, por estar lá. As convenções ou os dispositivos desarmam de início sua singularidade, procuram apagar sua identidade para torná-la nula. O singular representa uma figura marginal, fora das leis da sociedade pré-estabelecidas. Se a repetição é transgressão o fantasma gira em torno da repetição, pois de acordo com Foucault: “a metafísica do fantasma gira em torno do ateísmo e da transgressão” e conclui a respeito de Lógica do sentido. “Lógica do sentido nos diz como pensar o acontecimento e o fantasma” (FOUCAULT, 2008, p.234), ou seja, como pensar a singularidade, a diferença e a repetição, ou, simplesmente, como pensar. Para poder pensar é necessário transgredir, subverter. Em O estrangeiro, a transgressão que se dá através da coragem da verdade do protagonista é uma condição sine qua non da existência, essa busca pela repetição potencializada pela diferença. Quando a transgressão utiliza o discurso falado por todos os homens, como saída para o enfrentamento, contrai para si a mesma linguagem da lei. A resistência passiva e inoperante de Meursault vai além, porque desmonta a linguagem padrão, e é aí onde reside seu poder transgressor, subversivo, cínico. É o que nos ensina Deleuze em sua Lógica do sentido. Subverter o platonismo não quer dizer negá-lo, mas sim, apontar nele possibilidades que devem ser resgatadas e lidas de outra forma na modernidade, como por exemplo, a noção de simulacro. Deve-se, pois potencializar a noção de simulacro para poder resgatá-lo. A simulação nada mais é senão o próprio fantasma; o 204 Singularidade cínica e enfrentamento simulacro pertence às profundezas, o fantasma à superfície, efeito do funcionamento do simulacro. Nesse sentido, a reversão do platonismo é, então, na perspectiva de Deleuze, não simplesmente tornar o mundo sensível mais importante que as Idéias, mas a aceitação do simulacro, ou seja, é fazer com que ele afirme seus direitos entre as cópias. Este é, pois, nosso objetivo, resgatar a personagem Meursault de um mundo em que o comum impera, tornando-o singular, devolvendo-lhe sua condição humana, sensível. As últimas páginas mostram Meursault em paz consigo, não obstante sua condenação à pena de morte. Para ele fica bem clara sua impotência diante de um mundo regido por leis que lhe escapam muitas vezes à compreensão: “A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite soariam sirenes. Anunciavam partidas para um mundo que me era pra sempre indiferente” (CAMUS, 1999, p. 125-126). Referências ____________. “O cuidado com a verdade”. In: Ditos e escritos vol. V. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ____________. Courage de la vérité. Le gouvernement de soi et des autres II. Cours ao Collége de France, 1984. Seuil Gallimard, 2009. ____________. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pebart. São Paulo: Ed.34, 1997. ____________. Lógica do Sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1998. ____________. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Saccer III). Tradução de Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. 205 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011 BARBOSA, Fábio; JÚNIOR, Aparecido. “Representações do absurdo e da loucura em Marat/Sade, de Peter Weiss”. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição n. 41, 2010. CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. “Teatrum Philosophicum”. In: Ditos e escritos vol. II. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. GROS, Frédéric. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. 206 A escritura autobiografica de Clarice Lispector Leilane Hardoim Simões1 Edgar Cézar Nolasco2 12 Resumo: O livro Água Viva, da escritora Clarice Lispector, pode ser lido como uma autoficção, na medida em que ela insere traços de suas circunstâncias pessoais e de vida em sua construção. Tendo em vista esse traço biográfico, nossa leitura visa uma comparação entre o que diz a escritora sobre si no livro e o que a crítica tem mostrado. Como aporte teórico de nossa leitura, vamos privilegiar o que Edgar Cézar Nolasco disse, principalmente nos livros Restos de Ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector e Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Palavras-chave: Clarice Lispector; Água Viva; Autoficção; Abstract: The Água Viva book, which was wri#en by Clarice Lispector, may be read as a autofiction, in so far as she inserts traces of her personal circumstances on its construction. In view of this biography trace, our reading aims a comparison between what the writer says about herself on this book and what the review shows. As a theoretical base of our reading, we are going to give preference in what Edgar Cézar Nolasco said about her, mainly on books Restos de Ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector and Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Keywords: Clarice Lispector; Água Viva; Autofiction 1 Graduanda do 4º ano do curso de Letras no DLE/CCHS-UFMS. É bolsista de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq. Desenvolve pesquisa sobre a obra literária da escritora Clarice Lispector. Membro do NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UFMS 2 Professor da graduação e da Pós-Graduação em Letras no DLE/CCHS, do PPGMel – DLE/CCHS e do PML – CPTL na UFMS. Coordenador do NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UFMS. Orientador das pesquisas. 207 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011 Quem diz que me entende nunca quis saber (...) Clarisse está trancada no seu quarto Com seus discos e seus livros, seu cansaço Eu sou um pássaro Me trancam na gaiola E esperam que eu cante como antes Eu sou um pássaro Me trancam na gaiola Mas um dia eu consigo existir e vou voar pelo caminho mais bonito (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá. Clarisse. In. Uma outra estação, 1997, faixa 5.) Em um sopro de vida a menina Haia nasce em 20 de dezembro de 1920. Em 1921, chega a Maceió, capital de Alagoas, para, em 1943, ganhar o Brasil com sua primeira obra publicada, Perto coração selvagem, e aos poucos conquistar o mundo como a reconhecida Clarice Lispector3. Porém, é em 1973, com a sua produção escritural acontecendo de maneira contínua, que Lispector escreve Água viva, um livro que pode ser lido como uma autoficção, na medida em que ela insere traços de suas circunstâncias pessoais e de vida em sua obra. No livro intitulado Escrita de si, escrita do outro, Diana Klinger define a autoficção: A auto-ficção é uma maquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência a própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor? Como é o processo da escrita? Quem diz eu?). (KLINGER, 2007. p. 51) 3 Datas e dados retirados da cronologia da vida da escritora Clarice Lispector do site feito em homenagem a escritora Clarice Lispector pela editora que publica suas obras até o presente momento, Editora ROCCO. Disponível em: h#p://www.claricelispector.com.br/Default.aspx - acessado em: 30 de abril de 2010. 208 A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector E é essa máquina produtora de certos mitos da escritora Clarice Lispector intitulada de Água viva, que, antes mesmo de sê-lo, era outro, o livro Objeto Gritante (1970) uma obra com maior número de páginas. Nesse momento, talvez, quem melhor entendera a proposta estética da escritora, e que sua produção depois de então só viria a confirmar, tenha sido o amigo e filósofo José Américo Pessanha, que recebera os datiloscritos do ainda Objeto gritante. Em carta à amiga, de 5 de março de 1972, Pessanha diz e sugere: “tentei situar o livro: anotações? pensamentos? trechos autobiográficos? uma espécie de diário (retrato de uma escritora em seu cotidiano)? No final achei que é tudo isso ao mesmo tempo” (apud Gotlib, 1995, p. 404). E a escrita de Clarice Lispector posterior a essa carta de Pessanha, realmente confirmou as conjecturas do amigo sobre o livro, pois mais tarde Clarice modifica seu livro por crer que ele é demasiado autobiográfico, assim como nos afirma Maria das Graças Andrade em sua tese intitulada Da escrita de si à escrita fora de si (2007). Essas mudanças podem ser lidas como uma tentativa de abandonar a parte biográfica que se instaura em Objeto Gritante. Esse ato faz com que a escritora traia sua obra primeira, reduzindo consideravelmente seu livro, porém sua obra escapa à completa traição ao insistir em traçar a autobiografia da escritora: “Quero captar o meu é. E canto aleluia para o ar como faz o pássaro. E meu canto não é de ninguém.” (LISPECTOR, 1973, p. 8). Mesmo após todas as alterações tão significativas que a escritora Clarice Lispector faz em sua obra Água Viva, o livro não perde o traço de autobiografia como podemos nos embasar pela leitura de estudos sobre a obra: Uma escrita autoficcional é sempre uma escrita de si, que nunca deixa de ser já uma escrita do outro, mas que, talvez por isso mesmo, faz retornar sempre aquele sujeito em si, mesmo que de per si. Ou seja, uma escrita de si aponta para o sujeito de dentro e de fora da escrita, não privilegiando, nunca, só o de dentro ou só o de fora. Pensando 209 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011 nisso, é como se disséssemos que a Clarice da escrita do datiloscrito Objeto Gritante que, para Andrade, é uma escrita de si (posto que autobiográfica pessoal íntima), suplementa a Clarice da escrita de Água viva (e vice-versa), que, segundo Andrade, é uma escrita fora de si (exterior, impessoal , ex-tima). (BESSA-OLIVEIRA, 2009. p. 2) E essa permanência da leitura da obra Água viva, como sendo autobiográfica dá-se pelo fato de que podemos definir a autobiografia como: (...) um espaço discursivo no qual se sobrepõem, a um só tempo, recordação e invenção, documento da memória e obra de criação, permitindo uma ‘dupla leitura’ que não é a alternativa entre estas duplas características – ‘documento da memória’ ou ‘obra criativa’ – mas é sim a própria somatória das duas. (VERSIANI, 2005. p. 41-42) As mil e uma Clarices “Ah persona, como não te usar e enfim ser!” (LISPECTOR, 1984. p. 213) Pode-se notar que no meio acadêmico as obras de Clarice Lispector são estudada com afinco, pois eventos e comunicações a respeito da escritora normalmente atraem um número significativo de interessados. Talvez por sua “timidez feminina” e “arrojo intelectual ousado”, como a define Edgar Cézar Nolasco, em seu livro Espectros de Clarice, a intelectual seja tão estudada. Com tantos interessados em pesquisar, escrever, descrever e ouvir sobre as suas obras, a escritora Clarice Lispector vai aos poucos se tornando uma persona um tanto quanto subjetiva, pois cada um acaba lendo a sua Clarice. Podemos dizer que até mesmo Clarice Lispector elaborou sua própria persona ficcional. Nolasco complementa essa ideia ao falar da importância de Clarice e de sua fortuna crítica, mesmo depois de duas décadas de seu falecimento: Mesmo passado 20 anos de sua morte, podemos dizer que Clarice continua mais viva do que nunca. Quer seja através de seus escritos, que nada mais são que sua extensa biografia; quer seja através dos 210 A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector inúmeros trabalhos (ensaios, dissertações, teses ou livros) a respeito de sua obra. Trabalhos esses que, de certa forma, dão continuidade à produção da autora que, infelizmente, foi interrompida de forma abrupta (...) (NOLASCO, 1998, p. 115) É essa contínua escrita e estudos sobre a criação escritural de Clarice Lispector que a mantêm viva no meio literário e que torna a leitura de sua obra cada vez mais ampla. Cada teórico tem seu modo de ler e definir os livros de Lispector, mesmo que às vezes de forma parecida, cada um constrói uma imagem, um mito das “Mil e uma Clarices que se insinuam nas frestas da vida e da ficção” (NOLASCO, 2008. p. 10). A própria Clarice Lispector construiu seu mito de si fazendo a sua leitura de Clarice. Assim, veremos se lermos o livro Água Viva, como aqui defendemos, como uma autobiografia, uma escrita de si. Sendo assim, a obra se torna interstícios a diversas analises e leituras (entende-se que a diversas e não a qualquer leitura), fazendo com que muitos teóricos busquem esmiuçar a obra da escritora, assim como, Anderson Matos4: Água Viva é realmente capaz de chocar o leitor, não apenas pelo uso da linguagem e pela falta de uma história, mas também por tratar de diversos temas com profunda sinceridade. (...) de forma que não é possível ler Água viva e ficar indiferente. (MATOS, 2009. p. 306) Edgar Cézar Nolasco novamente deixa sua contribuição e completa a escrita de Matos em seu texto “Roland Barthes lê Clarice Lispector: Água viva – uma galáxia de significantes”, ao definir a obra como sendo: Água Viva, texto “sem tema e sem personagem” será, desse modo, uma síntese reflexiva de todos os demais escritos anteriores da autora, dialogando com eles, além, é claro, de problematizar ao extremo a questão da própria escritura. Desse modo, pode-se dizer que o 4 Mestre em PPG-Letras – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ UFRGS. Título: O Sensacionalismo de Fernando Pessoa em Água Viva de Clarice Lispector. 211 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011 texto Água Viva é um “aproveitamento”, ou melhor, uma “reescrita infinita” de muitos “fragmentos textuais” escritos que a autora veio problematizar por toda a sua pratica escritural (mesmo nas obras posteriores a Água Viva). (NOLASCO, 1995. p. 61) E é nesse livro tão problematizado por diversos teóricos que podemos encontrar uma pintora tentando escrever: “Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e as minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora necessito de palavras.” (LISPECTOR, 1943, p. 9); e em sua vida pessoal uma escritora que se lança ao “hobby” de pintar. Para, por fim, ser a escritora/pintora de um livro/quadro abstrato, o Água viva, como afirma José Castello: “Ciente do abismo em que se meteu, Clarice usou a expressão ‘literatura abstrata’ quando falou, um dia, de Água viva.” (CASTELLO, p. 1). Desse mesmo modo Ricardo Iannace, define a obra da escritora afirmando que a escrita de Lispector “abre para comparações estreitando o literário às artes plásticas – uma pintura abstrata, nesse caso.” (IANNACE, 2009. p. 52) Partindo desse pressuposto, podemos ler uma Clarice, além de tudo, pintora, como afirma Marcos Bessa-Oliveira: Para falar da carreira profissional/ intelectual de Clarice Lispector não podemos deixar de mencionar uma fase da escritora, que fora os dez últimos anos de sua produção, e sem contar que justo tal produção, além de ser uma produção atravessada, de certo modo, pelo período ditatorial no Brasil, foi também neste final de produção que a escritora fez uso da pintura como forma de expressão. (BESSAOLIVEIRA, 2007, p. 76) Se, por um lado, Clarice Lispector chega ao ponto de vivenciar as experiências de vida de seus personagens como a vivência de pintora/ escritora e escritora/ pintora, por outro, a escritora cria personagens que são reflexos destorcidos dela mesma. No livro Restos de ficção, Nolasco narra que Clarice, na véspera de sua morte, internada no hospital, tenta fugir de seus aposentos, porém é impedida por uma enfermeira; 212 A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector transtornada Clarice diz: “você matou meu personagem” (GOTLIB apud NOLASCO, 2004, p. 22). Nolasco termina por embasar o que foi explicitado ao afirmar que “Vida e ficção. Talvez como forma de não morrer, Clarice se vê como personagem de si mesma e ficcionaliza a morte até mesmo nos restos de vida” (NOLASCO, 2004, p. 22). Essa Clarice também é personagem, como nos explicita José Castello, que, ao escrever sobre a possível influência da autora na literatura contemporânea brasileira, a trata como uma Clarice personagem de si mesma: “Clarice Lispector, quem sabe, é só um personagem criado por Clarice Lispector. Uma hipótese assustadora, que exacerba mais ainda sua solidão” (CASTELLO, sd, p. 2). Para Castello, esse sentido de solidão vem do fato de Clarice ser uma escritora única, que abdicava de seu lugar de conforto como uma escritora por profissão ou por vaidade, pois a autora está além da literatura se pensar que seus livros, por muitas vezes, extrapolam o próprio romance, sendo escritos com desconfiança e desinteresse pelo cânone literário. Por isso, Castello afirma que: Qualquer tentativa de descender dessa Clarice radical, que se coloca, e escreve, desde um lugar que escritor algum ousou pisar, corre o risco, sempre, de se converter em uma encenação deplorável. No máximo, uma imitação mais ou menos bem sucedida, e mais nada. (CASTELLO, sd, p. 2) Em meio a essa multidão de Clarices, ainda podemos encontrar a Clarice contrabandista. Uma escritora que copiava partes, às vezes inteiras, de outras obras e outros escritores. Ao fazer suas crônicas para o jornal, por vezes a escritora, em vez de escrever novas crônicas, apenas copiava partes de sua própria obra. O livro Água viva também é um dos fragmentos de escritas anteriores de Clarice Lispector, como afirma Edgar Nolasco: Clarice juntou “fragmentos” na construção da escritura do livro, abrindo a possibilidade para que o leitor venha e dê um sentido a esse “original” (texto resultante) sem sentido aparente. (NOLASCO, 2001, p. 197) 213 Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011 O contrabando não dissimulado por Clarice na construção do livro - em que ela traz textos seus de outros lugares para dentro desse, além de retirar outros (ou os mesmos trazidos) por excesso – nos permite dizer que o texto que chegou até o leitor não tem “origem”. (NOLASCO, 2001, p. 197) Um fragmento de escrita que não deixa de ser completo em sua totalidade e muito respeitado desde a época de sua criação. Outra leitura que podemos fazer de Clarice Lispector e de sua obra, pode ser encontrado no site feito em homenagem a escritora pela editora ROCCO, que traz alguns de seus rascunhos, cartas, artigos e testemunhos sobre Clarice. O trecho a seguir é uma carta de seu amigo Alberto Dines, enviada em 20/07/1973 para a escritora, descrevendo, de forma belíssima e até um tanto encantado, sobre o livro Água viva: É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia. É o mesmo uso do tema principal desdobrando-se, escorrendo até se transformar em novos temas que, por sua vez, vão variando, etc. etc. (DINES, 1973, p. 1) (...) E aí acho que posso responder à sua pergunta fundamental: o livro está terminado? Está. Definitivamente. Mas na mesma medida em que um movimento de uma sinfonia se contém em si mesmo. Ou, na mesma medida em que uma sinfonia de Beethoven ou do próprio Mahler dispensam as outras. O seu Água viva, assim como os movimentos e as sinfonias “funcionam” individualmente, tem sua vida própria. (DINES, 1973, p. 1) Percebemos que mesmo a Clarice pessoal, a Clarice amiga, é admirada por quem a cerca. Ela nunca deixa de ser uma artista, sendo como escritora ou pintora, é acima de tudo uma Clarice viva e produtora de grandes obras artísticas. Luís Fernando Veríssimo, em um artigo/ testemunho, para o mesmo site mencionado anteriormente, narra sua primeira impressão de quando ainda jovem conheceu a pessoa Clarice, isso antes mesmo de conhecer a escritora Clarice Lispector, já que ela era amiga intima de seus pais: 214 A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector (...) a minha primeira impressão da Clarice foi a de todo mundo: fascinação. Com a sua beleza eslava, os olhos meio asiáticos, o erre carregado que dava um mistério especial à sua fala, e ao mesmo tempo com seu humor, e seu jeito de garotona ainda desacostumada com o tamanho do próprio corpo. O fato de que aquela Clarice era a Clarice Lispector não me dizia muito. Eu sabia que era uma escritora meio complicada, nunca tinha lido nada dela. (VERISSIMO, 2005. p. 1) Seja a Clarisse da música de Renato Russo, personalidade da musica brasileira que nunca confirmou ter lido Clarice Lispector, ou a Clarice dos amigos que conviveram com a escritora ou, ainda, a pintora/ escritora e escritora/ pintora de Água Viva. Clarice Lispector, assim como seu livro Água Viva, não é um hieróglifo a ser decifrado de forma única e plenamente verdadeira, a própria escritora ratifica ao escrever na obra Água Viva que: “Estou te falando em abstrato(...). Por que não abordo um tema que facilmente poderia descobrir?” (LISPECTOR, 1943, p. 57). Mas um fato é de uma verdade intricada de se contestar: a escritora se marcou na sua escritura, escritura essa que, por sua vez, marcou teóricos, críticos e leitores que até os dias de hoje lêem e estudam com afinco as obras da escritora brasileira fazendo surgir, de uma a uma, as mil Clarices. Referências ANDRADE, Maria das Graças Fonseca Andrade. 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Rio de Janeiro: 7letras, 2005. 216 Normas da Revista A Revista Rascunhos Culturais aceita textos inéditos sob forma de artigos e, eventualmente, traduções, entrevistas, resenhas, ensaios, resumos de livros e ficção de interesse para os estudos das ciências humanas, especialmente os que abrangem as pesquisas em torno das áreas de Letras, História e Educação. Os textos são submetidos a parecer ad hoc do Conselho Científico e devem atender às seguintes exigências: I. Formatação 1. Extensão: 8 a 12 laudas, considerando dentro desse limite todas as partes do artigo; 2. Fonte: Times New Roman, tamanho 12; 3. Espaço entrelinhas: 1,5; 4. Formato da página: A4; 5. Margens: 3 cm (esquerda e superior), 2cm (direita e inferior) com recuo de 1 cm em início de parágrafo; 6. Alinhamento do parágrafo: Justificado; 7. Título centralizado, palavras em maiúsculas e em negrito (um espaço em branco depois); 8. Nome do autor(a), obedecendo maiúsculas e minúsculas conforme necessário. Colocar em nota de rodapé (na primeira página) informações sobre o autor (a), tais como: Instituição – SIGLA (Universidade a que esta filiado) do proponente, titulação e e-mail (esse último, apenas se o autor quiser que seja divulgado na revista) em fonte Times New Roman, tamanho 10, espaço 1, alinhamento justificado, numeradas a partir de 1, usando-se para tal fim o recurso automático do Word para criação de notas de fim. Não precisam ser enviados em arquivo separado; 9. Resumo: (escrito em maiúsculas e minúsculas conforme necessário e negrito). Texto de no mínimo 80 e no máximo 200 palavras que explicita a proposta delimitada de discussão vinculada ao tema geral proposto, digitado em espaço simples, Times New Roman, tamanho 12, sem adentramentos ou parágrafos (um espaço em branco); 10. Palavras-chave: (escrito em maiúsculas e minúsculas conforme necessário e negrito), 3 a 5 palavras-chave digitadas em espaço simples, Times New Roman, tamanho 12, sem adentramentos, que direcionem para a área específica do artigo (um espaço em branco); 11. Resumo e palavras-chave em língua estrangeira (espanhol, inglês, francês ou italiano), seguindo as mesmas regras usadas para o resumo e palavras-chave em português; 12. Subtítulos (se houver): (escrito em maiúsculas e minúsculas conforme necessário e negrito), com recuo de 1 cm em início de parágrafo; 13. Tipo de arquivo: Word for Windows (extensão doc); 14. Nome do arquivo: Artigo_NomedoArtigo (Exemplo: Artigo_Das imagens e tintas) 15. Páginas não numeradas; 16. Uso de itálico para destacar palavras e expressões em língua estrangeira (evitar expressões sublinhadas ou em caixa alta); I.II. Ordem das partes dos artigos: 1. Título; 2. Resumo e palavras-chave em português; 3. Resumo e palavras-chave em língua estrangeira; 4. Corpo do artigo; 5. Subtítulo; 5. Referências; 6. As notas explicativas, se houver, devem aparecer na mesma página da indicação, em fonte Times New Roman, tamanho 10, espaço 1, alinhamento justificado, numeradas a partir de 1, usando-se para tal fim o recurso automático do Word para criação de notas de fim. 7. Anexo(s), se houver. II. Obras citadas (válido para artigos, monografias e dissertações): 1. Citações com menos de 3 linhas: dentro do corpo do texto, entre aspas duplas, sem uso de itálico; 2. Citações com mais de 3 linhas: destacadas do texto, com recuo de 2 cm com relação à margem do texto em que não há parágrafo, sem aspas, fonte Times New Roman tamanho 11, espaço 1,0, alinhamento justificado. 3. Em ambos os casos, o autor deve ser citado ao final da citação, entre parênteses pelo sobrenome, em maiúsculas, separado por vírgula da data de publicação. Ex: (SILVA, 1987). Quando for necessário, a especificação da(s) página(s) deverá seguir a data, separada por vírgula e precedida de “p.” Ex: (SILVA, 1987, p.100). Se o nome do autor estiver citado dentro do texto, pode-se apenas indicar a data e a página (se necessário), entre parênteses. Ex: “Silva (1987) assinala que etc…” As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento. Ex: (SILVA, 2000a). Quando a obra tiver dois ou três autores, todos poderão ser indicados, separados por ponto e vírgula. Ex: (SILVA; SOARES; SOUZA, 2000). Quando houver mais de três autores, indica-se o primeiro seguido de “et al”. Ex: (SILVA et al., 2000). 4. As referências, limitadas aos trabalhos efetivamente citados no texto, deverão obedecer às normas mais recentes da ABNT. A título de exemplificação, reproduz-se a seguir o padrão a ser adotado para citação de livro, capítulo de livro, artigo e obra acessada via Internet: Livro: SOBRENOME DO AUTOR, Nome do autor. Título do Livro. Tradução (Quando necessário). Local de publicação: Editora, Ano de publicação (Ano da publicação original, quando necessário). Exemplo: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética, a teoria do romance. Trad. BERNADINI, Aurora Fornoni et al. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998 (1978). Capítulo de livro: SOBRENOME DO AUTOR DO CAPÍTULO, Nome do autor do capítulo. “Título do Capítulo”. In SOBRENOME DO AUTOR/EDITOR DO LIVRO, Nome do autor/editor do livro. Título do Livro. Local de publicação: Editora, Ano de publicação (Ano da publicação original, quando necessário). Número das páginas, precedidos de “p.” Exemplo: HALL, Stuart. “The Question of Cultural Identity”. In HALL, S., HELD, D. e McGREW, T. (eds). Modernity and its Futures. Cambridge: Polity Press, 1992. p. 274-325. Artigo publicado em periódico: SOBRENOME DO AUTOR, Nome do autor. “Título do artigo”. In Nome do Periódico. Local de publicação: Editora ou entidade responsável pela publicação, volume ou número, ano de publicação (ano da publicação original, quando necessário). Números inicial e final das páginas do artigo, precedidos de “p.” Exemplo: LANGER, Eliana Rosa. “A estrutura do livro Esaías”. In Revista de Estudos Orientais. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, n. 3, 1999, p. 95-106. Obra acessada via Internet: SOBRENOME DO AUTOR, Nome do autor. “Título do artigo” ou Título do Livro. Disponível em: endereço da página. Acesso em: data do último acesso (Ano da publicação original, quando necessário). Números das páginas inicial e final (se houver), precedidos de “p.” Exemplo: OLIVEIRA, Bernardo B. C. “Leitura irônica do texto urbano. Apontamentos sobre uma frase de Walter Benjamin, à luz de Poe e Auster”. Disponível em: <h#p://www.revistaipotesi.u^f.br/volumes/14/cap06.pdf>. Acesso em: 22 Fev 2008 (2004). p. 79-89. Observação: 1) deve-se pular uma linha antes e depois no caso de citações recuadas e de subtítulo. 2) usar as mesmas exigências da citação em recuo para a construção da epígrafe. 3) Não pular linha na página de referências. Originais formatados fora das normas serão automaticamente descartados. * Conceitos teóricos, ideias e adequação vocabular e linguística são de responsabilidade dos autores. * Os autores dos trabalhos aceitos para publicação receberão dois exemplares do número da Rascunhos Culturais em que seu texto estiver publicado. Os originais devem ser enviados em arquivo anexado à mensagem de e-mail para o endereço eletrônico [email protected] Contato (67) 3291 0210/0202 Professora Geovana Quinalha de Oliveira
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