UFMS - gelco
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UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ARTIGOS PUBLICADOS APRESENTAÇÃO O GELCO foi Criado em outubro de 2000 e congrega profissionais (pesquisadores e professores) que atuam nas áreas de Linguística, Línguas e Literaturas na região centro-oeste do Brasil. Como entidade regional, o GELCO conta com uma rede de associados que se estende desde Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, até Goiás e o Distrito Federal, incluindo o estado de Tocantins, o qual, por um erro de um cartógrafo, hoje integra o norte do Brasil, ainda que culturalmente continue sendo parte da região centro-oeste. Mais que o nascimento de uma nova associação científica, o GELCO surgiu pela necessidade de os estudiosos da linguagem dessas "paragens brasileiras" assumirem uma identidade coerente com seus valores e suas necessidades culturais, científicas e acadêmicas. Nesse sentido, o GELCO tem buscado abrir um espaço político para o fomento e a expansão da pesquisa linguística no centro-oeste. Um dos propósitos da associação é o de iniciar e fortalecer o intercâmbio com outras sociedades científicas, nacionais e/ou estrangeiras, abrindo espaços para a troca de conhecimentos e de procedimentos teórico-metodológicos dentro de linhas de pesquisa voltadas para a Linguística, cujos projetos contemplem a variação sincrônica e diacrônica, bem como a mudança linguística. No escopo da proposta do GELCO, a língua há de ser descrita, de um lado, em termos de interações entre condições discursivas permanentes e emergentes e, de outro lado, entre condições sócio-históricas, linguísticas e cognitivas. Os Anais do II Encontro Regional do GELCO, que agora se publicam, reúnem grande parte dos trabalhos apresentados durante o evento, que se realizou entre os dias 24, 25 e 26 de agosto de 2011, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Três Lagoas. Participaram do nosso evento as seguintes universidades: UFMT, UEMS, UNEMAT, UNICAMP, UNITAU, UNESP, UnB, UFGD, UFG, UFV, UFMG, UNIGRAN, UNIDERP, PUC/Minas e PUC/SP. Essa reunião científica, que congregou os profissionais que trabalham com a área de linguagens no Brasil, consiste em importante marco com relação aos estudos realizados na região centro-oeste e ao processo identiário cultural da região. Comissão Organizadora do GELCO – biênio 2011/2012 1 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .....................................................................................................................1 ESTUDOS LITERÁRIOS ..........................................................................................................7 As vozes silenciadas em A mais bela história de Adeodata, de Rosane Almeida Adriana Patrícia Sena Cordeiro e Wagner Corsino Enedino.........................................................8 Do romance para a televisão: A adaptação audiovisual de “O tempo e o vento” Aline Cristina Maziero .............................................................................................................. 20 Um romance de geração, de Sérgio Sant’Anna: O sistema literário brasileiro contemporâneo Antonio Rodrigues Belon .......................................................................................................... 33 A crítica literária do século XX e XXI Carmelita Rodrigues Gomes ...................................................................................................... 47 O estranho, o silencioso e o fantástico: As figuras alegóricas em La mano em la tierra, de Josefina Plá Carolina Barbosa Lima e Santos ................................................................................................ 62 Em cena, Balada de amor no sertão, de Cristina Mato Grosso Elisângela Cristiane Rozendo de São José e Wagner Corsino Enedino ...................................... 73 Amor e Mônada nos contos “No Bar” e “Tremor de Terra” de Luiz Vilela Fabrina Martinez de Souza e Rauer Ribeiro Rodrigues .............................................................. 91 A cartomante: Quando a câmara conta a história Gedy Brum Weis Alves ........................................................................................................... 103 2 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Filigranas da história no discurso literário: O drama didático-histórico em Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel Haydê Costa Vieira e Wagner Corsino Enedino ...................................................................... 117 Teatro infantil de Plínio Marcos: Uma análise em Assembléia dos Ratos Leidi Laura Breguedo e Wagner Corsino Enedino ................................................................... 133 A configuração das personagens e sua relação com o mal em Madona dos Páramos, de Ricardo Guilherme Dicke Luciana Rueda Soares ............................................................................................................. 145 Ponto de vista e focalização em “O monstro”, de Luiz Vilela Pauliane Amaral e Rauer Ribeiro Rodrigues ............................................................................ 159 A construção da narrativa literária em “Os sertões” de Euclides da Cunha Paulo Eduardo Benites de Moraes e Angela Cristina do Rego Catonio .................................... 166 Da disseminação ao suplemento: Clarice entre a criação e a tradução Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco ............................................................ 181 Os espaços do leitor empírico e do leitor-autor em literaturas em (des)construção: Borges e Barros Rubens Aquino de Oliveira ..................................................................................................... 199 O poema narrativo em Crime na Calle Relator, de João Cabral de Melo Neto Wilquer Quadros dos Santos ................................................................................................... 210 ESTUDOS LINGUÍSTICOS .................................................................................................. 234 A circulação das ideias educacionais em Mato Grosso: A imprensa periódica como fonte para a História da Educação (1880-1920) Adriana Aparecida Pinto ......................................................................................................... 235 Africanismos na toponímia de Mato Grosso do Sul Adrielly Naiany Martins e Ana Paula Tribesse Patrício Dargel ................................................ 249 A língua e a linguagem como representação identitária para professores Terena, região Aquidauna – (MS) 3 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Alessandra Manoel Porto ........................................................................................................ 264 Cores impossíveis: O diálogo das imagens Alex Nogueira Rezende e Eluiza Bortolotto Ghizzi ................................................................. 277 Bilinguismo – Formação de professores indígenas, questões de educação bilíngue intercultural Caroline Pereira de Oliveira .................................................................................................... 296 O estilingue na região norte do Brasil: Análise de designações documentadas pelo projeto ALiB Danyelle Almeida Saraiva Portilho.......................................................................................... 310 A Pata da Gazela sob o olhar da Semiótica Discursiva Euzenir Francisca Silva ........................................................................................................... 324 O gênero textual fórum na educação a distância: (Re)Conhecendo suas características e possibilidades Evelyn Fuzeta Alves ............................................................................................................... 336 Análise semiótica da relação entre enquadramento, ângulo de visada de câmara e montagem em um trecho do documentário “Planeta Terra – a Terra como você nunca viu” Fernanda Lopez Athas ............................................................................................................. 352 A figura da mulher na toponímia sul-mato-grossense: Questões histórico-ideológica Letícia Alves Correa de Oliveira e Aparecida Negri Isquerdo .................................................. 368 Os hidrotopônimos de base indígena presentes na toponímia rural das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda no Mato Grosso do Sul Lucimara Alves da C. Costa e Vitória Regina Spanghero ........................................................ 381 A avaliação do texto em EaD: Diferentes olhares Maria Alice de Mello Fernandes, Rute de Souza Josgrilberg e Terezinha Bazé de Lima .......... 397 O signo triádico peirceano e as relações indiciais genuínas e degeneradas: O desenho e a fotografia de Henri Cartier-Bresson Mayana Rodrigues .................................................................................................................. 410 Gêneros jornalísticos: Informação x argumentação na cobertura das eleições 2010 em Mato Grosso do Sul 4 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi e Vanessa Amin .............................................................. 424 Propostas curriculares para a educação de jovens e adultos (EJA): Entre o discurso do outro e do professor Odinei Inacio Teixeira ............................................................................................................. 442 Muito além de John and Mary: abordando os temas raça e racismo em aulas de inglês para desconstruir práticas racistas Paula de Almeida Silva ........................................................................................................... 455 Possessivos na língua akwẽ (Jê) Rodrigo Guimarães Prudente Marquez Cotrim ........................................................................ 469 Situação da marcação de posse na língua matis Rogério Vicente Ferreira ......................................................................................................... 487 World Trade Center: Representação do Islã e dos EUA pela mídia Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari........................................................................................ 500 Os zootopônimos de origem indígena da mesorregião leste do estado de Mato Grosso do Sul Simone Valentim Machado, Ana Paula T. Patrício Dargel e Carla Regina de S. Figueiredo ..... 519 Designações para doenças na Capitania de Mato Grosso, documentadas por Alexandre Rodrigues Ferreira (1791) Solange Stabile ....................................................................................................................... 534 Um estudo sobre a estrutura morfológica e a formação dos fitotopônimos sul-mato-grossenses de base linguística portuguesa Suely Aparecida Cazarotto ...................................................................................................... 553 Alfabetização e leitura no aprendizado bilíngue de crianças brasileiras na Inglaterra Terezinha Bazé de Lima, Sandra Aparecida da Silva e Sandra Rosane Zago............................ 565 Os cursos tecnológicos e as ferramentas de comunicação e informação: As especificidades da Educação à Distância Terezinha Bazé de Lima .......................................................................................................... 576 A identidade discursivo-cultural indígena: Poder e resistência pela terra em Mato Grosso do Sul 5 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Vânia Maria Lescano Guerra e Ana Alice dos Passos Gargioni ............................................... 591 Ensino de Língua Portuguesa para surdos: Teoria e prática na construção do letramento em segunda língua Veronice Batista dos Santos .................................................................................................... 611 A concordância verbal e a posposição do sujeito na norma culta em Cuiabá Vinícius Carvalho Pereira, Gildeth Costa de Souza e Danúbia Alves Gomes ........................... 622 A figura do herói: Leitura semiótica de uma capa da Revista Veja Luciana Garcia Gabas Coelho e Maria Luceli Faria Batistote .................................................. 631 6 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ESTUDOS LITERÁRIOS 7 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 As vozes silenciadas em A mais bela história de Adeodata, de Rosane Almeida Adriana Patrícia Sena CORDEIRO 1 Wagner Corsino ENEDINO2 RESUMO: Ancorado nos estudos de Ryngaert (1996), Pavis (1999), Pallottini (1988), Guinsburg (2009) acerca do modo de estruturação do texto teatral, este trabalho apresenta como objetivo a investigação das vozes silenciadas na peça teatral de Rosane Almeida, A mais bela história de Adeodata. Desse modo, será investigado como as falas dramatúrgicas se entrelaçam a partir de experiências cotidianas das personagens. Com efeito, importa destacar que as três Adeodatas, ao fazerem emergir suas vozes no texto, passam por um processo de silenciamento, levando o público a refletir sobre aspectos da representação social.É importante salientar que o texto de Rosane Almeida está permeado do chamado “teatro brincante”, uma vez que Antonio Nóbrega e autora fundaram Teatro escola Brincante sendo que o brincante popular é a pessoa que atua, canta toca ou dança.O Brincante uma estilo típico do nordeste brasileiro a dramaturga utiliza desta característica em seu texto dramático que corrobora para marcar seu próprio estilo. PALAVRAS-CHAVE: Teatro brasileiro contemporâneo. Personagens. Adeodata. Introdução Eu me chamo Adeodata porque a Deus eu fui dada, Criatura o igual a mim ainda não foi criada. Da beira-mar ao sertão sou conhecida e falada. Você me encontra nas ruas, nos cortiços, procissões, Sozinha e abandonada, rogando nas orações, Também sendo venerada, arrastando multidões. Rosane Almeida. 1 Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Letras (Áreas de Concentração em Estudos Literários), em nível de Mestrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Três Lagoas, e-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Três Lagoas e-mail: [email protected]. 8 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Recorte de um projeto de pesquisa de escopo mais abrangente, este artigo tem por objetivo investigar as vozes silenciadas na peça teatral de Rosane Almeida, A mais bela história de Adeodata, analisando como as falas dramatúrgicas se entrelaçam às experiências cotidianas das personagens. Com base nos estudos de Ryngaert (1996), Pavis (1999) e Pallottini (1988) Guinsburg (2009) acerca do modo de estruturação do texto teatral, o trabalho traz reflexões sobre possíveis relações dialógicas entre a obra e diversas culturas e, em especial, sobre os silenciamentos que caracterizam as vozes das personagens, cuja interpretação pode remeter a questões de representação social, bastante relevantes para a dramaturga Rosane Almeida. Rosane Almeida e uma (nova) modalidade de teatro: O teatro brincante Rosane Almeida Rosane Almeida nasceu em Curitiba, e aos dezesseis anos foi para o Recife. Um ano depois se casou com Antônio Nóbrega, com quem iniciou sua carreira literária. A autora centrou seus estudos na arte circense por volta de 1983 a 1993, na cidade de São Paulo, além de ter estudado em países fora do Brasil, como França e Suíça. Ocorre, todavia, que Almeida não se ateve somente à formação circense, procurou, também, demarcar espaços na dança, no teatro e na música, o que corroborou para uma constante investigação das manifestações populares brasileiras. No que tange à materialização de textos dramáticos, Almeida atuou como atriz em espetáculos como: “Brincante”; “Segundas Histórias”; “Na pancada do Ganzá”; “Madeira que cupim não rói” e “O marco do meio dia”, de Antônio Nóbrega. Segundo Guinsburg; Faria; Lima (2009), o teatro brincante envolve os participantes de espetáculos populares do Norte e do Nordeste do país. Derivada de “brinquedo” ou brincadeira”, esta designação, exprime, no entender de Hermilo Borba Filho, a inconsciência dos praticantes da natureza teatral dos espetáculos populares (1966a:22)[...]O brincante é, portanto, um intérprete qualificado de formalizações tradicionais que se endereça a público de formalizações tradicionais que se endereça a um público igualmente instruído para avaliar o talento e a habilidade do artista. [...]graças ao Movimento Armorial que se consolidam os primeiros conjuntos profissionais a estudar sistematicamente os procedimentos dos brincantes que se tornam, desse modo, um técnica transferível para outras modalidades cênicas. O mais significativo desses conjuntos é o Balé Popular do Recife, grupo constituído por ocasião do lançamento do Movimento no Armorial[...]que, apesar do nome produz espetáculos em que o texto, , a dança e a música se misturam de modo equânime.[...]Deve –se a Antonio NÓBREGA, músico de formação erudita e membro do Quinteto Armorial a mais conseqüente assimilação das práticas do brincante. Fundador do Teatro Brincante, casa de espetáculos e escola sediada em São Paulo desde 1992, Nóbrega promove o ensino da arte do brincante em cursos endereçados a intérpretes e educadores.[...] Brincante é o nome como os artistas populares se autonomeiam: brincantes ou fogazães [...]o brincante popular é a pessoa que atua, canta, toca ou dança. 9 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Em A mais bela história de Adeodata, percebe-se esse caráter “brincante”, visível quando Dora canta e dança o maracatu, dança típica do nordeste brasileiro: É a força desse ferro que faz o mundo rodar. Por causa dele inventou – se o avião, o rádio , a televisão, O cinema e o radar. O ferro faz todo tipo de juntura, Plataforma e estrutura da indústria espacial. É no meu ferro que o mundo todo se escora, Se ele acabasse agora, era o juízo final.[...] Também se constata, na peça, o uso do anexim3, outra marca desse tipo de teatro, que, pela voz de Dedé, tem o objetivo de ironizar a sua vida martirizada pela sociedade: Dedé:[...] marido é como carro: só é bom no primeiro ano.quando arranca na primeira , na segunda e na terceira...Depois , carro velho e marido é só encrenca[...]. (ALMEIDA, 2006, p. 28) Por que pobre é assim: rico pega o carro e vai; pobre vai e o carro pega [...]. (p. 50). Quem esquenta a cabeça é palito de fósforo.[...] No final tudo dá certo, se não deu é porque não chegou no final.(p. 52). Doutora Déo: Como diz a dona Dedé: “Desgraça pouca é princípio de vida”.(p. 55). Rosane Almeida e sua relação com o espetáculo Para Ryngaert (1996, p. 125): Construir sua personagem, entrar na pele da personagem, estar na pele da personagem (como dentro da casaca de uma banana, brinca Woody Allen), trabalhar sua personagem, eis algumas expressões que falam de uma espécie de face a face entre o ator e aquele que será seu duplo. Essa alteridade perturba e fascina [...] a personagem é representada por um ator vivo que lhe empresta seu corpo, seus traços, sua voz, sua energia[...]. O ator reivindica legitimamente uma relação sensível com a personagem que surge como o cadinho de emoções comuns ao intérprete e ao público, [...]a personagem no texto adquire formas muito diversas, às vezes muito abstratas, às vezes inscritas de maneira muito discreta nas entrelinhas. 3 S.m1-sentença popular que expressa um conselho sábio; provérbio, máxima. 10 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 No âmbito do espetáculo, cabe a Rosane Almeida atriz representar o papel das três mulheres que Rosane Almeida dramaturga criou e que mostram as experiências femininas a partir de diferentes sentidos de “cultura” (tradição, ideias, normas, saberes, conhecimentos, status e poder), marcando o texto dramático. Num jogo entre o sério e o riso, usado, na peça, “para subverter regras e transgredir fronteiras” e para nos libertar “do peso dos preconceitos”, a ação dramática desenvolve-se com/pelas falas de dona Dedé, retirante, paupérrima, trambiqueira assumida e sábia, contrapondo-se “ao saber erudito” de doutora Déo, uma professora universitária às voltas com sua tese sobre a importância do feminino “para uma compreensão profunda da história da humanidade”, a que se vêm juntar os dizeres, silêncios e atributos de Dora, a artista, marcados por discursos da sabedoria popular. Segundo Ryngaert (1996, p. 126): Para o teatro grego, a persona é a mascara, o papel desempenhado pelo ator, e não a personagem esboçada pelo autor dramático. O ator é somente um intérprete que não se confunde com a ficção e que o público não assimila imediatamente a uma encarnação da personagem textual. Na maior parte do tempo, utilizamos essa mesma palavra, personagem, para designar os diferentes avatares da partitura textual prevista para ser representada em cena por um ator. Segundo Pallotini (1988, p. 9 e10), cabe ao personagem fazer de conta que é outra pessoa e, por meio de falas ficcionais, veicular o conteúdo de uma peça de teatro, papel que cabe às três personagens encarnadas, na peça, por Rosane Almeida. Para Ryngaert (2006, p.129) O ator geralmente continua, em seu trabalho sobre o sensível, a pensar na unidade de seu papel através do conceito de personagem, mesmo que não se prenda a uma estética da identificação. O público, enfim, receptor sem o qual a representação teatral não pode ocorrer, sempre se apoia na personagem para entrar na ficção. Além disso, “a personagem não existe verdadeiramente no texto, ela só se realiza no palco, mas ainda assim é preciso partir do potencial textual e ativá-lo para chegar ao palco”. (RYNGAERT, 2006, p.129). Unidas pelo traço do feminino, embora de tempos e espaços diversos, Dora, dona Dedé e doutora Déo constituem a mulher plural e arquetípica Adeodata criada por Rosane Almeida. Mulheres de cujas vozes emergem silêncios significativos. Para Orlandi (2007, p. 23) Se a linguagem implica silêncio, este por sua vez, é o não dito visto do interior da linguagem.Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silencio significante. [...] o silêncio não é mero complemento da linguagem. 11 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Na concepção da autora, “o silêncio não está disponível à visibilidade” e, em não sendo “diretamente observável”, só “passa pelas palavras. Não dura.”, de modo que “escorre por entre a trama das falas” (ORLANDI, 2007, p. 32), pois, “quando se trata do silêncio, nós não temos marcas formais, mas pistas, traços” (ORLANDI, 2007, p. 46). Eis, portanto, o maior desafio deste artigo: “ouvir” esses silêncios e relacioná-los ao processo de representação social das personagens no contexto da obra. Ao narrar a relação do homem com seus objetos de culto ao longo da história, Doutora Deo parece silenciar o discurso machista sobre o qual, em falas posteriores, irá pronunciar-se: Doutora Déo: O primeiro elemento que o homem cultuou foi a terra. E a terra foi gerada por ela mesma. A terra-mãe foi considerada a primeira divindade da fertilidade, e se a vida significava um desligar-se do ventre da terra, a morte era apenas um REGRESSSUS AD UTERUM, regresso ao útero materno, para um novo nascimento. Com o passar do tempo, o TELLUS MATER,...[...] essa terra-mãe, vai se transformar em deusa-mãe, e daí não ter sido difícil para o homem que cultuava a MAGNA MATER, a deusa-mãe, fazer uma analogia entre a terra e a mulher. Ambas eram vistas como... UM VENTRE CAPABLE D’ENGENDRER VIE um ventre capaz de gerar vida. E, desde o Paleolítico, o homem desenvolve seus cultos, nos quais a mulher, a fertilidade, a natureza - ou seja, o elemento feminino- é o foco maior de sua idolatria e compreensão do mundo. (p.27-28). Na poesia recitada por Dora, o “despretensioso” contraponto entre a deusa-mulher e o Deus homem do Cristianismo oculta o que ela não pode dizer, pois que interditado pela Igreja: Deus é um opressor machista, e o Cristianismo, ao constituir o discurso da culpa feminina pela entrada do pecado no mundo (e ao ser constituído por essa “ideologia”), relegou a mulher a uma condição inferior, senão ao esquecimento: Da Deusa mãe do passado, que era maga e amiga, A Deusa que fora um dia a origem, a criação. O Deus único era também o criador, Havia milhões de servos e um único senhor, O Deus que era o pai e o patrão. A nova religião foi se expandindo Os cultos da mulher foram sumindo, Transformaram-se em superstição. Temas, personagens e representações em A mais bela história de Adeodata Segundo Pavis (1996, p. 372), [...] teatro é um ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios ópticos que o constituem. Tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e 12 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a representação [...]. (PAVIS, 1996, p. 372). Com falas que se constroem em diálogo, entrelaçadas aos silêncios e a vozes e discursos de outras áreas do conhecimento, Rosane Almeida traz, para as cenas, em vários pontos da peça, aspectos das relações de poder versus não poder travadas entre homem e mulher. Segundo Zolin (2009, p. 220) a condição da mulher na Era Vitoriana (1832-1901) foi tenazmente marcada por diversos tipos de discriminações, justificadas como o argumento da suposta inferioridade intelectual das mulheres, cujo cérebro pesaria 2 libras e 11 onças, contra 3 libras e meia do cérebro masculino. Resulta disso que a mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa . No século XIX, a voz feminina não se fazia ouvir; era reprimida pela tradição, restrição que se estendeu pelo menos até meados do século XX, quando, segundo Zolin (2009), em especial a partir de 1960, um novo olhar seria lançado para a voz feminina na literatura e outras áreas. A personagem esclarecida e “estudada”, emergem representações – as visíveis e as não visíveis – a do jogo de poder entre masculino e feminino: Doutora Deo: Quando o homem estabelece a propriedade, ele cria a hereditariedade. E vai atacar a mulher naquilo que sempre foi o pivô da idolatria, e também da inveja, do respeito e também do medo, a sua sexualidade. E isso Freud nunca explicou. A partir desse momento, o homem não quer mais idolatrar a natureza, não a vê como um receptáculo, sua única idéia é dominar a natureza, dominar a mulher. (ALMEIDA, 2006, p. 39). Falando pelo viés psicanalítico freudiano e usando o presente do indicativo (que, entre outros sentidos, representa verdades absolutas), a personagem reconhece (mesmo querendo negar ou tentando silenciar) a superioridade ou domínio masculino: é o homem quem ataca; é o homem quem domina. É como se o servilismo feminino começasse a ser posto em xeque, porém a dominação masculina assume sutil e silenciosamente um outro discurso, a partir de outro ponto de referência, conforme analisou Chartier (apud SOIHET, 1998, p. 77-87): ela emerge de dentro de um esquema de consentimento, quando, para marcar resistência, reemprega o discurso da dominação, pois há, contra o próprio dominador, uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos instituintes da dominação masculina. A mulher conquista o território da 13 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 fala, da expressão, o que ainda não significa, todavia, romper com a dominação masculina; pelo contrário, esta acontece pelo argumento e pela autopermissão por parte das mulheres. É na voz de Dedé que o discurso da inferioridade feminina, de sua subjugação ao homem, de sua condição de objeto fica visível, silenciando completamente, em pleno século XXI, o discurso da libertação feminina: Adeodata Cruz, já foi dona de três casas de zona, mas perdeu tudinho para um cafetão safado[...]Aquela lá é Adeodata das Dores, uma sofredora: o marido fugiu com a irmã, e dos doze filhos que tinha só restou dois, um não deu pra nada e o outro nem para isso deu.[...]A outra bonitona é Adeodata das Flores: não é brilhantina, mas vive na cabeça de tudo que é homem. Parece o mar: todo macho vai na onda [...]E tem mais a menininha do lado, é filha dela, Adeodatinha... E eu vou dizer uma coisa : a fruta nunca cai muito longe do pé. Logo , logo, deixa a “faze” de criancice e começa a “faze” da criançada. (ALMEIDA, 2006, p. 36) No conjunto discursivo, é visível a manutenção dos costumes e da definição de “papéis” para homens e mulheres no âmbito da sexualidade, naturalizados pela voz de uma mulher, confirmando a relação de submissão e a desvalorização do feminino. Observemos que a imagem da família é fragmentada; e o “destino” da “Adeodatinha” é continuar objeto, compondo um quadro imagético-discursivo não só da mulher, mas da região (também estigmatizada) de onde provém a personagem que fala e as personagens sobre as quais se pronuncia: o Nordeste. Também na voz da doutora Deo se apresentam, no texto dramático em análise, fragmentos em que a mulher é caracterizada como submissa ao homem, seja por preconceito, seja por meio da violência: Doutora Deo: Em pleno século XXI, na Índia, em alguns países asiáticos e em vinte e oito países africanos quando as meninas entram na adolescência, os pais exigem a extirpação do clitóris e, às vezes, até dos lábios da vagina, usando tesoura, lâminas e até mesmo pedaços de vidro. Numa cerimônia banhada de sangue e dor, costuram tudo, deixando só um buraquinho para a urina e para a menstruação. Mas você não vai escrever isso, que é tudo muito pesado. Isso não, mas eu vou escrever que as florestas tropicais são queimadas e derrubadas tão depressa que poderão sumir nos próximos trinta anos, que cem milhões de mulheres já passaram pelo ritual de mutilação e que a cada ano acontecem dois milhões de mutilação porque tudo isso é cientificamente comprovado e eu tenho as estatísticas. (ALMEIDA, 2006, p. 40). Doutora Deo: Seiscentas mulheres foram queimadas por ano, em Toulouse quatrocentas em um único dia, em algumas aldeias queimaram todas as mulheres, e ninguém se pergunta qual o tamanho da escuridão deixada por esse clarão dessas fogueiras????????? E sua voz fica incomodando na Terra... (ALMEIDA, 2006, p.45). Importa comentar que a inferioridade da mulher para justificar sua dominação não é um discurso novo; já se encontrava em Aristóteles, em seu Política (Livro I, 1254): "O homem, por 14 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 natureza, é superior; a mulher, inferior; o primeiro governa, o outro é governado. Este princípio se estende para toda a humanidade [...]". Reproduzido por várias instituições sociais, como a escola, a igreja e a família, esse discurso acaba por ser aceito como verdadeiro, impedindo a participação ativa das mulheres em diversos setores sociais e, pois, atentando contra a democratização da sociedade. Zolin (2009,p. 220), ao comentar sobre a “libertação da mulher”, considera que a abrangência desse processo “estende-se dos matriarcados neolíticos ao feminismo radical contemporâneo [...]” e que o feminismo é “um movimento político bastante amplo [...], alicerçado na crença de que, consciente e coletivamente, as mulheres podem mudar a posição e inferioridade que ocupam no meio social”. É na voz da Doutora Deo, com os posicionamentos contestadores das “verdades” constituídas ao longo da experiência adquirida por meio das pesquisas científicas, seja no plano do discurso religioso (numa espécie de carnavalização), seja na discussão do cotidiano humano, do intelectual ou do avanço tecnológico, que começam a emergir vozes e discursos de/sobre a superioridade feminina no meio social: Como é que eu vou escrever que naquele momento o homem não tinha compreensão do papel dele na fecundação, principalmente diante dos atributos que a natureza confere às mulheres? O mistério da maternidade, da amamentação, do sangue... [...] Você deveria escrever sobre um tema mais conhecido mais divertido, inserido no contexto atual e, principalmente, de fácil assimilação. Hoje em dia, a biodiversidade está em alta. (ALMEIDA,2006,p.32-33). [...] dados , eu preciso de dados.Onde está o manual da Inquisição? Eu preciso do manual, afinal foram quatrocentos anos de caça às bruxas, quatrocentos anos que se acreditou que as mulheres voavam em vassouras, copulavam com o diabo e procuravam demônios.... Mas isso deve ser verdade, porque um Hitler, um Bush não nascem das pedras, isso tudo teve mãe... Que voavam em vassouras?(p.44). [...] nesses anos todos convivendo com artistas populares, estudando a trajetória da espécie humana, chego à conclusão de que esta sociedade que esta aí clama por transformações, e como não é uma sociedade administrada por elefantes, abelhas, jacarés ou peixe-boi, mas sim por seres humanos, as transformações têm que se dar é na qualidade do ser humano. (p.58). Segundo Pallotini (1988, p. 64), “O personagem entra em cena através do ator, no espetáculo. Mas, antes disso, ele entrou em cena, figuradamente, através do texto”. Na ação dramática de Dora, atriz e dançarina (e alter ego da autora), que, ao realizar a leitura do livro da doutora Déo, resolve montar uma peça e ser uma das personagens, há mais que esse entrar em cena; há uma espécie de metateatralização: 15 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Eu queria agradecer a presença de todos e oferecer esse espetáculo para a doutora Adeodata Luz, porque foi através do seu livro que eu tive a inspiração para construir este espetáculo. (ALMEIDA, 2006, p. 58). Mais uma vez, podemos evocar as palavras de Zolin (2009, p. 333) acerca do papel da mulher que faz literatura e que, no caso da peça, de autoria feminina, põe em cena figuras femininas inseridas em situações que fazem eclodir essas discussões, seja por meio dos questionamentos das próprias personagens acerca do espaço que lhes é reservado na sociedade, seja por meio de um discurso irônico que , ao retratar a mulher enredada nas relações de gênero, desperta o leitor para o absurdo de certas leis sociais que regulam o comportamento feminino. No texto teatral de Rosane Almeida, notamos quando Dedé, por intermédio do humor e determinada ironia, retrata sua experiência de vida e questiona o universo e os valores masculinos: Sabe uma coisa que eu queria? Era ser feia e pobre por um dia. Porque essa história da pessoa ser feia e pobre todo dia é muito desagradável. Olhe, tem um bolo de batata aqui que a doutora me trouxe. Um dia ela veio com uma história de que “penso, logo existo”, aí eu falei para ela: “Batata não pensa, então não existe”... Eu mesmo existo porque insisto. [...] Meu [...] marido era um homem tão esquisito não gostava de festa, não gostava de dançar, cantar... Nem Parabéns pra você! Só pensava em ganhar dinheiro e passar os outros para trás. Tinha um ciúme tão da gota de mim. E findou que a doida era eu, né? Chegou a me internar no Juqueri. (ALMEIDA, 2006, p. 49). Nesse diapasão, a Deo que se despe do acadêmico e surge nas relações cotidianas levanta a voz contra o homem, questionando-lhe a superioridade e pondo em cena o feminismo, sob a forma de um machismo às avessas: Doutora Déo: O quê, Apolônio ? Para eu deletar o seu nome do meu chip? Mas você é um grosso mesmo! Já não se fazem mais homens como os de Neandertal, como os sapiens, nem como o os erectus dos tempos remotos. (ALMEIDA, p. 31). As primeiras mudanças na visão do homem com relação a natureza e a mulher começam no momento em que ela se dá conta de que jogando a semente na terra a planta nasce, a fêmea separada do macho não procria. (ALMEIDA, 2006, p. 31). Importa acrescentar que a “nova” mulher ocupa o espaço público, saindo “de casa” para trabalhar. Não é mais o masculino/exterior/ligado à inteligência e à tecnologia que tem o acesso simbólico à filosofia e à sabedoria, antes exclusivamente do homem, e sim o feminino/essência/interioridade. É como se, em uma pirâmide marxista invertida, os fatores 16 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 econômicos, que implicam a formação das diferenças de classes, compusessem a superestrutura, no vértice. Há, na sequência, símbolos que, ao serem assumidos pelo protagonista como comportamentos de sua mulher, desvirilizam-no, pondo em evidência um sistema de referência que historicamente reforçou as divisões de gênero. Os enunciados acima constituem as imagens, as falas e comportamentos do ser masculino e do ser feminino, subjetividades essencialmente fabricadas e modeladas no registro social, remetendo-nos às palavras de Bourdieu (2000, p. 23): a "ordem masculina está, portanto, inscrita tanto nas instituições quanto nos agentes, tanto nas posições quanto nos dispositivos, nas coisas (e palavras), por um lado, e nos corpos, por outro lado". Considerações finais A partir das análises, percebemos que a escrita encontra e se constrói no entrecruzamento das falas das personagens e que os silêncios “escorrem” em meio às palavras por intermédio dos jogos de vozes das personagens. Entre vozes e silêncios, as personagens vão se impondo na literatura por intermédio da representação, porque o teatro não é apenas um “resistente histórico, mas [...] é uma forma artística dotada com grande poder vital de autorrenovação” 4. THE VOICES SILENCED IN A MAIS BELA HISTÓRIA DE ADEODATA, BY ROSANE ALMEIDA ABSTRACT: Anchored in studies of Ryngaert (1996), Pavis (1999), Pallottini (1998) and Ginsburg (2009) about the way of structuration of the theatrical text, this work hás as objective the investigation of the silenced voices in the theatrical piece of Rosane Almeida, A mais bela história de Adeodata (The most beautiful history of Adeodata). Thus , it will be investigated as the dramaturgical speaks interconnect from everyday experiences of the characters . Indeed, it is worth mentioning that the threee Adeodatas, in making their voices to emerge in the text, go through a process of silencing, leading the audience to reflect on aspects of social representation.It is important to note that the text of Rosane Almeida is permeated of the called “playful theater,” once that Antonio Nóbrega and author founded playful Theater school being that the popular playful is the person who acts, sings plays or dance.The Playful a typical style of the of Brazilian northeastern the dramaturge uses of this characteristic in its dramatic text which supports to mark your own style. KEYWORDS: Contemporary brazilian theater. Characters. Adeodata. 4 PATRIOTA, Rosangela. Temas, Formas e objetos da pesquisa e da prática teatral no Brasil: reflexões acerca do Dicionário do Teatro Brasileiro. Revista USP, São Paulo, n.76,p.174, Dezembro/Fevereiro.2007-2008. 17 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 REFERÊNCIAS: ALMEIDA, R. A mais bela história de Adeodata. São Paulo: Salamandra, 2006. BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. GUINSBURG, J.; FARIA, J. R.; LIMA, M. A. de. Teatro Brincante. In:_____. Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Perspectiva, SESC/SP, 2009. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MAGALDI, S. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1991. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007. PALLOTTINI, R. Dramaturgia construção do personagem. São Paulo: Ática, 1988. PATRIOTA, R. Temas, Formas e objetos da pesquisa e da prática teatral no Brasil: reflexões acerca do Dicionário do Teatro Brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 76, p. 174, dez./fev. 20072008. Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/revusp/n76/17.pdf. Acesso em: 11 jul. 2011. PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996. RYNGAERT, J-P. Introdução à analise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SOIHET, R. História das mulheres e história de gênero: um depoimento. Cadernos Pagu, 11, 1998, p. 77-87. 18 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ZOLIN, L. O. Crítica Feminista. In: ZOLIN, Lúcia Osana; BONNICI, Thomas. (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. ampl. Maringá: Editora Eduem, 2009. p. 217-242. _____. Literatura de autoria feminina. In: ZOLIN, Lúcia Osana; BONNICI, Thomas. (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. ampl. Maringá: Editora Eduem, 2009. p. 327-336. 19 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Do romance para a televisão: A adaptação audiovisual de “O tempo e o vento” Aline Cristina MAZIERO1 RESUMO: O presente artigo pretende discutir a adaptação de textos literários para meios de expressão audiovisual. Para isso utilizaremos como objeto de estudo a minissérie “O Tempo e o Vento”, adaptação da obra homônima do escritor gaúcho Erico Verissimo. Ao primeiro contato com uma adaptação, a reação do crítico tende a ser julgá-la de acordo com critérios de uma pretensa “fidelidade” ao texto “original”, ou “texto-fonte”. Contudo, estudos recentes sobre adaptação têm se ancorado na diferença entre as linguagens estudadas. A televisão, com suas especificidades, compartilha os mesmos preceitos da linguagem cinematográfica. Nosso objetivo neste estudo, portanto é verificar como o enredo da narrativa literária é “recontado” na televisão, que se utiliza de sons, imagens e movimentos para construir sua linguagem. Para exemplificar, serão utilizadas sequências da minissérie estudada. PALAVRAS-CHAVE. Adaptação. Linguagem Cinematográfica. Televisão. Literatura Brasileira. Introdução Embora contar histórias seja uma atividade intrínseca ao comportamento humano, na atualidade vê-se que a maneira como essas histórias são contadas se modificou. O processo que se iniciou oralmente, nas sociedades tribais, com o chefe que reunia seu clã para contar seus feitos na guerra ou na caça, hoje atinge novas proporções com os meios de comunicação de massas. A tradição oral migrou para a escrita, e com o romance, o indivíduo que antes se reunia em grupos para ouvir histórias, passou à leitura silenciosa e solitária. A propagação destas histórias atingiu níveis inimagináveis com a imprensa, que popularizou os folhetins, estórias romanescas, que divididas em capítulos, chamavam a atenção e fidelizavam o leitor. Com a fotografia, a câmera consegue ir onde o olho humano não enxerga, paralisa momentos únicos e torna possível a sua reprodução por meio dos negativos. O cinema surge então, como um desdobramento da fotografia, a arte de dar movimento ao que antes era estático, e assim, modificar ainda mais o modo de narrar. A partir disso entende-se porquê o cinema utiliza a literatura como importante fonte, e encontra-se um motivo que justifique a necessidade de um estudo cada vez mais aprofundado da relação entre as duas artes. Justificativa esta que também pode-se encontrar nas palavras de Christian Metz, pois segundo o autor o cinema “nos conta histórias contínuas; ele 'diz' coisas que também poderiam ser expressas na linguagem das palavras, porém as diz de modo distinto”.(METZ, 1974, p. 44). 1 UFMS. CCHS. Campo Grande /MS/ Brasil./79080-190/[email protected] 20 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ora, se o cinema então “diz” coisas que também poderiam ser ditas com palavras é natural que a televisão, que compartilha da mesma linguagem cinematográfica com algumas especificidades que a diferenciam - constituindo-se tal qual um dialeto, ou ainda para compararmos, uma variante lingüista de um mesmo idioma – como por exemplo, a divisão por capítulos, e mais ainda, por partes, entremeadas de publicidade, e a fidelização do espectador, que acompanha diariamente os episódios a fim de não perder a sequência dos acontecimentos, siga o mesmo caminho. Porém, quando falamos de obras adaptadas, tendemos a julgá-las de acordo com uma suposta “fidelidade” ao texto “original”. Atualmente, os estudos de adaptação têm expandido esta análise comparatista, que se limitava a relacionar as perdas e ganhos do texto adaptado, propondo uma abordagem que passa a considerar que como se trata de uma linguagem diferente, as interpretações e os sentidos produzidos também se diferenciam. Neste trabalho analisaremos como se dá a adaptação do texto escrito para o texto audiovisual, ou mais especificamente, para o televisivo, abordando as especificidades da linguagem cinematográfica, tomando como base de discussão nosso objeto de estudo, a obra literária de Erico Verissimo e sua adaptação para a televisão. Da palavra à tela – O texto literário e o audiovisual “O Tempo e o Vento”, obra do escritor gaúcho Erico Verissimo, foi construída em sete tomos, divididos em três volumes: O continente, O Retrato e o Arquipélago. Aqui, nos deteremos apenas no enredo do primeiro volume. Composta de sete partes, talvez mais corretamente descritas como “episódios”, a narrativa tem natureza cíclica, pois se inicia com o cerco ao “Sobrado”, último reduto republicano durante a Revolução Federalista e chega ao fim no mesmo Sobrado, três dias depois, com a rendição da família aos maragatos. A minissérie foi exibida pela Rede Globo, de 22 de abril a 31 de maio de 1985, em 25 capítulos, no horário das 22h, a partir da adaptação da obra literária, realizada por Doc Comparato com a colaboração de Regina Braga e dirigida por Paulo José. A primeira parte da adaptação é a que conta a história do Sobrado e tem como tema principal as lutas políticas da região, que acontecem entre o fim do império e a consolidação da República. O ano é o de 1895. No sobrado onde vivem, os Terra-Cambará, republicanos, estão cercados pelos maragatos. É nesse momento que Bibiana observa a centenária figueira da janela de sua casa e volta no tempo, resgatando lembranças de seus antepassados. A segunda parte diz respeito à Ana Terra. Ana Terra é avó de Bibiana, que veio do estado de São Paulo para o Rio Grande do Sul. Ana é introspectiva, quase não fala, se expressa mais com gestos. Trabalha como lavadeira. A rotina muda com a chegada do índio Pedro Missioneiro que é encontrado ferido e medicado por ela. A terceira parte da narrativa é Um certo capitão Rodrigo. O capitão é um forasteiro que chega a Santa Fé em um dia de Finados. Ninguém sabe quem é, ou a que veio, mas conhece 21 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Bibiana e se casa com ela. Apesar de gostar de artes e música, vive em um Estado em que as batalhas, seja pelo alargamento do território, seja pela manutenção da soberania, são frequentes. Quando as tropas de Bento Gonçalves passam por Santa Fé, Rodrigo junta-se aos farroupilhas. Por fim, a quarta parte da minissérie chama-se Teniaguá. Acompanhamos a história dos descendentes do Capitão Rodrigo e Bibiana, principalmente o drama vívido por Luzia, a nora, conhecida também por Teniaguá. Luzia chega do Nordeste em um dos surtos de migração pelos quais passa a cidade de Santa Fé e se casa com Bolívar, filho de Rodrigo e Bibiana, uma pessoa de personalidade fraca. Logo de início, Luzia e Bibiana não se entendem e a relação entre as duas se deteriora. Devido à limitação do espaço de um artigo, este trabalho demandou a escolha de uma sequência da minissérie, para que pudéssemos verificar como a narrativa televisiva reconstrói e reconta, com os recursos que lhe são próprios, o enredo da narrativa literária. A sequência escolhida para análise está presente na segunda parte da adaptação, Capitão Rodrigo. Optou-se por esta sequência, pois ela demonstra o início da rivalidade entre o capitão e o filho do coronel Ricardo Amaral. Além da luta por uma mulher, o duelo representa o desafio de Rodrigo às forças políticas da cidade de Santa Fé, pois vem de fora, e não parece temer a ira do coronel. Esta sequência tem importância na narrativa, pois é o estopim, que levará, mais tarde, à morte de Rodrigo em uma emboscada. Um recorte para análise – Duelo em Santa Fé É dia do casamento do irmão de Bibiana, Juvenal Terra, com a jovem Maruca. A cidade de Santa Fé está em festa. A cena é ao ar livre. Os noivos saem da igreja sob aplausos e música. A música é diegética, ou seja, acontece dentro da narrativa. A câmera está posicionada em baixo em contra-plongé, para que se note ao fundo a igreja e à frente o movimento nos vestidos das mulheres. O plano de conjunto é utilizado como recurso para se note o afastamento dos noivos, filmados em integração com o ambiente que os cerca. Acontece então uma elipse espaçotemporal, provocada por um raccord de movimento, que, segundo o Dicionário Teórico-Crítico de Cinema é um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível, apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual.[...] Existem desse ponto de vista alguns grandes tipos de raccord, que só têm em comum a preocupação com a preservação de uma certa continuidade (mas nem sempre a mesma): espacial (caso do raccord no eixo); plástico (raccord sobre um movimento); diegético (raccord sobre um gesto), por exemplo. (AUMONT, 2003, p. 251) Tal raccord pode ser percebido no momento em que a câmera acompanha os passos dos noivos e seus convidados e no plano seguinte o capitão Rodrigo surge andando em uma 22 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 continuação daquele espaço. A câmera segue seus movimentos em plano de conjunto, destacando-o em meio aos outros personagens. A câmera mostra Bibiana e Bento Amaral em plano próximo, conversando. Por sua expressão facial percebe-se certo desinteresse na conversa do companheiro. A moça nota Rodrigo e uma música não diegética, ou seja, que foi produzida fora do ambiente de filmagem, demarca um momento de maior tensão entre os três jovens, que trocam olhares. A câmera, posicionada frontalmente, nos mostra em plano geral, um círculo com os convidados. Depois, por meio de um plano próximo dá-se destaque a Padre Lara, que inicia um discurso pela felicidade dos noivos. No decorrer do discurso, a câmera mostra em plano próximo os rostos dos noivos sorrindo e depois novamente Rodrigo, que detrás de uma árvore observa Bibiana, e da própria Bibiana, que retribui seu olhar. Sendo assim, sem a necessidade de palavras entre os dois, somente por meio da seqüência de imagens e da troca de olhares, percebem-se as intenções de Rodrigo para com Bibiana e intui-se que ele seja correspondido. Novamente o raccord no movimento permite que vejamos Bibiana e Bento Amaral brindando, e Rodrigo aparece em close, acompanhando-os com o olhar. (Figura 1) Rodrigo, encostado na árvore, acompanha Bibiana com o olhar. Close no rosto do personagem Bibiana, mostrada em plano próximo, está dançando e sorrindo e o Capitão Rodrigo a observa, encostado em uma árvore. A profundidade de campo aumenta e agora, vê-se Bibiana, em plano de conjunto, dançando com Bento Amaral, ao som de uma música típica e diegética. A música é um elemento repetitivo, um pleonasmo, que tem a função de reforçar os movimentos dos personagens e o ritmo em que eles ocorrem. O capitão permanece recostado à arvore e por 23 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 meio de um close do tipo cut in – dentro da ação do personagem – nota-se o Padre Lara que vem se aproximando de Rodrigo. A imagem passa ser em plano médio. Nota-se, nessa cena o tipo de diálogo que Marcel Martin chama de realista, com o uso de expressões cotidianas, e no qual predomina a linguagem coloquial, que visa a clareza e o fácil entendimento, tais como as expressões usadas pelo capitão “Fique tranquilito” e que “morda o rabo...” Durante o diálogo, há utilização da técnica de campo/contracampo, já que a câmera focaliza um personagem de cada vez, enquanto este fala. (Figura 2) Padre Lara conversa com Rodrigo. Nota-se a utilização da forma clássica para diálogos: o campo/contracampo A câmera filma de baixo para cima, com o intuito de realçar a distância entre os dois personagens, e a diferença de altura entre o capitão e o padre. Rodrigo se afasta da árvore, caminha em redor de Padre Lara. A câmera acompanha seus movimentos e mostra, ao fundo, os convidados dançando. Rodrigo informa ao padre que irá tirar Bibiana para dançar. O padre tenta advertir Rodrigo, enquanto ele se afasta na direção de Bibiana. A moça aparece em close, sorrindo e finalizando uma dança. Com o movimento de Bibiana, a câmera abre em plano geral, e mostra que os noivos estão próximos dali, também dançando. Após os cumprimentos finais da dança, Bibiana se afasta na direção da nova cunhada, Maruca. As duas são filmadas em plano americano. Devido à proximidade entre elas, pode-se supor que estejam trocando confidências. O rosto de Bibiana fica sério de repente, quando olha para o lado e nota a aproximação do capitão. A câmera mostra Bibiana em plano próximo e filma em contra-plongé, até alcançar o rosto de Rodrigo. Este movimento pode ser considerado de câmera subjetiva, pois dá a impressão de ser o movimento do olhar de Bibiana, de baixo para cima, realçando o modo com ela o vê, como um herói, superior a ela. Ele a convida para uma dança. Bibiana troca olhares com o capitão, mas muito tímida baixa a cabeça e não responde. A câmera atua aqui pra demonstrar as emoções que passam pelo semblante de Bibiana, que parece ansiosa para aceitar o convite. Mostra em close as feições do capitão Rodrigo, que aguarda a resposta com expectativa. 24 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Bento Amaral, que estivera afastado do campo de visão da câmera, se aproxima lentamente. Como o último plano foi um close em Rodrigo, o jogo de câmera dá a impressão de que o capitão acompanha cada passo dado pelo rival em sua direção. Esta passagem demonstra como a câmera deixou de ser considerada apenas como uma registradora passiva dos acontecimentos, para, como afirma Marcel Martin “se tornar a sua testemunha ativa e a sua intérprete [...] isto é, um processo através do qual o olho da câmara se identifica ao olho do espectador por intermédio do herói.” (MARTIN, 2005. p.41). Bento e o capitão iniciam um diálogo mais tenso. A interpretação dos atores dá à cena o tom de desafio também presente no livro de Erico Verissimo. Como o diálogo é rápido, as câmeras se posicionam em plano próximo, ora num, ora noutro personagem, para enfatizar ainda mais a tensão da cena. Padre Lara tenta intervir logo no início da discussão, mas Juvenal o afasta. Insistente, Rodrigo questiona Bibiana mais uma vez, Bento, exaltado, reitera que ela já tem par. Ignorando o comentário, Rodrigo se dirige à Bibiana. O padre Lara cede seu lugar a Juvenal, que fica ao lado do capitão. A câmera filma Rodrigo e Bibiana, um de frente para o outro, em plano médio, em primeiro plano. Ao lado, mas em segundo plano, está Juvenal. Em plano mais afastado, os convidados se reúnem eu círculo. A câmera mostra a reação desconfortável de Bibiana, que aparenta estar encurralada entre Rodrigo e Bento Amaral. O padre intervém mais uma vez, ficando entre os dois. Ao fundo, a câmera capta o olhar perplexo de Maruca. Padre Lara insiste em que resolvam as coisas amigavelmente. Mas nesse momento isso já é impossível. Rodrigo abaixa a voz e faz um gesto largo com a mão, indicando Bento. A profundidade de campo aumenta, e vemos Rodrigo em plano de conjunto, integrado ao ambiente. Seguindo a direção do olhar de Rodrigo, a câmera faz uma imagem em plano médio de Bento Amaral, Bibiana e Pedro Terra, que a esta altura, observa as reações da filha. Bento se aproxima mais do capitão. Padre Lara, interposto entre os dois, tenta intervir mais uma vez. Nota-se a tensão em seu semblante, acentuado pelo close em seu rosto. A tensão é ainda mais reforçada por uma música não diegética. Bento caminha lentamente para frente. A câmera se fecha e mostra, em plano próximo, as expressões de Rodrigo e Bento Amaral. Por último, passa por Bibiana, que demonstra estar amedrontada, aninhando-se nos braços do pai. Há close na expressão de Rodrigo que em tom de desafio, afirma: - Por bem menos que isso, já escrevi à faca a primeira letra do meu nome na cara de um canalha! Bento reage acertando o capitão no rosto. Rodrigo tenta revidar, mas é impedido por alguns homens, provavelmente capangas de Bento que o seguram por trás. Arma-se um tumulto, e com o jogo feito pela câmera percebe-se o desespero de Bibiana e a reação irritada de Bento Amaral. Abre-se um plano geral, com uma imagem feita de cima, em plongé dos convidados. Destaca-se Juvenal, que está indignado, pois os capangas de Bento impedem Rodrigo de reagir. A sequência é tensa e para reafirmar esta tensão e provocar mais emoção em quem assiste, faz uso de planos próximos e closes. Maruca tenta dissuadir o marido, pois é noite de 25 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 festa, argumento também utilizado pelo padre Lara. Mas Juvenal parece decidido a vingar a honra de seu amigo capitão. Não dá atenção a eles e desafia Bento. A tensão então muda de foco. Se antes, o Capitão Rodrigo estava exaltado, agora é a vez de Juvenal assumir as “dores” do amigo e desafiar o filho do chefe local. As palavras saem exaltadas, e se utiliza o close, para que o espectador – assim como os convivas do casamento de Juvenal – tenha a sua atenção concentrada na expressão e nos dizeres do filho de Pedro Terra. A fala exaltada de Juvenal parece “chamar” a expressão angustiada de Maruca, que se vê no plano subsequente. Juvenal agora tem toda a atenção dos convidados, e também de Bento, que não ousa interrompê-lo. Enquanto Juvenal fala, a câmera capta closes das expressões de Bento Amaral, Bibiana e sua mãe, que olham para Juvenal com descrença. Padre Lara se aproxima de Juvenal e tenta fazê-lo parar de falar: os dois homens são filmados em plano médio, para realçar o nervosismo de ambos e a tentativa do padre de afastar o noivo da confusão. Mas Juvenal vira-se, bastante irritado, olha para os convidados que o estão observando – e a câmera segue seu olhar, mostrando as pessoas à distância. Voltando-se para a frente, a câmera mostra o rosto de Juvenal em primeiro plano, ainda continuando a falar e os convidados observando-o em segundo plano, no fundo da tela.. O olhar de Juvenal não desgruda do de Bento, que não sabe o que fazer. O capitão, que continua seguro pelos homens, se esforça para reagir. A filmagem é feita como se no esforço para chegar a Juvenal, o Capitão Rodrigo fosse sair da tela. Tal recurso aumenta ainda mais a dramaticidade da cena. O capitão argumenta que essa briga é dele. Bibiana observa a cena, recostada no ombro do pai. Os closes alternados nos rostos dos personagens mantêm a emoção da cena. A câmera volta a mostrar Juvenal, em plano médio, com o padre Lara ao lado. Juvenal volta a falar acusando os Amarais de roubarem suas terras. Usa-se o cut away, com close fora da ação de Juvenal, no rosto de Nicolau com a intenção de reforçar a incredulidade das pessoas com o atrevimento de Juvenal em desafiar Bento. A música instrumental, não diegética, reforça o nervosismo e a raiva demonstrados por Bento enquanto ouvia as acusações. Ele se movimenta na direção de Rodrigo e acertam o duelo no alto de uma coxilha. Juvenal, filmado em plano médio, apenas da cintura para cima, ao lado de Padre Lara, intervém, questiona se os capangas de Bento não irão liquidar o capitão e obriga o rapaz a dar sua palavra de honra que o combate seria limpo. A cena toda se passa em close, de um personagem a outro, para realçar as emoções que transparecem no semblante de cada um. Bento olha para o lado e a câmera mostra Padre Lara, em plano próximo. Bento lhe dirige a palavra pedindo que avise ao pai da palavra empenhada. O padre, que está no meio dos dois, aparece em plano próximo e insiste que resolvam sem necessidade de duelo. - Agora é tarde, padre! A voz é de Rodrigo, mas a imagem nos mostra a expressão desolada de Bibiana. É o seu olhar na direção do capitão que nos guia até ele, que continua falando. Ele aparece em primeiro 26 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 plano, e vemos, em segundo plano, convidados que acompanham suas palavras. Rodrigo afirma que colocará sua marca na “cara” de Bento. Na escolha de armas, Rodrigo prefere a adaga, pois assim a morte será mais lenta. Note-se que durante toda esta sequência, os diálogos foram filmados em campo/contracampo, obedecendo às normas montagem narrativa clássica. Há a alternância entre as falas de um e outro personagem, dando a impressão de continuidade e de proximidade entre eles. Bento caminha na direção oposta. Aqui, ainda continua a predominância de closes no rosto dos personagens, seja para conferir mais emoção a uma fala, seja para conhecermos as suas expressões. Aumenta a profundidade cênica, abre-se um plano geral dos convidados, e logo, vêse Rodrigo se aproximando de padre Lara. O capitão entrega sua pistola ao padre e dá instruções para que, se morrer, pegue seu dinheiro e divida-o com Juvenal. Esta cena acontece em plano próximo, já que Rodrigo aproxima a cabeça da de Padre Lara, como se o pedido fosse um segredo. Sai em direção à casa de Nicolau, para pegar sua adaga. Há uma panorâmica vertical, de baixo pra cima, que se inicia nas mãos do padre, segurando a pistola e vai até seu rosto, assustado com o rumo dos acontecimentos. ( (Figura 3) Panorâmica que vai das mãos com a pistola ao rosto assustado de Padre Lara Dá-se então nova elipse espaço-temporal, ocasionada pelo que Marcel Martin chama de analogia de objeto material, pois, em um momento o padre aparece olhando a pistola e no outro, Rodrigo, já dentro do quarto, ajeita a adaga à cinta. O capitão ouve a voz de Bibiana chamando por ele, e a vê se aproximar lentamente. Eles se beijam e só depois de um tempo, o capitão percebe que não era Bibiana quem o beijava, mas sim Paula, a mulher do vendeiro Nicolau. Esse tipo de transição é um exemplo do que Marcel Martin denomina “ligações de ordem psicológica”, ou seja, uma alucinação causada pelo desejo do personagem que vê, que neste caso, enxerga algo que não acontece na realidade. Esta cena ganha destaque maior na adaptação, pois 27 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ao passo que no romance narra-se que ele sabia desde o princípio se tratar de Paula, mas imaginava Bibiana em seus braços, na adaptação os recursos audiovisuais, permitem que o espectador “veja” o pensamento do capitão. Quando se dá conta que não está com Bibiana nos braços, o capitão se afasta reclamando e vai embora. (Figura 4) Transição de ordem psicológica, demonstra o desejo de Rodrigo por Bibiana enquanto ele beija outra mulher. Sai da casa montado em seu cavalo, e para próximo à figueira, onde está um pequeno grupo, ao qual Juvenal Terra instrui. A câmera acompanha o galope desde a saída de casa até a parada junto aos homens, num travelling assumindo papel descritivo de cenário. A música nãodiegética também acompanha o capitão. Juvenal aparece em plano médio, no meio de um círculo de homens e se dirige aos dois oponentes, que o observam de cima de seus cavalos. O capitão e Bento são filmados em contra-plongé. Ao fim das instruções, os cavaleiros partem, um para cada lado, em direção ao cemitério. 28 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (Figura 5) Enquadramento de Bento Amaral em contra-plongé, escutando as instruções de Juvenal. Com o intuito de quebrar a tensão dos últimos minutos, vê-se Bibiana, ajoelhada, rezando, na igreja em que horas antes se realizara o casamento de seu irmão. As imagens em close permitem que se veja as lágrimas em seu rosto, enquanto ela reza. A tomada é feita em contra-plonge, de modo que se note toda a aflição de Bibiana. Ela abaixa a cabeça e chora. Há uma transição de ordem estética, pois no momento em que abaixa a cabeça para as mãos, sua vista escurece. O plano subsequente começa de baixo para cima, focando primeiro nas botas do capitão Rodrigo, e depois mostrando-o, de frente para Bento Amaral, que ajeita no braço um lenço azul. Por meio de um corte seco vemos se tratar das proximidades do cemitério da cidade, local onde se dará o duelo. A um sinal de concordância, começa a luta. A câmera filma de forma subjetiva, balançando-se conforme os golpes dos personagens. Aproxima-se, e, em plano próximo, demonstra a tensão entre os oponentes, separados um do outro, apenas por suas adagas. Distanciam-se, e a câmera filma os dois, trocando golpes, até que Rodrigo consegue desarmar Bento. Neste momento, ouve-se apenas o ruído diegético das adagas se tocando. Bento se afasta e pega o lenço azul, que a usa tal qual um toureiro para chamar Rodrigo. Por meio de um travelling, observa-se a movimentação dos dois até que Bento recupere o equilíbrio. Os movimentos de câmera demonstram com maior clareza o momento de instabilidade do personagem até que ele, apoiando-se, sobe em um muro do cemitério. Rodrigo abaixa-se para pegar adaga de Bento. A imagem é feita de baixo para cima, para realçar a mudança de plano de Bento, que agora está de pé, sobre o muro. O capitão devolve a adaga, já que não costuma brigar com homem desarmado. Este movimento, da passagem da adaga das mãos de um personagem para as de outro, também é mostrado em contra-plongé, adotando-se, mais uma vez, o ponto de vista de Rodrigo. 29 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Os dois continuam a briga, desta vez, trocando golpes por entre as árvores. Mais uma vez, a música não diegética atua como pleonasmo, tendo em vista que só se ouve o barulho das adagas se tocando, o qual a música reforça. A troca de golpes continua até que Rodrigo consegue desequilibrar Bento e mantê-lo no chão. A câmera mostra em detalhe o momento em que o capitão imobiliza os movimentos da mão de Bento com a sola de sua bota e coloca a adaga em riste, na altura do pescoço do adversário. (Figura 6) Plano de detalhe: o capitão imobiliza Bento com sua bota Vê-se em close, a expressão de dor de Bento. Numa imagem de baixo para cima, vê-se o capitão, em plano próximo, com a adaga em punho, marcando o rosto de Bento com o “R” de seu nome. Os planos se alternam entre o rosto de Bento, sendo marcado, e o rosto do capitão, que em posição superior, marca. Na casa de Bibiana, todos aguardam notícias do desfecho do duelo. Ao som do relincho de um cavalo, Juvenal corre até a porta. Abre, e com o uso de raccord já se encontra para fora da casa, assim como seu pai. O último a sair é padre Lara, que lentamente se aproxima e toma lugar entre os dois. Todos eles olham na direção da esquina, esperando ver o capitão. O movimento de câmera, em uma panorâmica lateral, permite ver no semblante de cada um a expectativa do momento. Isso é ainda reforçado por uma música não diegética, triste, de harmonia menor e que parece prolongar os segundos de espera. A imagem do cavalo só surge diante da câmera, depois de um close na expressão de Juvenal, o que supõe que a câmera assume posição subjetiva, do olhar dele. Bento aparece, diz-lhes que busquem o corpo. 30 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Nesta última cena da sequência ocorre um tipo de elipse de conteúdo, pois não vemos como Bento atinge o capitão, mas sabemos que ele sai “vitorioso” do duelo pois retorna em seu cavalo. Para Martin, as elipses de conteúdo são motivadas por razões de censura social. Existem, com efeito, vários gestos, atitudes ou acontecimentos penosos ou delicados que o respeito pelos bons costumes ou pelos tabus sociais não permite mostrar na tela. A morte, a dor, certos ferimentos, as cenas de tortura nou de morte, são, em geral dissimulados ao espectador e substituidos ou sugeridos por diversos meios (MARTIN, 2005, p. 101) O que terá acontecido ao capitão só nos é revelado mais tarde, quando Juvenal examina o corpo do amigo – vivo – e descobre um ferimento causado por bala de fogo. Considerações finais Quando se pensa na adaptação de uma obra literária para o audiovisual, é comum pensar que a literatura seja uma arte superior. Este artigo procurou demonstrar, com a análise de uma sequência da minissérie “O Tempo e o Vento” que constitui nosso objeto de estudo, que tal hierarquia não pode mais ser concebida. A linguagem verbal, de que a narrativa literária se utiliza, e a linguagem cinematográfica, compartilhada pelos veículos audiovisuais, são “diferentes”, visto que se utilizam de instrumentos distintos para compor sua estrutura narrativa. Se a obra adaptada requer uma constituição narrativa diferente, isso quer dizer que não se pode comparar essas duas obras – a literária e a audiovisual – senão como obras autônomas, apesar de ligadas entre si. Este artigo teve o objetivo de demonstrar, por meio da análise de uma sequência escolhida, que a linguagem cinematográfica tem recursos próprios de que se utiliza para contar uma história, mostrando-nos por meio das imagens, dos movimentos e dos sons, cenas que antes só era possível construir usando a imaginação. FROM NOVEL TO TELEVISION: “O TEMPO E O VENTO” AUDIOVISUAL ADAPTATION ABSTRACT: This article discusses the adaptation of literary texts to audio-visual means of expression. For use as an object of this study the miniseries "O Tempo e o Vento" an adaptation of the trilogy of the same name gaucho writer Erico Verissimo. At the first contact with an adaptation, the reaction tends to be a critic judge according to criteria of an alleged "fidelity" to the "original" text, or "source-text". However, recent studies on adaptation have been anchored in the difference between the languages . Television, with its specificities, shares the same principles of film language. Our goal in this study, therefore, is see how the plot of the literary narrative is "retold" on television, which uses sound, images and movements to build your language. To illustrate, will be used sequences from the minissérie. KEYWORDS: Adaptation. Film Language. Television. Brazilian Literature 31 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 REFERÊNCIAS: AUMONT, J.; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Papyrus, 2003 MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005. METZ, C. Film language: a semiotics of cinema. New York: Oxford University Press, 1974 O TEMPO E O VENTO. Direção: Paulo José. Som Livre/Globo Marcas, 2005. 2 DVDs, Aprox. 7h30m 32 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Um romance de geração, de Sérgio Sant’Anna: O sistema literário brasileiro contemporâneo Antonio Rodrigues BELON1 RESUMO: O trabalho pretende abordar e fundamentar teoricamente as relações entre o discurso, a sociedade e a história em Um romance de geração - Teatro-ficção (1980), de Sérgio Sant´Anna, na constituição do sistema literário. Para a compreensão da inserção social e histórica da obra e do autor utiliza-se do recurso da elaboração de um esboço biobibliográfico, situando a vida e as publicações do autor na história brasileira contemporânea. A apresentação das questões estruturais e temáticas articula a dialética da leitura, na perspectiva dos modos de ser das estruturas narrativas, o de dentro do texto, em tensão com os dados da realidade em movimento, o exterior. Trabalha a legibilidade dos textos nas permutas entre o cultural, o social e o histórico, a densidade estrutural das camadas de gêneros, as vozes, os narradores e os figurantes em repetidos intercâmbios dos sujeitos, nos silêncios da classe operária, na pontuação da escrita. PALAVRAS-CHAVE: Sistema literário contemporâneo. Estruturas narrativas. Realidade em movimento. Dialética da leitura. Pontuação e usurpação da classe operária. Uma expressão em forma simples dos objetivos do trabalho remete à pretensão de investigar e fundamentar teoricamente as relações entre o discurso, a sociedade e a história em Um romance de geração – Teatro-ficção (1980), de Sérgio Sant´Anna (1941). O autor anda hoje pela casa dos 70 anos. Começou a publicar em 1969, quando lançou Os sobreviventes. Seu último título é O livro de Praga – narrativas de amor e arte, de 2011. Lido no mundo inteiro. Suas obras traduzidas para o alemão e o italiano circulam amplamente. Outra forma de difusão é o cinema; os seus textos passaram por adaptações. Recebeu o prêmio Jabuti quatro vezes e uma vez o prêmio da APCA. Levou um segundo lugar no prêmio Portugal Telecom de literatura. Na primeira metade do percurso existencial e literário situa-se o objeto de investigação selecionado. Em Sérgio Sant´Anna, uma exposição de quadros (“Uma Visita, Domingo à Tarde, ao Museu”), um ato sexual (“Dueto”), jogos de futebol (“No Último Minuto”, “Na Boca do Túnel”) ou o microcosmo contido num abrigo de mendigos (“O Albergue”) são pontos de partida para uma reflexão metalingüística. Sua intenção, porém, não é expor os 1 (UFMS-CPTL, Professor Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Letras/Universidade de Brasília, pósdoutorando, [email protected]) 33 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 andaimes do texto, mas mostrar como todo evento guarda uma semente de estranheza que pode nos ajudar a escapar de nossa “vida dura e insípida” (como ele escreve no conto que dá título ao livro O Vôo da Madrugada, de 2003, em que o narrador viaja num avião que transporta corpos das vítimas de um acidente). (COSTA PINTO, 2004, p. 115) Configurar o objeto material de pesquisa nos campos de abrangência da literatura e da literatura brasileira é o passo seguinte à sucinta apresentação biobibliográfica de Sérgio Sant´Anna. Uma apresentação começa por questões estruturais e temáticas constituintes dos aspectos básicos da configuração do texto ficcional. Normalmente associado ao ressurgimento do realismo urbano e ao boom do conto brasileiro dos anos 70, Sérgio Sant´Anna se distingue neste contexto como um autor cerebral. Seus contos podem ter personagens do submundo (como os livros de João Antônio e Rubem Fonseca); paira em suas narrativas um clima de violência que reflete tanto a opressão do governo como a degradação do tecido social ocorrida nos últimos anos. Mas Sant´Anna jamais é “naturalista” ; suas personagens não falam a língua da rua, e sua prosa, em geral, tem um andamento solene, distanciado. (COSTA PINTO, 2004, p. 114) Lançado em 1980, no período final do regime militar instalado no país em 1964, Um romance de geração – Teatro-ficção apresenta a estrutura de uma narrativa (SANT´ANNA, 2009, p. 5-95), de uma peça de teatro e de uma entrevista, simultaneamente, incluindo, por acréscimo (SANT´ANNA, 2009, p. 97- 112), um ensaio, com título igual ao da parte anterior. Genericamente, não um conto, mas um romance, na explicitação e, na metalinguagem do título. Narra o encontro entre um escritor procedente de Minas Gerais, Carlos Santeiro, e uma jornalista que deseja entrevistá-lo para um artigo sobre a literatura brasileira durante a ditadura. A cena, termo do gênero dramático propositalmente posto aqui, se desenrola no pequeno apartamento em Copacabana, moradia do escritor, onde os dois se embriagam juntos enquanto falam e discutem apaixonadamente sobre as respectivas vidas e idéias: um quadro conciso, pintura das dúvidas e dos projetos malogrados de uma geração. A palavra geração também requer destaque; no seu uso não cabe ingenuidade. A cena, o espaço da ação com a presença das duas personagens, ocorre no momento histórico final dos anos 1970, a geração vivente do encerramento, já no horizonte, do regime militar; e a instauração do regime civil, de eleições regulares, a seguir. O regime militar nos espaços das tribunas, dos salões, da casas, não dos apartamentos, foi objeto de abordagem de Regina Dalcastagné (1996), na presença dos canalhas e nas cicatrizes e suas dores, mas não na fala direta de um escritor feito personagem como em Um romance de geração: teatro-ficção, de Sérgio Sant´Anna. Assim um texto do repertório das narrativas brasileiras contemporâneas torna-se o objeto central de pesquisa e discussão. “O alvo é analisar o comportamento ou o modo de ser que se 34 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 manifestam dentro do texto, porque foram criados nele a partir dos dados da realidade exterior.” (CANDIDO, 1998, p. 10) Os métodos, os procedimentos e a fundamentação teórica se articulam em uma totalidade onde se definem um a um no interior do conjunto de relações. A identificação das questões estruturais e temáticas articula a dialética da leitura, na perspectiva dos modos de ser das estruturas narrativas, o de dentro do texto, em tensão com os dados da realidade em movimento, o exterior. Na teoria narratológica, o método é o da análise estrutural ─ os textos literários ─ o objeto material, no entanto, pede a investigação em outros níveis para a sua interpretação. A citação permite o estabelecimento de uma fundamentação teórica: O meu propósito é fazer uma crítica integradora, capaz de mostrar (não apenas enunciar teoricamente, como é de hábito) de que maneira a narrativa se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim de se tornarem aspectos de uma organização estética regida por suas próprias leis, não as da natureza, da sociedade ou do ser. No entanto, natureza, sociedade e ser parecem presentes em cada página, tanto assim que o leitor tem a impressão de estar em contacto com realidades vitais, de estar aprendendo, participando, aceitando ou negando, como se estive envolvido nos problemas que eles suscitam. Esta dimensão é com certeza a mais importante da literatura do ponto de vista do leitor, sendo o resultado mais tangível do trabalho de escrever. O crítico deve tê-la constantemente em vista, embora lhe caiba sobretudo averiguar quais foram os recursos utilizados para criar a impressão de verdade. De fato, uma das ambições do crítico é mostrar como o recado do escritor se constrói a partir do mundo, mas gera um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originária. Se conseguir realizar esta ambição, ele poderá superar o valo entre “social” e “estético”, ou entre “psicológico” e “estético”, mediante um esforço mais fundo de compreensão do processo que gera a singularidade do texto. (CANDIDO, 1998, pp. 9-10) Na perspectiva de investigação adotada o conceito fundamental é o de sistema literário em que o objeto material (os textos literários) se constitui nas relações entre os escritores, os textos e os leitores. Nela a teoria, o método e o objeto configuram-se correlatamente. Isto quer dizer que uma mudança em um deles necessariamente significa uma mudança nos três: eles se definem no interior de suas relações. Na extensão da investigação e interpretação a legibilidade do texto ascende ao primeiro plano. Trabalhar a legibilidade dos textos equivale à inserção deles nas permutas entre o cultural, o social e o histórico. Uma leitura dos textos literários exige a categoria de totalidade em que as abordagens iniciais, parciais, preparatórias, vistas isoladamente, multiplicadas adquirem, no complexo, a plenitude nas relações entre si, com um redimensionamento da teoria, do método e do objeto. A totalidade do interno e do externo, do de dentro e do de fora, sempre tendo em conta o texto. Não a totalidade das 35 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 concepções metafísica e formalista, que a tratam como totalidade abstrata, intemporal e, portanto, inerte ─ na qual as partes ocupam uma posição fixa num todo inalterável ─ o conceito dialético de totalidade é dinâmico, refletindo as mediações e transformações abrangentes, mas historicamente mutáveis, da realidade objetiva. (BOTTOMORE, 2001, p.381; itálicos originais) A interpretação do objeto material (os textos literários) salta para a confirmação do humano enquanto ação, transformação, trânsito de uma forma para a outra, em multiplicação das formas estéticas, sociais, históricas. Os extratos do romance constituem uma amostragem das tensões entre os movimentos centrípetos e os centrífugos exigidos na leitura de Um romance de geração- Teatro-ficção; mostram a constituição de uma persona literária na sua inserção histórica e social. A densidade estrutural das camadas de gêneros textuais, pelo menos o dramático, se não os demais gêneros, fundando o narrativo, dá forma à interpenetração das vozes das personagens, “Ele (O Escritor)” (SANT´ANNA, 2009, p.5) e “Ela (A jornalista)” (SANT´ANNA, 2009, p.5), em diálogo e interação do começo ao fim da narrativa, do encontro dos dois. O espaço, no texto original em itálico, onde ocorre uma entrevista objeto de narração, é urbano, no Rio de Janeiro; interno, entre quatro paredes, do ponto de vista narrativo, ou com três fechadas e uma aberta para a platéia sob a perspectiva dramática subjacente: CENÁRIO: Apartamento de quarto e sala, pequenos e conjugados, as portas do banheiro e cozinha também visíveis no corredor junto à entrada. Dentro do apartamento a maior desordem: cama desarrumada, roupas e sapatos pelo chão, onde também se veem garrafas, copos, jornais, cinzeiros cheios etc. Perto de uma das paredes há várias almofadas e, mais ao centro, uma mesa com máquina de escrever e uma lâmpada com foco dirigido. Mas a maior parte do espaço é ocupada por uma estante cheia de livros. (SANT´ANNA, 2009, p. 5) Da descrição do cenário em seus elementos estaticamente apreendidos ocorre o trânsito para as indicações de cenas combinadas à caracterização inicial do homem, afinal o protagonista. O homem, aparentando uns trinta e cinco anos, está sentado numa velha poltrona, com um copo de bebida numa das mãos e a Revista do Jockey na outra. Sobre o braço da poltrona, um cinzeiro com um cigarro aceso, que de vez em quando o homem pega para fumar. Durante toda a peça, tanto o homem como a mulher fumarão nervosamente, em momentos que poderão ficar espontaneamente a critério dos atores. (SANT´ANNA, 2009, p. 5-6) A aparência do morador do apartamento, sua solidão e os seus movimentos e a previsão do desenrolar das cenas ocupam o narrador de fora, em off. 36 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A aparência do homem é desleixada, com a barba por fazer e usando camiseta, jeans, sandálias. No chão, ao lado da poltrona, está um rádio que transmite os preparativos para a largada de um páreo no Hipódromo da Gávea. O homem está atento ao rádio, quando a campainha toca. Ele deixa o copo e a revista no chão e, pegando o rádio e levando-o junto ao ouvido (o páreo está sendo realizado), vai atender à porta. (SANT´ANNA, 2009, p.6) Antes de sua entrada na cena narrativa, expressão da condensação entre o dramático e o narrativo, a mulher é caracterizada na sua idade, em suas vestimentas e nos cuidados de seu rosto. É uma mulher de uns trinta anos, vestida esportivamente, mas com cuidado: calça comprida, blusa, colar, uma bolsa de artesanato de bom acabamento, o rosto discretamente pintado etc. (SANT´ANNA, 2009, p.6) As formas de cumprimentos e os equívocos decorrentes quebram o gelo e eliminam as distâncias entre as duas personagens. Cara a cara, eles hesitam entre o gesto de apenas se apertarem as mãos ─ pois nunca se encontraram ─ ou beijarem-se no rosto. Quando ela estende a mão para ele, ele já se aproximou do rosto dela para beijá-lo. Ele então recua o rosto e estende-lhe, por sua vez, a mão. Mas ela já retirara a sua, aproximando o rosto para também beijá-lo. (SANT´ANNA, 2009, p.6) Os desajeitamentos, os formalismos e os cumprimentos se misturam na primeira aproximação. Eles riem, aflitos e desajeitados, mas percebe-se que isto serviu para quebrar o formalismo do encontro. O que explicará a descontração, embora um pouco forçada, de ambos, logo a seguir. Desistindo de beijarem-se ou se darem as mãos, eles apenas levantam a palma da mão direita como cumprimento e dizem: “Oi”. (SANT´ANNA, 2009, p.6) Depois da etapa introdutória começam os diálogos entre a jornalista e o escritor. Sempre no formato da didascália, com o narrador indicando a personagem a usar do discurso direto, em letras redondas maiúsculas, com as instruções cênicas entre os parênteses em itálicos, vindo a seguir as falas alternadas. ELE: (agora quase distraidamente, porque se concentra na narração do páreo) ─ Então é você? ELA: (rindo) ─ Eu sou eu, é claro. (SANT´ANNA, 2009, p.6) 37 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Uma nota de rodapé (SANT´ANNA, 2009, p. 8) informa que “Como durante toda a peça os personagens vão continuar bebendo, os atores, quando não houver marcação expressa, poderão agir espontaneamente nesse sentido, improvisar”. Isto assegura uma tonalidade geral à narrativa. No desenrolar das ações os narradores, os protagonistas e os figurantes em menção nas falas do escritor e da jornalista trocam de posição o tempo todo. Os intercâmbios dos sujeitos asseguram a dinâmica dos acontecimentos na história. As falas do jornalista (ELE) quando colocadas entre aspas estruturam os intercâmbios e interpenetrações de vozes e discursos: figuras, figurantes, críticos, permeiam a fala da personagem. Ausentes espacial e temporalmente do plano ficcional imediato tornam-se presentes na fala do escritor-personagem. ELE: ─ Não é possível, saíram nos melhores jornais. Jornalista não lê os jornais? Um outro crítico chegou a dizer que “mais que um simples romance ou depoimento, trata-se de um manifesto ficcional, onde se instaura uma liberdade de permutação entre a figura do narrador e o figurante da narração”. E outro disse ainda que era “um livro absolutamente irreal, escandalosamente maravilhoso, irremediavelmente aventuresco”. Você não ouviu falar nada disso? Pô, que bares você freqüenta? (SANT´ANNA, 2009, p. 60) A interrogação da jornalista ao escritor, nomeado, em tom solene, traz ao primeiro plano do discurso, explicitamente, o tema de Um romance de geração - Teatro-ficção. Vai levar ao tópico das relações entre os silêncios da classe operária e a pontuação da escrita. A jornalista parece desejar ir diretamente ao cerne da questão: “ ELA: (solenemente) ─ Carlos Santeiro, existiu uma geração literária de 64? Se existiu, diga-me, mais ou menos no espaço de uma lauda qual foi, no seu entender, a importância dessa geração?” (SANT´ANNA, 2009, p.78) O tema exige reflexão. Requer uma pausa para o jornalista organizar a sua fala. A interpelação toca fundamente. Carlos Santeiro enquadra-se decisivamente nas indicações do narrador, sempre em itálicos. Quer tempo e espaço para pensar, avaliar. Pausa, enquanto ele reflete. Depois começará a falar pausadamente, uma frase atrás da outra, como se ditasse uma mensagem a uma secretária ou um depoimento a um escrivão. Em algumas passagens mais incisivas do depoimento, poderá falar com mais ênfase e rapidez, bem como contorcer-se diante do foco de luz, como se suas reflexões fossem extraídas à custa de grande sofrimento físico e psicológico. (SANT´ANNA, 2009, pp. 78-79) A resposta de Carlos Santeiro alonga-se. O escritor não escreve a lauda solicitada pela jornalista. Começa a falar como se depusesse ao escrivão encarregado de anotar as suas palavras. Se expressa oralmente. A pontuação corresponde na escrita aos desenvolvimentos de sua fala: um depoente frente a uma escrivã. Indica pontos, dois-pontos, ponto e vírgula, ponto de exclamação e parágrafo. Isto tipifica a fala da personagem. 38 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ELE: ─A Geração de 64 é aquela que produziu obras a partir da ditadura militar, ponto. E quando se fala em geração no Brasil, estamos nos referindo, obviamente, às pessoas das classes médias e altas, ponto. Porque jamais vi usar a palavra “geração” para a classe operária, ponto. É como se eles não tivessem idade, ponto. Como se uma geração continuasse a outra identicamente, ponto. Já que os filhos fazem a mesma coisa que os pais, dois pontos: trabalham nas fábricas ou em outros serviços braçais, ponto. Ou, no caso de se impacientarem com a falta de perspectivas, caem na marginalidade, ponto. Da fala do escritor, Carlos Santeiro, devém um conceito de Geração de 64. Brota também uma concepção geral de geração articulada a uma problemática de classe social. Decorrente dessa situação é o silêncio sobre a classe operária. O caráter estático das gerações na elisão da história resulta na condenação dos filhos a repetirem o que fizeram seus pais (trabalhadores), para os operários, os proletários, de novo, estabelecendo uma falta de perspectivas e a marginalidade para os que vivem no mundo do trabalho. Nesse sentido, existe também uma nova geração da classe operária que poderia ser chamada de Geração de 64, dois-pontos: uma geração dentro da qual setores estatisticamente importantes resvalaram para o crime como modo de sobrevivência, ponto. Eles não são honestos como os pais, ponto e vírgula; eles não se conformam, ponto de exclamação! Então poderíamos dizer que eles se rebelam contra os pais, a sociedade, do mesmo modo que os burguesinhos da década de 60 agrediam a família usando cabelos compridos, roupas extravagantes e fumando maconha, ponto parágrafo. (p79) Uma nova geração da classe operária encontra no crime um modo de sobrevivência. Da honestidade dos pais transitam para o inconformismo. Uma rebeldia expressa contra seus pais, mas diferenciada dos cabelos longos, das roupas e das drogas na esfera de classe da burguesia. Vozes inconformadas e inconformistas sem expressão política; resvalam na criminalidade. A classe operária ainda em silêncio penetra nos desvãos de outros pontos do texto. Uma peça, no teatro, uma entrevista, no jornalismo, um romance, na literatura, não veiculam as vozes da classe trabalhadora. Uma geração proletária não acessa a cultura, não por si. E se tivesse acesso? Seria o momento de tomar o poder, sem meias palavras? Mas não é sobre essa geração ou algo semelhante que versam esta peça e esta entrevista, ponto. Esta geração, que podemos chamar de proletária, não pôde falar por si mesma, ainda não produziu obras, porque não teve acesso à cultura, ponto. Se tivesse tido esse acesso, talvez acontecessem surpresas como as que ofereceu a primeira geração artística inglesa surgida do ensino democrático proporcionado pelo Partido Trabalhista e que deu origem a fenômenos inesperados como os Angry Young Men e os Beatles, ponto. Se no Brasil ocorresse um fenômeno semelhante de democratização da cultura e da criação, talvez se manifestasse na arte não as habituais seriedade e sisudez política da classe média, mas possivelmente um festim dionisíaco como o carnaval, ponto. Talvez a 39 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 revolução brasileira, inclusive a revolução cultural, venha a ser como um samba-enredo em que o povo, desfilando fantasiado pelas avenidas, em meio a batuques e danças orgiásticas, termine seu desfile diante do Palácio do Governo, exigindo o poder, ponto de exclamação! (SANT´ANNA, 2009, pp. 79-80) A ascensão do inglês apontada por um crítico literário (EAGLETON, 2001, p. 23) não permite paralelos para se pensar na ascensão do português? O escritor ajustaria seus propósitos sociais e poéticos? Se a literatura havia deixado de ter qualquer função óbvia ─ se o escritor já não era uma figura tradicional a soldo da corte, da igreja ou de um mecenas aristocrático ─ então era possível usar este fato em favor da literatura. Toda a razão de ser da escrita “criativa” era a sua gloriosa inutilidade, um “fim em si mesmo”, altaneiramente distante de qualquer propósito social sórdido. Tendo perdido seu protetor, o escritor descobriu no poético um substituto para ele. (EAGLETON, 2001, p. 28-29) Um conceito de Geração de 64, um substantivo próprio seguido de adjetivação temporal, um conceito de geração geral, comum, se articulam a uma problemática de classe social. O silêncio sobre a classe operária, o caráter estático das gerações na supressão da história, a condenação dos filhos a repetirem o que fizeram seus pais (trabalhadores), a falta de perspectivas e a marginalidade, convergem no plano temático levando a uma espessura do texto imediatamente por seus temas e, simultaneamente, pelos desdobramentos e alcances estruturais. No quadro histórico das narrativas ficcionais depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector entre os contos e os romances, as ideologias, as antropologias e a ecologias, a escrita dos autores nascidos nos anos de trinta a sessenta quando importa anotar o jogo das gerações ganha lugar. Na perspectiva de encerramento de um século e anúncio do seguinte, ainda distante cerca de décadas, se inserem Um romance de geração - Teatro-ficção, a obra, e Sérgio Sant´Anna, o escritor. (Picchia, 1997, pp. 673) A menção à classe operária traz com ela certas questões estéticas. De realismo se trata? Ao falar dos usurpadores da classe operária surgem novos pontos e aspas a considerar. Já o chamado realismo dos países onde a “revolução proletária”, entre aspas, triunfou, tem-se mostrado a mesma imposição de cima para baixo de um “padrão estético realista”, entre aspas, pequeno-burguês, ponto. Quando Kruchev nos presenteava com seus conceitos sobre pintura, era igualzinho como se a gente ouvisse uma tia nossa falando, dois pontos, abre aspas: “Um quadro desses eu nunca poria na minha parede”, ponto, parágrafo. (SANT´ANNA, 2009, p. 80) Lê-se sem ambigüidades a rejeição ao realismo socialista. Critérios de classe claramente expostos na rejeição do senso comum outrora amparado em fortes aparelhos de poder e os 40 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 reproduzidos nos seios das famílias pelos seus agentes de manutenção de padrões estéticos sob controle. O falatório do escritor parece muito extenso. A jornalista tenta repor na conversa os limites a que se apega. Quer uma síntese; a transformação de um imenso problema em uma resposta concretizada em resumo. ELA: ─Uma lauda, Carlos. Você já passou de uma lauda. (SANT´ANNA, 2009, p.80) Mas as relações entre a arte e as imposições tendentes a eliminar nela as suas especificidades para a sua instrumentalização não se esgotam na consideração de um lado da geopolítica. As questões de geração, da literatura e do fascismo imbricam-se. ELE: (ignorando a interrupção) ─Mas o que nos interessa aqui, a partir da sua pergunta, é a geração literária da classe média que produziu obras a partir do clima gerado pela ditadura militar, ponto. Aquela que, com suas obras, contestou o regime instalado no país em 1964, ponto. Porque, nesse sentido, fomos quase unânimes, ponto. Embora alguns tenham se mostrado mais tímidos que outros, não se ouviu falar de nenhuma obra não digo a favor da ditadura, mas que tomasse essa perspectiva do fascismo não de fora, mas dentro de nós, ponto de exclamação! Alguém que se aprofundasse dentro dessa perspectiva, o que teria sido um fenômeno interessante e mesmo corajoso, ponto. Esse fascismo que todos trazemos mais ou menos dentro de nós, ponto de exclamação! Porque é cômodo demais colocar a culpa só neles, ponto. (SANT´ANNA, 2009, pp.80-81) Da literatura brasileira ao cinema italiano, retornando às canções brasileiras onde as mulheres figuram na mais adequada expressão de seu ser, sempre na perspectiva da arte como correlato interno, de dentro, nas suas elaborações estéticas. Ao que eu me refiro é a um estudo de dentro, como Bernardo Bertolucci conseguiu em seus filmes, ponto. Pois é preciso que Bertolucci tenha uma boa componente fascista em seu sangue, em sua personalidade, para criar tão belos personagens direitistas como os de O conformista e o de 1900, ponto. Aquela cena do enforcamento do gato em 1900, dois pontos: é isso o fascismo e é preciso que Bertolucci o tenha no sangue, ponto de exclamação! Do mesmo modo que se diz que Chico Buarque de Holanda tem que possuir uma forte carga feminina para compor as belíssimas canções em que as mulheres se conjugam na primeira pessoa do singular, ponto e vírgula; canções que arrepiam os cabelinhos dessas mesmas mulheres em todo o Brasil, ponto. E eu queria era que alguém chegasse e reconhecesse, dois pontos: o fascismo sou eu, ponto de exclamação! Esta aqui, por exemplo, talvez seja uma peça de direita, ponto. Anarquista, talvez, mas de direita, talvez, ponto de exclamação! E, no seu final, quase uma pornochanchada política, ponto. Quem não gostar que se arranque, ponto e parágrafo. (SANT´ANNA, 2009, p. 81) 41 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A jornalista a retomar a sua preocupação com os limites da linguagem, na extensão em laudas, e, na natureza, copy desk: literatura, cinema, canção e/ou jornalismo. ELA: (olhando preocupada para o público) ─ Era uma lauda só, Carlos. E nós já temos aí uma boa frase para o copy desk: “Carlos Santeiro, dois pontos: o fascismo sou eu, ponto de exclamação! (SANT´ANNA, 2009, p. 81) A geração do título e da temática romanesca parece ser, explicita e confirmadamente, a Geração de 64; a dos anos de vigência da ditadura militar no Estado, no regime e no governo. No teatro e na literatura, a censura, mutiladora, produziu resultados diversos: no primeiro caso cortou implacavelmente; no segundo, não alcançou impedir a fertilidade e a explosão literária. Os livros escaparam da censura; talvez porque muito pouco manuseados e lidos. No cinema e na música a mão de ferro da censura empunhou a sua cortante tesoura com toda a força de seu braço. ELE: ─ Espera aí que é agora que eu vou entrar. A Geração de 64, ponto. No teatro, só agora suas obras mais representativas começaram a ser encenadas, por causa da censura, ponto. De modo que não podemos avaliá-las corretamente, ponto. Mas em relação à literatura talvez não tenha havido outra época tão fértil, pelos menos qualitativamente, quanto esses quinze anos pós 64, ponto. E pouquíssimos livros foram censurados, já que poucos os liam e não valia a pena para o regime incomodar-se, ponto. Houve até um fenômeno apelidado de “boom literário brasileiro”, entre aspas, o que, quando nada, era indicador de um momento propício para escrever, ponto. Mas por que essa fertilidade, ponto de interrogação? Não seria porque os escritores, além de ocuparem um espaço aberto pela censura no teatro, no cinema e na música, tinham encontrado na ditadura um excelente ponto de referência, ponto de interrogação, parágrafo? (SANT´ANNA, 2009, pp. 81-82) A caracterização social, econômica e política do país pelas suas injustiças e formas militares de dominação no contexto do capitalismo mundial e da segurança nas perspectivas ideológicas da guerra fria é o estrato social e histórico, não literário, a se fazer literatura em Um romance de geração – Teatro-ficção, de Sérgio Sant´Anna. Uma conjuntura e formas de convivência intrinsecamente partidária e praticante de repressões, torturas, prisões, arrochos, cassações e banimentos, com a naturalização de práticas sociais condenáveis entram na elaboração estética do texto. Um país miserável, repleto de injustiças sociais e dominado por algumas centenas de militares e mais civis sequiosos de subir e que se aliaram todos, em nome de uma “filosofia”, entre aspas, de desenvolvimento e segurança, ao capitalismo internacional, ponto. E que para conseguirem seus objetivos não hesitaram em lançar mão talvez da mais violenta repressão policial-militar de que este país já teve notícia, dois-pontos: assassinatos, torturas, prisões arbitrárias, arrocho salarial, cassações políticas, 42 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 banimentos, ponto. Enfim, aquilo que todos já sabem, ponto. (SANT´ANNA, 2009, p. 82) Os escritores, quixotescamente, montados em seus cavalos de papel com arreios de palavras, se posicionavam do outro lado. Incontornáveis, tomavam uma postura oposicionista. Os seus textos convertiam-se em suas boas ações, escoteiros vestidos de letrinhas. Sabiam contra o que e quem eles escreviam. O que talvez não saibam é que do outro lado, com o pensamento oposto, havia nós, os bons moços, os escritores, ponto. Nós estávamos ali para denunciar isso tudo, ponto. Nós, os quixotes da literatura, com nossos rocinantes de papel, ponto. Nós, os escoteiros, fazendo a nossa boa ação do dia, espumando indignados o nosso ódio impotente, unindo-nos aos nossos “irmãos”, entre aspas, trabalhadores, aos sofridos, aos miseráveis, aos perseguidos de todo os país, ponto de exclamação! Tínhamos algo contra que lutar, sem muito risco e com os melhores motivos, ponto. Mas eu não vou querer que você publique isto no seu jornal, a não ser que publique tudo, vírgula por vírgula, ponto e vírgula; é por isso que estou ditando assim, ponto. Porque se o seu jornal publicar apenas parte disso, será pelos piores motivos, dois-pontos: para justificar, ainda que em parte, o obscurantismo imbecil instaurado no país, ponto. Não. É ambíguo demais para uma matéria refundida por um copy desk, ponto. Talvez, quem sabe, um dia, o teatro, ponto de interrogação? Ao teatro, além daquelas pessoas que vão em busca de confirmar “uma verdade”, entre aspas, que já “possuem”, entre aspas, e que depois todos aplaudem, ponto. E as essas pessoas que pensam eu tentarei dizer que, além da rima, a relação da ditadura e a literatura talvez tenha sido como um jogo de gato e rato, ponto. Se o gato fosse embora, talvez o rato andasse entristecido pela casa, sem destino a dar à sua vida, ponto. Seria como um Tom e Jerry sem o Tom, ponto. Nós talvez passemos a ser conhecidos como os “Órfãos da Ditadura”, ponto de exclamação, parágrafo! (SANT´ANNA, 2009, pp. 8-283) Novamente a insistência da jornalista na defesa dos elementos configuradores do seu texto: tamanho e conteúdo. Tenta encaminhar um procedimento, estabelecer uma redação. Mas o fluxo das expressões do tema de vivência do escritor parece não caber nas medidas e nas orientações da jornalista. Isto traz uma tensão interna ao texto romanesco. ELA: ─ Uma lauda, Carlos. Só uma lauda pelo amor de Deus. Nós já temos aí uma frase sensacional. Pode até entrar na chamada da matéria. Em negrito. “Para Carlos Santeiro, os escritores da Geração de 64 são os órfãos da ditadura.” E com um ponto de exclamação, Carlos: um ponto de exclamação! (SANT´ANNA, 2009, p. 83) Para ele o jogo é outro. Quer a publicação ao seu modo, ou não quer. Luta por ir até o fim em seu depoimento. Transforma ódio em indignação. Legitima a força de seu discurso. Respira na inteireza de seu papel na escrita, na literatura. Pondera o seu desespero de classe social e a solução de publicar numa revista de entretenimento masculino de classe média: relações de 43 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 exorcismos dos demônios das inquietações e impotências políticas na ausência da classe operária. ELE: ─ Eu já disse. Ou o jornal publica tudo, ou publica nada. E você vai me deixar concluir. Sim, tínhamos os melhores motivos para o nosso ódio, embora fosse, às vezes, um ódio fabricado de encomenda ou, ao menos, que chegou na horinha certa para que pudéssemos exercer o nosso papel de escritores, ponto. Tínhamos uma bela carreira literária por construir, um lugar na sociedade, que é ao que aspiramos, nós, os caras da classe média, ponto. E não é à toa que a principal revista a veicular nossos trabalhos nos últimos anos se chama nada mais nada menos que Status, ponto de exclamação, parágrafo! (p. 83) Uma literatura ao entrar no beco imposto pelo momento dessa geração despedaça-se. Faz uma inflexão para pensar no seu jogo. Menciona os aspectos sociais e históricos de seu tempo e de seu lugar, sem se permitir ignorar o seu papel no eixo histórico da sociedade brasileira. Pergunta-se a que regras, a que formas, a que jogos, ela pertence? O político e o estético entrelaçam-se densamente. Não, garota, a única literatura desse período que eu respeito é aquela que despedaçou o próprio conceito de literatura no país, ponto. Um conceito que nada mais era que as formas do colonizador e das classes que ocuparam o seu lugar após a “independência”, entre aspas, do país, ponto. Os nossos “contos”, entre aspas, os nossos “romances”, entre aspas, não importa se falando bem ou mal disso ou daquilo, ponto. Porque eles mantinham vivo o mesmo jogo do gato e do rato, com seus dois pólos necessários, o do bem e o do mal, ponto. Mantinham vivas, principalmente, as regras e formas do jogo, ponto. Não, garota, era preciso que, suicida ou homicidamente, despedaçássemos esse próprio conceito de literatura, ponto. Que abandonássemos o circuito viciado e rarefeito dentro do qual parecemos gritar eternamente, ponto. Porque ela tem orquestrado aquele festim selvagem, dionisíaco, como o carnaval antes da Riotur, ponto. Esse festim que é a síntese de tudo aquilo que nos formou, ponto. E talvez também a literatura que trilhou esse caminho, desde Oswald de Andrade, esta, sim, pode ter ajudado a empurrar o carro adiante, ponto, parágrafo. (SANT´ANNA, 2009, pp. 83-84) Na síntese entre a clareza, do formal, e o sombrio, do momento histórico, ganha consistência uma literatura. O objeto de menções e de admissão temática, na tradição de combate vinda desde o autor modernista citado, o período de dominação mortífera dos militares enfrentase no plano das palavras combinadas em textos literários, com a oposição do trabalho estético em encontro novo da narrativa, do dramático, da entrevista, do texto jornalístico, do ensaio, todos em síntese, camadas de constituição da espessura estética de Um romance de geração – Teatroficção; nos dois planos, o interno, onde escreve Carlos Santeiro, e no externo, onde escreve Sérgio Sant´Anna. 44 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Mas parece difícil fazer a revolução no sentido estrito. Sobra o consolo de uma revolução derivativa. (...) Eis a nossa geração. (...) alguma revolução fizemos, foi a sexual (SANT´ANNA, 2009, p. 87) Do estrutural ao seu alcance político Um romance de geração- Teatro-ficção, de Sérgio Sant´Anna, trata, ficcionalmente, esteticamente, dos usurpadores da classe operária, sempre em novos pontos e aspas a considerar. Na introdução, o objetivo desta intervenção formalizou-se como articular reflexivamente os temas, abordando as relações entre as questões sociais e históricas e da literatura enunciadas no título. Do percurso desta exposição, ponderando o “dentro” dos textos, o romanesco da metalinguagem do romance, e a “realidade exterior”, social e histórica, impõe-se a necessidade de interpretação do mundo, complexos em movimentos, totalidades, porque importa a sua transformação. UM ROMANCE DE GERAÇÃO, DE SÉRGIO SANT’ANNA: THE LITERARY CONTEMPORARY BRAZILIAN SYSTEM ABSTRACT: This works intends to address and substantiate theoricaly the relation between the discourse, the society and the history in “Um romance de geração” – heater-fiction (1980) from Sergio Sant’Anna in the constitution of the literary system. To the comprehension of the social and historical insertion of the masterpiece and the author, it is used the research of elaboration of a bio-bibliography sketch, placing the author’s life and publications into the Brazilian contemporary history. The presentations of the structural and thematic questions articulate the dialectic of reading in a perspective of manners of being of the narratives, from inside the text, in tension with the datas of reality, the outside - which works the legibility of the texts in the changes among cultural, social and historical, the structural density of the layers of the genre, the voices, the narrators and the extras in repeated interchange of the individuals, in the silence of the labor class, in the punctuation. Key words: Literary contemporary system. Narrative structure. Reality in motion. Dialectic of reading. Punctuation and intruders of the labor class. REFERÊNCIAS: BOTTOMORE, T. (Editor). Dicionário do pensamento marxista. Co-editores: Laurence Harris, V. G. Kiernan, Ralph Miliband. Tradução Waltensir Dutra. Organização da edição brasileira, 45 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 revisão técnica e pesquisa bibliográfica suplementar Antonio Moreira Guimarães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CANDIDO, A. O discurso e a cidade. 2. ed São Paulo: Duas Cidades, 1998. COSTA PINTO, M. da. Sérgio Sant´Anna. In: Literatura brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2004. pp. 114-116 (Folha explica, 60) DALCASTAGNÉ, R. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Universidade de Brasília, 1996. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra [revisão da tradução João Azenha Jr.]. 4. ed São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Ensino Superior) PICCHIO, L. S. 1964—1996: dos anos do golpe ao fim do século. In: História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. pp. 629-680 SANT´ANNA, S. Um romance de geração: teatro-ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 46 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A crítica literária do século XX e XXI Carmelita Rodrigues GOMES1 RESUMO: O presente artigo faz uma breve reflexão sobre algumas tendências da crítica teórica do século XX e XXI enfatizando o quanto as mudanças de seus parâmetros analíticos são reflexos dos discursos representados nas criações literárias, as quais também se modificam devido às transformações acontecidas na sociedade. Propõe mostrar que devido ao amadurecimento operada na mentalidade dos escritores latino-americanos com relação a sua identidade plural e heterogenia, fato provado através dos novos temas configurados na imanência das obras literárias, houve a necessidade por parte dos críticos de pensar uma nova epistemologia no sentido teóricoideológico da crítica literária na América Latina de ampliar e redimensionar as análises, no sentido de possibilitar a inclusão do olhar para o “próprio”. PALAVRAS-CHAVE: Estruturalismo. Sociologia da literatura. Estudos culturais. O sentimento de inferioridade e marginalização que durante várias décadas, esteve presente na mentalidade dos escritores latino-americanos, foi sendo, aos poucos, deixados para trás, fato verificado na prática através das criações literárias principalmente após o século XX, é o que afirma Eduardo Coutinho em seu texto: “Sem Centro nem Periferia: É possível um novo olhar no Discurso Latino Americano?” (1995). De acordo com o crítico, após esse período, observou-se um amadurecimento na consciência dos escritores que começaram a configurar nas narrativas temas da identidade própria de seu país. Dessa forma, gradativamente, ocorreu o descentramento no olhar dos escritores que caminhou rumo a uma ruptura no sentido de colocar por terra as escritas que elevavam as ideologias européias e norte-americanas como superioras e hegemônicas. Evidentemente que o referido amadurecimento por parte dos escritores latino-americanos, comprovado através de sua criação literária, não foi um processo rápido, mas sim um tanto lento. No Brasil, especificamente pode-se observar essa mudança de consciência dos escritores desde o Pré-Modernismo, intensificada no Modernismo e complementada na contemporaneidade. No Pré-Modernismo, essa transição é verificável através das narrativas literárias, onde o imperialismo da cultura eurocêntrica entra em decadência devido ao aparecimento tímido, mas próprio, da identidade local multifacetada, multicultural e miscigenada. Como exemplo emblemático desse momento tão importante está a passagem do olhar centralizado para o olhar 1 Mestranda em Letras (Literatura e Práticas Culturais) da Universidade Federal da Grande Dourados MS 47 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 descentralizado presente nas escrituras de um dos mais representativos escritores do PréModernismo brasileiro - Monteiro Lobato – sobretudo, na construção dos personagens Jeca Tatu (1918); Jeca Tatuzinho (1924); e Zé Brasil (1947). Em Urupês, a personagem principal, o Jeca Tatu, é caracterizado como um ser vagabundo, indolente, fraco, passivo, baldio. De tão preguiçoso que é, constrói seu banco com apenas três pernas para não ter trabalho de nivelar o chão. Não carpe quintal, muito menos cuida do seu sítio; não planta, por isso não tem o que colher, consequentemente representa atraso e subdesenvolvimento, não colabora com o crescimento do País. Contudo, o vizinho do Jeca – um italiano - esse sim, seu sitio dava gosto de ver, sua riqueza aumentava assustadoramente de um dia pra o outro de tanto que produzia. A título de ilustração, estas passagens foram selecionadas para provar o quanto é nitidamente perceptível através da construção desses personagens, o posicionamento político e ideológico do escritor materializado no binarismo que eleva a cultura europeia e o rebaixa à cultura brasileira. O preconceito é explicitamente visível na escolha da palavra Urupês, título da obra e também apelido do Jeca. Etimologicamente, é o nome que se dá aos fungos parasitas que vivem e vegetam nos paus de peroba podre. Simbolicamente, Jeca é como este parasita que sobrevive da lei do menor esforço e apenas daquilo que a própria natureza lhe fornece. Por isso, de acordo com o autor, o Jeca é responsável pelo atraso do progresso do País, um “seminômade inadaptável a civilização” (LOBATO, 1918, P. 271). Contudo, uma metamorfose se observa na construção dos outros Jecas. Jeca Tatuzinho e Zé Brasil continuam não produzindo, porém, não porque são vagabundos, mas porque são vítimas ora da doença, ora do latifúndio. O descentramento ocorrido no olhar de Monteiro Lobato representado através dos referidos personagens ocorre a partir do momento em que se tem consciência do locus de enunciação e se escreve a partir deles. Consequentemente, a configuração dos personagens posteriores Jeca Tatuzinho e Zé Brasil estavam mais coerentes com o momento histórico e com a cultural social daquele período. Alguns críticos afirmam, inclusive, que a mudança operada nos referidos personagens comprovam o esforço do escritor em se redimir das injustiças que havia praticado quando desqualificou de forma preconceituosa o caboclo do sertão do Oeste de Minas Gerais. Outro momento importante e decisivo operado no amadurecimento do escritor de literatura pode ser observado através de um dos mais fortes e longos movimentos da literatura brasileira: o Modernismo. Através do antropofagismo, do canibalismo e também do movimento Pau Brasil, observa-se o esforço dos escritores em criar através de práticas discursivas estratégias subversivas. Corroborando com tal ideia, Resende afirma que “os vanguardistas pretendiam criar uma arte e uma literatura moderna no Brasil sem simplesmente imitar os movimentos da vanguarda européia, em busca de uma arte moderna “autenticamente nacional” (RESENDE, 2001, p. 85). Esta ideologia é explicitamente expressa na preocupação de Mário e de Oswald em dar ao Brasil aquilo que ele não tinha –alma-, e todo sacrifício praticado por ambos para conseguir tal objetivo foi grandioso e sublime. 48 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Oswald de Andrade é um dos precursores em mostrar que a identidade brasileira é fragmentada e plural, fato expressado simbolicamente, na frase “Tupi or not tupi, that`s the question” presente no Manifesto Antropofágico. Numa análise superficial da referida frase, parece que o autor aceita a tradição ao fazer um pastiche devorando a frase “to be or not to be, that`s the question” de um dos mais renomados escritores ingleses, William Shakespeare. Contudo, em uma análise mais profunda, percebe-se que Oswald ironiza essa tradição ao representar a identidade brasileira através da palavra “tupi”, a qual sugere a presença da miscigenação, mistura étnica, multiculturalismo. Robert Schwarz salienta que Oswald possui “uma postura cultural irreverente e sem sentimento de inferioridade metaforizada na deglutição do alheio: cópia sim, mas sua cópia é regeneradora” (SCHWARZ, 1987, p. 38). Alegoricamente, através dessa construção, é como se o escritor confrontasse a hegemonia norte americana e europeia com a unidade e pureza e no lugar mostrasse o contrário: a heterogeneidade, a mistura, o hibridismo e pluriculturalismo que compõem a identidade nacional brasileira. Oswald de Andrade, assim como seus contemporâneos, não só assimilou os elementos da cultura europeia e norte americana, como também deglutiu e, sobretudo, os devolveu mostrando a diferença, o “próprio”. Antonio Candido, em seu livro Literatura e Sociedade, especificamente no subtítulo “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, atesta que a dialética do localismo e cosmopolitismo esteve presente na literatura brasileira desde o século XVII com Gregório de Matos e se estendeu até a primeira fase do Regionalismo brasileiro. Parece querer justificar tal dialética como algo natural quando afirma que: “Na nossa cultura há uma ambiguidade fundamental: a de sermos um povo latino, de herança cultural européia, mas etnicamente mestiço situado, no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas” (CANDIDO, 1976, p.119). De acordo com o crítico, esta ambigüidade causada por um certo constrangimento era resolvida nas obras literárias através da idealização. Contudo, esta prática presente no discurso das obras literárias foi superada a partir do Modernismo, cujo exemplo está na obra Macunaíma, de Mário de Andrade, em que o “índio deixou de ser europeizado, a mestiçagem deixou de ser ignorada e a paisagem deixou de ser amaneirada” (CANDIDO, 1976, p. 120). Através dessa obra, Mário de Andrade mostra seu lado subversivo “ao desconstruir a falsa questão da identidade indígena, colocando-a sob suspeita e ampliando o foco de abrangência: o herói atinge dimensões transnacionais que permitem a sua inserção a cena latino-americana.” (SOUZA, 2002, p. 52). As características presentes nas produções de Oswald de Andrade e Mário de Andrade servem de ponte entre o Modernismo e a contemporaneidade. É na contemporaneidade que a consciência dos escritores latino-americanos evoluiu rumo ao equilíbrio e ao amadurecimento, visto que aparecem predominantemente inscritos na imanência das narrativas, temas contrários ao da metrópole (cultura europeia) como subdesenvolvimento, pertença étnica, identidade, sexualidade, hibridismo, mestiçagem, sincretismo, migração, marginalidade, transculturação e outros assuntos coerentes com a paisagem latino-americana e que colabora na elevação da literatura, no sentido de atrair olhares 49 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 europeus superando, dessa forma, as fronteiras do seu próprio país ou continente. Nesse sentido, o sentimento de “devedor” que perpassou a mentalidade dos escritores parece ter sido superado, principalmente ao se ter em conta a dimensão internacional conquistada através de algumas obras, tais como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Cem anos de solidão, de Garcia Marquez; A casa dos espíritos, de Izabel Allende e outras. Portanto, com a nova realidade discursiva presente nas obras literárias, houve a necessidade de se redefinir uma epistemologia no sentido teórico-ideológico da crítica literária na América Latina que ampliasse e redimensionasse as análises, no sentido de possibilitar o olhar para o “próprio”, epistemologia que contrariava o discurso da crítica predominante que, até então, por falta de ter desenvolvido um pensamento próprio, aplicava em suas análises teorias e conceitos europeus ou norte-americanos, mantendo-se “um modo geral prisioneiro da perspectiva eurocêntrica anterior, erigindo sempre como referências às obras produzidas na metrópole e limitando-se a ecoar, no plano da reflexão teórica as vozes que lá se erguiam”, negligenciando, dessa maneira, em suas análises, as particularidades da cultura presente nas construções literárias. (COUTINHO, 1995, p. 623). Em consonância com a análise eurocêntrica está a prática da crítica que tinha como fundamento teórico-ideológico os pressupostos do estruturalismo que surgiram inspirados nos conceitos teóricos de Ferdinand Saussure, e foi mais uma opção metodológica surgida no século XX, aplicada não só na crítica literária, como também em vários outros campos do saber, como na Antropologia, na Filosofia, na Sociologia, na História Geral, na História da arte, etc. Os representantes dessa linha de pensamento focalizam seus estudos na análise estrutural da narrativa. Enfatizam suas pesquisas nos discursos presentes em obras concretas. Barthes, um dos expoentes dessa linha de pensamente, escreve: “Onde, pois procurar a estrutura da narrativa?” e responde: “Nas narrativas sem dúvida” (BARTHES, 1976, p.21). Por conseguinte, as análises estruturalistas são imanentes, interessam-lhes os aspectos internos da obra. Seus trabalhos foram dedicados à construção de uma teoria do funcionamento do discurso literário. Desse modo, metáforas, monólogos, descrições são elementos que possuem funções dentro da narrativa e estão ali para atribuir sentido, porém, desde que relacionados ou com parte da obra ou com a obra toda. Subentende-se que os elementos externos, como biografia do autor, gênese da obra, dimensões históricas e psicológicas, não possuem tanta relevância. Com relação ao sentido e à interpretação da obra, Todorov preocupado com a literalidade, apresenta um fato, que para ele, se constitui num grande problema, no contexto da referida convenção metodológica: “Como isolar o domínio do que é propriamente literário, deixando à psicologia e à história o que lhes pertencem?” (TODOROV, 1979, p. 210). De acordo com o autor, se uma determinada análise levasse em consideração tais dimensões, ela seria “projetada noutra coisa, mas não nela própria. Uma vez que a obra literária é o objeto último e único” (TODOROV, 1979, p. 12). Para tais pensadores, as análises das obras são realizadas, basicamente, na imanência de sua forma, metodologia que contrapõe as opiniões de críticos literários cujas ideologias 50 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 transgridem as leis da crítica convencional citada acima. Adorno, Benjamin, Lucien Goldmann, Antonio Candido e outros desenvolveram conceitos de teoria da literatura e sociologia da literatura, incentivando análises que estabelecessem articulações entre cultura e experiências sociais. Sugerem, através de suas teorias, que a análise de uma determinada obra literária seja feita tendo em conta a investigação do contexto em que foi produzida. Nessa linha de pensamento, Theodor W. Adorno – um dos expoentes da escola do pensamento sociológico - em sua Teoria estética (1982) apregoa que as obras de arte não são cópias da realidade exterior, mas possuem ligações com essa realidade. Para ele, as representações artísticas estão articuladas aos fatos e experiências sociais, inclusive afirma que “os antagonismos não resolvidos na realidade retornam as obras de arte como problemas imanentes da sua forma” (ADORNO, 1982, P. 16). Logo, o exercício prático de leituras e atribuição de sentidos de uma determinada produção literária não deve ser realizado levando-se em conta somente os aspectos internos de sua forma, uma vez que ela é construída dialeticamente com a estética da forma e do conteúdo. A postura aderida por Adorno estabelece diálogos com as ideias de Walter Benjamin, cuja contribuição para a teoria literária é reconhecidamente importante, sobretudo na modernidade. Em seu bojo traz reflexões sobre o processo de industrialização capitalista, sobre as guerras e a ascensão do nazismo. Enfatiza também o impacto desse contexto sociocultural nas produções artísticas do período. Aconselha analisar obras através do viés do materialismo dialético, que é a teoria central de sua perspectiva crítica, método que considera a obra como aberta e não acabada, pressupondo-se que o leitor, ao analisá-la, leve em conta seu contexto histórico e social. Nessa mesma perspectiva, são inegáveis as contribuições do filósofo e sociólogo Lucien Goldmann para a sociologia da literatura. O autor repudia a crítica predominantemente textualista. Em sua opinião, o romance é a transposição da vida cotidiana, representa o mundo do mercado e da coisificação, e sua compreensão total depende da consideração do momento histórico social em que foi produzido. Chega a ser irônico quando afirma que “Francamente não é preciso ser sociólogo para verificar que o romance trata de uma representação social” (GOLDMANN, 1976, p.14). No mesmo viés, Antonio Candido – um dos mais atuantes críticos literários brasileiros, que articula dialeticamente em suas teorias literatura e sociedade - também discorda que a obra seja um todo que se explica a si mesma, num sistema fechado: “este estruturalismo radical, cabível como um dos momentos da análise, é inviável no trabalho prático de interpretar, porque despreza, entre outras coisas, a dimensão histórica” (CANDIDO, 1976, p. 15). Segundo ele, para uma análise ser coerente, o crítico da atualidade, por mais interessado que esteja em analisar os aspectos formais, não deverá “desprezar as disciplinas como a sociologia da literatura e a história literária sociologicamente orientada, bem como toda a gama de estudos aplicados à investigação de aspectos sociais das obras, - frequentemente com finalidade não literária” (CANDIDO, 1976, p. 8). De acordo com o autor, a obra não é independente, primeiramente, porque o escritor é fruto 51 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 de ideologias políticas, sociais e históricas presentes no momento em que viveu. Por conseguinte, tais dimensões estarão presentes na obra, no entanto, o crítico, no momento da refiguração, não poderá desprezá-las. O autor deixa bem claro que a sociologia é apenas uma disciplina auxiliar, pois não tem como finalidade “explicar o fenômeno literário ou artístico, mas apenas esclarecer alguns de seus aspectos” (CANDIDO, 1976, p.18). Conforme Massaud Moisés, “a obra até pode ser analisada como peça autônoma em si, desligada de toda conexão com o exterior” (MOISÉS, 1967, p.18). Contudo, tanto sua estrutura interna como seus conteúdos, só serão compreendidos em sua totalidade se levar em conta o texto em seu contexto, não menosprezando o momento histórico, as convenções sociais, da qual fez parte. As contribuições acima são fundamentais para o entendimento e ampliação dos estudos da cultura latino-americana, pois oferecem possibilidades de articulações interdisciplinares entre os estudos de literatura e outros saberes como os da Antropologia, Sociologia e História. Ao sugerir que a análise de uma obra seja feita na dialética com o meio social e cultural em que foi produzida, os pressupostos da sociologia da literatura na abria espaço para a inclusão da identidade própria. A eficácia do estruturalismo também é questionada por Jacques Derrida, quando se coloca criticamente contra suas noções dominantes. Na sua condição de crítico da desconstrução, abomina a ideia de centro, condena o logocentrismo e o tipo de análise que privilegia as oposições binárias que constituíram o quadro epistemológico de conhecimento do mundo no Ocidente: razão versus emoção, espírito versus corpo, cultura versus natureza. O pensamento de Derrida (1971) sugere posicionamento contrário ao tipo de análise fundamentada ora no comparativismo, que elevava a produção norte-americana ou europeia como estrela, e a latinoamericana, como parasita, ora na análise estrutural da narrativa, modelos, inclusive, considerados anacrônicos e de pouca aplicabilidade principalmente no contexto contemporâneo da realidade cultural, social e política das sociedades latino-americanas. Nesse aspecto, Coutinho afirma que: A identificação, de cunho marcadamente ideológico, do europeu com o universal, que sempre respaldou sua visão de mundo etnocêntrico, já havia sofrido alguns embates desde o surgimento de ciências como a antropologia e a etnologia, mas no terreno dos estudos literários os passos expressivos mais recentes vão ser dados pelo desconstrutivismo, com sua ênfase sobre noção de diferença, e a revalorização da perspectiva histórica, que voltou a chamar atenção para a importância do contexto. (COUTINHO, 1995, p. 625). Derrida contribuiu de forma significativa para derrubar os valores de centro e originalidade. Com ele a ideia da cultura eurocêntrica começa a ser questionada quando incentiva, dentre outras práticas, o desvio da norma padrão sugerindo ao crítico analisar os elementos marginais dentro da narrativa, numa tentativa de inverter o sistema hierárquico predominante nas análises literárias até então. Nessa mesma corrente também conhecida como 52 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 pós-estruturalista, destacam-se: Foucault, Deleuze, Kristeva, os quais, de acordo com Heloísa Helena, são juntamente com Derrida os responsáveis por colocar em cena noções sobre alteridade, marginalidade e diferença nas discussões dos centros acadêmicos. São eles que influenciaram a mudança paradigmática do pensamento abrindo caminho para a reflexão crítica contemporânea. É nesse contexto que os pressupostos dos Estudos Culturais ganham relevo. Começaram a aparecer pensadores pós-coloniais preocupados em redefinir a crítica do ponto de vista teóricometodológico que emancipe a identidade latino-americana. Com a finalidade de suprir as lacunas abertas pelas análises das vertentes anteriores, criam teorias e conceitos que deshierarquizem e desmistifiquem aqueles modelos de análise que negligenciavam, acima de tudo, os elementos da identidade local. Desta forma, no âmbito dos discursos da crítica literária contemporânea houve um alargamento vertiginoso de abordagens analíticas. A interdisciplinaridade passa a ser à base da fundamentação teórica; a Psicanálise expandiu seus métodos de análise; a teoria do gênero (teoria feminista) também sobressaiu e assim sucessivamente. São práticas que, de acordo com Evelina Hoisel, em seu artigo “Os discursos sobre literatura: algumas questões contemporâneas”, “traduzem uma diversidade de interesses e a insistência em uma perspectiva teórica e interpretativa ou revela um deslocamento dos limites disciplinares nas diversas áreas do conhecimento, onde prolifera a reversão de valores e hierarquias” (HOISEL, 2001, p.73). Ideologicamente, a epistemologia dos estudos culturais caminha rumo à descolonização das paisagens mentais. Implica, com isso, uma revisão dos cânones, tanto teórica como temática. Isso significa a possibilidade de histórias serem revisitadas e até refeitas; identidades culturais refiguradas; sujeitos reconstruídos. A propósito, na atualidade, já é bastante extenso o corpus teórico crítico que apresenta conceitos e tece profundas reflexões sobre a realidade pós-colonial referente a países subalternos, incluindo os países da América Latina. Nesse sentido, pela convergência de suas ideias e pelo diálogo que seus textos proporcionam, cito algumas contribuições que têm sido de fundamental importância para ampliar os estudos culturais inseridos na realidade do terceiro mundo. São por ex: do argentino Walter Mignolo; do brasileiro Silviano Santiago; do palestino Edward Said e a da indiana, Gayatri Spivak. Mignolo (2003) desenvolve uma vasta reflexão de assuntos relevantes no âmbito dos Estudos Culturais, abrangendo o mundo moderno e pós-colonial, como colonialidade global, geopolítica do conhecimento, transmodernidade, pensamento de fronteira, pluriculturalidade. Merece atenção especial nesse estudo o conceito sobre o pensamento liminar que nada mais é do que aquele livre das amarras imperiais. O autor configura o conceito do pensamento liminar do ponto de vista lógico como “um lócus dicotômico de enunciação, que historicamente, situa-se nas fronteiras (interiores + exteriores) do sistema mundial colonial/moderno” (MIGNOLO, 2003, p. 126). De acordo com esse autor, deve-se: 53 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 [...] pensar a partir de conceitos dicotômicos ao invés de organizar o mundo em dicotomias. [...] O pensamento liminar se estrutura numa ‘dupla consciência’, ‘dupla crítica’, ‘um outro pensamento’, a ‘crioulização epistemológica’ e a nova ‘consciência mestiça’. (MIGNOLO, 2003, p. 129). Todos os exemplos citados são formas de articulações teóricas do pensamento liminar que rompem com a hegemonia eurocêntrica enquanto perspectiva epistemológica. Nesse projeto, Mignolo aconselha ao produtor de obras literárias e também aos analistas terem como ponto de partida inicial a consciência, primeiramente, sobre de quem se fala, sobre o que fala, de onde fala e por que se fala, sugerindo que tanto as criações literárias quanto a crítica literária sejam realizadas de acordo com seu locus de enunciação (contexto histórico, social, cultural). Produzir e analisar evitando influências são caminhos de práticas estratégicas para se livrar das perspectivas dicotômicas e maniqueístas das culturas ditas centrais. Há na proposta teórica do pensamento liminar de Mignolo grande semelhança com a ideia do entre - lugar de Silviano Santiago, autor referência para os estudos contemporâneos, cujo pensamento é muito pertinente e constitui importante contribuição para os Estudos Culturais. Santiago (1978) tece diversas reflexões mostrando o lugar que ocupa, na atualidade, o discurso latino-americano em confronto com o europeu. Desconstrói, desloca e descentra a ideia de centro versus periferia, através, por exemplo, da citação de um fragmento escrito por Montaigne, em que o rei Pirro, após avaliar a formação do exército dos romanos, constata sobressaltado que o mesmo, tido como inferior e bárbaro, é tão bom quanto o exército grego. Nesse pequeno discurso, percebe-se configurado metaforicamente que as oposições dicotômicas do tipo colonizador X colonizado; universal X particular; civilizado X bárbaro; Grécia X Roma; Roma X províncias; Europa X Novo Mundo não existem mais. O que existe, essencialmente, é o entre - lugar e tudo aquilo que ele comporta: heterogeneidade, miscigenação, hibridismo. Outra situação apontada pelo autor, para quebrar a imposição hegemônica eurocêntrica foi exemplificada através das estratégias utilizadas pela Europa para impor sua dominação sobre os índios a partir da metade do século XVI no Brasil. Utilizavam-se o código religioso e o código linguístico para contaminar o pensamento dos nativos numa tentativa de preservar a unidade. Com isso evitavam-se o bilinguismo e o pluralismo. Contudo, com o surgimento do renascimento colonialista começa a surgir uma nova sociedade – a dos mestiços – e consequentemente a noção de unidade sofre uma reviravolta, porque naquele contexto era inevitável a mistura entre o elemento europeu e o elemento autóctone. Com isso, os conceitos de unidade e pureza cultural caem por terra. Conforme ressalta Santiago, é preciso que os escritores latino-americanos tenham consciência de que a dívida já foi paga e assinalem em suas produções “sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda” (1978, p.16). Afirma ainda que falar, escrever, significa, “falar contra, escrever contra”. Segundo ele, é preciso descolonizar, 54 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 descontaminar as narrativas livrando-as das fontes e influências; Ser original, evitando, desta forma que “a criação dos artistas latino-americanos não sejam reduzidas à condição de parasita, obra que se nutre de outra sem nunca lhe acrescentar algo próprio; obra cuja vida é limitada e precária” (Idem, ibidem, p. 18). Com relação ao crítico, convida-o a sair do seu lugar de conforto e ir para o entre - lugar: o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão Entre, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropofágico da literatura latino-americana (SANTIAGO, 1978. p. 26). É a construção nesse entre - lugar que nos configura como representante do nosso lugar. É preciso sair do limbo, assinalando os elementos de uma obra que marca, sobretudo, sua subversão e não somente seu estado de dependência. Igualmente importante para a crítica pós-colonial são as propostas do pensador Edward Said. Ele demonstrou em seus estudos a condição de superioridade europeia em detrimento dos países subalternos, incluindo o Brasil. Ele propõe de forma radical uma mudança no olhar tentando descentralizá-lo, e exemplifica esse método através da análise que fez da obra Mansfield Park, de Jane Austen. Em seu procedimento, contraria aquela convencional que focalizava, por exemplo, os costumes ingleses do séc. XX. Said dá mais ênfase em seus estudos para as rebeliões provocadas pelos escravos que trabalhavam em uma das plantações do senhor, do que para as discussões em torno da mansão e tudo o que dizia a sua volta (CARVALHO, 2001, p. 123). Said materializa seus ideais políticos culturais no sentido de desmontar e desenraizar os discursos que negligenciavam as representações da margem construídas nas obras literárias. Corroborando com tal raciocínio, Carvalho reafirma “a preocupação de Said com os oprimidos do mundo em não se calarem e reclamarem sempre os seus direitos de narrar suas experiências, suas insurreições, suas memórias, suas tradições, suas histórias”. (CARVALHO, 2001, p. 124) É notável a postura de insurgência de Said contra a tentativa de silenciar a voz dos menos favorecidos. Em seu livro Representação do intelectual (2005), aconselha ao intelectual falar a partir da margem, por isso sua condição é do exílio, a do “fora-do-lugar”, alguém que se “[...] recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou confirmações afáveis” (SAID, 2005, p. 35). Dessa forma, evita-se que sua produção esteja enjaulada no agrado às convenções eurocêntricas. Afirma ainda que o intelectual “deve levantar questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas, não se deixar compactuar com governos e corporações, e com isso apresentar problemas que são sistematicamente esquecidas, e jogadas debaixo do tapete” (SAID, 2005. p.23). Outra voz considerada uma das mais importantes para os estudos contemporâneos, cuja crítica tem como característica principal confrontar os discursos hegemônicos é Gayatri Spivak 55 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (2010) que questiona sobre a capacidade do subalterno se representar. Trata-se de indivíduos que vivem à margem da sociedade, distante da civilização e, devido a sua condição de silenciado, precisa de um mediador para falar por eles. De acordo com a teórica, uma sugestão para a construção do sujeito subalterno, seria “acolher toda recuperação de informação em áreas silenciadas, como está ocorrendo na antropofagia, na ciência política, na história e na sociologia” (SPIVAK, 2010, p.86). Fica subentendido que uma das propostas da autora é que os representantes dessas vozes silenciadas (os escritores) façam produções que representem a narrativa da verdade dessas vozes. Portanto, além dessas vozes desafiadoras acima citadas, que contribuem com a teoria póscolonial, oferecendo para a fundamentação teórica metodológica uma gama muito extensa de conceitos que podem servir de base de apoio numa pesquisa coerente com a identidade dos países de Terceiro Mundo, incluem-se também outros de igual ou superior valor como: Stuart Hall, Homi Bhabha, Nestor Garcia Canclini, Hugo Achugar, Angel Rama, Antonio Cornejo Polar e Luiz Costa Lima. Todos se revelam como “autores de ruptura”, porque através de seus pensamentos transcritos em seus textos se rebelam contra modelos estabelecidos. Apesar da abrangência trazida pelas propostas dos Estudos Culturais, em vários sentidos, sobretudo na valorização das práticas, tanto na criação literária como na crítica literária em considerar a identidade local, dúvidas surgem. Uma delas está relacionada à aplicação de inúmeros conceitos, porém fora do seu contexto geográfico e histórico, discussão semelhantes2 acontecidas em outras épocas, relacionadas a outras tendências, agora nos estudos culturais volta à tona: a título de ilustração, cito as palavras de Huyssen referindo as abordagens teóricas atuais, questiona, por exemplo: Se a teoria pós-colonial funciona em países da América Latina cuja história colonial e pós-colonial é fundamentalmente diferente daquelas da Índia e da China; se a noção de subalterno pode ser transferida sem problemas de um contexto geográfico para outro; se noções de hibridismo e diáspora – os últimos significantes mestres, parece – são suficientemente rigorosos para descrever as complexas misturas raciais, étnicas e lingüísticas em diferentes partes do mundo (HUYSSEN, 2002, p. 32). A crítica se refere aos conceitos criados por teóricos, cujos fundamentos estão embasados em seu próprio contexto social, histórico e cultural e que, no entanto, outros países com culturas diferentes as aplicam em suas análises na elaboração de suas pesquisas. Além disso, há várias críticos que demonstram insatisfação diante das abordagens dos Estudos Culturais e da Literatura Comparada. René Wellek é pioneiro nesse assunto. Em 1958, 2 Eduardo F. Coutinho, em seu artigo intitulado “Sem centro nem periferia: é possível um novo olhar no discurso teórico Latino-Americano?”, Tece lúcidas reflexões sobre as teorias importadas da Europa, e aplicadas nas analises brasileiras indiscriminadamente: o Positivismo de Augusto Conte e o Estruturalismo, de acordo com o crítico essas correntes chegavam nas universidades e eram logo aplicadas transformando resultado de analises incoerentes. (1995, p. 624). 56 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 na palestra de abertura do Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, respectivamente, em Chapel Hill (USA), fala sobre a fragilidade da disciplina comenta sobre a falta de rigor teórico e também sobre a falta de sistematização metodológica. Os impasses da teoria contemporânea e a fragilidade de seus pressupostos metodológicos também instigaram a avaliação de Jonathan Culler. Em seu livro Sobre a desconstrução: e crítica pós-estruturalista (1997), traz inúmeras argumentações sobre o assunto e elucida que as afirmações de Richard Rorty de que este novo gênero (teoria) “não é nem avaliação dos méritos relativos às produções literárias, nem história intelectual, nem filosofia moral, nem, nem epistemologia, nem profecia social, mas todas essas embaralhadas em um novo gênero” (CULLER apud HOISEL, 2001, p. 77- 78). No contexto do presente assunto, é pertinente convocar as considerações de Eneida Maria de Souza, que também versa sobre a crise na prática dos Estudos Culturais. A autora assevera que a referente crise é causada pelos conflitos não resolvidos entre aqueles que defendem uma análise restrita à estética e aqueles que abrangem seus estudos através do diálogo interdisciplinar, praticado pelos Estudos Culturais. Segundo a autora, para os tradicionais, os “Estudos Culturais estaria colocando em risco os estudos literários corrompendo o objeto de análise e distorcendo a teoria da literatura” (SOUZA, 2002, p. 66). A autora acrescenta ainda que a insatisfação contemporânea acima referenciada, assumida pela crítica literária relacionada aos Estudos Culturais, não se restringe somente aos representantes da crítica brasileira, como também aos europeus e norte-americanos. A partir dessa reflexão, a autora elenca vários desses nomes cujos descontentamentos aparecem embasados e justificados, sobretudo, na ausência sistemática da teoria e metodologia que norteie as práticas analíticas. O embate entre as correntes da crítica que postulam a existência de uma teoria rigorosa, sistemática e os críticos culturais, responde pela necessidade se manter o controle epistemológico em relação ao objeto de estudo. Entre os partidários dessa ideia, incluem-se os representantes da teoria construtivista alemã, na figura de S. J. Schmidt, ou aqueles que acreditam na teoria literária como “uma escola de relativismo, não de pluralismo”. (A. Compagnon) tal controle poderia ainda impedir que o comparativismo e os estudos culturais se transformassem “num vale tudo” (Luiz Costa Lima); que a interdisciplinaridade praticada pelos americanos fosse vista por S. J Schmidt como “instalação de um armazém de secos e molhados” (COMPAGNON, LIMA, SCHMDT, apud SOUZA, 2002, p.66). Outro aspecto a sublinhar nas observações de Eneida Maria de Souza, prende-se com a sua referência ao binarismo. O binarismo não pode funcionar “como argumento de exclusão, colocando a teoria contra os estudos culturais ou ausência de teoria, a alta literatura contra as demais manifestações para literárias, e elitismo contra o populismo”. De acordo com ela os tempos mudaram e o atual espaço acadêmico não pode ser sustentado por uma única teoria. 57 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Afirma ainda que se a “sociologia atua como disciplina que dialoga com a teoria construtivista de Schmidt, a filosofia com os princípios teóricos de Luiz Costa Lima, outros campos do saber poderão continuar a manter o diálogo com os estudos literários e culturais”(SOUZA, 2002, p. 73). Finaliza o texto acrescentando: Infelizmente, torna-se tarefa impossível conservar, na atualidade, posições radicais contra os desmandos da teoria e o descontrole dos paradigmas de referencia. O mundo mudou, nos últimos dez anos de forma assustadora ( para em ou para o mal), e por que motivo as concepções artísticas, teóricas e políticas não deveriam também trocar o caminho tranqüilizador do reconhecimento pelo do saber sempre e processo? Enfrentar esse desafio é uma das formas de continuar a mover o debate teórico, para que este não se transforme em consenso de grupos ou na apatia acadêmica, provocada por um certo tipo de mal – estar, que não incita a curiosidade, mas, ao contrário, alimenta o conservadorismo (SOUZA, 2002, p. 73). Portanto, sem sombra de dúvida, a cultura é um dos elementos de identificação de uma nação. Sua identidade tem tudo a ver com os discursos representados nas produções artísticas. Nesse caso, a produção de linguagens originais e análises que não marginalizem essa produção é o caminho para desmascarar as estruturas hegemônicas, possibilitando a valorização de particularidades locais. ABSTRACT: The present article makes a reflection about some trends of the critical theoretician of century XX and XXI emphasizing how much the changes of its analytical parameters are reflected of the speeches represented in the literary creations, which also are modified due to the transformations happened in the society. It considers to show that due to the mature ness operated in the mentality of the Latin American writers with regard to its plural and heterogenic identity, proven fact through the new subjects configured in the immanency of the literary compositions, had the necessity on the part of the critics thinking a new epistemology about the critical theoretician ideological direction of the literary one in Latin America to extend and to extend the analyses, in the direction of will make possible the inclusion of the look for the “proper one”. KEY WORDS: Structuralism. Sociology of literature. Cultural studies. REFERÊNCIAS: ANDRADE, M. O Movimento Modernista. 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Nesta leitura procurarei apresentar ao leitor como suas personagens alegóricas representam um “eu coletivo” em meio a esta curta estrutura narrativa; como Plá, por meio delas, trata das mazelas sociais do contexto colonial que ainda são problemáticas na nossa sociedade latino-americana contemporânea. Poderemos observar, ao longo do texto, que a hierarquização entre os diferentes gêneros e etnias, o desejo agonístico pelo poder e a repressão do “outro” são algumas das questões abordadas por Josefina Plá em La mano em la tierra. E, para desenvolver esta proposta de análise do conto de Plá, voltada para as questões de relações de gênero e de alteridade na cultura e na literatura latino-americana, valer-me-ei aqui da perspectiva teórica de pensadores como Ricardo Piglia, Júlio Cortázar, Homi K. Bhabha, Marilene Weinhardt, Gilda Neves Bittecourt, Jean-Pierre Petter, Jeanne Favret, Umberto Eco, entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Latino-Americana. Alteridade. Relações de Gênero. Valendo-me da ideia de Ricardo Piglia, expressa em seu ensaio Teses sobre o conto, de que “um conto sempre conta duas histórias” (PIGLIA, 2001, p.24), de que cada uma delas é contada de maneira diferente e de que esta pequena narrativa encerra uma história secreta, construída para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto, proponho neste ensaio a leitura de primeiro (enredo) e segundo (história oculta) nível2 do conto La mano en la tierra, de Josefina Plá3. 1 PPGMEL/UFMS – Campo Grande, MS, Brasil - email: [email protected] A questão das leituras de primeiro e segundo nível é tratada por Umberto Eco em seu ensaio Ironia intertextual e níveis de leitura, leiamos um trecho de seu texto em que o autor nos explica a estas diferentes leituras sobre um texto literário: A bem dizer, é no jogo entre dois níveis de leitura que se coloca o duplo modo de entender a catarse na Poética aristotélica e na estética em geral: sabemos de fato que da catarse pode-se fazer seja uma interpretação homeopática, seja uma leitura alopática. No primeiro caso a catarse nasce do fato de que o espectador da tragédia é realmente presa da piedade e do terror, e até o espasmo, de modo que, ao padecer as duas paixões, delas se redime, saindo liberado da experiência trágica; no segundo caso, o texto trágico nos distancia da paixão representada [...] e dela nos liberamos não ao experimentá-la, mas apreciando o modo como é representada .[...] Porém é no segundo nível que se decide se o texto tem um ou mais sentidos, se vale a pena ir buscar o sentido alegórico [...] (ECO, 2003, P. 209). 3 Escritora espanhola nascida no ano de 1909 e falecida no ano de 1999, Paraguai. 2 62 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Numa leitura de primeiro nível de La mano en la tierra, deparamo-nos com a história de Blás de Lemos, colonizador espanhol que se encontra em seu leito de morte, em meio as terras coloniais paraguaias. Agonizando, Blas de Lemos tem em volta de si a companhia de sua esposa índia Ursula, de sua filha mestiça Cecília, de seu confidente Frei Pérez e, no último momento de sua vida, de seu filho mais jovem (igualmente mestiço), Diego. Neste seu momento de passagem, “sombras hace tiempo aquietadas se han puesto de pie en su memoria, se mueven sonámbulas a una luz sesgada, dura4” (PLA, 1996, p.18) e, por meio das brumas das memórias de Blas, conhecemos alguns de seus segredos mais íntimos e profundos, tais como o abandono da esposa espanhola (que se encontrava grávida quando a deixou ao partir para a América), seu desejo e anseio pela exploração do “novo continente” e sua relação de assombramento para com a população daquele lugar (inclusive para com seus próprios filhos). As lembranças de Blas de Lemos são de tal modo intensas, soberanas e incontroláveis que “poderíamos dizer que o passado [do personagem] se faz [seu] presente.” (WEINHARDT, 2004, p.28). As interrupções no tempo cronológico da narrativa mostram-nos que as visões de um conflituoso passado vivido e/ou construído pelo personagem, muito longe de poderem ser eliminadas, perseguem-no e escravizam-no assombrando a todo o momento a sua realidade de morte. Neste discurso memorialístico (delirante) narrado, por vezes, por um narrador onisciente e, por outras, pelo próprio personagem, “o que se vive é o que se relata, e o que se relata é o que se vive” (WEINHARDT, 2004, p.26). Por se tratar de uma estrutura narrativa curta, Josefina Plá vale-se de uma linguagem metaforizada e repleta de imagens para nos apresentar de uma maneira (rica e) concisa a memória de Blas de Lemos. O uso de certas imagens ao longo do conto proporciona-nos diversas leituras a partir de pequenos trechos, tal como podemos observar ainda no início da narrativa, quando o narrador onisciente nos descreve a cena de camalotes envolvidos por serpentes boiando pelo rio e levando consigo os mistérios da terra de onde vieram, sempre sedutora, estranha e incompreensível para o personagem colonizador espanhol: “De cuando en cuando, la isla náufraga de un camalote pasa boyando. Con é navega el misterio de tierra adentro, atado a veces con el nudo escamoso de una víbora”5 (PLA, 1996, p.15). Retomo agora a tese de Piglia, de que um conto sempre conta duas histórias, para propor a idéia de que, num primeiro momento, podemos ler neste trecho citado a cena literal de camalotes boiando no rio, mas, numa leitura mais atenciosa, podemos compreender ali a representação alegórica da visão de Lemos sobre aquelas terras (estranhas e atraentes) expressa na figura do camalote que assombra a sua memória, metaforizada, por sua vez, na figura do rio. Nesta leitura de segundo nível, podemos notar que em La mano en la tierra, a memória do personagem protagonista, Blás de Lemos, expressa na história do primeiro plano do conto, se 4 sombras há tempos aquietadas se puseram de pé em sua memória, se moviam sonâmbula a uma nesga luz (Tradução minha) 5 De quando em quando, um camalote passava boiando e com ele navegava o mistério da terra adentro, amarrado às vezes com o nó escamoso de uma víbora (tradução minha). 63 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 apresenta, no segundo, como uma “‘matéria prima’ em que o sujeito é menos importante que os efeitos de seu discurso” (WEINHARDT, 2004, p.181). Valer-me-ei então dos assombros de sua memória para propor, a partir deste discurso, discussões acerca de questões ampla e continuamente debatidas em nossa contemporaneidade, tais como a relação de estranhamento entre colono e colonizado; a invasão e exploração do continente latino-americano pelos europeus que concebiam o “novo” espaço meramente como um território e jamais como um lugar habitado por uma população nativa (cuja cultura, hábitos e leis se diferenciavam dos seus)6; a relação de poder e submissão entre os diferentes gêneros e etnias e a antropofagia cultural realizada pelos ameríndios com a cultura de seus colonizadores. Podemos notar, por meio de fragmentos da memória de Blas de Lemos, o medo do colonizador, consciente de que os sujeitos coloniais, sufocados pelo cotidiano intolerável de infelicidade, sustentados pela fome, pela doença, pela morte e pela violência e cerrados em vidas privadas de qualquer futuro, serem tomados pela vontade e necessidade de romper o silêncio e dar um ponto final “ao horror mudo de cada dia, à condição de animal” (PETER; FAVRET, 2010, p.187) a qual estão confinados. Blas parece entender que, embora estranha e silenciosamente, estes sujeitos excluídos esperam e planejam em códigos misteriosos a oportunidade de contra-ataque, pelo dia em que sairiam das margens, tomariam a palavra e devolveriam aos espanhóis os crimes que sofreram durante a colonização: Y llevan en sus brazos a tu hijos hasta quebrarse la espalda, y los amamantan hasta derrumbar toda gallardía. Y los podrías matar y nada dirían, pero tú sientes que esos hijos que podrías inmolar como Abraham al suyo, no son tuyos, porque al mirarlos hay en sus ojos un pesadizo secreto por el cual se te escabullen, y van al encuentro de sus madres en rincones sólo de ellos conocidos, y nunca puedes alcanzarlos allí… … Y les mandas y te obedecen, los ojos bajos; en vano querrás hallarlos en rebeldía; pero sus labios se aprietan sobre razone que nunca podrás hacer tuyas y sus pies hilan caminos que tú nunca podrás levantar. Y su obediencia te deja defraudado de amor, y su silencio está poblado de cantos extraños… (PLA, 1996, p.20)7 Ainda que, devido a concisão da estrutura narrativa do conto, “alguns aspectos sejam somente sugeridos, sem que se especifique seu verdadeiro significado” (BITTECOURT, 1998, 6 Segundo Bhabha, em O local da cultura, “[...] a imaginação colonizadora concebe suas dependências como um território, jamais como um povo” (2005, p.144) 7 “E carregam em seus braços os seus filhos até lhe quebrarem as costas, e os amamentam até derrubarem toda a graça. E poderia matá-los que nada diriam, mas você sente que estes filhos que poderia sacrificar tal como Abraão sacrificou o seu, não são seus, porque a olhá-los havia em seus olhos pensamentos secretos pelos quais se escondem, e vão ao encontro de suas mães cantando cantos conhecidos apenas por eles, e nunca pode alcançá-los ali... -... E lhes manda e te obedecem, olhos baixos, em vão querer encontrá-los em indisciplina, mas seus lábios são pressionados por razões que nunca poderão ser suas e seus pés fazem caminhos que você nunca consegue alçar. E sua obediência te deixa desiludido no amor, e o silêncio é cheio de cantos estranhos...” 64 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 p.177), podemos observar também que a construção discursiva da colônia, feita pelo colonizador (na voz moribunda de Blas de Lemos), apresenta-a enquanto um ambiente exótico, turvo e atraente, habitado por seres estranhos e bestiais: …Son tierras de un rico verdor; tan verde, que creerías guardaron para sí todo el verdor que les falta a tus tierras castellanas. Y hay flores y bestias extrañas, tal cual las debió ver nuestro padre Adán al despertar crecido y sin remordimiento e aquella mañana primera. Pero los crepúsculos rápidos y excesivamente coloreados no conocen el ritmo lento y señorial de los cielos nuestros y sus árboles enloquecidos como si se hubiesen hecho yelmo de un pedazo de aurora, sólo son eso: flor: no portan fruto que te alimente y satisfaga… (PLA, 1996, p.19)8 A criação discursiva ambivalente deste cenário colonial estereotipado (um paraíso bestial) expressa de maneira alegórica pela memória de Blás de Lemos contribui decisivamente na formação de sentidos do conto, que trata desta relação de assombramento e poder do homem adulto, branco, patriarcal e letrado sobre os índios (e índias) e mestiços em meio às terras paraguaias. Por meio da voz memorialista de Blas de Lemos, esta “síntese viva e/ou uma vida sintetizada” (CORTÁZAR, 2006, p.150) do sujeito colonizador, podemos compreender que, neste tipo de discurso, [...] é a força da ambivalência que dá ao estereotipo colonial sua validade: ela garante a repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que, para o estereotipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente (BHABHA, 2007, p.105-106) Em La mano en la tierra, a antropofagia cultural realizada pelos ameríndios, apresentada pela perspectiva colonizadora de Blas de Lemos, longe de ser colorida e alegre, tal como aquela desenhada por Oswald de Andrade9, é posta em cena como uma habilidade estranha e sorrateira 8 ... São terras ricamente verdes, tão verdes, que você acreditaria que guardam para si todo verdor que lhe falta nas suas terras castelhanas. E havia flores e a bestas estranhas, tal qual devia ter visto o nosso pai Adão ao acordar crescido e sem remorso naquela primeira manhã. Mas os crepúsculos rápidos e excessivamente coloridos não conhecem o ritmo lento e altivo dos nossos céus e suas encantadoras árvores cujas cascas parecem ser feitas de pedaços de aurora, são apenas isso: flor: não dão frutos que te alimente e satisfaça... (Tradução minha). 9 Em seu Manifesto Antropofágico, publicado em 1º de maio de 1928 no jornal Diário de São Paulo, Oswald de Andrade propõe-nos, a partir da metáfora da deglutição do alheio, uma maneira irreverente de compreender a capacidade do sujeito latino-americano de assimilar e transcender a cultura dos colonizadores europeus: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. LévyBruhl estudar.Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas 65 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 dos índios “selvagens”. Leiamos um trecho do conto em que Lemos apresenta essa “estranha” capacidade dos ameríndios de “digerir” a cultura espanhola: - ... Y tu les ensiñaste a tocar tu guitarra clara, tan distinta de sus raros instrumentos de ahogado gemir, y ellos aprendieron pronto; pero cuando empezaron a tocar solos, su música no era ya la que tú conocías, y era como cuando en los sueños alguien ha cambiado tu rostro y tu espejo no te reconoce… … Y escuchan atenamente a los hombres de Dios que traen Su Palabra, y reciben contentadamente el bautismo; pero adivinas que cuando le hayan acogido para siempre, ya no será el mismo, porque ellos abran descubierto que El puede tener también se rostro, y se lo cambiarán… (PLA, 1996, P.20)10. Neste conto, Josefina Plá põe em cena a figura feminina por meio de personagens alegóricas fadadas ao papel de dependentes e submissas aos seus senhores espanhóis brancos. Em La mano en la tierra, Isabel, Ursula e Cecília encenam as três diferentes faces femininas presentes neste contexto de colonização: a mulher branca, a índia e a mestiça, respectivamente. Embora muito diferentes umas das outras, as três personagens, vivendo num mesmo ambiente de silêncio e submissão, são “mulheres que não conseguem escapar dos locais determinados culturalmente para o gênero” (RESENDE, 2006, p.96) e, por isso, compartilham a importante característica de ser um objeto a ser usufruído de uma forma ou de outra pelos seus homens. Por meio da voz masculina colonizadora de Blas de Lemos, podemos notar que mesmo diferindo-se muito entre si, essas personagens representam um eu coletivo, um estereótipo de um retrato pintado há séculos e que ainda se mantém nos dias de hoje. Isabel, espectro da memória de Blás, é apresentada enquanto uma “presença anônima ou coletiva na ficção” (LaGUARDIA-RESENDE apud REZENDE, 2006, p.97). Abandonada ainda jovem e grávida pelo marido aventureiro, a mulher espanhola assume o papel de uma distante recordação de Blás de Lemos, que escolhera o domínio e o poder nas “novas terras americanas” à vida com o filho (que morrera sem que o pai jamais o conhecesse) e a esposa. Em La mano en la tierra, Isabel encena o papel da figura feminina dependente que “não requereu atenção histórica” (LaGUARDIA-RESENDE apud REZENDE, 2006, p.97), da esposa branca desamparada e relegada ao esquecimento pelo valente desbravador do “fantástico” continente latino-americano. Leiamos um trecho da narrativa no qual a lembrança da esposa espanhola vaga sobre a memória de Lemos: eficazes na direção do homem. Sem nos a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. [...] Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. (ANDRADE, 2008, p.36).” 10 - ... E tu lhe ensinastes a tocar teu violão claro, tão diferente de seus raros instrumentos de abafado gemido e eles aprenderam prontamente, mas quando começaram a tocar solos, suas músicas não eram as que tu conhecias, e era como quando nos sonhos alguém troca seu rosto e teu espelho não te reconhece. -... E escutam atentamente os homens de Deus que trazem Sua Palavra, e recebem alegremente o batismo, mas adivinhas que quando lhe fugiram para sempre, nunca mais serão os mesmos (Tradução minha). 66 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 HACE rato se fue franciscano, dejando tras de sí a promesa de volver con los Oleos, e un penoso surco de luz en la conciencia de Blas de Lemos. […] sombras hace tiempo aquietadas se han puesto de pie en su memoria, se mueven sonámbulas a una luz sesgada, dura.[…] la imagen d Doña Isabel, la joven esposa, casi una niña, abandonada en la casona castellana. Prometió muchas veces hacerla venir; nunca lo cumplió. Estaba encinta cuando la dejó. Muy después supo que había dado a luz a un varón; que lo había llamado Blas, como el esposo olvidadizo. El joven Blas – pero no; no sería ya un joven: un hombre ya con la barba rubia quizá y los ojos azules – murió en aquella batalla… ¿Cómo se llamaba?... ah, sí, Lepanto, donde dice que tanta honra alcanzaron las armas españolas… Trata en vano de imaginarse al hijo que nunca vio… ¿Y ella, Isabel? Hace años que nadie le dice ya nada de ella. Quizá aún vive retirada en su casona, o en un convento, como tantas otras esposas y novias abandonadas. (PLA) 11. Apresentadas como “objetos negociáveis” (RESENDE, 2006, p.93) Ursula e Cecília não se encontram numa situação muito melhor que a de Isabel por terem consigo a companhia do senhor colonial Blas de Lemos. Úrsula, a velha esposa índia, é apresentada pela perspectiva de Lemos como “um animal ou um objeto” (RESENDE, 2006, p. 92) que lhe fora dado por um cacique enquanto símbolo de aliança e união entre as suas diferentes etnias: A los pies de la cama, Ursula acuclillada masca su tabaco. Sus movimientos son mínimos y precisos. Hace menos ruido que la brisa en el pasto, afuera. El typoi a los costados deja ver por momento los pechos de cobre, voluminosos y alargados como ciertos frutos nativos. ¿Cuántos años tiene Ursula?... ¿Cincuenta?... Quizá menos. Doce tenía apenas cuando, mitad rijoso, mitad risueño, la recibió de entre el rebaño núbil ofrecido por un empenacho cacique como prenda de alianza y de unión. Está vieja Urula, con una vejes que no se cuenta por sus propios años sino por los de él, Don Blas[…] (PLA, 1996, p.18)12. 11 Há tempo se fora o franciscano, deixando para trás a promessa de voltar com os óleos e um penoso caminho de luz na consciência de Blas de Lemos. [...] sombras há tempos aquietadas se puseram de pé em sua memória, se moviam sonâmbulas a uma nesga de luz, dura. [...] a imagem de Dona Isabel, a jovem esposa, quase uma criança, abandonada na casa espanhola. Prometera a ela vir muitas vezes, nunca o cumpriu. Ela estava grávida quando ele partiu. Muito mais tarde soube que ela havia dado à luz um filho, que tinha chamado Blas, como o marido esquecido. O jovem Blas - mas não, não seria já um jovem: um homem já com barba e olhos azuis, talvez? - Morreu naquela batalha... Como se chamava? ... ah, sim, Lepanto, onde ele disse que tanta honra alcançaram as armas espanholas ... Tentou imaginar, em vão, o filho que ele nunca vira... "E ela, Isabel?” Há anos que ninguém lhe dava notícias dela. Talvez esteja já morta. Talvez ainda viva retirada em sua grande casa, ou em um convento, como tantas outras esposas e noivas abandonadas (Tradução minha). 12 Ao pé da cama, Ursula, de cócoras, mascava seu tabaco. Seus movimentos eram mínimos e precisos. Fazia menos ruído que a brisa do lado de fora da grama. O typoi aberto nas laterais deixava, por vezes, à vista seus seios de cobre, volumosos e alongados, como certas frutas nativas. Quantos anos teria Ursula? ... Cinqüenta? ... Talvez menos. Tinha apenas doze quando meio briguenta, meio sorridente, recebeu-a dentre o rebanho como noiva oferecida por 67 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Desde então, Ursula passou a viver a serviço de seu senhor espanhol cuidando de suas terras, de sua saúde e abrigando dentro de seu ventre as sementes do provedor. Podemos notar que, na visão de Blas de Lemos, Ursula “sofre, portanto, uma dupla determinação: por pertencer a uma classe social desfavorecida e por ser mulher” (RESENDE, 2006, p.96). A personagem índia é descrita por Blas como uma figura exótica e serviçal que lhe dera seis estranhos filhos homens dentre os quais o mais jovem, Diego, é único bem-quisto pelo pai pelo fato de ser parecido consigo: Ursula en cambio le había dado seis varones. Seis mancebos pujantes. […] Blas, no había podido entederse nunca del todo con ellos. Siempre se había entendido mejor con la madre. […] Con ella conversaban a las veces en su lengua, de la cual él, Blas de Lemos, no pudo nunca ahondar de todo los secretos. […] Siempre sintió junto a ellos, aún al tenerlos en sus rodillas, que era e de esos seres por cuyas venas su sangre navegaba irremediable, un mundo aparte […] a hijos que seguían siendo un poco extraño, siempre con un silencio reticente en el labio túmido y un fulgor de conocimiento exclusivo en los ojos oscuros; que cuando decían “oré”… Tranzaban en torno de ellos mismos un círculo en el cual él nunca había acabado de sentirse en lucha. Recordó a Diego, su ultimogénito varón. El único que había sacado los ojos azules. Blas lo amaba entre todos por eso, sin decírselo; aquel color parecía aclarar un poco el camino entre sus almas…13 (PLAS, 1996, p.16-17) Cecília, a doce e delicada filha de Lemos, apesar de lhe ser bem quista, não deixa de ser apresentada, tal como as demais, como uma mulher “coisificada” (RESENDE, 2006, p.96). Ao longo da narrativa, Cecília é posta em cena como uma figura silenciosa e obediente, que serve ao pai e que está destinada a servir, futuramente, ao seu marido. Ao lermos La mano en la tierra, podemos observar que a jovem mestiça, prometida ao filho de um amigo de Blas de Lemos (igualmente colonizador), encena de maneira alegórica uma geração que dará continuidade àquelas vidas de dependência e submissão feminina aos seus senhores maridos. Leiamos um trecho do conto no qual a personagem nos é apresentada: um cacique adornado de penas, como penhor de aliança e unidade. Ursula está velha, com uma velhice que não prejudica a si, mas a ele, Don Blas. (Tradução minha). 13 Em vez disso Ursula tinha dado seis homens. Seis jovens concorrentes. [...] Blas nunca pudera se entender com eles. Sempre se entenderam melhor com a mãe. [...] Conversavam com ela, por vezes na sua língua, da qual ele, Blas de Lemos, nunca pudera desenterrar todos os segredos. [...] Sempre sentiu junto deles, ainda que os tivesse sobre seus joelhos, que era daqueles seres em cujas veias seu sangue navegava irremediavelmente, um mundo à parte [...] um pouco estranhos, sempre com um silêncio reticente no lábio túmido e um fulgor de conhecimento exclusivo nos olhos escuros, que, quando dizia: " reze" ... puxava em torno deles mesmos um círculo em que ninguém, nem ele, o pai, o genitor, tinha um lugar; uma área de selva e de misteriosos chamados girando na luz taciturna de um planeta de cobre, um mundo com o qual ele nunca havia acabado de se sentir em luta. Lembrou de Diego, seu mais novo varão. O único que tinha puxado seus olhos azuis. Blas o amava entre todos por isso, sem o dizer, aquela cor parecia aclarar um pouco o caminho entre suas almas... (Tradução minha) 68 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Una voz, cerca, oxea un bicho. La voz cantarina de Cecilia. Cecilia con su tez clara, sus trenzas negras, sus ojos que si fueran un poco altos parecían andaluces. Blas piensa ella con ternura. Está prometida. La desposará el joven Velazco, e hijo más joven de Pedro Velazco, su viejo amigo hace poco difunto. Hela ahí en la puerta, como empujada por la luz pródiga: Cecilia con sus typois limpios, su flor en la trenza, sus diligentes pies descalzos. ¿Cómo os sentís, señor padre?... (PLA, 1996, p.17)14 Em La mano en la tierra a situação das personagens “não se altera de forma milagrosa no final” (RESENDE, 2006, p. 98) do conto. Se, por um lado, Cecília representa de maneira alegórica a continuidade da dependência e submissão feminina, Diego, o único filho homem estimado por Blas de Lemos (pelo fato deste ser um mestiço de olhos azuis parecido consigo), representa, por outro, o papel de uma geração que dará continuação ao derramamento de sangue pela exploração das terras paraguaias. Me voy a Buenos Aires con Juan de Garay. Vuestra bendición, señor padre. La mano de Blas se alza a duras penas, como un pájaro viejo; se posa incierta sobre la frente del joven Diego. Lo mira; ve los ojos azules, que parecen un poco extraviados en el color terrígena del rostro. Y como en las aguas de los arroyos de su niñez, Blas de Lemos ve en ellos hasta el fondo. En aquel rostro moreno, un poco tosco pero noble, en aquellos ojos azules, Blas de Lemos recupera por un instante, en un relámpago, toda su juventud desaparecida. Allí en esos ojos está a sangre soñadora y loca. La sangre destinada a verterse sin sosiego y sin tregua por los cuatro puntos cardinales. Dios te bendiga y lleve de su mano. Que t sangre prospere y tu progenie sea numerosa… Tal vez quiso decir también: dichosa. Pero no sabe por qué no pudo decirlo (PLA, 1996, p.22)15. 14 Uma voz nas proximidades oxea um bicho. Era a voz de Cecília. Cecilia, com sua tez clara, suas tranças negras e seus olhos, que se não fossem um pouco altos, pareceriam andaluzes. Blas pensava nela com ternura. Estava prometida. Seria desposada pelo jovem Velazco, o filho mais jovem de Pedro Velazco, seu velho amigo recentemente falecido. Ela estava na porta, como se fosse empurrada pela luz ofuscante: Cecilia com typois limpa, sua flor no cabelo e seus diligentes pés descalços. - Como você se sente, senhor pai ...? (Tradução minha). 15 - Vou para Buenos Aires com Juan de Garay. “Vossa bênção, pai". Blas levantou suas mãos às duras penas, como um pássaro velho, e pousou incerta sobre o jovem Diego. Olhou-o, viu seus olhos azuis, que pareciam um pouco perdidos com a cor terrígena do rosto. E, como nas águas dos rios de sua infância, Blas de Lemos o olhou profundamente. Naquele rosto moreno, um pouco áspero, mas nobre, naqueles olhos azuis, Blas de Lemos recuperou, por um instante, em um relâmpago, toda a sua juventude desaparecida. Nesses olhos há sangue louco e sonhador. O sangue destinado a ser derramado sem sossego e sem descanso pelos quatro pontos cardeais. - Deus te abençoe e segure tua mão. Que teu sangue prospere e sua descendência seja numerosa ... Talvez quisesse dizer também: feliz. Mas não soube por que não o pôde dizer. (Tradução minha). 69 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Tal como o pai, que si ha vivid como pecador morirá como cristiano 16 agarrando o terra, um sujeito colonizador para quem a paz soava como algo desconocido17 (PLA, 1996, p.21), Diego parece estar destinado a morrer e a matar pelo desejo de glória e poder em meios às terras latino-americanas. Assim,podemos notar que em La mano en la tierra o ciclo de lutas e repressão no contexto colonial não se encerra no final da narrativa, ao contrário, as figuras de Cecília e Diego encenam sua continuidade. Ao por em cena personagens como Ursula, Isabel, Cecília e Blás de Lemos, a escritora Josefina Plá, em La mano en la tierra, propõe-nos uma leitura sobre o contexto colonial diferente daquela que nos é imposta pela historiografia eurocêntrica, que narra uma bela epopéia repleta de nobres e valentes heróis, desbravadores das terras ameríndias. A figura feminina, desenhada na narrativa (em suas três diferentes faces) pela voz do colonizador como dependente e submissa ao seu senhor marido bem como a figura do índio enquanto um “selvagem ameaçador” sugere-nos um amplo debate em torno de questões que ainda assombram a nossa sociedade contemporânea uma vez que o problema do repúdio às diferenças étnicas e a repressão sofrida pela mulher não foram resolvidos no contexto em que vivemos. Para Gilda Bittecourt, as narrativas latinoamericanas como a de Josefina Plá, [...] projeta uma intenção, inerente a um tipo de narrativa romanesca contemporânea, de desconstruir o relato numa referência privilegiada, unívoca, ou que remeta a uma origem absoluta (BITTECOURT, 1998, p.180) A leitura de La mano en la tierra permite-nos afirmar que Josefina Plá ainda hoje cumpre com o papel político e estético de um artista contemporâneo 18, pois sua obra suscita debates (mais que) pertinentes à nossa realidade apresentando-nos de maneira alegórica os estereótipos discursivos responsáveis pela hierarquização entre gêneros e etnias que continua a assombrar a nossa sociedade. Assim, o conto poético de Josefina Plá, ao surtir o efeito desejado sobre seu destinatário e suscitar-lhe boas reflexões, podem fazer parte das artes consideradas grandiosas por Longino, pois segundo o filósofo: Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um homem sensato e versado em literatura, não dispõe a as alma a sentimentos elevados, nem deixa no seu 16 Que vivera como pecador e morreria como cristão (Tradução minha) Algo desconhecido (Tradução minha) 18 Valho-me aqui da idéia de Giorgio Agamben expressa em seu ensaio O que é o contemporâneo? no qual o pensador afirma que o contemporâneo não é necessariamente o cronologicamente o novo, mas sim aquele que “percebendo o escuro do presente é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo e relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provem de maneira nenhuma de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder (AGAMBEN, 2009, p.72). 17 70 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 pensamento matéria para reflexões além do que dizem as palavras, e, bem examinada sem interrupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeiro sublime, pois dura apenas o temo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é aquela o texto muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistência e forte lembrança, difícil de apagar (LONGINO, 1992, p.76-77). Cabe ao intelectual (e aos educadores) ler sua obra e promover debates e reflexões acerca das questões propostas pela autora. Encarar o horror da repressão, do reconhecimento e repúdio às diferenças, da exploração, da guerra e emocionar-se, chocar-se, ferir-se diante daquilo que a arte e, consequentemente, a realidade têm a dizer bem como refletir sobre o quão todas estas problemáticas são experiências de extrema importância para conscientização, politização e educação do sujeito contemporâneo. Faz-se necessário pensar na literatura como uma forma de intervenção política, estética e reflexiva sobre a nossa sociedade e elaborarmos, a partir dela, “um discurso crítico que corresponda, de fato, à natureza híbrida e heterogênea dessas produções ficcionais” (BITTECOURT,1998, p.181). THE STRANGE, THE SILENT AND THE FANTASTIC: THE ALEGORICAL FIGURES IN "LA MANO EN LA TIERRA", BY JOSEFINA PLÁ ABSTRACT: I offer to do a brief analysis in this essay about the Josefina Pla’s short story La mano en la tierra. In this analysis, I´ll try to show to the reader how her float character represents a “collective self” in this short story, how Josefina Pla by means of them discuss about colonial context´s illness that are still problematic in our contemporary Latin American society. The hierarchy between the different genre and ethnicity, the desire for the power and the repression with the “other” are question discussed by Josefina Pla in La mano en la tierra. Keywords: Latin American Literature. Otherness. Relationship of Gender. REFERÊNCIAS: ANDRADE, O. de. Manifesto Antropofágico. In: Discutindo Literatura, São Paulo, Editora Ática, n.16, ano 3, p.36-37, 2008. AGAMBEN, G. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. 71 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 BHABHA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Trad. Myriam Ávila, Eliana L. L. Reis, Gláucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. BITTECOURT, G. N. O conto Latino-Americano: confronte de imaginários. In: MARQUES, Reinaldo; BITECOURT, Gilda Neves. Liminares críticos: ensaios sobre literatura comparada. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. P.173-181. CORTÁZAR, J. Alguns aspectos do conto. In: CAMPOS, Haroldo de; ARRIGUCI Jr, Davi. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Coleção Debates). p.147-163. ECO, U. Ironia intertextual e níveis de leitura. In: Sobre a Literatura. Trad. Eliana Aguiar. São Paulo: Record, 2003. P. 199-218. LONGINO. Tratado do Sublime. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. Trad. Jaime Bruna. 5 ed. São Paulo: Cultrix: 1992. PETER, J-P.; FAVRET, J. O animal, o louco, a morte. In: FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. 9 ed. Trad. de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 2010. PIGLIA, R. Teses sobre o conto. São Paulo: Folha de São Paulo, 30 dez.2001. caderno mais!, n.516, p.24 PLA, J. La mano en la tierra. In: Cuentos completos. Asunción: El Lector, 1996. P.15-22 WEINHARDT, M. Ficção Histórica e Regionalismo: estudos sobre romances do Sul. Curitiba: Ed. da UFPR, 2004. (Pesquisa; n. 99). 72 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Em cena, Balada de amor no sertão, de Cristina Mato Grosso Elisângela Cristiane Rozendo de SÃO JOSÉ 1 Wagner Corsino ENEDINO2 RESUMO: Este trabalho tem como escopo apresentar um recorte do resultado das investigações acerca do texto dramático, intitulado Balada de amor no sertão, 2003, de Cristina Mato Grosso. Fruto de pesquisa de mestrado, dividiu-se em três capítulos, nos quais nos dois primeiros apresentamos aspectos da teoria transcultural aplicáveis ao estudo desta peça e, a exposição da trajetória teatral da escritora, respectivamente, por entendermos a relevância de seu trabalho no cenário dramatúrgico sul-mato-grossense. Neste artigo, especificamente, destacaremos alguns elementos da transculturação e parte dos resultados, tecidos no último capítulo, a respeito da estrutura do texto com enfoque aos traços de medievalidade. Ancorando-se nas contribuições de Magaldi (1998), Ryngaert (1995), Pavis (1999) e Rosenfeld (1972) acerca das noções que configuram o discurso teatral; nos estudos de Prado (1972) no que se refere à construção do personagem e nos pressupostos teóricos de Ortiz (2002), Rama (2008) sobre o conceito de transculturação, o trabalho teve como objeto de estudo a análise das falas das personagens centrais do texto, buscando, por meio delas, compreender como se compõem o tempo e o espaço no texto dramático. Pretende-se desse modo, contribuir para a divulgação e valorização do teatro sul-mato-grossense. PALAVRAS-CHAVE: Teatro brasileiro. Personagem. Cristina Mato Grosso. Introdução Um dos princípios que circunscrevem a Literatura é a multiplicidade de sentidos que as palavras podem adquirir. E o texto passa a ser um manancial de possibilidades de expressão; visto ter, como essência, a palavra. A palavra, no teatro, tem um alcance maior que a simples expressão da voz, é o próprio texto em princípio, sendo assim, por meio da linguagem é que inicialmente “imergimos na outra face de sua visceral ambigüidade, ao mesmo tempo que descortinamos a zona que justifica pensar o teatro nos quadrantes da teoria literária” (MOISES, 1997, p. 260). 1 UFMS/CPCX- Curso de Letras. Coxim- MS- Brasil. CEP 79.400-000; e-mail: [email protected] 2 UFMS/CPTL- Curso de Letras. Trës Lagoas- MS. Brasil. CEP 79.603-011; e-mail: [email protected] 73 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Nesse sentido, o intuito aqui é de destacar a obra escrita, que ostenta elevada taxa de literariedade, pois o texto dramático alimenta-se dessa linguagem polissêmica para a construir como espetáculo. O texto é a parte essencial do drama. Ele é para o drama o que o caroço é para o fruto, o centro sólido em torno do qual vêm ordenar-se os outros elementos. E do mesmo modo que, saboreado o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros frutos semelhantes, o texto, quando desapareceram os prestígios da representação, espera numa biblioteca ressuscitá-los algum dia (BATY apud MAGALDI, 1998, p.15). A metáfora de Baty é bastante esclarecedora para a importância do texto defendida neste trabalho, visto que, “sem obra dramática, não há teatro. A existência de uma peça marca o início da preparação do espetáculo” (MAGALDI, 1998, p.15). Não se entenda aqui que o devido valor à encenação seja refutado, mas são procedimentos bem distintos, ainda que complementares. Trata-se de uma perspectiva de leitura, alicerçada também na proposta de Corvin, assegurando que “[...] o texto escrito tem a vantagem de propor traços menos fugitivos e menos subjetivos do que os registrados pelos olhos e ouvidos, ele permite melhor [...] discernir classes de signos típicos e depreender [...] traços pertinentes [...] (CORVIN, 1998, p.277)”. A função dramatúrgica é a de fazer pulular no espectador a reflexão, a fruição, o prazer que não é somente estético. Nesse sentido, o papel da literatura é plurifuncional, pois: Além da função estética (arte da palavra e expressão do belo), uma obra literária pode possuir, concomitantemente, a função lúdica (provocar um prazer), a função cognitiva (forma de conhecimento de uma realidade objetiva ou psicológica), a função catártica (purificação de sentimentos) e a função pragmática (pregação de uma ideologia) (D´ONOFRIO, 1995, p.23). Nesse segmento, importante compreender o teatro enquanto manifestação cultural e literária. Assim, a proposta aqui se restringe ao estudo do texto da obra dramatúrgica de Cristina Mato Grosso, intitulada Balada de amor no sertão, 2003, que conquistou o 1º lugar do prêmio Funarte de Dramaturgia - Região Centro-Oeste – Teatro adulto em 2003 e, montagem FunartePetrobrás/2005. A escolha da peça Balada de amor no sertão justifica-se pela presença de esparsos trabalhos no âmbito acadêmico, além disso, cumpre ressaltar que a dramaturga apresenta uma vasta produção artística que se encontra ainda inexplorada. Esboçando o cenário teatral de Mato Grosso Cristina Mato Grosso representa a mais pura seiva do teatro que revigora os palcos do nosso Estado (Paulo Correa de Oliveira) 74 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Imprescindível se faz conhecer o processo de construção do texto. Dessa forma, na pesquisa foram elencados e discutidos os aspectos que compõem o projeto estético da dramaturga Cristina Mato Grosso. Por isso, explicitou-se a respeito da história e função do teatro na realização do grupo GUTAC - Grupo Teatral Amador Campo Grandense, do qual uma das fundadoras é a dramaturga que desvela, em suas produções, um caráter social engajado. A exposição da vida teatral da atriz faz-se necessária por entendermos a relevância de seu trabalho no cenário dramatúrgico sul-mato-grossense e brasileiro e, sobretudo por se tratar de uma autora e produções ainda pouco exploradas no âmbito acadêmico. Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros fundaram, em 1971, o GUTAC e representam os pilares do movimento teatral em MS. Importa dizer que vários grupos floresceram nesta época, no entanto, o GUTAC tem um trabalho de grande representatividade além do Estado e bastante consolidado, visto ser um dos únicos que permanece em atividade contínua em todos esses anos. O grupo foi forjado sob o véu da ditadura. Suas peças, a maioria de autoria de Cristina Mato Grosso, como retratavam a realidade da repressão e da obstrução cultural que o pais vivia neste período, sempre passavam pela interferência dos órgãos de censura, retalhando os textos e classificando as peças. Essa experiência, pela qual o grupo conviveu catorze anos, marcou expressivamente a produção textual e cênica do grupo. Trazemos à baila, outras atividades seminais para a produção literária da escritora. A atriz se distanciou um pouco do grupo para ampliar sua formação acadêmica, pois já possuía graduação em Letras, e se instala no Rio de Janeiro, cidade que proporciona a ela a formação em interpretação teatral e muitas oportunidades. Por meio da experiência significativa com a cultura popular nordestina, ao participar de um grupo teatral que investigava a literatura de cordel, Cristina Mato Grosso descobriu sua predileção pelo teatro popular, sobretudo ao desenvolver projetos de teatro direcionado efetivamente para o povo. Apresentaram-se em diversas favelas e morros cariocas, como a da Rocinha e o Morro do Boréu. Entre uma experiência e outra de ensaios conheceu o ator e diretor Sérgio Brito e o Grupo dos Quatro e passa a vivenciar novas realidades na companhia desses artistas. Pode-se dizer que sua versatilidade advém do trabalho com este grupo, lembrando que trabalhos de cunho reflexivo em sala de aula eram proibidos, por isso, professores e alunos pensavam o fazer teatral e sua relação com o sistema, fora das salas. Os jovens atores transpunham suas experiências urbanas em filas de supermercados, ônibus, de INPS, por exemplo, para os textos de Brecht. Outro fator relevante foi o sistema coringa 3 utilizado pelos autores, no qual a atriz prova profundamente do trabalho coletivo, valorizando-a como pessoa e artista de forma incomensurável. 3 Trata-se de um novo procedimento cênico-interpretativo desenvolvido por Augusto Boal. Não há atores personagens e sim, funções de acordo com a estrutura dos conflitos. “O coringa pode substituir qualquer ator da peça, em caso de extrema necessidade até o protagônico” (ROSENFELD, 1995, p. 17). 75 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Mesmo tendo fortalecido seus elos naquela cidade, pois coordenava uma escola no Meyer e já tinha convite de Sérgio Brito para ministrar aulas de interpretação, a atriz volta ã sua terra natal, agora Mato Grosso do Sul, onde entende que deveria ocupar seu “lugar”, espaço de compromisso com a realidade de seu estado, com a classe humilhada, sofrida e oprimida. O olhar perspicaz da dramaturga colheu o material de situações do cotidiano, das notícias veiculadas nos jornais para demonstrar a subvida da população periférica e pobre do Estado. Diante do descaso para com a fatia pobre da sociedade campo-grandense, a arte do grupo se compromete cada vez mais com o oprimido. Cristina Mato Grosso, agora mais madura e segura após formação no âmbito teatral, se une efetivamente aos companheiros do GUTAC e, coletivamente, pesquisa suas raízes e defende um teatro popular, que pudesse ser de grande interesse do público, que fosse reflexo da língua do povo e sua realidade. Entenda-se o popular no sentido de um teatro que dá voz à cultura popular, às idiossincrasias de um povo; tem como marcas a improvisação, elaboração de adereços, figurinos e cenários de forma criativa e, a presença marcante de personagens alegóricos. Cristina Mato Grosso faz um teatro único (em que não há diferenças entre universo infantil e adulto); empresta sua palavra para que seus personagens possam cantar o canto sufocado pela forte minoria que detém o poder nas mãos; faz teatro tipo documento, pois colhe subsídios verídicos por meio de investigações históricas, geográficas, das raízes religiosas, culturais e folclóricas. Fica evidente em suas produções a preocupação exegética da autora em toda sua trajetória artística. Sua poética deixa reverberar muito de suas lutas sociais, de seu comprometimento além-arte, de sua ideologia. Em todas as suas produções há um traço fundamental, recorrente no início de sua carreira e que se sustenta contemporaneamente: a luta em favor dos marginalizados e o ativismo social. A total exposição das atividades da dramaturga não caberia neste ensaio, mas acreditamos ter desvelado alguns traços fundamentais para a leitura de sua estética. Balada, uma peça transcultural? Grandes autores “gostam de explorar seus limites, como se a cada vez reinventassem formas mais sutis ou jogassem com a liberdade da escrita” (RYNGAERT, 1995, p. 07), neste prisma, entendeu-se que esta peça traz em seu bojo o processo transcultural. A elaboração de transculturação, na perspectiva de Ángel Rama (1926-1983), partiu do conceito já existente do intelectual Fernando Ortiz (1880-1969), que para entender as mudanças na sociedade, necessitava de um enfoque diferente e, nessa tentativa, cria o termo transculturação, um neologismo que poderia substituir em grande parte, o termo aculturação. Rama dá amplitude ao conceito de Ortiz, buscando dinamismo maior nas possibilidades de 76 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 resposta ao impacto cultural. Nessa procura de respostas parte para o âmbito literário e materializa sua teoria de transculturação narrativa. Importante destacar que Rama de forma alguma despreza os pressupostos de Ortiz. Os dois intelectuais se voltaram para a revigoração da cultura perante o impacto modernizador, a perspectiva é que se diferencia; Ortiz foca para a aculturação no contato entre as culturas e Rama para os modos de resposta a esse contato cultural. O crítico uruguaio ao apresentar as formas de resposta ao impacto cultural, as sintetiza em três: a vulnerabilidade cultural que se entende pelo aceite passivo à cultura do outro; rigidez cultural, ao se fechar unicamente nos valores da comunidade que recebe o impacto, refutando toda contribuição nova; e, a plasticidade cultural, neste, ao incorporar elementos exteriores, as novidades, com o elemento inventividade, a estrutura cultural é dinamizada. Em Balada de amor no sertão buscou-se centralizar nessa última resposta que diz respeito à “destreza para integrar em um produto as tradições e as novidades” (RAMA apud AGUIAR & VASCONCELOS, 2001, p. 215). Ángel Rama entende que essa situação intermediária entre vulnerabilidade e rigidez foi obtida principalmente pelo exercício literário dos regionalistas, a quem o intelectual uruguaio chamou de regionalistas plásticos ou de continuadores transformadores. O crítico se utiliza da nomenclatura regionalista para enfatizar a literatura latino-americana quando esta passa a voltarse para as particularidades, contrastando, pois, com a influência externa. A respeito dos regionalistas plásticos, é importante compreender a mudança de perspectiva criativa dessa corrente literária. Observa-se nesse contexto, especialmente entre as duas grandes guerras, uma verdadeira “guerra literária”- usando as palavras de Rama- tal qual aconteceu no campo literário brasileiro, onde a “modernidade” não era ainda bem compreendida. Há, então, a resistência dos mecanismos literários regionalistas (que se perfilou na região do interior por meio de traços do passado, da tradição) aos vanguardistas4. O autor Rama repensou a tradição a partir do contato com a influência externa e a relevância que o elemento tradicional e o modernizador teriam ao formarem um terceiro. Para ele, o meio onde essa síntese é mais visível, onde há respostas mais interessantes, seria na literatura. Ao responder à proposta aculturadora por meio da plasticidade cultural se revela o grau de liberdade criadora do escritor, a sua habilidade em incorporar novidades que agem como “fermentos animadores da tradicional estrutura cultural”, segundo Rama. A obra de arte seria, então, o produto que transita entre o universal e o regional. Nesse viés, a dramaturga Cristina Mato Grosso coloca em prática a plasticidade cultural no seu fazer literário, pois grande parte de suas criações dramatúrgicas partem de fatos reais e de pessoas, muitas vezes, esquecidas na memória ou nem mencionadas nos registros oficiais, mas 4 O Vanguardismo foi o conjunto de tendências que inovaram o campo das artes e letras e influenciou países da América Latina e que no Brasil corresponde ao Modernismo. Importa lembrar que nesse contexto, no Brasil se buscava a definição dos parâmetros culturais pátrios frente à influência europeia- o que gerou o conceito de Antropofagia, conceito este que remete à ideia de transculturação. 77 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 que ela os descobre por meio de intensas pesquisas. Na esteira do pensamento de Rama, esse processo transculturador se inicia com a reimersão nas fontes originais, podendo intensificar alguns elementos da tradição ou ainda recuperar estratos mais primitivos ainda não conhecidos. Esse processo “para um escritor são meras soluções artísticas; no entanto, procedem de ações que se desenvolvem no seio de uma cultura”, recuperando os componentes reais não reconhecidos anteriormente, sendo revigorados por “forças modernizadoras”(AGUIAR & VASCONCELOS, 2001, p. 258). Na peça em estudo também constatamos os três níveis que estruturam o conceito de transculturação narrativa: o nível linguístico, de estruturação literária e a cosmovisão. O primeiro nível aponta a coexistência dual de uma língua culta e um dialeto rural, elemento encontrado nos romances dos primeiros regionalistas. De acordo com Cunha “os herdeiros desses primeiros regionalistas seriam os ‘transculturadores’, [...] que teriam promovido um encurtamento na distância entre a ‘língua’ do narrador-escritor e a dos personagens”, intermediando uma recriação da linguagem. Assim, a “voz popular passaria de singularizadora do personagem àquela que narraria e que poderia, portanto, como o narrador, manifestar sua visão de mundo preservando a própria identidade”(2007, p.184; 186). O escritor ao mudar sua postura, assumindo a fala a partir de seus personagens, ingressando na linguagem deles, amplia sua criação lingüística; desata os nós com a palavra, isolada, e articula outros mecanismos expressivos da língua como as estruturas sintáticas, rítmicas, semânticas. Este primeiro nível permeia a peça Balada de amor no sertão, pois, como o próprio título já antecipa, a peça transcorre no lócus sertão- precisamente na região de Patu, interior do Rio Grande do Norte- portanto, a escrita corresponde à fala espontânea, popular com referências à oralidade local. Trata-se, então, de uma linguagem cabocla, sertaneja transcrita com a correção gramatical, mas que deixa revelar o ritmo de prosa e as pausas da oralidade. O nível da estruturação literária diz respeito ao plano da narração, na qual o escritor procura “resolver estilisticamente uma conjunção do plano verossímil e histórico dos acontecimentos e o do maravilhoso” de modo convincente (AGUIAR & VASCONCELOS, 2011, p. 270). Balada de amor no sertão é permeada de figuras que protagonizaram histórias de luta em favor dos oprimidos, no cenário brasileiro, como por exemplo, Antônio Conselheiro, o cangaceiro Jesuíno Brilhante e, ainda, o padre Ibiapina. Esses personagens já não fazem parte do mundo real (empírico), mas a autora soube trabalhar a tensão de modo que, surgem em grande parte da narrativa e suas presenças têm um tom bastante natural; também há de se destacar alguns fatos e histórias locais bem interessantes, isto é, em que se dá o equilíbrio entre o verossímil e o fantástico. O último nível proposto por Rama é considerado pelo crítico um ponto central representado pela cosmovisão, visto que nele se engendram os significados em que as respostas dos herdeiros “plásticos” do regionalismo teriam alcançado seus melhores resultados, “[...] a 78 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ponto de superar amplamente as propostas modernizadoras, suplantando-as no próprio terreno em que eram formuladas” (AGUIAR; VASCONCELOS, 2001, p. 222). Esses transculturadores, ao voltar-se para suas raízes culturais, descobrirão o mito, “[...] um repertório quase fabuloso de elementos que não haviam sido explorados [...] pela literatura” (AGUIAR; VASCONCELOS, 2001, p. 224). O mito surge, então, como uma categoria válida para interpretar os traços da América Latina, na qual “[...] irracionalismo e idealismo viajarão lado a lado” (Idem, p. 223). O mito presente na obra Balada de amor no sertão é o mito do sebastianismo, bastante disseminado na cultura brasileira, visto que este mito nos foi legado pelos portugueses nos tempos de colonização por meio da aculturação, e é recorrente em muitas regiões do Brasil como, por exemplo, no estado do Maranhão e na Bahia. Prova disto encontra-se na obra Os sertões, de Euclides da Cunha. Portanto, o sebastianismo é um processo transcultural na literatura brasileira. Há muitos exemplos que poderiam ser elencados para a constatação dos níveis apresentados, os deixaremos para um artigo posterior, visto que há tempo hábil para tanto, porém, acreditamos ter alcançado a meta de desvelar alguns aspectos da transculturação nesta obra que intriga por trazer fortemente em diálogo o elemento medieval e o contemporâneo. Da tradição medieval ao agreste do sertão Podemos dizer que talvez a artista tenha bebido das riquíssimas fontes mossoroenses para contar a história do amor correspondido entre Pedro Palito e Maria em Balada de amor no sertão. O amor entre as personagens é irrealizável, pois o Pai de Maria a promete em casamento ao Coronel da região. As tensões da trama decorrem dessa situação conflituosa, mas outras vêm à tona como, por exemplo, o coronelismo, casamento arranjado, a indústria da seca, o incesto e o cangaço. Para empreender algumas análises, comecemos por elucidar o título da obra Balada de amor no sertão. Segundo os estudos de Moisés (2004, p.49-51), a universalidade da “balada” permite considerá-la uma das mais primitivas manifestações poéticas e seu despontar se deu na Idade Média, designando uma canção destinada à dança. Cantar de feição narrativa girava ao redor de um único episódio, de assunto melancólico, trágico, histórico, fantástico ou sobrenatural. Trata-se, na verdade, de uma forma literária mista, reunindo elementos da poesia dramática e lírica bem como de narrativa. A “balada” pode ser descrita como uma canção-histórica que emprega escassos detalhes, sugere mais do que explora largas porções do enredo e transmite as expectativas e valores do seu povo. Diante do exposto (vale ressaltar que sob a nomenclatura “balada” ainda há outras acepções, mas não pertinentes ao momento), percebe-se que o título da peça anuncia seu sentido e ele “[...] nos interessa como ‘primeiro sinal’ de uma obra, [...] jogo inicial com um conteúdo a 79 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ser revelado do qual ele é a vitrine ou o anúncio, o chamariz”, sendo assim, as informações fornecidas por ele, “por mais frágeis que sejam, merecem ser consideradas” (RYNGAERT, 1995, p.37-38). O leitor da obra confirmará que no texto em estudo a autora optou por uma postura tradicional, denota um projeto verdadeiro, posição esta não muito adotada na contemporaneidade. Com efeito, caso o título da obra de Cristina Mato Grosso fosse “Balada de amor” este já cumpriria o seu papel, uma vez que o tema central da obra é a luta incessante de seus personagens em busca deste sentimento, e cada um desses vê o amor de forma individualizada. O advérbio de lugar “no sertão” serve tão somente para situacionalizar o leitor/espectador diante dos delírios protagonizados pelo herói Pedro Palito. Nessa balada, não fugidia de suas raízes, utilizando o recurso estilístico da melopéia, narra-se a luta pelo amor com a luta contra o tirano, as vinganças, as dores e mazelas de um povo que vive no “sertão”. Esse termo levanta muitas perspectivas a serem investigadas, mas para o momento adotaremos a seguinte conceituação: o sertão não é entendido como um lugar inculto, sem leis ou desabitado, mas como “[...] um lugar identitário, relacional e histórico. Ele simboliza a relação de cada um de seus ocupantes consigo mesmo, com os outros e com uma história em comum” (SANTOS apud CASTILHO, 2009, p.69). Nessa atmosfera também convivem elementos sobrenaturais e é evidente o uso excessivo de recursos inverossímeis que dinamizam a estrutura da peça. Presencia-se, nas situações postas, discursos de cunho político, a preocupação com a identidade regional, a valorização da cultura universal. A dramaturga dialoga, muitas vezes, com a modernidade, porém, evidencia-se, no decorrer de seu texto, a identificação com aspectos da tradição popular, o que guiou Mato Grosso na elaboração dos personagens, uma vez que segundo a dramaturga “[...] o modo como ele (Pedro Palito) foi construído, como [...] surgiu foi uma fase de aprendizado de uma busca da linguagem do teatro popular e que implicava em estudos de Gil Vicente”5. Em Balada de amor no sertão “o mundo que nos é dado a ver não obedece a uma construção harmoniosa e equilibrada” (RYNGAERT, 1995, p. 43), estão sempre cambiantes os planos de ação e o tempo; a cada ato essas categorias podem ser, respectivamente, apresentadas em real/presente, memória/passado ou intemporal, alucinação/intemporal ou ainda, alguns desses mesclados. A narração lacônica, elíptica da trama tem raízes na modalidade lírica balada, no entanto, se nos detivéssemos um pouco mais às minúcias do texto, constataríamos que a narrativa guarda resquícios de cada momento da evolução histórica da dramaturgia; sendo assim, mantém particularidades também de nosso tempo. Considera-se o texto teatral “como um microcosmo regido por uma filosofia do espaço e do tempo que lhe é própria, sem referência explícita a quaisquer normas. A história do teatro fornece referências indispensáveis, ela não impõe modelos nem rótulos” (RYNGAERT, 1995, 5 Entrevista gentilmente concedida em sua residência no dia 19 de abril de 2010. 80 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 p.80). Na peça, como já se anunciou, o tempo e espaço são categorias bem difíceis de captar à leitura do texto; às vezes um quadro indica um salto muito grande no tempo e espaço, configurando-se, assim um sistema dramatúrgico que se firma na descontinuidade e na elipse. Desse modo, “[...] a organização estrutural não mais repousa sobre a interdependência das partes, mas, pelo contrário, sobre sua autonomia, cada parte devendo ser tratada ‛em si mesma’” (Idem, p. 42). Este é um ponto que se aclara quando levamos em consideração que a peça também pode ser tratada como uma obra épica6. No que diz respeito ao espaço, este também, é outro aspecto complexo a ser captado numa primeira leitura, mas atentos a algumas pistas textuais, consideramos que o espaço tratado neste objeto de investigação é o Espaço dramático7. Necessário dizer que há uma diversidade de “espaços” no âmbito teatral, podemos nos referir ao espaço cênico, espaço cenográfico, espaço textual, entre outros, mas felizmente dispomos de uma ampla fortuna na teoria teatral e que nos ajuda a compreendê-los melhor. No entendimento de Patrice Pavis (1999), o espaço dramático é construído pelo leitor por meio das indicações cênicas (nome das personagens, didascálias) e das indicações espaçotemporais (menções explícitas no texto, a um lugar, a um tempo), portanto, “[...] para que esta projeção do espaço se realize, não é necessária nenhuma encenação: a leitura do texto basta”, mas como essa imagem espacial é construída e “[...] depende do nosso esforço de imaginação, [...] cada espectador, consequentemente, tem sua própria imagem subjetiva do espaço dramático”(PAVIS, 1999, p. 135). Temos na obra, o primeiro sinal de hipótese de espaço, inferido pela existência da música folclórica “Corujinha”, de vertente popular circunscrita no discurso das personagens e, dessa forma, pode-se perceber a alusão ao espaço mimético do sertão nordestino, mais precisamente no sertão do Rio Grande do Norte. Apesar de a trama direcionar, de alguma forma, a esse entendimento, transcende ao espaço geográfico referenciado, pois a literatura possui tal característica, ou seja, a de não delimitar fronteiras: é o universal dentro do local, haja vista que “[...] a literatura é concebida em suas relações com a nação e com sua história. A literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais” (COMPAGNON, 2001, p.32-33). Outros fatores corroboram para esse entendimento, uma vez que o texto de Cristina Mato Grosso repousa sobre vários pontos históricos brasileiros dessa região, como a Casa de Pedra (caverna da região do município de Patu – RN), sobre a qual se têm inúmeras referências históricas e orais como sendo esconderijo e abrigo do lendário cangaceiro Jesuíno Brilhante (1844-1879), antecedente a Lampião, o “rei do cangaço”. Há unanimidade entre os autores em 6 Não trataremos desse tópico neste artigo, mas c.f em JOSÉ. E. C. R.S., ENEDINO, Wagner Corsino. Balada de amor no sertão: um olhar a respeito da proposta dramatúrgica de Cristina Mato Grosso. In: I Colóquio do Núcleo de Estudos Culturais Comparados: Projetos Críticos na Pós-Graduação, 2010, Campo Grande. Editora da UFMS, 2010, p. 143-153. 7 “É o espaço dramatúrgico do qual o texto fala, espaço abstrato e que o leitor ou espectador deve construir pela imaginação” (PAVIS, 1999, p. 132). 81 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 destacar a retidão de caráter do jagunço, para Câmara Cascudo ([s.d], p.476), Jesuíno Brilhante, era um “cangaceiro gentil-homem”, um “bandoleiro romântico, espécie matuta de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos anciões oprimidos, das moças ultrajadas, das crianças agredidas”. A presença de um cangaceiro na trama é um símbolo importante porque traz à baila o sistema de vida do local e sugestiona mudanças significativas àquela sociedade, pois, pelas bênçãos de Jesuíno, temos o nascimento de um novo “herói” do sertão: Pedro Palito. O cangaço foi uma forma de melhorar a situação social, uma estratégia de sobrevivência, “[...] uma tentativa de transformação social de dentro para fora” (VASSALO, 1993, p.61). Como as pessoas viviam em estado de miséria (especialmente pelas condições ambientais desfavoráveis da região nordestina), “desprovidos” de qualquer direito, sempre à mercê da vontade do proprietário da terra, o banditismo tornou-se uma espécie de “profissão”. A passagem abaixo nos permite visualizar o momento em que a personagem que “representa a contraposição [...] ao estado de opressão, simbolizando, assim, a afirmação do sujeito, passa pelo [...] processo de construção de sua (nova) identidade” (DURIGAN; ENEDINO, 2006, p. 51). O garoto do início da peça, de brincadeiras pueris maliciosas, o menino franzino, fraco e, sobretudo medroso, torna-se o herói que luta em defesa dos menos favorecidos, dos marginalizados. Ato I- O Batizado; quadro II. (Neste momento Pedro palito ouve o canto da “Corujinha”. Passam diante dos olhos de Pedro Palito cenas inusitadas: um bando de pistoleiros persegue os soldados da polícia, cantando em ritmo alegre e zombeteiro a famosa musiquinha. Surge diante dele um homem de olhos fortes e lampejantes, com uma capa cor de areia, montado num cavalo branco que arrasta por uma corda o jagunço, pai de Maria. Traz à sua mão um facão:) HOMEM DO CAVALO BRANCO Eu tinha contas prá acertar Com este antigo macaco (com seu facão desprende Palito) Quem incendiou o lugar... Quem te amarrou feito rato? PALITO Meu padrinho coronel João HOMEM DO CAVALO BRANCO Pois tome isto de presente, (estende-lhe o facão) Vou te ingressar na profissão De homem forte e valente! Sangre com ele o covarde, Arregimenta um pelotão De gente forte de verdade Prá acabar com qualquer João Sem dó e sem piedade! PALITO 82 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Gosto de gente valente, Só não gosto de matar... HOMEM DO CAVALO BRANCO Se essa raça não matar, Comigo você não está! É a chance pegar Ou a sorte abandonar! PALITO Este cavalo branco... O famoso “Peixe Branco”... Este seu gesto de nobreza... Agora tenho certeza! Quero apertar a mão Do Brilhante Jesuíno, Herói deste sertão! Seu nome já virou hino De justiça e liberdade, É amado pelo povo Do campo e da cidade. Causa inveja em bandido, Esperança em desvalido! Minha Nossa Senhora! Chegou a minha hora! De madrinha alcancei graça, Recebendo de sua mão O portentoso facão Prá que justiça eu faça! JESUÍNO Estou muito emocionado por fazer um batizado E ganhar um afilhado Nas cinzas deste sertão... PALITO Este facão será a cruz Que fincará no vampiro Que suga os filhos de Jesus... (MATO GROSSO, 2009, p.197-198) Cristina Mato Grosso faz, ainda, referências a Antônio Conselheiro (líder da batalha de Canudos) e também a Padre Ibiapina, considerado o “Apóstolo do Nordeste”. Como se percebe, a autora vale-se, apropriadamente, de variados elementos extraliterários para subsidiar as situações postas no campo intraliterário. Entrecruzam-se personagens, vozes, fatos, situações, tempos e lugares que tecem o quadro ficcional. Como já dissemos, a peça em estudo tem expressivos “traços medievais”, muitos destes que ainda subsistem na cultura do sertão. Esta questão é compreendida se tivermos 83 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 conhecimento, ainda que mínimo, a respeito do processo de colonização das regiões nordestinas. Os estudos de Lígia Vassalo (1993) apontam que, em regiões, especialmente as canavieiras, onde a colonização foi mais próspera, os moldes sócioeconômico- culturais dos portugueses eram muito próximos dos medievais. Algumas características medievais “[...] peculiares da sociedade portuguesa, tais como o feudalismo/patrimonialismo, o arcaísmo, o cosmopolitismo, apesar das transposições” [e acrescentamos aqui a transculturação], se mantiveram e foram reforçadas “[...] pelo isolamento quanto ao resto do país em que se manteve durante séculos” (VASSALO, 1993, p. 63). Sendo tecida nesse lócus, Balada de amor no sertão guarda traços medievais específicos que recortam os temas, textos, modelos formais e o hibridismo adotados pela autora Cristina M. Grosso. Pode-se verificar, deste modo, que: A medievalidade se faz notar ainda (...) através da técnica do teatro épico cristão, com suas modalidades específicas e seus personagens estereotipados. Isto ocorre porque a Idade Média é o espaço em que floresceu uma dramaturgia que associa o religioso e o popular através das oposições litúrgico/profano e sério/ jocoso. (VASSALO, 1993, p. 29). Ainda de acordo com a autora, a manifestação do teatro épico ou narrativo que existiu na Idade Média, nos autos vicentinos quinhentistas e outros, ainda é ostentada nos folguedos nordestinos e associa-se a inúmeras representações folclóricas. Elemento medieval expressivo na obra de Cristina Mato Grosso são os personagens constituídos como tipos regionais, que ancoram-se na realidade rural nordestina: o retirante, mendigo, o beato, o poeta, o cangaceiro. Entre esses avulta o “amarelinho” (Pedro Palito), encarnando a figura do herói sublimador das classes pobres, uma vez que O sertanejo [...] luta contra a adversidade, que pode concretizar-se no patrão explorador, no cangaceiro assaltante e assassino, na polícia prepotente, na miséria e na fome. Seguindo a ideologia dos folhetos de cordel, seus textos focalizam a sociedade do ponto de vista dos desprotegidos (VASSALO, 1993, p.44). Influências ibéricas são explicitamente percebidas na peça “A Noiva”, peça encenada em 1994 e que é amplamente reaproveitada na pela Balada de amor no sertão. Em A Noiva o casamento não se concretiza, no entanto, no âmbito da linguagem, o enlace jubiloso entre Cristina Mato Grosso e Gil Vicente se realiza. Um primeiro elemento que dialoga com Gil Vicente é o uso das redondilhas que confere a obra grande musicalidade; característica do lirismo medieval ibérico que nos foi legado pelos portugueses. Outro aspecto presente na obra é a intertextualidade. Vejamos como essa relação acontece: 84 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Blanca estás colorada Virgem Sagrada!8 Branca estás colorida Virgem sofrida Sagrada, Porque não amada? Sofrida, Porque não compreendida? Nasceu a rosa no rosal Murchou a rosa do rosal Por que não se despetalou? ...Sequer desabrochou... Blanca estás colorada Virgem Sagrada! (MATO GROSSO, 2009, p.234) Para retratar a relação amorosa entre Pedro Palito e Maria ela alinhava toda a trama de Balada de amor no sertão com fragmentos de obras daqueles que selecionou como seus precursores como Camões, Bocage e mais intensamente Gil Vicente. Os fios líricos e trágicos, próprios da modalidade “balada”, se envolvem com o cômico reconhecido nos autos. Nesse sentido, o talento da autora é o já observado por ELIOT (1989), os traços que definiram seus antecessores são presença constante em sua existência autoral. Sabe-se que um artista não detém sozinho um significado completo, pois é a soma de outros indivíduos; e se “eles são aquilo que nós sabemos”, assumimos assim uma posição mais reveladora, singular ao mesclar tradição e linguagem ao elemento diferenciador, emoção. Essa idéia assemelha-se ao pensar de Fernando Ortiz ao dizer sobre as transformações no processo de aculturação nas comunidades latino-americanas, pois, aqui se presencia a “energia criadora” que move a cultura. E a “[...] capacidade de elaborar com originalidade, [...] que demonstra que tal cultura pertence a uma sociedade viva e criadora” (AGUIAR; VASCONCELOS, 2001, p. 260). Discorrendo ainda sobre os traços da dramaturgia do GUTAC, que se identificam com o teatro ibérico, faz-se necessário destacar algumas constatações e críticas tecidas em relação aos textos de Cristina M. Grosso, ao longo dos anos. Importante registrar aqui uma das críticas referentes à peça Pedro Palito e o Monstro Devorador, obra que marca o nascimento da personagem Pedro Palito: [...] a peça estrutura-se segundo os modelos medievais em que grande número de personagens de todas as classes sociais invade o centro do palco para denunciar o orgulho, a inveja, a usura, refletindo o tempo e o espaço do autor. A literatura de cordel 8 Refrão extraído da cantiga vicentina, “líricas de Gil Vicente”, clássicos portugueses, 2ª edição, livraria clássica editora, Lisboa, p. 44. 85 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 com sua cara de riso, suas improvisações, também se faz presente, desde a abertura, quando um narrador define o teatro como o repertório das alegrias e tristezas do seu povo. Como nas peças de Gil Vicente, as personagens desfilam e vão sendo definidas através do diálogo. [...] expressando-se no teatro, pela primeira vez em versos, Cristina Mato Grosso recria o folclore do Estado num processo lingüístico em que elege a palavra como a grande reveladora da verdade essencial de um povo (SÁ ROSA, 1983). No tocante à construção poética do texto, a crítica literária Maria Adélia Menegazzo comentou sobre a peça A Noiva: O texto teatral A Noiva, de Cristina Mato Grosso, espetáculo atualmente apresentado pelo GUTAC, proporciona ao espectador um diálogo entre a cultura popular-erudita e a cultura propriamente popular. Pode ser lido/visto como uma cantiga de amor e, neste sentido, mantém a estrutura das cantigas medievais na medida em que se abre intertextualizando Gil Vicente através do coro e, também pela presença de versos curtos e rimados. A temática do amor impossível tem como foco principal Mariinha, objeto do desejo de Pedro Palito (personagem aproveitado e reconstruído), do Coronel João e do próprio Pai. Não se trata, no entanto, de uma visão sublimada na relação amorosa, mas da sua exploração enquanto objeto de desejo erótico. Fundem-se, assim, amor, desejo, erotismo e tragédia, em doses crescentes, revelando, também, uma estrutura social de dominação, onde vão se alojando sub-temas e, o mais evidente deles, o incesto. Por conta destes elementos e da montagem de jogos espaciais, o espetáculo apresenta um desfecho surpreendente para quem não tem familiaridade com as cantigas medievais e também para quem as conhece, uma vez que em arte há sempre esta qualidade de renovação e superação. O espectador, certamente, sentir-se-á deslocado de um tempo a outro, de uma realidade próxima, porém desejada sempre à distância. É um convite ao prazer desassossegado. (Programa do espetáculo A Noiva, 1994, arquivo do GUTAC). Outro aspecto a se ressaltar é a profunda religiosidade. O teatro utiliza-se dos mesmos recursos ideológicos da dramaturgia medieval, acentuando o tom moralizante e o maniqueísmo. A expressão disso ocorre pela força da alegoria, ou seja, “a configuração particular sensível capaz de representar um conceito universal” (VASSALO, 1993, p.39). A alegoria é um elemento notório na obra de Cristina Mato Grosso e foi um elemento relevante na dramaturgia medieval. Por meio de seus personagens- e é “a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza”(ROSENFELD, 1972, p. 21)- como coronéis, governadores, padres, jagunços, policiais, mães, pais entre outros, que a dramaturga representa as fatias que constituem a sociedade. Por meio da personagem Palito, a autora demonstra a religiosidade bastante viva do povo sertanejo, explicitando a reverência aos símbolos da fé católica: PALITO (Sozinho, atirando-se de joelhos) Nossa Senhora da Aparecida, 86 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Diante desse fogaréu, Me dê uma luz, uma saída, Prá salvar a minha vida E me vingar do Coronel! Madrinha, me socorra, Não permita que eu morra, Sem antes chegar nessa mão, A arma que vai matar O padrinho bandido João! (MATO GROSSO, 2009, p.197) Conclusão Pode-se afirmar que Balada de amor no sertão é um fecundo registro da cultura brasileira: suas lendas, mitos, personagens verídicos (que fazem ou fizeram parte do mundo empírico, realizaram ações importantes em sua comunidade, mas foram esquecidos pela sociedade), preceitos religiosos, linguagem peculiar de uma nação; a escritora vale-se de uma multiplicidade de recursos cênicos, feéricos, do espaço metafórico, dos planos da ação e por meio das prolepses e analepses para dar luz a uma obra liberta de qualquer tipo de amarra, censura, convenção social e até mesmo artística. Importante destacar a avaliação da peça pela Comissão Julgadora do Prêmio Funarte de Dramaturgia 2003. Balada de amor no sertão é uma obra que: [...] faz uma profunda investigação dos gêneros populares, tanto no que diz respeito à construção dos diálogos versificados quanto na temática, que une a luta pelo amor com a luta contra o tirano, na linguagem, que abusa dos recursos inverossímeis, e na estrutura narrativa, que se refaz a cada vez em que a autora parece ter esgotado todas as possibilidades de desdobramento da história. O texto mistura farsa, melodrama, cangaço, cordel, sobrenatural, parecendo inventariar o imaginário popular brasileiro. (A Comissão Julgadora, 2003, p.181). É uma obra aberta, que abre um leque de possibilidades analíticas em vários âmbitos; sem dúvida ocupa seu lugar entre as produções contemporâneas, que transitam num momento histórico bastante peculiar, no qual a reflexão sobre hibridismo, transculturação, cruzamentos das culturas assume grande importância. O momento é, ao mesmo tempo, propício e difícil. Em nenhuma outra época a humanidade contemplou e manipulou tanto as várias culturas mundiais, porém jamais se deu conta tão mal de sua inesgotável tagarelice, de sua mistura explosiva, da inextricável colagem de suas linguagens. A encenação teatral talvez seja, hoje em dia, o último refúgio desse cruzamento e, por tabela, o seu mais rigoroso laboratório: ela 87 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 interroga todas essas representações culturais, as dá a ver e a entender, avalia-as e apropria-se delas por meio da interpretação do palco e do público (PAVIS, 2008, p. 01). Esperamos que os arquivos de Cristina Mato Grosso possam ser abertos, investigados e disseminados, pois não há dúvidas que seu trabalho como atriz, dramaturga e diretora teatral foi de inestimável importância para a consolidação de uma identidade teatral no Estado de Mato Grosso do Sul. Torna-se necessário lançar estudos sistemáticos acerca de sua poética, afinal, “um grande dramaturgo é patrimônio tanto do teatro quanto da literatura” (MAGALDI, 1998, p. 13). ABSTRACT: This work has the objective to present an excerpt of the results of investigations about the dramatic text, entitled Ballad of love in the outback, 2003, of Cristina Mato Grosso. Fruit of master's research, divided into three chapters, in which we present in the first two aspects of the theory applicable to cross-cultural study of this piece, and the exhibition of theatrical history of the writer, respectively, by understanding the relevance of their work in setting dramaturgical South Mato Grosso. In this article, we will highlight some elements of transculturation and part of the results, tissues in the last chapter, about the text and structure of its traits of medievalism. Anchoring on the contributions of Magaldi (1998), Ryngaert (1995), Pavis (1999) and Rosenfeld (1972) of the ideas that shape the theatrical discourse, in studies of Prado (1972) regarding the construction of the character and the conceptual framework of Ortiz (2002), Rama (2008) on the concept of transculturation, the study aimed to study the analysis of the speeches of the central characters of the text, searching through them understand how to make time and space in the dramatic text. The aim is thus to contribute to the dissemination and exploitation of the theater in South Mato Grosso. KEYWORDS: Brazilian Theatre. Character. Cristina Mato Grosso. REFERÊNCIAS: AGUIAR, F.; VASCONCELOS, S. G. T. Angel Rama: literatura e culturana América Latina. Tradução Raquel la Corte dos Santos, Elza Gasparotto. 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Essa sucessão de epifanias nos permite – através da análise e interpretação – perceber como a relação entre amor e mônada é bastante complexa, pois se a mônada não tem janelas para o externo, o amor é abrir-se para o outro; amor e mônada, portanto, parecem possuir características conflituosas entre si. PALAVRAS-CHAVE: Amour-passion. Incomunicabilidade. Contos. Luiz Vilela. 1 Luiz Vilela, mineiro de Ituiutaba, teve o valor de sua obra reconhecido desde Tremor de terra. Sua primeira antologia de contos – gênero que o consagraria – foi publicada em 1967, com recursos próprios, após ser sucessivamente rejeitada por diversas editoras. No mesmo ano, a seleção de contos recebeu o Prêmio Nacional de Ficção. Desde então, sua longa trajetória inclui mais de 20 livros publicados – entre contos, novelas e romances. Ser notado desde o primeiro momento é um desejo caro aos escritores e aspirantes. Tão raro que quando acontece, o autor torna-se referencial aos que virão. Luiz Vilela é um dos poucos que pode cortar o silêncio e dizer “aconteceu comigo”. 1 Fabrina Martinez de Souza é graduada em jornalismo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na área de Estudos Literários da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas, e Bolsista Capes/Reuni; CEP: 796001-010 - [email protected]. 2 Rauer Ribeiro Rodrigues é professor de Literatura Brasileira na UFMS, doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara e professor no Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas, onde coordena o Grupo de Pesquisa Luiz Vilela (ver gpluizvilela.blogspot.com); CEP: 796001-010, [email protected]. 91 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A trajetória do escritor inclui mais de vinte livros publicados – entre contos, novelas e romances. Muitos dos títulos estão em processo de reedição por uma grande editora. Consagrado por público e crítica, Vilela recebeu inúmeros prêmios no Brasil e teve sua obra publicada nas três Américas e Europa. Sua fortuna crítica é tão extensa que pode ser qualificada como fortuna, apenas. Em dezembro deste ano, 2011, foi publicado seu mais recente romance, Perdição. Prestes a completar meio século desde sua publicação, as narrativas de Vilela chamam atenção pela forma como expõem a solidão, o sentimento de não pertencimento e o mal estar que, muitas vezes, norteiam a existência humana. Elementos que presentes em toda sua obra, quase sempre marcada pelo realismo. Seus contos “Tremor de terra” e “No bar” guardam muitas semelhanças. Ambos fecham e nomeiam os livros que integram, sendo o primeiro de 1967 e o segundo de 1968. As personagens são marcadas por costumes e necessidades características da década de 60 do século XX, mas a proximidade com a realidade atual é perturbadora. Essa proximidade e o texto fluído, porém denso, constroem uma crescente identificação com as personagens. As narrativas são simples e nada de extraordinário acontece. Na verdade, não fossem as epifanias das personagens, os momentos relatados não seriam muito mais do que ordinários. “Tremor de terra” mostra as descobertas e decisões de uma pessoa que se apaixonou por uma professora casada e em “No bar” um amigo conta como foi abandonado por uma mulher e como um amigo enlouqueceu. A relação que essas personagens estabelecem entre amor e mônada é que nos interessa. Em ambas as histórias, as mudanças internas das mônadas são originadas pela possibilidade de amor. Para esse artigo – trecho de uma pesquisa maior que está em processo de produção –, são considerados os conceitos de mônada do filósofo Leibnz e amour-passion na definição de Anthony Giddens publicada em A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, em 1993. O amor apaixonado é marcado por uma urgência que o coloca à parte das rotinas da vida cotidiana, com a qual, na verdade, ele tende a conflitar. O envolvimento emocional com o outro é invasivo – tão forte que pode levar o indivíduo, ou ambos os indivíduos, a ignorar as suas obrigações habituais. O amor apaixonado tem uma qualidade de encantamento que pode ser religiosa em seu fervor. Tudo no mundo parece de repente viçoso, embora talvez ao mesmo tempo não consiga captar o interesse do indivíduo que está tão fortemente ligado ao objeto do amor. O amor apaixonado é especialmente perturbador das relações pessoais, em um sentido semelhante ao do carisma; arranca o indivíduo das atividades mundanas e gera uma propensão às opções radicais e aos sacrifícios. (GIDDENS, p.48. 1993) Leibniz, em A monadologia ou princípios da filosofia (2009), afirma que a mônada “não é senão uma substância simples. [...] Simples quer dizer sem partes.”. 92 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Não há partes, não há extensão, nem figura nem divisibilidades possíveis. E tais Mônadas são os verdadeiros Átomos da Natureza e, em uma palavra, os Elementos das coisas. [...] Tampouco há meios de explicar como uma Mônada possa ser alterada ou modificada internamente por qualquer outra criatura, pois nada se lhe transpor, nem se pode conceber nela qualquer movimento interno que possa ser excitado, dirigido, aumentado ou diminuído lá dentro, tal como ocorre com os transportes. As Mônadas não possuem janelas através das quais algo possa entrar ou sair. (GALLAS E SOUZA, p.25, 2009) Universos lacrados, incorruptíveis e incapazes de estabelecer vínculos. Elementos solitários sem partes suscetíveis à influência externa. Incomunicáveis. Muitas das personagens dos contos, novelas ou romances do autor se enquadram nessa descrição de mônada. A incomunicabilidade é uma forte marca da poética de Luiz Vilela. A condição é mencionada em “No bar” enquanto em “Tremor de terra”, não existe a menção dessa condição, mas a descoberta. Através de uma sucessão de epifanias desencadeadas pela paixão platônica por uma professora casada, o protagonista se descobre incomunicável. A epifania é uma proposta poética desenvolvida e aplicada por James Joyce. Em Stephen Hero (JOYCE apud MOISÉS, p. 156, 2004)3, Joyce afirma que a epifania é uma “manifestação súbita, quer na vulgaridade do discurso, do gesto, ou em uma fase memorável da própria mente”. Uma experiência que vai além das experimentações ordinárias. Trata-se de uma revelação, o momento da descoberta que não apenas traz um novo significado, mas garante nova significação. Esse recurso pode aparecer no texto literário de várias formas. Relatos de sonhos, instantes de percepção, sinais do mundo. O diálogo é artifício recorrente de Joyce. Vilela, assim como o autor irlandês, usa o diálogo não apenas para evidenciar a epifania, mas para construir a diegese. Contudo, nos contos selecionados para essa análise, o fluxo de pensamento é a forma estilística escolhida pelo autor mineiro. É preciso destacar ainda que a complexidade das relações e a incomunicabilidade são linhas de força na obra de Vilela. Ainda que foco narrativo, narrador, espaço, personagem, tempo sejam outros, tanto a complexidade quanto a incomunicabilidade estão lá. Muito além de uma poética, trata-se da marca do homem contemporâneo. 2 O conceito de mônada surge claramente expresso no conto “No bar”. Durante a conversa, dois amigos embriagados discutem relacionamentos, quando o Branco, o narrador-personagem, explica ao amigo sua visão sobre eles e, consequentemente, do mundo. O primeiro parágrafo do 3 MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12ª. Edição. São Paulo: Cultrix, 2004. 93 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 conto já evidencia que a incomunicabilidade entre as personagens é o fio condutor da narrativa. “Você está ouvindo, eu digo. Estou sim, diz ele. Você já está bêbado, você não está ouvindo o que eu estou falando.” (VILELA, 1968, p. 169). Esse questionamento expresso no enunciado não apenas é irônico – forte característica da poética do autor – mas também metalinguagem. Ao questionar se é ouvido e responder que não é, mesmo diante da resposta contrária do interlocutor, Branco aponta a existências de, pelo menos, uma mônada. Interessante é pensar que seguido esse movimento, o narrador personifica a mônada e a explica. Leibniz, já ouviu falar em Leibniz? A comunicação das consciências. As mônadas não tem janelas – por isso são incomunicáveis. Cada um de nós uma mônada, você uma mônada, eu outra, ele outra, e ninguém podendo se comunicar, entende?. (VILELA, 1968, p.150). O raciocínio de Branco é quase uma citação da teoria de Leibniz. Inicialmente, nem mesmo para explicar sua condição e o incômodo que ela gera, o narrador-personagem busca a maturação desse estado. Mas, ao longo do conto, nota-se que a condição é sentida, nomeada, descrita e analisada e interpretada. Segundo o conceito do filósofo Leibniz, as mônadas “não possuem janelas através das quais algo possa entrar ou sair” (LEIBNIZ, 2009, p.25). O conto começa com dois amigos conversando num bar sobre a intersubjetividade monadológica, quando Branco explica ao amigo o conceito de LEIBNIZ e afirmando que se era assim, viver era um inferno, uma porcaria. Aquele dia nós morremos, e quando fomos para casa é como se cada um tivesse ido pro túmulo. Ele depois ressuscitou, mas eu não, eu continuo morto. (VILELA, 1968, p. 169). Branco fala de seu amigo Lúcio que ao entender que uma mônada não possui portas nem janelas, abriu uma chaminé. Ao passar por uma mudança interna, Lúcio deixa sua condição de mônada e se relaciona não apenas com outras pessoas, mas com animais, plantas e objetos. Sua mudança é vista como uma doença mental que o leva a terminar a vida preso em quarto com janelas gradeadas. O impulso para a mudança interna de Lúcio foi o amor. Ao permitir-se amar, ele libertou-se de sua condição de mônada. Já o mesmo não aconteceu ao narrador-personagem. Ao se auto-analisar afirma que “o amor é o que existe de mais solitário no homem” (VILELA, p. 174) e ao contrário do senso comum, ele não liberta. Expõe o que há de mais solitário do indivíduo: o egoísmo. “Gostava tanto dela que dizia: ela tem de gostar de mim, não é possível que não goste de mim. Era possível sim” (VILELA, 1968, p.174). Interessante é pensar que a relação entre amor e mônada representaria a morte. Branco descreve a si mesmo a e Lúcio como mortos. O primeiro por não aceitar que a medida do amor é dada pelo outro e não por suas necessidades próprias. O segundo pelo oposto. Ao entender que o amor é dado de graça, Lúcio libertou-se da sua condição de mônada. Visto como louco, sem 94 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 lugar no mundo, foi permanentemente trancado num quarto com janelas gradeadas para não fugir. Medida que pode ser lida muito mais como desesperada do que eficaz. Afinal, “não compreenderam que já não podia haver mais prisões para ele” (VILELA, 1968, p.176). “No bar” é um conto que reflete – tanto no sentido de espelho quanto de reflexão – a condição de mônada. Em muitos momentos, a narrativa perde as características ficcionais e ganha tonalidade de ensaio filosófico. As relações descritas pelo narrador-personagem se parecem com exemplos colhidos durante uma pesquisa de campo. E, em outros momentos, o tom ensaístico dá espaço a um discurso quase didático sobre a mônada. A abertura do conto talvez seja o exemplo máximo. Leibniz, já ouviu falar em Leibniz? A comunicação das consciências. As mônadas não tem janelas – por isso são incomunicáveis. Cada um de nós uma mônada, você uma mônada, eu outra, ele outra, e ninguém podendo se comunicar, entende? Se era assim, viver era um inferno, uma porcaria. Aquele dia nós morremos, e quando fomos pra casa é como se cada um de nós tivesse ido pro túmulo. Ele depois ressuscitou, mas eu não, eu continuo morto, entende?. (VILELA, 1968, p.150). Há o padrão comportamental (incomunicabilidade), a nomeação da condição (intersubjetividade monadológica), o tom didático expresso no texto através da manipulação do léxico indicando uma explicação (in-ter-sub-je-ti-vi-da-de mo-na-do-ló-gi-ca), a explicação do termo, a análise e, por fim, a interpretação. Não podemos esquecer, é claro, que essa postura ganha ainda mais força quando é considerada a existência inclusive de um referencial teórico: Leibniz. É curioso pensar na relação entre “No bar” e “Tremor de terra”. Enquanto no primeiro há a teorização do problema, no segundo há a ação. Considerando essa hipótese, existem ainda outros exemplos práticos da condição de mônada. Em muitos momentos, Branco questiona se é ouvido. E ainda que receba respostas positivas, ignora-as e segue adiante, ignorando. Incomunicável. Num determinado momento do texto, o narrador parece justificar esse comportamento ao afirmar que o “a gente diz porque não há outro jeito, mas dizendo ou não dizendo dá na mesma”. (VILELA, 1968, p. 170). Aqui a desconfiança é ampliada. A incomunicabilidade não é restrita às relações externas, mas também a interna. Fala-se por medo e desespero e não por comunicação. Em alguns casos, leva à apetição, ou como explica Leibniz (2009), trata-se da ação interna de uma mônada que provoca uma mudança ou uma passagem de uma percepção à outra. Em ambos os contos, o amor é esse apetite. Em “No bar” são duas as circunstâncias. A primeira e aparentemente a mais significativa delas é a doença mental de Lúcio. Não se trata de uma pessoa, pelo que nos é apresentado no conto, de uma pessoa que enlouqueceu e teve seu fim. Mas de um homem que se abriu ao mundo e passou a amar e a se comunicar. Indiscriminadamente. 95 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Pra ele a comunicação devia haver não somente entre as consciências, mas também entre as consciências e as coisas; não devia haver separação entre nada no mundo; gente, animal, planta, pedra, vento, tudo devia se comunicar. Comunicação quer dizer: amor – a palavra que não dizíamos. (VILELA, 1968, p. 175) No tom ensaístico do texto, o amor é uma linha de força do texto. É apresentada como um apetite capaz de desestabilizar a mônada em sua essência e permitir que ela se comunique. Isso aconteceu com Lúcio. Ele abriu uma chaminé, passou a se comunicar e saiu da condição de mônada. Mas essa atitude solitária não obteve resposta. Ele era o único nesse movimento e sua abertura era vista como loucura. A palavra que não era dita permanecia escondida por uma razão prática, não por capricho. A condição de mônada é, na obra de Vilela, uma condição do homem contemporâneo. Deixá-la é morrer ao mundo. Não existe redenção. Ou morre-se por incomunicabilidade ou por ‘loucura’. O outro exemplo é a relação de Branco com Lídia. Uma mulher que ele amou, não retribuiu o amor que lhe foi ofertado e o abandonou. Essa relação que é apresentada no conto sem detalhes concretos é também mostrada como um exemplo de que a condição de mônada é permanente. Ao menos a dele. O amor de Branco é diferente do amor de Lúcio. Enquanto o segundo é altruísta, o segundo é carregado de fervor. Intenso. Desesperado. O amor paixão de Branco é preenchido por si mesmo. Não há espaço para o outro. Para ir além. Essa comparação ganha força quando percebemos que a relação com Lídia foi posterior à relação com Lúcio. Branco já tinha presenciado todo movimento do amigo. E dessa situação tomou para si uma lição: “Quando aconteceu aquilo foi uma queda terrível para mim. Só me reergui bem depois, com Lídia, mas foi para tornar a cair: assim é a vida.” (VILELA, 1968, p. 172). As relações são então apresentadas como muletas para a incomunicabilidade. E a imagem de palavras ao vento é desfeita para dar espaço à imagem de frases que servem de chão umas às outras. Sustentam como prateleiras sustentam badulaques e por construírem uma relação. E, considerando mais uma vez o tom ensaístico que o conto adquire em alguns momentos, reforça a teoria de Leibniz. As mudanças da mônada são naturais. Resultam de movimentos internos e não de ocorrências externas, como um amigo que enlouquece ou um amor que abandona. Nesse caso, é preciso bem mais que referências, análises e interpretações. 3 “Tremor de terra” é um conto com quatro personagens: narrador autodiegético, professora, Ricardo (marido da professora) e a prostituta. Desses, somente Ricardo não tem voz. A professora tem apenas uma fala, na qual ela relata um comentário que o marido faz sobre ela. Um juízo de valor. “O Ricardo diz que eu sou muito apressada”. (VILELA, 1978, p. 118). Há uma frase no texto que se refere ao casal – “O ano passado os dois estavam viajando pela Europa” (VILELA, 1978, p. 118) – que é um trecho de uma conversa que o narrador ouve na 96 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 escola e repete. Essas informações que num primeiro momento podem até soar como aleatórias, mas ajudam a construir a imagem que o narrador-personagem tem do casal. Somente ele e a prostituta possuem voz ativa. Ela é a única pessoa com quem ele efetivamente conversa. Escola, quarto do narrador, rua e prostíbulo são os espaços do conto. O narrador é o único a circular em todos eles e cada um representa um momento de transição em sua descoberta de mônada. Na escola conhece a professora, se apaixona, recebe as primeiras informações sobre ela, descobre que ela é casada. Em seu quarto, reflete sobre o amor, desejo, paixão, ódio, insegurança e todos os sentimentos que ficam em primeiro plano quando ele auto-avalia diante desse possível amor. Na rua – único espaço aberto do conto – segue a professora e seu marido que passeiam sob a chuva. Neste espaço, sem a proteção de paredes ou tetos, é que ocorre a descoberta de que ele, o narrador, não está apto a viver esse amor. Desamparado, molhado, sozinho e frustrado, ele vai para o último espaço do conto. Um prostíbulo. O tempo do conto é o tempo interno do narrador e só existem dois momentos em que os ambientes e os gestos são descritos. Não há qualquer descrição física do narrador-personagem, seu corpo aparece apenas nos momentos em que ele afasta alguém e ou para reforçar sua indisponibilidade. Entretanto, nenhuma ausência é mais significativa que a dos nomes das personagens. Apenas Ricardo, marido da professora é nomeado, descrito, observado, analisado e, consequentemente, reconhecido. Esse homem, que faz o contraponto com o narrador, é apresentado como uma pessoa. Com elementos que permitem percebê-lo como um indivíduo. O mesmo não acontece com as mulheres. Elas são apresentadas através da dicotomia: a esposa e a prostituta. A primeira é aprovada. A segunda desejada. Nomeá-las seria retirá-las de sua condição primária. O narrador é autocentrado e ao se deparar com o casal formado por sua professora e Ricardo, é exposto ao amor, ao ódio e à sua condição de mônada. A paixão por ela desenha uma trajetória de autoquestionamento enquanto o ódio por ele o expõe. Quando experimenta as epifanias – ora resultantes do amor e ora do ódio –, a figura central é lançada numa trajetória de autoquestionamentos e revelações contraditórias, maniqueístas e pessimistas. Confirmando sua condição de mônada, o narrador – em nenhum momento – estabelece qualquer tipo de vínculo com a razão de seu afeto. São muitos os momentos do conto que comprovam a inexistência desse contato mais íntimo. E eu não sabia o que fazer para esperar passar um dia inteiro, pois a próxima aula dela só seria na noite do dia seguinte e só então a veria de novo. Nessa espera eu não pensei, não analisei, não refleti sobre o que estava acontecendo, não fiz nada disso, só podia mesmo esperar e isso já não era fácil.” (VILELA, 1978, p. 118) Esse trecho exemplifica muito bem o padrão de reações do narrador. Ele se movimenta sempre na periferia desse amor. Não há sequer a busca por seu núcleo. Quando ele admite que 97 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 não analisou e não refletiu, admite sua passividade. Internamente, a movimentação é frenética. Os sentimentos são contraditórios, levantam questionamentos, desvelam inseguranças, mostram franquezas. Mas externamente, ele continua intacto. Uma mônada que não exterioriza os movimentos internos. No seu não saber, ele opta pelo silêncio, espera e ausência. Permanece em seu porto-seguro. Ao manter-se nessa postura, o narrador liberta-se de todas as ondas passionais tão típicas do amor. Amar é abrir portas e janelas, é colocar-se numa posição suscetível à influência de um universo desconhecido que é a pessoa amada. Mas, como mônada, não há na superfície nenhuma parte propensa a receber. Essa é a primeira epifania. Mais do que descobrir-se apaixonado, o narrador-personagem se descobre incapaz de amar e ser amado. Diluído em si mesmo, reconhece a dificuldade de percepção do outro e se desespera. Outro momento que deixa bem evidente a condição de mônada é quando ele conta que não se lembra do rosto da professora. Tenta reconstruir a imagem, sem sucesso. E durante o dia aconteceu aquele negócio que é chato pra burro e que já tinha me acontecido de outras vezes: eu não conseguia ver direito o rosto dela na memória; a hora que eu fixava bem uma parte, os olhos por exemplo, o resto apagava, se deformava e eu tinha de correr para pegá-lo, e aí eu perdia o que já conseguira – um troço exasperante. (VILELA, 1978, p. 116) Lembrar, esquecer, construir e reconstruir o rosto de quem se ama. Esse troço exasperante, que o impede de se comunicar com a pessoa amada. Ela está ali. Presente, próxima, ao alcance dele. Mas a incapacidade de se comunicar – característica essencial de uma mônada – o impede não apenas de realizar movimentos primários como a aproximação. Mas ele está tão aquém disso que mal consegue se lembrar dela. Como não lembrar de quem se ama? E nessa tensão, percebemos que tudo o que ele reconhece é ele. O narrador não pensa nela, no casamento dela, na vida dela ou simplesmente nela. Ele está inserido numa espiral de autocrítica e autoquestionamento. É tudo sobre ele. Não para ele. Não há nada dela. Nenhum elemento que permita construir essa lembrança com outra coisa além de si mesmo. O que se sabe dela é que é casada e mãe e dona-de-casa e professora. Características que a colocam na mística feminina. Apta a cuidar, servir, ensinar. Ela é apenas uma professora, esposa, mulher. Não é uma pessoa. Ele não quer uma pessoa para compartilhar, mas para preencher ausências que ele sente, mas não percebe. Percorrendo o conto, é interessante ver como o narrador se refere a ela. Ao vê-la pela primeira vez, logo depois da professora entrar na sala de aula, ele afirma ter descoberto que ela era o que ele procurava: “a coisa decisiva” ou a “peça fundamental”. No momento em que ele se apaixona, ele descarta o que há de pessoal nela. Em outro momento, o narrador se refere a ela usando um pronome possessivo. “Ela era minha, mas eu nunca fiz nada para tê-la. Não, não é isso, é o tipo de frase que eu detesto, o tipo da frase falsa; ela não era ‘minha’, nem eu queria tê98 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 la; isso é influência das histórias de amor que andei lento” (VILELA, 1978, p. 118). Ainda que o que ele quer seja limitado, há nesse trecho um indício de mudança natural interna da mônada. Ele começa sua história coisificando a professora. Refere-se a ela como coisa ou peça. Objetos sem vontade, suscetíveis aos desejos, vontades, manipulação. Contudo, ao reconhecer que nunca ela seria dele e que ele nunca a teria é um indício de mudança. Ainda que seja uma percepção no limite da hipocrisia, uma vez que ele refaz seu discurso por considerar seu enunciado censurável dado a influência que o gera e não por se referir a uma pessoa. E assim, percebe-se que como mônada, ele não está apto a reconhecer outro indivíduo senão ele mesmo. O narrador também não se permite percepções básicas como desejo sexual, por exemplo. Chega a afirmar que não possui desejo algum por ela e que o fato dela ser casada não o excita como excitaria outros homens. Descreve os pensamentos eróticos como o ato de morder uma borracha. Por mais que ele tente, existe uma resistência natural – interna – que o devolve para a condição inicial. Após sucessivos episódios epifânicos, o narrador finalmente consegue se comunicar. (...) o marido dela estava esperando-a: ele a envolveu-a com o braço e os dois saíram. Tinha chovido e a rua estava molhada. Eles foram andando abraçados, de capa, conversando e rindo. Às vezes ela ria mais alto, jogando a cabeça para trás num gesto bem dela. Uma hora pararam em frente a uma vitrine e ficaram olhando, ela apontando para as roupas, ele naquela indiferença tranqüila e sorridente do esposo que tem ao lado a mulher amada (...). Era bonito os dois juntos assim, abraçados, rindo, andando pela calçada molhada de chuva, as vitrines iluminadas. (VILELA, 1978, p. 121 e 122) O narrador segue a professora e o Ricardo durante uma caminhada na rua. Num espaço aberto ele assiste ao amor concretizado. O espaço dessa cena imprime uma sensação muito forte de não pertencimento durante a leitura. Não por ser aberto, mas por ser romântico. A história é contada por uma mônada, que em todo seu discurso revela elementos de incomunicabilidade e de não reconhecimento do outro. No meio do conto, há uma cena de amor. Legítimo. Consolidado. Duas pessoas que caminham, conversam, se tocam, assumem trejeitos uma da outra. Comunicação e amor. O protagonista sai tão ferido desse embate que pouco, ou quase nada, resta a ele. Apaixonado por sua professora, o narrador é então apresentado à existência do marido. Um homem com tantas qualidades que o obriga a deixar sua zona de conforto e analisar os pontos de acordo com a realidade que não o inclui. Cada informação sobre a vida de Ricardo é uma epifania para o narrador. Todas elas ferindo no mesmo ponto e cada vez mais fundo. Bonito. Alto. Forte. Elegante. Bem sucedido. Rico. Inteligente. Cada uma das qualidades de Ricardo funciona como uma machadada na autoimagem do narrador. Desestabilizado, ele chega – sem saber como –, a um prostíbulo. Sem nome ou referências, toda percepção que temos do narrador é resumida ao estereótipo, conceitos e pré99 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 conceitos que ele carrega e suscita durante a leitura. O mais forte deles é o momento em que o narrador se desarma e se comunica com uma prostituta. Nesse caso, de uma mulher que não é merecedora de seu amor e que mantém esse narrador seguro em sua condição de mônada. “prefiro a profissional: a gente vai, trepa, paga, não fica devendo favor, nem amor, nem amizade, volta para casa e esquece.”(VILELA, 1978, p. 118). Não há o risco real de comprometimento, porque não envolve uma pessoa que deva ser considerada. O que, de certa forma é uma contradição, uma vez que o fato de não reconhecer uma pessoa que o apresenta à sensação de amar o colocou nessa situação. E mesmo a pessoa que ele considera digna de receber o amor dele, não recebe. A somatória dessas circunstâncias tem como conseqüência a epifania e a morte que ele precisa. A libertação para que ele possa se relacionar de modo que somente sua superfície seja afetada. Nesse momento, o narrador tem sua epifania final. (...) não, não vou encher a cara, vou para casa dormir – isso: vou para casa dormir, vou pôr o pijama, escovar os dentes, deitar, rezar uma ave-maria, e amanhã vou arranjar uma namorada, Sônia ou Lúcia ou Marta ou Regina ou Beatriz ou Marisa, e vou chamar ela de meu bem e vou dar presentes pra ela e ela vai dar presentes pra mim e vamos ao cinema e vamos beijar e vamos ficar noivos e casar ter filhos e engordar e envelhecer e ter netos e morrer e ser enterrados na terra que nos seja leve. (VILELA, 1978, p. 122) O diálogo entre Vilela e Joyce acontece em muitos momentos dos textos, elementos que vão além do uso das técnicas de escrita do irlandês. “Tremor de terra” é uma narrativa que expõe o despreparo da personagem para as mudanças que se aproximam. A ausência de comunicação, o pessimismo e a arrogância são elementos comuns na história. O conto nos apresenta um indivíduo cuja natureza é rejeitar. Mantém o olhar voltado para si constantemente, direcionando forças para alimentar o caos interno, combustível da sua condição de mônada. 4 Na leitura de ambos os contos, fica claro que o amor sentido pelos personagensnarradores não é um amor contido e entre algumas definições possíveis está mais próxima da definição de amor apaixonado de Giddens. O envolvimento emocional, segundo ele, tão forte que leva o outro a desistir das ações cotidianas. Leva ao descontrole. Essa característica é evidente em planos diferentes nos contos. Em “Tremor de terra”, o narrador-personagem demonstra esse torpor no discurso. Ele não age, não fala com a pessoa por quem está apaixonado, fantasia e vive essa fantasia. E dele, tira conclusões e toma decisões para sua vida. Percebe e permanece em sua condição de mônada. “No bar”, mais uma vez, nos fornece um exemplo prático do funcionamento desse amor repleto de perturbações. 100 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Veja um sujeito que está amando, mas amando mesmo, como eu estava naquela época, e me diga se ele não é um sujeito doente. Claro, há os equilibrados, os normais, os sadios, todos esses tipos nojentos [...]. Eles amam porque amar é uma coisa que eles têm de fazer, como tem de comer e dormir; arranjam uma mulher porque é uma coisa que eles têm de arranjar um dia, como têm de arranjar uma casa, um filho, uma posição social, para viver em harmonia com o rebanho [...]. Amor é uma coisa que queima, que devora, que enlouquece às vezes, que mata. Amor sadio: essa nojeira dos livros sobre a arte de viver. (VILELA, 1968, p.173). O trecho mostra outra característica do amor paixão que é o sacrifício. Ao não satisfazerem suas expectativas de amor, os protagonistas dos contos sacrificam o entendimento que possuem de amor e optam pelo amor institucionalizado. Em “Tremor de terra” essa opção está muito clara no discurso. Ao optar por um casamento, a personagem-narrador abre mão de amor paixão. Vive o amor sadio que Branco define como “essa nojeira dos livros sobre a arte de viver”. Fato é que a relação entre amor e mônada é bastante complexa e possuem características que entram em conflito em muitos momentos. Considerando que esses elementos – amor, mônada, incomunicabilidade, paixão, conflito e complexidade –, estão presentes em quantidade significativa na obra de Vilela, estudá-los parece-nos um processo muito mais que necessário, mas natural. Há de considerar ainda que dada a complexidade da discussão, dos temas e da extensão de sua obra, qualquer abordagem corre o risco de ser demasiadamente rasa. Mas não desnecessária. REFERÊNCIAS: JOYCE, J. Dublinenses. Tradução de Hamilton Trevisan. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. LEIBNIZ, G. W. A monadologia e outros textos. Tradução de Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza. São Paulo: Hedra, 2009. MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2004. VAZ, P. Luiz Vilela e o amor-paixão. In: Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências, XI, 2008, São Paulo. Anais. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 2008. Disponível em: 101 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/.../PAULA_VAZ.pdf. Acesso em: 23 de set. de 2011. VILELA, L. No bar. 6 ed. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1968. VILELA, L. Tremor de terra. 6 ed. São Paulo: Ática, 1978. 102 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A cartomante: Quando a câmara conta a história Gedy Brum Weis ALVES1 RESUMO: O presente artigo apresenta reflexões sobre a constituição da linguagem cinematográfica a partir da análise de sequências narrativas do filme A Cartomante, de Wagner Uranga e Pablo Assis, obra fílmica, adaptada a partir do conto homônimo do escritor brasileiro Machado de Assis. O objetivo principal deste trabalho consiste em enfocar os diversos aspectos da linguagem cinematográfica, considerando-os como uma pluralidade de códigos, que na sua totalidade formam a linguagem do cinema, que produz significado dentro da história narrada. Os aspectos aqui mencionados consistem em todo conjunto que compõem essa linguagem, ou seja, fotografia, movimentos, montagem, estrutura narrativa e som, tudo o que a câmera pode contar, considerando que é ela ( a câmera) que mostra ao telespectador esse universo fictício. PALAVRAS-CHAVES: Linguagem cinematográfica. Adaptação literária. A Cartomante. Introdução Ao inciarmos essa discussão, faremos uma breve exposição sobre a prática das adaptações literárias para os meios audiovisuais, tendo em vista que o filme que analisamos, neste trabalho, trata-se de um obra audiovisual adaptada de um texto literário. As frequentes adaptações de obras literárias para o meio cinematográfico suscitam muitas discussões, à medida que, a priori, somos levados a julgar a nova obra considerando o critério de fidelidade ao original como ponto primordial. No entanto, estudos recentes sobre o assunto constatam diferentes abordagens em adaptação de romances, de contos para a linguagem audiovisual, sendo que tanto se pode preservar, em partes, a integridade do original ou optar por criar uma nova concepção, um olhar diferenciado sobre a obra adaptada. A segunda parte deste artigo contém a análise de uma sequência da obra A Cartomante (2004), Assis e Uranga, a fim de evidenciar aspectos da linguagem cinematográfica geradores de significados Adaptações: entre a literatura e o cinema – um novo olhar A prática da adaptação de textos literários para o cinema é recorrente. Sobre esse assunto, Gomes (2009, p. 111) afirma que: 1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CCHS. Campo Grande. Mato Grosso do Sul. Brasil. CEP. 79080190. E-mail: [email protected] 103 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 o empréstimo dos textos de outros meios, de algumas de suas partes, da abordagem que fazem ou do tratamento que dão a certo aspecto da existência humana, de uma situação específica ou de uma experiência concreta, é algo recorrente na feitura dos textos contemporâneos. Embora a obra fílmica adaptada seja originária do texto literário, ela deve ser vista de forma independente, pois trata-se de uma outra obra, em uma nova linguagem, conforme afirmam Rabaça e Barbosa, (2002, p. 19) para os autores, a adaptação é a “transposição de uma obra para outro gênero ou veículo, com adequação de uma obra originariamente escrita em linguagem e na técnica de um determinado meio (TV, rádio, cinema, etc.) para códigos característicos de outro.” A história, tanto na obra literária quanto no filme, consiste no envolvimento amoroso de Camilo e Rita, embora no conto ela fosse esposa de Vilela e no filme noiva deste personagem. O agravante maior desse relacionamento se dá pelo fato de Vilela e Camilo serem amigos de infância. Nas duas narrativas há a presença do místico representado pela figura da cartomante, que permeia a discussão da crença ou não no destino. As frequentes adaptações de obras literárias para o meio cinematográfico suscitam muitas discussões, à medida que, a priori, somos levados a julgar a nova obra considerando o critério de fidelidade ao original como ponto primordial. No entanto, estudos recentes sobre o assunto constatam diferentes abordagens em adaptação de romances, de contos para a linguagem audiovisual, sendo que tanto se pode preservar, em partes, a integridade do original ou optar por criar uma nova concepção, um olhar diferenciado sobre a obra adaptada. Ainda quando a intenção é a de preservar o texto-fonte, percebemos que a preservação ocorre em partes, pois ao se tratar de obras com suportes diferenciados, a adaptação necessariamente transforma o texto original, pois se utiliza de códigos diferentes em sua feitura, passando por um processo de releitura. A transcodificação pressupõe uma leitura crítica do adaptador, visto que ele mantém um diálogo com o universo da obra literária, fazendo escolhas, entre manter alguns aspectos, deslocar outros, propor significados diferenciados, com base nesses aspectos, que se buscará manter o diálogo entre os textos. Stam (2008, p. 19) afirma: A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo como indesejável. Desta forma, nesta transcodificação o cineasta traduz palavras em imagens, visto que no cinema temos uma linguagem própria, como afirma Metz (1972, p. 338). 104 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O cinema não é um língua, sem dúvida nenhuma, mas pode ser considerado como uma linguagem, na medida em que ordena elementos significativos no seio de combinações reguladas, (...) uma linguagem, que permite uma escrita, isto é, o texto fílmico. A linguagem cinematográfica é constituída pela imagem em movimento como forma de materializar a construção de um universo, em que a câmera tem uma importância fundamental, pois é através dela que acompanharemos uma mudança de planos, um enquadramento diferenciado, um movimento lento ou rápido; a câmera nos mostrará se o ambiente é claro, escuro, se o tempo passou, enfim pelo olhar da câmara, instrumento gerador de significados, vêse como uma fábula se transforma em trama. Para Xavier (2003, p. 65) fábula refere-se a uma certa história contada, a certas personagens, a uma sequência de acontecimentos que ocorreram em um determinado lugar, ou lugares, durante um período de tempo. Já a trama, é usada para referir-se ao modo como tal história é contada, como os personagens aparecem por meio do texto, do filme ou da peça. Para Martin (2005, p. 37) “o nascimento do cinema como arte data do dia em que os realizadores tiveram a idéia de deslocar o aparelho de filmar no decurso de uma cena (...)”. Assim é através do olhar desse “aparelho flexível de registro”, considerando as especificidades da linguagem cinematográfica geradora de significados que analisaremos a seqüência do filme A Cartomante (2004) de Wagner Assis e Pablo Uranga. O filme em questão foi produzido em 2004, época que ficou conhecida como a “Retomada do Cinema Novo”. Segundo Maia (2008), o período de 1995 a 2005, ficou conhecido como “A Retomada do Cinema Brasileiro.” No início da década de 1990, o cinema brasileiro sofreu uma estagnação em sua produção, devido à falta de financiamento do Estado causada pelo fim da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), bem como do Conselho de Cinema (Concine) e a Fundação do Cinema Brasileiro. A aprovação da lei nº 8.685, conhecida como “Lei do Audiovisual”, que consistia basicamente, em incentivos fiscais ao setor privado que investisse em cultura, propiciou um aumento significativo na produção de filmes no país. Conforme o release do filme2 A Cartomante (2004), a história narra a trajetória de Rita, que se apaixona por Camilo. A complicação da história se dá se ela não fosse noiva de Vilela, amigo de infância de Camilo. Rita, uma jovem que veio do interior do Estado, mora num conjugado típico do bairro de Copacabana, trabalha num brechó. Seu grande sonho é casar-se, ter filhos e ser feliz. Ligada ao místico, ela acredita em horóscopo e seu hobby é colar as previsões astrológicas dos signos do zodíaco em sua agenda. Camilo é jovem, garotão despojado, possui facilidade em conquistar as mulheres. Solteiro por opção, mora com a mãe, frequenta boates e academias. Passa a maior de seu dia aproveitando a vida com seu amigo Duda, com quem se diverte nas “noitadas” da cidade do Rio de Janeiro. Vilela, por sua vez, é o principal médico de emergência de uma clínica particular, 2 O release do filme A Cartomante, de Pablo www.cineticafilmes.com.br. Acesso em 20/05/2011. Uranga e Wagner Assis encontra-se no site 105 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 salva a vida do amigo quando ele se envolve com uma mulher misteriosa que tenta matá-lo obrigando-o a ingerir uma grande quantidade de ecstasy. Uma quarta personagem do filme,que possui papel fundamental na trama, é a Drª Antônia Maria dos Anjos, formada em psiquiatria e também em psicologia, inteligente, dedicada à profissão, dá plantões no hotel em que Vilela trabalha e é psiquiatra de Rita. A sequência do filme que será analisada é de grande importância para desenrolar da narrativa. Tais fatos, o primeiro encontro amoroso de Rita e Camilo, e a primeira visita dela à cartomante , mudam o rumo da história fílmica. A cartomante: Sob o olhar da câmera Quando vai fazer uma visita a Vilela, para agradecer por este ter lhe salvo a vida, Camilo conhece a noiva do amigo e uma atração mútua acontece entre os dois. Posteriormente, de forma acidental, Camilo vê Rita no local em que ela trabalha, um brechó. Entra na loja e eles conversam. Rita lhe mostra uma estatueta, uma representação da Vênus de Milo, dizendo que esta era a peça de que ela mais gostava. Dias depois, Camilo manda seu amigo Duda comprar aquela peça no brechó, e diz à moça que ela deve entregar no endereço indicado por ele. Reafirma que deve ser Rita e mais ninguém a fazer a entrega. Após este fato, tem início a sequência que nos propomos analisar. A cena inicia-se com uma tomada externa de uma casa antiga, o dia está claro, ensolarado, Rita entra na cena, caminhando pela esquerda, temos então, um plano de geral 3. A moça traz na mão, uma caixa, que concluímos ser a estatueta para ser entregue e o papel com o endereço que lhe foi dado pelo comprador da peça. Rita segue em direção à entrada da casa, há um corte, e utilizando-se de um raccord dans le mouvement4, Rita aparece no topo de uma escada. O ambiente interno possui uma iluminação mais escura, ainda olhando o papel com o endereço e posteriormente as portas dos apartamentos. O plano médio 5 permite ao espectador visualizar o ambiente e o deslocar de Rita até uma das portas. Ela toca a campanhia, o ruído do barulho da fechadura indica que a porta será aberta. 3 Plano que o ambiente exerce um papel importante na tela em relação à figura humana. A palavra raccord significa coerência entre um plano e o plano seguinte dentro de uma determinada sequência de montagem. 5 Martin define de conjunto como aquele que enquadra a metade posterior da figura humana. 4 106 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (Fig1) Rita vai entregar a estatueta na casa de Camilo. Exemplo de plano geral. Segundo Martin (2005, p. 47) A escolha de cada plano é condiciona pela necessária clareza da narração; deve existir uma adequação entre a dimensão do plano e o seu conteúdo material, por um lado (o plano é tanto maior ou aproximado quanto menos coisas nele houver para ver), e o seu conteúdo dramático, por outro lado (o plano é tanto maior quanto a sua significação ideológicas forem grandes.) A próxima sequência é constituída de forte teor dramático, ou seja, o foco da atenção recai sobre as emoções do casal. Interessa ao espectador a reação de Rita ao saber que o comprador da estatueta é Camilo, rapaz que despertou seu interesse, no entanto é amigo de infância de seu noivo. por isso, tal sequência ocorre toda em plano próximo 6, com pouca profundidade cênica, permitindo que essas emoções sejam acompanhadas detalhadamente A porta se abre, Rita aparece em plano próximo. Camilo surge no plano, de costas. Estabelece-se, então, um eixo de ação entre as personagens, formando a composição de dois triângulos que se encontram. O rapaz sorri levemente, gostando da surpresa que causa na noiva do amigo. Rita sorri, brinca com Camilo, falando do amigo dele que foi comprar a estatueta para 6 Plano que mostra a personagem do rosto para cima. 107 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 que ela entregasse. Há uma seqüência de campo e contra-campo7, o rapaz assina a nota. A proximidade da câmera no casal, indicando que as reações deles são fundamentais para o desenrolar da narrativa, mostra a troca de olhares dos dois, registrando a atração existente entre eles. Camilo pega a estatueta, observa-a por alguns minutos e fala pela primeira vez: “É pra você.” (Figura2) Camilo entrega a estatueta para Rita. Exemplo de plano próximo. Rita aceita o presente, o plano próximo permite ao espectador ver o movimento incerto de suas mãos, os traços do rosto demonstram angústia. “Não, você não vai fazer isso comigo.”, reclama a moça. Camilo na tela, no mesmo plano, sorri com certo cinismo. Um close 8 mostra todas as marcas de perturbação que tomam o espírito de Rita nesse momento. A jovem sente atração pelo rapaz, mas encontra-se dividida entre esse sentimento e a segurança que Vilela lhe proporciona. Epstein (apud MARTIN, 2005, p. 48) referindo-se à contribuição do close para o cinema afirma que “entre o espetáculo e o espectador não há qualquer rampa. Não se olha a vida, penetra-se nela. Esta penetração permite todas as intimidades. Um rosto ampliado pela lente, pavoneia-se, revela a sua geografia fervente...” 7 8 Sequência própria dos diálogos. Martin nomeia este plano como um grande plano aquele enquadra o rosto da personagem. 108 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Um corte, Camilo aparece, em plano médio, ainda com um sorriso zombeteiro na face. Uma música não-diegética9, de ambientação, de ritmo forte, começa a tocar, simbolizando que algo importante ocorrerá na história. Num mesmo plano, Rita e Camilo são filmados, enquanto ela está de frente, Camilo aparece pelas costas, somente parte de seu tórax e cabeça aparece na tela. A proximidade entre os dois é grande. Para filmar esta cena, foi utilizada uma teleobjetiva para evidenciar a proximidade das personagens. Marne r(s/d, p. 123) afirma que uma teleobjetiva, aparentemente, aproxima as personagens e também que, quando há no quadro uma personagem de frente para o público e outra de costa, a atenção do espectador se dirige para a que olha para ele. Esses fatores são importantes para esta análise, pois nesse momento é a angústia de Rita que está sendo retratada diante da proximidade do amigo de seu noivo. A câmera permanece parada, Rita, lentamente, se afasta, de costas, a imagem começa a se abrir, aumentando a profundidade da cena. A moça vira-se e sai do apartamento. Aparece, então, Camilo, em plano médio, ainda com o mesmo sorriso, como se zombasse de moça. Há uma elipse espacial e temporal, pois na próxima cena, aparece parte de um prédio, onde há um portão, uma iluminação natural que produz uma sombra desse imóvel. Rita entra no quadro em plano americano.10 Para, olha para cima, indecisa permanece parada por alguns segundos, de repente , decide-se e entra rapidamente no prédio. A câmera, numa panorâmica vertical, sobe até enquadrar, em close, uma placa que informa “Cartomante”. Martin (2005, p. 66) chama esse tipo de panorâmica de “dramática”, porque desempenha um papel direto na narrativa, no caso em questão, a panorâmica nos informa que Rita, guiada por uma profunda indecisão busca o místico para orientar suas escolhas. Esse ato de Rita é simbólico, pois a partir de então, serão as cartas que a guiarão. O lado esotérico da personalidade da moça é destacado aqui, pois, desde do início da narrativa, ela mantém sua vida baseada nas previsões de horóscopo. 9 De caráter não- realista, som usado como metáfora; música – ambientação: participa discretamente na criação da totalidade geral, estética e dramática da obra. 10 Plano que enquadra a figura humana acima do joelho. 109 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (Figura3.1). Panorâmica consultório da cartomante (3.2) Panorâmica letreiro do consultório Num raccords dans le mouvement, que permite a continuidade pelo movimento, vemos Rita já no alto de uma escada, no interior do prédio, no enquadramento em plongê11, o que diminui a sua figura em relação ao ambiente. A iluminação do local demonstra ser um lugar sombrio, uma luz dura produz sombras, há um contraste na luminosidade do ambiente, causado por um jogo entre cores claras e escuras, mais precisamente, entre o preto e o branco. (Fig 4). Enquadramento em plongé. A luz dura produz sombras no ambiente. Rita entra no consultório da cartomante. Todos os indícios nos levam a crer que aquele movimento levará Rita à casa da cartomante, essa é a expectativa que se cria, no entanto, ouve-se in-off12 a voz de Antônia, a psiquiatra da moça. Continuando o raccord, Rita, em plano de conjunto, entra pela porta do consultório da psiquiatra, dizendo que ela não queria falar sobre nenhum assunto nesse dia. A moça para, assim que entra, mantendo uma grande distância da doutora, ao contrário das cenas anteriores gravadas nesse ambiente, em que a jovem ou estava sentada em um sofá ou deitada em um divã. Esta atitude demonstra que realmente ela não pretende ter uma conversa longa e detalhada naquele dia. Atrás dela vê-se uma estante cheia de livros, a personagem encontra-se do lado direito da tela. O desenrolar desse diálogo ocorre todo em campo e contra-campo e por nenhum momento as duas mulheres aparecem juntas na tela, simbolizando, talvez, o distanciamento entre elas. 11 12 De cima para baixo. Martin chama esse enquadramento de picado. Voz fora da cena 110 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Antônia por sua vez aparece, em plano próximo, sempre sentada, atrás de uma mesa, com papéis e canetas, folhas, notebook; do lado esquerdo da tela. Estabelece-se um plano de triângulo entre as atrizes. Segundo Marner (s/d., p. 100) “este plano de posições é útil porque permite aos espectadores saberem exatamente onde se situa cada um dos personagens em relação ao outro.” A direção do olhar de cada uma das mulheres indicam como estão posicionadas em cena. (Figura 5). Diálogo entre Rita e a psicóloga. Exemplo de campo/contracampo Antônia questiona se sua paciente está bem. Rita confirma que está bem e apesar de demonstrar hesitação, parece feliz. Neste momento há um corte brusco, em plano de detalhe aparece a imagem de um baú, decorado com desenhos místicos, cores vivas, sendo aberto por uma mão. Em seu interior aparece um baralho esotérico. A câmera enquadra Rita em um plano próximo, admirada; entre objetos, pingentes em forma de luas, de estrelas, de contas de cores variadas, pendurados em correntes. A iluminação do ambiente é feita por cores densas, em contraste com um fundo escuro, todos estes detalhes colaboram para criar um clima intenso de mistério, um mundo onírico, povoado pelos desejos de Rita. Uma panorâmica para a direita e depois para esquerda cria a ilusão de movimento de um objeto estático. O rosto de Rita aparece em close e em seguida em super close, enquanto seus olhos acompanham o movimento da câmera, evidenciando todo o encantamento que aquele ambiente místico causa na personagem. Neste momento, há um plano de detalhe na mão de uma mulher que embaralha um jogo de cartas. Em detalhe aparecem suas unhas: grandes, pintadas de vermelho. A mão possui papel importante13 na cena, no próximo plano, aparece somente o jogo de cartas sobre uma mesa, forrada com um tecido estampado com cores vibrantes. O jogo de cartas é tocado por outra mão, 13 É o plano próximo ou fechado de alguma parte do corpo, exceto o rosto. 111 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 essa com unhas curtas, o que nos leva a concluir ser a mão de Rita. Em movimento de campo e contra-campo, sempre em plano de detalhe, aparecem as cartas com a mão de unhas vermelhas, como se o diálogo agora fosse estabelecido pelas mãos em contato com as cartas. A cena anterior a esta se repete, os olhos encantados de Rita observam os objetos em movimento. Durante toda a cena a música permanece. (Figura 6) Rita, durante a visita à cartomante. Close no rosto da personagem Bruscamente há um corte, a narrativa retorna à psiquiatra questionando à Rita se havia acontecido alguma coisa. Esta cena mantém todos os aspectos da cena narrada anterior à cena da cartomante. Sorrindo, diz que não aconteceu nada. Num plano de detalhe, uma carta é jogada sobre a mesa, quase que de forma imperceptível pode se ler nela La torre, um super-close mostram os olhos apreensivos de Rita. Em plano próximo, aparece Rita por entre estrelas, pedras e correntes, a luz densa, as cores fortes, o movimento de câmara, que causa a impressão dos objetos em movimento, mantém todo poder místico da cena, e também dos sentimentos que envolvem a personagem naquele momento. Rita encontra-se de frente para câmara, de costas vemos uma silhueta feminina, sentada, que concluímos ser a cartomante. Convém ressaltar que em nenhum momento da cena, mostra-se o rosto da cartomante em cena , isto contribui para aumentar o clima de mistério da história. Uma segunda carta cai sobre a mesa, o plano em close permite ao espectador ler los enamorados. Um plano de detalhe na boca de Rita mostra sua alegria, um close, uma luz mais clara proporcionada por uma vela que brilha em partes do rosto de Rita, o brilho dos seus olhos indicam que ela gostou daquilo do que o destino lhe reserva, o caso com Camilo. Novamente o movimento de câmara, a figura de Rita, alternadamente em 112 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 planos próximo, close e super close. O baralho é jogado sobre a mesa. Um novo corte, e Rita continua no mesmo lugar no consultório de Antônia o que nos leva a conclusão que a cena da ida à cartomante é narrada em flashback, pois Rita fora à casa da mística , antes de ir à psiquiatra, no momento em que no prédio com a placa, a câmara informa ao espectador ser de uma cartomante. Rita diz que irá embora, a voz in-off de Antônia chama-a, ela volta-se, Antônia a adverte: “Pensa bem, Rita, antes de fazer qualquer coisa.” Rita parece indecisa, um pouco assustada, diz simplesmente “ta”. A decisão de Rita já estava tomada, entre o místico e a ciência, ela optou pelo místico, o espectador já sabe que a moça terá um caso amoroso com o amigo do noivo. A continuidade pelo movimento se dá, quando Camilo, filmado em plano próximo, de costas, abre a porta, olhando um para o outro, ela de frente, ele de costas em campo e contra-campo, estabelece-se um diálogo. A moça lhe diz que foi a uma cartomante, questiona se ele acredita em cartomantes, um pouco cético ele diz “Por quê? Devo? Há deformação da perspectiva, ocasionada pelo uso de uma lente tele-objetiva, que aproxima os personagens e diminui a profundidade de campo. Inicia-se uma música não-diegética, suave, Camilo, já no quarto e em plano próximo, sorri. Está escuro, o rosto de Rita aparece em close, sereno. Um pequeno foco de luz passeia sobre o rosto da jovem, aumenta-se a profundidade da cena e a mão do rapaz aparece segurando uma lanterna. Em plano de detalhes, seguimos a lanterna passear pelo corpo de Rita, pelas costas, pelo umbigo, pela orelha, pelo pescoço, pela boca, pelos olhos. Esses detalhes imprimem um clima de romantismo e sensualidade ao encontram amoroso dos amantes. Eles se beijam. Consuma-se, então, a escolha de Rita, guiada pelas previsões da cartomante, ela trai o noivo e inicia um envolvimento amoroso com Camilo, fatos importantes no desenrolar da história da obra fílmica. 113 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Plano de detalhes. A luz da lanterna ilumina a orelha de Rita. Considerações finais Ao término deste artigo em que nos propomos trabalhar com os aspectos próprios da linguagem cinematográfica que geram significados dentro da narrativa fílmica, observamos que as escolhas feitas pela câmara, segundo a determinação do diretor, são de extrema importância para o desenrolar da narrativa. Um plano próximo, ou um close nos revelam todas as angústias, tristezas ou alegria de uma personagem, enquanto que um plano geral ou de conjunto nos mostra a importância do ambiente naquela cena, bem como, um enquadramento em plongé ou contra-plongé nos conta a situação de inferioridade ou superioridade, a iluminação também gera inúmeros significados, bem como o som. Assim, o filme A Cartomante (2004) de Assis e Uranga, um texto adaptado, por isso fruto de um “revisitação anunciada” (HOUTCHEON, 2011, p. 8) não pode ser julgado de inferior ao texto-fonte, pois estamos tratando de obras diferente cada uma contada por sua linguagem específica. O filme pode sim ser avaliado pelos quesitos próprios da linguagem em que foi 114 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 produzido, ou seja, pela fotografia, pelos movimentos que utilizou, pela montagem, por sua estrutura narrativa e pelo som, ou seja, por tudo o que a câmera nos contou. A CARTOMANTE: WHEN THE CAMERA TELLS THE STORY ABSTRACT: This paper presents reflections on the creation of film language from the analysis of narrative sequences of the movie A Cartomante, a film of Pablo Uranga and Wagner Assis, adapted from the same nama short-story from brazilian writer Machado de Assis. The main objective of this paper is the focus on various aspects of film language, considering them as a plurality of codes, which form in its entirety the language of cinema and produces meaning in the story “told”. The aspects mentioned here consist of every set which make up this language, for instance, photography, movement, assembly, structure narrative and sound, all that the camera can tell, considering that it is (the camera) that shows the viewer that fictional universe. KEYWORDS: Film language. Literaty adaptation. A Cartomante REFERÊNCIAS: ASSIS, M. de. Contos. São Paulo: Moderna, 2000. GOMES, M. O intertexto midiático: ficção seriada e adaptação de obras literárias: as ideias no fluxo das mídias. In: Conexão – Comunicação e Cultura. UCS, Caxias do Sul, v.8, n. 15, jan./jun. 2009. HUTCHEON, L. Uma Teoria da Adaptação. Santa Catarina: UFSC, 2011. MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Ed. Dinalvo, 2005. MARNER, T. S. J. A Direção Cinematográfica. Lisboa, Martins Fontes, s/ data. METZ, C. Linguagem e Cinema. São Paulo, Perspectiva, 1972. RABAÇA, C. A.; BARBOSA, G. G. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2002. 115 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 XAVIER, I. Do texto ao filme: a trama, a cena e construção do olhar no cinema IN: PELEGRINI, T. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac/São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. FILMOGRAFIA: A CARTOMANTE. Direção: Wagner Assis e Pablo Uranga. Rio de Janeiro: Cinética Filmes, 2004, DVD, (94 min). 116 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Filigranas da história no discurso literário: O drama didático-histórico em Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel Haydê Costa VIEIRA1 Wagner Corsino ENEDINO2 RESUMO: Ancorado em contribuições de Magaldi (2008); Ryngaert (1995); Ubersfeld (2005); Pallottini (2006) e Faria (1998), no que se refere à constituição do discurso teatral, e nos pressupostos teóricos de Esteves (1998); White (2001); Freitas (1989) e Pesavento (1998) para a abordagem das relações que se estabelecem entre Literatura e História, este trabalho tem como objeto de análise a peça Liberdade, liberdade (1965), de Millôr Fernandes e Flávio Rangel com o período ditatorial brasileiro (1964-1985). A escolha do tema decorreu do interesse em estudar uma obra literária que caracteriza-se por fazer uma releitura crítica da história. Para a realização dessa pesquisa, foi utilizado um exercício comparativo do modelo de romance histórico à peça teatral Liberdade, liberdade, pois mesmo pertencente ao gênero dramático, a obra não deixa de ser considerada um romance histórico. Essa transposição é lógica, pois tornaria inviável o uso da teoria de Menton e Ainsa para análise de um texto dramático. Dessa maneira, surge a expressão drama didático-histórico, pois a peça não apenas informa o seu leitor os acontecimentos passados ocorridos no Brasil e no mundo, mas também o ensina e o instrui sobre os acontecimentos históricos regionais e mundiais, além de provocá-lo a reflexão crítica. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e História. Teatro de resistência. Drama didático-histórico. Introdução A partir do golpe militar de 1964, a dramaturgia brasileira lutou corajosamente contra a censura. As autoridades da ditadura reconheceram, desde cedo, a importância e o poder do teatro como meio de comunicação, divulgação e de formação cultural. O teatro era controlado a vários níveis, que incluíam à análise dos textos das respectivas peças e a vigilância dos ensaios e das representações no palco. Muitas peças não eram liberadas pela censura ou ficavam sem sentido em decorrência dos cortes que sofriam. Os dramaturgos 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (Área de Concentração em Estudos Literários). Bolsa CAPES/Demanda Social. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Três Lagoas. Mato Grosso do Sul. Brasil. CEP: 79.603-011. E-mail: [email protected]. 2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Três Lagoas. Mato Grosso do Sul. Brasil. CEP: 79.603-011. E-mail: [email protected]. 117 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 foram obrigados a encontrar maneiras de driblar os censores, mas sempre havia outros obstáculos. O problema da censura sempre agitou com frequência os meios teatrais. Convém lembrar que o teatro fora uma das principais trincheiras de resistência ao golpe militar entre 1964 e 1968. Como recorda João Roberto Faria (1998), a classe teatral batalhou incansavelmente pela liberdade de expressão, organizando protestos, desafiando a censura e conseguindo algumas vitórias espetaculares. Foram tempos difíceis. O radicalismo político culminou na luta armada, na guerrilha no campo e na cidade, envolvendo militantes de esquerda e batalhões das forças armadas. Os abusos não tardaram a aparecer: muitas pessoas foram presas, submetidas a torturas e algumas barbaramente assassinadas. A um grande número de perseguidos não restou outra saída a não ser o exílio. (FARIA, 1998, p. 163-164) O diretor de teatro Flávio Rangel e o escritor carioca Millôr Fernandes, defensores do livro arbítrio, tornaram-se questionadores do esquema repressor que dominava o país. O primeiro fruto dessa atitude é a peça teatral Liberdade, liberdade, escrita no início do ano de 1965. A peça foi encenada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no dia 21 de abril de 1965, dia do Tiradentes, o “Mártir da Independência”. Importa destacar que essa obra torna-se um marco na história teatral brasileira, uma vez que a peça estreou no ano seguinte do golpe militar brasileiro. Dessa forma, a obra de Millôr Fernandes e Flávio Rangel é considerada uma das pioneiras do teatro de resistência em território nacional. O termo teatro de resistência refere-se a uma diversificada produção que, durante os anos mais duros da ditadura militar instaurada em 1964, procurou dar prosseguimento a uma dramaturgia de motivação social, na linha dos Seminários de Dramaturga promovidos pelo Teatro de Arena no final da década de 1950. A necessidade de mobilização diante da realidade do país encontrou no teatro um lugar de aglutinação dos setores mais politizados da sociedade, de afirmação de ideias proibidas e de ponto de partida para ações de protesto contra a repressão. A censura que, de 1965 a 1980, faz cortes, impede estreias, retira espetáculos de cartaz, prende artistas, mantendo a atividade teatral sob permanente vigilância policial, transforma a criação cênica e, em especial, a dramaturgia engajada em uma arte de cifrar conteúdos para metaforizar a denúncia social. (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2009, p. 295) As primeiras exibições de Liberdade, liberdade tiveram direção de Flávio Rangel e os papéis foram representados pelos atores Paulo Autran, Oduvaldo Vianna Filho, Tereza Rachel e a cantora Nara Leão, numa produção carioca do Grupo Opinião e do Teatro de Arena de São Paulo. Os atores encenaram inúmeras personagens e se revezaram na interpretação, utilizando textos da autoria de Jean Louis Barrault, Geir Campos, Jesus Cristo, Platão, Aristóteles, Manuel Bandeira, William Shakespeare, Osório Duque Estrada, Dorival Caymmi, Carlos Lyra, Vinícius de Morais, Büchner, Beaumarchais, Bertolt Brecht, Abraão Lincoln, Thomas Jefferson, Castro 118 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Alves, General Francisco Franco, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Winston Churchill, Adolf Hitler, Anne Frank, Benito Mussolini, Napoleão Bonaparte, Geraldo Vandré, entre outros. A mensagem da peça está, como observa Campedelli (1995), em seu título. O conteúdo das frases e as situações históricas são temperados por humor, ansiedade e otimismo em relação ao futuro do Brasil. As citações humorísticas do texto estão sempre ligadas com os militares, que nesse período têm autoridade sobre todos os assuntos, inclusive sobre aqueles que nada entendem. Literatura e História em cena Na eterna tentativa de captar e entender o passado, o ser humano vale-se da linguagem. A linguagem, por um lado, possui regras fixas, pré-estabelecidas e limita as possibilidades do falante. Por outro lado, no entanto, flui sem cessar ao longo do tempo, fazendo que a experiência de uma geração seja diferente de outra. O homem, por mais objetividade que tenha, “acaba sempre fazendo uma releitura dos fatos que, para serem transmitidos, sofrem uma interpretação de acordo com determinados pontos de vista, dentro de certo espaço e de acordo com a visão do tempo em que vive.” (ESTEVES, 1998, p. 125) Antes da Revolução Francesa, como lembra Hayden White (2001, p. 139), “a historiografia era considerada convencionalmente uma arte literária”. Nesse período, a Literatura e a História andavam de braços dados e houve um tempo em que o discurso literário e o discurso histórico até se misturavam. (ESTEVES, 1998, p. 125) Mas no século XIX, em sua ânsia desmitificadora e sua sede da verdade (sinônimo de ciência), foi banido dos estudos da História o recurso às técnicas ficcionais de representação. A História passou a ser a representação do real e a Literatura como a representação do possível ou apenas do imaginário. A maioria dos historiadores do século XIX não compreendiam que, quando se trata de lidar com fatos passados, a consideração básica para aquele que tenta representá-los fielmente são as noções que ele leva às suas representações das maneiras pelas quais as partes se relacionam com o todo que elas abrangem. Não compreendiam que os fatos não falam por si mesmo, mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado num todo cuja integridade é – na sua representação – puramente discursiva. Os romancistas podiam lidar apenas com eventos imaginários enquanto os historiadores se ocupavam dos reais, mas o processo de fundir os eventos, fossem imaginários ou reais, numa totalidade compreensível capaz de servir de objeto de uma representação é um processo poético. (WHITE, 2001, p. 141) Para o historiador, segundo Pesavento (1998), a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta, ou seja, a leitura da 119 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 literatura pela história não se faz de maneira rigorosa, e o que nela se resgata é a representação do mundo que comporta a forma narrativa. Sem dúvida, é a história que articula uma fala autorizada sobre o passado, recriando a memória social através de um processo de seleção e exclusões, onde se joga com as valorações da positividade e do rechaço. Há, pois, um componente manifesto de ficcionalidade no discurso histórico, assim como, da parte da narrativa literária, constata-se o empenho de dar veracidade à ficção literária. Naturalmente, não é a intenção do texto literário provar que os fatos narrados tenham acontecido concretamente, mas a narrativa comporta em si uma explicação do real e traduz uma sensibilidade diante do mundo, recuperada pelo autor. (PESAVENTO, 1998, p. 22) Entender o processo de criação artística é, antes de tudo, procurar compreender o contexto histórico em que determinada obra foi produzida. Importa salientar que a literatura é, antes de tudo, a representação da realidade observada. Assim, recorrer à história torna-se ferramenta imprescindível para uma visão mais próxima do universo literário. Para o crítico alemão Walter Benjamin, é importante observar que: [...] o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. “A verdade nunca nos escapará” – [...] pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. [...] Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (BENJAMIN, 1994, p. 224) Para o historiador estadunidense Hayden White (2001), os leitores de textos históricos e de textos literários (romances, poesias e dramaturgias) dificilmente deixam de se surpreender com as semelhanças entre eles: existem diversas histórias que poderiam passar por romances e muitos romances que poderiam passar por histórias. Dessa maneira, a visão do escritor de um romance, por exemplo, deve ser o mesmo que o do escritor de uma história, pois ambos desejam oferecer uma imagem verbal da realidade. Estudar as relações entre literatura e história não significa apenas buscar o reflexo de uma na outra. Mais do que a imagem, a literatura seria antes o imaginário da história. De acordo com Freitas (1989), se literatura e história não são independentes uma da outra, elas tampouco são ligadas por uma relação mecânica de causa e efeito. Não é a história encarada como fatalidade imposta à obra pela realidade exterior a ela que desperta examinar, mas sim a história que lhe é imanente, inclusa na sua dinâmica interna, e que, ao mesmo tempo, se elabora por meio dela. A presença da história na obra – e não a influência da história sobre ela –, é o que deve guiar o estudo fecundo das relações entre literatura e história. Com essa nova visão, esse trabalho visa analisar a obra Liberdade, liberdade, dos escritores brasileiros Millôr Fernandes e Flávio Rangel. A escolha desse tema decorreu do 120 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 interesse em estudar uma obra que questionava o esquema repressor que dominava o Brasil. Com esse estudo, pretende-se resgatar o modo como, através do tempo, em lugares e momentos diferentes, os homens foram capazes de perceber a si próprios e ao mundo, construindo um sistema de ideias e imagens de representação coletiva e se atribuindo uma identidade. Romance histórico: um breve resumo O surgimento do romance histórico, conforme apresenta o professor brasileiro Antonio Roberto Esteves (1998), é atribuído ao escritor Sr. Walter Scott, com as obras Waverley (1814) e Ivanhoe (1819). Após a publicação de Ivanhoe, ocorreu uma verdadeira febre de romances históricos, que se espalhou por toda a Europa até chegar a América. Segundo Scott, para a obra ser considerada um romance histórico, teria de obedecer a dois princípios básicos, sendo: 1- a ação do romance ocorresse num passado anterior ao presente do escritor, com pano de fundo um ambiente histórico rigorosamente construído e; 2- as personagens não existiram na realidade, mas poderiam ter existido, pois sua criação deveria obedecer a estrita regra de verossimilhança. Com o passar do tempo, o romance histórico começou a sofrer diversas modificações, tanto em suas características, como também em sua nomenclatura. Márquez Rodrigues apresenta duas condições básicas para a existência do romance histórico: 1- que se trate realmente de romance (ficção, invenção); 2- que se fundamente em fatos históricos reais (e não inventados). Já professor Seymor Menton faz uma breve resenha do surgimento de um novo subgênero de romance histórico: O Novo Romance Histórico Latino-Americano. O uruguaio Fernando Ainsa, em La nueva novela latinoamericana (artigo publicado em 1991), apresenta uma lista de dez características que podem ser observadas nos romances históricos hispano-americanos publicados recentemente. Em outros termos, Seymor Menton, no seu livro La nueva novela histórica de la América Latina, 1979-1992, reduz a seis as características que marcam as diferenças entre o novo romance histórico e o tradicional. O grau de afastamento do Novo Romance Histórico com relação ao romance histórico tradicional é variável, sendo as características citadas meramente indicadoras. Além dessas características, o novo romance histórico latino-americano diferencia-se do tradicional pela maior variedade. Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Alejo Carpentier e Carlos Fuentes escreveram excelentes romances históricos. Novos escritores praticamente estrearam com romances históricos, como Roa Bastos, Abel Posse, Antonio Benítez Rojo, Baccino Ponce de León, Reinaldo Arenas, entre outros. Seymour Menton, apesar de concentrar seu enfoque nas publicações hispano-americanas, não exclui o Brasil do Novo Romance Histórico: Galvez, imperador do Acre (1976), Mad Maria (1978) e O brasileiro voador (1986), de Mácio Souza; Em liberdade (1981), de Silviano Santiago; Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro; A casca da serpente (1989), de José J. Veiga e Memorial do fim (A morte de Machado de Assis), de Haroldo Maranhão (1991). 121 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 No Brasil, há também profissionais que se dedicam aos estudos de romance histórico, como Antonio Roberto Esteves, Maria Teresa de Freitas, Marilene Weinhardt, entre outros. Seus artigos publicados trazem diversas discussões produtivas e esclarecedoras sobre o assunto. Em cena, o drama didático-histórico A peça Liberdade, liberdade reúne textos de diferentes estilos e épocas da literatura universal dedicados ao tema da liberdade, além de diversos musicais. A obra lançou no Brasil a ideia de um espetáculo teatral baseado na escolha de textos com representatividade histórica. Mesmo pertencente ao gênero dramático, Liberdade, liberdade não deixa de ser considerado um romance histórico, devido as suas aproximações às principais características citadas por Márquez Rodrigues, Seymour Menton e Fernando Ainsa. Os estudos realizados pelos brasileiros Antonio Roberto Esteves, Maria Tereza de Freitas e Marilene Weinhardt também contribuem para classificação da obra como romance histórico. Sem contar os textos dos historiadores Hayden White e Peter Burke que colaboram para a classificação. Uma das preocupações desse trabalho é a utilização da teoria do romance histórico para análise da obra Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. A palavra “preocupação” é citada, pois o livro mencionado não é classificado, segundo os estudos literários, como um texto narrativo, ou seja, um romance. Liberdade, liberdade, obra escrita em 1965 (início da ditadura militar brasileira) é um texto dramático. Para melhor efeito, a sugestão mais sensata é a realização de um exercício comparativo, ou seja, efetuar a transposição do modelo de romance histórico à obra Liberdade, liberdade, com o intuito de inclusão dessa obra em um modelo possível de “drama histórico” (ou melhor, ainda, de “drama didático-histórico”). A preocupação da escolha do vocábulo “drama” ao invés de “teatro” ocorre, pois, segundo Sábato Magaldi (2008, p. 7) o teatro abrange ao menos duas acepções: “o imóvel em que se realizam espetáculos e uma arte específica, transmitida ao público por intermédio do ator”. Para Patrice Pavis (2007, p. 372), o teatro “é o local de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num outro lugar”. Dessa maneira, o termo “teatro” é sinônimo de representação, portanto, não é de interesse nesse estudo. Já a dramaturgia (do grego dramaturgia, compor um drama), de acordo com Littré, é a arte da composição de peças de teatro. “A dramaturgia, no seu sentido mais genérico, é a técnica (ou a poética) da arte dramática, que procura estabelecer os princípios de construção da obra [...]” (PAVIS, 2007, p. 113). A dramaturgia “seria a arte de compor dramas, peças teatrais”. A arte seria, naturalmente, uma técnica, pois técné = arte. (PALLOTTINI, 2006, p. 13). Nesse caso, o vocábulo “drama” é aceito, pois o objeto de estudo é o texto escrito e não a sua representação realizada em um teatro ou outro local. A obra Liberdade, liberdade possui como pano de fundo o resumo dos acontecimentos históricos ao longo do sofrimento da sociedade brasileira e mundial. A história é matéria 122 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 orgânica para construção de sentido e, seguindo essa linha de pensamento, a classificação da obra em drama didático-histórico ao invés de drama histórico é mais lógica, pois o livro é uma peça que traz uma retrospectiva dos fatos mais marcantes da história em busca da liberdade humana, por meio das citações de textos históricos. Além disso, os autores tiveram a preocupação em anexar, na obra, notas de rodapé; provavelmente, com a finalidade de instigar o seu leitor a uma possível consulta, pois, sem o conhecimento prévio do fato histórico apresentado, ele realizará uma pesquisa sobre a ocorrência apresentada e conhecerá melhor o assunto abordado. Assim, a obra não estaria apenas na função de informá-lo sobre os acontecimentos passados ocorridos em seu país e no mundo, mas também de ensiná-lo a instruir a pesquisa. Consequentemente é sugerida a expressão drama didático-histórico, pois o morfema didático, conforme Houaiss e Villar (2001, p. 1036), é “destinado a instruir; que facilita a aprendizagem; que proporciona instrução”. A obra, nesse caso, seria o professor instruindo e informando os seus leitores sobre os acontecimentos históricos regionais e mundiais, além de provocar a reflexão crítica. Características do drama didático-histórico Como dito anteriormente, o surgimento da expressão drama didático-histórico ocorre da realização do exercício comparativo entre o modelo de romance histórico à peça Liberdade, liberdade. Essa transposição é lógica, pois tornaria inviável o uso da teoria de Seymour Menton ou de Fernando Ainsa para análise de um texto dramático. Desse modo, apoiando-se nos textos Trópicos do discurso (2001), de Hayden White, “Considerações sobre o romance histórico” (1994), de Marilene Winhardt, “Romance e História” (1989), de Maria Teresa de Freitas e “O novo romance histórico brasileiro” (1998), de Antonio Roberto Esteves (além das citações de Seymour Mentor, Fernando Ainsa e Márquez Rodrigues, no texto de Esteves), é proposto, a seguir, as seguintes características básicas do drama didático: 1 – o livro analisado trata-se realmente de um texto dramático; 2 – o(s) acontecimento(s) citado(s) na obra seja(m), realmente, fatos históricos reais; 3 – o livro apresenta uma releitura crítica da história; 4 – a ficcionalização das personagens históricas sejam conhecidas; 5 – o uso corrente da bricolagem (colagem de textos históricos) ou da intertextualidade na peça; 6 – a presença de comentários do dramaturgo (nas notas de rodapé e/ou nas didascálias) sobre o processo de criação do texto; 7 – a peça tenha o intuito de ensinar e instruir o seu leitor. O drama didático-histórico em Liberdade, liberdade 123 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Citadas as características básicas do drama didático-histórico, segue-se a análise da obra Liberdade, liberdade, escrita por Millôr Fernandes e Flávio Rangel: 1 – o livro analisado trata-se realmente de um texto dramático: A professora Anne Ubersfeld (2005) afirma que o texto de teatro é composto de duas partes distintas, mas indissociáveis: o diálogo e as didascálias (ou indicações cênicas ou direção de cena). Uma peça é uma série de ações. Uma peça não trata da ação e nem descreve a ação. [...] Na análise de texto, a ação é uma entidade muito especial. A ação ocorre, quando acontece algo que faz com que, ou permite que, uma outra coisa aconteça. A ação são “duas coisas acontecendo”; uma conduzindo à outra. Alguma coisa causa a ação ou permite que outra coisa aconteça. (BALL, 2009, p. 23-24) O crítico Sábato Magaldi (2008) lembra que durante a análise do fenômeno teatral costuma-se conceder prioridade ao texto. Até os encenadores e intérpretes mais bem-sucedidos reverenciam o dramaturgo – fonte de sua atividade. Sem a obra dramática não há teatro e a existência de uma peça marca o início da preparação do espetáculo. Magaldi recorda também desta bela fórmula encontrada por Baty (1885-1952) para exprimir a precedência do elemento literário: O texto é a parte essencial do drama. Ele é para o drama o que o caroço é para o fruto, o centro sólido em torno do qual vêm ordenar-se os outros elementos. E do mesmo modo que, saboreado o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros frutos semelhantes, o texto, quando desapareceram os prestígios da representação, espera numa biblioteca ressuscitá-los algum dia. (MAGALDI, 2008, p. 15) Segundo o teórico francês Jean-Jacques Roubine (2003), os diretores teatrais Copeau, Baty, Pitoëff, Dullin, Jouvet, Barrault e Vilar – que pertencem a gerações diferentes e fazem escolhas estéticas diversas – afirmam que há um vínculo fundamental e criativo entre representação e texto de teatro. Dessa maneira, pode-se afirmar que o texto Liberdade, liberdade é uma peça escrita em 1965 pelo dramaturgo Millôr Fernandes e pelo diretor teatral Flávio Rangel. 2 – os acontecimentos citados na obra sejam, realmente, fatos históricos reais: A obra apresenta desde o julgamento de Sócrates até a condenação a trabalhados forçados de um poeta soviético desempregado. Abaixo, segue a canção Leilão, de Joracy Camargo e Heckel Tavares (foram utilizados apenas os primeiros e os últimos versos) e a transcrição de 124 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Nobiliárquica Paulistana, numa antologia organizada por Edison Carneiro (que publica o documento na íntegra): NARA: Naquele tempo, num lugar todo enfeitado, nós ficava amuntuado pra espera os compradô... No mesmo dia Em que levaram minha preta, Me botaro nas grilheta Que é pra mode eu não fugi... (Ela procede cantarolando, enquanto a luz geral da cena se acende.) TEREZA: A canção de Heckel Tavares e Joracy Camargo revela com exatidão as condições de vida dos escravos no Brasil no século XVIII. VIANNA: Qualquer tentativa de libertação dos negros era castigada com crueldade inimaginável. Em 1751, regressando de uma expedição contra índios e escravos fugidos, Bartolomeu Bueno do Prado voltou trazendo consigo 3.900 pares de orelhas de negros que destruiu. (FERNANDES; RANGEL, 2006, p. 61-62) 3 – o livro apresenta uma releitura crítica da história: Os discursos presentes na peça são todos referentes ao tema de liberdade e, desse modo, fazem que todos os seus leitores reflitam sobre como sobreviver num território sem direitos de expressão e pensamento, sendo predominada apenas a hegemonia. 4 – a ficcionalização das personagens históricas sejam conhecidas: No teatro, segundo o crítico Décio de Almeida Prado (1987), as personagens constituem praticamente a totalidade da obra, ou seja, nada existe a não ser por meio delas. Tanto o romance como o teatro falam do homem, porém o teatro o faz pelo próprio homem, da presença viva e carnal do ator. Deve-se pensar que teatro é ação e romance narração; portanto, a personagem teatral, para dirigir-se ao público, não precisa da mediação do narrador. A história no teatro não é contada, mas mostrada como se fosse de fato a própria realidade. Ora, quem conduz a ação, produz o conflito, exercita a sua vontade, mostra os seus sentimentos, sofre por suas paixões, torna-se ridículo na comédia, patético na tragédia, ri, chora, vence ou morre, é o personagem. O personagem é um determinante da ação, que é, portanto, um resultado de sua existência e da forma como ela se apresenta. O 125 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 personagem é o ser humano (ou um ser humano, antropomorfizado) recriado na cena por um artista-autor, e por um artista-ator. (PALLOTTINI, 1989, p. 11) Na peça Liberdade, liberdade, os autores não trouxeram apenas as personagens consideradas, em seu momento histórico, heróis (como Abraão Lincoln, Osório Duque Estrada, John Kennedy, Iuri Gagarin) e anti-heróis (Benito Mussolini, Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler), mas também consideradas heróis fracassados (Anne Frank e Tiradentes): Escurecimento (Assim que se apaga o foco de luz, começa um rufo forte de bateria. O rufo diminuirá quando os atores começarem a falar, e cada um deles falará com um foco de luz sobre si. As frases devem ser ditas com veemência.) VIANNA: Voltaire: Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-las! TEREZA: Mme. Roland, guilhotinada pela Revolução Francesa: Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome! PAULO: Abraão Lincoln: Pode-se enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se enganar todas as pessoas algum tempo; mas não se pode enganar todas as pessoas todo o tempo! VIANNA: Benito Mussolini: Acabamos de enterrar o cadáver pútrido da liberdade! TEREZA: Danton: Audácia, mais audácia, sempre audácia! PAULO: Barry Goldwater: A questão do Vietnã pode ser resolvida com uma bomba atômica! VIANNA: Napoleão Bonaparte: A França precisa mais de mim do que eu da França! TEREZA: Osório Duque Estrada: E o sol da liberdade em raios fúlgidos, brilhou no céu da Pátria nesse instante! PAULO: Aristóteles: As tiranias são os mais frágeis governos! VIANNA: Moisés: Olho por olho, dente por dente! TEREZA: Luiz XIV: O Estado sou eu! PAULO: Frederico Garcia Lorca: Verde que te quiero verde! VIANNA: Adolf Hitler: Instalaremos Tribunais Nazistas e cabeças rolarão! 126 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 TEREZA: Anne Frank, menina judia assassinada pelos nazistas: Apesar de tudo eu ainda creio na bondade humana! PAULO: John Fitzgerald Kennedy: Não pergunteis o que o país pode fazer por vós, mas sim o que o podeis fazer pelo país! VIANNA: Bernard Shaw: Há quem morra chorando pelo pobre: eu morrerei denunciando a pobreza! TEREZA: Iuri Gagarin: A Terra é azul! PAULO: Tiradentes: Cumpri minha palavra: Morro pela liberdade! VIANNA: Artigo 141 da Constituição Brasileira: É livre a manifestação de pensamento! TEREZA: Castro Alves: Auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança! PAULO: Winston Churchill: Se Hitler invadisse o Inferno, eu apoiaria o demônio! (FERNANDES; RANGEL, 2006, p. 23-26) Pode ser observada na obra a presença dos nomes dos atores que encenaram a peça Liberdade, liberdade pela primeira vez no ano de 1965: segundo Ryngaert (1995), os nomes das personagens são uma indicação importante, a ponto de alguns autores as privarem de nomes, certamente para não ficarem muito marcadas socialmente e para que a ênfase se coloque no que elas dizem. Como o espetáculo traz um panorama sobre a ideia de liberdade na arte, na cultura e na política, os nomes são os mesmos, pois todos os atores lutavam e acreditavam, juntos com os autores Fernandes e Rangel, no mesmo ideal: FLÁVIO RANGEL - Eu não sabia direito o que é que ia fazer, mas eu achava que o teatro brasileiro, de alguma maneira, devia responder àquela violência inaudita que tinha sido o Golpe de 64. Eu achava que era preciso uma resposta no teatro também, como estava começando a acontecer na imprensa, com aqueles artigos ótimos do Carlos Heitor Cony, do Marcito Moreira Alves e também aquelas coisas que o Sérgio Porto fazia. [...] Achei que era essencial para um espetáculo desses que houvesse humor. Convidei então o Millôr Fernandes para escrever comigo o espetáculo. [...] E aí a gente dividiu o trabalho e foi roteirizando antes de mais nada. E colhendo material. [...] PAULO AUTRAN – O Flávio escreveu a peça e me disse: “Paulo, eu estou escrevendo pra você. Pra gente fazer juntos”. E eu li a peça e enlouqueci. O Brasil entrando naquela ditadura terrível, achei que era o momento da gente dizer alguma coisa mesmo. (SIQUEIRA, 1995, p.153-155) 127 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 5 – o uso corrente da bricolagem (colagem de textos históricos) na peça: Em Liberdade, liberdade encontra-se a montagem de frases de Winston Churchill, tiradas de seus mais famosos discursos: (Inversão do foco de luz de Nara e Coro para Vianna.) VIANNA: No começo de 1941, um único obstáculo se interpunha entre Hitler e seu sonho de domínio europeu: o povo inglês e Winston Churchill. (Inversão do foco de luz de Vianna para Paulo. Um forte rufo de tambor. Paulo faz uma pausa e diz.) PAULO: (Só com um rufo de tambor ao fundo.) “Se Hitler invadisse o Inferno, eu apoiaria o Demônio. Cumpramos nosso dever, certos de que se nosso país existir por mais mil anos, os homens ainda dirão: – “Aquele foi seu instante mais belo”. Nunca, no campo dos conflitos humanos, tantos deveram tanto a tão poucos. Por ora, só posso oferecer-vos sangue, trabalho, suor e lágrimas mas iremos até o fim: Combateremos na França, combateremos nas praias, nas colinas, nas montanhas, nos campos e nas ruas: nunca nos renderemos!” . (FERNANDES; RANGEL, 2006, p. 105-106) 6 – a presença de comentários do dramaturgo (nas notas de rodapé e/ou nas didascálias) sobre o processo de criação do texto: (Mudança de luz para Tereza.) TEREZA: (Com o fundo de Deutschland Ubber Alles) – Os nazistas assassinaram cinco milhões e setecentos mil judeus no maior genocídio da história. Uma menina judia viveu escondida com sua família durante dois anos num sótão de Amsterdan, Holanda. Chamava-se Anne Frank. Em seu diário, ela relata numa noite de Ano Bom: CORO: (Canta o Hannukah. Um tempo.)28 PAULO: Abençoado sejais, Oh, Senhor Nosso Deus, por nos terdes preservado a vida, permitindo-nos assim comemorar esta festa de alegria. Graças vos damos, Oh Deus Nosso Senhor, porque em vossa infinita misericórdia quiseste salvar-nos uma vez mais. (O Coro prossegue com o Hannukah.) – Anne, pode conversar com Peter. Mas quando bater nove horas, vá dormir. (Muda a luz. Favorecimento de Vianna e Nara.) NARA: Sim, papai. (Chega perto de Vianna.) – Peter, sabe o que a Sara Van Duan disse? Que eu não devia vir no teu quarto; que no tempo dela as moças não andavam atrás dos rapazes. (Uma pausa. Ele a olha, ela se senta perto dele.) – Você gosta de minha irmã, não é? Você gostou dela assim que a conheceu. De mim, não. 128 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 VIANNA: Não sei. NARA: Não faz mal. Ela tem bom gênio, é alegre, é bonita. Eu não. VIANNA: Ora, não é isso. [...] TEREZA: Alguns dias depois, os nazistas descobriram o refúgio da família Frank; foram presos, e Anne foi assassinada no campo de concentração de Belsen. Seu diário foi encontrado. Terminava assim: (Inverte-se novamente o foco de luz enquanto se ouvem as vozes de Vianna e Nara gravados.) NARA: (Off) Não somos os únicos que sofrem; ora um povo, ora outro... VIANNA: (Off) Isso não me consola. NARA: (Off) Eu sei como é difícil se acreditar em alguma coisa quando há tanta gente ruim; mas acho que o mundo está passando por uma fase. Passará; daqui a séculos, talvez, mas passará. Apesar de tudo, ainda acredito na bondade humana. _______________ 28. Cena traduzida e montada pelos autores do Diário, de Anne Frank e da peça teatral sobre o tema de Francis Goodrich e Albert Hackett. (FERNANDES; RANGEL, 2006, p. 105-111) 7 – a peça tenha o intuito de ensinar e instruir o seu leitor: Com o fim da leitura do livro, o leitor perceberá que a obra colaborou e muito no seu processo de aprendizagem, pois além de diversão, o teatro e a dramaturgia são sinônimos de ensinamento. Considerações finais No romance histórico (e também no drama didático-histórico), o passado, mesmo repleto de terrores, é vivido como uma aventura já consumada e inofensiva. A trama, por mais conflituosa ou trágica que seja, é vivida com a segurança de que tudo retornará ao plano do sublime ou racional em qualquer momento. A viagem, como lembra Pessotti (1994), é como se fosse uma ida ao sótão dos avós, onde se pode reviver pessoas, diálogos e episódios, mesmo 129 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 dramáticos, com a segurança de que, fechada a porta (nesse caso, fechado o livro), os dramas, os conflitos, as glórias e os temores se cessam. Não parece casual que o professor Antonio Roberto Esteves encerrou seu artigo recente “O romance histórico brasileiro no fim do século XX: quatro leituras”, retomando a famosa referência de Walter Benjamin sobre o quadro Angelus Novus, de Klee. O quadro representa um anjo que parece querer-se afastar de algo que ele encara fixamente e os seus olhos estão escancarados, a sua boca dilatada e as suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto assustado: Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. (BENJAMIN, 1994, p. 226) O romance histórico e o drama didático-histórico possuem a mesma finalidade: analisar os livros ditos históricos, com a intenção de retornar a um passado já sublimado e racionalizado e trazer para o presente as emoções e as ansiedades vivenciadas por meio das palavras. Essa viagem segura e rica de informações, faz com que os leitores enriqueçam os seus conhecimentos e conheçam fatos notáveis ocorridos na vida de seu povo, em particular, e na vida da humanidade, em geral. FILIGREES OF HISTORY IN THE LITERARY DISCOURSE: THE DIDACTIC-HISTORICAL DRAMA IN LIBERDADE, LIBERDADE, BY MILLÔR FERNANDES AND FLÁVIO RANGEL ABSTRACT: Based on the contribuions from Magaldi (2008); Ryngaert (1995); Ubersfeld (2005); Pallotini (2006) and Faria (1998), refering to the constitution of the theatrical discourse, and the theoretical presupposes of Esteves (1998); White (2001), Freitas (1989) and Pesavento (1998) to the relations established between Literature and History, this paper aims to analyze the play Liberdade, liberdade (1965), by Millôr Fernandes and Flávio Rangel reflecting on the Brazilian dictatorship period (1964-1985). The choice of the theme was due to the interest in studying a literary work that is characterized by making a critical rereading of history. To carry out this research, we used a comparative exercise of the historical novel model to the play Liberdade, liberdade, in which even belonging to the dramatic gender the work can be considered a historical novel. This transposition is logical, because it wouldn’t make possible to use the theory by Mento and Ainsa for the analysis of the dramatic text. In this way, emerges the didactic-historical drama expression, because the play not only informs its reader of past events that occurred in Brazil and abroad, but also teaches and instructs on the regional and global historical events, and provoke the reader to the critical reflection. KEYWORDS: Literature and History. Theatre of resistance. Didactic-historical drama. 130 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 REFERÊNCIAS: BALL, D. 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Propõe-se analisar algumas de suas obras, começando com Dois Perdidos numa noite suja, navalha na carne, Abajur lilás, mancha rocha e duas peças infantis, O coelho e a onça e a peça Assembléia dos Ratos, mostrando que apesar de ambientes diferentes, e personagens “distintos” seu projeto estético permaneceu de certa forma inalterado. Ao escrever uma peça infantil, Plínio Marcos utilizou simbolicamente animais de nosso folclore, para retratar personagens do poder político do ano de 1989, ano este um marco para a política, inicio das eleições diretas e da democracia. Porém com essa peça poderemos observar a crítica a esse poder e ao capitalismo selvagem. Para análise da teatralidade de Plínio Marcos, este trabalho estará ancorado nas contribuições de Prado (1972), Palottini (1989), Ryngaert (1996), Pavis (1999) Magaldi (1998 e 2004) e Ubersfeld (2005) e nos estudos de Cirlot (1984), Chevalier e Gueerbrant (1991) no que se refere à estruturação simbólica contida na peça e nos estudos de Margato e Gomes (2004) e Said (2005) no que tange ao papel do intelectual diante da sociedade. Palavras-chave: Autenticidade. Homossexualidade. Violência. Marginalidade. Prostituição. O teatro brasileiro Segundo Magaldi (2004), as primeiras manifestações teatrais no Brasil foram iniciadas pelos Jesuítas, por interesses religiosos, no século XVI. Anchieta escreveu muitas peças sob influência ideológica do século XIII e XIV, além de autos vicentinos. Um vazio de produção artística ocorreu do século XVII até a metade do século XVIII, como resultado do envolvimento do país com a colonização e batalhas por território. Na segunda metade do século XVIII, tem-se notícia da instalação, em muitas cidades, de um teatro regular, eram as chamadas “Casas de Ópera” - edificações criadas para representações. Cabe-nos considerar essa inovação um progresso essencial da atividade cênica, sobretudo porque os prédios teatrais foram utilizados por elencos mais ou menos fixos, com certa constância no trabalho. Porém, sob o prisma da 1 Mestranda do Programa de Pós-Gradução em Letras – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Três Lagoas – E-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Três Lagoas – E-mail: [email protected] 133 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 dramaturgia, persiste o vazio, porque só o que chegou aos tempos atuais foi o texto de O Parnaso Obsequioso, do poeta Cláudio Manuel da Costa. Além deste, as óperas de Antonio José da Silva podem ser incorporadas à literatura dramática brasileira, por ter este autor nascido no Rio de Janeiro, apesar de toda sua obra e vida, estar ligada, de fato a Portugal e ao Teatro Português. O teatro se firma com a Independência política brasileira. Em 1838, Gonçalves de Magalhães foi um elo entre a escola antiga, neoclássica e o romantismo, fazendo as peças Antônio José, realizada pela Cia João Caetano. No mesmo ano, Martins Pena, com o Juiz de Paz na Roça, marcou a primeira metade do século XIX. O tema cotidiano e o sentimento nacional caminham para a individualidade brasileira, que influenciaram todos da dramaturgia subseqüente. Joaquim Manuel de Macedo escreveu farsas baseadas na Comédia Nova (Plauto), algumas são as melhores existentes no séc XIX. Neste mesmo século, tivemos no teatro outros romancistas como José de Alencar e Machado de Assis, que foi o maior crítico do referido século. França Junior. foi a continuação de Martins Pena, enquanto Artur Azevedo, segundo Magaldi (2004, p.153), não era o maior dramaturgo, mas a maior figura de teatro brasileiro. Coelho Neto iniciou com dramalhões e melodramas, mas o sucesso que teve deu-se com suas comédias, fundadas também em Azevedo e Pena. Os autores do fim do século XIX e início do século XX foram Goulart de Andrade, João do Rio (Paulo Barreto), Roberto Gomes e Paulo Gonçalves, com obras que vão do sentimentalismo ao gosto impressionista. A Primeira Guerra Mundial (1914- 1918) afastou o Brasil das companhias européias, forçando uma produção autônoma. Surgiram outros autores como Cláudio de Souza e Gastão Tojeiro. Apesar de o teatro não ter participado representativamente da Semana de 22, a força das outras artes contribuíram posteriormente para o desenvolvimento do teatro. O teatro contemporâneo foi iniciado com o aparecimento do grupo Os Comediantes, no Rio de Janeiro; a eles foi dada a tarefa de reforma estética do espetáculo: [...] em meio a crises financeiras, fases de alento e de desanimo: todas as peças devem ser transformadas em grande espetáculo. Modificando o panorama brasileiro em que o interprete principal assegurava o prestígio popular da apresentação, independentemente do texto, do resto do elenco e dos acessórios Os comediantes transferiram para o encenador o papel de vedeta.(MAGALDI, 2004, p. .207). Essa mudança veio com o mestre de iluminação, o polonês Ziembinski, que preencheu o papel que se reclamava, o de coordenador do espetáculo, “Sob sua orientação entrosaram-se vários elementos de montagem. O ator de nome cedeu lugar à preocupação da equipe. Os cenários e os figurinos que antes eram descuidados e sem gosto artístico, passaram a ser concebidos de acordo com as linhas da revolução modernista [...] marcação e os efeitos de luz”.(MAGALDI, 2004, p. 208). O modernismo no palco ocorreu efetivamente com a montagem da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, seguindo-se outras peças. Os problemas e as relações familiares são 134 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 expostas de formas originais e concentradas, dando força às peças. O comum ganha harmonia como técnica [...] A fragmentação das cenas leva não a uma unidade rotineira mas a uma arquitetura superior, em que as linhas audaciosas se fundem numa ultima harmonia poética. Aproxima-se, Vestido de Noiva, por isso, da técnica expressionista, na qual os diálogos são sincopados, telegráficos, situando os sentimentos e as emoções já no limite da maior tensão. (MAGALDI, 2004, p. 220). Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, com A moratória, Ariano Suassuna, com a peça O Auto da Compadecida, o texto mais popular desta fase, e Gianfrancesco Guarnieri com a peça Eles não usam black –tie, no Teatro Arena de São Paulo, são os representantes do moderno teatro brasileiro e fonte de trabalhos posteriores. Na modernidade, a peça Vestido de Noiva, com encenação de Ziembinski trouxe revoluções imediatas, enquanto o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), em 1948, proporcionou o concurso dos diretores europeus, profissionais que assumiram muitos grupos brasileiros, provocando a mudança de hegemonia de encenadores em detrimento de autores. Em 1958, Guarnieri inverteu o quadro, com suas peças, porém o golpe de 1964 freou este desenvolvimento. As peças passaram a ter uma linguagem metafórica para driblar a censura, e, com o fim da ditadura, houve um novo vazio de produção cultural, pela inutilidade que tinha agora, a linguagem anterior (metafórica). “Foi necessário um tempo para uma readequação da situação do Brasil” (MAGALDI, 2004, p. 222). Na década de 50 surgiram dramaturgos como: Silveira Sampaio, Guilherme Figueiredo, Raimundo Magalhães Jr., Pedro Bloch. Pela falta de dramaturgos, literatos em geral arriscavam escrever teatro, como Rachel de Queiroz e Lúcio Cardoso. Nos anos 60, despontaram autores como Dias Gomes, Augusto Boal, Millôr Fernandes, Agostinho Olavo, Oduvaldo Viana Filho e Edy Lima. Um momento histórico que didaticamente marca o início do teatro contemporâneo no Brasil foi a estréia de Macunaíma, com montagem de Antunes Filho. Neste momento, o encenador ganhou nova força, sendo o criador do espetáculo, mudando textos teatrais, juntando autores ou obras, adaptando romances ou contos, em busca de uma criação integral. Antunes Filho adaptou Macunaíma, romance de Mário de Andrade, seguida de outras obras no mesmo estilo. Ulisses Cruz foi outro encenador que optou por trabalhar com imagens (recurso já desenvolvido por Gerald Thomas). Outros encenadores importantes partiram da EAD (Escola de Artes Dramáticas), como José Possi Neto, Luiz Roberto Galizia, William Pereira, Cacá Rosset, Antônio Araújo, Augusto Boal, e outros. Com isso, muitos autores foram para outros meios de comunicação, como a televisão, entre eles Maria Adelaide Amaral, Dias Gomes e Lauro César Muniz. Com todos esses artistas, tanto dramaturgos quanto atores, diretos e encenadores, o teatro modificou-se, desde os seus primórdios no Brasil. Vemos como a comédia deu-se com maior ênfase em grande parte do tempo, como o drama e a tragédia consolidaram-se fortemente no modernismo e como a diversidade tomou conta do contemporâneo. 135 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O Autor/Ator Plínio Marcos Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos (SP) a 29 de setembro de 1935 e morreu em São Paulo a 19 de novembro de 1999. Depois de tentar tornar-se jogador de futebol e de trabalhar como palhaço de circo por cinco anos, escreveu, aos 22 anos, sua primeira peça, Barrela, a qual chegou às mãos de Patrícia Galvão (Pagú) que ficou entusiasmada ao lê-la. A partir daí e com a ajuda de Pagú, o autor integrou o elenco de companhias amadoras de teatro. Depois, transferiu-se para São Paulo, no início da década de 60, onde participou da criação do Centro Popular de Cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes) Em 1960, com 25 anos, foi para São Paulo, onde inicialmente trabalhou como camelô. Depois, trabalhou em teatro, como ator (apareceu no seriado Falcão Negro, da TV Tupi de São Paulo), administrador e “faz-tudo”, em grupos como o Arena, a companhia de Cacilda Becker e o teatro de Nydia Lícia. A partir de 1963, produziu textos para a TV de Vanguarda, programa da TV Tupi, onde também atuou como técnico. No ano do golpe militar, fez o roteiro do espetáculo Nossa gente, nossa música. Em 1965, conseguiu encenar Reportagem de um tempo mau, colagem de textos de vários autores, e que ficou apenas um dia em cartaz. Em 1968, participou como ator da telenovela Beto Rockfeller, vivendo o cômico motorista Vitório. O personagem seria repetido no cinema e também na telenovela de 1973, A volta de Beto Rockfeller, com menor sucesso. Ainda nos anos 1970, Plínio Marcos voltaria a investir no teatro, chegado ele mesmo a vender os ingressos na entrada das casas de espetáculo. Ao fim da peça, como a de Jesus homem, ele subia ao palco e conversava pessoalmente com a plateia. Na década de 1980, época da censura, Plínio Marcos viveu sem fazer concessões, sendo intensamente produtivo e sempre norteado pela cultura popular. Escreveu nos jornais Última Hora, Diário da Noite, Guaru News, Folha de S. Paulo e Folha da Tarde e também na revista Veja, além de colaborar com diversas publicações, como Opinião, O Pasquim, Versus, Placar e outras. Depois do fim da censura, o autor continuou a escrever romances e peças de teatro, tanto adulto como infantil. Tornou-se palestrante, chegando a fazer 150 palestras-shows por ano, vestido de preto, portando um bastão encimado por uma cruz e com aura mística de leitor de tarô. Plínio Marcos, escritor polêmico, na contramão de uma sociedade voltada ao capitalismo selvagem, iniciou suas obras em pleno regime de exceção militar, o que ocasionou a sua prisão por mais de trinta vezes. Ocorre, todavia, que a perseguição da censura não o silenciou, pelo contrário, é exatamente neste contexto histórico que encontrou matéria-prima para a elaboração de seus trabalhos de maior fôlego, os quais revolucionaram o cenário da dramaturgia brasileira, pois “A indignação que o sustenta transmite a seu teatro um vigor de sinceridade inaudita” (MAGALDI, 2004, p. 307). Na época o que estampava o nome de Plínio Marcos era imediatamente censurado, o que lhe impedia não apenas o direito de exercer o livre uso de 136 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 expressão, mas lhe trazia problemas em vários empregos. O autor sempre afirmava que não estava aqui para agradar, uma vez que: Plínio Marcos irrompe a dramaturgia brasileira com uma verdade e uma violência que de súbito deslocam os valores sobre os quais repousavam nossas experiências realistas. Dois perdidos numa Noite Suja, já provocara esse impacto desnudando o comportamento de dois indivíduos que se dilaceram numa strindberguiana “luta de cérebros, até a destruição.” ( MAGALDI, 1998, p. 207) Com sua maturidade e com o fim da Ditadura, o autor continua a seguir seus princípios ideológicos, porém a sua dramaturgia diversificou. O processo de criação artística do dramaturgo passou por várias vertentes estéticas: de textos religiosos como a peça de Jesus homem, ao universo infantil como as peças Assembléia dos ratos (1989), As aventuras do coelho Gabriel (1965), O coelho e a onça (1988) que também recebeu o nome de Historias dos Bichos Brasileiros. Porém, importa destacar que o autor não perdeu de vista seu instinto artístico calcado em fontes, nem tampouco sua voz contestadora presente num estilo direto sem torneios Para reconhecer um texto de Plínio Marcos não e necessário ler mais de dois parágrafos. Sua linguagem e tão peculiar quanto seu teatro, e também quanto a sua vida. Nele, vida e obra jamais serão coisas distintas e possivelmente aqui que reside a contradição [...] Plínio optou por escrever sobre temas e personagens que estão a margem da sociedade. (MAIA, CONTRERAS e PINHEIRO, 2002.p. 30). Criação Literária Uma das peças mais famosas de Plínio Marcos foi Dois perdidos numa noite suja, tendo sido montada inúmeras vezes, tanto no Brasil como em outros países. Aspectos de analise crítica: analisando o enredo junto ao texto do escritor italiano Alberto Moravia, pode-se perceber que a peça aproxima-se por tratar do absurdo das relações humanas em situações alvitantes. Paco e Tonho são a base da pirâmide da sociedade. Se o par de sapatos “maneiros” representam o desejo de subir na escala social, a flauta e o revólver, citados por diversas vezes no texto também possuem representações simbólicas atenuantes. Quando Paco está falando com Tonho sobre os sapatos: Paco – Você arranhou meu sapato (molha o dedo na boca e passa no sapato). Meu pisante é legal pra chuchu. (Examina o sapato.) Você não acha bacana? (PLÍNIO MARCOS, 1979, p. 15) Analisando no viés do dicionário de símbolos de Cirlot (1984), o sapato representa o complexo de poder e pode simbolizar ainda a nossa relação com a sociedade, pelo fato de ser a parte do vestiário que toca no chão, mantendo contato com a realidade. 137 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A flauta possui simbologia importante, representando o desejo de ascensão. Basta analisar o trecho a seguir: Tonho – Tá pensando em quê? Paco – Se eu tivesse a minha flauta, me mandava agora mesmo. Não ia aturar nem mais um pouco. Você é chato paca. (PLÍNIO MARCOS, 1979, p. 46) Há ambiguidade em todo texto. A relação conflituosa entre Tonho e Paco remete-nos à análise do revólver, um dos símbolos citado demasiadamente na peça e sua simbologia: apresenta um aspecto sexual e representa um conflito erótico, o que nos levaria para uma análise mais profunda, buscando avaliar aspectos de homossexualidade na peça de Plínio Marcos. Parte desta ambiguidade pode ser encontrada no seguinte trecho, além da constante pirraça de Paco: Tonho – O negrão está legal comigo. Até tomamos umas pinguinhas juntos. Paco – Muito bonito pra sua cara. O sujeito te cafetina, você ainda paga bebida pra ele. Você é um otário. Deu a grana do peixe pro negrão. Quem trabalha pra homem é relógio de ponto ou bicha. Depois que você se arrancou, ele tirou um bom sarro às suas custas. Todo mundo se mijou de rir. (PLÍNIO MARCOS, 1979, p. 33) A marginalidade constante no texto é bem ilustrada logo na rubrica do segundo ato: (Pano abre, vão entrando Tonho e Paco. O primeiro traz um par de sapatos na mão. E, nos bolsos, as bugigangas roubadas. Está bastante nervoso. Paco traz um porrete na mão e está bastante alegre.) (PLÍNIO MARCOS, 1979, p. 67 grifos no original) “Tanto na estréia como hoje, Dois Perdidos impressiona pela autênticidade, pela ausência de concessão de qualquer tipo. Os protagonistas se engalfinham numa luta sem tréguas, deixando de lado considerações de convivência. São dois indivíduos em situação-limite, para os quais não tem sentido blefar. Por isso eles vão as últimas consquências, até a perda total. No desfecho, Paco está morto e Tonho fechou em defitivo todas as portas.”(MAGALDI 1998) O texto Navalha da Carne, retoma o mesmo procedimento de Dois perdidos numa noite suja, sondagem psicológica e ruptura brusca de um abscesso (tumor), para que a catarse traga o alivio no final. “A obra de Plínio Marcos ecoa como se fosse uma navalha na carne das pessoas que a leem (disse o crítico literário Anatol Rosenfeld- "Navalha na nossa carne"), mostrando toda a pobreza e podridão que existem no submundo da sociedade”. Plinio Marcos irrompe na dramaturgia brasielira com uma verdade e uma violência que de súbito deslocam os valores sobre os quais repousam nossas experiências realistas. Dois Perdidos numa Noite Suja já provocara esse impacto, desnudando o comportamento de dois individuos que se dilaceram numa strinberguiana “luta de cérebros”, até a destruiçao. Navalha na carne retoma o mesmo procedimento de sondagem psicológica e ruptura brusca de um abscesso, para que a cartase traga o alívio 138 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 final. […] a primeira impressão é a do documento – fatia de vida cortada ainda quente do cenário original, o flagrante íntimo surpreendido de um buraco de fechadura. (MAGALDI. 1998) Em Abajur lilás apresenta uma carga irresistível de emoção, as personagens agem compulsivamente, o choque entre as prostitutas, o homossexual cafetão e seu guarda costas começa de forma irônica e vai, ao longo da peça, assumindo proporções avassaladoras que vai da tortura ao assassinato. [...] ligam-se, em principio, aos de seus bons textos: a observação viva e inteligente da realidade, a linguagem autentica das criaturas retratadas, o dialogo vibrante, a escolha dos episódios representativos, a honesta indignação ante os erros sociais, pelos padrões de uma época absoluta, Plinio Marcos se define como verdadeiro moralista. ( MAGALDI, 1998, p.213) Plínio Marcos também se aventurou em escrever ao público infantil, escreveu no ano de 1965 a peça As aventuras do coelho gabriel, em 1988 O coelho e a onça que também recebeu o nome de Historias dos bichos brasileiros, na crítica de Clóvis Garcia no Jornal da Tarde do dia 10/12/1988. Assim como Jorge Amado escreveu seu único infantil, O galo malhado e a andorinha Sinhá, que mais tarde, em 1981, se transformaria em peças teatrais, Plínio Marcos também teria escrito a peça ao seu neto. Mas mesmo com um texto para crianças, baseando-se em nosso folclore, seu projeto estético continuou, e assim como em suas peças “para adultos”, por meio de fábulas já concedidas da literatura infantil, contou histórias com duplicidade de idéias, a escolha das fábulas, dos animais e dos personagens “cutucou”o sistema capitalista da época, o coelho, que segundo o dicionário de símbolos de Cirlot (1984), simboliza a esperteza e a inteligência, a onça simboliza a força e a opressão. O episódio da onça fingindo-se de morta para apanhar o coelho, e as cenas dos espirros são o ponto central. Mas Plínio Marcos, aproveitando a história popular, que é curta, acrescentou elementos de ecologia e de crítica à violência entre os seres. Naturalmente o início que coloca todos os animais como vegetarianos, se não tem fundamento na realidade, apresenta uma conotação simbólica, admissível na ficção. (GARCIA, 1988) Destaca-se, ainda, que a peça Assembléia dos ratos (1989) se aproxima da fábula de La Fontaine O rato do campo e o rato da cidade, qual por meio da imagem de animais antropomorfizados, critica os comportamentos humanos, uma vez que “O teatro é [...] um ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios ópticos o constitui.” (PAVIS, 1999, p. 372). Este recurso remete à tradição literária, recorrente, também, em Esopo e deságua em vários autores da Literatura brasileira, dentre os quais Monteiro Lobato. Nesse viés, Plínio Marcos se aproxima da tradição, manifestando em sua obra Assembléia dos ratos a influência do passado e não a mera imitação, pois “Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com petas e artistas mortos. (ELIOT, 1989, p. 39) 139 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Plínio Marcos parece pesquisar suas personagens, à procura das primeiras fontes dos seus atos, dos seus gestos e das idéias políticas que defendem, comportando-se como um cidadão que se revolta contra as injustiças sociais, haja vista que “Num país que tem por característica a pluridiversidade cultural, Plínio Marcos fez uso de uma literatura envolta de signos que atravessam a cultura popular brasileira [...]” (ENEDINO, 2009, p. 19). Com efeito, torna-se pertinente compreendermos os artistas como representantes da intelectualidade, os quais proporcionam reflexões e redimensionamentos dos comportamentos humanos por meio das obras de arte “Os verdadeiros intelectuais nunca são tão eles mesmos como quando, movidos pela paixão metafísica e princípios desinteressados de justiça e verdade, denunciam a corrupção, defendem os fracos, desafiam a autoridade imperfeita ou opressora” (SAID, 2005, p. 21). Não obstante, deve-se pensar qual o papel do intelectual Plínio Marcos no cenário artístico brasileiro, pois “[...] não podemos dispensar os intelectuais. E no sentido que a modernidade conferiu à palavra: não podemos dispensar a intervenção social, cívica e política, dos agentes do campo cultural, a partir de lugares, das histórias e das lógicas deste campo.” (MARGATO; GOMES, 2004, p. 56). Nessa linha de pensamento, é necessário analisar a aproximação das personagens contidas no espaço diegético com uma interpretação coerente do contexto social, uma vez que: O personagem é um determinante da ação, que é, portanto um resultado de sua existência e da forma como ele se apresenta. O personagem é o ser humano (ou um ser humanizado, antropomorfizado), recriado na cena por um artista autor ou por um artista ator (PALLOTTINI, 1989, p.11). Seguindo as contribuições de Cirlot (1984), Chevalier e Gueerbrant (1998) no que se refere à estruturação simbólica contida na peça, os animais utilizados apresentam a seguinte semiologia: em relação ao gato é “Associada à lua no Egito. Consagrado às deusas Isis e Bast, esta última protetora do casamento [...] Um simbolismo secundário procede da cor do animal.” (CIRLOT, 1984, p. 271) O simbolismo do gato é muito heterogêneo, pois oscila entre as tendências benéficas e as maléficas, o que se pode explicar pela atitude a um só tempo terna e dissimulada do animal. [...] O Egito antigo venerava, na figura do gato divino, a deusa Bastet, benfeitora e protetora do homem. [...] neste caso, o gato simboliza a força e a agilidade do felino, posta a serviços do homem por uma deusa tutelar a fim de ajudá-lo a triunfar sobre os inimigos. ( CHEVALIER E GUEERBRANT, 1991, p. 461-462) O signo do rato, “encontram-se em relação com a doença e a morte. O rato foi uma divindade maléfica na peste do Egito e na China [...] se superpõe a ele um significa fálico, porém em seu aspecto perigoso e repugnante.” (CIRLOT, 1984, p. 491) 140 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Esfomeado, prolífico e noturno como o coelho, o rato poderia, a exemplo desse outro roedor, ser o tema de uma metáfora galante, se não aparecesse também como uma criatura temível, até infernal. É pois um símbolo ctônico, que desempenha um papel importante na civilização mediterrânea, [...] Como assinala Freud em O homem dos ratos (cinco psicanálise), este animal, tido como impuro, tem uma conotação fálica e anal, que liga a noção de riquezas, de dinheiro. [...] na análise freudiana, os ratos se tornem os avatares das crianças: tanto um como os outros são signos de abundância, de prosperidade. Mas o rato, insaciável furão, é também considerado como um ladrão. (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 770-771) A peça inicia-se com uma festa na roça. Ao enjoar da mesmice, Janota (morador da cidade), um dos protagonistas da peça, convida seu primo (morador da roça) para conhecer como era a Festa na cidade (Assembléia dos ratos). O personagem Janota, o rato da cidade, não gosta de nada e mesmo vendo a alegria de todos mostra seu desprezo pela “pobreza” demonstrada na festa. Assim resolve convidar seu primo “caipira” para ir à cidade para participar da festa: RATÃO - (para Janota) Não vai provar? JANOTA - Não, não quero. RATÃO - TÁ bom esse quentão JANOTA - Não posso nem com o cheiro. [...] RATÃO - Não sabe o que perde JANOTA - Sei sim, podia estar lá na cidade... Ah, que saudades! A rataiada lá deve estar se divertindo. Lá é uma verdadeira festa. (PLÍNIO MARCOS, 1989, p.03) Plínio Marcos utiliza uma linguagem simples e direta (característica presente no teatro para crianças) e escolhe animais conhecidos da fauna brasileira para representar a sociedade. Tais aspectos estão em consonância com as personagens, pois no teatro, “[...] a personagem não só constitui a ficção, mas ‘funda’, onticamente, o próprio espetáculo”. (PRADO, 1972, p. 32).Na peça, quando os personagens chegam a tão falada festa na cidade, iniciam-se os problemas. Durante a festa dos Gran-Finos, de forma surpreendente, aparece um grande gato para incomodar os ratinhos presentes, os quais correm aterrorizados, mas logo voltam para tentar resolver a situação. RATA 1 - É o Maltez, é o Maltez. Corre. [...] O Maltez, já foi. A casa é nossa. (PLÍNIO MARCOS, 1989, p.09-10) Os personagens da festa da cidade, são ratos, assim como na festa do campo, mas nesta são numeradas (rata 1), como se não mostrasse personalidade, representando apenas “mais 1”na 141 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 festa. A fábula utilizada para representar a festa na roça, intitulada O rato do campo e o Rato da cidade, nos mostra a simplicidade e a critica em cima de um lugar que não é atingido diretamente com problemas citadinos, talvez por sua inocência, ou simplesmente pela falta de conhecimento do que está a acontecer nos grandes centros, tudo é festa tudo é comilança. Já a fábula utilizada para representar a festa sofisticada, intitulada Assembléia dos ratos, que deu nome à peça de Plínio Marcos, leva a pensar a cidade como governo. O Nome “assembléia” nos leva a imaginar a Assembléia Legislativa, projetos e propostas que não levam a lugar algum, tudo acabando em pizza. Os animais utilizados na peça, não apareceu de forma gratuita de acordo com o Dicionário de símbolos de Cirlot (1989), ratos representam a classe suja, pobre, escondida em meio aos lugares esquecidos. Mas e os ratos Gran finos? Esses ratos na peça de Plínio Marcos, representa uma sujeira política envoltos em corrupção, mentiras e enganações. O gato, por sua vez, representa a proteção. No Egito antigo, nos túmulos eram sempre esculpidos corpos humanos com cabeça de gato, simbolizando a proteção aos que ali estavam enterrados. Considerações Finais Plínio Marcos andava na “contramão” da ideologia dominante, sua literatura de apesar de ter seu inicio no Período da Ditatura Militar, e, conseqüentemente, ter se estendido ao período democrático, seu viés estético não mudou, pois se na época ditatorial, a opressão e poder vinha dos militares no regime democrático esse poder de censura se encontra na mídia, por esta servir ao poder capitalista. Seus escritos se afirmaram pela ousadia linguística, ele conseguia combinar a gíria dos malandros com um texto rigorosamente literário. Na década de 80, Plínio Marcos ao escrever pecas infantis usando animais do folclore brasileiro, fez Crítica ao sistema democrático iniciado nesta época bem como “fim” da censura militar, mas inicio de censura camuflada da mídia, com todos esses novos problemas Plínio Marcos continuou escrevendo em prol dos marginalizados deixando em suas obras críticas aos problemas sociais. ABSTRACT: Leaving of the presumption of that literature corresponds to a speech that if inserts in a cultural context e, therefore, marked ideologically in a time and space, propomo-in them to investigate the Brazilian theater, since its sprouting until the theater of Pliny Marcos, that through its texts portraied the life of the wonder world, wrote on homossexualy, violence, marginality and prostitution with authenticity and courage. It is considered to analyze some of its workmanships, starting with Dois perdidos numa noite suja, navalha na carne, Abajur lilás, mancha rocha and two infantile parts, O coelho e a onça and the Assembléia dos ratos, showing that although surrounding different, and “distinct” personages its aesthetic project remained of certain unchanged form. When writing an infantile part, Plínio Marcos used symbolically animal of our folklore, to portray personages of the power politician of the year of 1989, year this a landmark for the politics, beginning of the direct elections and the democracy. However with this part we will be able to observe the critical one to this power and the wild capitalism. For analysis of the theatery of Plínio Marcos, this work will be anchored in the contributions of the Prado (1972), Palottini (1989), Ryngaert 142 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (1996), Pavis (1999) Magaldi (1998 and 2004) and Ubersfeld (2005) and in the studies of Cirlot (1984), Chevalier and Gueerbrant (1991) as for the symbolic estruturação contained in the part and the studies of Margato and Gomes (2004) and Said (2005) in what it refers to ahead to the paper of the intellectual of the society. REFERÊNCIAS: BOGATYREV, P. O signo teatral. In: INGARDEN, Roman et al. O signo teatral: a semiologia aplicada à arte dramática. Org. e trad. Luiz Arthur Nunes et al. Porto Alegre: Globo, 1977, p. 1532. CIRLOT, J-E. Dicionário de símbolo. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo, 1984. CHEVALIER, J. ; GHEERBRANT, A. 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Acesso em 10/05/2010. http://estudosdeteatrobrasileiro.blogspot.com/2008/06/cludio-manuel-da-costa-e-o-teatrorcade.html. Acesso em 20/05/2010 http://estudosdeteatrobrasileiro.blogspot.com/2008/06/cludio-manuel-da-costa-e-o-teatrorcade.html . Acesso em 20/05/2010 http://www.pliniomarcos.com. Acesso em 16/05/2010. http://www.pliniomarcos.com/criticas/onca-clovisgarcia.htm. Acesso em 13/07/2010. http://www.sitedeliteratura.com/litbras/pliniomarcos.htm. Acesso em 16/05/2010. pt.wikipedia.org/wiki/Plínio_Marcos. Acesso em 20/05/2010. 144 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A configuração das personagens e sua relação com o mal em Madona dos Páramos, de Ricardo Guilherme Dicke Luciana Rueda SOARES1 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a configuração das personagens no romance Madona dos Páramos (1982), de Ricardo Guilherme Dicke. Verificamos de que forma a questão do mal se manifesta nas ações das personagens do livro do escritor mato-grossense. Como aporte teórico, utilizamos as reflexões de Paul Ricoeur, expostas na obra O mal: um desafio à filosofia e à teologia (1988) e no artigo “Le scandale du mal” (1986). Para tanto, o presente aborda a trajetória de Ricardo Guilherme Dicke (desde o nascimento até a vida adulta), descreve o perfil das personagens e aborda questões específicas sobre o mal, que segundo Ricoeur é dividido em dois grupos: o mal cometido e o mal sofrido. A travessia que as personagens fazem pelo sertão afora, ao que parece, é a uma jornada de confissão dos pecados de cada uma, como se isso fosse a única forma de estarem com os corações puros, livres do mal, tornando possível encontrar paraíso sobre a terra. Palavras-chave: Ficção brasileira contemporânea. Literatura mato-grossense. Discurso da narrativa. O mal. Introdução Ricardo Guilherme Dicke, filho de João Henrique Dicke, de nacionalidade alemã que fugira da Segunda Guerra para o Paraguai, com Carolina Ferreira do Nascimento Dicke, Nasceu em uma vila chamada Raizama, localizada na Chapada dos Guimarães, no Estado de Mato Grosso, em 16 de outubro de 1936. Pouco se conhece sobre a infância e a adolescência do escritor, apenas que cresceu cercado pelo ronco dos aviões, caminhões e pelas idas e vindas que o processo migratório trouxe à região no início do século XX. Muitas informações perderam-se no tempo ou simplesmente foram deixadas de lado por aqueles que só o conheceram anos depois, quando já estava inserido nos círculos de cultura mais privilegiados de São Paulo e do Rio de Janeiro. O resto perdeu-se nas memórias dos que conviveram com ele e no seio de sua família formada por homens do garimpo, homens que perseguiam o sonho da riqueza em Caxipó do Ouro. Ricardo Guilherme Dicke publicou o romance Madona dos Páramos, cujas personagens são analisadas neste artigo, em 1982. Foi comparado, por alguns escritores do meio literário, a 1 Professora de Língua Portuguesa e mestra em Letras CPTL/UFMS – Mestrado em Letras. Três Lagoas – Mato Grosso do Sul – Brasil. CEP 79603-150 – e-mail [email protected] 145 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 João Guimarães Rosa. Isso conferiu ao escritor mato-grossense a responsabilidade de produzir textos de grande qualidade literária. A configuração das personagens em Madona dos Páramos O homem, por meio da Arte (arquitetura, escultura, pintura, literatura), transmite conhecimento sobre a realidade, de maneira que tudo o que imagina tome forma em um mundo que considera ideal e com o qual busca identificação. A narrativa, como uma das formas de expressão artística, é foco de estudo e de interesse dos pesquisadores da literatura há séculos no meio acadêmico. Os artistas, como instauradores de outro mundo, criam uma realidade capaz de propiciar conhecimento e, ao mesmo tempo, prazer. Retratar, artisticamente, o universo humano estimulou as percepções do leitor literário para entender o que ocorre à sua volta, como, por exemplo, o reconhecimento do que acontece com as personagens no desenrolar da tessitura da narrativa. O texto literário deixa de ser considerado apenas uma reprodução, um reflexo das experiências vividas ou observadas pelo escritor, e passa a ser uma maneira de acompanhar a evolução sóciocultural do povo. Massaud Moisés, em A Criação Literária, ao tratar do romance diz que: Sua faculdade essencial consiste em reconstruir, recriar o mundo. Não o fotografa, mas recria; não demonstra ou repete, reconstrói a seu modo, o fluxo da vida e do mundo, uma vida sua, um mundo seu, recriados com meios próprios e intransferíveis, conforme uma visão particular, única, original. Exatamente por ser o romance a recriação do mundo é que os grandes romancistas se têm mostrado sensíveis ao tema de uma sociedade em dissolução, em decadência: pois quando tudo está a desmoronar é que mais se faz necessária a tarefa do romancista. /De que resulta esse poder demiúrgico do romancista? Primeiro: o ele utilizar com exclusividade e com franca liberdade os recursos da prosa de ficção. O romancista não sofre (ou não deve sofrer) coação de qualquer espécie, salvo aquela imposta pela própria prosa que pretende criar. (MOISÉS, 1985, p. 97) A afirmação de que o romancista “reconstrói o fluxo da vida e do mundo” (MOISÉS, 1985, p. 97), reforça a ideia da influência das narrativas sobre o comportamento da sociedade, pois nelas são retratados sentimentos e ações, por meio das personagens, que provocam reflexões no homem. Assim, as personagens – criadas artisticamente – representam valores morais e éticos da natureza humana. Antonio Candido, ao indagar sobre a influência do meio social sobre a arte e da arte sobre o meio social (CANDIDO, 2000, p. 18), mostra que a obra literária é fruto da experiência vivenciada e observada pelo escritor, já que, a partir do que vive, transforma os acontecimentos da realidade factual em realidade poética. Obras como Ilíada e Odisséia, de Homero, retratam as aventuras de Ulisses na viagem de volta à sua terra natal, destacando os feitos heroicos das figuras sociais que melhor 146 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 representavam os valores de cada povo envolvido no combate. Em Os Lusíadas, Camões, utilizando do modelo épico de Homero e de tantos outros da antiguidade, narrou em versos decassílabos as conquistas do povo português durante as grandes navegações. Ulisses, de James Joyce, relata a jornada de um homem à procura de si mesmo, uma jornada de autoconhecimento, em que questões importantes para a sociedade do século XX são abordadas. Alguns textos da literatura brasileira, como O Uraguai, de Basílio da Gama, narra as lutas entre nativos e conquistadores; Os Sertões, de Euclides da Cunha, apresenta, em linguagem jornalística, os conflitos entre a polícia e o grupo de Antonio Conselheiro; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, mostra de modo inusitado, os acontecimentos de toda uma vida burguesa narrada por um defunto-autor. Assim, a arte literária é uma forma de registrar o que a percepção do artista apreende do meio em que vive. Peripécias e valores são projetados nas várias instâncias da narrativa, em especial, pelas personagens. Massaud Moisés define a personagem como “[...] ‘pessoas’ que vivem dramas e situações, à imagem e semelhança do ser humano [...]" (MOISÉS, 1995, p. 138) As “pessoas”, tal qual retratadas por Massaud Moisés, funcionam como a mola propulsora e objeto conflitante da narrativa. É o que acontece com as personagens do romance Madona dos Páramos, de Ricardo Guilherme Dicke, que, sob o comando de um narrador heterodiegético, refletem um segmento social. É a partir das falas e das ações das personagens de Madona dos Páramos que a questão social se traduz e se firma; por vezes, elas traçam os seus destinos. Antonio Candido afirma que: Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida em que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente. (CANDIDO, 1970, p. 53) No texto narrativo, a “linha do destino” (CANDIDO, 1970, p. 53) das personagens é traçada pela diegese, que possibilita ao leitor ver a concepção estética e o posicionamento ideológico do escritor. Em Madona dos Páramos, tons reflexivos e questionamentos sobre a forma de viver no ambiente do sertão são representados por meio das personagens. É partir delas que observamos o processo de migração, o panorama da cultura e dos costumes da sociedade mato-grossense do início do Século XX. As personagens de Madona dos Páramos são organismos vivos na estrutura textual do romance, possibilitando, durante a leitura, compreender o mais grave deslize delas, seja ele de que natureza for. Sejam eles assassinos, ladrões, mentirosos, bajuladores, traidores, ou 147 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 simplesmente charlatões, todas são compreendidas no momento em que narram suas trajetórias, compondo, assim, um organismo maior entrevisto na estrutura do romance. A personagem é a voz que denuncia, esclarece e traz luz às situações sociais expressas na obra de arte pelo artista; é quem desperta a curiosidade do leitor para saber mais e mais sobre aquele ser ficcional que, tão bem, mostra sentimentos, dúvidas e dramas presentes no cotidiano de cada ser humano. Forster diz que: Não precisamos perguntar o que aconteceu depois, mas sim a quem aconteceu. O romancista estará recorrendo à nossa inteligência e imaginação, não simplesmente à curiosidade. Uma nova ênfase entra em sua voz: a ênfase sobre o valor. (FORSTER, 1974, p. 33) O primeiro elemento citado – a curiosidade – é diretamente responsável pela “fome” de narrativas que homem tem. A necessidade de conhecer as histórias que perpassam pelos séculos talvez seja a mola propulsora que leva o escritor criar, cada vez mais, mecanismos de narrar que satisfaçam a eterna busca pelo saber e conhecer novos fatos do cotidiano do homem. O segundo elemento – a imaginação - parece ser o responsável direto pelos efeitos que os fatos narrados têm sobre a maioria dos eleitores. É, também, o fio condutor necessário para inovar e dinamizar as formas de narrar. Caso o autor não saiba utilizá-la, a curiosidade do leitor diminui. E, finalmente, o valor é o elemento que possibilita ao leitor ligar à formação cultural, à tradição da sociedade, na trama da narrativa. Desse modo, é por ele que se observa como o escritor pensa e interpreta os fatos que estão à sua volta. Em Madona dos Páramos, os elementos descritos acima estão presentes, pois curiosidade e imaginação instigam o leitor. Já o valor mostra-se nas longas reflexões realizadas pelas personagens, tendo, por exemplo, como cenário o sertão e a menção de figuras do universo mitológico. A diegese de Madona dos Páramos mostra o percurso de um bando de foragidos (José Gomes, Ticiano Garci Lopes, Chico Inglaterra, Babalão Nazareno, Urutu, Bebiano Flor, Melânio Cajabi, Canguçu, Pedro Peba, Caveira e Lopes Mango de Fogo) a procura da Terra-Mãe, considerada como lugar paradisíaco pelos membros do bando, no qual eles pudessem viver livres, sem se preocuparem com a milícia, sem se adequarem aos valores éticos e morais estabelecidos pela sociedade, sem preconceito e sem desigualdade. Ou melhor, local em que “Paróquia e bordel” (DICKE, 1982, p. 55) vivem em plena harmonia. A travessia do sertão para encontrar a terra prometida é o espaço que leva cada indivíduo do bando a refletir sobre seus pecados (luxúria, ira, soberba, inveja) e sobre as ações que os levaram a cometerem crimes. Na cena inicial do romance – “Martelo. Um som de martelo martelando ferradura em alguma ferraria próxima. / Meio-dia de sol untado e quente. Martelo no meio-dia. Martelando, martelando. Meio-dia e martelo”. (DICKE, 1982, p. 9) – o narrador, heterodiegético, estabelece a enunciação a partir de dois vocábulos, um substantivo (“martelo”) e um verbo derivado do 148 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 substantivo (“martelando”), como que para reforçar, por meio da repetição dos sons, a continuidade dos acontecimentos na sequência narrativa que se desencadearão a partir dali. Ao construir o início da diegese desse modo, o narrador, parece-nos, constrói um discurso que demonstra a isenção dele diante do narrado, excluindo-o de qualquer culpa. Essa demonstração do fluxo contínuo da narrativa faz com que os fatos sejam vistos como algo fora do controle do narrador, que neste caso é apenas expectador da trama. A narrativa de Madona dos Páramos é composta por um universo de personagens em que o real e o mítico se completam e se confundem. Para que isso fique estruturado na diegese, o escritor utiliza a descrição da paisagem do sertão mato-grossense, assim como dos sentimentos que predominam no homem do sertão. Tudo isso é retratado e perceptível nas ações e nas falas das personagens ao longo do romance. Parece-nos que tal técnica é a forma que Ricardo Guilherme Dicke utiliza para materializar a realidade factual na qual ele conviveu e decide refletir em termo de arte literária: Sobre o rio estridulam noitibós, que voam e se requebram em vôo numa espécie de dança da noite, os pássaros da escuridão e do mistério... Mas sob a folia de mistérios das corujas noturnas, na capa da noite estendida, é um apaziguamento de paz que não se interrompe, um início de dormitar vegetal que influencia a terra, a água que não dorme, o entes. (DICKE, 1982, p. 34) Essas observações são feitas por um narrador que conhece em profundidade o cenário, sob o céu de mistério, que descreve. Talvez esse recurso do narrador ao iniciar a composição do texto seja uma forma de “naturalizar” a descrição, como afirma Reis e Lopes (1988, p. 25). Fato interessante no fragmento acima é a maneira como a descrição do espaço e do sentimento provocado pelo espaço são retratados pelo narrador. Como ele se posiciona no nível extradiegético, para dar mais verossimilhança ao que conta, tudo é narrado a partir do ponto de vista das personagens; personagens que integram o sertão mato-grossense e que conhecem profundamente o espaço em que convivem. Ao longo da narrativa, as personagens são responsáveis pelas descrições do espaço que percorrem, ou, como postura Reis e Lopes (1988, p. 26), “[...] a descrição é plasmada pela subjetividade da personagem.” A rudeza e a estaticidade do cenário é suavizada pelas palavras “estridulam”, “requebram”, “dançam”, que denotam movimento e inquietação para descrever o universo noturno do sertão, bem como os sentimentos conflitantes que convivem no interior e na vida do sertanejo. O uso desses recursos para descrever o cenário inicial da narrativa dickeana, provavelmente intenciona retratar a personalidade de José Gomes, personagem encarregado pelo narrador de apresentar as outras personagens que comporão a diegese de Madona dos Páramos. As representações de diversas facetas da alma humana serão traduzidas pelas personagens que compõem o bando de foragidos, que cruzará o sertão em busca da Figueira - Mãe, uma espécie 149 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 de terra prometida, local de redenção e descanso final para aqueles que vagueiam pela vida, pelo sertão à procura de paz e comunhão com o universo que os rodeia. As personagens dickeanas fazem parte de dois universos distintos (sertão/cidade) ocupando o mesmo espaço, mas se referem a um tempo em que presente/passado/futuro fundemse e se completam. Magalhães (2001, p. 208) afirma que as personagens criadas por Dicke são “[...] sobreviventes do Sistema ou de si próprios, transitam entre o divino e o selvagem, o real e o surreal, sufocados pelo peso da existência”. O “Sistema”, citado por Hilda Magalhães, pode ser entendido como poder agrário, por meio do qual os latifundiários dominam os trabalhadores, subjugam as mulheres aos seus desejos e coagem as crianças. No final, o bando de foragidos é oprimido pela violência. A fuga empreendida e o processo migratório de um bando formado por foragidos de diversos lugares, culpados de crimes que vão desde desavenças em bordeis a assassinatos crueis, serão o fio condutor da narrativa. O grupo representativo da parcela marginal da sociedade que a seu modo tenta sobreviver, mesmo que em condições desfavoráveis, aos poucos forma toda estrutura que comporá a diegese. Em uma sociedade na qual se faz necessário parecer-se com o outro para ser aceito socialmente, esses homens fugitivos, por um motivo ou outro a certa altura da vida, não se encaixaram no contexto social em que estavam inseridos, pois enveredaram pela marginalidade e perdem espaço nessa sociedade, regida pelas leis civis. As personagens e o mal A questão do mal é alvo de discussão por teólogos, filósofos, legisladores, enfim, por todos os responsáveis em estabelecer os códigos de conduta religiosos, sociais e mesmo as legislações civis de nossa sociedade. São essas regras que de certa forma permitem definir o que é do mal e do bem, o que é certo e errado, quais são as pessoas boas e ruins. O filósofo Paul Ricoeur, no artigo Le scandale du mal (1986) observa que: Le mal, c’est ce contre quoi on lutte, quand on a renoncé à l’expliquer. Or, il faut avouer que le prix à payer est plus élevé qu’on ne le suppose : le mal est rencontré comme une donnée inexplicable, comme um fait brut ;2 ( RICOEUR, 1986, p. 107 -108) 2 O mal é aquilo contra o que lutamos, quando estamos decididos a não explicá-lo. Mas devemos admitir que o preço é maior do que o previsto: o mal é inexplicável como um fato, como um fato violento. – Tradução nossa. 150 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Nessa perspectiva, ao analisarmos a diegese de Madona dos Páramos, constatamos que a necessidade de ser violento para se sobreviver, no sertão, é a única explicação para que o mal se manifeste na existência das personagens do romance. Fazer o mal é algo que provoca instantaneamente o sofrimento ao outro, trazendo angústias e desejos de vingança, estabelecendo o ciclo da violência no romance. Em outro texto, O mal: um desafio à filosofia e à teologia (1988), Ricoeur aprofunda a questão do mal: Que não se acredite que, acentuando a luta prática contra o mal, se perde de vista uma vez mais o sofrimento. Muito pelo contrário. Todo o mal cometido por um ser humano, já vimos, é um mal sofrido por outro. Fazer o mal é fazer sofrer a alguém. (RICOEUR, 1988, p. 48) O sofrimento e o que resulta dele está presente no cotidiano das personagens do romance. As ações que resultam desse sentimento de dor são o que oprimem as personagens no decorrer da narrativa, logo o mal e suas manifestações rondam a vida dos homens do bando e da “Moça sem nome”, como presença opressora e dominadora que os conduz à continuar com atitudes de violência contra seus companheiros Dessa forma, nossa análise se volta para alguns fatos narrados pelas personagens que compõem o bando de Urutu, retratando cenas em que ocorreu a manifestação do mal em suas existências. Essas personagens parecem ser condicionadas ao diálogo travado entre nhá Tabita e José Gomes: – Que lhe fiz? – Quer saber mesmo? Mataram minha mãe e meu pai e fiquei assim. Achei que não valia mais a pena nada. Os mata-cachorros, vancê o mesmo que eles. Nunca me cansarei de amaldiçoá-los. Amaldiçoados. Mil anos de praga não chegam nem dão, nunca trarão paz. (DICKE, 1982, p. 11) As palavras amaldiçoadas da mulher parecem definir a trajetória desses seres, que são atormentados pelo mal e suas consequências até o final do romance. A presença do mal em Madona dos Páramos se fortalece a partir das tragédias individuais das personagens. O narrador possibilita a exposição de fatos que mostram manifestação do mal na existência de cada personagem ao delegar-lhes voz. Sobre o mal, Paul Ricoeur afirma que: No rigor do termo, o mal moral – o pecado em linguagem religiosa – designa o que torna ação humana objeto de imputação, de acusação e de repreensão. A imputação consiste em consignar a um sujeito responsável uma ação suscetível de apreciação moral. A acusação caracteriza a própria ação como violação do código ético dominante na comunidade considerada. A repreensão designa o juízo de condenação, em virtude do qual o autor da ação é declarado culpado e merece ser punido. (RICOEUR, 1988, p. 23) 151 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Na trama, o narrador, pela própria voz ou pela voz das personagens, mostra o mal por meio de acontecimentos que poderão representar a “imputação”, ou seja, a atribuição de mal a outrem. Tomemos como exemplo este fragmento do diálogo travado entre Canguçu e a mãe, quando esta lhe incumbe a tarefa de vingar a morte do pai: – Meu filho, nunca te esqueças que a única coisa que quero é que vingues o teu pai, que era o melhor homem do mundo. Gente como Nulfo gosta de exterminar com gente boa, toda pessoa de bondade. Eles adivinham acham a bondade uma doença. Seu sangue clama, não o ouve dentro de ti? Seu silêncio na sua cova, seu nome no cemitério, tudo fala para aqueles que gerou um dia, quando sua semente reverberava dentro de si, como uma luz que não se apaga... (DICKE, 1982, p. 274) A mãe atribui a tragédia provocada pelo mal ocorrido em suas vidas ao coronel Nulfo, grande latifundiário do sertão que assassinou o pai de Canguçu. Esse fato, juntamente com as palavras da mulher, parece justificar os assassinatos cometidos por Canguçu posteriormente. Em outra cena da narrativa, podemos observar a “acusação” na descrição que a “Moça sem nome” faz do bando. Para análise, destacamos apenas o que se refere a Pedro Peba: [...] o Pedro Peba, esse sim já parece brabo, de brabo-ruim, apoquentador, facínora real, não só parece senão é ele quem ajudou com o Lopes e Urutu a matar-me os meus queridos, cheira a enxofre de traição e ruindade nos bofes por dentro e por fora, más entranhas [...] (DICKE, 1982, p. 126) Sob olhar da personagem, constatamos a “acusação” de que Pedro Peba é “brabo-ruim” e auxiliou de bom grado Urutu e Lopes a assassinar o pai e o esposo da Moça, o que acarretou no seqüestro da mesma por Urutu. Isso desencadeou o sentimento de vingança – o mal - que atormenta a Moça ao longo da diegese. A “repreensão” é retratada na narrativa durante o longo diálogo que os foragidos estabelecem, após a libertação e fuga da Moça sem nome. Os homens se desesperam e fazem conjecturas sobre os motivos e o destino da personagem. Nessa cena, as vozes dos homens do bando se misturam de tal forma que não é possível definir a quem elas pertencem. – Ela é muito pura e simples, por isso encontrou o verdadeiro caminho. Nós, de nossa parte, nunca o encontraremos, nos perderemos cada vez mais. Ficaremos aqui vadeando sempre os mesmo círculos do encantamento. Somos maus demais, somos demônios ruins feitos para a tortura e a morte pior. Para todo o mal. Só os puros de coração sem maldade encontram o caminho e vivem eternamente. (DICKE, 1982, p. 369) 152 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Observamos que as ações das personagens do romance podem ser analisadas sob estes aspectos citados e exemplificados anteriormente. Dessa maneira, a diegese caminha para que constatemos que a violência, necessária para a sobrevivência no sertão, é o mal causador de todo o sofrimento na trama. Para reforçar essa idéia temos a seguinte afirmativa de Ricoeur: [...] é a violência exercida sobre o homem pelo homem: em verdade, fazer o mal é sempre, de modo direto ou indireto, prejudicar outrem, logo, é fazê-lo sofrer; na sua estrutura racional – dialógica – o mal cometido por um encontra sua réplica no mal sofrido por outro; (RICOEUR, 1988, p. 24-25) As expressões “mal cometido” e “ mal sofrido”, utilizadas por Ricoeur para analisar a questão do mal, nos servirá de referência para que possamos tipificar as personagens de Madona dos Páramos em dois grupos. Neles, as personagens foram agrupadas de acordo com a manifestação do mal no desenrolar da diegese. No primeiro quadro – mal cometido – estão as personagens Urutu, Babalão Nazareno, Chico Inglaterra, Bebiano Flor, Caveira e Pedro Peba, agrupadas aqui porque intentaram violentamente contra os semelhantes, sem motivos que justificassem suas ações. Sentiam prazer na maldade. Mal Cometido Urutu Babalão Nazareno Chico Inglaterra Bebiano Flor Caveira Pedro Peba Tabela 1 Essas personagens endurecidas, violentas e perversas materializam o mal em vários momentos da narrativa. Para que isso fique claro fizemos um levantamento dos acontecimentos em que o mal cometido por eles atingiram diretamente seus semelhantes. O quadro abaixo auxilia-nos na tarefa de localizá-los em Madona dos Páramos: GRUPO MAL COMETIDO PERSONAGEM Urutu FATO(S) - Via a morte das pessoas; PÁGINAS 111 e 153 153 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Babalão Nazareno Chico Inglaterra Bebiano Flor Caveira Pedro Peba - Assassinato de Lopes. - Assassinato de seu seguidor soldado Mano; - Mentor intelectual do assassinato de Lopes. - Luxúria (assédio sexual). - Paixão incestuosa; - Assassinato (fratricídio); - Assassinato com requintes de crueldade. - Seduziu e abandonou Julita grávida; - Assassinato do pai e do irmão de Julita. - Assassinato do delegado que o pegara roubando. 251, 252 e 340 140 182, 245, 267, 270 e 271 241 e 242 278 Tabela 2 No segundo quadro – mal sofrido – as personagens José Gomes, Ticiano Garci-Lopes, Canguçu, Melânio Cajabi, Lopes Mango de Fogo e “Moça sem nome” carregam a marca do sofrimento provocado por outros seres humanos. Por vezes, as personagens em sofrimento também provocam sofrimento em outros, mostrando a tragédia que os males cometidos aos semelhantes causam nas vidas dos outros. Mal sofrido José Gomes Garci Canguçu Melanio Cajabi Lopes Mango de Fogo Moça sem nome Tabela 3 No quadro abaixo, apresentamos e apontamos os fatos e momentos em que as personagens sofreram com as ações maléficas de outro em suas vidas. Esses fatos provocaram tragédias pessoais de consequências infinitas. GRUPO MAL SOFRIDO 154 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 PERSONAGEM José Gomes Garci Canguçu Melânio Cajabi Lopes Mango de Fogo Moça sem nome FATO(S) - Foi traído por sua esposa Candi. - Constantemente era humilhado pelo seu superior o sargento Careca. - Teve seu pai assassinado pelo coronel Nulfo. - Dois ciganos assassinaram sua amada. - Foi caluniado por Babalão e assassinado por Urutu. - Assassinaram seu pai e marido na sua frente. PÁGINAS 21, 22 e 23 26, 27, 28, 246 e 253 272 e 273 330 111 e 115 305, 306 e 316 Tabela 4 As análises apresentadas nos quadros acima, nos mostram que o destino de cada um foi traçado de acordo com a intensidade com que as tragédias os afligiram. Para reforçar essa afirmativa recorremos às palavras de Paul Ricoeur (1986, p. 105): “En effet, dans la mesure óu l'homme fait souffrir l'homme, le pâtir sort, d'une certaine façon de l'agir: la méchanceté, la violence, produisent de la souffrance.” 3 , portanto o cenário embrutecido em que os homens do bando de foragidos vivem, os obriga a agir com violência e isso traz a presença do mal para a vida de cada um. A narrativa de Madona dos Páramos nos conduz à reflexão da questão do mal e a o sofrimento provocado por ele na existência das personagens do romance. Considerações finais Ricardo Guilherme Dicke foi um homem que nasceu e cresceu no meio do sertão matogrossense, local em que a dureza da vida se faz presente desde cedo, assim conviver com a natureza embrutecida dos relacionamentos e com a rusticidade daquela terra molda as 3 De fato, agimos com violência na medida em que o homem faz sofrer o homem, desencadeia no seu destino: a violência e o mal, produzindo dor. – Tradução nossa 155 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 personalidades e os sentimentos desses seres que, bem a seu modo, pensam e agem de forma que possam sobreviver às adversidades. No romance analisado, as personagens se unem por um único motivo: todas convivem com a presença do mal em suas vidas. Mal que se engendra de forma quase imperceptível, mas que paulatinamente domina a existência de cada uma das personagens. Nesse trabalho, a “moça sem nome” e o bando de foragidos composto por: José Gomes, Ticiano José Garci, Urutu, Canguçu, João Enzóis Buzamão (Caveira), Bebiano Flor, Pedro Peba, Babalão Nazareno, Chico Inglaterra, Melânio Cajabi e Lopes Mango de Fogo foram categorizados utilizando as idéias de Paul Ricoeur sobre “mal cometido” e o “mal sofrido”. Dessa forma, as tragédias individuais que cada um vivenciou serviu como meio para que se chegasse ao denominador comum na análise de Madona dos Páramos: o mal presente na vida de cada personagem é o único elemento que faz com que estejam unidos em busca de uma mesmo objetivo que é o de encontrar a Figueira-Mãe que, segundo elas, é o paraíso para os que se encontram foragidos de nossa sociedade. O percurso que essas personagens fazem pelo sertão afora ao que parece, é a uma jornada de confissão dos pecados de cada uma, como se isso fosse a única forma de estarem com os corações puros, e dessa forma possam encontrar aquele paraíso sobre a terra. No fragmento abaixo há um exemplo disso: O que se sabe ao certo, em real, é que é direção de homizio, as cidades do asilo, santidade de proteção, um lugar perdido no maior sertão do norte, no tuaiá do matogrossos, que todos os perseguidos almejam encontrar. Se procuram com fervor, de coração limpo, acabam encontrando, se não tem fé, não acham nunca, porque o homizio se esconde, é a lei da lenda. (DICKE, 1982, p. 16) As palavras “Se procuram com fervor” e “ de coração limpo” representam os atributos necessários para que qualquer que seja o foragido possa encontrar a Figueira-Mãe. O narrador de Madona dos Páramos, na diegese dá voz às personagens fazendo com que estas confessem como o mal engendrou em suas vidas. Essas confissões ao que nos parece é a passagem para que conquistem o direito de chegar àquele paraíso, livres dos códigos de conduta religiosos, sociais e as legislações civis que regem a sociedade da qual se encontram à margem e para qual se torna impossível retornar. THE CONFIGURATION OF THE CHARACTERS AND THEIR RELATIONSHIP TO EVIL IN THE MADONA DOS PÁRAMOS, RICARDO GUILHERME DICKE’S ABSTRACT: This work aims to analyze the configuration of the characters in the novel "Madona dos Parámos" by Ricardo Guilherme Dicke. We check how the evil argument is manisfested in the characters' actions in the book of Mato Grosso' s writer. As a theoretical contribution, we use Paul Ricoeur' s reflections, exeposed in The evil work: a 156 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 challenge to philosophy and theology (1988) and in the article "Le scandale du mal" (1988). To this end, the present analyze covers Richard Guilherme Dicke's story, from birth to adulthood, and describes the characters’s profile and approaches specific issues about the evil according to Ricoeur is divided into two groups: the evil done and the evil suffered. The journey that the characters make the bush all around, it seems, is the journey of a confession of the sins of each one as if it were the only way to be with the pure hearts, the evil, making it possible to find heaven on land. Keywords: Contemporary brazilian fiction. literature of Mato Grosso. Discourse of narrative. The evil. 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Relações de Poder na Literatura da Amazônia Legal. Cuiabá: EdUFMT, 2002. MASSAUD, M. A criação literária – Prosa. São Paulo: Cultrix, 1985. MENDONÇA, R. de. História da literatura mato-grossense. 2. ed. especial. Cáceres: Unemat, 2005. ______. O imaginário mato-grossense nos romances de Ricardo Guilherme Dicke. 2007. 312 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Goiás. REIS, C.; LOPES, A. C. M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. RICOEUR, P. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Trad. Maria da Piedade Ela de Almeida. Campinas: Ed. Papirus, 1988. ______. Lê scandale du mal. Publicado 1988. Disponível em: http://www.esprit.presse.fr/archive/review/article.php?code=7737. Acesso em: 22 jun. 2011. 158 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ponto de vista e focalização em “O Monstro”, de Luiz Vilela Pauliane AMARAL1 Rauer Ribeiro RODRIGUES2 RESUMO: A partir da observação da autobiografia presente na obra de Luiz Vilela nosso artigo trabalha a transposição história/ficção no conto “O Monstro”, de O fim de tudo (1973). Esse conto reelabora episódio histórico ocorrido em 1972, durante o período da ditadura militar. Naquela época, foram atribuídos a Orlando Sabino, um doente mental, diversos crimes ocorridos na região do Pontal do Triângulo Mineiro. No conto, Vilela recria o momento em que jornalistas e cidadãos esperam pela aparição do recém capturado. O conto tem como cenário a delegacia em que o acusado é apresentado para uma entrevista coletiva. A história de Sabino já foi abordada nos livros de não-ficção Operação Anti-guerrilha (1979), de Joaquim Borges, O Monstro de Capinópolis (2011), de Pedro Popó, a ficção Dinastia das Sombras (2006), de Carlos Alberto Luppi, além da ficção infantojuvenil Drácula Tupiniquim (1989), de Alciene Ribeiro Leite. Tendo como suporte histórico esses livros, analisamos o conto de Luiz Vilela. Voltamo-nos para estudo do ponto de vista e da focalização na narrativa “O monstro”, comparando-a com a narrativa de Alciene R. Leite, para evidenciar os efeitos de sentido que Vilela constrói ao recriar a história na ficção. PALAVRAS-CHAVE: Ficção/história. Narrador. Autobiografia. Diversos artigos, dissertações e teses defendem que a ficção de Luiz Vilela é permeada pela autobiografia. 3 Tendo isso em mente, nosso artigo trabalha a transposição história/ficção no conto “O Monstro”, de O fim de tudo (1973). A narrativa do conto reelabora um episódio histórico ocorrido em 1972, durante o período da ditadura militar. Mesmo sem mencionar diretamente Orlando Sabino, diversos elementos na narrativa nos permitem entender que se trata de uma recriação livre do episódio. Na época, foram atribuídos a Orlando Sabino, um doente mental, diversos crimes ocorridos na região do Pontal do Triângulo Mineiro. No conto, Vilela recria o momento em que jornalistas e cidadãos esperam, ansiosos, pela aparição do recém capturado. O cenário dessa narrativa é a delegacia em que o acusado é apresentado para uma entrevista coletiva. A história de Sabino já foi abordada na grande reportagem Operação Anti-guerrilha (1979), de Joaquim Borges, no livro-reportagem O Monstro de Capinópolis (2011), de Pedro 1 Mestranda em Estudos de Linguagens na UFMS, Campo Grande. Professor de Literatura Brasileira na UFMS, orientador no Mestrado em Estudos de Linguagens. 3 Ver MACIEL e WIDER (2009), RAUER (2006), e MAJADAS (2011). 2 159 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Popó, na ficção Dinastia das Sombras (2006), de Carlos Alberto Luppi, além da ficção infantojuvenil Drácula Tupiniquim (1989), de Alciene Ribeiro Leite. Os livros de não-ficção se empenham em desvendar os fatos que culminaram com a prisão de Orlando Sabino, mostrando a farsa que encobriu uma operação antiguerrilha feita pelo exército. O que percebemos ao ler os livros que tratam da história do “monstro de Capinópolis” é o absurdo que a permeia. Da motivação dos militares, passando pelas evidências da inocência do acusado, e culminando na detenção de Orlando Sabino numa instituição psiquiátrica em Barbacena, interior do Estado de Minas Gerais, onde cumpriu 38 anos e seis meses de internação, até ganhar a liberdade. Hoje, segundo consta no livro do jornalista Pedro Popó, Sabino vive em uma espécie de liberdade vigiada em uma casa terapêutica localizada na mesma cidade. Para análise do conto “O monstro”, utilizaremos o estudo de Norman Friedman, “O ponto de vista na ficção. O desenvolvimento de um conceito crítico” (2002),4 onde o autor expõe a importância e as especificidades de cada ponto de vista dentro da construção narrativa. Com essa perspectiva analítica, identificaremos no processo de transposição história/ficção os efeitos de sentido que Vilela constrói ao recriar ficcionalmente o episódio da prisão de Orlando Sabino. O foco narrativo ou ponto de vista, mecanismo constituinte da arte da ficção, trata das questões técnicas que envolvem o narrador. Também sinônimo de “‘foco de narração’, ‘visão’, ‘ângulo visual’, [o foco narrativo] diz respeito ao prisma adotado pelo narrador e responde a indagação: quem narra? e de que perspectiva?” (MOISES, 2004, p. 362). É identificando as particularidades desse processo complexo que envolve a construção narrativa do conto “O monstro” que indicamos de que forma Vilela, por meio da manipulação do foco narrativo, tece uma crítica a postura da imprensa no caso de Orlando Sabino. “Imprensa”, para nós, representa os meios de comunicação de massa, sejam eles impressos ou audiovisuais. Nessa apresentação não abordamos as consonâncias entre o discurso histórico e as informações apresentadas no conto, sendo essa incluída apenas na versão integral desse artigo. Aqui nos limitamos a apresentar alguns trechos da análise do conto, também desenvolvida em sua totalidade no texto integral. No inicio do conto, o autor apresenta um sumário, nos introduzindo ao cenário, ao ambiente e aos primeiros dados sobre a narrativa, que começa da seguinte forma: “Sob o sol quente da tarde, acompanhando nos radinhos de pilha, a multidão esperava diante do velho prédio da polícia [...]” (VILELA, 1973, p. 93, grifo nosso). Aqui, o pretérito imperfeito indica uma distância narrativa e o adjetivo velho é a primeira informação sobre o aspecto do cenário. Considerando as informações desse parágrafo e o que nos será apresentado posteriormente no desenvolvimento da narrativa, podemos afirmar que o conto “O monstro”, segundo a classificação de Friedman, é construído pelo modo dramático. Esse modo narrativo é caracterizado pelas informações disponíveis ao leitor “limitarem-se em grande parte ao que os 4 Originalmente publicado em P. Stevick (org.), The Theory of the Novel. Nova York, Free Press, 1967. 160 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 personagens fazem e falam” (FRIEDMAN, 2002, p. 178) e pela aparência e cenário serem dadas pelo autor como que em direção de cena. “Ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos movimentos e palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entre a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas” (LEITE, 1995, p. 59). O segundo parágrafo se inicia com aspas, indicando a mudança da perspectiva narrativa, onde a focalização da cena é feita através do radialista e seu discurso. O conteúdo desse período remete a introdução feita pelo narrador no parágrafo anterior, agora acentuada por uma linguagem cheia de lugares comuns, típica dos meios de comunicação de massa, marcadas por passagens como “dias que parecem séculos”, “auxílio da Divina Providência”, e “valorosos homens da policia que não pouparam esforços”. A focalização, que limita as informações da cena a um determinado campo de consciência, “além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação” (REIS, 1988, p. 246-247, grifos do autor). Assim, usando a focalização narrativa, Vilela mostra, através no discurso do radialista, a visão maniqueísta da imprensa, evidenciada por passagens dualísticas como “valorosos homens da polícia” versus “perigoso facínora [...], o monstro, o bandido sanguinário e cruel que ceifou várias vidas”. Fica evidente que não há a mínima preocupação com a apuração dos fatos, o julgamento já foi feito e a sentença está dada: o detido é culpado. A construção o “perigoso facínora” se assemelha a descrição feita por Alciene Ribeiro Leite em Drácula Tupiniquim (1989) no seguinte trecho: O Comandante tratou de dar satisfação à opinião pública do Estado. A mobilização de forças se justificava ante “a tradição pacífica do povo”. Radiograma seguiu para o Governo, dando conta da captura do “terrível facínora”. (LEITE, 1989, p. 27). Através das aspas, Alciene atribui “a tradição pacífica do povo” ao discurso do comandante, assim como “terrível facínora” ao discurso proferido pelo apresentador do radiograma. No último período do quarto parágrafo, Vilela, através do seu narrador onisciente nos dá os primeiros dados sobre a figura do “monstro”. “Era um sujeito loiro e miúdo, novo ainda: estava assustado com aquela súbita multidão ao seu redor” (VILELA, 1973, p. 94, grifos nossos). Ao descrever Sabino como um sujeito miúdo e assustado, o narrador nos sugere uma figura indefesa, que não condiz com o que se esperava de um “assassino cruel e sanguinário”. O parágrafo seguinte inicia uma sequência de diálogos diretos, que serão acompanhados por marcações do narrador, explicitando os estados mentais das personagens. Friedman acentua que no modo dramático uma personagem pode olhar pela janela – um ato objetivo – mas o que ele vê é da conta dele. No entanto, o que as personagens pensam ou sentem pode “ser inferido a partir da ação e do diálogo” (FRIEDMAN, 2002, p. 178, grifo do autor). 161 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A forma do diálogo, trabalhada por Vilela nesse e em outros contos, diminui a distância entre o narrador e o narratário, como se a entidade a que se destina o discurso assistisse a uma conversa. Essa curta distância provoca no leitor uma sensação de verossimilhança maior do que a provocada apenas pela descrição de um narrador onisciente. De outro lado, a outra perspectiva presente no conto, a do autor onisciente intruso, cria a oportunidade do autor se posicionar em relação às personagens, explicitando seus pensamentos e emoções, não aparentes em uma focalização externa. Dentro das características do modo dramático, os diálogos das personagens em “O monstro”, intercaladas com as observações do narrador, criam uma cena “que emerge tão logo os detalhes específicos começam a aparecer” (FRIEDMAN, 2002, p. 172). A primeira personagem a falar é o capitão, que faz o preso se sentar na cadeira e pede calma aos jornalistas, evidenciando o frisson que envolve o momento. Após a fala do capitão, o narrador onisciente toma novamente a focalização, para reforçar as impressões sobre a figura do monstro. “O preso, sentado, de mãos algemadas, olhava assustado para aquelas caras todas ao seu redor e as máquinas” (VILELA, 1973, p. 94-95, grifo nosso). A repetição da palavra assustado reforça a imagem frágil do acusado. No inicio da entrevista podemos observar que mesmo predominando o discurso direto, o narrador, aqui entendido como uma espécie de alter ego5 ao qual o escritor transfere a incumbência de narrar se mostra para expressar suas impressões da cena. Em contraponto à direção de cena presente no conto de Vilela, a narrativa de Drácula Tupiniquim (1989) utiliza-se de sumário que, marcado pela descrição de um evento passado, não se desenrola na frente do leitor, e não produz o que Friedman chama de “momento de revelação” (FRIEDMAN, 2002, p. 181). De forma oposta, Vilela consegue desenvolver uma das características do modo dramático, que é “implicar mais do que aquilo que afirma [...]” (FRIEDMAN, 2002, p. 181). Vejamos, por outro lado, um exemplo de diálogo retirado de Drácula Tupiniquim, em que a autora informa um suposto abuso sexual sofrido por uma vítima: – O que você fez com ela? – Matei. – E depois, fez mais o quê? – Besteira. (LEITE, 1989, p. 30). Agora vejamos a recriação dessa mesma informação em Vilela: Outro repórter: se ele tinha feito alguma coisa com as mulheres. – Você fez alguma coisa com as mulheres? – Como? 5 A definição de alter ego aqui se encontra em MOISÉS, 2004, p. 362. 162 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 – As mulheres que você matou: você fez alguma coisa com elas? – Fiz – os olhos mexeram rápidos. – Quê que você fez? Respondeu quase sem mexer a boca, os repórteres chegaram mais perto para ouvir. – Fala alto – disse o capitão; – não precisa ter medo, todo mundo aqui é seu amigo. – Fiz arte – disse o preso. No rosto do capitão dessa vez o sorriso foi mais forte do que sua intenção de manter uma aparência impassível. Os jornalistas riam, houve um relaxamento geral em que todos se sentiram bem e amigos ali dentro. (VILELA, 1973, p. 99-100). Mais do que a informação, o autor trabalha o ambiente em ela se desenrola. Usando novamente a perspectiva do narrador onisciente pela focalização externa, Vilela causa um efeito de ambiguidade sobre a culpa ou inocência do preso. Quando o narrador nos informa que “os olhos [do preso] se mexeram rápidos” ao responder positivamente a pergunta, essa observação sutil leva o leitor a questionar: por que se mexeram rápido? Logo, podemos pensar que a demonstração da excitação do condenado poderia ser tanto causada pela vergonha da culpa como pelo caráter constrangedor da pergunta. Lembremos que o preso está cercado por soldados e jornalistas. Observemos também que o eufemismo “fiz arte” provoca um estado cômico entre os presentes, que não conseguem controlar o sorriso. Para nos dar essa informação, Vilela opta pela onisciência ilimitada do narrador, que pluraliza a análise mental das personagens no período “Os jornalistas riam, houve um relaxamento geral em que todos se sentiram bem e amigos ali dentro” (VILELA, 1973, p. 100). Essas modulações estilísticas trabalhadas por Vilela no conto revelam o que Reis chama de “posicionamentos ideológicos e afetivos” (REIS, 1999, p. 367) dos personagens. Já no fim do conto a focalização retorna para o narrador: A multidão ia se dispersando, comentando sobre o que tinha ouvido. Do prédio saiam os jornalistas: – Decepção – dizia um repórter; – vim esperando encontrar um monstro e encontro esse pobre-coitado. – Eu também – disse o outro; – esperava coisa bem melhor. Mas pelo menos teve uns lances bons. – Isso houve. – E pode dar uma boa notícia, você não acha? – Claro. (VILELA, 1973, p. 101) E assim termina o conto, com diálogo que ressalta a impressão de pobre-coitado do preso, sem questionar se ele é ou não culpado pelos crimes de que foi acusado. A irônica frase “E pode dar uma boa notícia, você não acha?” deixa claro que o objetivo aqui não é questionar, buscar a verdade por trás dos fatos, mas usar os dados coletados na entrevista para produzir o que os jornalistas chamam de “boa noticia”. 163 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Considerando a transposição histórica no conto “O monstro”, verificamos que, mais do que uma narrativa ficcional, o autor nos revela a sua impressão sobre a história, a de Orlando Sabino e a do processo histórico em geral. Vilela nos desperta a atenção para as únicas pessoas que naquele momento poderiam chamar a atenção para a inocência do preso: a imprensa. Em “O monstro”, a passividade do chamado quarto poder — a imprensa, o “monstro” real que emerge da narrativa — se mistura aos egos inflados, como o do capitão e do jornalista com ares humanitários, desencadeando na espetacularização da história do “monstro” que, desde o nome exagerado, se mostra uma invenção não condizente com o efeito de sentido que Luiz Vilela constrói ao recriar a história. POINT OF VIEW AND FOCUS IN “O MONSTRO”, BY LUIZ VILELA ABSTRACT: From the observation of autobiography aspect in Luiz Vilela’s works, our article investigates the transposition history/ficcion in the short story “O Monstro” (“The monster”, in free translation), from O fim de tudo (1973). This short story reworks a historical episode happened in 1972 during the military dictatorship. Then, were attributed to Orlando Sabino, a disturbed mental man, various crimes happened in place called Pontal from Triângulo Mineiro. In short story, Vilela recreates the moment that journalists e citizens wait to see the newly captured. The scenario of this short story is the police station where the accused is submitted to a press conference. The history from Sabino was examined in books like the non-ficcional Operação Anti-guerrilha (1979), by Joaquim Borges, O monstro de Capinópolis (2011), by Pedro Popó, the fiction Dinastia das Sombras Carlos Alberto Luppi, beyond the juveniles fiction Drácula Tupiniquim (1989), by Alciene Ribeiro Leite. Having this works like historical supports, the short story by Luiz Vilela and coming the study about the point of view and focus in the narrative, let’s compare to narrative from Alciene Ribeiro Leite, Drácula Tupiniquim, to expose the sense effects Vilela builds that recreate history in a fiction. KEYWORDS: Fiction/history. Narrator. Autobiography REFERÊNCIAS: BORGES, J. Gabrielão Solé e outras histórias. Belo Horizonte: Inéditos, 1979. BORGES, J. Operação Anti-guerrilha. 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Os resultados deste trabalho mostram que a narrativa construída em “Os Sertões” dá uma caracterização própria que identifica e revela toda a identidade da população que participa desta trama e que se confundem com a territorialidade em que estão contextualizados, não descartando a caracterização do tempo em que foi construída a análise desses expedientes. Para tanto, a realização do trabalho seguiu a metodologia de práticas e exercícios de leituras significativas da obra em questão e de comentadores e estudiosos de Euclides da Cunha, um dos maiores interlocutores da vida e cultura sertaneja. PALAVRAS-CHAVE: Estudos Literários. Narrativa. Os Sertões. Euclides da Cunha. Introdução Os Sertões de Euclides da Cunha é um marco na história brasileira, uma obra literária que dentre os grandes literatos nacionais é considerada uma das mais importantes e este fato se confirma quando esta obra transgride do mundo possível da literatura e se instala envolta de outras ciências que a tomam como base para servir-se dela como um ponto de partida para estudos avançados nas áreas sociológicas, antropológicas, psicológicas, enfim, é um exemplar que permeia variados campos do conhecimento. Euclides da Cunha foi um literato ímpar, além de conspirar a favor das correntes ideológicas que o cercavam sendo um ensaísta e positivista legítimo que defendia os republicanos e os ideais abolicionistas, também viu-se como um crítico da hegemonia litorânea brasileira. Foi escritor e redator do Jornal “O Estado de São Paulo” – motivo pelo qual foi enviado a Canudos para cobrir os últimos momentos da guerra. Nascido em 1866 no Rio de Janeiro teve contato com a formação militar e ao se desligar dos serviços militares se dedicou ao 1 Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). PIBIC/UCDB/CNPq. Campo Grande – MS. E-mail: [email protected] 2 Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Campo Grande – MS. E-mail: [email protected] 166 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 curso de engenharia. Euclides da Cunha morreu em 1909 assassinado pelo amante de sua esposa3. Os resultados e contribuições oportunizadas por essa obra euclidiana se mostram por meio de instrumentos conceituais e metodológicos de seu tempo. Sua obra está inserida no PréModernismo brasileiro e no momento da transição do Império para República no Brasil. Este período compraz com os autores que se preocupam com a busca de uma identidade para a nação, o Pré-Modernismo serviu como um período transitório para o Modernismo e vem marcado pelo apreço à realidade brasileira da época, versa sobre o regional incorporando as tensões sociais existente divergindo da idealização romântica até então vigente, há a incorporação da visão crítica frente aos problemas sociais que o país enfrentava com o advento republicano o que atiçou o estigma dos escritores para expressar a crise de identidades e aspectos da angústia existencial, o Pré-Modernismo é marcado por dualizar a literatura e a realidade. Euclides ao incorporar a corrente do Pré-Modernismo rompe com as tradições impondo sua linguagem autônoma que desbrava a “periferia brasileira” trazendo à tona uma nova visão do brasileiro que se confunde com o sertanejo heróico. Uma formação marcada pelo constante jogo efêmero do cientificismo e ideologias que de certo modo tocou as concepções euclidianas, porém não foram determinantes na tocante projeção de originalidade com que se destacou Euclides, e que, apesar de posicionamentos ideológicos soube como ninguém neutralizar-se de aferições pessoais e expor de maneira categórica a construção descritiva da terra sertaneja, do homem que a tinha como habitat e formalizar o verdadeiro homem brasileiro. A construção da narrativa em “Os Sertões” de Euclides da Cunha revela a primorosa formação da obra literária como um todo. A narrativa sobre “A Terra” em que se caracteriza o meio é feita a partir de um contraste científico e literário permitindo que o leitor se aproxime ao máximo do conhecimento de como é este espaço, a narrativa do “Homem” é feita a partir de descrições físicas e psicológicas colocando o leitor frente a frente com o homem sertanejo, e por fim, essas duas narrativas descritivas desembocam na Guerra de Canudos – “A Luta” – momento no qual emerge toda a bravura deste brasileiro que defende com um instinto animal seu habitat e nos mostra essa intrínseca relação entre o homem e a terra. Toda essa seqüência narrativa é que constrói o desenvolver da obra e a coloca como um marco referencial para a história, a cultura e a literatura brasileira. Primeira parte: “A terra” Sabe-se que Euclides fora um grande estudioso não restringindo-se apenas à sua formação, mas apoderando-se de outras áreas do conhecimento que o ajudaram na integralidade 3 Informações retiradas da obra Os Sertões em uma edição comentada pelo professor Adelino Brandão, um dos maiores especialistas da obra euclidiana. A referência completa desta obra estará relacionada na lista bibliográfica deste trabalho. 167 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 de seu conhecimento tal como o público ledor reconhece notoriamente. A primeira parte da obra explicita inúmeras características da terra que compõe o sertão, traz informações geográficas, climáticas, informações acerca da natureza (fauna e flora) e os componentes referentes à gênese desta terra ignota4. Ao contrário do que fora proposto no início de seu trabalho – relatar os fatos da Guerra de Canudos – Euclides vai além de uma mera descrição e relatos dos fatos e constrói uma narrativa épica transformando seu diário da expedição em uma grande obra literária que contempla desde suas análises sobre as condições da terra e do sertão, do homem e dos problemas sociais, evidencia a luta contra a seca e fornece dados preciosos ao leitor quanto ao conhecimento dos intervenientes que formam o sertanejo. Ao tratar da terra Euclides delonga a leitura por descrever detalhadamente os aspectos do terreno e a formação geológica da área. É um texto semi-hermético, pois há várias definições científicas específicas do uso de profissionais competentes com a geografia e atividades afins. “Como reflexo de sua formação acadêmica e atuação profissional, o jornalista-engenheiroescritor hibridiza, magistralmente, o seu discurso, numa criação rara e impossibilitadora de enquadramentos” (SANTOS, 2006, p.12), isto é, a fala de Celina Santos retrata todas as pressuposições das quais Euclides parte para lançar seu discurso, este autor deixa sua marca em seus escritos afirmando a noção de que a língua torna-se uma prática social a partir do momento em que cada autor se auto-reflete por meio de seu discurso, pois traz todo o espectro cultural da formação pessoal de si. Todo o discurso científico de Euclides nos leva a pensar o que há de específico em sua linguagem que faz de Os Sertões uma obra literária? Para chegarmos próximos a uma resposta tomemos dois grandes autores para sustentar nosso posicionamento. Um deles é Roman Jakobson quando diz que “o objeto do estudo literário não é a literatura, mas sim a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária” (apud Boris Schnaiderman, 1978 in: MARINHO, 2009, p.9), outro grande teórico que pode nos ajudar é Tzvetan Todorov quando afirma que “tal ciência se preocupa não mais com a literatura real, mas com a literatura possível, em outras palavras: com essa propriedade abstrata que faz a singularidade do fato literário, a literariedade”. (TODOROV, 1973, p.15). Desde 1920 com os formalistas russos e a abordagem estruturalista da literatura é que podemos notar essa preocupação de críticos literários em vislumbrar a obra em si, respeitando os elos criados entre leitor e textos, pois a literariedade é fruto da construção literária de determinada obra. No caso de Os Sertões é importante ressaltar essa proposta, pois a literariedade está nas entrelinhas da obra, na sutileza do discurso euclidiano. Uma leitura superficial da obra euclidiana não desvela seu caráter literário. É preciso desmistificar a noção de que Os Sertões formam um jogo de usos cientificistas e propor uma leitura com maiores dimensões para deixar aflorar as representações de cunho literário e a construção da literatura possível que trará uma visão ampla no que tange ao entendimento da representação artístico-literária da obra, só assim poderemos estar a par da propriedade abstrata, 4 Termo utilizado por Euclides da Cunha para se referir ao sertão de Canudos. 168 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 a literariedade da obra, assim, por trás de tanta cientificidade podemos encontrar o que torna Os Sertões uma obra literária. A narração se torna um fator extremamente oportuno nesta objeção, pois é a partir dela que emergem a criatividade, a imaginação, é o momento em que um emissor projeta seu discurso a fim de interagir com um receptor, é o ponto nevrálgico da construção de possíveis realidades fazendo o uso da palavra. Trazendo agora a narração para dentro da literatura, “o material com que trabalha a literatura é fundamentalmente a palavra” (CHIAPPINI, 2001, p.18) e o que faz Euclides é exatamente uma narrativa condensada que relata um acontecimento histórico criado pelo brilhante uso da palavra – ora por termos científicos, ora na utilização de figuras de linguagem – enfim, toda sua descrição e o rico preenchimento do texto com informações específicas se desdobram de um simples relato para estratégicas poéticas que culminam num discurso literário constituindo um objeto poético. A narração euclidiana além de contemplar os componentes básicos que comumente encontramos (foco narrativo, a ação, personagens, tempo e espaço) ela se faz numa sequência lógica e conexa entre as três partes formadoras da obra, bem como traz uma expressão dos pressupostos que fazem frente ao pensamento do autor e é responsável pela criação de uma imagem que atende as demandas situadas no contexto em que foram construídas, o que revela um universo novo para leitores e apreciadores. Para corroborar este posicionamento voltemo-nos para Brait – “ter sempre em vista a situação social e histórica concreta do sujeito” (2008, p.23). Para que o leitor tome conhecimento com maior exatidão do momento em que se constrói a narrativa de Euclides, contextualizemos o período Pré-Modernista de nossa literatura. “Todos sentiam a necessidade de imprimir um cunho nacional à literatura que se produzia no Brasil, fosse por via do indianismo, do sertanismo, do regionalismo, fosse qual fosse o símbolo daquele ‘instinto de nacionalidade’ como sendo o ideal literário do momento” (COUTINHO, 1988, p.232). Foi uma reunião de vários autores que defendiam esta mesma causa e Euclides da Cunha é o principal expoente desta fase com a publicação de Os Sertões. A sua narrativa rompe com tradições e transforma a visão nacional criando um “novo brasileiro”. Muito fortemente influenciado por nativistas europeus, o posicionamento de Euclides vincula-se à cultura estrangeira e à noção correspondente ao determinismo biológico e geográfico5, bem como ao Positivismo que interferem no modo com que Euclides defende suas idéias, na maneira como trata as condições do povo sertanejo que vive em condições adaptadas àquela terra. No entanto, os posicionamentos sócio-ideológicos do autor não desalenta a construção literária de seu discurso, há o diálogo de uma construção eminentemente literária quando o autor cria uma imagem do espaço, da personagem e da relação entre estes dois entes, 5 Noções que atribuem capacidades específicas inatas a “raças” e consideram que as diferenças de ambientes físicos condicionam a diversidade cultural. Teorias desenvolvidas no final do século XIX e início do século XX, defendidas por Spencer, Huntington, entre outros. 169 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 mas por outro lado há seu posicionamento estritamente político consoante com o ponto de vista ideológico assumido pelo autor. Na primeira parte da obra Euclides começa levando seu leitor a fazer uma viagem. Saindo do planalto central, passando pelos litorais sul do Rio Grande a Minas Gerais em meio a chapadões e cordilheiras marítimas até ir se descambando para o interior. Narra com impetuosa descrição esse caminho criando uma imagem possível de como é essa viagem, o leitor nem precisa se locomover para realizar esse trajeto. Outra característica importante a ser considerada é em relação a própria concepção da literatura da época, essa mudança da visão central para o olhar do interior do Brasil e a busca pela nacionalidade em regiões até então desconhecidas marcam um posicionamento relegado à época da escrita de Euclides. Nota-se notáveis mudanças de relevos e da terra que ocorrem, “verifica-se, assim, a tendência para um aplainamento geral. Porque neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arquenas, a região montanhosa de Minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte” (CUNHA, 2005, p.31) – reparem que a criação dessa imagem configura uma antítese, duas regiões díspares que se encontram na narração – uma no segmento do litoral, outra no interior; uma emerge da amplitude do mar, outra provém de formações sedimentares, mas de forma comum as duas “fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina” (CUNHA, 2005, p.27) e concomitantemente contribuem para a formação da nossa identidade. Ao chegar de viagem o autor coloca seu leitor na entrada do sertão e o localiza: “está sobre um socalco do maciço continental, ao norte” (CUNHA, 2005, p.36) e segue apresentando essa terra ignota. Na caracterização do território – espaço e local onde é dado o foco narrativo – é possível notar como são as condições de solo, relevos, clima, enfim, Euclides brilhantemente revela a seu leitor toda a região sertanista descrevendo cada ponto da área. Nesta parte da obra a grande personagem é a terra, é ela quem ganha destaque sendo tomada como principal ente de reflexões e por fim é a quem Euclides se preocupada em contextualizar e descrevê-la com afinado repertório de adjetivos. A terra ganha vida e se torna a grande personagem desta parte da obra: “despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras; agravando todas, no aspecto paupérrimo, o traço melancólico das paisagens” (CUNHA, 2005, p.43) essa é mais uma característica que confirma o potencial literário da obra, o leitor deve exercer sua capacidade imagética para formalizar uma paisagem melancólica, uma linguagem poética que chama atenção sobre si mesma interpelando o leitor a criar uma imagem da descrição. Os usos recorrentes de algumas figuras de linguagem como a antítese, a hipérbole, o pleonasmo chamam a atenção pelo modo com que é usado. “[...] surge em números pontos, dando, às vezes, a ilusão de encontrar-se de repente naqueles ermos vazios [...]” (CUNHA, 2005, p.45). 170 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Euclides se reporta ao uso de várias adjetivações e personificação ao falar da terra, uma estratégia poética com o uso de pleonasmos que reforçam alguns qualificativos da terra dando também a idéia da hipérbole. Cria-se assim uma primeira impressão do leitor com o contato com o sertão na chegada, assim como deve ter ocorrido com Euclides ao se deparar com a região na sua chegada. Ao utilizar a expressão “ermos vazios” identificamos um pleonasmo construído para intensificar uma ideia de hipérbole, pois um ermo já é vazio, porém a característica e o sentimento que se cria com o contato com a terra necessita dessa construção para exteriorizar a realidade para mostrar “um lineamento incisivo de rudeza extrema” (CUNHA, 2005, p.46). Nota-se nestes dois trechos selecionados o uso de pleonasmos que inculcam no leitor a noção de tamanha extremidade do impacto que causa em uma pessoa ao se deparar com aquele sertão, sair de uma região central costumeira do cidadão e adentrar numa região desconhecida e solitária, se defrontar com aquela personagem viva, mas com traços de morbidez. Após essa descrição do meio físico que faz Euclides, ele aponta para a caracterização do clima. “Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente sobre os últimos, estes, por sua vez, contribuíram para o agravamento daquelas – e todas persistem nas influências recíprocas” (CUNHA, 2005, p.55). A união das condições adversas da terra agra, rude com que nos deparamos tende a piorar quando sentimos o queimar do sol que paira sobre aquela região. Desde o início da viagem na qual nos propõe Euclides, a mudança de cenário é constante e vai se agravando cada vez mais na medida em que contatos com as descrições narrativas vão surgindo. Nota-se a construção literária construída acerca do espaço é tomada por antíteses mostrando o contraste das regiões centrais com o espaço sertanejo. Até a escrita do autor é fortemente influenciada pelo clima e pela terra na qual Euclides teve de conviver alguns meses. Euclides diz que “o que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções de guerra” (CUNHA, 2005, p.58). É possível imaginar todas as condições adversas que Euclides tenha passado o tempo durante sua expedição em Canudos, somente pelo contato com a terra e o clima com que teve de se adaptar. Essas condições climáticas e geográficas adversas do espaço enredado são tão marcantes que até mesmo a vegetação que ali se instala precisa adaptar-se ao solo e ao clima. É uma verdadeira luta pela sobrevivência, a seca castiga árvores, animais, homens que daquela terra fazem seu habitat, “o homem luta com árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo” (CUNHA, 2005, p.85). Vê-se assim o grande martírio secular entre a ligação do homem e a terra, um território que apresenta condições péssimas de vida e paradoxalmente podemos encontrar um homem que ali habita, vida que emerge e se cria diante daquelas condições e que desenvolve capacidades de sobrevivência, homens que lutam por sua terra quando preciso. Na seqüência poderemos ver como é formado este homem que está posto nestas condições, como ele desenvolve estratégias para superar as adversidades e manter uma relação intrínseca com a sua terra. 171 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Segunda parte: “O homem” A narrativa euclidiana é consistente e obedece a uma lógica conexa dentre as três partes elementares da obra. Euclides parte de um ponto de vista determinista na qual o meio interfere na formação do homem, e isso se materializa quando é feita a narração das condições e características da terra (espaço condicional que se desenvolve o enredo) que interferem no modo como o homem vive nesse espaço. É possível notar essa perspectiva na transição de uma parte para a outra e como vai sendo feita a narração e a construção da imagem deste homem. O homem sertanejo narrado por Euclides teve um processo histórico para sua formação. Segundo explicações do próprio autor surge primeiro frente à complexidade do problema etnológico no Brasil de outrora. Todo o processo de colonização do Brasil está imbricado na formação do sertanejo, pois o cruzamento da tríade etnológica histórica entre índios, negros e colonizadores foi responsável por erigir uma “mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mameluco6 ou curiboca7, e o cafuz8” (CUNHA, 2005, p.102). Esta é uma idéia muito forte que veiculava no pensamento dos principais autores desta época, defendiam que toda essa miscigenação é que gerou uma “nova raça” que é representada também pelo homem sertanejo. Em segunda instância, outra explicação para a formação deste homem típico do sertão é a influência do meio, nas próprias palavras de Euclides da Cunha é possível notar estes dois fatores que contribuíram para a formação do homem sertanejo: “A face primordial da questão ficou assim aclarada. Quer resultem do homem da Lagoa Santa cruzado com o pré-colombiano9 dos sambaquis10, ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte [...]” (CUNHA, 2005, p.100). A noção determinista e positivista se faz muito presente neste ponto de análise por parte dos estudiosos do início do século XX, o meio é determinante e o homem é destinado a atingir a civilização sempre com o ideal de progresso afastando-se do estado de selvageria para a condição de civilizado. Ao descrever o homem, por exemplo, o coloca como fruto do meio oriundo da terra sertaneja que vai se formando criando condições que propiciem a sua subsistência. Nesta segunda parte da obra o homem se torna a grande personagem, pode-se notar que dentro do discurso narrativo euclidiano os personagens vão trocando de lugar, há a “simbiose entre a terra e o homem” (VENTUTA, 2002, p.31 apud SANTOS, 2006, p.23) num 6 Mameluco: “mestiço de branco com índio ou de branco com caboclo; mamaluco” (HOUAISS, 2009, p.1226). Curiboca: “Mestiço do branco com índio; caboclo; cariboca”; (HOUAISS, 2009, p.587). 8 Cafuz: “Sinonímia de mestiço”. (HOUAISS, 2009, p.359). 9 Pré-colombiano: antes de Colombo. 10 Sambaquis: “Acumulação pré-histórica de moluscos marinhos, fluviais ou terrestres realizada por índios, em que freq. se encontram ossos humanos, objetos de pedra, chifre e cerâmica”. (HOUAISS, 2009, p.1701). 7 172 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 primeiro momento a terra ganha vida nas palavras de Euclides e qualidade do homem, em contrapartida o homem também recebe qualidades da terra, é uma troca recíproca.. O foco narrativo euclidiano ao descrever o homem é muito vivo, o leitor se depara com todas as idiossincrasias fisiológicas, psicológicas e sentimentais do sertanejo. O sertanejo vive confinado nos sertões contrapondo-se ao homem do litoral ou dos homens próximos aos grandes centros e do sul, e a grande crítica que Euclides assume é exatamente ser avesso ao cânone social existente. É perceptível entre leitores e estudiosos da obra euclidiana essa antítese que se instaura ante ao choque cultural da formação dos vários “homens brasileiros” e muito satisfatório perceber nas entrelinhas a luta pela a igualdade social que vem de muito tempo, a criação desses entre-lugares nos leva a ressaltar que apesar de ainda não termos atingindo as igualdades sociais e raciais como sonhamos podemos nos orgulhar de ter um Brasil formado por vários “brasis” que enriquece nossa cultura, conhecimentos, respeito pela diversidade e a formação de uma nação diversa. Euclides é muito sutil na sua descrição, as visões voltadas para o homem marginalizado e para as terras não litorâneas, como narrador observador, tira o Brasil da condição de terra do exílio, desmistifica a idéia de que o país era um vasto presídio mudando o foco da noção da identidade nacional, era a luta por mostrar a realidade – não mais idealizada – mas com todas as suas condições, mazelas, porém vislumbrando a vasta perpetuação da brasilidade e as “várias culturas brasileiras” em todos os cantos do país. Essa raça forte como defende Euclides é formada a partir de estratagemas típicos de literariedade da obra, além de o autor aferir todas as condições deterministas e positivistas da ideologia da época, o que mais importa para a literatura é a construção dessa personagem a partir do discurso narrativo literário euclidiano. Em um trecho selecionado deste livro, podemos ter uma noção desta construção literária. Pela importância do trecho, comenta-lo-emos a seguir, a partir de suas referências internas, e a partir de alguns exercícios de reconstrução do significado das palavras utilizadas pelo autor: “[...] O sertanejo antes de tudo é um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos11 do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados[...]”. (CUNHA, 2005, p.146) A descrição da principal personagem deste capítulo da obra que se confirma na figura do homem sertanejo é exemplificada no trecho acima citado. A construção da narrativa está intrinsecamente relacionada com figuras de linguagem tais como a antítese quando o autor revela 11 Neurastênico: “Que ou aquele que enraivece com facilidade; relativo a neurastenia”. (HOUAISS, 2009, p.1352). 173 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 que o homem é um forte, mas depois apresenta sua aparência dessemelhante com a figura de um homem forte. Depois ele atribui o termo Hércules-Quasímodo ao personagem, esta passagem compreende um paradoxo, pois se instala uma referência que não condiz com a realidade costumeira, também está imbricada nesta relação duas partes excludentes entre si, uma se mostra na figura de Hércules, ser mitológico com boa aparência, forte, um semi-deus. Em contrapartida, há o Quasímodo, figura apavorante, esdrúxula, nome no sineiro corcunda da obra de Victor Hugo, observa-se a relação de exclusão entre os dois termos que origina assim um oxímoro para representar a figura do sertanejo. Toda essa forma de descrição do homem é narrada a partir das experiências de Euclides em contato com este homem, mas a profundidade que estamos realçando não é a mera descrição, mas a construção de uma narrativa seguindo os traços de um discurso literário, recorrendo aos usos de recursos linguísticos de efeito para tornar o texto mais que um relato dos fatos. No decorrer da obra o leitor irá se deparar com outra passagem que caracteriza o homem sertanejo, é criada uma imagem verossímil dentro dos recursos lingüísticos da literatura e do discurso narrativo deste personagem na presença de destaque da antítese dentro da comparação da vida do gaúcho com o homem sertanejo: “[...] A luta pela vida não lhe assume o caráter selvagem da dos sertões (a vida do gaúcho). Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do Equador [...]” (CUNHA, 2005, p.149). O autor utiliza do recurso da antítese para mostrar as condições díspares que sobrevivência de duas cultural diferentes, uma é a do gaúcho que não tem a preocupação com a seca, com a pobreza e que portanto, não é um homem que trava um embate com a terra para sua sobrevivência. Por outro lado, o sertanejo enfrenta todas as condições adversas da terra e cria respostas diferentes das atitudes dos gaúchos e se forma de maneira robusta para enfrentar a lida diária e constante em sua terra. “[...] As suas vestes são um traje de festa ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As amplas bombachas, andrede talhadas para a movimentação fácil sobre os baguais, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam em espinhos dilaceradores da caatinga [...]” (CUNHA, 2005, p.150). Em uma das mais belas passagens da obra euclidiana, nos deparamos com esta afável comparação de duas culturas díspares. Comparação estilizada pela antítese, pois mostra a dessemelhança de terras, condições naturais e por fim fortunas culturais desenvolvidas e apreendidas para das respostas às condições impostas e manter-se vivo diante destes ambientes. 174 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O autor revela que é mais fácil viver num ambiente amistoso como o do sul, pois este sujeito não enfrenta as penosas condições que perpassam os sertões. O homem sertanejo está condenado à vida, enfrenta horas tristes, horas felizes, tempos de abastança, tempos de miséria, sua vida e sua cultura se instauram como uma servidão inconsciente muitas das vezes, mas o sertanejo a encara, faz-se forte, esperto, apresenta destreza e prática para a luta. Além de todas estas características já mencionadas da maneira como vive o sertanejo ante as condições de sua terra, e também das descrições de seus caracteres, afirma-se aqui que o sertão e o homem sertanejo são dois entes inter-relacionados. Na sequência da obra, o leitor será posto diante da religiosidade deste homem, que apesar de forte, destemido, que desponta grande relação com a terra do sertão, apresenta sua parte religiosa ganhando vida na figura de um outro homem. Antônio Conselheiro, reverenciado como um documento vivo de atavismo, era aclamado pela multidão como o representante natural das aspirações mais altas. A figura de Conselheiro marca a intriga da narrativa, é quem conduz toda a população canudense contra as aspirações corruptas da república velha, na terceira parte da obra, momento em que o homem e a terra juntos se posicionam contra os ataques militares é que podemos notar o grande momento da intriga da narrativa, o conflito, o clímax e o desfecho da obra. É, portanto, o momento para o qual Euclides da Cunha foi enviado para fazer seu relato. Terceira parte: “A luta” Como já foi dito, Euclides da Cunha fora enviado ao sertão da Bahia para acompanhar a guerra de Canudos. Ao chegarmos a terceira parte de sua obra vamos ver quais os fatores envolvidos para que se chegasse até a luta e qual o desfecho dessa luta. Os relatos já feitos do homem e da terra são fatores decisivos para a batalha, pois vimos que é uma terra que ganha vida e condiciona o homem que nela habita e este homem mantém uma relação recíproca com a terra pela qual vai lutar. Tendo estes dois fatores delineados na narrativa euclidian, encontramos a terceira figura que oportuniza essa guerra, Antônio Conselheiro. Este homem religioso é quem reforça a fé cristã na população do sertão, é quem torna os moradores daquele espaço religiosos e um tanto quanto fanáticos em relação aos atributos de Conselheiro. Em luta aberta com o meio não seria difícil caracterizar uma raça veemente religiosa, uma herança extravagante já sem o mesmo prestígio nas regiões litorâneas sem mantém viva nos confins do sertão. É na figura de Conselheiro que sente-se a tradição sendo mantida. Um homem que não foge às características de traços fortes e marcantes do sertanejo encontra em Monte Santo um refúgio para abrigar seus seguidores e com a força de sua palavra conquista e faz com que todos despontassem o que tinham de mais tenaz. Oriundo da luta entre famílias tradicionais daquela região (Maciéis e Araújos) surge a figura inquietante de Antônio Conselheiro. Conselheiro vivia como um asceta, fazia peregrinações por entre os sertões encerrando a imagem de Cristo. Era avesso às concepções republicanas, leis e o controle de um Estado. Abominava os impostos e 175 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 punições anti-humanistas para com aqueles que não podiam servir as condições governamentais. Antônio Conselheiro era assim descrito: “[...] ‘Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as lomgas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente’ [...]” (CUNHA, 2005, p.241). Este homem caracterizado acima se torna o principal personagem da intriga. Antônio Conselheiro era considerado um messias, a igreja concordava com sua peregrinação, Canudos era visto como a Vendéia e a pregação de Conselheiro era contra a República. Este homem que era santificado por seus seguidores se torna o protagonista desta batalha tendo como antagonista o Estado Republicano brasileiro. Para aqueles que serviam Conselheiro, que o ajudava nas suas peregrinações, na construção de templos e igreja, Canudos era visto como um lugar onde todos tinham as mesmas condições e eram tratados iguais sem ter que pagar impostos nem serem comandados por leis. Em contrapartida, a igreja contestava os atos de Conselheiro delegando que não tinha autoridade para exercê-los, e o Governo, liderado na época pela figura do Presidente Floriano Peixoto, considerado o “marechal de ferro” pelos seus ideais políticos impiedosos e grosseiros, considerava Canudos como um grande perigo para a República. “[...] Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura [...]” (CUNHA, 2005, p.197). Devido a essa intriga entre o Estado Republicano e Antônio Conselheiro com seus seguidores avessos aos ideais republicanos é que emerge a luta e o conflito entre essas duas partes. Para derrotar Canudos e eliminar qualquer ideal contrário à República, organizou-se quatro expedições militares. Dentro do discurso literário da narrativa desta batalha podemos destacar as profecias e pregações de Conselheiro contra a República: “[...] ‘Garantidos pela lei Aquelles malvados estão Nós temos a lei de Deus Elles tem a lei do cão! [...]”12 (CUNHA, 2005, p.238) 12 Manuscritos das palavras de Antonio Conselheiro que Euclides da Cunha citou mantendo a linguagem original e ortografia da época. 176 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Podemos notar nesta quadra – modelo muito utilizado pelos poetas sertanistas – a presença de rimas entre os versos (estão e cão), percebe-se também que há uma melodia na forma em que são postos os sons. Dentro do discurso literário damos destaque a este exemplo e outros que se repetem durante a obra que mostram que por trás de um discurso técnico-científico há a beleza do discurso literário e uma forte literariedade na obra euclidiana. Seguindo a narrativa, alguns elementos podem ser elencados para fomentar a presença marcante da literariedade desta obra. O conflito que se instaura entre Canudos e o Governo na figura da guerra; o clímax se configura na mais extensa expedição militar enviada a Canudos comandada pelo coronel Moreira César – o personagem no conflito que representa fisicamente a figura do Estado – Euclides o descrevera assim: “[...] homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinha os traços característicos nem de um, nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo [...]” (CUNHA, 2005, p.318). É uma personagem muito figurativa na presença de uma antítese entre “campeador brilhante” e “demônio crudelíssimo”, é também figurado por um oxímoro, pois duas idéias excludentes entre si, mas que o autor afirma que é formado pelas duas ao mesmo tempo. Também é possível criar uma imagem possível no mundo literal por meio de uma metáfora, sendo que a figura física do homem Moreira César com essas descrições acima, representa a imagem do Estado e do Governo Republicano da época. Um como um ente físico, concreto, humano, o outro como um ente simbólico, uma instituição não humana, mas com características e maneiras corteses quando querem, e também traços crudelíssimos quando avultados por forças antagônicas a seus ideais. A batalha e a guerra de Canudos é delineada num tempo determinado e cronológico. Dura de 1896 quando em outubro deste mesmo ano o Dr, Arlindo Leôni, juiz de direito, solicita do governo da Bahia providências contra o pessoal de Antonio Conselheiro. Em 4 de novembro é montado uma expedição de cem praças sob o comando do tenente Manuel da Silva Pires Ferreira e um médico. No dia 21 do mesmo mês, os soldados são atacados pelo pessoal de Conselheiro de derrotados. No dia 25 de novembro, 200 praças e 11 oficiais sob o comando do Major Febrônio de Brito se organizam numa marcha contra Conselheiro. Em dezembro essa expedição é reforçada e chegam a Monte Santo com 543 praças, 14 oficias e 3 médicos. Depois dos combates, em 19 de janeiro de 1897 são derrotados pelos conselheiristas e fazem a retirada. Ao terceiro dia do mês de fevereiro Moreira César embarca para Canudos, chega com uma expedição de 1.300 homem. No dia 3 de março Moreira César morre, a grande promessa é derrotada e em abril o General Artur Oscar com 2.350 homens segue para a quarta expedição. 177 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Em 2 de outubro somente é que boa parte da população de Monte Santo se entrega, e em 6 de outubro é feita a exumação do cadáver de Antonio Conselheiro 13. Todo esse conflito da guerra entre as duas forças contrárias, de um lado Antônio Conselheiro e seus seguidores contra a República, e de outro lado o Governo Republicano e suas forças militares, é que embasam todo o enredo da trama. Aquela terra árdua do início, aquele homem forte que servia sua terra sertaneja não desmereceram as descrições euclidianas, pois foram fortes até o final e não se entregaram. Antônio Conselheiro e seus seguidores mostraram a quão forte são aqueles que servem a uma terra que amam e lutam por ela incessantemente. O desfecho desta gigantesca narrativa de Euclides da Cunha se dá na fúnebre passagem que Euclides relata quando o cadáver de Conselheiro é levado para o litoral: “[...] Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura ...” (CUNHA, 2005, p.598). De maneira irônica para uns e para outros nem tanto, Conselheiro que fora o principal combatente da República, e esta também uma das fontes da crítica litorânea euclidiana, teve em seu fim o contato com essas terras. Terra que por uma loucura desenfreada pelo capital vão até os confins mais recônditos para manter-se intangível. Conclusão Fazer uma análise de Os Sertões é quase o mesmo que lutar na Guerra de Canudos e perder a batalha assim como o fizeram o homem sertanejo, pois a obra é de uma expressividade tão imensa que vence-nos por apresentar tanto conhecimento que levaria uma vida toda para exauri-lo. Deve-se apresentar as mesmas características expressivas deste homem tão marcante, ser forte, trivial, arguto e ter uma boa precisão na leitura. A obra se apresenta tal qual aquela vegetação da caatinga, com aqueles espinhais que ferem o homem que tentam penetrá-la. O leitor encontra na obra estes enigmas que são quase invulneráveis, sente o arder do sol tenaz que brilha naquele sertão. É preciso que ao se lançar sobre “Os Sertões” desposemos da fé que Antônio Conselheiro nos passa, pois é seguindo os caminhos percorridos por estes personagens que será possível se aproximar de alguma empatia com a obra. Esta se apresenta num primeiro instante com termos que assustam, que fazem o papel mesmo da terra ao dificultar o embate pela sobrevivência, no caso do leitor é dificultada a leitura. Vencida a primeira expedição nos deparamos com homem, que servirá como um exemplo de guerreiro para que o leitor se inspire e vá à luta. Por fim a luta, momento oportuno para aquele que deseja colher o exuberante conhecimento da construção deste Brasil por meio de uma narrativa com todos os ingredientes construído por um dos maiores escritores brasileiros, Euclides da Cunha. 13 Todas essas informações precisas constam na publicação de: CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). São Paulo: Martin Claret, 2005. Edição comentada pelo professor Adelino Brandão. 178 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Não há quem não se sinta um vitorioso ao resistir até o final da batalha, e a luta deste trabalho deixa evidente que a narrativa de “Os Sertões” é eminentemente constituída de um discurso literário tenaz. Há a presença da linguagem poética, dos recursos estilísticos, da melodia harmoniosa dos sons das palavras, enfim, a construção de toda a obra é veemente construída a partir de um discurso narrativo literário. Fica também constatado que no posicionamento impessoal da descrição de Euclides da Cunha sentimos a presença muito viva das ideologias e posicionamentos políticos vigentes na época, como o determinismo e positivismo, e com isso reconhecemos alguns processos pelos quais passou nosso país no seu devir. E fica a lição para qualquer leitor do Euclides da Cunha em “Os Sertões” que há muito o que descobrir nessas terras ignotas, mas levando em conta a obra que a constrói como sua antítese, pois “Os Sertões” jamais será uma obra ignota. THE CONSTRUCTION OF LITERARY NARRATIVE IN “OS SERTÕES” BY EUCLIDES DA CUNHA ABSTRACT: This paper presents some reflections on Euclides da Cunha in order to bring to light some clarification for readers studying his must famous work “Os Sertões”. The objective is to point out how though the use of narration and seemingly simple strategies such poetic author builds his narrative and a series of considerations about life and culture hinterland. The results of this study show that the narrative constructed from “Os Sertões” gives a characterization that identify itself and reveals the identity of population participating in this territoriality and that blend with the terrain in which they are contextualized, but without rejecting the characterization of time which was built to analyze these expedients. To this end, the realizations of the work followed the methodology of practical exercises and readings of significant work in question and commentators and scholars of Euclides da Cunha, one of the greatest actors of backwoods life and culture. KEYWORDS: Literary studies. Narrative. Os Sertões. Euclides da Cunha. REFERÊNCIAS: ABDALA JUNIOR, B. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995. ATAIDE, V. A narrativa de ficção. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974. BRAIT, B. (Org.). Bakhtin Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2008. 179 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 COUTINHO, A. Introdução à literatura no Brasil. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. CUNHA, E. da. Os Sertões: Campanha de Canudos. São Paulo: Martin Claret, 2005. GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2001. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LARAIA, R. de B. Cultura um conceito antropológico. 23. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. MARINHO, M. Literatura: crítica, história e teoria. Campo Grande: UCDB, 2009. MARQUES, H. R. Metodologia do Ensino Superior. 3. ed. Campo Grande: UCDB, 2005. SANTOS, C. L. A poetização do espaço nos sertões de Euclides e Rosa. 2006. 184f. 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Sob essa égide, este artigo se detém, tão somente, numa leitura de A hora da estrela (1977), com o fim de verificar como se dá o processo de tradução apropriativa no último livro publicado em vida pela escritora, tendo como pano de fundo a tradução de A rendeira, de Pascal Lainé, realizada por Lispector em 1975. Para tanto, o aporte teórico volta-se, basicamente, para as reflexões teóricas de Jacques Derrida e Homi K. Bhabha, atravessadas, por sua vez, pelos postulados da Literatura Comparada no tocante aos estudos da tradução. Assim, este artigo evidencia que a tarefa de Clarice tradutora deixa entrever um possível diálogo entre o livro traduzido e objeto de estudo em questão. Além disso, mostra-se também a importância do papel do ofício da tradução em Clarice Lispector, pois, ao propor uma discussão crítica em torno do trabalho tradutório efetuado pela intelectual, o artigo em questão busca reiterar que o processo de tradução em Lispector efetiva-se enquanto processo transcriador que possibilita a escritora-tradutora entregar-se à leitura/tradução por meio de disseminações e suplementos criativos. PALAVRAS-CHAVE: Literatura comparada. Tradução. Disseminação. Suplemento. Transcriação. (...) nunca houve senão suplementos, significações substitutivas que só puderam surgir numa cadeia de remessas diferenciais, o “real” só sobrevindo, só acrescentando-se ao adquirir sentido a partir de um rastro e de um apelo de suplemento etc. E assim ao infinito pois lemos, no texto, que o presente absoluto, a natureza, o que nomeiam as palavras de “mãe real”, etc., desde sempre se esquivaram, nunca existiram: que, o que abre o sentido e a linguagem é esta escritura como desaparição da presença natural. (DERRIDA, 2008, p. 195) Além de acionar uma transposição linguística, o ato da tradução em Clarice Lispector traz em si uma questão que pulula no cenário da crítica cultural-comparatista e que me ajuda a 1 UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CCHS – Centro de Ciências Humanas e Sociais. PPGEL – Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens. Campo Grande – MS – Brasil. CEP 79006-190 – [email protected]. 2 UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CCHS – Centro de Ciências Humanas e Sociais. PPGEL – Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens. Campo Grande – MS – Brasil. 79070-900 – [email protected]. 181 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 compreender melhor as idiossincrasias que parecem partilhadas na produção em questão: o diálogo entre as culturas. Esse diálogo travado por meio do ato tradutório em A hora da estrela (1977) efetiva-se, de fato, quando a escritora-tradutora se põe, na verdade, como uma disseminadora, pois, como afirma Homi k. Bhabha, “deve (...) haver uma tribo de interpretes de tais metáforas3 – os tradutores da disseminação de textos e discursos através das culturas – que podem realizar o que Said descreve como o ato de interpretação secular” (BHABHA, 1998, p. 200). Nessa perspectiva, a tradutora de A rendeira (1975) exerceria, então, em A hora da estrela (1977), atos de interpretações criativos do livro traduzido, fazendo com que, no objeto artístico-cultural de 1977, sobressaísse uma espécie de disseminação tradutória. Tal constatação corrobora a visada pós-colonial de que além das teorias serem itinerantes e, por conseguinte, viajarem, as ideias e as propriedades nas quais se alicerçam todo objeto cultural são destituídas de uma origem precisamente demarcada, fixa, estável, imóvel e inalterável, pois o discurso performático4, proposto por Bhabha (1998), possibilita uma articulação fora de uma leitura que preza o continuísmo, o pedagógico e o cumulativo. Afirmar uma disseminação da tradução em A hora da estrela (1977), nesse sentido, não é pressupor uma continuidade do livro francês na novela da escritora, mas, sim, que esta, enquanto performance narrativa disseminada pela tradução, apresenta um tempo de escrita singular no qual o “contato” com o “outro” aparece, no mínimo, rasurado e camuflado. A tarefa tradutória em Clarice Lispector ativa um processo que fará emergir outro lugar cultural e político, que se esmera em representar a nação. Tal representação, segundo Bhabha (1998), faz com que o intelectual se volte para a necessidade de se pensar as fronteiras entre as culturas como uma questão primordial, não para resolver, mas para, ao menos, entender a problemática da diferença cultural. Sob essa perspectiva, o ato apropriativo da escritora-tradutora deixa claro que as culturas são locais híbridos nos quais as diferenças pululam e estão sempre abertos à uma tradução cultural. Contudo, é importante salientar que 3 As metáforas das quais fala Bhabha (1998) são inerentes ao processo de transformação promovido pela nação no tocante o preenchimento do “vazio deixado pelo desenraizamento de comunidades e parentescos” dos sujeitos diaspóricos. Nesse sentido, as metáforas seriam estratégias discursivas que promovem um deslizamento contínuo de categorias que são acionadas no momento (a temporalidade) de escrever a nação, ainda que esta se projete sobre a condição de exílio (BHABHA, 1998, p. 198 – 203). Nessa articulação, esse deslizar inerente à disseminação é o que concede margem para pensar Clarice como uma tradutora-disseminadora, já que, numa leitura que propõe uma horizontalidade na abordagem dos discursos culturais, nenhuma explicação única, que remeta imediatamente a uma origem única, é adequada, corroborando o fato de que, no caso da escritora, especificamente, em A hora da estrela (1977), há uma origem descentrada no ato criativo de Lispector, no qual se vê acionada, além das reminiscências biográficas e a biblioteca pessoal da intelectual (questões sustentadas no cenário da crítica clariciana), uma convulsão de ideias que são, até certo ponto, disseminadas pela tradução. 4 O discurso performático, em Bhabha (1998), traz à tona a emergência de leituras que se situem num “entre-lugar”, em outras palavras, leituras que suplantem abordagens dualistas e homogeneizantes quando se fala de povo e nação. 182 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (...) na irriquieta tradução da pulsão cultural, lugares híbridos de sentido abrem uma clivagem na linguagem da cultura que sugere que a semelhança do símbolo, ao atravessar os locais culturais, não deve obscurecer o fato de que a repetição do signo é, em cada prática social específica, ao mesmo tempo diferente e diferencial. (BHABHA, 1998, p. 230, grifos do autor) Com isso, ao abrir uma clivagem na linguagem da cultura, a tradução disseminatória em A hora da estrela (1977) vai acionar signos culturais que se encontram, de uma forma ou de outra, presentes em A rendeira (1975). Entretanto, quando esses signos se prestam a uma transposição cultural, como acredito ter ocorrido na novela de Clarice, os mesmos, ainda que “repetidos”, passam estar abertos a novos significados (ou sentidos), uma vez que tal ato de repetição dá-se em um contexto sócio-cultural diferente do qual antes os signos se encontravam. Assim, no desejo do possível no impossível, o presente histórico da tradução faz emergir uma fantasmagórica repetição de outras histórias, no caso do livro de 1977: histórias de rendeiras. Rosemary Arrojo (1993), em interessante estudo sobre o “flagrante da transferência” no “processo criativo” em “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges, salienta que o ato de repetição de ideias, ou até mesmo de palavras idênticas, seja ela em qualquer âmbito, nunca estará aberto a uma mesma leitura, ou seja, jamais se repetirá em sua plenitude o que já fora dito uma primeira vez. Essa inferência de Arrojo está atrelada à conhecida passagem do conto borgeano em que o narrador se propõe a “cotejar” o texto de Menard com o de Cervantes: Constitui uma revelação cotejar o “Dom Quixote” de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (“D. Quixote”, primeira parte, nono capítulo): ... a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro. Redigida no século dezessete, redigida pelo “engenho leigo” Cervantes, essa enumeração é um mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve: ... a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro. (BORGES, 1989, p. 36, grifos do autor) Apesar da “aparente equivalência” das palavras nos dois fragmentos trasncritos, o narrador do conto apresenta uma distinção basilar entre ambos. Se no segundo fragmento, Cervantes vê a história como a mãe da verdade, o mesmo não é possível a Menard, uma vez que este, como contemporâneo de Willian James, vê a história como origem da realidade e não como uma indagação da mesma, ou seja, a verdade histórica, para Menard, é o que se pensa que sucedeu, ao contrário de Cervantes, para o qual a história é o que “realmente” sucedeu. Assim, “como nos ensina o narrador de ‘Pierre Menard’, mesmo a repetição total das palavras de outrem não repete o que foi dito; o que é dito, como tão magistralmente ensina Borges, nunca se agarra às palavras usadas para dizê-lo”. (ARROJO, 1993, p. 165) 183 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Dessa forma, ainda que o texto de Lispector conceda margem para falar em uma “repetição de histórias de rendeiras”, o que se sobressai dessa relação volta-se para o fato de que a repetição no processo criativo de A hora da estrela (1977) só dá-se por meio de uma leitura/tradução do já dito, a qual, por si só e em cada de momento de realização, é sempre singular e diferente. Filtrado, então, pela fascinante proposta de Borges, vejo que ao repetir o outro, ainda que veladamente, ponto que difere Menard de Lispector, a escritora-tradutora repete disseminando, fazendo desse outro um “eco”, muita das vezes, imperceptível ao leitor. Do postulado defendido por Borges (1989), fica evidente que, se no caso de Menard, nem a repetição integral do texto do outro o reproduz em sua totalidade de significância contextual (devido, por exemplo, as distâncias temporal e cultural que separam os dois leitores: Menard e Cervantes5), no caso de Lispector, a repetição do outro se efetiva mais por uma prática de disseminação do que pela quixotesca empreitada de ser o outro em sua totalidade, numa malograda tentativa de usurpação. Por isso, Arrojo afirma que até mesmo na prática da tradução interlingual o tradutor nunca realiza uma repetição total de determinado texto, “(...) sua tradução não recuperaria nunca a totalidade do ‘original’, revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação desse texto que, por sua vez, será sempre lido e interpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado”. (ARROJO, 2005, p. 22, grifos da autora) A leitura, como evento da disseminação tradutória em Clarice Lispector, possibilitará a existência de fissuras que se abrem por meio da tradução de 1974 e, consequentemente, roubos culturais vão se tornar elemento importante na constituição da história lacrimogênica de cordel da escritora-tradutora, num espaço intervalar no qual a intelectual transita entre biografias pessoais, reminiscências tradutórias e os problemas da década de 1970 no Brasil. Quando penso em fissura no projeto do livro em questão, há uma ligação intrínseca com o que propõe Alberto Moreiras (2001) no tocante à revisitação que a política dos estudos culturais latino-americanos provocou no discurso hegemônico. Para o crítico, a “desnarrativização” das macronarrativas da modernidade possibilitou um “fissura” na consciência moderna, ou melhor, uma “fissura na narrativa” hegemônica, criando um espaço de desbaratamento e revisitação, com o intuito de trazer à cena a história jogada para baixo do tapete. Esse conceito me permite ler, no livro de Lispector, as suas singularidades dentro de uma esfera mais global, já que a novela da escritora, tomada pela crítica como uma das últimas obrasprimas da literatura brasileira, além de esboçar um retrato da cultura nacional, vê-se minada por flashes advindos de um objeto da cultura alheia: a novela francesa traduzida em 1974. Para tornar mais clara a proposição de Moreiras e a apropriação conceitual aqui efetuada, vale a pena conferir as palavras do crítico: 5 Sobre a questão da “diferença sócio-política-cultural” que marca os dois escritores-personagens (Menard e Cervantes) no conto de Borges, ver SANTIAGO, 2000, p. 24 - 25. 184 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A fissura narrativa tem que ser entendida, objetivamente, no sentido de “a fissura na narrativa” (isto é, não como “a fissura da narrativa”). Isso afeta todas as narrativas (pós)modernas da diferença e todas as narrativas (pós-)modernas da identidade, incluindo as narrativas subalternas onde quer que existam. (MOREIRAS, 2001, p. 69) Nesse diapasão da fissura de Moreiras, o projeto artístico-intelectual em A hora da estrela (1977) é suplementado por uma espécie de “micro-” narrativa da tradução, da qual se sobressai uma mobilidade de ideias e imagens, que, por sua vez, são rearticuladas, ou melhor, realocadas, no contexto sócio-histórico-cultural da novela de Clarice. Entretanto, ao pensar a “influência” da tradução em Lispector via a fissura proposta por Moreiras, tenho que ressaltar a emergência de uma reivindicação da diferença nesta leitura, uma vez que tal “influência” não é tomada com o fim de deixar entrever uma uniformidade da obra da escritora para com o livro traduzido, mas, sim, que aquela alude a este por meio de uma leitura diferencial. Isso me leva a ver que, entre o lá e o cá, o texto traduzido vê-se saqueado por um empréstimo sem dívidas para com o emprestador, neste caso, a escritora-tradutora. Fragmentos, retalhos e restos se vêem, então, (con)fundidos e traduzidos na narrativa de Lispector por meio de uma ação performática da tradução, na qual não se encontra reforçada a propriedade do texto tomado como “original”, mas sim vê-se presente a emergência de um local de cisão, cujo espaço é propício, como já aludido, para se escrever a nação (BHABHA, 1998, p. 207) e, por conseguinte, para se escrever os projetos. Esse espaço propicia a existência de uma escrita-dupla6 da tradução na novela de 1977, pois a escritora escreve o seu projeto, que é, até certo ponto, sobre o projeto da nação, e ao mesmo tempo naquele projeto a intelectual dissemina informações provenientes do contágio propiciado pela tradução do livro francês. A etimologia da palavra tradução apresentada por Carvalhal (2003) aproxima-se do sentido de tradução/disseminação efetuada por Clarice. Oriunda do latim traducere, que significa “levar além”, (...) a primeira função da tradução (e papel dos tradutores) é fazer circular um texto fora da literatura de origem, disseminá-lo, difundi-lo. O tradutor por vezes designado de “barqueiro” (ele atravessa um rio) possibilita o acesso (...) a costumes e princípios que o texto, traduzido, veicula. Essa transposição, que é em si mesma contextual, é também uma prática de produção textual, paralela à própria criação literária. (CARVALHAL, 2003, p. 219) Essa disseminação apontada por Carvalhal é visivelmente perceptível no ato tradutório de Clarice, que, além de se valer do outro, se apropria do alheio com maestria e o torna seu, fazendo 6 A noção de escrita-dupla, para Bhabha é correlata ao conceito de disseminação, pois aquela é que seria responsável pela articulação desacralizadora do significado de “povo” e “nação” como instâncias hegemônicas, evidenciando, com isso, não só a individualidade da nação com relação às demais, mas, também, fazendo com que a própria nação articule-se, internamente, em sua heterogeneidade para escrever a sua história. (BHABHA, 1998, p.209 – 210) 185 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 emergir uma “metáfora da peregrinação” da “travessia cultural” advinda da tradução de 1974. Sob essa égide, a tradução pode ser vista como fator enriquecedor do trabalho individual da intelectual, já que “não há dúvida que a tradução alimenta a criação literária. Isto ocorre tanto na perspectiva de que as traduções literárias enriquecem os sistemas que integram como também o trabalho individual do escritor”. (CARVALHAL, 2003, p. 222) Assim, o fato de Clarice ter traduzido o livro francês pode ter sido a gênese desencadeadora de toda a história resultante no livro de 1977. Entretanto, é importante salientar que não se trata de um simples processo de cópia ou algo do mesmo gênero, no sentido pejorativo do termo, “mas de apropriações várias, de adesão a tendências expressivas, que poderiam ser consideradas como outras modalidades de ‘traduções’”. (CARVALHAL, 2003, p. 221) Conforme Carvalhal (2003), o processo tradutório não se trata apenas de uma operação linguística a fim de realizar um processo propagador de determinado texto ou literatura, mas, antes de tudo, um meio onde pululam as diferenças culturais e de onde surgem elementos iluminadores dos processos criativos. Em outras palavras, a tradução, nesta perspectiva, passa a ser abordada como fator de procedimento criativo sobre a produção artística/intelectual de quem traduz. Haroldo de Campos reconhece que a atividade tradutória levada a cabo pelos poetas concretistas, semelhantemente ao que pode ter ocorrido com Clarice Lispector, promoveu, além de intensos estudos críticos sobre a tarefa de traduzir, uma espécie de transmissão de influências literárias, pois, como afirma o poeta-tradutor, “[os poetas concretos] tinham presente juntamente a didática decorrente da teoria e da prática poundiana da tradução e suas ideias quanto à função da crítica – e da crítica via tradução – como ‘nutrimento do impulso’ criador”. (CAMPOS, 2010, p. 43) Esse “nutrimento do impulso criador”, proporcionado pelo trabalho da tradução – seja ele como tradutor (no caso de Lispector) ou como crítico de tradução – do qual fala Campos (2010), pode ser visto como o meio pelo qual o processo disseminador da tradução se faz presente na criação artístico-intelectual de Clarice em A hora da estrela (1977). Nesse sentido, a tradução pode injetar em uma literatura orientações novas ou nova vitalidade pela disseminação de obras até então desconhecidas e a ela estranhas. Pode, como se quis, ler aqui, provocar estímulos aos processos criativos do poeta/tradutor, estabelecendo estreita relação entre o traduzido e o criado. (CARVALHAL, 2003, p. 231) Seria, então, esse estímulo oriundo de um primeiro contato com A rendeira (1975) – a tradução interlingual – que faz com que a escritora, em seu momento fatídico de criação, dissemine as ideias do outro em si, ainda que inconscientemente, e subverta uma noção de origem das produções artístico-culturais, corroborando, nesse contexto teórico-crítico, a impossibilidade de “dissociar tradução de disseminação”. (CARVALHAL, 2003, p. 235) 186 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A disseminação tradutória acima mencionada verifica-se por meio de uma suplementaridade criativa no livro de 1977. Aqui, a noção de suplemento, no sentido derridaiano do termo, estaria presente no ato criativo de A hora da estrela porque a escritora-tradutora parece oscilar, num movimento ambivalente, porém não dual, entre as ideias contidas no livro traduzido e, por exemplo, a força de lei para com a sociedade brasileira que a move na escrita da história da moça que não sabia gritar. Desse modo, essa história da nordestina vê-se “acrescentada” pela tradução, já que o suplemento cumula e acumula presença, além de renegociar com a origem imaginada (imaginada porque o sentido atribuído à origem não deixa de ser uma espécie de interpretação atribuída por Lispector no ato da tradução linguística). Por isso, o suplemento Intervém ou se insinua em-lugar-de; se ele colma, é como se cumula um vazio. Se ele representa e se faz imagem, é pela falta anterior de uma presença. Suplente e vicário, o suplemento é um adjunto, uma instância subalterna que substitui. Enquanto substituto, não se acrescenta simplesmente a positividade de uma presença, não produz nenhum relevo, seu lugar é assinalado na estrutura pela marca de um vazio. Em alguma parte, alguma coisa não pode-se preencher de si mesma, não pode efetivar-se a não ser deixando-se colmar por signo e procuração. (DERRIDA, 2008, p. 178, grifos do autor) Sob essa égide, o suplemento da tradução em Clarice Lispector, além de somar, vem, sorrateiramente, alterar o cálculo, pois os suplementos não deixam também de ser “sinais de adição que compensam um sinal de subtração na origem” (GASCHÉ, 1986, p. 211 apud BHABHA, 1998, p. 219). Assim, a novela de Lispector, enquanto objeto cultural suplementado pela tradução, é, em parte, a repetição do sinal de subtração da origem, contudo, uma repetição que se encontra reinventada, a ponto de não se saber até onde, precisamente, o processo criativo da escritora traduz o outro e traduz a si mesmo. Em outras palavras, o sinal de subtração repetido seria, grosso modo, o elemento que suplementa o livro de Clarice, fazendo com que a subtração da origem passe a significar, em A hora da estrela (1977), um acréscimo, entretanto, um acréscimo (adição) proveniente da existência de uma subtração em A rendeira (1975). Esse acréscimo, como elemento resultante da atividade da tradução, pode ser visto como “aquele que supre” no momento criativo de Lispector, “aquele que supre” um texto presente, ou melhor, que faz o texto presente ser o que é por meio de uma lógica suplementar da tradução. O apelo do suplemento é aqui originário e escava aquilo que se mais tarde como o presente. O suplemento, aquilo que parece acrescentar-se como um pleno a um pleno, é também aquilo que supre. “Suprir: 1. Acrescentar o que falta, fornecer o excesso que é preciso”, diz Littré, respeitando como um sonâmbulo a estranha lógica dessa palavra. (DERRIDA, 2009, p. 331) Segundo Evando Nascimento, o princípio da lógica do suplemento está desde já esboçado na definição do verbo supléer (suprir), que numa primeira acepção pode ser visto como “acrescentar o que falta” e numa segunda “fornecer o que é preciso como excedente”. A primeira 187 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 estaria, então, mais próxima da noção de “complemento” – “acrescentar algo dentro de uma totalidade” (NASCIMENTO, 2001, p. 180) –, enquanto a segunda seria mais um excesso que vem suprir uma necessidade. Nesse sentido, a tarefa da tradução em Clarice aciona o que vou chamar de “acréscimo no processo criativo por meio da différance”, em outras palavras, é como se o exercício da tradução possibilitasse, junto a todas as outras atividades exercidas pela escritora (a literatura, o jornalismo, a pintura, entre outras), um movimento substitutivo e exterior. Optei por utilizar o termo derridaiano em francês devido a problemática que o mesmo traz consigo, tanto em sua grafia na língua francesa, quanto nas inúmeras traduções propostas para o mesmo em língua portuguesa. Silviano Santiago (2004) salienta que a diferença proposta entre différence e différance só é perceptível quando os dois vocábulos forem escritos e lidos. Segundo o estudioso, não se trata de um conceito em filosofia, mas de uma “violação, travestismo e sequestro” operacionalizados por Derrida no manejo gráfico do vocábulo, estando aí nesse “manejo” a chave da “ferramenta estratégica da desconstrução”. Assim, a proposta de Derrida não estaria atrelada a um “sentido” que emana da grafia, mas de uma leitura que procura descentrar os textos clássicos da filosofia, da literatura, da linguística e da psicanálise. Por isso, Santiago afirma que o neografismo différance (com a) terá que se adequar ao transtornado ambiente linguístico canônico, a fim de funcionar comme il faut na sintaxe e na semântica francesa e servir [...] para inseminar outras línguas nacionais, neolatinas ou não, equipando-as com ferramenta exploratória, equiparando-as pela artificialidade. A disseminação do vocábulo silencioso e secreto só se tornará aberta e ruidosamente global se a inseminação feita no léxico francês se repetir ao pé da letra em vários outros sistemas lingüísticos (repitamos nacionais) e se mostrar reflexiva e operacional em todos eles, abrindo um lugar específico no linguajar filosófico da pós-modernidade. (SANTIAGO, 2004, p. 6) O movimento substitutivo antes mencionado se efetiva porque é impossível falar de uma totalização do processo criativo em A hora da estrela (1977), já que as atividades mencionadas no parágrafo anterior, entre outras que podem ser incluídas pela crítica, se alternam num jogo de substituições, fazendo com que ora se sobressaia uma, ora outra, na literatura de Clarice Lispector. Assim, o exercício da tradução possibilita uma espécie de suplemento na “invenção” da novela de 1977, não por se apresentar como um fragmento que se une a outros fragmentos (as outras atividades) para “formar” um todo completo e acabado, mas por evidenciar a nãototalidade do ato criativo no livro da escritora-tradutora, já que o jogo instaurado no momento de criação é, em suma, o de substituições e deslocamentos infinitos dentro de um campo finito de possibilidades, descentrando vozes que busquem a sustentabilidade de um “mito do Todo original” (NASCIMENTO, 2001, p. 181), até mesmo quando está em questão a problemática dos 188 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 processos criativos. Entretanto, essa lógica deslocada (substituições) do suplemento de origem das ideias no ato criativo efetua-se por meio de um tempo e um espaço no campo da différance, [...] esse campo é, com efeito, o de um jogo, ou seja, de substituições infinitas no fechamento [clôutre] de um conjunto finito. Esse campo só permite essas substituições porque é finito, ou seja, porque em vez de ser um campo inesgotável, como na hipótese clássica, em vez de demasiado grande, falta-lhe algo, a saber, um centro que detenha e funde o jogo de substituições. (DERRIDA, 1967, p. 423 apud NASCIMENTO, 2001, p. 181) Com o desbaratamento de uma única origem ou centro do qual seria proveniente o impulso criado no livro de 1977, a atividade da tradução deixa livre trânsito para o mover de uma espécie de “signo flutuante”, o qual passa a ocupar o lugar dessa ausência, possibilitando, assim, à tarefa da tradução firmar-se como signo suplente quando a “criação falta”. Talvez por isso, a lógica do suplemento se firme sob a sombra da “não-propriedade” (SANTIAGO, 1976, p. 90), já que a sua especificidade se concentra na ausência total de uma essência, proporcionado um “deslizamento” de ideias, no caso da novela de Clarice, provocado pelo movimento do signo advindo da tradução, o qual se dá em suplementaridade em relação à coisa em si, ou seja, em relação A hora da estrela (1977) como signo cultural que é. Sob essa perspectiva, O suplemento é adição, um significante disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso. A lógica (gráfica) do suplemento (graphique du supplément ) só é pensável a partir do descentramento. A ausência de centro, de significado transcendental tomado arché e telos (origem e fim), possibilita o movimento da suplementaridade (supplémentarité), que é o movimento do jogo das substituições no campo da linguagem. (SANTIAGO, 1976, p. 88) Se A hora da estrela (1977) sofre uma suplementaridade criativa, o projeto intelectual da escritora vê-se também suplementado pelo ofício da tradução. Poderia pensar em uma “mudança” de projeto no caso da escritora, porém vejo que o que ocorre é mais um suplemento do que uma mudança, já que o projeto continua o mesmo, contudo, rasurado ou fissurado (para lembrar o conceito de Moreiras antes empregado) pelo cerzir da tradução ao qual a intelectual é obrigada a debruçar-se por necessidades financeiras. Esse suplemento no projeto clariciano, sobretudo ao concernente ao de A hora da estrela (1977), seria parte resultante de um rastro motivado pela tradução, pois “nunca há criação pura, vinda do nada, e sim rede de rastros, no qual uma marca qualquer se dá a ler” (NASCIMENTO, 2001, p. 186), marca esta que move a leitura deste artigo. Além do mais, na relação da Clarice escritora com a Clarice tradutora é impossível tentar apagar o rastro deixado “numa” pela “outra”, e vice-versa, pois nos diversos papéis exercidos pela intelectual (a mulher, a mãe, a escritora, a tradutora, a jornalista, a pintora, entre outros) sempre se encontrará, ainda que por meio de indícios de rastros (indícios porque, 189 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 talvez, para o leitor mais pragmático, o vocábulo rastro evoque marcas que necessitem de uma visualização pontual ou, no mínimo, mais “comprovável”), resíduos que permitam ver “numa” marcas deixadas pela “outra”, pois como afirma Arrojo, “qualquer relação de um sujeito com um objeto-texto sempre deixa um resíduo, um rastro que apenas um outro sujeito imagina poder detectar, deixando, por sua vez, também um excesso de que não pode dar conta”. (ARROJO, 1993, p. 112) Esses vestígios, rastros e indícios se insinuam no projeto intelectual de Clarice Lispector por meio de um “acréscimo” propiciado pelo suplemento resultante da atividade tradutória. A proposição do “acréscimo” é interessante nesse contexto, pois o mesmo, na perspectiva de Bhabha (1998), é diferente de “soma”. Esta seria mais uma prática totalizante e homogeneizadora por remeter-se a um “todo”, enquanto aquele estaria mais próximo de uma articulação, na qual o novo “acrescentado” exerceria mais uma função de caráter dialógico do que de caráter totalizador. Assim, o suplemento no projeto intelectual e, por conseguinte, na criação literária de Clarice Lispector, é aquele que acrescenta sem somar, subvertendo o conceito de “originalidade” que por muito tempo “pairou” sobre os lugares mais íntimos e escondidos do processo de criação literária. O suplemento, então, subverte a noção de soma a partir de uma posição de significação que resiste à totalização, seja ela em qual âmbito for, mostrando que Clarice (inter)age num espaço de duplicidade (os papeis de tradutora e de escritora) do qual as ações de criação e tradução se alternam disjuntivamente, mas que, ao mesmo tempo, se interpelam num movimento de interações e substituições, cuja a ação, por sua vez, promove o deslizamento de repetições com signos advindos de uma origem, de um modelo. Entretanto, Alguma coisa como o modelo é inconcebível sem o valor de redobramento que o funda – se existe um “tipo fundamental” a derivação num suplemento qualquer não se faz esperar. Mais uma vez o suplemento configura sua estranha lógica, indicando o caminho segundo o qual a repetição pode ser re-interpretada em termos de originalidade, de unicidade, de totalidade indivisível etc. A simples “ideia” de que o modelo e a cópia (boa ou má, tanto faz) existem interdita qualquer proposição a respeito do indivisível. Desde que há modelo existe cópia, reduplicação, multiplicação da quase-infinitude, dobra. (NASCIMENTO, 2001, p. 190, grifos do autor) Nesse emaranhado de multiplicações e substituições infinitas, o suplemento da tradução vem, se me perdoarem a metáfora, sequestrar e saquear um discurso motivado por um viés “causalista” que quisesse abordar o exercício da tradução em Lispector como uma atividade que apenas “soma” e/ou “complementa” o processo de criação em A hora da estrela (1977). É salutar pontuar que, em Derrida, a lógica do suplemento se opõe à lógica do complemento. Na primeira, há um jogo de substituições dentro de um sistema que se funda por meio de uma oposição não binária (ou seja, o mesmo se efetiva através da ferramenta operacional da différance), fora do “fechamento da metafísica da presença”, dito de outra forma, 190 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 a lógica do suplemento é a lógica da não-identidade (...). O suplemento põe fim às oposições simples do positivo e do negativo, do dentro e do fora, do mesmo e do outro, da essência e da aparência, da presença e da ausência. Sua lógica consiste mesmo em escapar sempre a esse dualismo marcado (...). (SANTIAGO, 1976, p. 90, grifos do autor) Já na segunda, supõe-se a existência dessas dicotomias clássicas, para que o “signo” ou “fragmento” somado integre uma lacuna de determinada totalidade, fazendo com que o complemento seja integrado à coisa, enquanto o suplemento exterior a mesma (NASCIEMENTO, 2001, p. 190), em suma, grosso modo, o suplemento, afinal, “acrescenta”, enquanto o complemento “soma”. Bhabha (1998), ao falar sobre a prática interdisciplinar da diferença cultural e dos saberes vários que pululam na cultura, ajuda-me a explicar melhor, teoricamente, esse “acréscimo” pelo qual passa o projeto de Clarice: Entrar na interdisciplinaridade de textos culturais significa que não podemos contextualizar a forma cultural emergente explicando-a em termos de alguma causalidade discursiva ou origem pré-estabelecida. Devemos manter sempre aberto um espaço suplementar para a articulação de saberes culturais que são adjacentes e adjuntos, mas não necessariamente cumulativos, teleológicos ou dialéticos. A “diferença” do saber cultural que “acrescenta” mas não “soma” é inimiga da generalização implícita do saber ou da homogeneização implícita da experiência (...). (BHABHA, 1998, p. 229, grifo do autor) Sob essa égide, a tradução de 1974 em A hora da estrela (1977) seria uma espécie de atividade muito próxima da criação literária ou, ainda, uma atividade suplente (a que substitui alguém) para com a criação, tomando emprestado as palavras de Bhabha (1998), uma atividade adjacente e adjunta, simultaneamente. Assim, acrescentar junto à criação seria o papel da tradução em Clarice Lispector, evidenciando que o que ocorre não é uma simples “soma” harmoniosa entre as atividades exercidas pela escritora, mas, sim, que, ao suplementar-se pela tradução, a criação vê-se configurada por uma repetição. Contudo, Na irriquieta pulsão da tradução cultural, lugares híbridos de sentido abrem uma clivagem na linguagem da cultura que sugere que a semelhança do símbolo, ao atravessar os locais culturais, não deve obscurecer o fato de que a repetição do signo é, em cada prática social específica, ao mesmo tempo diferente e diferencial. (BHABHA, 1998, p. 229 – 230, grifos do autor) Assim como o projeto intelectual de Lispector, acredito que a constituição de Macabéa, protagonista de A hora da estrela (1977), pode também ter sofrido um “acréscimo” decorrente da tradução/leitura efetuada do livro de Pascal Lainé, ou seja, é como se à biografia da pobre moça 191 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 nordestina fossem “acrescentados” traços que aludem sintomaticamente ao romance traduzido em 1974. A proposição do acréscimo não deve deixar margem para que se pense numa simples “realocação de ideias” tais quais são “encontradas” no texto traduzido. Por exemplo: percebo que no “texto” de Lainé existem “prenúncios” ou “vestígios” que antecipam o que viria a ser desenvolvido no livro de Lispector. É como se Clarice, além de ter pegado o ar perdido da nordestina nas ruas do Rio de Janeiro, tivesse encontrado a insignificância de Macabéa nas calçadas de Paris, ou melhor, é como se a escritora, por meio do ato tradutório, houvesse apreendido o rebotalho de Macabéa entre a marginália que perambulava pela capital de Paris (espaço no qual se desenvolve a trama do romance francês). Isso é totalmente comprovável no momento em que o narrador de A rendeira (1977) relata como era a rotina matutina de Pomme: Todas as manhãs tomava o trem. Descia em Saint-Lazare e andava até o cabeleireiro sem olhar as vitrinas. Enfiava sua blusa rosa. Olhava-se de soslaio no espelho. Verificava a pintura. A essa hora as pequenas balconistas, datilógrafas ou precisamente cabeleireiras, coloriam com sua debandada a insípida multidão nas calçadas. (LAINÉ, 1975, p. 24, grifo meu) Desse fragmento evidenciam-se dois pontos que se encontram, de uma forma ou de outra, aludidos em A hora da estrela (1977): as balconistas das Lojas Americanas que dividiam um pequeno quarto com Macabéa (as quatro Marias)7 – que no texto de Lainé estão dividindo o espaço das calçadas da grande metrópole com Pomme – e a malograda profissão que pobre moça exercia : “E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa” (LISPECTOR, 1984, p. 21, grifo meu). Esses pontos aparecem, sorrateiramente, como informações “acrescentadas”, por meio do contato prévio (tradução/leitura) com o texto traduzido, à narrativa de 1977, porém esse acréscimo da prática suplementar aparece como artimanha suplente ao ato de criação e não uma mera soma de informações. Ter evocado, ainda que entre parênteses, a relação existente entre tradução e leitura fora proposital. A concepção de tradução enquanto um processo de leitura é decorrente da estreita relação existente entre tradutor e intérprete, uma vez que a tradução não deixa de ser uma leitura atenta do original. E, ainda, é essa leitura levada a cabo pelo intérprete que faz da tradução um ato transcriativo e transculturador por excelência, já que a transcriação aprimora a noção da atividade tradutora como recriadora, e aberto à pluralidade da significação cultural. Essa visada crítica a respeito da tradução como meio transcriador e transculturador foi proferida por Haroldo de Campos, numa entrevista concedida a Rodrigo Figueira Naves, no “Folhetim Erudição” do jornal Folha de São Paulo, em 21 de agosto de 1983. Nessa entrevista, Campos, além de responder algumas perguntas inerentes à poética da poesia concreta, assume o seu lugar de escritor fora do centro (“o ex-centrico, o descentrado”, são palavras do entrevistado) 7 “(...) a tia lhe arranjara um emprego, finalmente morrera e ela, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas”. (LISPECTOR., 1984, p. 37, grifo meu) 192 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 e tece alguns comentários voltados para a prática transculturadora e transcriativa a qual os escritores latino-americanos se valem para estabelecer um diálogo mais próximo com a tradição. Por essa razão, o “poeta-crítico” afirma que a prática da tradução realizada pelos concretistas brasileiros só veio evidenciar a próxima relação existente entre o dispositivo criador e a o ato de tradução, além de propagar novas ideias e poéticas que ajudariam, ainda mais, reforçar e dar a conhecer uma tradição até certo ponto desconhecida. Sob essa perspectiva, “(...) a tradução, melhor dizendo, a transcriação da poesia de varias latitudes e tempos, foi o nosso dispositivo transculturador preferencial. Uma atividade tradutora provida de projeto crítico, com função maiêutica (à maneira poundiana)” (CAMPOS, 1983, p. 7). É importante salientar que o conceitochave de transcriação em Haroldo de Campos está intimamente vinculado às lições do conceito de paideuma em Erza Pound, que afirmava ser insuficiente conhecer as obras no original para traduzi-las, já que o necessário era transcriá-las passando-as para o quadro da cultura nacional que as recebe, pois a transcriação aprimora a noção da atividade tradutora como recriadora. Se, por meio do processo transcriador, disseminação e suplemento da tradução são “notados” em A hora da estrela (1977), como dei a entender, os mesmos são possibilitados no processo criativo de Clarice Lispector por meio de uma “leitura” primeira realizada pela escritora no momento da tradução interlingual de A rendeira (1975). Neste ponto é possível uma analogia entre tradução/leitura e interpretação, já que “interpretar um signo implica sempre traduzi-lo por outro. Interpretação e tradução como funções homólogas” (NASCIEMENTO, 2002, p. 84), ou, no mínimo, como processos que se iluminam mutuamente. Nesse sentido, o que ocorre na novela de 1977 é que a tradutora/intérprete continua (trans)criando, para além da tradução interlingual, signos culturais do romance francês, tornando legítima (...) a aproximação entre o intérprete e aquela outra figura, a do transcriador de poesia [entenda-se poesia como metonímia do literário] (...). Para estreitar melhor os elos, é preciso meditar sobre o ato mesmo praticado pelo tradutor intérprete: a transcriação. Esta se baseia no ato primacial da leitura. (NASCIMENTO, 2002, p. 90 – 91, grifo do autor) Por basear-se no estatuto da leitura, a transcriação, quando se trata de criação literária, não tem nunca um ponto de início e término bem demarcado. No caso de Clarice, ao ultrapassar os limites (até certo ponto restritos) de recriação sugeridos pelo espaço do texto a ser transposto, a transcriação, em A hora da estrela (1977), aciona, em sua plenitude, a ação proposta pelo prefixo “trans –” e faz com que a “criação” evidencie que a tarefa da tradutora vai além da tradução realizada em 1974. Entregar-se à leitura/tradução através de disseminações e suplementos criativos faz da intérprete/tradutora o sujeito que transcria num desejo provocado pelo contato com o outro, pois, como diz Arrojo (1993): “(...) entregar à leitura e entregar-se à leitura é nada além do que viver e estar no mundo, em que o ser humano se define exatamente pelo estar à mercê do desejo que o une ao desejo do outro e que constitui o motor de tudo aquilo que podemos chamar de sua ‘criatividade’”. (ARROJO, 1993, p. 112) 193 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 É como resultado dessas leituras multiplas, dentre elas a leitura/tradução do texto francês, que a criatividade da escritora se põe enquanto atividade artística sulplementada e disseminada pelo ofício da tradução. Exemplo notório dessa interferência é visível na epígrafe com a qual Lainé abre seu livro: “um ser que nem pode falar nem ser dito, que desaparece em voz na massa humana, pequeno rabisco nos quadros da História, um ser como um floco de neve perdido em meio pleno verão, será ele realidade ou sonho, bom ou mau, necessário ou sem valor?”. (MUSIL apud LAINÉ, 1974, p. 7). Esse ser “sem voz”, “um pequeno rabisco” que “não pode ser dito”, está indiscutivelmente disseminado na construção da protagonista de A hora da estrela, que tinha apenas “seu sexo com marca veemente de sua existência”, e mais, como disse a própria Clarice/Rodrigo S.M., A hora da estrela “é um livro feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silencio. (LISPECTOR, 1984, p. 23) Essa falta de importância que ronda Pomme é, de certa forma, traduzida e levada ao máximo na “representante da raça anã teimosa” que Clarice cogita querer um dia reivindicar o “direito ao grito”. Pomme “(...) era desse humildes entre os humildes que chegam a gozar da felicidade tão rara de se sentirem plenamente (...)” (LAINÉ, 1974, p. 35), enquanto Macabéa, “matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos”. (LISPECTOR, 1984, p. 22) No decorrer de seu livro, Clarice por meio de Rodrigo S.M. blefa ou muitas vezes deixa pistas do diálogo posto em prática com a obra traduzida. Pois como disse Clarice: “Eu não inventei essa moça. Ela forçou sua existência dentro de mim” (LISPECTOR, 1984, p. 37). Nessa passagem, a intelectual deixa “vestígios” visíveis de que esta “existência forçada” é também advinda de sua atividade tradutória. Contudo, em outros momentos, Clarice se faz de dissimulada e escamoteia a interferência da tradução realizada, quando diz na voz de Rodrigo S.M.: “Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio [, em outras palavras: nada busco nas leituras/traduções realizadas] para não contaminar (...) minha linguagem”. (LISPECTOR, 1984, p. 29) Essa reiterada justificativa de uma não “contaminação” concede-nos margem para afirmar que Clarice tinha uma consciência crítica aguçada com relação ao papel exercido pelas traduções em suas obras. Daí podermos afirmar que o processo de tradução operacionalizado por Clarice é mais complexo do que parece, pois ora traduz literalmente, ora (re) escreve, ora (re) inventa. E ainda, todos esses fatores alteram, por sua vez, a produção da intelectual que é parte constitutiva da tradição literária brasileira. Desse modo, a escrita de Clarice, além de acionar uma espécie de “arquivo” da tradução em seu momento de criatividade, relê e altera toda a tradição da cultura nacional. No decorrer da história do romance francês, Pomme se apaixona por um estudante de Letras, Aimery, que será seu namorado por toda a narrativa. Apesar de perceber em Pomme certa sensibilidade, que Olímpico, namorado de Macabéa, não sentia na jovem alagoana, havia algo indecifrável que irritava profundamente ambos os namorados e os narradores das histórias. 194 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Brigava com Pomme por não exigir nada dele e não dar assim nenhum valor ao que ele queria dar-lhe. Parecia que ela não desejava tomar nada. Podia mostrar-se desagradável, recusar falar-lhe durante uma noite inteira, e era sempre ele que acabava cedendo, tocado por sua própria dureza, sem que Pomme fizesse qualquer queixa ou pedisse alguma coisa: então era a dureza de Pomme que o confundia. Acendia um Gitane com filtro. Agora, evitava passar com ela longos momentos de lazer, por causa desses silêncios, dela, dele, e dela ainda. (LAINÉ, 1975, p. 88 – 89) Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco dessa moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente. (LISPECTOR, 1984, p. 33). Depois da chuva do Jardim Zoológico, Olímpico não foi mais o mesmo: desembestara. E sem notar que ele próprio era de poucas palavras como convém a um homem sério, disse-lhe: ─ Mas puxa vida! Você não abre o bico e nem tem assunto! (LISPECTOR, 1984, p.65) Esse silêncio alienante, que marca as protagonistas, faz com que Olímpico e Aimery, apesar de opostos entre si, tenham sensações análogas perante as ações ou “não-ações” das namoradas. Contudo, no caso de Macabéa, a irritação do namorado é tão grande que ele pergunta: “(...) escuta aqui: você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?”. (LISPECTOR, 1984, p.65) Com as passagens constatadas, notamos que a escritora leva ao máximo uma possibilidade de leitura do livro traduzido e faz com que o seu texto dialogue com o seu duplo, fazendo com que o “eu” e o “outro” se contaminem, borrando no texto que surge os traços que demarcam com precisão o que viria a ser invenção e (re)invenção. Esse dizer e redizer no processo tradutório em A hora da estrela converge para os postulados de Blanchot, quando este afirma que: Primeiro, ninguém pensa que as obras e os cantos poderiam ser criados do nada. Eles estão sempre ali, no presente imóvel da memória. Quem se interessaria por uma palavra nova, não transmitida? O que importa não é dizer, mas redizer e, nesse redito, dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez. (Apud COMPAGNON, 1996, p. 6). Quando afirmamos que A hora da estrela é uma espécie de tradução de A rendeira, estamos dizendo que por mais que o enredo da obra clariciana nos remeta ao da obra francesa, não se trata de simples transposição de “conteúdo” ou “assunto” do texto de “origem” para o texto traduzido. Em outras palavras, é notória a presença de signos no texto de Clarice que aludem ao texto de Pascal, entretanto, quando traduzidos no ato de (re) criação são (re) 195 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 articulados e passam a estar abertos à atribuição de sentidos, devido à configuração do novo meio cultural no qual se encontram agora inseridos. FROM THE DISSEMINATION TO THE SUPPLEMENT: CLARICE BETWEEN THE CREATION AND THE TRANSLATION ABSTRACT: This article is a critical study of the dissemination and of the supplement through which the intellectual project of Clarice Lispector in 1970 passes. In this perspective, this article focuses in the reading of A hora da estrela (1977) so as to verify how the appropriative translation process was done in the last book published while the author was still alive, having the translation done by Lispector in 1975 of Pascal Lainé’s A rendeira as a background. To do so, the theoretical reflections of Jacques Derrida and Homi K. Bhabha, which are interpenetrated by the Comparative Literature postulates on translation studies, will be used as theoretical support. Thus, this article evidences that the work of translator Clarice shows a possible dialog between the translated book and A hora da estrela. Moreover, it also shows the importance of the work of Clarice Lispector as a translator, for when proposing a critical discussion around the translation work done by the intellectual, the article tries to reiterate that the translation process of Lispector occurs as a transcreator process which enables the translator-writer to yield to reading/translation via creative disseminations and supplements. KEYWORDS: Comparative Literature. Translation. Dissemination. Supplement. Transcreation. REFERÊNCIAS: ARROJO, R. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. (Biblioteca Pierre Menard) BORGES, J. L. Pierre Menard, autor do Quixote. In. _______. Ficções. São Paulo: Globo, 1989. p.29-38. BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et. al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. (Humanitas) CAMPOS, H. de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva: 2010. (Debates) 196 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 CAMPOS, H. de. Minha relação com a tradição é musical. Folha de São Paulo, 21 de agosto. 1983. Folhetim Erudição, p. 6 – 7. CARVALHAL, T. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Editora Unissonos, 2003. COMPAGNON, A. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. DERRIDA, J. Gramatologia. 2. ed. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. (Estudos, 16) _______. A escritura e a diferença. 4. ed. rev. e ampl. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et. al. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Estudos, 271) LAINÉ, P. A rendeira. Tradução de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975. LISPECTOR, C. A hora da estrela. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. MOREIRAS, A. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Tradução de Eliana Loureiro de Lima Reis et. al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. (Humanitas) NASCIMENTO, E. Ângulos: Literatura e outras artes – ensaios. Juiz de Fora: Editora UFJF; Chapecó: Editora Argos, 2002. NASCIMENTO, E. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2. ed. Niterói: EdUFF, 2001. (Coleção Ensaios) SANTIAGO, S. O silêncio, o segredo, Jacques Derrida. Revista de Cultura Margens/Márgenes, n.5, p. 4 – 11, jul. – dez. 2004. SANTIAGO, S. (Org.). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 197 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 198 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Os espaços do leitor empírico e do leitor-autor em literaturas em (des)construção: Borges e Barros Rubens Aquino de OLIVEIRA1 RESUMO: O artigo apresenta um estudo crítico-comparativo entre os textos literários e os processos de desconstrução literária empreendidos por Jorge Luis Borges, em O Livro de Areia (1975), e por Manoel de Barros, em Livro sobre Nada (1996). Trata-se de uma pesquisa que visa não somente aos estudos literários de cada obra, mas também a analisar os elos que elas constroem e desconstroem junto à recepção, a fim de estabelecer significados sobre o fazer literário para o leitor, na perspectiva de suas realidades culturais e locais de enunciação de cada projeto desses dois vorazes leitores – Borges e Barros – que se tornaram escritores consagrados. Na vinculação de suas obras com as leituras que as constroem, tornam-se essenciais os registros das semelhanças, das dessemelhanças e das ferramentas linguísticas utilizadas em seus processos criativos, cada um em seu tempo e lugar cultural, um na Argentina e outro no Brasil. Em O Livro de Areia, Borges narra a história de um livro infinito cujas páginas, uma vez viradas, não podem ser lidas novamente. Desconstrói-se, portanto, tudo o que foi escrito. Barros, em Libro sobre Nada, procura fazer do nada o seu livro, o nada absoluto, coisa nenhuma por escrito. PALAVRAS-CHAVE: Leitor; Recepção; (Des)construção; Jorge Luis Borges; Manoel de Barros. O espaço periférico da enunciação borgiana e manoelina Latino-americanos e periféricos, Jorge Luis Borges e Manoel Barros foram inventados por seus leitores e tradutores. Borges declarou em entrevista: “Fui inventado por meus tradutores” (VOGEL, 2009, p. 22). Ambos, em busca de reconhecimento, primeiro em seus países, só o conseguiram após a repercussão de suas obras no exterior. Borges foi descoberto na França nos anos 1960. Barros foi lançado mundo afora, inclusive no Brasil, via Espanha nos anos 1980. Disse o escritor argentino ao Jornal do Brasil em 1977: Em toda a minha vida fui um escritor mais ou menos secreto. Tenho 77 anos e quando começaram a me ler tinha mais de 50. Não me levaram a sério na Argentina até descobrirem que eu havia sido traduzido para o francês. Foi como aconteceu com o tango, que não era aceito em Buenos Aires até ser dançado em Paris. Eu também sou made in France. (BORGES in VOGEL, 2009, p. 81). 1 UFMS – CCHS – PPGEL – CAMPO GRANDE – MS – BRASIL – CEP 79.090-700 – [email protected] 199 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Manoel de Barros, até os 50 anos, publicava suas edições de até quinhentos exemplares às suas próprias expensas. Disse ele à Folha de S. Paulo em 1990: “Só depois dos 60 anos é que a poesia passou a ter retorno para mim em meu próprio país, depois de ser publicado na Espanha” (CASTELLO, 1991. p.91). Tanto um como outro, de maneira semelhante, renega suas origens literárias como sendo fruto de uma literatura regionalista. Reconhecem a quase nulidade da América Latina dentro do mundo letrado ocidental e usam os recursos literários canônicos para construir suas narrativas e em seus versos em estilo que se aproxima do autobiográfico, quase sempre na primeira pessoa, numa indicação de que o local de enunciação de onde criaram suas obras são lugares de referência estética em sua vida, desde a infância até a maturidade. Manoel de Barros nos fala de pássaros, sem identificá-los a um determinado lugar, sem regionalizá-los. São pássaros do mundo. Escreve e descreve formigas, sem especificar endereços e quintais. São endereços do mundo. Depois do reconhecimento no País e fora dele, tentou-se vincular seu nome ao que poderia ser denominada como “poética do Pantanal”, sendo ele o “poeta pantaneiro”. Imediatamente e até em tom de irritação o poeta refutou sem nenhum despeito ou pudor a alcunha. Sua obra casualmente foi feita no local, mas não pertence ao local da enunciação, segundo declarou em entrevistas. Esta foi a resposta para uma destas entrevistas publicadas em jornal: Estado de São Paulo - Em que medida Mato Grosso do Sul está presente em sua poesia? Qual é sua relação com o regionalismo? Manoel de Barros - Há sempre um lastro de ancestralidades que nos situa no espaço. Mas não importa muito onde o artista tenha nascido. O que marca um estilo literário é a maneira de mexer com as palavras. Poesia é um fenômeno de linguagem. De minha parte, confesso que fujo do regionalismo que não dê em arte, que só quer fazer registro. Não gosto de descrever lugares, bichos, coisas da natureza. Gosto de inventar. [...] Pode até ser que seja regionalismo. Porém, há de ser mais transfigurismo pela palavra.Penso que existe sim uma poesia brasileira. Uma poesia que expressa a nossa alma e o nosso quintal. Porém, a linguagem, o tratamento que o poeta imprima à sua matéria pode fazer dele um poeta universal. Assim, as nossas particularidades podem ser universais por meio das palavras. Temos poetas do mundo nascidos no Brasil. (CASTELLO, in: O Estado de São Paulo, Caderno 2, 1997, p. C-1) Sobre o nacionalismo e o universalismo de Borges, declara Ana Cecília Olmos (2005, p. 48) que o movimento expansivo pelo qual a escritura borgiana abandona os limites específicos de uma tradição literária nacional e abre-se a questionamentos de caráter universal traz à tona um dos princípios estéticos mais defendidos pelo escritor. Em seu Ensaio Autobiográfico (1978, p.43), Borges explica que a literatura argentina, para ser argentina, não precisa limitar seu exercício poético a um pobre repertório de traços, temas e cenas locais, como se os argentinos “[...] só pudéssemos falar dos arrabaldes e estâncias e não do universo”. 200 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Borges define, no prólogo de Elogia da Sombra, o foco de sua narrativa, longe do estilo gauchesco argentino na afirmação: Evitar sinônimos, que tem a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos, argentinismos, arcaísmos e neologismos; preferir palavras habituais a palavras assombrosas; intercalar em um relato traços circunstanciais exigidos agora pelo leitor, simular pequenas incertezas, já que a realidade é precisa e a memória não o é. (1999, p.377). Borges e Barros: leitores-escritores O leitor Manoel de Barros leu Jorge Luís Borges de Flaubert. O leitor Jorge Luís Borges leu Flaubert, Conrad, Keats e Kafka. E a nossa leitura, enquanto leitor receptor, para a construção deste artigo, visa estudar duas obras primordiais desses dois leitores-escritores, Livro sobre Nada (1996), de Barros, e O Livro de Areia (1975), de Borges, para comparar seus projetos estéticos, seus diálogos com outros escritores, a constituição intrínseca de suas metáforas e o tecido de sua singular narrativa em prosa poética. Constatamos, então, que Barros compôs a força de seu texto ao espelho do diálogo com obras lidas, como que em resposta a elas, produzindo uma escrita espelhada nos seus antecessores, entre estes, Borges. Por sua vez, o leitor Borges, que Ricardo Piglia intitula como sendo o último grande leitor (2006, p. 19), conseguiu vencer as barreiras e as fronteiras do seu lugar de enunciação e os labirintos das bibliotecas onde passou grande parte de sua vida, lendo os textos canônicos da literatura ocidental. Aos mesmos autores a quem destinou parte considerável de sua leitura e de sua escrita, também o fez como uma resposta às metrópoles culturais e literárias hegemônicas. Nós, na condição de leitor dos dois leitores-escritores, fazemos a leitura e a desleitura de suas propostas e as concretizamos na outra ponta do processo, a da recepção, para finalmente compará-las enquanto estruturas engendradas na subalternidade latino-americana de poemas em prosa e de prosa poética, respectivamente, em Livro sobre Nada e O Livro de Areia. Lemos em Borges um encadeamento estético que trafega entre as narrativas de Conrad, Flaubert, Shaw, Keats, Kafka, Goethe e Rimbaud. Lemos em Barros o diálogo anacrônico com Borges, Flaubert e Rimbaud. Para o argentino, a poesia “é um homem dialogando com outros homens” (1986, p. 32). Para o brasileiro, a poesia é um “inutensílio” (1996, p. 18). E assim, produziram dois livros compostos de densa prosa poética, que beira a autobiografia. Em entrevistas, Borges declarou que isso é um fato. Mais evasivo, Barros tenta desviar o leitor de sua biografia, em declarações feitas sobre o fato de ser todo o Livro sobre Nada escrito na primeira pessoa, como uma possível expressão do autor e de suas experiências empíricas. Nesse aspecto, pretendemos contextualizar os focos narrativos, os locais e as condições de enunciação e a exatidão com que ambos, liricamente, compõem seus textos nos dois livros já mencionados. Nesse sentido, de acordo com Walter Benjamin, “[...] o extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor” 201 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (1985, p.203). Entende, pois, Benjamin que o leitor é livre para interpretar como quiser e com isso o episódio narrado, o lirismo, as metáforas e as alegorias “[...] atingem uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1985, p. 203). Barros e Borges, nos livros aqui analisados, buscam no leitor a concretização de seu projeto para o nada e para a arei como metáforas e alegorias para o mundo. Ambos só conseguem consolidar na leitura e por extensão no leitor os personagens públicos dissociados do “eu” empírico e unificar, de forma singular, a realidade de cada um na ficção. Ambos suspendem, diluem, dissolvem os limites entre ficção e realidade, colocando-se enquanto como leitores-protagonistas de seus livros impossíveis. E esta ambiguidade só se realiza, efetivamente, na recepção. Ao receptor – no caso, somos um deles – cabe desvendar metas, processos de construção criados nas relações possíveis entre escritor empírico, autor implícito, narrador, personagem e ficção, o que se desencadeia a começar pelas metáforas léxicas de um livro e as semânticas de outro. Nesse aspecto, para os fins deste artigo, Borges é incisivo quando afirma que “[...] a história universal não é mais que a história de algumas metáforas” (1982, p.46). Manoel de Barros é leitor confesso de Borges e percebe-se uma notável influência do livro Esse Ofício do Verso (1967) na construção de seu Livro sobre Nada. De acordo com Ricardo Piglia, “[...] o livro é um objeto transacional, uma superfície sobre a qual se deslocam as interpretações” (2006, p. 30). E ao discorrer sobre a importância do leitor nesse processo, questiona ele: “O que é um leitor? A pergunta daquele que olha ler aquele que lê”. Além disso, “[...] muitas vezes os textos transformaram o leitor num herói trágico, num obstinado que perde a razão porque não quer capitular em sua tentativa de encontrar o sentido” (PIGLIA, 2006, p. 34). Umberto Eco, ao propor a figura do leitor-modelo, em Seis passeios pelo bosque da ficção (1996), redimensiona alguns conceitos advindos da estética da recepção, proposta por Robert Jauss nos anos 1960. Para Eco (1996, p. 75), todo autor escreve para um “leitor-modelo”, para quem existe a necessidade de que assuma posição central para a compreensão textual – a de “leitor-análise” – determinada como a “terceira via” preconizada pelos teóricos da estética da recepção em suas sucessivas reformulações nas últimas décadas. Nesse viés, interessa-nos analisar, antes de tudo, “a análise recepcional” (ECO, 1996, p. 77) empreendida tanto por Borges (em sua biblioteca infinita) como por Barros (na sua fazenda ou na sala de leitura de sua casa) anos a fio. É preciso compreender, previamente ao estudo de suas duas obras, suas articulações e suas proposituras engendradas enquanto leitores-reais, isto é, aquele leitor de literatura que “lê o mundo”, por meio de leituras de obras de autores preferenciais, para então compor sua escrita, no caso de Borges e de Barros, que romperam barreiras e (res)estabeleceram fronteiras em meio ao cânone literário ocidental. Defendemos a hipótese de que as teorias concernem ao leitor um papel de catalisador da obra literária, como o fazemos agora com O Livro de Areia e Livro sobre Nada. Nós o fazemos na perspectiva teórica de que uma obra, em si mesma, sem a figura do leitor a sustentá-la 202 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 enquanto produto narrativo, segundo Terry Eagleton, “[...] não passaria de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página” (2003, p.105), com sentido tão somente no ato da escrita, pelo e para o autor. Essas marcas trazem em seu bojo “indeterminações” que devem ser interpretadas pelo leitor de maneira única, pessoal, perspicaz, percebendo ligações implícitas que, criticamente, estruturam as ligaduras daquelas indeterminações e a elas dão um fim (EAGLETON, 2003, p. 116). Segundo Robson Coelho Tinoco, “[...] o leitor precisa perceber o texto como um tipo de agente provocador da leitura” (2010, p.25). Queremos, a partir dessa consideração, encontrar as razões e as justificativas para, logo no título de suas obras, Borges e Barros buscarem o estabelecimento de ligações implícitas com o leitor, no sentido de que este leia e transforme tudo o que lê nos dois livros, tanto em areia quanto em nada. Nesse sentido, Wolfgang Iser preconiza que ao assumir a posição de agente provocador “[...] todo texto possui a capacidade de estabelecer seus próprios objetos, não como meras cópias de algo já existente” (1979, p. 111). Para o teórico, o leitor-receptor, nesse tipo de relação dupla, deve ser levado sobretudo a modificar, a ampliar positivamente o que já possui de informação prévia. Em sua avaliação, tais atos só terão sucesso se ajudarem, efetivamente, a formular “algo de novo” no leitor (ISER, 1979, p. 112). É o caso seminal de O Livro de Areia e do Livro sobre Nada. Do ponto de vista comparativista, pretendemos configurar o receptor (sem esquecer a perspectiva de que Borges e Barros também foram receptores, antes e depois daqueles livros) como aquele integrante do circuito que se convoca para integrar o processo de constituição da obra. Este é ponto central no que se assemelham os dois livros, pois Borges e Barros chamam seus leitores para compor um quadro imprescindível à existência de suas escritas. O receptor integrado por eles no contexto do título de suas obras, ao participar desse processo, tende a “entender” melhor e mais amplamente o projeto estético dos autores. As duas obras primam pelo caráter fragmentário de suas narrativas. Tanto Borges quanto Barros fragmentam seus temas, diversificam personagens, despedaçam a realidade do entorno, abreviam suas histórias, misturam prosa e poesia e carregam nos traços que muito se aproximam do autobiográfico. Esse caráter fragmentário abre caminho para dois percursos diferentes, mas nem por isso excludentes: a concisão, quase minimalismo, e o das múltiplas significações. Esse registro é crucial, principalmente diante do fato de que o fragmento apresenta difícil interpretação. Veremos que essa depuração paradoxal conduz a diversas trincheiras semânticas. O Livro de Areia e o Livro sobre Nada apropriam-se do recurso do fragmento e dele fazem uso para a composição de contos e de poemas com a densidade lírica da areia e do nada. É uma escolha intencional, porque rica de possibilidades significativas contidas nos vazios do texto. E nesta fragmentação que muito se assemelha ao caos, vemos consolidar o que Jean Baudrillard (2003, p. 43) preconiza na obra De um fragmento a outro: “[...] em princípio o fragmento desafia a interpretação, ou então, são múltiplas e inesgotáveis”. Daí o papel do leitor, a convite de Borges e de Barros, contido em seus títulos: o de desfragmentar as duas obras para dar-lhes uma unidade na recepção. 203 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ao ser otimizada, essa articulação da recepção aos atos participativos e aos de compreensão consequentemente vai inserir-se criticamente no processo de constituição de significados de leituras. É o que Robson Coelho (2010, p. 18) afirma: as leituras “[...] possibilitam ao leitor que reflita sobre si mesmo, levando-o a ter contato com mundos diferentes, até então inatingíveis”. Este nos parece um complemento ao postulado de Wolfgang Iser quando preconiza que “[...] a função do leitor é sobretudo transformadora e recriadora” (1979, p. 112), porque é a partir desse tipo de receptor no processo de leitura (e, portanto, de construção da obra – o grifo é nosso) que o livro – até então um artefato artístico – se transforma em objeto estético e, como tal, possibilita a atração pelo belo, pelo entendimento e pela análise crítica. Se de acordo com Iser, a fonte de autoridade da interpretação é tanto o texto como o leitor, simultaneamente, então se trata de uma construção ambivalente (1979, p. 114). Se, ainda segundo esse teórico, o texto busca designar instruções para a produção de um significado e o leitor livremente cria, produzindo o seu próprio significado, então o sentido do texto surge desse processo de interação entre as duas partes independentes (ISER, 1979, p. 114). É nessa relação de forças que se dá a construção do literário. O tempo e os novos conceitos agregaram-se a essa ideia a tal ponto que, hoje, a recepção cumpre seu papel dentro do texto, que é o de designar orientações para a produção de sentido(s). Novas teorias e novos estudos se sucederam aos primórdios, lá com Iser nos anos 1960, principalmente a partir da década de 1990. Contemporaneamente, portanto, o papel do leitor está muito além de produzir significados. O sentido não representa algo; ele é um acontecimento. O texto não pode ser visto somente como um todo, mas também em seu estado fragmentário e fragmentado, assumindo um caráter de convivência com os vários pontos de vista concentrados em seu cerne. Buscamos nos estudos e nas teorias da recepção aquilo que esta considera como sendo literatura, ou seja, um sistema que se define por produção, recepção e comunicação, tecendo uma relação dialética entre autor, obra e leitor. Há uma diferença já entre os postulados iniciais da estética da recepção, na época do seu surgimento, e a recepção, hoje, depois de toda uma série de questionamentos. Se a estética, inicial, não revitalizava a noção de produção e de representação, bases de uma noção tradicional de recepção, atualmente é possível essa leitura e essa convivência. A recepção destaca que o ato de leitura tem uma perspectiva dupla na dinâmica da relação entre a obra e sua projeção pelo leitor de uma determinada sociedade. O leitor se interessa pelas condições sócio-históricas e culturais que formularam as diversas interpretações que o texto ficcional recebeu. Devemos assinalar que o discurso literário é o resultado de um processo de recepção que se move na pluralidade de estruturas de sentido historicamente construídas e mediadas. O leitor contemporâneo, quando educado para tanto, o percebe numa visada maior. Para Wolfgang Iser (1979, p. 110), os textos literários são distintos dos não-literários, especialmente dos científicos, pela presença de "vazios" ou "intervalos" que acabam sendo preenchidos pela "disposição individual" do leitor. Esses vazios – do nada – e os intervalos – da areia – são pontos 204 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 essenciais de nossa análise. A estrutura do texto permite modos diferentes de alcançar seu potencial. O leitor deve construir suas conexões e sínteses que individualizam o objeto estético. Borges e Barros conceberam seus livros como objetos sob aspecto espacial com uma determinada forma e sob um aspecto temporal em que a produção de significado literário é um processo que se expande para além da escrita. As estruturas de seus textos assim o demonstram quando observadas mais aguçadamente, de forma sistemática e não arbitrária. Seus temas não possuem um significado, mas um jogo de direções que busca sentido(s) na recepção. Portanto, optamos por aplicar neste texto uma discussão referente à teoria da recepção menos como teoria e mais como prática, como linguagem de recepção efetivamente aplicada aos textos de Jorge Luis Borges, em sua prosa poética composta por quatorze contos em O Livro de Areia, e Manoel de Barros, em seus poemas narrativos, divididos nas quatro seções do seu Livro sobre Nada. Borges escreveu aquele livro – o primeiro em sua solidão decorrente da cegueira – expondo intensamente uma certa exaustão em responder à fama construída pelo estilo labiríntico de suas obras. Após o reconhecimento internacional, ele assume, diante da cegueira para continuar como um leitor empírico, um tom amargo. Barros, também depois do reconhecimento no exterior, respondendo ao assédio, tornou-se uma espécie de ermitão, escondeu-se no nada do aparente sertão construído como paisagem / miragem de suas obras. Ana Cecilia Olmos, em Por que ler Borges, é incisiva e pontual ao afirmar que a concepção de que “[...] o ato de leitura, e não a intencionalidade da escritura é o que define a condição literária dos textos – talvez uma das idéias mais produtivas da obra borgiana” (2005, p. 50). Ela se refere à acentuada fragmentação que caracteriza a narrativa do autor argentino e que acredita domine sua produção. Essa fragmentação, segundo a estudiosa, sugere que o conjunto narrativo, a unidade textual é apreensível apenas na parte que lhe outorga o estilo: “a marcada recorrência de temas que a produção apresenta permite traçar múltiplos percursos de leitura, como o livro de areia que Borges imaginara, abrem um ilimitado número de páginas” (OLMOS, 2005, p. 50). Diz ainda a pesquisadora que, em outras palavras, considerando-se as inúmeras possibilidades de leitura que a obra borgiana oferece, sua obra “[...] figura-se infinita; nela nenhuma página é a primeira, nenhuma, a última” (OLMOS, 2005, p. 50). Também, nesse sentido, pode-se fazer valer para a obra de Barros essa assertiva. O Livro sobre Nada pode começar a ser lido do fim ou do meio, não seguindo uma lógica que objetivamente leve a algum lugar conhecido pelo leitor. E assim, entre coincidências, semelhanças, dessemelhanças, diferenças e aproximações, Borges, em dezembro de 1981, quatro anos antes de lançar seu O Livro de Areia, confessou, em entrevista à Folha de S. Paulo, numa frase que se tornou manchete de página do jornal e um marco em sua biografia: “Borges declara que espera ser salvo pelo Nada” (o grifo é nosso). Três anos antes, havia lançado em Nova York uma coletânea de contos, sob o título inglês de All and Nothing”, ou seja, Tudo e Nada. 205 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Duas literaturas em (des)construção O estudo das poéticas modernas e contemporâneas, segundo preceitos da teoria literária e da literatura comparada, é um empreendimento multifacetado e multidisciplinar que abre vertentes de atuação e adquire novos ângulos de visão para explicar os mais variados fenômenos literários, com possibilidades de se (co)relacionar a diversidade de manifestações discursivas no âmbito das literaturas latino-americana, tanto em língua portuguesa como em língua espanhola. Nesse contexto, tratando-se de obras criadas em diferentes países, é primordial considerar de que maneira a recepção dos livros manifesta a construção literária sob o ângulo participativo do leitor, em seu papel dinâmico, ativo e preponderante para a configuração de um novo trato literário. Portanto, para analisar as dimensões, os detalhamentos e as circunstâncias de produção de suas escritas, é essencial também considerar o desempenho não somente dos leitores de O Livro de Areia e do Livro sobre Nada, como também dos próprios escritores enquanto leitores (de si, um do outro e de outros autores do mundo) para a construção de sua obra. Ao estabelecer a relação de um autor com o outro, de um autor com o leitor e dos autores com outros escritores, é possível construir perspectivas de análises, na perspectiva da recepção, bem como estabelecer parâmetros comparativos que situem a origem desses escritos, a natureza dos textos, a contextualização cultural em que cada um foi concebido e os referenciais de cada projeto estético. Os mundos labirínticos e infinitos presentes nas obras de Jorge Luis Borges, nesta investigação especificamente em O Livro de Areia, bem como o nada absoluto procurado por Manoel de Barros em Livro sobre Nada, atraem pesquisadores de várias áreas do conhecimento, nos continentes e nas cidades letradas, nas academias, mas inexiste, entretanto, estudo publicado que os compare enquanto forças latentes de uma leitura que se deseja para além da Argentina e do Brasil, sobretudo, latino-americana. A escolha de ambos os livros para este artigo, embora pertencentes a gêneros diferentes – O Livro de Areia é um conjunto de contos e o Livro sobre Nada é de poemas – traz consigo a transversalidade de uma realidade oblíqua que transcende as nações onde Borges e Barros escreveram seus projetos literários, para abrir aos países um permanente diálogo com a polissemia do discurso literário, no qual o papel do leitor – à luz da teoria literária e da recepção – assume força primordial. A começar pela proposta original de seus títulos, os dois autores estabelecem um diálogo próprio com seus receptores, partindo de pontos que vão compondo linhas, ainda que constituídos por elementos paradoxalmente infinitos – a areia – e intangíveis – o nada. Na condição de leitores-escritores em busca de um papel para si e para seus leitores, Borges e Barros desarticularem um conteúdo canonizado, para viabilizar a originalidade de cada obra. Portanto, somente comparar as obras não é nosso objetivo. Mais que isso, é o traçado de proposições analíticas na perspectiva da recepção, por meio de buscas intertextuais, de 206 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 entrevistas e de instrumental comparativo, opções calcadas no estudo de seus processos criativos e das suas ferramentas linguísticas de cada autor. Os diversos trabalhos de pesquisa desenvolvidos sobre Barros e Borges demonstram uma circunscrição de intencionalidades, de perspectivas literárias, de análise cultural de seus países periféricos (dentro da hegemonia ocidental da cultura e da literatura), porém esses estudos visam a cada autor e sua obra em separado. Este artigo juntou-os enquanto escritores e também como leitores, assinalando nas dessemelhanças que os identificam e nas semelhanças que os (des)conhecem os caminhos por eles percorridos do local (talvez o Pampa e o Pantanal) ao universal, também na ótica da recepção. Nesse aspecto, Kartlheinz Stierle enfatiza que o ponto de vista da recepção e das formas de apropriação da literatura por seus leitores tem, ultimamente, motivado “[...] um novo interesse pela história da literatura.” (1979, p.120) Desde as reflexões lançadas por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser nos anos de 1960 até hoje, houve uma reformulação de conceitos que priorizam uma retomada analítica referente ao aspecto da “[...] recepção sobre os de produção e da representação” (STIERLE, 1979, p. 121). A proposta de estética da recepção de Jauss e de Iser, segundo analisa Stierle (1979, p. 123), centrou-se numa contraposição: de um lado a reflexão formalista e estrututuralista, interessada unicamente na estrutura imanente do texto, e de outro a estética marxista de representação, que tomava apenas “o reflexo” como a tarefa legítima de literatura. No que se assemelham e no que se distanciam O Livro de Areia e o Livro Sobre Nada? E em que ponto os dois autores, tão intrincadamente fincados em suas nações periféricas são aceitos pelo seu valor universalizante? Seja em prosa, seja em poesia e, por conseguinte, na prosa poética que ambos empreendem de maneira única, Borges e Barros concebem raros e singulares elementos líricos na concepção do absurdo, do impensável, do non sense e da metapoesia que criam em torno de seus personagens, de seus narradores e eus líricos. Ambos empreendem uma tentativa de afastamento do convencional e propõem a dissolução de seus livros nas mãos seus receptores, os leitores partícipes e inventores de novos Borges e Barros. THE SPACES OF THE EMPIRICAL READER AND THE READER-AUTHOR IN LITERATURES IN (DES) CONSTRUCTION: BORGES AND BARROS ABSTRACT: The proposal of this study comparative-critical degree between the literary texts and the processes of literary desconstruction undertaken by Jorge Borges Luis, in the Livro de Areia (1975) and for Manoel de Barros, in Livro Sobre Nada (1996), aims at to a qualitative and bibliographical research and interviews with four professors doctors, based on the exploration of intertextuais hypotheses that they aim at to demonstrate the joint that both establish between literary making and the reader in the perspective of its cultural realities. The registers of the similarities, the used dissimilarities and linguistics tools in its creative processes, each one in its time and cultural place are essential, one in Argentina and another one in Brazil (Pantanal). Borges tells the history of the infinite 207 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 book, whose pages, a time capsized, cannot again be chores. Therefore, everything what it was written. Barros looks for to make of the nothing its book. KEYWORDS: Reading. Reception. Jorge Luis Borges. Manoel de Barros. REFERÊNCIAS: BARROS, M. de. Livro Sobre o Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. (V. 1). BORGES, J. L. O Livro de Areia. Tradução Paulo Freitas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _______. Esse Ofício do Verso. Tradução José Marcos Macedo São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _______. Ensaio Autobiográfico. Tradução Maria Carolina Araujo e Jorge Schwartz. São Paulo: Globo, 2000, p.31. _______. Elogia da Sombra. In: Obras Completas, vol. II. Tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques. São Paulo: Globo, 1999. p.377. CASTELO, Manoel de Barros busca o sentido da vida. O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 de setembro de 1996. EAGLETON, T. Teoria da Literatura, uma introdução. Tradução: Ricardo Pérez São Paulo: Martins Fontes, 2003. ECO, H. Seis passeios pelo bosque da ficção. Tradução: Sebastião Uchoa Leite São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 208 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ISER, W. O ato da leitura: uma teoria da estéticva da recepção. Tradução: Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. OLMOS, A. 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Com base nos estudos de Hansen (2008), Sales (2009) e Moisés (1974), intentamos desvelar as marcas que tensionam a obra Crime na Calle Relator, de João Cabral de Melo Neto, entre a tradição clássica e a moderna do gênero, e destacar a sedimentação do poema narrativo moderno. À proporção que o poema narrativo clássico entra em declínio ocorrem também profundas transformações no estatuto do herói e do narrador. No lugar do herói valente, corajoso, ilustre e valoroso da épica clássica surge o herói comum, vil, indolente, ridículo, oriundo das mais diversas classes da sociedade burguesa. O narrador, por sua vez, abandona o encômio e não mais se coaduna com os feitos do herói do poema narrativo e, ao afastar-se dos valores por ele representados, encontra na crítica, na censura e na sátira a medida de sua intervenção na sociedade de costume. PALAVRAS-CHAVE: Poema narrativo moderno. Crime na Callle Relator. João Cabral de Melo Neto. Apontamentos preliminares De antemão, deve-se levar em consideração que as definições do gênero épico centram-se na prática do autor, bem como nos modos de comunicação do poema, ambos ancorados em situações históricas variáveis. Logo, as transformações humanas e sociais decretaram o declínio do poema narrativo de ordem clássica e, conforme João Adolfo Hansen, salvo algumas tentativas de revivê-la nos séculos XIX e XX, a epopeia é um gênero morto (HANSEN, 2008, p. 18). A epopeia, tal como a conhecemos, a narração de tipos ilustres e ações heróicas, promulgadora de princípios morais, religiosos e políticos, manteve-se forte enquanto duraram as instituições do mundo antigo, não resistindo ao advento da sociedade burguesa, pois o espírito do heroísmo é inverossímil num contexto no qual o dinheiro passa a ser a medida de todas as relações (HANSEN, 2008, p. 17). No tocante à épica luso-brasileira, até o século XVIII, que também não escapara das transformações incididas sobre o gênero, os poetas restringiram o uso da magnificência, exercendo a docere da ilustração católica. São caudatários dos preceitos 1 UFMS/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Letras. Três Lagoas/Mato Grosso do Sul- Brasil. 79603- [email protected] 210 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 aristotélicos, mas deixam de lado o maravilhoso antigo, ao substituí-lo pelo maravilhoso cristão ou indígena, o que aconteceu em O Uraguai, de Basílio da Gama, Caramuru, de Santa Rita Durão, e, no século posterior, em I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Dentro desse escopo, vale ressaltar ainda alguns poemas narrativos herói-cômicos da literatura brasileira, como O Reino da estupidez, de Francisco de Melo Franco, O Desertor, de Silva Alvarenga, O Almada, de Machado de Assis, e o Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães (SALES, 2009, p. 3). Em um salto de séculos de produção literária, chegamos à Primeira Geração do Modernismo no Brasil, que foi marcada por inovações que postulavam a negação à arte parnasiana, ao preciosismo linguístico, a toda a arte acadêmica que se estabelecera na literatura nacional. Sobre isso, Candido e Castello (1968, p.10) ressaltam que o movimento modernista afirmou “sua posição em vários rumos e setores: vocabulário, sintaxe, escolha de temas, a própria maneira de ver o mundo”. Foi incorporando a expressão coloquial do brasileiro, a inversão das normas gramaticais, o ritmo da fala, a escrita, a concisão elíptica à poesia, que os modernistas combateram aquela literatura pomposa, rebuscada, impessoal, e retórica dos seus predecessores. Em relação ao poeta modernista, ressalta Coutinho (2001, p. 46) que, no tocante à ausência de cânones, cada poeta passou a obedecer às suas próprias regras, pois não havia modelos prefixados. Feitas tais considerações, constata-se então que, desde sua gênese na antiguidade clássica até sua configuração na práxis do Modernismo brasileiro, o poema narrativo sofre profundas transformações, ocasionadas pelo advento da sociedade capitalista e burguesa, por exemplo, na estrutura interna da obra, configurada no narrador, na proposição e na invocação. Os poemas narrativos de Crime na Calle Relator estão inseridos nos mais diversos ambientes e espaços, que vão de cidades da Espanha, a bairros, ruas, monumentos, aspectos geográficos da região da Andaluzia e do continente europeu. Nas pequenas narrativas historicizadas em versos, o narrador passeia pelas diversas classificações, ora sendo o narrador de suas próprias histórias, ora é o eu como testemunha dos causos e situações acontecidas, ora reserva-se a posição heterodiegética de relator. Mergulhado na cultura espanhola, vê-se a presença não apenas geográfica de um país, mas da música (flamenco), da dança (as bailarinas ciganas), do religioso e da cultura (touradas). É nesse contexto também que o narrador faz um paralelo com o Nordeste, nos causos contados, nas histórias dos poetas e educadores da região. Crime na Calle relator, escrito entre 1985 e 1987, é publicado por João Cabral de Melo Neto na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1987. Insere-se num momento de distanciamento do autor, visto ser sua residência na cidade do Porto, devido a sua carreira de diplomata. Faz uso da técnica narrativa, o chamado poema narrativo, e quase todos os fatos narrados são reais, presenciados ou sabidos por relatos de terceiros, prosaicos e até mesmo oriundos da História Latino-Americana. Os poemas exploram narrativas nas quais as dicotomias culpa/ inocência, autoridade/ subalterno são questionadas, num desafio a categorizações rígidas. Isso revela como a “voz baixa e divertida” da coletânea cabralina “não prejudicou, mas antes contribuiu para a sua contínua elaboração sobre questões de representatividade e exclusão (BRANDELLERO, 2005, 211 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 p. 317-320). O poeta deu visibilidade a grupos tradicionalmente marginalizados, ao articular sua leitura do Brasil, olhando para o seu país e para outros espaços para além de suas fronteiras” conforme enfatiza Brandellero (2005, p. 317-320). É justamente dentro deste molde que se encaixa Crime na Calle Relator: Poesia e Prosa; Brasil e Espanha; Clássico e Moderno; Pessoal e Universal. Essa visão, aproximada e distanciada, individual e universalizante em Cabral, num movimento de câmera de aproximação e afastamento que regerá a poética do autor, resultado de sua carreira diplomática, é a imagem que buscamos construir de sua obra, para além da imagem já tão referenciada do poeta e sua arquitetura da linguagem: E se o poeta sabe reaproveitar a experiência da literatura popular em verso do Nordeste, assim o faz graças à autenticidade de que esta se reveste, misto de espontaneidade e fluência, gerando estruturas simples e diretas , etc. Mas também é preciso que se dê relevo no conjunto da obra poética de João Cabral de Melo Neto à frequente alternância temática sertão-nordeste-presença-da- Espanha (CASTELLO, 1999, p. 430). Acrescentaria à composição feita pelo crítico, conforme citada acima, o seguinte: indivíduo-sertão-nordeste-presença-Espanha-mundo. Observa-se nesta construção o movimento que acompanhará sua poética até chegar a Crime na Calle Relator, o que também atesta Marly de Oliveira: Porque esta é uma poesia antilirica, é uma poesia dirigida ao intelecto e de certa forma, mais presa à realidade que o mesmo autor, que sempre teve, por função de trabalho, cindidos, o pensar sobre a matéria do poema e o dia-a-dia de funcionário público, ocupado com negociações internacionais, independentes da carência de sua visão de mundo (OLIVEIRA, 2003, p. 15). Assim, constitui-se a obra de João Cabral de Melo Neto, marcada pelas paisagens do Nordeste brasileiro e da Andaluzia, recortada pela linguagem hermética, lacônica e concreta em busca da palavra concisa que supra seu labor poético. Ademais, nos quase 58 anos de produção literária, João Cabral de Melo Neto, além de antologias, poemas reunidos e ensaios em prosa, publicou as seguintes obras: Pedra do sono (1942), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947), O cão sem plumas (1950), O Rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), Morte e vida severina (1956), Paisagem com figuras (1956), Uma faca só lâmina (1956), Dois Parlamentos (1960), Quaderna (1960), Serial (1961), A educação pela pedra (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1979), Auto do frade (1982), Agrestes (1985), Crime na Calle Relator (1987) e Sevilha andando (1990). Esboço de uma tipologia 212 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 De início, cabe lembrar que, durante os séculos XVI, XVII e XVIII, os códigos da poesia foram retóricos, imitativos e prescritivos e, em muitos casos, anteriores ao registro escrito, e que até o século XVIII, os regimes discursivos da poética eram subordinados ao bem comum, ou seja, o costume determinava o decoro interno da obra, e, simultaneamente, prescrevia o decoro externo como adequação verossímil à recepção (HANSEN, 2008, p. 19-20). A obra é concebida então, pela consciência coletiva e objetiva, longe do expressivismo tão caro aos românticos (HANSEN, 2008, p. 19-20). Ao lançarmos mão do curso evolutivo e constitutivo do poema narrativo, encontraremos sua gênese e todo alicerce do gênero, na antiguidade clássica, por assim dizer, na cultura grecolatina. Antes, porém, destacamos uma definição do gênero: O poema narrativo caracteriza-se como manifestação literária em verso na qual se realiza a narração ficcional de fatos ou de ações antropomorfizadas, com alguns traços dramáticos, cômicos ou sérios e pode ser de alcance universal, regional ou local, dadas a presença ou ausência de grandiosidade. Dessa forma, o poema narrativo pode ser caracterizado como poema épico, poema heróico ou poema heróico-cômico (SALES, José Batista de, s.v. “Poema Narrativo”, E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>, consultado em 16-062011). É na Ilíada e na Odisséia de Homero, século IX a.C, que está posto o princípio do poema narrativo. A Ilíada, que conta a história parcial da guerra de Tróia, e a Odisséia, que narra o retorno de Ulysses à casa, representam as principais fontes históricas para o estudo da civilização grega antiga. O canto homérico exaltava e punha em voga as qualidades do homem guerreiro e, com isso, tecia a encomiástica às autoridades, aos deuses, à fidelidade, à força, à nobreza, às virtudes e ao caráter do herói: Sendo longas narrativas de exaltação do cumprimento do dever cívico e religioso, os poemas homéricos vinculavam-se estreitamente aos interesses e à sensibilidade de então, porque redimensionavam artisticamente as guerras, as viagens, os mitos e as línguas do povo, pondo em evidencia suas crenças e seus valores (TEIXEIRA, 2008 , p. 16). Muitas são as obras e diversos os autores e línguas, todos caudatários dos preceitos homéricos, que narraram em versos grandes feitos de sua pátria. Virgílio compõe na Eneida, num tom encomiástico, a história dos romanos. De cunho emulativo à Ilíada e à Odisséia de Homero, haja vista os romanos serem grandes herdeiros da cultura grega, Eneida, surgida sob diretriz do estado romano, conserva o estilo elocutivo e estrutural da épica grega. Ivan Teixeira (2008) entende a Eneida como uma epopeia de caráter artificial e imitativo, resultante de 213 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 propósitos políticos, o que implica num ideário preexistente, não de impulsos primitivos como fora a épica de Homero (TEIXEIRA, 2008, p. 20). Homero no século IX a. C fez uso da técnica clássica de composição do poema narrativo. E posteriormente, ano IV a.C, Aristóteles postulou as primeiras definições do poema narrativo: A epopeia canta o homem melhor do que ele é.(...) corre parelha com a tragédia na imitação de assuntos sérios (...). Não se limita assim em sua duração (...) Entendo [Aristóteles] por épica a que abraça muitas fábulas. O poeta deve falar o menos possível por conta própria. (...) O metro heróico, a experiência o prova, é o que melhor convém a epopeia. (ARISTÓTELES, 1994, p. 285-338). Partindo das considerações a respeito do poema narrativo épico clássico que fizera Aristóteles, Massaud Moises preconizou: A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos ocorridos há muito tempo (...); o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica (...) Ainda caracteriza o poema épico o chamado maravilhoso, vela dizer, o impacto de forças sobrenaturais na ação dos heróis (...); o verso deveria refletir, na sua majestade e gravidade, a magnitude da ação heróica (MOISÉS, 1978, p.184) E por fim, João Adolfo Hansen referencia a composição do poema narrativo épico, concebida primeiramente por Aristóteles, dividindo-o em partes de Quantidade e Qualidade. As partes de Quantidade são: Título, Invocação, Proposição, Dedicatória, narração e Epílogo. Em relação às partes de Qualidade: Costumes, Elocução, Fábula, Finalidade, Herói, Maravilhoso, Narrador, Pensamento, Duração, Verossimilhança e Valores clássicos (HANSEN, 2008, p. 4577). Até o século XVIII foi por esses liames que andara o poema narrativo de ordem clássica. Com o advento de transformações sócio-históricas, as características estruturais fundamentais do gênero acabam por se diluírem, abrindo espaço para o acentuar de novas práticas na composição do poema narrativo moderno. As transformações do poema narrativo afetam diretamente suas categorias estruturais, ocasionando mudanças e desaparecimento de um ou outro predicado do gênero. Ao contrário do poema narrativo clássico, que se constituíra como um fenômeno de legitimação das regras e valores sociais, é sob essas novas perspectivas que será composto o poema narrativo moderno – épicos, heróicos e herói-cômicos. Comecemos da seguinte constatação: Assim verificamos igualmente nessas obras [poemas narrativos modernos] a estabilidade de várias categorias e o desaparecimento de outras e, por outro lado, constatamos a instabilidade de diversas categorias estruturais nos poemas tidos como 214 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 satíricos, mas já resultando em transformações estruturais importantes (SALES, 2009, p 56). É clara a relação de interdependência e simbiose entre as categorias estruturais do poema narrativo, como, por exemplo, fábula, herói, narrador, ação, pensamento e caráter. O que se percebe em relação à preceptiva clássica do gênero, é que para cada perspectiva adotada para um termo, corresponde uma forma de atuação de outro. A alteração da fábula do poema narrativo moderno herói-cômico, que salta da encomiástica às ilustres ações de um herói sublime no clássico, para a representação de feitos banais de um herói vil e perdedor, acarreta transformações em outros aspectos do poema narrativo, como o estatuto do narrador e a finalidade do canto. Logo, como a finalidade não é mais promulgar valores e virtudes por meio de um herói para elevar o leitor, e sim criticar e censurar para a correção de costumes, assoma ao primeiro plano, heróis fracassados, ridículos, simples, carregados de maus hábitos e vícios: Até o século XVIII, grosso modo a épica caracterizou-se por um tom majestoso e mesmo religioso, e por conter as sublimes façanhas dum herói que simbolizava as grandezas de sua pátria e mesmo de toda a Humanidade; num estratificado, havia lugar certo para o herói. Com o advento do Romantismo e a consequente derrubada das carcomidas e tradicionais estruturas, desaparece o herói e nasce o não-herói ou o antiherói, pois no mundo novo deixou de haver espaço para as concepções místicas segundo o antigo figurino (MOISÉS, 1973, p. 70). Se não são ilustres a proposição do canto e o herói que o fulgura, o narrador, que antes se instava no laurear do registro elevado do herói, em evidente adesão aos valores por ele demonstrados, no poema narrativo moderno se afasta, não mais se coadunando com a ordem estabelecida no canto. O narrador posiciona-se de maneira dissonante aos valores da sociedade de costumes representada no herói, manifestando posição crítica e distanciada em relação ao herói envilecido, o que aponta grande discrepância com o narrador clássico, tão ocupado na exaltação a uma figura de nobreza e coragem. Para não nos distanciarmos do pesquisador que se dedicou de forma profícua e inédita ao estudo do poema narrativo moderno no Brasil, e para deixarmos mais claro nosso argumento, visitemos o pensamento de Sales: No épico os valores predicativos do herói, geralmente expressos por meio de adjetivos “prudente”, “pio”, “generoso”, “valoroso”, têm sempre registro elogioso e revelam a consonância deste narrador com as ações deste mesmo herói. Mas no herói-cômico, os mesmo adjetivos encerram invariavelmente um registro irônico e em dissonância com as ações e pensamentos do herói e conseqüente tensão entre este o narrador (SALES, 2009, p 58). 215 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Como se pode observar no transcorrer desta análise, se a literatura responde às transformações e manifestações de cada época, o poema narrativo, como parte integrante, também não foge à regra. Grandes são as inserções no gênero que produzirão mudanças no estatuto do narrador, e ainda na proposição, no herói, nos costumes, pensamento, elocução, na substituição ou ausência do maravilhoso, e até mesmo na extensão dos poemas narrativos, que se tornarão cada vez mais econômicos em sua composição. Entre a Ilíada e o Romanceiro: preceitos quantitativos Lançamos os fundamentos desta análise na elaboração da gênese do poema narrativo, e encontramos na Ilíada e Odisséia de, Homero, o ponto de partida. Sinalizamos ainda o caráter prescritivo e subordinado ao ideário coletivo que circunscrevera as condições de produção do poema narrativo clássico. O uso da rimas e do ritmo é anterior ao registro escrito e está vincado na tradição oral da poesia. Características como proposição, invocação, dedicatória são elementos explicitamente inerentes a um gênero subordinado a uma figura de poder e que aponta como legitimador de regras e costumes de uma sociedade. O poema narrativo, assim como toda a literatura, constitui a “mundaneidade de seu tempo” (HANSEN, 2008, p. 19), logo, as transformações ocorridas no homem e na sociedade pelo estabelecimento do capitalismo e dos valores burgueses incorrerão em profundas transformações na composição clássica do gênero. Ao observarmos o poema narrativo herói-cômico veremos acentuadas relevantes diferenças no estatuto do narrador, do herói, e mesmo nos valores e costumes clássicos. Ainda, ao determos os olhos na épica brasileira dos séculos XVI, XVII, XVIII, veremos a substituição do ideário da proposição e invocação do canto, bem como a presença do Maravilhoso. Sales (2009) entende o poema narrativo herói-cômico como um processo de transição entre o poema narrativo clássico, a acentuação do Romance e a decantação (ou desconfiguração) do que hoje chamamos de poema narrativo moderno (SALES, 2009 p. 59). O crítico, ainda, no estudo do poema narrativo no Brasil, assinala a presença de uma nova grade de elementos estruturais que avultarão na sedimentação do poema narrativo moderno: Dividimos estas transformações em dois grupos. O primeiro composto por categorias instáveis (desaparecem ou se modificam) tanto de um poema a outro, como do clássico ao paródico, mas que não acarretam alterações importantes para a compreensão das transformações ocorridas no gênero. A ausência da dedicatória ou do epílogo não altera a estrutura do poema e nem impõe alterações noutra categoria, o narrador ou herói, por exemplo. Entre estas categorias estão dedicatória e epílogo, tempo e valores clássicos. Um segundo grupo é formado pelas categorias fábula, costumes, pensamento, herói, narrador, verossimilhança, maravilhoso, narração, elocução e metrificação, em que alterações de seus estatutos acarretam importantes modificações de ordem estrutural. Por exemplo, as características da fábula do poema satírico ou paródico, resultado de alteração da fábula do poema herói épico clássico, implica determinadas modificações na caracterização do herói-cômico, como a natureza de suas ações, a expressão de sues 216 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 pensamentos, o registro de seu caráter e ainda notam-se alterações no narrador (SALES, 2009, p. 56-57). A extração do texto acima, que tratara da épica luso brasileira, faz-se necessária, uma vez que tais transformações sinalizadas à propósito dos poemas narrativos como I-Juca Pirama ou O Elixir do Pajé se sedimentarão de forma mais incisiva na poética narrativa após os idos de 1980. Ademais, Crime na Calle Relator, ao que nos parece, apresenta não apenas um prosaico temático e memorialístico do poeta pernambucano, mas um largo de confluências poéticas, marcadas pela estabilidade de algumas categorias e instabilidade de diversos elementos estruturais, que serão em definitivo a decantação de uma nova práxis do poema narrativo moderno. Ao passar em revista os aspectos estruturais e mesmo qualitativos do poema narrativo moderno, veremos que, em muitos casos, os títulos dos poemas em Crime na Calle Relator contém certa aproximação com a ordem clássica, uma vez que muitos carregam o nome do herói do poema ou mesmo o local da narrativa, o que anda em conformidade com o poema narrativo clássico (HANSEN, 2008, p. 45). Como exemplo, temos os títulos dos seguintes poemas narrativos: “Crime na Calle Relator” (lugar), “A Tartaruga de Marselha” (lugar), “O Ferrageiro de Carmona” (herói e lugar), “Na Despedida de Sevilha” (lugar), “O Desembargador” (herói), “Funeral na Inglaterra” (lugar), “Rubem Braga” e o “Homem do Farol” (herói), “Antonio Silvino no Engenho do Poço” (herói e lugar), “Beco da Facada” (lugar), “Cenas da Vida de Joaquim Cardozo” (herói), “A Morte de Gallito”. Obviamente, embora alguns poemas mantivessem a característica clássica de aludir ao local e à figura do herói, a preceptiva em relação ao herói do canto é totalmente transformada. Intentamos, então, chamar a personagem principal de herói apenas por constar como de protagonista da ação ou do poema, não sob a perspectiva do herói portador de bondade, generosidade e coragem marcial, tampouco promulgadora de valores e pensamentos elevados, como era o herói clássico. Em relação à proposição nota-se que os poemas não são compostos deste recurso, e apenas um poema apresentará uma nuance de proposição, o que evidentemente não será uma ação gloriosa ou solene por parte do herói: Um prêmio fora oferecido pela Rainha Castela a quem no salto de Colombo em primeiro avistasse a terra. (MELO NETO, 2003, p. 611-612). O poema narrativo O “Bicho” traz em sua primeira estrofe a proposição do que seria o canto de uma ação conquistadora, ao registrar a expansão marítima da Espanha. Mas ao contrário de narrar uma grande conquista de um povo ou registrar um feito elevado de um herói o que se configura é uma crítica do narrador ao dado momento histórico e contundente revisão da história oficial. A ausência da proposição ou a substituição da encomiástica ao herói valoroso do poema 217 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 narrativo clássico traz ao primeiro plano a presença do herói comum e ridículo: o navegante mercenário – O “Bicho” –, a neta suburbana que se culpa pela morte da avó – Crime na Calle Relator –, a personagem suicida – A Tartaruga de Marselha –, as viúvas contadoras de causos de Utrera – As infundiosas – , entre outras, em que se veem ações de personagens fracassadas e perdedoras, elevadas à posição de herói (SALES, 2009 p. 57). Em relação à invocação que, no caso do poema narrativo aos moldes homérico, tinha sua fonte nas Musas mitológicas e no tocante à épica luso brasileira e também de poetas Cristãos, em Deus e no espiritual indígena, em Crime na Calle Relator vemos a ausência quase que completa, uma vez que o que se tem é a antonímia da palavra e seu processo compositivo, empregado na construção da figura de heróis e espaços autônomos. O que apontaria não como um apelo invocatório para a composição de versos, mas antes como um trilho em que caminharia a estruturação da obra, seria a inserção da epígrafe “...in that ago when being was beliveing” do poeta inglês W. H. Auden. Tal citação demonstra, ao que nos parece, um ponto de aproximação com a invocação do poema narrativo clássico, uma vez que encaminhará os mecanismos compositivos dos poemas e delimitará uma certa unidade formal da obra. Se observarmos atentamente, desde a primeira obra publicada por João Cabral de Melo Neto, o recurso de citação por epígrafes como “...machine à émouvoir” ou “Riguroso horizonte”, demonstra um certo perfilamento estético e compositiva aos moldes estéticos dos autores e obras evocadas. Ainda cabe lembrar o poema inserido na obra Agrestes, de 1985, em que aparecerá de maneira bastante clara este ponto de intersecção dessas duas poéticas: A W. H. Auden Já não descontarei o cheque Que certo dia me mandaste: “A João Cabral de Melo Neto, com dez mil amizades, Auden.” Como a morte encerrou tuas contas De libras, dólares, amizade, Hoje só resta a conta aberta De teus livros de onde sacar-se. E de onde há muito que sacar: Como botar prosa no verso, Como transmudá-la em poesia, Como devolver-lhe o universo de que falou; como livrá-la De falar em poesia, língua Que se estreitou na cantilena E é estréia de coisas e rimas. 218 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (MELO NETO, 2003, p. 555). Embora João Cabral dedique Crime na Calle Relator ao escritor e artista plástico Luis Jardim, vemos nisto mais a prestação de uma homenagem e mesmo uma aproximação ao ideário artístico, a que à formação um dos termos integrantes do poema narrativo clássico: A Dedicatória. Nas palavras de Sales, a dedicatória “prende-se em parte a problemas externos, como a relação do autor com a sociedade, a sua forma de subsistência, o regime político do seu tempo e, correlativamente, o problema da autonomia da arte e do artista (SALES, 2009, p. 61). Crime na Calle Relator, não se configura, porém, como uma obra subordinada a uma figura hierárquica de autoridade, o que justifica a ausência da Dedicatória e aponta uma discrepância em relação ao poema narrativo clássico. Como exemplo deste movimento que se afasta da filiação a uma figura ou sistema de poder, cabe sinalizar que, são vários os poemas narrativos em Crime na Calle Relator nos quais o narrador se insurge contra o regime político vigente, tal como em “Brasil 4 X Argentina 0”, em que se faz alusão ao processo de abertura política em países da América Latina, o que se justifica no fato do Brasil ter saído recentemente de uma ditadura militar. Ainda poemas como “Numa sexta-feira santa” ou “Guerra Civil Espanhola” insurgem-se contra o regime do ditador Francisco Franco, com o qual João Cabral tivera contato direto pelo tempo que vivera em solo espanhol e também pela estreita relação com artistas plásticos e pintores, que à semelhança do amigo Joan Miró, foram exilados e coibidos pelo regime franquista. Ademais, entendemos que os poemas narrativos modernos da obra de 1987 são compostos não sob a égide da sociedade vigente, mas num movimento de afastamento e independência compositiva do autor e obra, justificando-se assim a ausência da Dedicatória e o aparecimento de uma subjacente crítica dos costumes. Em relação à composição estrutural do poema narrativo clássico, temos a Narração, que relata uma ação única e completa, marcada pela relação de causa e efeito, em que fulguram de modo verossímil o herói melhor que o homem comum, sob a égide do Maravilhoso (SALES, 2009, p. 114). Crime na Calle Relator é composto de poemas narrativos que contam as mais diversas histórias, tais como anedotas pernambucanas e até mesmo fatos da história universal. A obra é composta de poemas de pequena extensão, como “O Exorcismo”, composto de quatro estrofes de quatro versos, e poemas de extensão mediana, divididos em episódios ou cantos, o que se assemelha ao poema narrativo de ordem clássica. Como exemplo, temos “As Infundiosas”, poema narrativo composto de dez partes de quatro dísticos; “Numa Sexta-feira Santa”, composto de quatro partes de oito dísticos; “Histórias de Pontes”, composto de oito partes de quatro quartetos; “Episódio da Guerra Civil Espanhola”, com quatro partes de quatro quartetos; “Beco da Facada”, de duas partes de oito dísticos. Ademais, além dos poemas divididos em partes com a representação numérica, temos o poema “Cenas da vida de Joaquim Cardozo”, dividido em quatro partes, apresentando os seguintes subtítulos: “A tragédia grega e o mar do Nordeste”, “Um poema sempre se fazendo”, “O exilado indiferente” e “Viagem à Europa e depois”. 219 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ainda no que se refere à materialidade do poema, e embora tenhamos em vista que as características do poema narrativo moderno andem em sua maioria na contramão do poema narrativo clássico, a concepção da narração em Crime na Calle Relator possui pontos de aproximação com preceitos da épica homérica. João Cabral de Melo Neto concebe seu poema como um engenheiro concebe uma obra, num construto delicadamente erigido sob a régua da disciplina. O poeta trabalha na composição das palavras do poema e também na elaboração e disposição gráfica e temática da obra. O autor de Morte e Vida Severina, em seu exercício de poesia, alcança seu ápice na composição laboriosa do poema e da materialidade da obra: “O livro [A Educação pela pedra] é composto de 48 poemas separados, na primeira edição em 1966, em quatro grupos de doze, mas publicado sem separação nas poesias completas, de 1968. Naquela, a divisão por letras minúsculas e maiúsculas parecia, sobretudo, indicar a própria dimensão dos poemas em a e b, textos mais longos de 24 versos, invariavelmente. Na edição da obra completa, de 1994, vem outra especificação: os poemas reunidos sob a letra a , quer maiúscula, quer minúscula, são referentes ao Nordeste, e os reunidos sob a letra b , ao “Não Nordeste”, conservando-se a diferença de dimensão dos textos. (BARBOSA, 1996, p. 84). Cabral retoma este processo compositivo em Crime na Calle Relator, obviamente, não na disposição e organização da obra ao todo, mas na distribuição de alguns poemas narrativos, que internamente, são distribuídos em partes e cantos, e agrupados em quartetos e dísticos, sob números pares e também por meio de subtítulos, o que referenciamos anteriormente, e exemplificamos agora: BECO DA FACADA 1 No escuro Beco da facada (porque tal nome, se ignorava, mas porque tão pernambucano era sem porquês e sem quandos) (MELO NETO, 2003, p. 618). Ou por subtítulo, em sua terceira parte CENAS DA VIDA DE JOAQUIM CARDOZO O exilado indiferente 220 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A esse recifense de praias Obrigam-no a deixar seu mapa: Outro pernambucano, turrão, (nada é do grego Agamenão) (MELO NETO, 2003, p 622). O epílogo nos poemas narrativos modernos se mostra variável e mesmo prescindível, e sua ausência não acarreta transformações no interior do gênero. O epílogo ganha certa importância na composição dos poemas narrativos marcados pelo humor em Crime na Calle Relator, como em: “Funeral na Inglaterra”, “História de Mau-caráter”, “Beco da facada” e “Histórias de Pontes”. Na constituição das narrativas em tom jocoso, nota-se a presença de mecanismos narrativos que criam um ar de suspense no texto, com intuito de prender a atenção do leitor, e com isto estabelece o cunho anedótico do poema, mas sem que isto aproxime tal composição dos poemas narrativos de ordem clássica. O Herói não-superlativo Em Crime na Calle Relator a dicotomia está presente nos mais diversos níveis: no perfilamento do poema narrativo clássico e moderno, do Brasil e Espanha, da literatura de tradição e literatura popular, da poética de rigor e da oralidade, isto só para evidenciar alguns pontos. O herói (agente da ação ou protagonista) que aparecerá nos poemas narrativos da obra não o é diferente. No mosaico temático e literário de Crime na Calle Relator, João Cabral evoca os heróis primeiros de seus poemas, delega voz a seu alter ego, e faz da obra de 1987, um ponto de intersecção de heróis de atributos singulares e de homens simples e ordinários: Veremos um registro elevado do herói naqueles elementos que se aproximam da concepção poética de João Cabral, como no poema “Cenas da vida de Joaquim Cardozo”. Observe como o herói é descrito: Cardozo levava seu poema: A poesia, não leva a pena (...) E nele vai sem romantismos: Nem o de vir de paroxismos Nem o mais de moda e moderno, De escalar fingidos infernos. (MELO NETO, 2003, p. 621-622). 221 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Cabral descreve de maneira encomiástica a figura do herói que representa o equivalente daquilo de seu ideário poético, daqueles que representaram grande contribuição para o seu aprender de poesia, e também os nomes que interferiram de maneira significativa no sertão de sua terra natal. No entanto, o que se realiza de modo mais profícuo em Crime na Calle Relator é o registro não elevado do herói, em que marca presença o homem comum, com suas ações ordinárias e por vezes risíveis. Na configuração do herói inferior, temos as personagens principais de “Crime na Calle Relator” e “Tartaruga de Marselha”. Se observarmos o primeiro verso de cada poema, veremos o herói em conflito, ordinário da própria sorte e sem grandes conquistas: “Achas que matei minha avó?” ou ainda “Sai de casa para matar-se”. Em contraposição ao destemido e altruísta herói clássico, as ações do herói do poema narrativo moderno é a representação do homem comum, de ações banais, cheio de dúvidas e conflitos, carregado mais de sentimentos egoístas e de preservação, do que de valentia e galhardia. Além do herói (agente da ação) retratado em conflito existencial, outra faceta do herói retratada na obra, é a imagem do individuo desprovido de atos heróicos de uma história elevada ou digna de grandes feitos, mas o herói vil e indolente que na falta de emoções ou feitos ilustres dedica-se em verborrágicas mentiras, como no caso de “As Infundiosas”: A inspiração é sempre outra E tanto mais quando é gratuita Esgotam-se os infúndios ricos Que ocorreriam dos maridos; Nem querem infúndios de pobre, Já lhes basta a vida de cobre; (...) Visitá-los era ir a um teatro Que o espectador vive do palco (MELO NETO, 2003, p. 594-595). Não obstante à vida monótona e desprovida de grandes feitos, nem mesmo contar mentiras é de grande valia, visto que até mesmo a imaginação lhe é pouca. Outro aspecto tangido na composição do estatuto do herói é a representação do herói como investido de mau caráter e de qualidades indignas de encômio: Cólon Colombo, que Claudel a ser santo candidatou; 222 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 com o são caráter que lhe dão (se o teve, dele pouco usou). O “Bicho” (MELO METO, 2003p. 611-612). Mesmo que se tenha a marca de um herói elevado em alguns poemas da obra, Crime na Calle Relator é um mosaico poético em que se vê delineado de forma decisiva o herói do poema narrativo moderno. Não luta em nome da pátria, não é portador de caráter e pensamentos elevados e não é agente de conquistas e façanhas como na constituinte clássica. Sua vida é mediana e sem grandes acontecimentos, é antes um lutador da própria sobrevivência, e por vezes, nem apontando qualidades como generosidade, bondade, compaixão e sim um forte senso de sobrevivência e competição, que o coloca em plena consonância com os valores burgueses. O Estatuto do narrador A propósito de estabelecer as coordenadas literárias do poema narrativo clássico sinalizamos a forma de atuação do narrador em tempo e terras de Homero. Destacamos o caráter prescritivo e imitativo que abarcava as condições do gênero na antiguidade clássica, e desvelamos a presença de um narrador subordinado a uma figura de autoridade e a preceitos e valores coletivos, que o levaram a coadunar-se com os valores impetrados no canto e com caráter e pensamentos do herói em voga. As transformações advindas da implementação do sistema capitalista e da sociedade burguesa incorreram em mudanças na perspectiva da fábula e da finalidade do canto épico. Em detrimento aos feitos e ações do herói da escola clássica, que promulgavam valores e comportamentos, assoma ao primeiro plano a ação medíocre de um herói vil. O herói valoroso e pio, tão caro aos preceptistas clássicos, estaria fadado à completa transformação, tomando cada vez mais espaço o registro de homens comuns, representantes dos mais simples e diversos estratos da sociedade. Ademais, o narrador, como dantes, não vincará seu canto em concepções externas (Rei, igreja, Pátria e Mecenas), mas ganha autonomia na constituição do herói do poema narrativo, que agora não terá em elevado grau o seu registro, tampouco prescreverá normas morais, visto ser antes alvo do desvelamento por parte do narrador, de críticas, ironias e censura. Ao distanciar-se dos valores demonstrados pelo narrador, abandona o encômio em favor da crítica de costume. Em Crime na Calle Relator, o narrador oscilará entre diversos pontos de vista. Ora temos o narrador que se coaduna com os valores e atitudes do herói e ora o narrador empreenderá severa crítica ao herói e à sociedade que ele representa. Dado interessante fica por conta do narrador que, no registro do herói, intenta justificar as ações da protagonista e acaba por evidenciar qualidades como generosidade, bondade e altruísmo. Tal movimento se aproxima das características clássicas a reta razão do herói ou ainda uma alegoria de causa, em que fundamenta 223 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ações violentas ou duvidosas do herói em valores elevados ou motivos nobres, elaborando um razão plausível que justificaria tal conduta, conforme afirma João Adolfo Hansen: No caso, aparelhagem técnica da guerra não se dissocia da moral, como nas guerras da sociedade burguesa, pois a reta razão das coisas factíveis do herói, recta ratio factibilium escolástica, conhecimento das técnicas militares e destreza nas armas, subordina-se ao fim virtuoso da ação guerreira. Na epopeia católica, toda guerra empreendida pelo herói é, obviamente, “guerra justa” contra inimigos da verdadeira fé e da verdadeira política. Reta razão das coisas agíveis e reta das coisas factíveis unem-se no herói como coragem, formulada como grandeza de alma que avulta nos grandes perigos, por isso merecedora do mais alto louvor; como generosidade, definida como perfeito desprendimento de si; como cortesia, especificada na elegância de maneiras, na delicadeza com as damas, na sutileza da dicção, no conhecimento das belas letras e na alegria guerreira partilhada com iguais. (HANSEN, 2008, p. 74). Com base nos motivos que impulsionariam e justificariam as ações do herói da epopéia clássica, conforme salientado por Hansen (2008), no poema narrativo Crime na Calle Relator vemos que, a história narrada em “in ultimas res”, se apresenta como uma tentativa do narrador de justificar as ações da neta em relação à avó para um possível narratário ou leitor, pautando-as em possíveis motivos virtuosos. Embora divirja dos preceitos homéricos, a personagem se aproxima da finalidade do herói clássico, pois este, mesmo que cometa atos de crueldade, tais atitudes se justificam pela motivação, seja em nome dos deuses, da pátria ou em nome da fé cristã. No primeiro poema da obra nota-se uma aproximação ao poema clássico na tentativa de buscar argumentos plausíveis da ação da personagem. O herói clássico promove a guerra em nome da fé ou em nome da pátria, nosso herói embora não virtuoso, demonstra pensamento e caráter que o aproximam às motivações do herói clássico, pois age em nome da generosidade, grandeza da alma e cortesia. Via de regra, veremos o registro de heróis comuns, a quem o narrador materializa apenas na terceira pessoa ou na indeterminação do próprio nome da personagem, como em “Histórias de Pontes”: de madrugada, quando a angústia veste de chuva morna, e é viúva, certo Cavalcante ou Albuquerque voltava a casa, murcha a febre. (...) N., Cavalcante ou quem quer, pavor e nojo, deu no pé: (MELO NETO, 2003, p. 604-605). 224 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A indeterminação do nome da personagem é uma das marcas das histórias de tradição oral e da literatura de cordel presentes na obra, como, por exemplo, o poema narrativo Beco da facada. O narrador se debruçará no registro de personagens simples, sem grandes feitos, e que por vezes se deparam em conflito com as próprias cuitas e num caminho de auto descoberta. Em oposição ao narrador clássico, o narrador de Crime na Calle Relator caminha pelas diversas classificações e focalizações, ora se aproximando dos valores demonstrados no herói, ora deles se distanciando. Um recurso explorado pelo narrador em muitos desses poemas narrativos é o uso de parênteses, em que o narrador opera uma espécie de anacoluto narrativo e segreda ao leitor suas opiniões a respeito da trama e das personagens. A respeito do uso dos parênteses afirma OLIVEIRA (2006): Ainda no mesmo romance [Romanceiro da Inconfidência], essa voz narrativa afasta-se de sua função de descrever e estabelece, pela suspensão de seu relato através do uso de parênteses, uma cumplicidade com o leitor. Coloca-se a meia voz, em penumbra de discurso, atualiza sua fala pela de outros e retoma o tom dos comentários que havia feito anteriormente (OLIVEIRA, 2006, p. 72-73). Em Crime Calle Relator encontramos o mesmo processo compositivo. Os poemas se constituem numa confluência de narradores e discursos, em que ora se vê o narrador centralizador da épica clássica, ora o narrador que delega voz aos discursos alheios sempre num processo por conter-se e dizer-se por infúndios. Ao fazer uso dos parênteses, o narrador estabelece um nível de intimidade com o leitor, em que desvelará suas opiniões e conceitos a respeito do herói da fábula. Portanto, em Crime na Calle Relator, demonstra por meio de parênteses (segreda ao leitor) a intimidade da nonagenária moribunda: Fui a esse bar do Pumarejo quase que esquina de San Luís; comprei de fiado uma garrafa de aguardente (cazalla e anis) (MELO NETO, 2003, p. 589). Se, no primeiro poema narrativo da obra, o uso dos parênteses aparece de maneira velada, em que o narrador divide com o leitor seus conhecimentos sobre um possível alcoolismo da personagem, no poema “As Infundiosas” o narrador marcará um novo nível de interferência na narrativa e cumplicidade com o leitor. Ao registrar as ações do herói, o narrador tecerá comentários, contrariará a afirmação da fala das personagens, desvelará suas reais intenções, desmentirá infúndios, exporá seus pensamentos e delineará seu caráter. 225 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O narrador passeia pelas diversas classificações, como que num movimento de câmera que assume variadas posições e focalizações no intuito de constituir de maneira completa a imagem do herói e revelar sua intimidade, com no caso das viúvas infundiosas de Utrera. O narrador estabelece a cena: “Duas delas eram mãe de artistas/ (a filha sem dons também vinha)” (MELO NETO, 2003, p. 592). Neste outro trecho, satiriza a posição das mães superprotetoras: “Loucura, soltar por Sevilha/as meninas” (iam nos trinta)” (MELO NETO, 2003, p. 592). O narrador segreda ao leitor as maledicências que corriam a respeito das personagens: (Conheci bem as três artistas eram todas minhas amigas. Cantoras geniais todas as três, Quando por cantes de Jerez. Duas eram de ir para o frade Para quem é dura a castidade, E as más-línguas, a que era bela, Faziam correr que era lésbica). (MELO NETO, 2003, p. 593). Nestas inserções entre parênteses, em que o narrador divide suas opiniões e emite considerações a respeito das personagens para o leitor, em nada modificam o desenrolar da diegese, sendo apenas um mecanismo do registro do herói moderno, em que pouco a pouco o narrador desvela os pensamentos, o costume, o caráter e as qualidades da personagem. No tocante às infundiosas, as ponderações em relação às personagens caminharão na perspectiva de desmentir-lhes os feitos de que se gabam e revelar a condição de vida medíocre que levavam as irmãs andaluzas: “Agora só vai de Rolls Royce meu marido” (do eito da foice) (.. ) Então das filhas ameaçadas, não se lembram, nem das ameaças) (MELO NETO, 2003, p. 593). Na ausência de uma vida sem conquistas e aventuras, detêm-se em infúndios, como paliativo para a própria existência insossa. Já nos poemas de cunho histórico ou autobiográfico, as citações entre parênteses aparecem no sentido de estabelecer coordenadas cronológicas, espaciais, históricas e geográficas, que melhor situem o leitor na compreensão dos fatos, como em Aventura sem caça ou Pesca: 226 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O Parnamirim com sua lama, e mais lama que rio ele é, limitava o quintal do fundo (até lá alcançava a maré) (...) Explorar o Parnamirim leito de lama quase pez era a aventura de um menino (bem onde um desastre holandês) (MELO NETO, 2003, p. 596-597). Ou em Histórias de Pontes, em que entre parênteses é inserido um dado autobiográfico de João Cabral: “(cura-o de todo tio Ulisses/não de ponte em Capibaribe)” (MELO NETO, 2003, p. 607). Ademais, nas histórias de assombração instiga a curiosidade e o mistério no leitor: Na Ponte Maurício de Nassau deserta, do deserto cão Das pontes (quem não conhece É melhor que não sofra o teste), (MELO NETO, 2003, p. 605). Ou ainda em Beco da facada: No escuro Beco da facada porque tal nome, se ignorava, mas porque tão pernambucano era sem porquês e sem quandos) (...) (Certa noite, naquele beco, de facas se voando, no medo, Apesar do texto de faca, Um assassinou Outro a bala). (MELO NETO, 2003, p. 618-619). Já na revisão de alguns fatos históricos, demonstra distanciamento com os valores do herói em questão e usa os parênteses para emitir conceitos não presentes nos manuais didáticos, 227 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 mas que põem em discussão os valores do herói do poema narrativo moderno, como no poema narrativo “O Bicho”, ao tecer comentários a respeito do herói do descobrimento das Américas, Cristóvão Colombo: Colón-Colombo, que Claudel a ser santo candidatou, com o São caráter que lhe dão (se teve, dele pouco usou), pois San Colón (no então, dormia), depois de embolsar mil mil vezes. (MELO NETO, 2003, p. 612). Ou, ainda, no revelar de características de personalidade com quem convivera João Cabral de Melo Neto, como o poeta Joaquim Cardozo: (Não soube se escreveu tais peças. talvez, pensando melhor nelas, achasse ocioso pôr palavras em formas vazias tão claras). (...) No Recife, em todas as horas, no Rio, (quem melhor o ignora?) (...) (que ele habitaria sem queixa nunca de camarinha e mesa). (...) é sem pregação, manifesto (e o gesto só o vê quem de perto); (MELO NETO, 2003, p. 621). Outro aspecto detectado no narrador de Crime na Calle Relator é o uso profícuo de um tom irônico em relação ao herói, aos valores e à sociedade vigente: Ao entre-riso dos Imortais e ao descobrir que um Audem morre, invejei-te a mortalidade, 228 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 W.H. Auden. (MELO NETO, 2003, p. 614). No poema narrativo Numa sessão do Grêmio ao desvelar as regras de convívio dos membros da suposta academia, o narrador descreve-nos um ambiente composto de arrogância e superficialidade e arremata suas considerações na velada ironia desta última estrofe. Considerações finais Este trabalho procurou evidenciar as características do poema narrativo moderno em Crime na Calle Relator e elaborar pontos de aproximação e afastamento em relação ao poema narrativo clássico. A análise principiou-se por um levantar de dados a respeito do poema narrativo de origem clássica, bem como seus desdobramentos. Por meio da síntese evolutiva do poema narrativo, indicamos a gênese da épica clássica na Ilíada e Odisséia, de Homero, em que se vê a realização plena do gênero. A manifestação do poema narrativo clássico contava como a representação em verso de ações heróicas de homens e feitos ilustres, sob um rígido código prescritivo, em que se intentava a promulgação dos valores da sociedade de costumes. Autor e obra eram produto de um bem elaborado código coletivo e produto subordinado ao bem comum e a uma figura de poder. Decorrente dessa conjuntura, procedem as partes que compõem a épica de Homero: título, proposição, invocação, dedicatória, narração, epílogo, elocução, valores, verossimilhança, Maravilhoso, herói, narrador. Como exemplo, vemos que à composição do laureio dos feitos de uma nação deveria corresponder a magnificência dos versos. Como era tamanha a tarefa de escrever tão grande obra e insuficiente as habilidades do poeta, a ajuda das Musas era o recurso necessário para a concretização da tarefa. Outra evidência dessa subordinação está presente na figura do escritor, que sem qualquer tipo de autonomia, dedicava a sua obra a uma autoridade e permeava seus versos dos valores, costumes e pensamentos que circunscreviam tal sociedade, o que ia manifesto na figura, nos atos e no discurso do herói. A realização do poema narrativo aos moldes homéricos, preconizada por Aristóteles, encontra seu declínio no advento do capitalismo e nos valores da sociedade burguesa. Na medida em que autor e a obra ganham autonomia, as características como dedicatória, epílogo e invocação sofrem irreversíveis transformações, sem que com isto incorra em mudanças significativas nos demais componentes do poema narrativo. À proporção que o poema narrativo clássico entra em declínio e se sedimenta o romance moderno, ocorrem também profundas transformações no estatuto do herói e do narrador. No lugar do herói valente, corajoso, ilustre e valoroso da épica clássica surge o herói comum, vil, indolente, ridículo, oriundo das mais diversas classes da sociedade burguesa. O narrador, por sua vez, abandona o encômio e não mais se coaduna com os feitos do herói do poema narrativo e, ao afastar-se dos valores por ele 229 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 representados, encontra na crítica, na censura e na sátira a medida de sua intervenção na sociedade de costume. As características do poema narrativo clássico foram abandonadas quase que completamente com o advento da sociedade burguesa, o que se encontra então na obra de 1987, são nuanças daquilo de alguns componentes como invocação, dedicatória, alegoria de causa, entre outros. O poeta pernambucano elenca espaços, temas, personagens, ofícios e, sob perspectiva do narrador contador de causos, revisita as memórias dos países nos quais viveu e amigos que tanto lhe influenciaram e, para isto, elege o poema narrativo como gênero de sua obra. Encontramos então presença de um narrador infundioso, contador de histórias e fatos que, num trabalho memorialístico, o que justifica a escolha do poema narrativo, recupera causos do imaginário e do folclore nordestinos e também anedotas e lendas da região andaluza. Entre o poema narrativo clássico e o poema narrativo moderno há por certo um largo de discrepâncias estruturais e temáticas. No tocante às partes de Qualidade (composição estrutural), vemos a ausência de dedicatória e o que aparece é apenas um perfilamento estético ou uma homenagem ao poeta e pintor Luis Jardim. Sob a plena autonomia de produção, o escritor concebe sua obra como construto a ser elaborado com equilíbrio e racionalidade, e para isto já não invoca as musas em sua ajuda, mas se fia na elaboração de um estilo elocutivo haurido do romanceiro espanhol. A proposição do canto deixa de lado a encomiástica aos feitos ilustres de um povo ou de um herói e põe em voga as ações corriqueiras do homem comum: em “Crime na Calle Relator” avulta a menina de 15 anos, o herói suicida de “Tartaruga de Marselha”, o herói sem caráter da universidade de Olinda e as mulheres fofoqueiras de Utrera. O narrador se aproxima dos valores daqueles com quem compartilha alguma similitude, como W. H. Auden, Miró e Joaquim Cardozo, retrata com ironia os heróis comuns e revisita com severa crítica personalidades como Cristóvão Colombo e o ditador Francisco Franco, e até mesmo a sociedade acadêmica de Olinda e a Academia Brasileira de Letras. Logo, há por certo também uma mudança no estatuto do narrador do poema narrativo moderno, o que consequentemente ocasiona uma alteração nos demais componentes da narrativa. Crime na Calle Relator é constituído num pólo de tensão entre alta literatura e literatura popular, em que são descritos fatos dos mais prosaicos, à similitude da literatura de cordel, e também recupera a imagem de grandes vultos da história e da literatura, bem como fatos oriundos da história Latino-americana. Em paralelo temos a discussão metapoética, a referência à morte, à vida “severina”, ao erotismo, pedras de toque da temática cabralina, sempre sob um processo de criação lacônico e não pletórico, bem conhecido da já tão propalada poética de João Cabral. Neste trabalho, delíamos a evidente discrepância entre o poema narrativo de ordem clássica e o poema narrativo moderno. As transformações em que se acentuaram tais discrepâncias vão desde os aspectos estruturais como dedicação, invocação, epílogo, entre 230 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 outros, e até no estatuto dos componentes estruturais da narrativa, como o narrador, o que também ocasionou a transformação na perspectiva do herói moderno. Na obra de 1987, o autor opta, no bojo geral dos poemas, pelo uso do poema narrativo, que só fizera antes em pinceladas em uma ou outra obra. É sob um prisma memorialístico que o narrador infundioso recupera fatos e pessoas dos lugares por onde viveu. Constituída no rigor e na contenção e versada em causos nordestinos e anedotas andaluzas, a poética se aproxima do tom jocoso do poema herói-cômico, o que evidencia a presença de uma literatura em similitude com a poesia de cordel. Na elaboração formal, na recuperação de fatos e vultos da literatura em geral e da história Latino- americana os poemas narrativos cravam um dos seus eixos na alta literatura. À guisa de conclusão, cabe ressaltar que João Cabral recupera em Crime na Calle Relator as duas paisagens que mais lhe marcaram: O Sertão e Sevilha. Nota-se a incorporação de vários elementos da cultura espanhola, bem como uma mudança no modo de ver a realidade de seu povo e de sua terra. Cabral retoma a discussão sobre a vida e a morte, sobre a metalinguagem, o erotismo, fazendo a ligação entre o sujeito, o objeto e o fazer poético, como no caso de “O Ferrageiro de Carmona”. É nas linhas do poema narrativo que João Cabral de Melo Neto retoma seu percurso crítico literário dividido entre Brasil e Espanha, poesia e prosa, ainda sob o uso da palavra lacônica. THE MODERN NARRATIVE POEM ON CALLE CRIME RELATOR, OF JOÃO CABRAL DE MELO NETO ABSTRACT: The manifestation of the classic narrative poem told in verse as the representation of actions and heroic deeds of famous men, under a strict prescriptive code, which bring the promulgation of the usual values of society. However, over time, and the socio-cultural changes, there was significant change in production, understanding and appreciation of these poems, which may involve important questions about the genre. Based on the studies of Hansen (2008) Sales (2009) and Moses (1974) intend to reveal the brands that stresses on Calle Crime Relator, of João Cabral de Melo Neto, between the tradition of classic and modern genre, and highlight the sedimentation of the modern narrative poem. In proportion as the classic narrative poem declines occur also profound changes in the status of the hero and narrator. In place of the hero brave, courageous, honorable and worthy of the classic epic hero appears common, ugly, lazy, silly, coming from different classes of bourgeois society. The narrator, in turn, leaves the encomium and no longer fits with the deeds of the hero of the narrative poem, and to deviate from the values he represented, is in critical satire on censorship and the correct measurement of its intervention usual in society. KEYWORDS: Modern narrative poem. Crime na Calle Relator. João Cabral de Melo Neto. REFERÊNCIAS: 231 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ARISTÓTELES. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 19– 52. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad: Antonio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1994. BARBOSA, J. A. A lição de João Cabral. 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Canto e corte: a épica e o drama nas vozes de Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto. Goiânia: Ed. UFG, 2006 SALES, J. B. de. O poema narrativo no Brasil: Das origens a Mário de Andrade. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. (Relatório de Pós- doutoramento) 232 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 SALES, J. B. de, s.v. “Poema Narrativo”, E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>, consultado em 16-06-2011. TEIXEIRA, I. Aspectos do Pombalismo na Poesia. In: Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. São Paulo: Edusp, 1999. _____. As epopeias antigas. In: Os Lusíadas- Episódios. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. 233 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ESTUDOS LINGUÍSTICOS 234 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A circulação das ideias educacionais em Mato Grosso: A imprensa periódica como fonte para a História da Educação (1880-1920) Adriana Aparecida PINTO1 RESUMO: O presente trabalho objetiva apresentar reflexões acerca dos discursos sobre a produção da história da educação mato-grossense, elegendo como fontes os dispositivos ligados à imprensa periódica em circulação no Estado, entre os anos de 1880 e 1920. Parte-se da hipótese de que a imprensa de circulação geral é fértil para examinar e entender os debates que foram instaurados no campo da instrução pública bem como os temas de destaque assim, como aqueles que caíram na opacidade. Busca-se, com aporte teórico da História Cultural e da Nova História, dentre eles os trabalhos dos autores: Jacques Le Goff, Robert Darnton, Roger Chartier, Peter Burke entre outros, estabelecer parâmetros para analisar as fontes e, assim, redefinir as possibilidades interpretativas sobre os discursos ‘autorizados’ para a produção do conhecimento historiográfico em educação, e assim dar visibilidade a análise dos dispositivos de imprensa. Assim, encontram-se em exame 35 jornais que circularam em Mato Grosso, perfazendo as cidades de Cuiabá, Corumbá, Poconé, Cáceres, Dourados, Campo Grande. As análises das fontes revelam um Estado que estava antenado com as propostas educacionais efetivadas nos grandes centros políticos do período, embora não tivessem ainda condições de implementá-las do ponto de vista prático. PALAVRAS-CHAVE: Discurso educacional. Imprensa periódica. Instrução pública. O presente trabalho insere-se na vereda de esforços empreendidos em prol da pesquisa histórica em educação apresentando interfaces com a linguagem e o ensino, na tentativa de mapear e compreender os espaços de produção dos discursos sobre instrução pública, detendo-se mais detalhadamente na análise de fontes relacionadas à imprensa periódica mato- grossense, de circulação geral. Para realizar tal exercício, além da seleção, organização e análise de fontes documentais relativas à imprensa, consideradas primárias para este trabalho de pesquisa, considera-se pertinente discutir sobre alguns dos principais balanços bibliográficos da produção existente no Estado, e acima de tudo sobre o Estado, no intuito de dialogar com a produção existente e apontar possibilidades de investigação que emergem em suas entrelinhas, tendo em vista que os lugares em que esta produção se efetiva, marcam um conjunto de idéias postas em circulação, posições políticas e intelectuais, interesses, conflitos e a instauração de um ideário 1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Educação Escolar da UNESP Araraquara/SP. Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Coxim/MS 235 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 pedagógico fruto dos encontros e desencontros desses embates, bem como de um discurso que se tornou hegemônico no campo pedagógico, em virtude, segundo as hipóteses que orientadoras deste texto, dos seus lugares de produção e circulação. Outra relação essencial para o desenvolvimento das analises consiste em perceber e identificar nas linhas e entrelinhas dos textos selecionados para o estudo do tema – a instrução pública em Mato Grosso no final do século XIX e início do XX – as formas e sentidos (CHARTIER, 2003) que as notas da imprensa vão ganhando ao longo de suas publicações, quando cotejadas com outras fontes históricas do mesmo período, em especial àquelas referentes à legislação de ensino. Fato que nos chamou a atenção quando da realização do mapeamento inicial da imprensa periódica em Mato Grosso, a ausência de revistas especializadas em ensino, fonte produtiva e laureada de circulação de ideias em outros estados da federação – a exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais -, não impediu que houvesse, naquele estado, intensos debates sobre o tema da instrução pública, como evidenciam pesquisas já realizadas 2. Contudo o estudo justificase em virtude da ausência de trabalhos que busquem compreender os mecanismos e dispositivos utilizados para a configuração da instrução pública, na tentativa de entender como a imprensa de circulação geral promoveu (ou não) a difusão daquele ideário republicano de implantação da instrução pública, partindo da hipótese de que essa difusão trata-se de um movimento inserido em um contexto mais amplo - a circulação de modelos pedagógicos. Os caminhos da escrita da história da educação mato-grossense evidenciam a proposta em investigação demonstrando a ideia de circulação de pesquisadores e temas no que se refere à constituição do campo: o mapeamento dos pesquisadores e dos temas objetos de suas investigações afiançam essa hipótese. A própria história do Estado, contada com alguns recortes, apresenta, por si mesma, caráter de originalidade e necessidade de esforços em direção ao recrudescimento desses estudos: Mato Grosso3 é um dos poucos estados brasileiros que teve sua constituição geográfica, e consequentemente política, alterada recentemente, implicando em uma reestruturação tanto no que se refere à escrita da história do Estado localizado ao Norte, quanto à escrita da história do novo Estado que ora se fundara, embora suas raízes culturais estejam assentadas sob mesmo solo, referências muito próximas, a exemplo tem-se a própria cultura pantaneira, e em grande 2 A propósito do tema vale conferir os trabalhos de ALVES, Gilberto. Educação e História em Mato Grosso (17191864), (1996); SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Luzes e Sombras: modernidade e educação em Mato Grosso (2000); AMANCIO, Lazara Nanci de Barros. Ensino de leitura e Grupos Escolares (2008); RODRIGUES, Maria Benicio. Educação, Estado e Poder (2009), ALVES, Laci Maria Araújo. Nas trilhas do ensino (1998), dentre outras. 3 Trata-se da divisão do estado, a partir de 1977 em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Para além das questões de ordem política e administrativa, essa divisão marca significativamente os caminhos adotados na condução das questões educacionais nos dois Estados. Considera-se relevante essa informação tendo em vista que, no período em analise no presente artigo existia apenas o Mato Grosso uno, o que de certo modo, limitava às ações no campo educacional ao município de Cuiabá, capital do Estado, e àqueles que eram responsáveis pelo acesso da produção do estado, seja fluvial ou ferroviária. 236 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 parte nas mesmas instituições responsáveis pela preservação e guarda de documentos e patrimônio, em grande parte sediadas em Cuiabá. Até meados dos anos de 1980 a produção referente à história da educação em e sobre Mato Grosso, no século XX e períodos mais recuados, encontrava-se muito associada aos seus autores. Ganharam relevância análises e interpretações autorizadas de jornalistas, advogados que se fizeram historiadores nas lides do ofício, contribuindo para publicizar a história do Estado. Tal produção é, ainda, tributária de algumas publicações consideradas inaugurais, no que concerne ao seu esforço de síntese bem como as informações que mobiliza: A Evolução do ensino em Mato Grosso (1977); Um século de instrução pública (1970): História do ensino primário em Mato Grosso; História do ensino em Mato Grosso (1963) e Monografias Cuiabanas - Questões de ensino (1925). Essa produção intelectualmente autorizada e legitimada pelos lugares que ocupavam seus autores, no momento em que escreveram seus textos, sem deixar de reconhecer seus méritos e contribuições para os estudos históricos, vem sendo objeto de releitura. Atualmente, as pesquisas sobre história da educação em Mato Grosso situam-se, majoritariamente, no interior dos Programas de Pós Graduação em Educação (PPGEd’s) – lugar reconhecido e credenciado de produção do conhecimento cientifico. Ao lado dos PPGEd’s figuram as fundações de apoio a pesquisa. Nesse sentido, os esforços de mapeamento da produção em história da educação realizado, inicialmente por Fedatto (2008) e, posteriormente, por Brazil e Furtado (2009), evidenciam que o campo está em construção e a pleno vapor. Essa vitalidade na produção histórico-educacional deste estado aparenta não dispor de muitos estudos utilizando-se de fontes da imprensa especializada em educação e de circulação geral. O levantamento bibliográfico, ao lado dos mapeamentos citados anteriormente, constatou a preocupação com o estudo das instituições escolares ou aquelas que sediaram por algum tempo, escolas; estudos biográficos de autores por meio dos quais observou-se contribuição para a organização da instrução pública; questões ligadas ao aparato didático metodológico, como o ensino de leitura e escrita, dentre outros temas, relacionados a cultura escolar e mesmo ao cotidiano das situações de ensino 4. Do que se tem publicado, o trabalho de Yasmin Jamil Nadaf (1993; 2002) Sob o signo de uma flor, Rodapé das miscelâneas ao lado dos trabalhos recentes de João Carlos de Souza (2008) Sertão Cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918) e João Edson de Arruda Fanaya (2010) Elites e Práticas Políticas em Mato Grosso na Primeira República (2010) são alguns dos estudos que mobilizam diretamente a imprensa de circulação geral como fonte para estudos, no entanto não ligados à educação. Em levantamento realizado por ocasião da tese de doutoramento, à exceção dos periódicos que circulam nos Estado de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o alcance da 4 A perspectiva de cultura escolar aqui implícita segue as orientações que podem ser observadas em VALDEMARIN, Vera Teresa. SOUZA, Rosa Fátima de. Sobre trabalhos que mobilizam a imprensa periódica como fontes e objetos para a história da educação vale conferir: SCHELBAUER Analete Regina; ARAUJO, José Carlos Souza (orgs.). História da Educação pela imprensa. 2007. 237 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 produção dos pesquisadores e divulgação dos trabalhos deste estado em dispositivos daquela natureza parece bastante tímido, não refletindo a produção mapeada, conforme registrado nos trabalhos de Siqueira (2005) e Silva e Siqueira (2009). Entender estas ausências pode ser objeto para estudos futuros, a exemplo das análises de Cordeiro (2008), quando do mapeamento da produção no campo da história da educação em periódicos educacionais de grande expressão. A constituição do ensino superior no Estado de Mato Grosso é outro dado significativo para analisar os lugares da produção e circulação de saberes em História da Educação, tendo em vista que volume considerável das pesquisas sobre a área, até os anos 1990, era realizado fora do Estado: Gilberto Alves5 já alertava para o fato em 2001. Revela-se, sobretudo, a recente e intensa movimentação do campo, na tentativa de imporse quanti e qualitativamente como espaço de produção e de debates pertinentes no campo da educação, em especial no campo dos estudos comparados: compreender a relação de Mato Grosso com o Estado de São Paulo, mediada pelos dispositivos de imprensa periódica, constituise vertente significativa para entender que a produção e o desenvolvimento mato-grossense, descritos como isolados, na perspectiva de Rubens de Mendonça, frente às grandes distancias relativas aos pólos de produção econômica, político e cultural do país em determinados momentos. A realização de estudos que tomam a imprensa como fonte de circulação de idéias nos permite questionar a hipótese de tal isolamento6. Frente ao exposto, é compreensível que se tenha forjado um modelo interpretativo tributário da máxima de que tudo que era posto em prática no Estado de São Paulo era necessariamente adjetivado como melhor, moderno, digno de ser seguido como exemplo e imitado como garantia de sucesso: estava posto o discurso de sucesso paulista e de modelo a ser imitado. A informação produzida e posta em circulação pela via dos jornais possibilita, nesse sentido, a propósito das fontes e das estratégias de conformação do campo educacional em diferentes estados, problematizar as construções historiográficas que atribuem a São Paulo a 5 O texto consta do livro Educação no Brasil, e representa o marco inaugural das iniciativas em prol da consolidação do campo de estudos em História da Educação, resultando no I Congresso Brasileiro de História da educação realizados no Rio de Janeiro em novembro de 2000. Na apresentação do livro, no qual constam conferencias e mesas redondas proferidas no Congresso, Marta Chagas Carvalho faz, dentre outras a seguinte apresentação sobre o texto de Gilberto Alves “supondo o par regional/nacional, o autor propõe-se a estudar o modo como temáticas regionais realizam, nas formas particulares, o movimento do universal e como para cada objeto se da a mediação do nacional(...) autor refere os assim chamados “historiadores diletantes” autores que escreveram histórias locais reproduzindo quase que literalmente as fontes consultadas. (...) A seguir de maneira minuciosa e pertinente, o autor descreve a produção historiografica das universidades publicas mato-grossenses, voltando a referir-se as fontes e à necessidade de rever os modos de constituição negativa do passado observáveis em alguns momentos históricos(...)” (CARVALHO, 2001, p. 7) 6 A tese do isolamento mato-grossense, ao menos no que se refere à circulação de idéias, deve ser reavaliada, conforme apontam as análises apresentadas em PINTO, Adriana Aparecida. Diálogos no cerrado: contribuições da imprensa periódica na organização do campo educacional em Mato Grosso no século XIX: encontros e confrontos. São Luiz do Maranhão: MA (2010) 238 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 influência deliberada nas ações em prol da educação constituídas, no estudo em questão, no estado de Mato Grosso. À luz de um conjunto de teorias interpretativas no campo da história cultural e das produções derivadas das categorias de análise propostas por este arcabouço teórico coloca-se em pauta a noção de hegemonia no campo das produções educacionais em relação a outros estados, contribuindo para uma leitura menos partidária, buscando identificar e dar a conhecer iniciativas autônomas em prol da constituição do campo em fase de organização, como é o caso da instrução pública. Por meio da imprensa periódica torna-se possível identificar as premissas do chamado discurso fundador, pois busca-se nas páginas dos impressos “[...] a notoriedade e a possibilidade de criar um lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da história para reorganizar os gestos da interpretação.” (ORLANDI, 1993, p. 16) no qual se assentam as bases do discurso das práticas inovadoras da instrução pública. As revistas de ensino, de certa maneira, contribuíram em grande medida para homologar esse papel7. Por outro lado, uma série de trabalhos asseveram o papel da imprensa periódica com importante aliada na produção do conhecimento histórico em educação embora, em grande parte dos trabalhos, a imprensa venha sendo utilizada como fonte secundária, seja no cotejamento das informações de cunho político, ou ainda no aspecto da validação de discursos proferidos por personalidades, intelectuais ou pessoas comuns. É igualmente notório o seu papel, revelado através das linhas e entrelinhas dos textos que circulam nas páginas de jornais e revistas, tenham eles características ligadas direta ou indireta com a pauta da instrução pública: é certo que nas páginas dos semanários e jornais diários que circulavam no período em estudo, a instrução pública figura como pauta frequente de notícias, cuja frequência e intensidade são encontrados conforme os interesses dos grupos que os produziam8. A imprensa configura-se, na perspectiva metodológica que orienta as análises em curso, como verdadeira ‘arena’ para a luta de classes (BAKTHIN, 1993): luta pela consolidação de um campo de atuação profissional (CATANI, 1989, 1994); lutas pela consolidação do espaço 7 Sobre estudos que utilizam revistas de ensino como fontes conferir: BICCAS, Maurilane de Souza. O impresso como estratégia de formação (2008); VALDEMARIN, Vera Teresa. PINTO, Adriana Aparecida. Das formas de ensinar e conhecer o mundo: lições de coisas e método de ensino intuitivo na imprensa periódica educacional do século XIX. Revista Educação em questão. (2010) 8 A exemplo destes trabalhos citam-se: CAMPOS, Raquel Discini. Mulheres e crianças na imprensa paulista (19201940): representação e história. (2007); GONDRA, José Gonçalves. O veículo de circulação da Pedagogia Oficial da República: a Revista Pedagógica (1996). CAMARGO, Marilena Jorge Guedes de; VIDAL, Diana Gonçalves.. A imprensa periódica especializada e a pesquisa histórica; estudos sobre o Boletim de educação Pública e a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1992). As reflexões que auxiliam a elaboração desta discussão encontram-se, em CATANI, Denice. Perspectivas de investigação e fontes para a história da Educação Brasileira; a imprensa periódica educacional. CATANI, Denice Bárbara. Ensaios sobre a produção dos saberes pedagógicos.Tese Livre Docência. FEUSP, 1994 (p. 58-75). 239 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 docente enquanto lócus de atuação e formação de ideias; luta pela hegemonia na produção de discursos autorizados e, por consequência legitimados. Frente ao papel atribuído por meio dos estudos que se utilizam de tais fontes, seja especializada em ensino ou de circulação geral, a imprensa configura-se, com base nessa perspectiva, lugar da produção de conhecimento sobre a história da educação brasileira. A imprensa mato-grossense em foco Por se tratar de estudos que investigam a organização do campo educacional a partir da leitura de impressos postos em circulação em diferentes estados, embora produzidos em tempos sincrônicos, não é possível prescindir da abordagem dos estudos comparados como baliza para esquadrinhar o campo de discussão. Outras localidades em Mato Grosso, ainda que não ao mesmo tempo, também veiculavam a adoção do ideário pedagógico educacional republicano nas páginas de seus periódicos. Os estudos realizados com jornais que perfazem o período entre os anos de 1880 a 1920, demonstram, para além da intensa produção editorial mato-grossense, com sede na capital Cuiabá (1890-1920), volume significativo das preocupações com a instrução pública, tal como pode ser observado nas páginas dos jornais de Corumbá (1880-1890), Cáceres (1910-1914), Poconé (1912-1914), Dourados (1923-1925), Ponta Porã (1920-1925), Campo Grande (19201925). Nas páginas do jornal O Corumbaense, era possível acompanhar os debates que davam conta de apontar as fragilidades do Império em Mato Grosso, anunciando a necessidade, imperativa conforme os textos, de mudança pela via da instrução pública, afinal era necessário a alguma instancia “...advogar os legítimos interesses do paiz, advogando o bem político, promover o progresso moral e material da nação, promovendo o amor pelas lettras e pela instrucção” (CO, nº58, 1881, pg 1). A estratégia de comparação, neste estudo, efetiva-se a partir da hipótese da circularidade das idéias no âmbito regional, evidenciando o entendimento do que Aisenstein e Rocha (2009) qualificam como similitudes, peculiaridades e hibridações: Essas noções permitem entender “[...] a história de circulações, intercâmbios e experiências comuns, mas ao mesmo tempo, faz emergir as singularidades e as diferenças.” (2009, p. 195), tendo em vista de que um dos aspectos que possibilita a intersecção dos interesses, por exemplo, entre paulistas e mato-grossenses no período traduz-se pelo signo da mudança e modernidade, comum ao período de transição do regime monárquico para o republicano, embora José Murilo de Carvalho (1999) ateste que a tão proclamada modernidade republicana, não foi alcançada por todos os estados brasileiros. As autoras afirmam que o processo de difusão dos modelos ocidentais cria mesclas, mestiçagens, sendo fundamental, para a sua compreensão, pensar as diferentes partes do mundo como zonas interconectadas, onde se multiplicam as relações entre poderes, grupos e culturas. (AISENSTEIN e ROCHA, 2009, p. 199) 240 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Partimos do pressuposto de que a imprensa seja ela especializada em educação ou de circulação geral não se encontra em um campo alheio a políticas de (re) organização da instrução pública, pretensamente modelar. Ao contrário, atua como força corroboradora que conta com espaço privilegiado para algumas discussões, ao mesmo tempo insere-se no campo das disputas por uma hegemonia no plano das idéias, conferindo àqueles que publicizam seu pensamento nas páginas dos impressos, supostamente, a legitimidade do discurso educacional dominante. Diferentemente da imprensa especializada em ensino, os periódicos de circulação geral, embora não dediquem suas páginas especificamente às questões educacionais, veiculam informações pontuais acerca da organização da instrução pública, as quais permitem delinear as discussões que estavam sendo realizadas em determinados períodos, quais interesses orientavam a condução dos rumos da instrução pública. As fontes ligadas à imprensa de circulação geral anunciam os lugares da produção do conhecimento educacional, a discussão das histórias conectadas, circulação de modelos pedagógicos e intelectuais bem como da noção de hibridação cultural. Maurilane Biccas (2008) evidencia essas possibilidades dessas análises em O impresso como estratégia de formação, quando consegue realizar a partir da analise material das fontes que examina. O estudo de periódicos permite identificar os modos como se processam essa circulação, visto que, por meio dos textos expedientes, editoriais, artigos, aliada à recuperação da trajetória e formação de seus editores, autores de textos e das próprias menções explicitas, ou não, no teor dos artigos, é possível perceber e mapear as bases discursos e buscar os fundamentos que os sustentam9. O exercício de construção metodológica do trabalho, assim como o próprio trabalho encontram-se em curso, pois as conexões são possíveis a medida em que se estabelecem os diálogos com e entre as fontes, mediados pelo olhar inquisitivo do pesquisador. Em Robert Darnton (1986, 1987), encontramos certo conforto para tecer tais afirmações sem, no entanto, incorrer em um empirismo desarticulado, diálogos impertinentes ou excesso de pragmatismo. O desenvolvimento regional de Mato Grosso congrega especificidades próprias das características econômicas, políticas e culturais. No entanto, os interesses em prol do desenvolvimento da instrução pública são mediados pelos interesses estatais, visando ao alcance da prosperidade e progresso do Estado. A inexistência de publicações periódicas com características seriadas no campo da instrução, bem como a mudança no processo de seleção e análise preliminar das fontes - os jornais, cujo esforço de recuperação, sistematização e síntese das matérias é significativamente distinto daqueles empreendidos com relação a revistas de ensino -, torna possível afiançar que os destinos e lugares da pesquisa histórica podem ser, essencialmente, definidos pelas fontes documentais. 9 SCHRIEWER, Jürgen. Sistema Mundial e Inter-relacionamento de redes: a internacionalização da educação e o papel da pesquisa comparativa. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 76. n 182/183, jan/ago, 1995. 241 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Consideramos necessário extrapolar as fronteiras cuiabanas do discurso produzido sobre a história da educação mato-grossense, sem romper com os laços que a tornaram pioneira na implantação das políticas e consecução das iniciativas no campo da instrução. Todavia, amparados na pesquisa nos acervos e no exercício cotidiano do paradigma indiciário, sugerido por Carlo Ginsburg, na obra O queijo e os vermes (1998), fomos interrogando a imprensa na tentativa de entender se outras iniciativas congêneres àquelas encontradas nos registros sobre Cuiabá, não teriam sido empreendidas em outras cidades do Estado, como evidenciado anteriormente, ainda que com dificuldades de ordens diversas. Resultou deste trabalho, não apenas a confirmação da hipótese de que em outras localidades o discurso pedagógico se efetivava também pela via da imprensa de circulação geral, como também elementos que deram margem e sustentação à contestação de alguns aspectos postulados pela produção dos estudos memorialistas em Mato Grosso, bem como indicativos de que há ainda muito por se escrever em se tratando da história da educação deste Estado. Sobre essa matéria, a justificativa segue o curso e o tempo das fontes selecionadas para a investigação, ou seja, foram os encontros e desencontros com os dispositivos de imprensa, no caso deste trabalho da imprensa periódica de circulação geral – que orientaram tanto a delimitação temporal para o estudo, quanto as matrizes teóricas que de modo mais adequado, possibilitaram interrogar melhor as fontes, na intenção de extrair delas e sobre elas elementos para aquilo que nomeamos como “aspectos da organização da instrução pública matogrossense, à luz da imprensa periódica”. O exercício prático desse conjunto de ideias resultou na seleção de 35 títulos ligados à imprensa que estiveram em circulação em Mato Grosso, entre os anos de 1880 a 1920 nas províncias/cidades já mencionadas. Considerações finais Na intenção de compor um caleidoscópio das discussões levadas a termos nas páginas da imprensa mato-grossense, o critério das mudanças inaugurais do sistema político demarca a seleção das fontes, tendo o Estado diante de si, a tarefa imposta a todos os outros da federação de, ao menos no campo das formulações discursivas, retirar o Brasil do atraso em que se encontrava, frente a outros países, ocasionado em grande parte devido ao modelo imperialista de administração. Se a mudança política já estava em curso e a República congregava os interesses da modernidade e dos avanços em vários campos de atuação, a educação seria “o braço forte do impávido colosso” a guiar os estados rumo ao desenvolvimento almejado. Forjam-se nesse movimento, modelos de atuação, conduta e práticas representativas de sucesso, incorporadas ora em personagens representativos na cena pedagógica, ora configurada na força motriz propulsionada por alguns estados da federação. Novamente o encontro das fontes oficiais auxilia no crivo da imprensa, pautando os dados referentes ao desenvolvimento quantitativo de Mato 242 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Grosso em contraposição aos estados considerados pela própria tradição historiográfica brasileira como representativos da gênese modelar, em matéria de ensino. Por fim, na tentativa de entender o movimento educacional que se instaurou no país e seus modos de apropriação em Mato Grosso, o foco recai sobre a imprensa jornalística em circulação entre os anos de 1910-1920, entendendo que, a partir desse momento são gestadas novas referências para a produção na história da educação brasileira, que evidentemente não se mostram apenas no marco periodizador situado nos anos 1920, como bem demonstram as análises empreendidas, dentre outros autores por Nagle (2001) e Valdemarin (2004). Portanto, as estratégias de esquadrinhamento das fontes demandaram formas complementares de apropriação da imprensa, demonstram que as discussões postas em circulação nos momentos que perfazem as análises revelam um Estado que estava antenado com as propostas educacionais efetivadas nos grandes centros políticos do período, embora não tivessem ainda condições de implementá-las do ponto de vista prático. Temas como necessidade da criação de uma Escola Normal, organização dos grupos escolares, reivindicações por melhores condições de trabalho e profissionalização dos professores e as iniciativas empreendidas em prol da instrução em outros Estados da federação, colocam em ponto de questionamento a tese do isolamento mato-grossense. THE MOVEMENT OF THE EDUCATIONAL IDEAS IN MATO GROSSO: THE PERIODICAL PRESS AS A SOURCE FOR THE HISTORY OF EDUCATION (18801920) ABSTRACT: This paper aims to present some studies on the production of discourses on the history of education in Mato Grosso, electing as source of study devices connected to the periodical press in circulation in the state, between the years 1880 and 1920. We started this search with the assumption that the general circulation press is fruitful to examine and understand the discussions that were initiated in the field of the public education, as well as, topics that called the population attention which were in opacity as time passes by. It is focused with the theoretical contribution of Cultural History and New History, specially the works of: Jacques Le Goff, Robert Darnton, Roger Chartier, Peter Burke and others, to establish parameters for analyzing the sources, in this way, redefine the possibilities speeches on the interpretive 'allowed' to historiographical knowledge production in education, and thus, make visible the analysis of media devices. Concerning this, it’s being examined 35 newspapers that circulated in Mato Grosso, comprising the cities of Cuiabá, Corumbá, Poconé, Cáceres, Dourados, Campo Grande. The analysis of the sources shows a state that was focused on the educational proposals in relation to the big cities in the country in that period, although the state of Mato Grosso was not in a position to implement these actions effectively. KEYWORDS: Discurses of the education. Periodical press. Public education 243 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 REFERÊNCIAS: AISENSTEIN, A. & ROCHA, H. A escolarização dos corpos entre fundações e reformas: Brasil e Argentina (1880-1940). In: VIDAL, D. & ASCOLANI, A. (Org). Reformas educativas no Brasil e na Argentina: ensaios de história comparada da educação (1820-2000). São Paulo: Ed. Cortez, 2009, p. 161-204. ALVES, G. L. Nacional e Regional na história educacional brasileira: uma análise sob a ótica dos estados mato-grossenses. Educação no Brasil: história e historiografia. 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Neste trabalho, temos o objetivo estudar os Africanismos no estado de Mato Grosso do Sul. Entendemos que esta pesquisa é um estudo de caso e configura-se como um estudo etnolinguístico. Os dados analisados neste trabalho foram extraídos do banco de dados informatizado do Projeto ATEMS. Com vistas ao objetivo proposto, realizamos um estudo da relação existente entre língua-sociedade-cultura por intermédio da análise dos topônimos de origem africana. Levando em conta aspectos da língua, da história e dos povos que povoaram e colonizaram o estado de Mato Grosso do Sul, o presente trabalho busca contribuir para o conhecimento e desenvolvimento da Toponímia sulmato-grossense. O motivo que levou a realização desta pesquisa foi a de querer demonstrar a relação existente entre língua-sociedade-cultura a partir da análise dos africanismos. Com o estudo desses topônimos, particularidades linguísticas, históricas, geográficas e sociais poderão ser recuperadas e socializadas com a comunidade sul-matogrossense. PALAVRAS-CHAVE: Toponímia. Africanismos. Topônimos. Introdução Com vistas a desvendar muito dos enigmas linguísticos da nomeação, há uma subárea do estudo da linguagem que se denomina Onomástica - cujo objeto de estudo os nomes próprios. A Toponímia é o ‘ramo’ da Onomástica que se ocupa de pesquisar os nomes próprios de lugares. Para DICK (1998, p. 8), essa disciplina tem como objeto o “estudo dos designativos geográficos em sua bipartição física (rios, córregos, morros) e humanas (aldeias, povoados, cidades, fazendas)”. “Nomear”, “exprimir”, “indicar”, “pronunciar” são atitudes lingüísticas que integram o plano semiológico (funções do signo) das partes do discurso e quem se diz que não é preciso senão substantivos para nomear todos os objetos de que podemos falar, e só é 1 2 PIBIC/UEMS/UUC/Cassilândia/Mato Grosso do Sul, 79540-000, [email protected] UEMS/UUC/Cassilândia/Mato Grosso do Sul, 79540-000, [email protected] 249 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 preciso adjetivos para exprimir todas asa suas qualidades”. (COLOMBAT, 1998, IN: AUROX, 1992, apud DICK, 2006, p. 47) Um dos principais objetivos das pesquisas em Toponímia é o de preencher as lacunas que encontramos na elucidação do nome de determinado lugar. Segundo Dick (1992, p. 35), “o aspecto da motivação toponímica transparece em dois momentos: primeiro na intenção do denominador e a seguir no significado que a denominação revela”. Não há delimitação para qual seja o objeto de estudo da Toponímia, sendo que tanto a Onomástica quanto a própria Toponímia acham-se em uma relação de inclusão, pois um nome já cristalizado poderá dar origem a outros topônimos. “Toponímia e Onomástica acham-se assim, em uma verdadeira ‘relação de inclusão’, em que aquilo será sempre desta, uma parte de dimensões variáveis” (DICK, 1992, p.36). O topônimo é um signo linguístico enriquecido porque é revestido do caráter motivador, ou seja, no ato da designação sempre há um motivo que levou o nomeador a registrar aquele nome para aquele lugar. Desse modo, quando nos deparamos com um topônimo cuja motivação 3 não se saiba mais, é possível recuperá-la por meio do estudo toponímico. Assim: Escritura e oralidade se posicionam como dois vetores de convergência simbólica, mas capazes de atualizar as ‘virtualidades onomásticas extra-sistema’, em construções corporificadas pelos termos, linguisticamente articulados em sua enunciação (DICK, 1992, p. 100). Quando um lugar é nomeado, há a transposição da cultura do nomeador a esse nome e, dessa forma, também uma ideologia é implantada ao local. Nesse particular, há um domínio, mesmo que implícito, e uma perpetuação dos costumes vividos pelo nomeador. A partir do processo designativo, o enunciador/nomeador revela várias características e impressões que teve sobre um acidente geográfico. A Toponímia, além auxiliar a preservar o falar de uma região, também faz com que se perpetuem ocorrências históricas e sociais da comunidade linguística do espaço designado. Nessa perspectiva, fica clara a interrelação entre língua-sociedade-cultura tão bem exposta por meio de pesquisas toponímicas [dentre tantos outros ramos que revelam essa interrelação]. A presença de um determinado topônimo em uma localidade traduz uma característica local, algo que pode levar a à reconstituição de falares e também à preservação de uma língua que, por ventura, possa quase estar extinta, mas que continuou viva por estar registrada pela Toponímia. Cada topônimo tem como um de seus principais caracteres o de conservar aspectos da história linguística de uma região. O homem nomeia os lugares e, por trás dessa sua capacidade, insere dados de uma cultura da sociedade que permearam os mecanismos envolvidos nesse processo. Nada é aleatório em 3 Motivação entendida como o que levou o designador a escolher um nome específico, dentre tantos outros, no ato de batismo do espaço a ser designado. 250 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 termos de designação porque sempre há um condicionante social que motivou a escolha do nome próprio. Nesse sentido, podemos dizer que sempre há um porquê por trás do processo nominativo e, assim, também há um objetivo traçado nessa escolha. As ocorrências de uma determinada língua na nomeação dos lugares de uma região estarão sempre relacionadas a algum fator ambiental, seja ele físico ou social. Em lugares com ocorrência de nomenclaturas de línguas indígenas, podemos saber que o motivo dessa existência é o fato de se tratar de uma localidade em que existiam, ou em que ainda existam, integrantes dessa sociedade em épocas passadas ou então que pessoas dessa etnia tenham passado pelo local. O topônimo mantém em uso traços de uma língua que pode não mais ser falada. O ato enunciativo de determinado espaço resulta da junção de diversos caracteres culturais, linguísticos, econômicos e a escolha do designativo é extraída do que mais influenciou e se adequou aos conceitos que o designador pretendeu transmitir. O estudo dos topônimos permite verificar a organização da nomenclatura toponímica de uma região, pois as condições ambientais e sociais refletem-se na língua, principalmente no léxico e, consequentemente, na Toponímia. Desse modo, “torna-se possível recuperar nuanças da geografia, da história, da política dos estados de ânimo do homem de determinadas épocas, desvenda-se a sua história e a de seu povo” (DARGEL, 2003, p. 58). Neste trabalho, apresentamos um recorte de dados do Projeto ATEMS 4 que foi elaborado com o intuito de recuperar fatos históricos, linguísticos e etnológicos do Estado por meio do estudo dos topônimos sul-mato-grossenses. O projeto ATEMS5 teve como objetivo geral a elaboração do Atlas Toponímico do MS que, além de contribuir para o conhecimento da Toponímia sul-mato-grossense. Nessa perspectiva, também demonstra peculiaridades linguísticas, históricas, geográficas, culturais, sociais e ambientais do estado de Mato Grosso do Sul, e representa um avanço significativo nas pesquisas linguísticas voltadas para a realidade regional do Estado. Além de divulgar a toponímia regional, o atlas produzido proporcionará estudos contrastivos com dados de outros atlas, o que poderá definir a matriz toponímica característica do MS. Os dados do ATEMS foram coletados de mapas oficiais do IBGE, relativos aos 78 municípios de Estado (escalas 1:250.000/1:100.000) e analisados, fundamentalmente, segundo o modelo de Dick (1990, 1992; 2004). O projeto ATEMS é coordenado pela Professora Doutora Aparecida Negri Isquerdo e se configura como uma variante do ATB (Atlas Toponímico do Brasil), coordenado pela Professora Doutora Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick. Neste artigo, coletamos os africanismos na toponímia do estado de Mato Grosso do Sul no banco de dados informatizado e desenvolvido para o projeto ATEMS. Africanismos na toponímia de Mato Grosso do Sul 4 5 Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul. Fonte: Projeto ATEMS ainda a publicar. 251 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Estudar africanismos na língua portuguesa do Brasil equivale a dizer que o pesquisador se aventurou na própria formação do povo brasileiro. O nosso objetivo aqui é discorrer sobre os topônimos de origem africana presentes no ATEMS, mas, antes de nos atermos ao nosso intuito de trabalho, apresentamos alguns aspectos sobre os africanismos no português do Brasil. Como é fato conhecido no Brasil, a vinda de etnias africanas para o Brasil teve como meta a atividade braçal. Essas etnias vieram para o Brasil para trabalharem como escravos, uma vez que os povos indígenas aqui presentes não se adaptaram ao trabalho escravo. A presença africana foi muito importante para termos o Brasil como é hoje. Se não houvesse tido a vinda dessas etnias, provavelmente, o país não teria o desenvolvimento econômico que tem. Claro está que não podemos fazer conjeturas sobre o que seria ou não sem a presença africana no Brasil, uma vez que ela existiu e faz parte da formação do povo brasileiro que de início foi formada por negro, branco e índio. Nessa perspectiva, Puzzinato e Aguilera (2007, p. 3) assinalam que: Criou-se, então, uma comunidade de negros, brancos e índios, o que acarretou numerosos fenômenos de aculturação (fatos que decorrem do contato dos homens que possuem culturas e línguas diferentes), pela qual cada indivíduo acaba absorvendo elementos culturais de seu meio, e daí ocorre, tipicamente, uma aprendizagem incidental, que pode envolver observação e imitação. A interferência lingüística é um dos aspectos da aculturação. O índio, elemento oriundo da terra onde se encontra, foi o primeiro a aprender o português. Mas foi quase simultânea a aprendizagem por eles e pelos negros, uma vez que este foi logo introduzido no contexto em que o índio se encontrava (PUZZINATO e AGUILERA, 2007, p. 3). Dessa forma, a influência africana na formação do povo brasileiro é inconteste. Contudo, não se pode dizer o mesmo sobre essa influência na língua portuguesa do Brasil visto que a presença africana é bem menor do que se pensa. Puzzinato e Aguilera (2007, p. 4) citam Silva Neto e postulam que a: junção de raças e meios sociais contribuiu para diversificar e diferenciar a língua portuguesa do Brasil daquela trazida pelo colonizador português. Outro fator que contribuiu para a nossa diferenciação dialetal foi a substituição do trabalho escravo pelo assalariado, afastando, então, o branco da convivência com a maioria da população negra (PUZZINATO e AGUILERA, 2007, p. 4). A diversidade encontrada no léxico do português do Brasil começou a ser estudada no século XIX. Inicialmente, esses estudos centravam-se nas diferenças existentes entre o português falado no Brasil e o português falado em Portugal. Dessa forma, uma nova realidade linguística foi encontrada por meio do acréscimo à variante brasileira da língua portuguesa de termos de origem indígena e africana. Segundo Petter (2002, p. 11), alguns estudiosos classificam essa intervenção de outras línguas como brasileirismos, uma marca própria do país. Antes mesmo da 252 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 chegada dos portugueses ao Brasil, a língua portuguesa tinha tido contato com as línguas africanas porque os portugueses já andavam pelo continente africano. Há alguns indícios de que os primeiros termos de origem africana eram em referência a nomes de animais e de vegetais. No período de catequização dos índios e negros no Brasil, uma gramática da língua quimbundo foi criada para que fosse facilitado o ensino e, consequentemente, também o domínio dos jesuítas sobre povos de etnias africanas residentes no Brasil. No século XVIII, em Ouro Preto, foi redigido um manuscrito que retrata uma situação linguística particular: Resultante da concentração no quadrilátero mineiro de ‘Vila Rica, Vila do CarmoSabará-Rio dos Montes, de 100000 escravos regularmente renovados durante um período de 40-50 anos – originários da Costa do Benim. Essa situação deu origem a um falar veicular tipologicamente próximo das línguas africanas (PETTER, 2002, p. 11). Esse manuscrito é um dos documentos mais preciosos existentes sobre a origem da língua africana no Brasil. De acordo com Petter (2002, p. 9), no século XIX, duas obras revelam a existência de um plurilinguismo africano no Brasil. A primeira obra, divulgada por Bonvini, intitula-se Atlas Enographique Du globe, de Adrien Balbi, que apresenta um quadro com 26 palavras de origem africana recolhidas por um pesquisador junto a escravos brasileiros. A segunda obra, de Nina Rodrigues, é do final do século XIX e apresenta um quadro com 120 palavras de origem africana. As ocorrências de Africanismos na língua portuguesa são tidas como uma subcategoria dos brasileirismos, sendo em menor número que as de línguas indígenas. O estudo de Africanismos no Brasil busca analisar a presença africana como um todo na variedade do português brasileiro e, desse modo, também reproduzir a cultura dessa etnia inserida em território brasileiro. “Os termos de origem africana falados no português do Brasil não são mais percebidos como africanismos, pois, na sua maioria estão totalmente integrados ao português brasileiro” (PETTER, 2002, p. 20). Ao estudarmos os topônimos de origem africana em Mato Grosso do Sul, buscamos a relação existente entre o homem e o meio em que esse homem encontrou-se inserido e, assim, estabelecemos a relação dos topônimos com outros domínios científicos do saber, como a Geografia, a História, a Antropologia. Há inúmeras dificuldades em manter a identidade africana no Brasil e, nesse particular, Dick (1992, p. 139) afirma que “estudar a toponímia africana, no Brasil, pressupõe, de fato, o exercício de algumas etapas metodológicas, como a análise dos principais componentes étnicos imigrados, a classificação das línguas faladas, o exame linguístico dos designativos onomásticos, a sua natureza semântica, as áreas de ocorrência”. De acordo com Dick (2006, p. 94), a toponímia do Brasil constitui-se também por substrato, abstrato de etnias e falares e com superestrastos de natureza civilizatória. Nesse sentido, ressaltamos que: 253 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A interpretação dos motivos do nome só ocorre depois da identificação do topônimo, ou seja, da origem do designativo, se indígena ou africana, pela própria constituição do português do Brasil e da inclusão do nome na família ou tronco lingüístico correspondente e da segmentação dos elementos gramaticais formadores, principalmente em se tratando de línguas incorporantes (DICK, 2006, p. 106-107). Diferentes grupos sociais que permaneceram no Brasil, no período da colonização, impuseram suas línguas e suas culturas com o intuito de impor seus costumes. Assim, a língua desses grupos foi transmitida aos demais grupos sociais e permaneceram em maior ou em menor recorrência na toponímia brasileira. A menor expressividade da língua africana entre as demais línguas de destaque no território brasileiro deve-se ao fato de todo o estigma que permeou a vinda e a presença de etnias africanas no Brasil. A manutenção das línguas africanas, por meio de nomeação de lugares ou até mesmo por intermédio de imposição cultural, fez com que aspectos culturais, históricos, sociais e linguísticos dessas etnias permanecessem vivos na língua portuguesa do Brasil. De acordo com Dargel (2003, p. 153), não podemos deixar de destacar a influência africana na toponímia do Brasil e, particularmente, no estado de Mato Grosso do Sul. Tanto no Brasil, quanto no estado sul-mato-grossense, “o número reduzido de topônimos de origem africana justifica-se pelo africano ter vindo para o Brasil para o trabalho escravo” e, assim, teve sua cultura desvalorizada. Além disso, “apesar de ser importante elemento formador de uma grande massa de mulatos e de pardos, linguística e historicamente o africano foi alvo de irrestritos preconceitos” (Dargel, 2003, p. 153). Conforme Gressler e Vasconcelos (2005, p. 113), a cultura do Estado é formada por brancos, índios, e negros. Essas etnias são responsáveis pela atual cultura, tão miscigenada quanto o povo. Com os negros vieram o ‘aculturamento’ de músicas como capoeira, maculelê, samba e o batuque, assim o Estado passou a ter uma cultura múltipla. A contribuição do negro não ficou apenas nisso, uma vez que teve significativo contributo também na formação do vocabulário da região o que levou à formação de topônimos de origem africana - de fato o nosso objeto de estudo nesta pesquisa. De acordo com Moura (1992, p. 7), “a história do negro no Brasil confunde-se e identifica-se com a formação da própria nação brasileira e acompanha a sua evolução histórica e social”. Contudo, o estudo toponímico é, sobretudo, linguístico, mesmo que desvende, por intermédio da pesquisa do topônimo, outras áreas do saber - sejam elas geográficas, históricas ou religiosas. É de conhecimento no Brasil que os povos africanos utilizaram sua cultura como forma de instrumento de resistência. Nessa perspectiva, ao nomearem determinado local, pessoas dessas etnias deixavam ali sua marca, sua dominação, o que seria útil para resistirem ao aculturamento e ao branqueamento de sua cultura afro. Muitas palavras de origem africana não são percebidos como tais por já terem se integrado totalmente ao português brasileiro. 254 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A língua dos negros foi humilhada, esmagada. O negro foi reduzido, humilhado e desumanizado, desde o início, em todos os cantos onde houve confronto de culturas, numa relação de forças, no continente africano e nas Américas, nos campos e nas cidades, nas plantações e nas metrópoles (MUNANGA, 1988, p. 32-33). Há, no estado de Mato Grosso do Sul, 78 municípios, e, em geral, há, aproximadamente 6, 39 recorrências de topônimos de estrutura morfológica simples de origem africana, 19 ocorrências de topônimos de estrutura morfológica simples híbrida (africana + portuguesa) e 1 topônimo de estrutura morfológica composta híbrida. De maneira geral, os topônimos de estrutura morfológica simples têm sido mais recorrentes nas pesquisas toponímicas e, assim, temos mais uma vez esse fato comprovado quantitativamente. Apresentação e análise dos dados Resolvemos apresentar os dados em 3 tabelas por acreditarmos que, dessa forma, ficam expostos de maneira mais clara ao leitor e também possibilita a que outros estudos possam partir dos dados aqui apresentados. Nas tabelas, recorremos à demonstração de cinco itens, a saber: topônimo – o nome específico do acidente geográfico, município/microrregião/mesorregião – a localização do acidente geográfico dentro das divisões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Classificação Taxionômica – a taxe em que foi classificado o topônimo, conforme do modelo para classificação do topônimo adotado no âmbito do Projeto ATEMS e neste trabalho. A etimologia de cada topônimo está inserida em nota de rodapé. Após a apresentação dos dados, tecemos algumas considerações sobre o que eles suscitaram a respeito da presença de topônimos originados de línguas africanas no estado de Mato Grosso do Sul. Figura I - Topônimos de estrutura morfológica simples de origem africana catalogados no banco de dados do ATEMS e analisados neste trabalho: TOPÔNIMO AXOXÔ7 BAMBA8 MUNICÍPIO JUTI BATAIPORà MICRORREGIÃO DOURADOS NOVA ANDRADINA MESORREGIÃO SUDOESTE LESTE CLASSIFICAÇÃO TAXIONÔMICA ERGOTOPÔNIMO ANIMOTOPÔNIMO 6 Informamos aproximadamente porque topônimos ainda podem ser revistos, incluídos e até excluídos do banco de dados do ATEMS. 7 Axoxô - Espécie de salada da cozinha afro-baiana, feita com feijão-fradinho cozido, carne-seca cozida e desfiada, cebola em rodelas finas, tomate e pimentão picados, cheiro-verde e pimenta-do-reino ETIM prov. do ior (HOAUISS, 2001). 255 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 CAÇAMBA9, DA CACHIMBO, DO10 CACIMBA CACIMBA CAMPO GRANDE APARECIDA DO TABOADO TERENOS ANASTÁCIO CAMPO GRANDE CENTRO-NORTE ERGOTOPÔNIMO PARANAÍBA LESTE HIDROTOPÔNIMO11 CAMPO GRANDE AQUIDAUANA HIDROTOPÔNIMO HIDROTOPÔNIMO CACIMBA12 CACIMBA, DA CAXAMBU13, DO COSTA RICA PARANAÍBA PARANAÍBA CASSILÂNDIA PARANAÍBA PARANAÍBA CENTRO-NORTE PANTANAIS SULMATOGROSSENSES LESTE LESTE LESTE HIDROTOPÔNIMO ERGOTOPÔNIMO ERGOTOPÔNIMO 8 Bamba - "que ou o que é muito valente; valentão; conhecedor profundo de determinado assunto; bambambã" (HOUAISS, 2001). "Bras. Gír. V. valentão (1); Fig. Diz-se de autoridade em determinado assunto; Pessoa que é autoridade em determinado assunto. [Sin., nas acepç. 3 e 4: bambambã.]" (FERREIRA, 2004). 9 Caçamba – “[Do quimbumdo kisambu.] 1.Alcatruz. 2. Balde preso a uma corda para tirar água dos poços. 3. P. ext. Qualquer balde. 4. Estribo fechado, em forma de chinela: “Passam, a cavalo, homens do campo, de botas enlameadas, pés nos estribos ou em caçambas que, apesar do pó que as cobre, brilham como prata, se o sol incide no metal lavrado.” (Thiers Martins Moreira, Os seres, pp. 93-94.) 5. Carrocinha (1). 6. Constr. Lata ou balde em que os serventes transportam a argamassa para os pedreiros” (FERREIRA, 2004). 10 Cachimbo – “1. utensílio para fumar feito de madeira, barro ou outros materiais, que consiste num tubo delgado que tem, numa das extremidades, um recipiente (fornilho) onde se coloca e se faz arder tabaco ou outro produto, e, na outra extremidade, uma abertura ou bocal por onde se aspira a fumaça 2. Derivação: por metonímia.o tabaco (ou outro produto) nele colocado Ex.: <fumar c.> <acender o c.> 3. Derivação: por analogia. abertura ou receptáculo de castiçal, onde se coloca a base da vela 4. Derivação: por analogia. nome dado a diversas peças, partes, utensílios etc. que têm ou formam abertura onde se colocam ou encaixam outras peças, partes, utensílios etc. 5. Derivação: por analogia. nome dado a partes ou peças tubulares que têm uma abertura e se dobram em ângulo, como o tubo em relação ao fornilho do cachimbo ('utensílio') 6. peça escavada, de madeira ou metal, que serve de fêmea em dobradiças, charneiras, quícios etc. 7. Derivação: por extensão de sentido.a fêmea de qualquer peça de ferragem do tipo macho-e-fêmea 8. em obras de desaterro ou desmonte, porção de terra que é isolada de um barranco vertical por cortes e escavações estreitas e fundas que lhe dão a forma de um prisma, e que é, a seguir, desmoronada por solapamento 9. Derivação: por metonímia. amontoado cônico ou prismático de terra assim retirada, pelo qual se pode calcular o volume escavado 10. Regionalismo: Brasil. jazida de manganês, ou, especificamente, veeiro que apresenta esse mineral” (HOUAISS, 2001). 11 “Marroquim (1934 apud Dick, 1985, p. 24) assevera que muitas palavras de origem africana “entraram no vocabulário da língua representando utensílios, objetos e cousas africanas e depois passaram a batizar acidentes geográficos por qualquer circunstância em que não influi a vontade do negro”. Dessa forma, entende-se que cachimbo representa um aspecto da água desse AF e, por isso, foi classificado como hidrotopônimo” (DARGEL, 2003, p. 84) 12 Cacimba – “[Do quimb. kixima.] Substantivo feminino. 1. Cova que recolhe a água dos terrenos pantanosos. 2. Bras. Angol. Poço cavado até um lençol de água. [Sin. (bras., CE), nesta acepç.: bebedor.] 3. Bras. N.E. Escavação em baixadas úmidas ou no leito de um rio, na qual a água se acumula como num poço. 4. Bras. S. Olho-d’água, fonte. [Sin. (no CE), nesta acepç.: cacimbão.]” (FERREIRA, 2004). 13 Caxambu – “1. Bras. MG Grande tambor, de origem africana, usado na dança do mesmo nome, no bailado moçambique e no jongo; bendenguê. 2. Bras. MG Variedade de samba, dançado ao som desses tambores e doutros; 256 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 CORÁ14 CORÁ15 INHAME 16, DO MARIMBA, DA MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O MARIMBOND O17 CORONEL SAPUCAIA PARANHOS INOCÊNCIA CASSILÂNDIA IGUATEMI SUDOESTE ERGOTOPÔNIMO IGUATEMI PARANAÍBA CASSILÃNDIA SUDOESTE LESTE LESTE ERGOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO ZOOTOPÔNIMO PEDRO GOMES PARANÁIBA ALTO TAQUARI CENTRO-NORTE ZOOTOPÔNIMO PARANAÍBA LESTE ZOOTOPÔNIMO ANASTÁCIO AQUIDAUANA ZOOTOPÔNIMO SIDROLÂNDI A RIBAS DO RIO PARDO JAGUARI CAMPO GRANDE PANTANAIS SULMATOGROSSENSES CENTRO-NORTE TRÊS LAGOAS LESTE ZOOTOPÔNIMO CAMPO GRANDE CENTRO-NORTE ZOOTOPÔNIMO RIBAS DO RIO PARDO TRÊS LAGOAS ANGÉLICA TRÊS LAGOAS LESTE ZOOTOPÔNIMO TRÊS LAGOAS LESTE ZOOTOPÔNIMO IGUATEMI SUDOESTE ZOOTOPÔNIMO ZOOTOPÔNIMO jongo, corimá: “Ele era o mestre dos jongos, maestro da orquestra de zabumbas e puítas, tocador de atabaques nos caxambus da Fazenda.” (Silva Guimarães, Os Borrachos, p. 5.) 3. Gír. No ato de embaralhar, as cartas que ficam frente a frente, i. e., mal embaralhadas” (FERREIRA, 2004). 14 Apesar de termos incluído o topônimo Corá neste artigo que trata de africanismos, ainda temos dúvida se é mesmo de origem africana. Particularmente, as autoras deste artigo tendem a classificar esse topônimo como de origem tupi-inclusive pela localização geográfica desses topônimos no Estado. Contudo, por não haver ainda elementos sólidos para essa confirmação, decidimos classificá-lo como topônimo originado de língua africana. A nossa suposição é de que esse topônimo se refira à cobra coral, do mesmo modo como há o topônimo Boi-corá [boicorá] que remete a esse réptil. 15 Corá – “Instrumento de cordas constituído de caixa de ressonância feita da metade de uma cabaça grande, forrada de pele, e de braço longo e cilíndrico” (FERREIRA, 2004). “iguaria preparada com milho verde; canjica. Regionalismo: Guiné-Bissau” (HOUAISS, 2001). 16 Inhame – “Nei Lopes lembra que, em línguas não bantas, nyam é raiz dos cog. do port. 'comer', acrescentando que há quem a considere tb. raiz banta; f.hist. sXV jnhame, c1508 ynhame” (HOUAISS, 2001). 17 Marimbondo – “design. comum e imprecisa aos insetos himenópteros, esp. da fam. dos vespídeos e pompilídeos, sociais ou solitários, ger. maiores e dotados de ferrão, distinguindo-se das vespas por manterem as asas anteriores longitudinalmente dobradas quando estão pousados; caba 2 ent m.q. 1vespa ('designação comum') 3 dnç GO dança de roda de caráter, em que um figurante se posta ao centro com um pote de água, dançando e pulando 4 designação dada pelos portugueses aos brasileiros, à época da Independência 5 design. dada aos pernambucanos contrários ao 257 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 MONJOLO MONJOLO MONJOLO18 MONJOLO, DO MONJOLO, DO MUCUNJA19 QUILOMBO QUILOMBO QUILOMBO QUILOMBO20 QUILOMBO, DO QUILOMBO, DO PARANAÍBA PARANAÍBA TRÊS LAGOAS INOCÊNCIA PARANAÍBA PARANAÍBA TRÊS LAGOAS LESTE LESTE LESTE ERGOTOPÔNIMO ERGOTOPÔNIMO ERGOTOPÔNIMO PARANAÍBA LESTE ERGOTOPÔNIMO INOCÊNCIA PARANAÍBA LESTE ERGOTOPÔNIMO PARANAÍBA RIO BRILHANTE FIGUEIRÃO SIDROLÂNDI A CAMAPUà PARANAÍBA DOURADOS LESTE SUDOESTE ERGOTOPÔNIMO POLIOTOPÔNIMO ALTO TAQUARI CAMPO GRANDE LESTE CENTRO-NORTE POLIOTOPÔNIMO POLIOTOPÔNIMO ALTO TAQUARI CENTRO-NORTE POLIOTOPÔNIMO INOCÊNCIA PARANAÍBA LESTE POLIOTOPÔNIMO APARECIDA DO TABOADO PARANAÍBA LESTE POLIOTOPÔNIMO Figura 2 - Topônimos de estrutura morfológica simples híbrida (língua africana + língua portuguesa) catalogados no banco de dados do ATEMS e analisados neste trabalho: TOPÔNIMO BANANAL21 BANANAL MUNICÍPIO PEDRO GOMES ALCINOPÓLIS MICRORREGIÃO MESORREGIÃO ALTO TAQUARI CENTRO-NORTE CLASSIFICAÇÃO TAXIONÔMICA FITOTOPÔNIMO ALTO TAQUARI CENTRO-NORTE FITOTOPÔNIMO decreto imperial de 18 de junho de 1851 que instituiu o registro de nascimentos e óbitos ¤ etim quimb. mari'mbondo” (...) (HOUAISS, 2001). 18 Monjolo – “1 B engenho rudimentar, acionado à água, us. para pilar milho e descascar café 2 B N. bezerro novo, sem chifres; mujolo, novilho 3 negro brasileiro empregado como escravo na agricultura colonial ¤ etim voc. quimb., prov. da designação do povo; a datação é para a acp. 'engenho rudimentar” (HOUAISS, 2001). 19 Mucunja – “do quimbundo mu'kunza, milho cozido” (FERREIRA, 2001). 20 Quilombo - “quimb. kilombo 'união; cabana, acampamento, arraial, povoação; capital; exército'; Nei Lopes cita Adriano Parreia em AParE: "o voc. kilombo (nos sXV-XVII) tem uma dupla conotação: uma, toponímica e outra, ideológica. Eram assim também designados os arraiais militares mais ou menos permanentes, e também as feiras e mercados de Kasanji, de Mpungo-a-Ndongo, da Matamba e do Kongo" (HOUAISS, 2001). 21 Bananal – “banana + -al; ver banan-; f.hist. 1585 bananaes, 1911 bananal substantivo masculino extenso aglomerado de bananeiras em determinada área; bananeiral, pacobal, pacoval” (HOUAISS, 2001). “De or. afr.; banana + -al1.] Substantivo masculino. 1. Quantidade mais ou menos considerável de bananeiras dispostas proximamente entre si; bananeiral, pacobal ou pacoval” (FERREIRA, 2004). 258 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 BANANAL BANANAL BANANAL BANANAL BANANAL BANANAL BANANAL BANANAL BANANALZINHO 22 BANANEIRA23, DA BANANEIRA, DA MONJOLINHO24 MONJOLINHO MONJOLINHO, DO MONJOLINHO QUILOMBINHO 25 BUZUNGUEIRO , DO PONTA PORà ANTÔNIO JOÃO COSTA RICA BELA VISTA BONITO BELA VISTA BRASILÂNDI A PARANAÍBA ALCINOPÓLIS PARANAÍBA DOURADOS DOURADOS SUDOESTE SUDOESTE FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO CASSILÂNDIA BODOQUENA BODOQUENA BODOQUENA TRÊS LAGOAS LESTE SUDOESTE SUDOESTE SUDOESTE LESTE FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO PARANAÍBA ALTO TAQUARI PARANAÍBA LESTE CENTRO NORTE LESTE FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO INOCÊNCIA PARANAÍBA LESTE FITOTOPÔNIMO BELA VISTA CAARAPÓ INOCÊNCIA BODOQUENA DOURADOS PARANAÍBA SUDOESTE SUDOESTE LESTE ERGOTOPÔNIMO ERGOTOPÔNIMO ERGOTOPÔNIMO PARANAÍBA RIO BRILHANTE INOCÊNCIA PARANAÍBA DOURADOS LESTE SUDOESTE ERGOTOPÔNIMO POLIOTOPÔNIMO PARANAÍBA LESTE SOCIOTOPÔNIMO Figura 3 - Topônimos de estrutura morfológica composta híbrida (língua portuguesa + língua africana) catalogados no banco de dados do ATEMS e analisados neste trabalho: TOPÔNIMO FURNA DO MONJOLO MUNICÍPIO SONORA MICRORREGIÃO ALTO TAQUARI MESORREGIÃO CENTRO-NORTE CLASSIFICAÇÃO TAXIONÔMICA GEOMORFOTOPÔNIMO Ao analisarmos esses topônimos, notamos a importância da influência da cultura africana na formação do próprio estado de Mato Grosso do Sul. Como análise geral, constatamos que das 59 ocorrências de africanismos, há apenas 15 diferentes designativos, uma vez que um mesmo topônimo aparece em localidades diversas. 22 Bananalzinho – “banana + -al + -inho. Vide Bananal. Bananeira - De banana + -eira. Vide Bananal nesta figura. 24 Monjolinho – De monjolo + -inho. Vide Monjolo na figura anterior. 25 Quilombinho – De quilombo + -inho. Vide Quilombo neste trabalho. 23 259 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Os topônimos de origem africana do Mato Grosso do Sul estão em maior parte na Mesorregião Leste, o que nos demonstra que essa cultura foi adquirida no período escravocrata. Na Mesorregião Leste, há 30 ocorrências de topônimos de origem africana – mais da metade dos topônimos originados de língua africanas no estado de Mato Grosso do Sul e cadastrados no banco de dados do ATEMS. Podemos distinguir, em ordem decrescente de produção, as recorrências de topônimos de origem africana nas seguintes taxionomias 26: Figura 4 – Total de ocorrências dentro das taxionomias toponímicas TAXIONOMIA TOPONÍMICA ERGOTOPÔNIMO FITOTOPÔNIMO ZOOTOPÔNIMO POLIOTOPÔNIMO HIDROTOPÔNIMO ANIMOTOPÔNIMO SOCIOTOPÔNIMO GEOMORFOTOPÔNIMO TOTAL DE OCORRÊNCIAS 16 14 10 7 4 1 1 1 A taxionomia mais produtiva foi a dos ergotopônimos, com 16 ocorrências. Em pesquisas toponímicas, não é comum haver maior produção dessa taxionomia. Entretanto, ressaltamos que, nesta pesquisa, é justificada essa alta produção porque os africanismos cristalizados no português do Brasil, de acordo com os subsídios teóricos lidos para este trabalho, dos campos lexicais que mais conservaram palavras de origem de línguas africanas no Brasil estão os que se referem à culinária e a utensílios que envolvem essa arte. Desse modo, justifica-se a maior recorrência aos ergotopônimos entre os topônimos de origem africana no estado de Mato Grosso do Sul. As taxionomias fitotopônimos e zootopônimos também apresentaram alta produtividade na toponímia sul-mato-grossense, registro que segue, em linhas gerais, a toponímia brasileira. Os topônimos mais recorrentes dentro dessas taxionomias foram africanismos já cristalizados na língua portuguesa do Brasil como: derivados de banana (Bananal, Bananeira) e marimbondo. A taxionomia dos poliotopônimos não costuma ser muito recorrente na toponímia brasileira, mas, nesta pesquisa, apresentou um número considerável de topônimos (7 ocorrências de quilombo e derivados). Nesse particular, houve uma opção, na elaboração deste artigo, para a classificação desses topônimos nessa taxionomia porque entendemos que eles poderiam ser perfeitamente classificados como sociotopônimos. Enfim, posições podem ser tomadas no que se 26 Utilizamos o modelo taxionômico para classificação dos topônimos de Dick (1992, p. 34) por entendermos que esse modelo é voltado para a realidade brasileira. 260 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 refere à classificação taxionômica e, muitas vezes-como nesta pesquisa, o pesquisador se depara em situações de ter que fazer uma escolha-o que aqui foi feito. Os topônimos mais recorrentes neste trabalho são palavras significativas para a cultura geral do brasileiro e denotam quão forte o elemento africano permanece na vida brasileira como um todo e não se pode mais separar quando a influência de uma etnia começa ou termina-a não ser, claro, no caso de pesquisas que procuram resgatar e valorizar aspectos etnolinguísticos presentes na língua portuguesa falada no Brasil, ou seja, para se apontar de onde surgiram as palavras banana/quilombo/monjolo/cacimba, por exemplo, como meio de conhecimento da própria história linguística do português brasileiro. Considerações finais Com o término desta pesquisa, chegamos à conclusão de que os topônimos de origem africana, apesar de terem apresentado pouca recorrência no estado de Mato Grosso do Sul, registram a presença da cultura africana cristalizados nos nomes de lugares. Ao habitar determinada região, o ser humano tem a ‘necessidade’ de nomear o rodeia e, assim, nomeia vilarejos que são formados, córregos encontrados, cavernas descobertas- enfim, o homem nomeia os acidentes geográficos localizados no espaço circundante. Essa prática é um meio de mostrar que aquele local tem domínio humano. O designador, ao impor uma cultura, transpõe uma ideologia que será automaticamente assumida pelas pessoas. Desse modo, costumes são perpetuados e rastros do povo nomeador sempre estarão presentes nos nomes de acidentes geográficos. Pode-se notar esse fato pelo fato de terem sobrevividos topônimos de origem africana. Nessa perspectiva, é que encontramos topônimos de origem de línguas africanas cristalizados na nomenclatura onomástica do estado de Mato Grosso do Sul. ABSTRACT: Naming places is an ancient practice and a way to relate the inhabited place with whom he dwelt. Onomastics studies the origin of proper names, and Toponymy discipline of Onomastics is responsible for the study of the origin of place names. In this paper, we aim to study Africanism most applicants in the state of Mato Grosso do Sul understand that this research is a case study and presents itself as an ethnolinguistic study. Data were extracted from the computerized database Project ATEMS. We conducted a study of the relationship between language, culture and society from the analysis of Africanism in their expressions found in place names. Taking into account aspects of language, history and peoples who inhabited and settled the state of Mato Grosso do Sul, the article seeks to contribute to the development of knowledge and Toponymy Mato Grosso do Sul. The reason that led to this research was to attempt to demonstrate the relationship between language, culture and society from the analysis of Africanism, it is possible to investigate the initial contribution that black was the formation of the state of Mato Grosso do Sul. With the study of toponyms, particular linguistic, historical, geographical and social conditions can be retrieved and socialized with the community of Mato Grosso do Sul. 261 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 KEYWORDS: Toponymy. Africanism. Toponyms. REFERÊNCIAS: ATEMS – ATLAS TOPONÍMICO DE MATO GROSSO DO SUL. Banco de Dados. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CCHS/DLE, 2011. DARGEL, A. P. T. P. Entre Buritis e Veredas: o desvendar da toponímia do Bolsão sulmatogrossense. (Dissertação de Mestrado). Três Lagoas, UFMS, 2003. DICK, M. V. de P. do A. Fundamentos Teóricos da Toponímia. Estudo de caso: o Projeto ATEMIG – Atlas Toponímico do Estado de Minas Gerais (variante regional do Atlas Toponímico do Brasil). In: SEABRA, C. T. C. de. (org.). O Léxico em Estudo. Belo Horizonte – MG: Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 92 – 117. FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Positivo, 2004. GRESSLER, L. A. e VASCONCELOS, L. M. Mato Grosso do Sul: Aspectos históricos e geográficos. Dourados/MS, 2005. HOUAISS, A; VILAR, M. S. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Objetiva, 2001. MOURA, C. História do negro brasileiro. São Paulo, Ática, 1992. MUNANGA, K. Negritude. São Paulo, Ática, 1988. PETTER, M. M. T. Termos de origem africana no léxico do português do Brasil.. In: José Horta Nunes; Margarida Petter. (Org.). História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. 1 ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Pontes, 2002, v., p. 123-146. Brasil. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dl/gela/textos (acesso em 23/04/2011). 262 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 PUZZINATO, A P. e AGUILERA, V. de A. Influência do elemento negro na nossa nacionalidade. In: Afroatitude. Londrina: UEL, 2007. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/afroatitudeanas/volume-2-2007 (Acesso em 10 de agosto de 2011). 263 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A língua e a linguagem como representação identitária para professores Terena, região Aquidauana - (MS)1 Alessandra Manoel PORTO 2 RESUMO: Este trabalho busca refletir os conceitos de língua e linguagem no discurso de professores Terena, da Região Aquidauana, em Mato Grosso do Sul. A maioria das escolas indígenas, pertencentes às aldeias da região em questão, tem uma educação bilíngue – língua materna Terena e Língua Portuguesa. Assim, o que se propõe é a análise da possível mudança nas formações discursivas/ideológicas, bem como nas representações identitárias docentes desses professores, tendo como base o relacionamento direto desses professores com os índios e com a sociedade envolvente. Para isso, discutimos alguns conceitos como identidade e sujeito pela ótica da Análise do Discurso de linha francesa, sob o pensamento de Coracini (2003, 2007), Hall (2005) e Guerra (2010); e formação discursiva/ideológica de Foucault (1969, 1972). Como procedimentos metodológicos, recortamos e analisamos dois excertos de uma entrevista realizada com dois professores Terena, ambos falantes da língua materna. Embora a pesquisa ainda esteja em fase de desenvolvimento, alguns resultados podem ser observados, a partir dos questionamentos realizados: há, em ambos, uma vontade de verdade quanto à completude identitária, por meio da língua nativa - falar a língua Terena os deixa mais fortes etnicamente, representando para si e para o outro (comunidade indígena e sociedade majoritária), serem indígenas “autênticos”. PALAVRAS-CHAVE: Língua. Professor indígena. Discurso. Identidade. Considerações iniciais Com a entrada dos portugueses no Brasil, por volta de 1500, fato marcado historicamente como acontecimento “Descobrimento do Brasil”, a língua oficial passa a ser a língua portuguesa, no entanto, a recém-província “descoberta” já era constituída por inúmeras outras línguas 3, a dos índios que aqui viviam (ORLANDI, 2002). Por forças políticas e ideológicas de Portugal, conforme ainda Orlandi (op. cit.), era preciso “ensinar” aos habitantes encontrados, o idioma oficial, sendo estes momentos nada confortáveis para os indígenas, que foram obrigados a 1 Parte integrante da dissertação de mestrado intitulada “Concepções de Língua e Linguagem de Professores Terena, Região Aquidauana- MS: identidade e discurso”, orientada pela Profa. Dra. Claudete Cameschi de Souza e pela Profa. Dra. Vânia Maria Lescano Guerra, ambas do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). 2 Mestranda em Estudos Linguísticos, da linha de pesquisa “Fundamentos de produção e compreensão do discurso escrito”. 3 Remetemo-nos às línguas de nativos, primeiros indígenas em contato com o europeu: tupis, tupiniquins, tupinambás, tamoios, potiguaras, tapuias, entre outros (Wheling, et al, 1999). 264 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 aprender a língua portuguesa pelos jesuítas, por meio da catequização, “mascarando” a verdadeira ideologia do Império sob o pretexto de os indígenas serem “ensinados a conhecerem o Deus verdadeiro”, no entanto, o que acontecia era a implantação do estado nacional, a começar pela língua (uma única língua possibilitaria maiores facilidades nas manobras do poder sobre os índios, almejados pela coroa portuguesa). Dentro da dimensão discursiva é que a autora (op. cit., p.22) discute o acontecimento da “catequizados dos índios”, como “construção imaginária da unidade e da homogeneidade”; concepção tanto acreditada pelo português que colonizava, ao pensar que, impondo a língua portuguesa, como língua oficial, nada seria posteriormente transformado, como também pelos indígenas, que, sendo forçados a falar a língua portuguesa, teriam de abandonar a língua materna em favor da língua estrangeira (língua nacional), assim, na concepção dos indígenas, não seriam também mais os mesmos, a língua materna seria substituída e sem ela, sem identidade étnica. Segundo o Parecer 14/99, no Brasil, do século XVI até a metade deste século, a educação escolar indígena esteve pautada pela catequização, pela civilização e pela imposição forçada dos índios à sociedade nacional, sempre negando a diferença, ao torná-los “brasileiros”, tinham de abandonar sua própria identidade, em especial, a língua materna. Não diferente aconteceu com os Terena no Estado do Mato Grosso do Sul que, tiveram a língua portuguesa, “imposta” por volta do século XVIII, e “assimilada” por eles, que foi, sem dúvida, uma questão de sobrevivência, exemplo forte de uma estratégia de mobilidade para que a etnia pudesse prosperar e o povo Terena não fosse mais um grupo étnico extinto como tantos outros, haja vista que, a língua materna, naquele momento, era obstáculo para a mobilidade, como assevera OLIVEIRA (op. cit). Hoje, adentrando a segunda década do século XXI, o povo Terena, conhecido socialmente como “aculturado” e “índio urbano”, conforme Ladeira e Azanha (2004), enfrenta mais uma prova de sobrevivência, ou seja, o não falar a língua Terena descaracteriza-o como um indígena autêntico e reitera-se a necessidade de mobilidade, agora, em busca da identidade linguística, abolida outrora, caracterizando-se novamente uma questão de subsistência: se possuir identidade étnica linguística, poderá ser contemplado com os projetos sociais, participar de concursos , enfim, há a configuração de poderes tal qual afirma Foucault (1990), que o poder não é algo adquirido, medido ou compartilhado, ele é exercido no interjogo das relações móveis e não igualitárias. Nossa pesquisa é constituída pelos discursos dos sujeitos “professores indígenas Terena da Região Aquidauana”, graduados no Curso de Graduação Normal Superior Indígena (CNSI), pela UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – Campus de Aquidauana), formados a partir do ano de 2001, com Habilitação em Magistério na Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, e é, a partir desse “acontecimento” esboçado – manutenção da cultura indígena, mas com professores graduados pela sociedade majoritária, que elaboramos nossa hipótese, de que há mudanças nas formações discursivas/ideológicas bem como no processo 265 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 identitário desses professores indígenas, em virtude do relacionamento direto com os índios e com a sociedade dominante. Os procedimentos metodológicos desta pesquisa recorrem ao método arquegenealógico de Foucault, em que as relações de força e poder permeiam as discursivizações, a partir das regularidades do arquivo, trazendo um discurso tenso e contraditório. As questões da língua e da linguagem e seus fundamentos A língua, a partir do século XX, passa a ser concebida pelo seu caráter social e ser analisada pelo cumprimento de sua função quando envolve o referente, o sujeito, o mundo e a história (CARDOSO, 1999). Nesse sentido então, segundo Derrida (2001), a língua não é propriedade, mas é o elemento transformador e de transformação. Para o autor, a língua é a diferença do objeto de desconstrução, isto é, a garantia das diferenças. Para o autor, tanto a língua transforma, como é também transformada. Sob essa perspectiva, houve um avanço na concepção de língua, que deixou de ser objeto homogêneo para ser o lugar das diferenças. No deslocamento do significado de língua, sob a ótica derrideana, ela passou a ser, ao mesmo tempo, algo mais íntimo do sujeito como também, não pertencente a ele. Assim se manifesta “eu só tenho uma língua; ora ela não me pertence” (DERRIDA, op. cit., p. 47). À guisa dessa discussão, trazemos Coracini, na mesma linha teórica de Derrida, ao conceber a língua como processo das diferenças. Assim é definida por Coracini (2003, p. 48-49): “toda língua não passa de um simulacro de unidade, porque ela se constitui de outras línguas, de outras culturas: não há língua pura e não há língua completa, inteira, una [...]”. Nessa concepção, podemos destacar a língua como algo móvel, como produto de construção de toda uma sociedade, mas de sociedades que se misturam, que têm seus valores culturais, seus modos de ver e agir, de sentir, daí ser representada. Segundo a perspectiva de que a língua é uma representação de sociedades, misturadas com diversos valores culturais, retomamos Derrida (op. cit., p.47), para discutir ainda a questão da heterogeneidade de uma língua, ao externar que “minha língua, a única em que me ouço, é a língua do outro”. Logo, vemos que, embora tenhamos uma língua, ela é do outro, aliás, nem nossa, nem do outro, cada sujeito apenas a singulariza. Portanto, de acordo com as teorias apresentadas, em especial, as postuladas por Coracini e Derrida, a língua é um bem social em perene construção; assim, o sujeito precisa se utilizar da linguagem para construir referenciais e chegar à interação, e, partindo dessa necessidade é que os estudos sobre a linguagem passam a ser desenvolvidos, como suscitaremos a seguir. A concepção de linguagem surgiu amparada nas teorias que discutiam as concepções de língua. Conforme Cardoso (op. cit.), a partir do momento em que a língua é concebida também por sua funcionalidade, isto é, da linguagem em uso, em condições adequadas, numa interação entre contextos, sujeitos, mundo e cultura, a linguagem passa a ser também objeto de estudo. Assim, a linguagem, ao final do século XX, passa a ser concebida como discurso. É pertinente 266 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 situar o lugar do discurso e sua relação com o sujeito. Para isso, discutiremos a concepção de discurso pela ótica de Foucault. Para ele O discurso [...] não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos. (FOUCAULT, 1987, p.61-62) Na concepção do filósofo, o discurso traz imbricado o sujeito, a língua e o espaço onde ele acontece. Salientamos ainda, à luz de Foucault (op. cit., p. 135), que um “discurso é um conjunto de enunciados que se apoiam na mesma formação discursiva”. Ademais, é nesse momento discursivo que, consciente ou não, outras vozes constituem a voz desse sujeito. No desejo de se constituir como sujeito cognoscente, é que Foucault (2005) aborda o surgimento da “vontade de verdade”, que se constituem em inúmeros suportes (instituições, culturas, conhecimentos científicos, entre outros), nos quais o sujeito se apoia como discursos de verdade ou de falsidade e todo o saber acumulado e transformado pelo sujeito, por meio do discurso, vem à tona, ilusoriamente, como algo inédito. Na constituição do discurso, os sujeitos (in)concientemente articulam tanto o interdiscurso, como o intradiscurso, de modo a trazer toda ideologia e subjetividades, observadas senão pelas Formações Discursivas (doravante FD). O que seria então uma formação discursiva, dentro da perspectiva foucaultiana? Uma FD seria [...] um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática. (FOUCAULT, op. cit., p. 82). Por meio das FD é possível identificar, no interior de um discurso, elementos complexos, ora que se assemelham, ora como sistemas de dispersão: marcas de uma época, costumes ou hábitos de uma cultura, convenções de determinadas profissões, mas que, concernente à Foucault (op. cit., p. 66-67) de um modo ou de outro, articulam-se e delimitam-se, elementos capazes de se recompor, dissociar e reaparecer em outros discursos, e só então, uma FD pode ser “precisada” como sistema de semelhança ou de dispersão. Do ponto de vista foucaultiano, uma FD somente consegue ser observada, dentro de um discurso. [...] gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as 267 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (FOUCAULT, op. cit, p. 56) À guisa de discutir tanto as regras e a dispersão como constituintes do discurso, destacaremos as abordagens feitas por Authier-Revuz (1990) sobre o discurso, sendo este produto do interdiscurso, isto é, o centro de um exterior constitutivo, nele há o sujeito (EU) e o Outro (psicanalítico)4, o eu fragmentado, mas que recebe as influências do Outro. Authier-Revuz (op. cit., p. 33) assevera que a heterogeneidade constitutiva é um “ato individual de apropriação que introduz aquele que fala em sua fala”. Para a autora Sempre, sob nossas palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da “pontuação do inconsciente. (AUTHIER-REVUZ, op. cit., p. 25-27). Nesse sentido, segundo Authier-Revuz (op. cit., p. 33-34) “a presença do outro emerge no discurso, com efeito, precisamente nos pontos em que se insiste em quebrar a continuidade, a homogeneidade fazendo vacilar o domínio do sujeito [...] o lapso, emergência bruta, produz “buraco” no discurso [...]”, isto é, a carga ideológica do sujeito é materializada no discurso. Assim, o discurso do sujeito-professor, ao externar suas representações, inclui a própria história/percurso que é constituída por deslocamentos. Coaduna com o pensamento da autora, as palavras de Eckert-Hoff, ao afirmar que O sujeito que se constitui, pois, pela dispersão e pela multiplicidade de discursos e, ao enunciar, o faz ocupando várias posições, que marcam sua heterogeneidade, logo, compreendemos a formação do professor como um processo múltiplo, não-linear, com uma pluralidade de vozes, de práticas e de saberes acumulados em todo percurso histórico-social-ideológico do sujeito”. ECKERT-HOFF (2008, p.43) Desse modo, ao abordamos o sujeito e a presença do outro na sua constituição, é pertinente trazermos para essa discussão, como ocorre a construção da identidade ou processos de identificação dos sujeitos, em particular, no século XXI. Para tanto, Bauman (2005, p. 38), assevera que a identidade do indivíduo moderno passa por um enfrentamento, ao que ele denomina ambivalência das identidades, “bênçãos ambíguas”, pois estas “oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como dizer quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, essas duas modalidades líquido-modernas de identidade coabitam, mesmo que localizadas em diferentes níveis de consciência”. 4 Teoria lacaniana, que concebe o Outro do discurso como constituído tanto pelo interdiscurso, como pelo inconsciente, afirma um enunciador externo ao seu discurso. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 32). 268 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Nesse mesmo aspecto, Hall (2005, p. 23), pontua em outras palavras, que o sujeito humano “está sendo “descentrado” na modernidade tardia”. É justamente nesse emaranhado de “(in)certezas” e embates que se comprovam a necessidade que o sujeito tem de se constituir do Outro, porque, mesmo na inocência da solidez única da sua identidade, ele fala pela voz do outro, julga pelos valores acumulados ao longo da história, transmitidos pela memória discursiva, argumenta e contra-argumenta não apenas pela própria crença, mas ancorado num ponto que lhes dê segurança, ou pelo menos, em seu ponto de vista (CORACINI, 2007). É por esse viés de motivação que, discutiremos a seguir, qual tem sido a representação de língua nativa para os professores Terena, no século XXI. A língua materna e as representações dos sujeitos Trazemos para essa discussão preliminar, apenas dois excertos transcritos por nós, parte dos dados coletados na entrevista com professores Terena. Os recortes remetem ao discurso de dois professores graduados em Normal Superior Indígena, falantes da língua Terena, e, tanto os professores como as sequências discursivas a serem apresentadas, foram selecionados dentre o corpus (entrevista transcrita), por atenderem aos objetivos deste trabalho. Os recortes foram organizados em R1 e R2. Inicialmente apresentaremos o excerto/resposta do discurso de R1, a partir do seguinte questionamento: Professor, o que é língua para você? Você acha que está havendo um resgate? R1- Língua ... é: nossa cultura... nossa língua... nossa tradição que tem as danças... é:. não um resgate, é valorizando né... valorizar... porque pra valorizar mais e não deixar né de valorizar... a nossa cultura... a nossa... é importante para as crianças... porque as nossas crianças agora já não falam mais...[...]. Instado a falar sobre suas representações de língua, o sujeito-professor R1 concebe a língua como característica primeira da identidade indígena, mas ele a define como um universo bem mais amplo, como podemos observar, em seu discurso étnico-pedagógico, que a “língua... é: nossa cultura... nossa língua... nossa tradição que tem as danças... [...]”. O sujeito afirma a língua como sendo o produto de toda a manifestação da etnia, que é por meio dela que a cultura, a tradição, as danças e metalinguisticamente, a própria língua, é quem revela a identidade indígena. O termo “linguagem” é pouco utilizado pelos professores indígenas entrevistados, contudo, em R1, a representação de língua abarca não só a língua como idioma, mas como linguagem também, pois, o sujeito congrega em seu discurso a língua como “transmissora” da cultura, da tradição, das danças, enfim, a língua é descrita na sua funcionalidade , isto é, como linguagem, o que coaduna com a afirmação de Bakhtin (2006), de que a linguagem está intrinsicamente ligada ao enunciado, como ato histórico e irrepetível, e assim que se manifestam 269 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 a língua e a linguagem no discurso, como interação dos envolvidos, como reveladora de toda carga ideológica contida na produção discursiva, constitutiva da história dos sujeitos. Podemos observar ainda, as marcas de subjetividade materializadas no excerto, por meio dos pronomes possessivos “nosso”, “nossa”, “nossas”, que nos permitem depreender os efeitos de sentido decorrentes da inclusão do sujeito-professor como parte daquilo que ele acredita: ele é um professor indígena, que faz parte da cultura, da tradição, é falante da língua, portanto, possui identidade Terena. Assim, as vozes trazidas pelo sujeito, por meio dos pronomes possessivos na primeira pessoa do plural, “nossa cultura”, “nossa língua”, “nossa tradição” e “nossas crianças” revelam a heterogeneidade constitutiva do sujeito, abordagem feita por Authier-Revuz (op. cit.), de que o discurso é produto do interdiscurso, isto é, o centro de um exterior constitutivo, nele há o sujeito (EU) e o Outro (psicanalítico) 5, o eu fragmentado, mas que recebe as influências do Outro. Entende a mesma autora (op. cit., p. 33) que, a heterogeneidade constitutiva é um “ato individual de apropriação que introduz aquele que fala em sua fala”. Ao inserir-se no Outro e ao trazê-lo, por meio das marcas discursivas “nossa, nossas”, o sujeito busca mostrar (ilusoriamente) que a língua o deixa forte, com identidade Terena fixa e definida. É mister analisarmos, ainda, a problematização promovida pelo sujeito-professor em discussão da valorização da língua materna, quando, ao ser questionado sobre seu resgate, R5 promove instantaneamente uma refutação ao terno utilizado e passa a explicar o porquê da substituição deste “é: não um resgate, é valorizando né... valorizar... porque pra valorizar mais e não deixar né de valorizar... a nossa cultura... a nossa... é importante para as crianças... porque as nossas crianças agora já não falam mais...”. Buscamos compreender qual o sentido dicionarizado que cada vocábulo apresenta, para que possamos depreender e analisar a carga ideológica contida nesse discurso. Segundo o dicionário Aurélio (1999), “resgate” é a busca pelo o que está esquecido, apagado; motivo da aversão do professor Terena ao termo, pois, para ele, a língua não se enquadra nessa definição; já o vocábulo “valorização”, conforme ainda o dicionário Aurélio (op. cit.), significa valorizar mais, aumentar o valor; definição que coincide com a promulgada por R1, isto porque, para ele, a língua já é valorizada, no entanto, precisa ser mais. Assim, a ideologia constitutiva do sujeito ao refutar um termo em virtude de outro, pode ser ainda compreendida, à medida que R1, na tentativa ilusória de primar pela verdade, é traído pelo seu dizer “é importante para as crianças... porque as nossas crianças agora já não falam mais...”, pois, ele evoca a voz das crianças da aldeia que têm identidade Terena, mas não falam a língua materna, para tentar justificar a importância da língua para a etnia, para todos aqueles indígenas que são Terena, mas não falantes do “idioma”, no entanto é constituído por um discurso imbricado por equívocos entre o eu e o Outro, isto é, se não falam mais, a língua materna não está sendo o objeto de valor expresso, descrito pelo sujeito, está mais para a 5 Teoria lacaniana, que concebe o Outro do discurso como constituído tanto pelo interdiscurso, como pelo inconsciente, afirma um enunciador externo ao seu discurso. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 32). 270 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 condição de “resgate” do que para “valorização” (conforme definições já discutidas). Tal evento legitima a compreensão desse discurso, pelo pensamento de Eckert-Hoff (op. cit., p.57) ao afirmar que “[...] o equivoco é produzido na e pela língua – passível de falhas, de deslocamentos, de rupturas, em que o sentido pode ser sempre e inevitavelmente outro.” Podemos atestar ainda, tal ideologia no discurso de R1, pelas palavras de Foucault (1992, p. 143-144), que “[...] o escritor constitui a sua própria identidade mediante essa recoleção das coisas ditas”. A ideologia construída pelo sujeito-professor, ao negar o “resgate”, confirma-se porque ele mesmo não acredita que seja necessário apenas “valorizar”. Passaremos à analise do próximo excerto. Do mesmo modo, apresentaremos a seguir o excerto/resposta de R2, quando também convidado a responder praticamente a mesma questão apresentada à R1: Professor, qual a importância da língua materna para você? R2- Porque a gente tem uma identidade registrada escrito índio Terena... é no meu ponto de vista... qualquer pessoa não índio pode ter esse problema... agora falar a língua materna Terena no caso... é: é ser índio.. é que... nós já na verdade... nós já perdemos algumas culturas tradicionais nossa... como parte de rituais religiosos... e cabe a nós preservar agora nossa língua que até hoje passou por várias gerações e tá ai.... não soubemos e pelo fato de não soubemos preservar... e pelo fato de às vezes... no passado... fomos muito... é: sofremos muitos descasos pelos órgãos competentes... vamos dizer assim... políticos... é ai por esse fato... é: a partir do momento assim... que o Brasil foi o doido por catequizar... aí começou a desestabilizar a crença indígena... no meu ponto de vista... e: e: é a escola é hoje é: existe pra gente preservar... pra gente aperfeiçoar essa escola... pra gente tem que incluir essa língua materna. O início do discurso de R2 pode ser considerado como um prefácio da discussão sobre a língua materna pelo sujeito-professor, mesmo que ele não tenha respondido diretamente ao questionamento proposto. O sujeito traça em seu discurso uma comparação entre o índio e o branco/outro a partir do documento de identidade “... porque a gente tem uma identidade registrada escrito índio Terena... é no meu ponto de vista... qualquer pessoa não-índio pode ter esse problema”; do excerto, podemos depreender que o sujeito deseja explicitar a facilidade que qualquer indivíduo encontra para registrar no documento sua identidade nacional, para isso, convém atentarmos para o efeito de sentido do item lexical “problema”, dito pelo sujeito e compreendido por nós, como “facilidade, acesso”. Nessa ótica, podemos afirmar que o sujeito, em R2, já tem a concepção de identidade, além do significado literal, dicionarizado; para ele, identidade agrega outros valores como os fenótipos e as tradições culturais, mas, acima de tudo, está a identidade linguística, “provada” pelo indivíduo ao ser falante ou não da língua Terena. Tal discurso contradiz o pensamento de Derrida (op. cit, p. 47), que assim se manifesta “eu só tenho uma língua; ora ela não me pertence”. Para o autor, a língua não é característica “maior” para se marcar a identidade nacional de um sujeito, no foco em pauta, a identidade étnica. À guisa dessa discussão ainda, trazemos Coracini, na mesma linha teórica de Derrida, ao conceber a língua como processo das diferenças. Assim é definida por Coracini (2003, p. 48-49): 271 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 “toda língua não passa de um simulacro de unidade, porque ela se constitui de outras línguas, de outras culturas: não há língua pura e não há língua completa, inteira, una [...]”. Nessa concepção, podemos destacar a língua como algo móvel, como produto de construção de toda uma sociedade, mas de sociedades que se misturam, que têm seus valores culturais, seus modos de ver e agir, de sentir, daí ser representada. A sequência discursiva trazida pelo sujeito-professor é marcada, ainda, pela assertiva a respeito do que é ser índio. Em seu dizer “falar a língua materna Terena no caso... é: é ser índio..”. Assim, em seu discurso, ele nega a identidade indígena daqueles patrícios que têm em seu documento registrado “Etnia Terena”, se não são falantes do idioma. Para ele, é a língua que esse sujeito fala quem diz o que ele é, é somente pela língua que se conhece a verdadeira identidade. Buscamos compreender essa problemática nos estudos derrideanos, que, segundo uma das suas teorias sobre a língua como identidade, a língua não pode ser concebida como propriedade, mas como elemento transformador e de transformação, como objeto de desconstrução e de garantia das diferenças DERRIDA (2001). Tal concepção é contraditória ao discurso de R2, uma vez que para o autor, falar ou não uma determinada língua não remete à determinação da identidade étnica ou nacional, esta determinação é construída ideologicamente. Sendo constituído de outros interdiscursos, o discurso de R2, embora incialmente seja marcado por uma diferenciação do que é ser ou não um índio “verdadeiro”, ele é habitado, imediatamente, por outras vozes que são trazidas por ele, para justificar o porquê da existência de tal conflito identitário, ou seja, de não se falar a língua Terena e não serem, todos da etnia, considerados índios autênticos (concepção trazida por ele mesmo), fato que nos leva a considerar que, talvez nesse momento, o sujeito-professor passe a ser impulsionado a compreender a concepção de Derrida (op. cit.), quando aborda que a língua passa a ser a garantia das diferenças. Como prova disso, de antemão, R2 afirma “... nós já na verdade... nós já perdemos algumas culturas tradicionais nossa... como parte de rituais religiosos... [...] .. não soubemos e pelo fato de não soubemos preservar...”, mas em sequência a esse pensamento discursivo, o sujeitoprofessor evoca os possíveis responsáveis, na tentativa de justificar a situação anterior e atual da língua materna Terena para o indígena, quando afirma “... sofremos muitos descasos pelos órgãos competentes... vamos dizer assim... políticos...”, e ainda, “... a partir do momento assim... que o Brasil foi o doido por catequizar... aí começou a desestabilizar a crença indígena...”, Ao analisarmos os sujeitos evocados e, posteriormente suas vozes, podemos observar a necessidade de afirmação da identidade indígena. Tal narrativa, trazida por meio da memória discursiva, em que se observa voz dos antepassados, o sujeito denuncia as supostas imposições delegadas “pelos órgãos competentes”, mais especificamente, pelos políticos; retoma ainda o período de colonização do Brasil, momento em que o governo português envia os jesuítas para “catequizar os índios”, mas que na verdade, veiculava-se uma forte ação de poder para a formação da identidade nacional, a começar pela imposição da língua: o índio, pela voz de Portugal, seria catequizado, seria levado a conhecer “o Deus verdadeiro”, no entanto, a “catequização” não era desenvolvida na língua 272 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 materna, mas na língua oficial do país colonizador, conforme acontecimento discutido por ORLANDI (op. cit., p.22). Tal situação coincide também com a concepção de Foucault (1971), quando aborda o surgimento da “vontade de verdade”, que se constitui em inúmeros suportes utilizados pelo sujeito-professor (instituições, culturas, conhecimentos científicos, entre outros), nos quais R2 se apoia como discursos de verdade (tanto de afirmação como negação), para fortalecer seu argumento. Atentamos ainda para o discurso de justificativa e de revolta pelo do sujeito-professor, ao afirmar que “aí começou a desestabilizar a crença indígena...”. Como vimos, o “aí” remete ao passado, trazido via memória discursiva como início “da quebra dos valores étnicos”, em particular, a refutação da língua materna pelos indígenas, pelo contato com os brancos (incialmente, pelos portugueses). O verbo “desestabilizar”, conforme o dicionário Aurélio (op. cit.) indica a perda da estabilidade, da solidez, da firmeza. Assim, podemos compreender o item lexical trazido pelo sujeito no infinitivo, acompanhado pelo verbo no pretérito “começou”, como um acontecimento que, embora tenha iniciado por volta do século XVI, ainda hoje não foi cessado: a língua e toda a cultura foram abaladas e não mais conseguiram se equilibrar. Sustentamos nossa afirmação pelas palavras de Eckert-Hoff, que O sujeito pós-moderno é um sujeito camaleônico e, como camaleão, ele munda constantemente de forma e de cor. Nessa metamorfose, ele não deixa de ser um para ser outro, pois um está imbricado no outro, é sempre o mesmo no diferente e o diferente no mesmo. ECKERT-HOFF (op. cit., p.40) Enfim, em R2, o sujeito acata a concepção de ter tido a negada a oportunidade de possuir uma identidade “fixa”, como se fosse possível. Entende ainda a mesma autora que, “somos também um pouco daquilo que negamos ou perdemos” ECKERT-HOFF (op. cit., p.85). É recorrente, tanto em R1 como em R2, que a imbricação de vozes comprova terem os sujeitos, suas identidades híbridas e fragmentadas, condizente com o pensamento também de Hall e Bauman (op. cit.), próprias dos sujeitos da pós-modernidade, em particular, de uma minoria étnica, como a dos professores Terena, em relação à sociedade dominante. Parafraseando Eckert-Hoff (op. cit.), falar de si exige que o sujeito se e(in)screva, deixando transparecer sua heterogeneidade e complexidade, é uma parte da história de vida6 desnudada ao outro, pelo outro. Comentários finais 6 Expressão utilizada para referir-se à abordagem da formação de sujeitos a partir de sua biografia, conforme HECKERT-HOFF (2008). 273 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Este trabalho teve como meta tecer reflexões sobre as representações de língua e linguagem dos professores Terena, partindo da hipótese preliminar de que haveria mudança nas identidades desses professores indígenas, bem como nas suas formações discursivas/ideológicas, com base no relacionamento direto com os índios e também com a sociedade. Podemos afirmar que os discursos dos sujeitos das sequências discursivas, R1 e R2, se constituem por meio das formações discursivas/ideológicas, com ancoragem em outros discursos (antepassados, Poder Público, sociedade dominante), mas em ambos, o desejo/ilusão da completude identitária por meio da identidade linguística - ser falante da língua nativa vem como traço primário, pois, para os sujeitos, a língua os deixa mais fortes etnicamente, e propicia a garantia de ser um indígena “autêntico”, tanto na representação da própria comunidade, como da sociedade majoritária. Nesse sentido, podemos afirmar que, por meio da análise da materialidade discursiva, ambos (R1 e R2) são sujeitos híbridos, perpassados por outros discursos, em especial, por aqueles que trazem os valores da sociedade dominante. No entanto, pelo lugar e pelas relações de poder que envolvem tais sujeitos (professores indígenas em comunidades bilíngues), ao falarem de si, tentam “camuflar” seus posicionamentos e, consequentemente, suas formações discursivas e suas identidades. Desse modo, os discursos se diferem no modo como cada sujeito procede às escolhas lexicais para expressar a sua subjetividade, por meio de novas (re)escritas de si, carregadas de equívocos e lapsos, cada qual na ilusão da sua imparcialidade, da completude, mas também da falta, como desejo de verdade de já terem construído suas identidades já, irremediavelmente, esfaceladas, divididas e multifacetadas. THE LANGUAGE IDENTITY AND LANGUAGE AS REPRESENTATION FOR TEACHERS TERENA, AQUIDAUANA REGION- (MS) ABSTRACT: This paper reflects the concepts of language in speech and language teachers Terena, Aquidauana Region, Mato Grosso do Sul. Most Indian schools belonging to the villages of the region in question has a bilingual education - Terena language and Portuguese. So what is proposed is the analysis of the possible change in the discursive / ideological as well as representations of identity in teachers' teachers, based on the direct relationship of these teachers with the Indians and with the surrounding society. For this, we discuss some concepts such as identity and subject from the perspective of discourse analysis of the French line, under the thought of Coracini (2003, 2007), Hall (2005) and Guerra (2010), and discursive formation / ideological Foucault (1969, 1972). While methodological procedures, cut and analyzed two excerpts from an interview with two Terena teachers, both speakers of the language. Although research is still in development phase, some results can be seen from the questioning carried out: there is, in both a will to truth as to the completeness of identity through the native language - speak the language makes the other (indigenous community and majority society), the native “authentic”. KEYWORDS: Language. Indian teacher. Speech. Identity 274 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 REFERÊNCIAS: AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa (s). Trad. de Celene M. Cruz e João W. Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, n.19, Campinas: Editora da UNICAMP, p. 25-42, 1990. AZANHA, G.; LADEIRA, M. E. Terena. 2004. Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Disponível em: pib.socioambiental.org/pt/povo/terena/print. Acesso em 07 jul. 2011. BAKHTIN, M. (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 12.ed. Trad. 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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 276 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Cores impossíveis: O diálogo das imagens Alex Nogueira REZENDE1 Eluiza Bortolotto GHIZZI2 RESUMO: Dentro das generalidades que abraçam as questões imagéticas, este artigo busca uma reflexão relativamente pontual acerca de problemas como representação, significação, marketing urbano, arquitetura, detalhes arquitetônicos, cores etc. Essa reflexão está voltada para um estudo de caso que toma como corpus imagens do edifício de uma das sedes da Prefeitura Municipal de Campo Grande - MS, a Central de Atendimento ao Cidadão. Essa obra, corporificada na cidade de uma maneira, em certos momentos é representada de outras. Esse processo percebido é aqui objeto de análise pelo viés metodológico da semiótica. Tal análise vai ao encontro da hipótese levantada por Lúcia Santaella e Winfried Nöth, que acreditam ser possível estabelecer um paralelo entre os três registros lacanianos da nossa dimensão psíquica e os três paradigmas da imagem tal como elaborados por eles próprios. Este artigo adota essa hipótese e, por meio deste estudo de caso que envolve, dentre outras coisas, um prefeito, um arquiteto e várias cores, avança sobre suas conseqüências para o entendimento dos problemas acima pontuados. Os resultados evidenciam o jogo semiótico único que cada imagem analisada estabelece, o que as torna diferentes umas da outras para além da técnica de produção e apesar de, apenas aparentemente, representarem um mesmo objeto. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica da imagem. Representação. Arquitetura. Marketing urbano. Introdução “Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdições, agora, são o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o negro e penso nessas impossíveis cores como não pensam os que vêem [...]” (BORGES, 1985, p. 63)3. 1 Mestrando em Estudos de Linguagens e professor no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). [email protected] 2 Professora do Departamento de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). [email protected] 3 “Sé que he perdido tantas cosas que no podría contarlas y que esas perdiciones, ahora, son lo que es mio. Sé que he perdido el amarillo y el negro y pienso em esos imposibles colores como no pinsan los que ven”[...]. Trecho do poema Posesíon del ayer/Posse do passado (Tradução de Pepe Escobar). 277 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Existe um universo que nos circunda e nos compõe por toda nossa breve existência, existe uma realidade e uma virtualidade que nos autorizam a viver entre os sonhos e as horas, existe uma pluralidade incomensurável de possibilidades no trato entre o concreto e o pensamento do concreto que nos permite vislumbrar a beleza da experiência humana; por fim, um signo pode ser capaz de representar, na sua micro-escala, essa potencialidade fenomênica e significante. Este artigo almeja olhar para os conflitos que emanam das lacunas entre o imaginário, o real e o simbólico, no sentido de Lacan (apud Santaella e Nöth, 2008, p. 187-193), em um estudo do signo cor em três imagens de um mesmo edifício 4, cada qual gerada em diferentes suportes – pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico –, no sentido de Santaella e Nöth (2008, p. 187193) e portadora de significados próprios. O que podemos apreender de tais imagens, consideradas as suas especificidades quanto ao modo de produção? E, ainda, consideradas as variações cromáticas que produzem diversidade de significado? Essas são questões que nos incitaram a produzir esse texto. O edifício citado no parágrafo anterior é o que sedia a Central de Atendimento ao Cidadão William Maksoud Filho (CAC), unidade da Prefeitura Municipal de Campo Grande MS, situado à Rua Marechal Cândido Rondon dessa cidade. O edifício é objeto de referência das três imagens que embasam a nossa análise neste texto; porém, a análise semiótica dessas mesmas imagens que levamos a cabo aqui revela que o objeto semiótico não se detém no edifício. Do mesmo modo, o objeto desta análise não é o edifício nem as imagens em sua concretude, mas a variação de significados que emana das diferenças verificadas entre as formas de cada imagem representá-lo. Essas contêm sutis variações sígnicas de uma para outra, ora nos modos de produção, ora nas cores alterando a aparência do seu objeto. A princípio, nossa atenção foi seduzida pelas variações cromáticas, que ora coincidem com a cor que existe de fato na edificação, ora não; em seguida, uma consideração dos modos de produção dessas imagens, bem como de categorias conceituais correlatas, pareceu-nos apropriado para a análise. Para tratar dessas imagens tomamos como referencial teórico o texto “Imagem”, de Lúcia Santaella e Winfried Nöth (2008), nos capítulo “11 - Os três paradigmas da imagem” e “12 – O imaginário, o real e o simbólico da imagem”. Buscamos trabalhar, mais especificamente, com base na hipótese dos autores de uma analogia entre os três registros lacanianos da nossa dimensão psíquica (imaginário, real e simbólico) e os três paradigmas da imagem (préfotográfico, fotográfico e pós-fotográfico). Está implícita aí, ainda, uma correlação desses conceitos, respectivamente, com as três categorias fenomenológicas de Charles S. Peirce (18391914) (primeiridade, segundidade e terceiridade) 5, bem como com os signos icônico, indicial e 4 Esse edifício também foi alvo de observação in loco, todavia, o edifício em si não é tomado aqui como corpus de análise. 5 “To express the Firstness of Thirdness, the peculiar flavor or color of mediation, we have no really good word. Mentality is, perhaps, as good as any, poor and inadequate as it is. Here, then, are three kinds of Firstness, qualitative possibility, existence, mentality, resulting from applying Firstness to the three categories. We might 278 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 simbólico6 que integram a semiótica peirciana. Deste entendimento surge a possibilidade de análise de fenômenos diversos evocados pelo estudo das imagens, entre eles este. Deste entroncamento particular e seguindo o método fenomenológico peirciano - “ver, atentar para e generalizar”7 (IBRI, 1992, p. 06) – partimos para investigar nosso objeto e, como consequência, percorremos assuntos paralelos como: marketing urbano versus projeto arquitetônico e o detalhe arquitetônico como unidade mínima de composição, mas, máxima de significado. Esses e outros temas emergem naturalmente da discussão da arquitetura que, como afirmou Robert Venturi, deve ser tomada como um meio, portadora de muitos significados conformes aos distintos pontos de vista; nas palavras desse arquiteto e teórico da arquitetura, “Uma arquitetura válida evoca muitos níveis de significado e combinações de enfoque: o espaço arquitetônico e seus elementos tornam-se legíveis e viáveis de muitas maneiras ao mesmo tempo” (VENTURI, 2004, p. 02). Lucrécia Ferrara, ao abordar a temática da cidade e das imagens, também recorre ao conceito de meio e registra: “Os veículos, meios e linguagens não se opõem, complementam-se, acrescentam-se e aprendem uns com os outros. Nesse diálogo, o meio é a mensagem” (2002, p. 40). Tais declarações são pertinentes para este estudo que adota a perspectiva segundo a qual as imagens da CAC, os veículos onde são publicadas, o edifício existente e a cidade são todos meios significantes e em relação de complementaridade que se abrem à nossa inquirição e aos nossos pontos de vista. Decorre daí que neste estudo, que recorta imagens publicadas em meios diversos, paralelamente a delimitarmos nosso ponto de vista, não podemos desconsiderar as características dos meios que interagem com as das imagens em si, seus contextos, nem as trocas semióticas que permitiram alinhavar um discurso entre todos eles. O edifício e as imagens strike new words for them: primity, secundity, tertialit”. CP 1.533. “Para expressar a primeiridade da terceiridade, o sabor peculiar ou a cor da mediação, não temos uma palavra muito boa. Mentalidade é, talvez, tão boa quanto qualquer outra, pobre e inadequada como ela é. Aqui, então, são três tipos de Primeiridade, a possibilidade qualitativa, a existência, a mentalidade, resultantes da aplicação da Primeiridade para as três categorias. Poderíamos gravar novas palavras para eles: primário, secundário e terciário”. CP 1.533. (Tradução nossa) 6 Conforme a segunda tricotomia, ou seja, dependendo da relação que o signo estabelece com o seu objeto, dividemse os signos em ícone, que “[...] é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer um tal Objeto realmente exista ou não [...]”; índice, que “[...] é um signo que se refere ao objeto que denota em virtude de ser realmente afetado por esse Objeto[...]”e símbolo, que “[...] é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no sentido de fazer com que o Símbolo seja interpretado como se referindo àquele Objeto [...] [de modo que é] em si mesmo, uma lei ou tipo geral [...]” (PEIRCE: 1977, p. 52-53). 7 “ A Fenomenologia, por entender a formação dos modos de ser de toda experiência ou categorias, parece não poder submeter-se a outro método de que não aquele constituído, fundamentalmente, pela coleta de elementos de incidência notável e pela posterior generalização de suas características. As três faculdades requeridas podem, assim, ser resumidas como ver, atentar para e generalizar, despindo a observação de recursos especiais de cunho mediativo.” (IBRI, 1992, p. 06) 279 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A edificação onde está corporificada a CAC foi projetada pelo arquiteto Gil Carlos de Camillo 8 em 2006; porém, a obra só foi concluída em 2008, ano que marca o início das atividades nesse complexo, o qual está instalado em um terreno de 12.025 m², ocupando a fração de três quartos de uma quadra na região central de Campo Grande - MS, lote esse conhecido informalmente como “terreno das mangueiras”, em função da existência de árvores frutíferas de grande porte – as mangueiras – as quais, em grande parte, foram mantidas mesmo depois da ocupação do local pela CAC. O edifício foi idealizado e inaugurado na gestão do atual prefeito do Município de Campo Grande, Nelson Trad Filho 9, e se destaca por sua acentuada horizontalidade, concentrando seu extenso programa de necessidades em 4.452 m² de área construída. A Central de Atendimento ao Cidadão contou com recursos do Programa Nacional de Apoio à Modernização Administrativa e Fiscal. Trata-se de um espaço destinado à tramitação de projetos das construções e ao questionamento de tributos e pendências jurídicas com o município, entre outros processos (MELENDEZ, 2008, p. 62). Segundo Adilson Melendez, “Já de início se acreditava que a edificação pudesse ajudar a transmitir a pretendida imagem do padrão de qualidade dos serviços públicos ali prestados” (2008, p. 62); essa “pretendida imagem” é um dos elementos com os quais trabalhamos neste artigo. Notamos que duas das partes envolvidas com a criação da CAC – o arquiteto e o prefeito – apresentam posições divergentes quanto a, pelo menos, um aspecto do edifício que deve incidir sobre a imagem que desejam transmitir; o ponto desse impasse se dá na escolha da cor do principal elemento vertical do conjunto arquitetônico, a torre da caixa d’água, com altura equivalente a sete pavimentos (o gabarito predominante na CAC é de cinco pavimentos). O nosso estudo de caso baseia-se nessa divergência que parece acompanhar o edifício desde a sua criação. As três imagens que escolhemos para a análise datam de 2008 e são um croqui (FIG. 01), uma fotografia (FIG. 02) e uma imagem digital (FIG. 03). O croqui é de autoria do próprio arquiteto Gil Carlos de Camillo e foi publicado em uma reportagem sobre a CAC de autoria de Adilson Melendez, na revista Projeto Design (2008, n. 345), que também publicou a imagem digital, de autoria de Érich Sacco. A fotografia foi publicada no sítio da Ordem dos Advogados do Brasil na Internet (http://oabms.org.br) como sendo uma “Foto: Divulgação/Prefeitura” - subentende-se aqui que a fonte primeira da imagem é a Prefeitura Municipal de Campo Grande - MS. 8 Tal arquiteto possui grande ligação com a produção arquitetônica da cidade de Campo Grande, pois, mesmo tendo se formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), é filho de um dos mais emblemáticos profissionais que já produziram arquitetura em Mato Grosso do Sul, Rubens Gil de Camillo (1934-2000), e irmão de outro renomado arquiteto local, Rubens Fernando de Camillo. 9 Prefeito filiado ao Partido do Movimento e Democrático Brasileiro (PMDB) reeleito em 2008 (ano de inauguração da CAC). 280 UFMS ANAIS MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 FIGURA 01 – Croqui da CAC elaborado pelo arquiteto Gil Carlos de Camillo. Fonte: MELENDEZ, 2008. FIGURA 02 – Fotografia vista do acesso principal da CAC, 2008. Fonte: http://oabms.org.br/noticias/ver/4548/advogadohomenageado-em-obra-inaugurada-nacapital.html%5D. FIGURA 03 – Imagem digital contendo a vista frontal da CAC. Fonte: MELENDEZ, 2008. Podemos observar no croqui (FIG. 01) do autor do projeto que a torre é representada com a cor azul; todavia, na fotografia que mostra o edifício já construído a mesma torre recebeu revestimento texturizado na cor laranja (FIG. 02), cor esta que se mantém até os dias atuais. E, além disso, na imagem digital publicada juntamente com o croqui na reportagem intitulada Com face inclinada, edificação parece brotar do terreno, (MELENDEZ, 2008, n. 345) a torre, vejam só, está cinza (FIG. 03). “A cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que temos todos em comum” (DONDIS, 1997, p. 64). E para buscar a essência dessas experiências percebidas precisamos avançar para além das propriedades e características físicas das cores, precisamos, antes de tudo, percebê-las como fenômenos imagéticos; e para lermos essas imagens precisamos tateá-las, confrontá-las, precisamos, enfim, estar aptos a buscar e compreender suas “cores impossíveis”. O recurso da semiótica vem como uma base conceitual apropriada: 281 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Imagens são uma das mais antigas formas de expressão da cultura humana. Em oposição aos artefatos, que servem para fins práticos, elas se manifestam com função puramente sígnica. A semiótica tem, como ciência geral dos signos, a tarefa de desenvolver instrumentos de análise desses produtos prototípicos do comportamento sígnico humano (SANTAELLA; NÖTH, 2008, p. 141). Baseada na semiótica peirciana aplicada à imagem e, mais especificamente, nos “três paradigmas da imagem” – pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico -, tal como classificados por Santaella e Nöth (2008, p. 157-186), a análise do problema colocado é iniciada pela imagem que pertence ao que os autores chamam de paradigma pré-fotográfico, aqui representada pelo croqui da FIG. 01; na sequência, a imagem da FIG. 02, uma fotografia, representa o paradigma fotográfico e a da FIG. 03, uma imagem digital, cobre o paradigma pós-fotográfico. As correlações desses paradigmas com as categorias fenomenológicas e a semiótica de Peirce, bem como a ligação com o imaginário, o real e o simbólico lacaniano, tal como já anunciamos acima, também acompanham esse escopo teórico que nos possibilita considerar o universo das possibilidades investigativas. O traço O que é um traço se não a expressão de um desejo, se não a união de vários pontos formando uma linha que dá forma gráfica ao imaginário! Para Santaella e Nöth (2008, p. 187), é possível estabelecer um vínculo entre os problemas da imagem e o conceito de “imaginário”, como primeira das categorias conceituais de Jaques Lacan - e, por consequência, com o conceito de “narcisismo” de Freud: O imaginário é, sem dúvida, o registro que mais proximamente se localiza dos problemas da imagem. Esse é basicamente o registro psíquico correspondente ao ego (ao eu) do sujeito, cujo investimento libidinal foi denominado por Freud de narcisismo. “O eu é como Narciso: ama a si mesmo, ama a imagem de si mesmo [...] que ele vê no outro. Essa imagem que ele projetou no outro e no mundo é a fonte do amor [...], mas também da agressividade e da competição” (QUINET apud SANTAELLA; NÖTH, 2008, p. 189). As imagens de que Santaella e Nöth tratam nesse excerto são as de tipo artesanal, como as pinturas e desenhos produzidos pelos artistas com o uso das suas habilidades manuais. Tais imagens são impregnadas de primeiridade fenomenológica, caracterizadas por uma totalidade que torna difícil separar o autor, da imagem em si e da coisa representada. O desenho da FIG. 01 é uma imagem desse tipo, um desenho a mão livre, fruto do traço intencional e segundo regras de perspectiva, mas, ao mesmo tempo, solto, livre, como é próprio em um croqui, um tipo de desenho que não prima pela perfeição ou pelos detalhes, mas pelo caráter expressivo aliado ao representativo. Croquis são usualmente utilizados em arquitetura nas fases iniciais de um projeto 282 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 e, mesmo se o arquiteto os elabora posteriormente, busca significar esse início, no qual a mente do arquiteto em contínua comunicação com a mão está diagramando o conceito do projeto em uma forma geral. Um croqui do tipo apresentado aqui pode equivaler à expressão de uma primeira impressão geral do arquiteto sobre o conceito da obra10. De acordo com Santaella e Nöth, devemos entender que: As analogias da imagem pré-fotográfica com o imaginário estão imediatamente expressas, em primeiro lugar, na relação, quer idílica, quer conflituosa, que a imagem artesanal mantém com a natureza e o corpo. Sendo uma produção manual essa imagem implica na co-presença do corpo – olhar, mão, gestualidade - e do objeto ou coisa a ser projetada em uma superfície através da imaginação do artista. (2008, p. 190) O eu se projeta nessas imagens de forte peso autoral, como as produzidas ao longo da história das artes plásticas, dentre outras que produzimos constantemente, entre as quais localizamos o croqui. Essas imagens, que exigem sempre grande habilidade manual do artista, se ligam de modo muito íntimo ao seu eu, sua imaginação e desejos. Assim, no desenho tipo croqui da CAC - no traço qualitativo e expressivo do arquiteto se confundem, em um único signo, a expressão icônica do seu desejo imaginado, impregnado pelo seu eu, e o objeto projetado. Na sequência da análise somos levados a constatar que aqueles mesmos traços, na medida em que são uma organização que já pertence a um universo externo à mente do arquiteto, evidenciam, para além do arquiteto em si mesmo, o arquiteto diante do mundo (além do eu, o arquiteto como outro). Santaella e Nöth, tratando sobre as questões da imagem pré-fotográfica e suas correlações com a imagem que vemos de nós mesmos no “estágio do espelho” de Lacan, sugerem que, como a nossa imagem no espelho, as imagens artesanais que nós produzimos são, ao mesmo tempo, o eu e um outro para esse eu; esse outro é, além disso, constitutivos do eu: “O eu se constitui, assim, durante o ‘estágio do espelho’ [...] quer dizer, a partir da imagem especular, onde sua identidade se dá dentro de um jogo paradoxal, idílico e ao mesmo tempo mortífero, na oscilação entre o eu e o outro” (2008, p. 190). Analogamente, no processo de projetar por meio do desenho, uma troca contínua e constitutiva tanto do projeto quanto do arquiteto ele mesmo se dá, ora pelas relações de continuidade, ora de conflito entre a mente interna e o modo como ela se manifesta graficamente (no croqui), ou seja, externamente11. Esse outro (eu externo) é o modo pelo qual o próprio signo do qual falamos se constitui como um signo interpretante da imaginação do arquiteto (do eu interno) – e, por extensão, do objeto que ele quer representar -, como um signo novo, outro em 10 Um estudo sobre essa fase do projeto de arquitetura apoiado na semiótica peirciana pode ser lido em Ghizzi (2010). 11 Um estudo sobre como isso vai ocorrendo no projeto de arquitetura apoiado na semiótica peirciana pode ser lido em Ghizzi (2006 e 2010). 283 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 relação a essa imaginação, embora ainda sendo ela: “Entre o espelho e a miragem, ela é sempre fruto de um olhar transfigurador, capaz de projetar uma imagem de mundo: algo disperso que se configura numa unidade ideal, numa totalidade unificada” (2008, p. 190). Nesse processo de ser e representar contido no croqui em questão, percebemos que em algum momento essa imaginação do arquiteto se exteriorizou em uma torre azul, uma cor primária (conforme é possível visualizar na FIG. 01), posteriormente aceita, também por ele, para representar o edifício diante de outros (daí chegar à publicação). Este azul que nos remete à idéia de distanciamento e a frieza sugeridos por Kandinsky 12 (BARROS, 2006, p. 173), pode ser resultado de um simples desejo do autor de se manter presente na obra; ou ser apenas uma tentativa de dar cor à torre. Mas, o azul, assim como o verde escolhido pelo arquiteto para um outro elemento imponente no edifício - um grande plano inclinado – também podem estar buscando estabelecer uma relação de continuidade entre as cores do edifício e as da natureza – o azul com a água proposta no espelho d”água e, talvez, com o céu e o verde com a vegetação -; por extensão, o próprio edifício estabeleceria uma continuidade entre a torre e o espelho d’água, de um lado, e entre o plano inclinado e a vegetação do terreno de outro, o que seria um modo de neutralizar e equilibrar por meio da cor o impacto do volume do edifício no seu meio ambiente. Ou, ainda, o azul poderia estar incluindo, já, uma forma de tentar “agradar ao cliente”, visto que as cores-símbolo da prefeitura na gestão supracitada são o azul e o laranja; cores complementares já estudas por Goethe13, dentre outros; e nesse caso a cor se portaria como elemento de uma estratégia publicitária conhecida como marketing urbano (city marketing): Tomando-se como ponto de partida a constatação de que, nos dias de hoje, “os consumidores deparam-se com diversos tipos de produtos e serviços, fazendo suas escolhas com base em suas percepções do valor que estes os proporcionam” (Kotler, 2001:6), muitos gestores urbanos estão importando certas metodologias da iniciativa privada (notadamente aquelas que possuem maior relação com o marketing) com o objetivo de tornar as suas cidades dotadas de um maior valor aos olhos de seus moradores e especialmente dos investidores externos (DUARTE; CZAJKOWSKI, 2007, p. 277). De qualquer modo, a natureza sígnica desse tipo de desenho é a de uma idéia que emerge; o que ela significa é o conceito geral do arquiteto sobre o projeto nessa fase inicial e que vem como solução do problema de arquitetura que lhe foi entregue; e o público para quem ela 12 “Uma cor quente é aquela que tende para o amarelo. [...], toda cor quente, por receber a influência do amarelo, possui uma característica material, e que, no seu movimento, se aproxima do espectador. Por outro lado, a cor fria tende para o azul, possuindo uma característica imaterial, cujo movimento se distancia do espectador” (BARROS, 2006, p. 173). 13 “De acordo com suas observações das cores fisiológicas, em correspondência com a oposição diametral das cores complementares no círculo, Goethe estabelece que o amarelo requer o violeta, o laranja requer o azul, o púrpura (vermelho) requer o verde, e vice-versa” (BARROS, 2006, p. 297). 284 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 significa é, em primeiro lugar o próprio arquiteto, que produz esse tipo de desenho em um diálogo entre ele próprio e o desenho no ato de projetar. Em segundo lugar seu público é o cliente, que já está virtualmente colocado no projeto, mas ainda não se constitui como elemento mais forte. Esse desenho é, em si, um conceito na forma de imagem e é próprio desse tipo de signo ligar-se à expressão de quem o produz; por isso trata-se de uma imagem ainda muito voltada para o projeto em si e para os desejos do projetista. É certo que a cor da torre presente no croqui da CAC transmite sempre um significado; porém, neste breve espaço do artigo só nos cabe especular sobre possibilidades acerca deles. E, embora avancemos no texto buscando esses significados, o que interessa aqui, especificamente, ultrapassa a questão dos significados específicos do uso de cada cor, para se estabelecer no modo como cada imagem se distingue uma da outra semioticamente, incluindo aí a suposta divergência entre adotar uma ou outra cor, sugerida pelas imagens que coletamos. Não avançamos nessa análise por meio de julgamentos de valor estético ou ético. A nós cabe a observação e o método no intuito de perceber o fenômeno e compreender a experiência de uma perspectiva formal, lógica, possibilitada aqui pela semiótica. A objetiva Para que a imagem do edifício da CAC não seja apenas visível, mas signifique algo concreto, em outros meios, como nesse artigo, por exemplo, é preciso alguma técnica que “capture” essa concretude e seja capaz de significar a sua existência. Nossos olhos e o nosso sistema nervoso central são biologicamente preparados para realizar a tarefa perceptiva e interpretativa diante de muitos meios; porém, transmitir com uma imagem o significado de registro de um fato se tornou muito mais eficiente com o advento da fotografia. Sem a fidelidade mecânica da máquina fotográfica fica praticamente impossível obter o tipo de significado capaz de nos permitir distinguir entre o fato e a ficção em uma imagem com a mesma certeza. A imagem da FIG. 02 consiste em um registro fotográfico, um signo indexical significando essa existência do edifício – como ele era de fato – no exato momento da captura da imagem, numa relação espaço-tempo-imagem única. O caráter de secundidade14 da imagem fotográfica – e, por extensão, de todas as que pertencem a esse paradigma -, de acordo com Santaella e Nöth (2008), é capaz de, ao evidenciar 14 “Enquanto os signos icônicos são icônicos, pelo aspecto da sua primeiridade [...], o aspecto da secundidade encontra-se, no signo indexical, em primeiro plano. O signo é determinado na sua qualidade sígnica, em primeiro plano, por seu objeto, o segundo correlato do signo, já que ele está ligado ‘existencialmente’ a esse objeto, por exemplo, por uma relação temporal, espacial, ou causal, que dirige a atenção do receptor diretamente e sem reflexão interpretativa do veículo do signo para o objeto (CP 3.433). [...] Um índice mostra seu objeto e dirige a atenção do observador diretamente para este objeto, embora o objeto tenha que ser um objeto singular e existente na realidade” (SANTAELLA; NÖTH, 2008, p. 148). 285 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 a existência singular do objeto do signo, produzir um choque entre o imaginário e o real no sentido lacaniano: Embora seja sempre erroneamente confundido com a noção corrente de realidade, que é, até certo ponto, conhecível, o real lacaniano mais propriamente emerge como aquilo que do imaginário inevitavelmente sobra como resto e que o simbólico é impotente para capturar. Em síntese, o real é o impossível, impossível de ser simbolizado, sendo impermeável ao sujeito do desejo para o qual a realidade é inteiramente fantasmática. É aquilo diante do qual o imaginário tergiversa no qual o simbólico tropeça. É aquilo que falta na ordem simbólica, o resíduo, resto ou sobra ineliminável de toda articulação, que pode ser aproximada, mas nunca capturada (SANTAELLA E NÖTH, 2008, p. 191). De modo análogo, o caráter real do edifício da CAC, nesse sentido, de algo existente e factual, se desprende do imaginário do arquiteto, ganha autonomia em uma dimensão ainda mais ampla do que a apontada para o desenho. O edifício separa-se do projeto e do arquiteto de um modo ainda mais abrupto, embora ainda os contenha e os “espelhe”. Tal “corte” é realizado pelas fotografias em geral e é parte fundamental do que as torna – enquanto registros mecânicos do real - diferentes das imagens artesanais (como é o caso do croqui tratado aqui) ou, mesmo, das digitais (como será tratado a seguir neste artigo) no seu potencial para representar. Se uma pintura ou um desenho, assim como a nossa imagem no espelho, não se separam claramente do artista ou de nós mesmos, na fotografia “se trata sempre de um recorte, da captura de um fragmento que se separa do corpo do mundo à maneira de um corte” 15 (SANTELLA e NÖTN, 2008, P. 191-192). Ainda que o fotógrafo seja o autor do ato fotográfico, ainda que esse ato esteja impregnado de si mesmo e de valores culturais (no ato de selecionar o fato, enquadrá-lo), sempre haverá algo que é próprio, particular do fato e que não se submete à sua vontade. Entre o croqui e a fotografia, edifício imaginado e o existente se separam; o que é análogo à separação que ocorre entre o projeto e o edifício construído. Parte das potencialidades significantes do edifício tal como representado no projeto se perdem quando da edificação. A fotografia da FIG. 02 representa esse corte do real e nos permite, apoiados neste signo indexical, uma retomada do nosso olhar para o edifício da CAC para constatar que o elemento arquitetônico “torre da caixa d’água”, um dos focos da nossa discussão, agora é laranja. Anuncia-se aí, para além de uma separação lógica entre o imaginado e o real, um ponto de discórdia. A cor laranja, cor quente, tem o poder genérico de aproximar e chamar o espectador; além disso, como já informamos acima, essa mesma cor (muitas vezes acompanhada pela cor azul) é constantemente utilizada nas obras públicas da gestão da Prefeitura Municipal de Campo Grande à qual a construção do edifício é vinculada, criando uma identidade visual, uma marca ou símbolo apoiado na capacidade da cor para transmitir mensagens abstratas. A escolha não deve ter se dado sem intenção, mas amparada na teoria da cor, visto que, para Goethe (BARROS, 15 Aqui os autores usam “corte” no sentido de Dobois (1994, p. 161, apud SANTAELLA e NÖTH, 2008) 286 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 2006, p. 303), as mensagens abstratas intrínsecas da cor laranja a ligam aos déspotas, aos heróis, aos nobres e ao uso da razão, em outras palavras, é uma cor (um conjunto de significados) coerente com o tipo de “imagem” que um prefeito deve querer estimular no seu eleitorado. Aqui, portanto, a utilização de tal cor nos aparece claramente como associada a interesses do marketing urbano estrategicamente gerido pela gestão pública; funciona como as marcas comerciais associadas a produtos em geral no mercado. O edifício em si, nessa relação, é um produto acompanhado de sua marca; e o que quer que ele seja busca representar essa marca para um público formado por todos os cidadãos campo-grandenses, em cujas mentes ele deve estimular uma imagem de marca dessa administração, coerente com a estimulada pelas outras obras (produtos) da mesma administração, marcadas com a mesma cor. O pixel A terceiridade peirciana caracteriza-se, resumidamente, por ser o elemento resultante do encontro da primeiridade com a secundidade, criando o elo entre essas duas categorias fenomenológicas; este elo terceiro é plenamente realizado no símbolo. Para Peirce o símbolo é um signo da ordem da lei, o que significa dizer que é portador de significados convencionais, oriundos de um sistema de regras, normas. Sistemas simbólicos também são próprios das culturas e das linguagens, que Lacan relaciona ao conceito de “Outro” (com maiúscula). O simbólico, o lugar do código fundamental da linguagem, é da ordem da lei, estrutura regrada, onde fala a cultura, a voz do grande Outro. A escritura do Outro (com maiúscula) foi adotada por Lacan para mostrar como a relação entre a estrutura simbólica e o sujeito se distingue da relação imaginária do eu e do Outro. O outro com minúscula indica sua distinção do Outro com maiúscula, que é o Outro recíproco, simétrico ao eu imaginário (SANTAELLA e NÖTH, 2008, p. 192). Santaela e Nöth, tratando da relação entre as imagens do paradigma pós-fotográfico – ao qual pertencem as imagens digitais – e das suas relações com o conceito de simbólico em Lacan, escrevem: Enquanto as formações imaginárias das imagens no paradigma pré-fotográfico esfumam as relações do sujeito com o grande Outro, na imagem pós-fotográfica, imagem numérica, simbólica por excelência, a dimensão de exterioridade do grande Outro põe em cena a posição excêntrica do sujeito (SANTAELLA e NÖTH, 2008, p. 193). Os autores referem-se às imagens produzidas em ambiente digital e que se desprendem quer da nossa experiência sensorial quer do registro real para criar abstrações que, mesmo quando figurativas e aparentemente similares ao mundo visível, são “abstrações de cálculos 287 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 matemáticos, e não o real empírico” (SANTAELLA e NÖTH, 2008, p. 183), funcionam simbolicamente e respeitam regras próprias de um sistema de simulação. A imagem digital da FIG. 03, e também a da FIG. 04 e a da FIG. 05, são resultantes das possibilidades de manipulação digital permitidas pelos avanços tecnológicos pós-fotográficos. Como tal, são resultado de um processo de produção de imagem que pode incluir fotografia e desenho de tal modo justapostos que não percebemos plenamente seus limites. FIGURA 04 – Imagem digital manipulada FIGURA 05 – Imagem digital manipulada contendo a vista posterior da CAC. Fonte: contendo a vista noturna frontal da CAC. MELENDEZ, 2008. Fonte: <http://www.decamillo.com.br/> Novo em técnica e antigo no tipo de procedimento e, talvez, até na intenção, na arquitetura esse tipo de imagem tem raízes em desenhos à mão livre ou técnicos, ilustrativos de projetos em geral e que, especialmente após o advento da perspectiva, são amplamente usados pelos arquitetos para aproximar seus projetos dos seus clientes, criando um efeito tão real quanto possível do que deve ser a aparência do edifício após ser construído. Esse fenômeno equivale a projetar a imagem do edifício no futuro, criar uma ilusão de real para estudar e/ou mostrar como será a experiência perceptivo-visual com o edifício acabado e, em alguns casos, também, da relação do edifício com o seu entorno. Esse tipo de procedimento teve seus métodos diversificados e aprimorados com as montagens fotográficas - que subverteram a função de registro intocado da fotografia -, associadas algumas vezes ao desenho e, recentemente, com as tecnologias digitais de informação e comunicação, que permitem criar imagens altamente compatíveis com o real. Tais processos incluem o uso do computador, cálculos matemáticos e programas de captação e geração de imagens e gráficos, associados a modelos da realidade. Simulação é um termo usado para o tipo de prática do qual se trata aqui. Uma característica da simulação é que ela sempre faz uso de conhecimentos sobre a realidade e, até, de informações precisas sobre elementos existentes, que são codificadas digitalmente, mas ultrapassa e até transgride essas referências para atingir os objetivos de propor algo idealizado e, ao mesmo tempo, simular a 288 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 aparência e, em alguns casos, o funcionamento desse algo que não existe - está em nível de projeto. Tal procedimento é usado na arte, na arquitetura e no design em geral, embora com propósitos diferentes. O arquiteto, ao fazer uso de tais recursos, traz o real para dentro da tela do computador, combina com seu projeto e constrói, por meio de simulação, uma idéia de como seria esse mesmo real modificado por e interagindo com o que é proposto. Algo análogo, embora em outro campo de linguagem, é descrito por Lucrécia Ferrara (2002, p. 44-45); tratando sobre a imagem no processo de montagem cinematográfico ela escreve: Essa imagem compõe o real, trabalha outra vez a imagem ingênua e aparentemente tomada ao acaso; recria-se a realidade a partir do olho crítico e onipotente do montador que, como um pequeno deus, se permite reeditar o mundo. As imagens da FIG. 03, da FIG. 04 e da FIG. 05, na medida em que não podem ser explicadas sem a mediação do autor - e do conjunto de critérios usados por ele para selecionar, montar etc. – na intervenção sobre o real, resultam de uma reedição dessa natureza: aqui o espaço no qual o edifício deverá ser instalado foi reeditado com a presença do projeto; em alguns casos tais processos podem ocorrer mesmo quando o edifício já está de fato lá; pode-se usar, por exemplo, uma fotografia dele, submetê-la a uma manipulação digital e reeditar o seu modo de presença naquele local. Nas imagens da FIG. 03, da FIG. 04 e da FIG. 05 percebemos, entre outras coisas, que a aparência do elemento torre diverge da das imagens da FIG 01 e da FIG 02 quanto à cor da caixa d’água, agora cinza. Se a imagem da FIG 01 expressa graficamente a primeira impressão de um conceito e a da FIG. 02 representa o fato (bem como a vigência, na concretização do edifício, da supremacia das aspirações políticas e de suas estratégias de marketing), estas últimas imagens especialmente se considerarmos que foram publicadas após o edifício ter sido inaugurado com a torre na cor laranja - podem representar a busca de um arquiteto por dar status de fato (por meio da simulação) às suas concepções de projeto em relação ao edifício, em uma atitude de franca recusa do real e apego ao ideal. O fato de essa cor do projeto (agora cinza) ser diferente da cor imaginada anteriormente (azul, da FIG. 01), não anula a atitude voltada para o projeto idealizado e não para o real, marcada aqui pela oposição ao laranja. A cor da caixa d’água se porta nesta análise como uma unidade arquitetônica mínima 16, um detalhe; todavia, com grande poder para gerar significados, reconhecidos tanto pelo 16 “O detalhe é seguramente um dos elementos mais reveladores da transformação da linguagem da arquitetura” (GREGOTTI, 2006, p. 556). E “Os detalhes são muito mais que elementos secundários; pode-se dizer que são as unidades mínimas de significação na produção arquitetônica de significados. Essas unidades foram escolhidas e separadas em células espaciais ou em elementos compositivos, módulos ou medidas, na alternância de vazios e cheios ou na relação entre dentro e fora. A fecundidade da sugestão de que o detalhe é a unidade mínima de 289 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 marketing público quanto pelo arquiteto. A tendência para uma situação ideal se verifica tanto na relação da torre com o marketing urbano quanto na sua relação com valores próprios da arquitetura. Tal como a gestão urbana e seu serviço de marketing têm um sistema de regras que direciona o uso de signos apropriados para cada fim, também os arquitetos têm os seus. Referimo-nos agora não mais a valores particulares ou de gosto do arquiteto, que predominam nas fases iniciais do projeto, mas às normas que regem as linguagens arquitetônicas vigentes, aos acordos consensuais sobre aquilo que é o que não é apropriado para casos em geral e que acabam influenciando casos específicos. O cinza da torre, presente apenas nas imagens digitais aqui apresentadas, diferentemente do laranja e também do azul, é um signo cujo valor cromático é intermediário entre o preto e o branco, entre luz e sombra; no âmbito dos significados gerais, remete a ordem, neutralidade, equilíbrio 17. Uma arquitetura que se apóia no cinza, no branco e em outras variações cromáticas claras neutras e frias estabelece vínculos com uma tendência clássica na arquitetura, que subsiste desde a Antiguidade Clássica18, passando pelo Renascimento italiano e por outras revivescências nos séculos XIX e XX, mantendo-se ainda no século XXI, embora não caracterize nesta época um movimento organizado. Um classicismo, em sentido amplo, revive em boa parte da arquitetura baseada em uma combinação de formas geométricas simples, mas de grande efeito. Mesmo quando essa combinação de formas não se sujeita às mesmas regras de proporção e não usa as ordens da arquitetura clássica, ainda pode se assemelhar a ela e carregar um sentido de clássico se opta pela pureza formal e abdica da cor como elemento de composição (ou reduz seu valor a um grau mínimo). É o caso da arquitetura branca e de volumes geométricos básicos, produzida pelo Movimento Moderno na primeira metade do século XX, na qual o edifício da CAC parece ter raízes. Em que pese o significado desse movimento como uma das revoluções mais radicais na história da linguagem arquitetônica, não se pode deixar de reconhecer seus vínculos com a arquitetura clássica, como apontou Summerson (1999). Os movimentos clássicos em geral, desde a Antiguidade Clássica até o Movimento Moderno, sempre ofereceram soluções arquitetônicas para edifícios públicos. Suas composições formalmente equilibradas (ora simétricas ora assimétricas), combinadas com uma neutralidade cromática, produzem certa pureza racional no todo que, combinada com dimensões apropriada geram grande efeito e têm sido comumente usadas para significar poder. De onde se deduz que há certo consenso na arquitetura sobre essas como características apropriadas para um edifício produção se deve ao duplo papel da tecnologia, que unifica o tangível e o intangível na arquitetura” (FRASCARI, 2006, p. 539). 17 “Quando misturamos preto e branco, as duas cores anulam seus movimentos e resultam nos tons de cinza, que [...] são cores que representam um equilíbrio de forças contrárias” (KANDINSKY apud BARROS, 2006, p. 190-191). 18 Embora a arquitetura da Antiguidade Clássica combinasse cores neutras com cores mais quentes como os vermelhos, como foi descoberto nas pesquisas arqueológicas, ficou amplamente conhecida por meio dos livros de história como uma arquitetura acromática, de modo que essa característica é um importante elemento do que conhecemos como linguagem clássica na arquitetura. 290 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 institucional público como a CAC. O uso da cor é dispensável, sob esse ponto de vista, e se traduz como um exagero a serviço da comunicação, uma ênfase publicitária que não serve à idéia de poder no sentido amplo, mas a um poder em específico. Assim, nos parece razoável concluir, a título de uma sugestão, que a negação deliberada da cor laranja da torre e o uso da cor cinza na imagem publicada em uma das revistas especializadas em arquitetura de maior prestígio nacional é um modo de o arquiteto, incluindo a torre na neutralidade cromática da maior parte do volume do edifício, garantir a esse, ao mesmo tempo, certa imponência – pela verticalidade do volume - e certa universalidade e atemporalidade – pela pureza da formas e neutralidade cromática19. Neste contexto quase shakespeariano a imagem da revista cria uma realidade paralela, na qual o arquiteto parece ter decidido expor sua criatura, a CAC, da forma como acredita que deve ser. Isso justificaria as imagens da FIG. 03 e da FIG. 04 publicadas nas páginas da revista Projeto Design (dentre outras imagens), e a da FIG. 05 apresentada no site 20 do próprio arquiteto, sem nenhuma referência à cor laranja. O que as imagens representam aqui – de fato - não é o edifício construído, mas o projetado (ou um misto dos dois). O edifício que é visto por meio dessas imagens significa um modelo de arquitetura que se oferece para um público/intérprete que não é formado predominantemente por cidadãos campo-grandenses, mas por leitores da revista e do site do arquiteto, provavelmente formados por arquitetos e estudantes de arquitetura. Trata-se, portanto, no caso das três imagens analisadas, de um jogo semiótico movido por regras diversas de significação; o que está em questão em todas elas é o objeto a que se refere o detalhe arquitetônico da cor da torre e, por extensão, o edifício. De um lado, o signo se liga mais ao indivíduo que o criou, de outro, remete a uma administração em específico (uma marca), e de outro ainda, parece prender-se mais a ideais de ordem cultural e do âmbito da linguagem arquitetônica. Considerações finais O diálogo das imagens nos apresentou um panorama vasto que agora nos permite enxergar contextos e significados para as “cores impossíveis”. A análise realizada da perspectiva do relacionamento entre os três registros lacanianos e os três paradigmas da imagem nos levaram aos níveis de interpretação e significação do fenômeno. O olhar semiótico para três tipos diferentes de imagens de um mesmo edifício, a CAC, nos permitiu verificar o registro de três diferentes posições que o edifício assume em relação a si mesmo, àquilo que representa e para quem representa. 19 Julien Guadet (1834-1908), no século XIX, definiu clássico como: “é clássico tudo aquilo que merece tornar-se clássico, sem restrições de tempo, de país, de escola [...] tudo que permaneceu vitorioso na luta contra os anos, tudo o que continua a receber a admiração universal” (apud BENEVOLO, 1994, p.152). 20 < http://www.decamillo.com.br/ > Acesso em 23/11/2010. 291 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Tais posições podem ser entendidas coerentes com os respectivos contextos e, ainda que não houvesse a divergência na cor, boa parte da análise ainda seria válida, pois as imagens ainda carregariam uma potencialidade significante própria. A cor na discussão só faz reforçar o corte que ocorre sempre entre projeto e obra, nos torna mais cientes da distância que a discussão mais conceitual da arquitetura, realizada em veículos especializados e sempre mais próxima do projeto, ainda estabelece com o campo da prática. No caso em questão, exclui do campo da discussão da arquitetura o confronto na linha de discórdia - entre o projeto e a obra, o arquiteto e o cliente, que este artigo busca incluir. A própria análise apresentada aqui não aprofunda nessa questão e expô-la é uma consequência dos rumos que o referencial teórico nos levou a tomar. Esse é um campo de discussão que o artigo abre, assim como o da importância que podem ter certos detalhes em arquitetura, o da relação entre arquitetura e marketing urbano, entre arquitetura e o campo da crítica e da teoria. Nosso desafio não foi o de esgotar o assunto; somos cientes do muito que não dissemos, quer porque não nos pareceu apropriado ou necessário, quer porque não nos atrevemos a explorar outras possibilidades significantes; encerrado o artigo tais possibilidades são agora algo que perdemos. Nosso desafio foi o de percepção de distintos valores e significados associados às imagens analisadas, para assim perceber que cada pensamento eternizado nas imagens préfotográficas, cada corpo flagrado nas imagens fotográficas e cada sentido construído nas imagens pós-fotográficas são portadores de identidades próprias, que ora convergem ora divergem, mas sempre desejam, são, sentem e expressam parte de um todo constituído de cores, de matéria, de traços, de imagens, de palavras, de caminhos, de pessoas, de Borges e de perdições, porque “essas perdições, agora, são o que é meu”. ABSTRACT: Within the general issues that embrace imagery, this article seeks to reflect on a point about issues such as representation, meaning, urban marketing, architecture, architectural details, colors, etc. This reflection is facing a case study that takes images of the body as a building of the headquarters of the Municipality of Campo Grande MS, the Central de Atendimento ao Cidadão. This work, embodied in the city in a way, is represented in some other moments. This process is seen here examined by methodological bias of semiotics. This analysis is consistent with the hypothesis raised by Lucia Santaella and Winfried Nöth, who believe they can draw a parallel between the three Lacanian registers of our psychic dimension and the three paradigms image as prepared by themselves. This article adopts this hypothesis and, through this case study that involves, among other things, a mayor, an architect and various colors, goes about its consequences for understanding the above problems scored. The results show the game only semiotic analysis establishes that each image, which makes them different from one another beyond the technical production and although only apparently represent the same object. KEYWORDS: Semiotics of the image. Representation. Architecture. Urban Marketing. REFERÊNCIAS: 292 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 BENEVOLO, L. História da Arquitetura Moderna. Tradução de Ana Maria Goldberger. São Paulo: Perspectiva, 1994. BARROS, L. R. M. A cor no processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. BORGES, J. L. Os conjurados. 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O Curso de Licenciatura Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas da Universidade Federal de Goiás pauta em seu estágio pedagógico a adoção das línguas, conhecimentos, ciências, saberes, cosmologia dos povos envolvidos no curso, bem como temas interculturais de interesse das comunidades indígenas. Neste trabalho, apontamos e discutimos práticas pedagógicas bilíngues interculturais de uma aluna do Curso, pertencente ao povo Karajá, residente na Ilha do Bananal – TO, como ações educativas pertinentes para a construção e viabilização de uma educação pautada na interculturalidade e na transdisciplinaridade vivenciada pelos Karajá. Seu trabalho de estágio pedagógico, além de ações comunitárias, têm promovido articulação de saberes e de interesses para a manutenção de práticas culturais tradicionais, assim como fomenta o fortalecimento da identidade étnica, que por vezes sofre com a estreita relação de praticamente toda a comunidade com a população não-indígena adjacente. PALAVRAS-CHAVE: Educação bilíngue intercultural. Formação de professores indígenas. Bilinguismo. Primeiras palavras A reflexão sobre o papel da educação bilíngue intercultural – doravante EBI – em todo o continente e, de modo particular, na América Latina tem origens e motivações diferentes em diversos contextos, como no Peru, na Argentina, na Bolívia, por exemplo. Esta perspectiva surge não somente por razões pedagógicas, mas principalmente por motivos sociais, políticos, ideológicos e culturais. O nascimento deste movimento pedagógico pode ser situado 1 Este texto é parte de meu trabalho dissertativo intitulado ‘A relevância pedagógica na construção de propostas de educação bilíngue intercultural’ e encontra-se disponível em: <http://www.lincomshop.eu/shop/article_ISBN%25209783862881789/LSBE-02%3A-A-relev%C3%A2ncia-pedag%C3%B3gica-naconstru%C3%A7%C3%A3o-de-propostas-de-educa%C3%A7%C3%A3o-bil%C3%ADngueintercultural.html?shop_param=cid%3D202%26aid%3DISBN%25209783862881789%26>. 2 UFG – Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Letras / Licenciatura Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas – Departamento de Estudos Linguísticos. Goiânia – Goiás – Brasil. CEP 74001-970 – <[email protected]>. 296 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 aproximadamente há trinta anos, nos Estados Unidos, a partir dos movimentos de pressão e reivindicação de algumas minorias étnico-culturais, principalmente negras. Na América Latina, a preocupação intercultural nasce a partir de outro horizonte, e surge no movimento das populações indígenas (López & Sichra, 2006). Hoje na América Latina são 16 (dezesseis) países que adotam, mesmo que alguns ainda de forma incipiente, a EBI voltada para a educação de povos indígenas, sendo eles Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Esse tipo de educação não permite, de acordo com López & Sichra (2006), que exista um modelo a ser seguido em cada um desses países, na verdade, nem mesmo dentro de um mesmo território nacional podemos pensar em uma “única fórmula” de EBI. Aqui a flexibilidade é fator crucial para as necessidades de cada etnia, e para que cada comunidade étnica possa ser atendida conforme suas características sociolinguísticas e socioculturais, além de, é claro, incorporar em cada comunidade distinta as visões e os conhecimentos tradicionais de cada um dos povos envolvidos. Nesse sentido, podemos inferir ao menos três distintos objetivos da EBI, sendo eles o objetivo da igualdade, como condição de melhoria de aprendizagens; objetivo de diversidade, almejando o fortalecimento cultural e linguístico dos povos indígenas e o objetivo de justiça social, próprio do diálogo cultural em prol da convivência humana (CASTRO, 2006). A EBI é, portanto, a concepção que envolve a educação como algo próprio do ser humano conforme sua realidade. Nesta concepção de ensino, o aluno não permanece alheio ao que o circunda, ao contrário, ele descobre, questiona, busca. É imprescindível que tal concepção seja construída com as comunidades indígenas, e não fique somente em esferas governamentais e acadêmicas. Para isso, é preciso que os professores indígenas também tenham direito a formações superiores pautadas nessa concepção de ensino, nas quais as universidades e comunidades indígenas sejam parceiras. Enfatizamos ainda que as questões de bilinguismo, e, assim, de educação bilíngue são bastante expressivas também em nosso país, uma vez que “[...] não se pode ignorar os contextos bilíngües de minorias, uma vez que no mapa do país pode-se localizar em uma pincelada não exaustiva: i. comunidades indígenas em quase todo o território, principalmente, na região norte e centro-oeste; ii. comunidades imigrantes (alemãs, italianas, japonesas, polonesas, ucranianas, etc) na região Sudeste e Sul, que mantém ou não sua língua de origem; iii. comunidades de brasileiros descendentes de imigrantes e de brasileiros não-descendentes de imigrantes em regiões de fronteira, em sua grande maioria, com países hispano-falantes” (CAVALCANTI, 1999, p. 388). Vejamos na seção seguinte algumas considerações acerca da EBI em território brasileiro. Ressaltamos, no entanto, que este trabalho não tem a intenção de explorar exaustivamente todos 297 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 os contextos em que a educação bilíngue ocorre em nosso país, mas sim um recorte acerca deste tipo de educação em contexto indígena. Educação Bilíngue Intercultural no Brasil No Brasil, conforme os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas (Brasil, 2002), a crescente reivindicação para a implantação de escolas em áreas indígenas deixou de ser uma imposição nacional, passando, assim, a ser uma exigência dos próprios povos indígenas brasileiros, invocando uma educação intercultural que envolva a comunidade e fortaleça o uso das línguas indígenas, bem como a língua portuguesa, além de uma metodologia específica e elaboração de materiais didáticos próprios e específicos para suas escolas. Esta crescente reivindicação indígena a favor de escolas em seus territórios, sua articulação e organização em encontros de professores indígenas que interferem nas deliberações do Estado, por meio do Ministério da Educação – MEC – em relação à educação nacional, além do respeito aos conhecimentos tradicionais culturais impulsionaram o que hoje se denomina EBI. A EBI resulta dessa forte articulação de movimentos indígenas em toda a América Latina, cujas reivindicações colocam os indígenas como interlocutores diretos deste processo, em que as ações articuladas destes movimentos fazem com que eles surjam como atores sociais de importância no cenário político latino americano (López & Sichra, 2006). No Brasil, de acordo com Pimentel da Silva (2008), há diversos programas que afirmam promover a instrução e formação nas línguas. A autora aponta para os tipos de educação bilíngue que desde a década de 1970 fizeram parte da história da educação escolar indígena, como a adoção da educação bilíngue de transição ou de civilização que promovia a subalternização das línguas indígenas em relação à língua portuguesa, uma vez que elas eram tratadas como instrumentos para a aprendizagem do português. É importante também ressaltar a diferença entre ensino de línguas e educação bilíngue. Pimentel da Silva (2009) fala da confusão destes conceitos ligados à educação escolar indígena no Brasil. A autora (2009, p. 112) afirma que ensino de línguas “tem por objetivo ensinar a ler, escrever, produzir e interpretar textos”, enquanto que educação bilíngue “é um projeto muito mais amplo, do qual fazem parte as línguas, como área de conhecimento específico, e também outros saberes – ciências, arte, cosmologia, visão de mundo”. Dentre os diferentes tipos de EBI há aqueles que têm como uma de suas premissas a incorporação de visões e os conhecimentos tradicionais de populações indígenas sejam elas quais forem, para que assim seja possível a abertura de diálogo entre culturas e conhecimentos tradicionais e os ditos universais. De forma alguma, nesta concepção de educação, os alunos seriam imersos e apresentados a algo que lhes seja alheio, estranho. Ao contrário, aqui os alunos e alunas se deparam com sua língua, seus costumes e tradições, além também de se apropriarem de conhecimentos não-indígenas (López & Sichra, 2006). 298 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 É válido lembrarmos que as reivindicações indígenas e suas demandas não podem ser entendidas como movimentos separatistas, ao contrário, a necessidade de um tipo de educação que abarque sua língua e, por conseguinte, sua cultura tradicional, não impede aos indígenas o sentimento de pertencimento ao país onde residem e onde fazem parte do todo nacional. Os movimentos indígenas buscam dar voz própria a seus integrantes, sejam eles de diferentes povos ou não. No Brasil, de acordo com Grupioni (2006), assim como em outros países que sofreram com a colonização europeia, houve a tentativa de destruição / esvaziamento da identidade étnica dos diferentes povos que aqui habitavam. O autor também aponta que tal esvaziamento de pertencimento étnico não ocorreu, ao contrário, as populações indígenas brasileiras estão se reencontrando e se reorganizando enquanto sociedades que apresentam diferentes culturas, tradições e línguas. A educação escolar é um espaço para se defrontar concepções e práticas sobre o lugar dos índios na sociedade brasileira, lugar este que tem sido ocupado por professores das próprias comunidades indígenas. Maher (1996, p. 117) ainda aponta para um importante papel da escola, e assim as ações de seus professores, no processo de fortalecimento das línguas indígenas, “uma vez que a escola é, por excelência, o lugar da escrita, apertar o cerco à tendência diglóssica pró-língua portuguesa implica expandir o escopo funcional da língua minoritária”. A Constituição Federal de 1988 é responsável pelas mudanças referentes aos direitos indígenas e à sua condição de indivíduo pertencente a um grupo étnico e a não tutela do Estado sobre eles. De acordo com Guimarães (2002, p. 34), o artigo 231 da Constituição introduz uma mudança importante em relação à assimilação dos povos indígenas ao estabelecer que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O artigo 210, sobre ensino fundamental, “assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (GUIMARÃES, 2002, p. 34). A partir destas mudanças as populações indígenas se tornaram melhor amparadas e passaram a ter reconhecimento enquanto sociedades diferentes entre si, que apresentam suas especificidades. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), n. 9.394, de 1996, também causou impacto sobre a educação escolar indígena. O Estado passou a ter o dever de ofertar educação bilíngue e intercultural às populações indígenas com o intuito de salvaguardar práticas socioculturais e a língua materna dos povos e comunidades indígenas, bem como lhes assegurar o acesso aos conhecimentos técnico-científicos da sociedade não-indígena (UFG, 2006, p. 28-29). Ainda em relação à LDB, em seu Título VIII – Das Disposições Gerais, encontramos a base legal da educação bilíngue e intercultural para os povos indígenas brasileiros: Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de 299 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias (BRASIL, 1996). Para o movimento indígena, a educação precisa ser concebida como ferramenta na construção de uma cidadania sem exclusões, de forma democrática e igualitária, para que na prática haja o exercício da dupla cidadania, com respeito aos direitos coletivos e às diferenças culturais (FERREIRA, 2001). A educação intercultural tem como paradigma o conhecimento do outro, a convivência com o diferente e a aceitação das riquezas na diversidade linguístico-cultural de cada povo. Segundo a autora, cada grupo cultural com sua língua e cultura é visto como um tesouro original, com sua particularidade de organização social, cosmologia, criatividade (PIMENTEL DA SILVA, 2009). Neste sentido, apresentamos na seção seguinte algumas considerações de uma prática pedagógica bilíngue em contexto escolar indígena. Tais ações integram os trabalhos de estágio pedagógico de uma aluna indígena Karajá do Curso de Licenciatura Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas – CLIFSPI3. Exploração do contexto de vida em sala de aula Diante do perigo de perda de interesse das crianças em relação aos conhecimentos ligados à própria cultura e, consequentemente, da possível perda do Iny Rybè – língua Karajá na comunidade Btõiry / Fontoura – Ilha do Bananal-TO, a proposta idealizada por Malu Karajá sobre o estudo do Artesanato Feminino Iny amplia na Escola Estadual Indígena Kumanã o espaço para a manutenção linguística desta comunidade. Para o início da preparação de suas aulas, Malu pesquisou e elencou artesanatos femininos e masculinos produzidos em sua comunidade, o que resultou na lista a seguir. 3 O referido curso teve início em 2007 e hoje abarca uma soma de 208 alunos oriundos dos estados do Maranhão, Tocantins, Goiás, Mato Grosso pertencentes ao local onde vivem povos indígenas que falam línguas do Tronco Linguístico Macro-Jê: Karajá, Karajá / Xambioá, Javaé, Gavião, Xerente, Apinajé, Krahô, Canela e Krikati; e de línguas do Tronco Tupi: Guajajára, Tapirapé, Guarani, Avá-Canoeiro, e, ainda, os Tapuio, remanescentes de alguns povos Macro-Jê. De todos esses povos, excetuando-se os Avá-Canoeiro, já há alunos indígenas, professores nos seus territórios, no CLIFSPI, da Universidade Federal de Goiás. 300 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Artesanatos confeccionados pelos homens: Hãwòkò – canoa Tõnori – lança Waxiwahatè – arco Makyrè – tipo de espada Wyhy – flecha Kòhòtè – borduna Raheto – cocar Korixà – banco Narihi – remo Kòji – cocar pequeno Lala – tipo de cesta Kawakawa – boneca de madeira Bèhyra – utensílio de carregar mantimento da roça. Artesanatos confeccionados pelas mulheres: Wèru – maracá Bkyrè – esteira Wèriri sõmõ – cesta Lòrilòri – cocar para crianças Ritxoko – boneca de barro Dekorutà – pulseira Wètkana – cinto Bkyrè ritxòre – esteira pequena Nõhõ – colar (tipo cordão) Dexi – pulseira feita de algodão Kuè – brinco Butxi – pote Hèdè-sihò – pente Myxi – bolsa Loru – pulseira com franjas de algodão Myrani – colar de miçanga Radètkana – prendedor de cabelo. A partir da pesquisa sobre os artesanatos confeccionados em Btõiry, e considerando a realidade sociolinguística de sua comunidade em que todos são bilíngues, Malu optou por trabalhar em suas aulas de estágio apenas com os artesanatos femininos seguindo a norma social 301 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 de seu povo, uma vez que faz parte do grupo das hirarina, grupo de mulheres da sociedade Karajá. Obedecer às regras de educação formal da sociedade Karajá é uma forma de respeito para com as tradições deste povo, além também de tentar garantir na escola os valores tradicionais, as regras sociais, a confiança da comunidade em relação aos trabalhos desenvolvidos dentro da escola e a partir dela. A língua utilizada nas aulas é a Karajá, uma vez que os conhecimentos envolvidos neste tema pertencem ao povo Karajá. A escolha da matéria prima, seu trato, manuseio, preparação, todos eles são saberes especializados que trabalhados na escola ganham prestígio dentro da comunidade, além de não serem negados aos alunos durante o período que permanecem na escola. A confecção de wèriri – cesto – e bkyrè – esteira – por alunas de Malu foram duas das ações que aqui destacamos. O primeiro registro faz parte de uma apresentação feita por ela e por outros colegas no I Seminário de Estágio Pedagógico do CLIFSPI ocorrido no primeiro semestre de 2010. Destacamos no terceiro slide abaixo exposto os nomes das partes deste artesanato. Acadêmica: Malu Karajá Tema Contextual: Artesanato feminino Iny - Weriri Pesquisa Objetivo – valorizar a cultura iny mostrando aos jovens que a cultura do não-índio não é melhor que a nossa cultura porque ela tem muitas riquezas e saberes como, por exemplo, o trabalho com cestaria de palha de buriti. Para as mulheres jovens não esquecerem a arte de fazer artesanato e promover reflexões sobre o processo de confecção ligados aos usos cotidiano e de ritual. Fig. 1: Slide 1 302 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Prática Pedagógica Este trabalho foi realizado somente com as meninas em sala de aula, depois mostrei um cesto e como se confecciona esse tipo de artesanato usando palha de buriti. Depois cada aluna tentou fazer um cesto, algumas conseguiram, outras não. Expliquei que ter mais conhecimento sobre a cestaria ajuda a valorizar a cultura iny, além também do valor comercial que a cesta tem. Fig. 2: Slide 2 rèru rarajierti wery Belehiru tõnoryrti atèhõtky WÈRIRI O desaparecimento do wèriri contribui para o desaparecimento de parte da língua Iny. Fig. 3: Slide 34 4 Este slide contém palavras em Iny Rybè e aqui apresentamos sua tradução em língua portuguesa: rèru – tira de palha; wery – um tipo de traçado; atèhõtky – palha; belehiru tõnoryrti – um tipo de traçado; rarajierti – um tipo de traçado. 303 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Percebemos neste trecho da aula de Malu sua preocupação com relação à manutenção do Iny Rybè e da sabedoria artística do Karajá. Na figura, por exemplo, encontramos a denominação de parte de cada Wèriri, assim como os tipos de traçados nele utilizados. A escolha do desenho depende da vontade da artesã que faz o artesanato, e ele sempre remete a algum item encontrado na natureza, como um peixe ou um animal. O ensino da artesã é sempre contextualizado, processo que Malu adota em sua aula. Destacamos que a língua portuguesa não foi utilizada nesta aula. Isso se dá pelo fato de a aula em questão ter sido prática, i.e., de confecção de artesanato, e a língua portuguesa não fazer parte do conhecimento específico ligado a este saber, a não ser quando se relaciona ao mercado e às relações interculturais por ele promovido, mas também pela própria orientação pedagógica do estágio. Obviamente percebemos que a ampliação / exploração deste tema promoveria também o uso da língua portuguesa nesta aula, como por exemplo, caso o assunto se voltasse para a comercialização deste tipo de arte para povos não-indígenas, ou mesmo indígenas de diferentes etnias, em que a relação comercial pudesse ocorrer por meio da língua portuguesa, caso esta seja a língua comum das pessoas envolvidas. Em outro registro feito por meio de fotografia, Malu apresenta moças confeccionando Bkyrè – esteira – orientadas por uma artesã de Btõiry especialista neste saber, e, portanto, faz parte do planejamento da aula e promove a discussão do conhecimento oral deste tipo de trabalho. Foto 1: Aula prática para se fazer um Bkyrè (esteira). 304 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 No relatório desta aula, em termos avaliativos, Malu afirma ter sido uma aula bastante diferente das demais, já que as alunas passaram a perceber que o artesanato feito para uso e venda significa muito mais que um meio de sobrevivência, mas também deve ser entendido como parte da identidade cultural Iny. Em comunicação pessoal conosco, Malu afirmou que houve uma discussão com as alunas sobre a importância econômica destes objetos dentro da comunidade. As mulheres, por meio de seu trabalho com os artesanatos, ajudam no sustento do lar com a venda destes artigos. A arte Karajá, seja ela cerâmica, trançados de palha ou trabalho em madeira, é de ótima aceitação e venda nos mercados populares, em galerias de arte, em cidades pequenas, grandes e inclusive fora de nosso país. Este é também um dos motivos alegados por Malu em debater e recuperar a importância deste conhecimento para seus alunos em relação à confecção dos artesanatos. Um aspecto que nos chama atenção é a importância que a língua Iny exerce neste tipo de educação. Aqui Iny Rybè não é um instrumento facilitador ou mediador do conhecimento. O conhecimento é trabalhado por meio da língua que lhe pertence, que lhe ampara e o salvaguarda. Iny Rybè é a língua da construção do conhecimento. Percebemos, portanto, que Malu põe em prática o direito salvaguardado pela Constituição Federal de 1988 de ensino em sua língua originária. Entendemos que há a necessidade de valorização e expansão da L1 como forma de garantia e direitos preservados uma vez que “[...] la L1 de los niños y niñas constituye el medio principal de que disponen para aprehender el mundo, para instalarse en él y construir sus significados. La internalización de la estructura de la L1 – entendiendo por ésta la lengua hablada por su familia y comunidad inmediata – no sólo influye en la manera en que ello expresan sus reacciones frente al mundo que los rodea, sino que realmente estructura la manera en que ellos lo perciben.”5 (CONDEMARÍN, 2003, p. 188) A concepção pedagógica do CLIFSPI e a visão de mundo Iny favorecem a não separação dos conhecimentos, sejam eles culturais e/ou não-indígenas, como o trabalho da estagiária Malu. O estudo dos artesanatos femininos Karajá, assim como o debate provocado por reflexões dos alunos com a ajuda da professora proporciona a ampliação da discussão sobre o próprio significado dentro da sociedade Karajá deste tipo de conhecimento, assim como o valor que tais objetos têm na sociedade não-indígena. A problematização proposta por Malu em suas aulas sobre os artesanatos femininos de seu povo, produzidos em sua comunidade, reflete um novo fazer pedagógico, o fazer mediatizado no mundo, na realidade de vida de sua comunidade, no diálogo entre o mestre e seus 5 “[...] a L1 é o principal meio disponível para as crianças apreenderem o mundo, se instalar nele e construir seus significados. A interiorização da estrutura da L1 – compreensão deste idioma falado por sua família e comunidade imediata – não só influencia o modo como eles expressam suas reações frente ao mundo que os rodeia, mas na maneira como as crianças o percebem”. [Tradução minha]. 305 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 alunos. Freire (2005) exalta a necessidade deste tipo de educação, a educação que promove a libertação, a consciência dos alunos diante do mundo e tudo o que os rodeia. Malu e seus alunos, assim como parte da comunidade envolvida nestas aulas, se conscientizaram, se libertaram e se mostraram homens e mulheres conscientes de seus valores, de seus saberes, de suas necessidades. Nesse contexto enxergamos a promoção da igualdade, um dos objetivos da educação bilíngue intercultural apontado por Castro (2006), que também é entendida como a superação daquilo que podemos chamar de “meu” e “nosso”. Fazemos parte de um todo, e este todo depende de suas partes. O pensamento e o conhecimento não podem ser vistos como coisas distintas e separadas, isoladas, eles precisam interagir com o todo social que permite especificações. Morin (2007) aponta para a relação do todo – global – com as partes – local. Para este autor, cada parte se modifica para, em conjunto com as demais partes, formar o todo, que por sua vez, jamais poderá ser visto / entendido como algo alheio ao mundo – o mundo é composto de suas partes, de suas especificidades. Neste sentido, o saber Iny foi trabalhado por Malu ao pensarmos na base de conhecimento construído em suas pesquisas ao envolver os conhecimentos tradicionais na rotina escolar dos alunos, trabalhar criticamente a valorização dos saberes culturais, o que a nosso ver é um salto de qualidade em relação à articulação de conhecimentos dentro do contexto escolar. Malu conseguiu não só articular os conhecimentos de seu povo em prol da manutenção de sua cultura – preocupação que ela expressa nos objetivos de todas as suas aulas, mas inclusive discute com seus alunos suas participações no mundo, fazendo parte dele, formando o todo social a que pertencem. Práticas pedagógicas como a de Malu Karajá se opõem àquelas que Freire (2005) chama de bancárias. Malu, ao problematizar os temas que trabalhou acaba por dar fim à mera educação pautada no depósito de conhecimentos. Ao contrário, ela instiga seus alunos a perceberem que suas próprias ações e conhecimentos contribuem para com o desenvolver das aulas, dos questionamentos, que seus saberes vinculados às suas realidades são propulsores de uma educação libertadora, que permite a conscientização como forma única de educação. Depois da aula, a reflexão O uso da língua portuguesa nestas ações pedagógicas se limita apenas aos nomes dos objetos envolvidos no registro das atividades, não houve por parte de Malu o aprofundamento do assunto trabalhado para a vida fora da comunidade, para outros contextos de vida. Malu afirma que sua aula foi bilíngue uma vez ter-se feito uso de termos em língua portuguesa – os nomes dos objetos de registro – câmera, filmadora, quadro, giz, caderno, caneta etc. Entendemos que a educação bilíngue intercultural supera o uso de termos linguísticos e o ensino de línguas, ela inspira mergulho no mundo, no pensar do outro, neste sentido esta aula de Malu se insere no contexto de educação bilíngue intercultural, uma vez que, conforme Ferreira (2001) é preciso a 306 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 dupla cidadania, sua construção sem exclusão. Trabalhar em sala de aula com conhecimentos próprios é problematizar a realidade de vida que não se limita às tradições culturais, mas também implica a mobilização de conhecimentos, o fazer parte de um todo social – nacional e mundial. Assim, o bilinguismo adotado nas aulas oferecidas por Malu Karajá não é pautado em usos linguísticos, tão comuns em estudos vinculados ao bilinguismo de línguas de prestígio. Aqui, as práticas bilíngues são políticas: adotam a manutenção sociolinguística da comunidade, bem como discute com os alunos as funções das diferentes línguas dentro de Btõiry (nome da comunidade onde Malu reside. Em língua portuguesa, esta comunidade é chamada Fontoura). As práticas pedagógicas são, portanto, o cerne das discussões e preocupações dos universitários indígenas e suas comunidades, bem como nossa, seus professores e orientadores, uma vez que é por meio delas que será possível a efetiva transformação da educação escolar em meio a comunidades indígenas visando uma educação bilíngue intercultural de fato, não apenas aquela resguardada constitucionalmente. BILINGUALISM - INDIGENOUS TEACHER TRAINING, INTERCULTURAL BILINGUAL EDUCATION ISSUES ABSTRACT: The proposal for intercultural bilingual education in Brazil aims to safeguard socio-cultural practices and language of indigenous peoples in Brazil (Brazil, 1996), and thus the training of indigenous teachers able to act actively making use of this type of education requires a look at the community and autonomy of action in the classroom. The Curso de Licenciatura Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas staff in its teaching practice to adopt the language, knowledge, science, knowledge, cosmology of the people involved in the course as well as cultural issues of interest to indigenous communities. In this paper, we point out and discuss an intercultural bilingual teaching practice from a student, of the people Karajá, who lives in Ilha do Bananal - TO, and educational activities relevant to the construction and feasibility of an education based in the intercultural and transdisciplinary experienced by Karajá. Her work of teaching practice, and community actions have promoted the articulation of knowledge and interests to maintain traditional cultural practices, and promotes the strengthening of ethnic identity, which sometimes suffers from a close relationship with virtually the entire community the adjacent non-indigenous population. KEYWORDS: Intercultural bilingual education. Indigenous teacher training. Bilingualism. REFERÊNCIAS: BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases, n. 9394. Brasília: MEC, 1996. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/lei9394.pdf> Acesso em 18 ago 2010. 307 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ____________________________. Referenciais para a formação de professores indígenas. Brasília: MEC; SEF, 2002. CASTRO, G. W. Reflexão político-pedagógica sobre a diversidade e a educação intercultural bilíngue. In: HERNAIZ, Ignacio. Educação na diversidade: experiências e desafios na educação intercultural bilíngue. Brasília: UNESCO, 2006. p. 153-179. CAVALCANTI, Marilda C. Estudos sobre educação bilíngüe e escolarização em contextos de minorias lingüisticas no Brasil. DELTA [online]. 1999, vol.15, n.spe, pp. 385-417. ISSN 01024450. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244501999000300015&lng=es&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10 ago. 2011. CONDEMARÍN, M. 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MAHER, T. M. Ser professor sendo índio: questões de língua(gem) e identidade. 261 f. Tese (Doutorado) - Campinas: IEL/Unicamp, 1996. 308 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 3ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. PIMENTEL DA SILVA, M. S. “Fronteiras etnoculturais: educação bilíngüe intercultural e suas implicações”. In: ROCHA, Leandro Mendes & BAINES, Stephen Grant. (coordenadores). Fronteiras e espaços interculturais. Transnacionalidade, Etnicidade e Identidade em regiões de fronteira. Goiânia: Editora da UCG, 2008. 107-117pp. ____________________, M. S. Reflexões sociolingüísticas sobre línguas indígenas ameaçadas. Goiânia: Editora da UCG, 2009. UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓSGRADUA ÃO. NÚCLEO TAKINAHAK DE FORMA ÃO SUPERIOR IND GENA. Projeto Político-Pedagógico da Licenciatura Intercultural. Goiânia: UFG, 2006. 309 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O estilingue na região norte do Brasil: Análise de designações documentadas pelo projeto ALiB Danyelle Almeida Saraiva PORTILHO 1 RESUMO: Considerando que a visão de mundo de uma comunidade de fala é evidenciada pelo nível lexical, é possível, por meio do estudo do léxico regional, abstrair elementos histórico-culturais do grupo que habita o local em estudo. Este trabalho apresenta resultados iniciais do estudo lexical com base em dados geolinguísticos da área semântica jogos e diversões infantis, do Questionário Semântico-Lexical do Projeto Atlas Linguístico do Brasil Projeto ALiB, focalizando as designações obtidas para a pergunta 157 do Questionário Semântico-Lexical, documentadas por meio dos inquéritos linguísticos realizados pela equipe do Projeto ALiB em três localidades estratégicas da rede de pontos da região Norte do Brasil: Oiapoque (AP), Cruzeiro do Sul (AC) e Guajará-Mirim (RO), analisando as variações diatópicas sob a perspectiva léxico-semântica. Os quatro informantes de cada localidade foram selecionados de acordo com os seguintes critérios: faixa etária – 18 a 30 anos e 50 a 65 anos –, de ambos os sexos, que não tenham passado mais que um terço da vida em outra região linguística e que tenham apenas o Ensino Fundamental. Constatou-se que as marcas regionais para o conceito mencionado, como ocorre com a designação baladeira, ainda se mantém no léxico dos habitantes das três localidades, apesar da influência da escola e da disseminação pelos meios de comunicação do léxico considerado padrão veiculado pelos habitantes do eixo linguístico Rio – São Paulo, em especial a variante estilingue. PALAVRAS-CHAVE: Léxico. Estilingue. Região norte do Brasil. Introdução O homem enquanto ser social interage com seus semelhantes por meio da linguagem verbal, faculdade essencialmente humana que distingue o homem dos animais. Assim sendo, o nível linguístico que melhor evidencia a relação entre linguagem e sociedade, permitindo a transparência de aspectos socioculturais de determinada comunidade de fala é o léxico. As escolhas lexicais de um grupo revelam a visão de mundo dos falantes, sendo marca identitária daquela sociedade: A língua de uma sociedade humana dada, que pensa e fala nessa língua, é organizadora da sua experiência e, por essa razão, modela o seu “mundo” e a “sua realidade social”. Por outras palavras e formulando esse pensamento duma maneira ainda mais concisa: cada língua contém uma visão específica do mundo (SCHAFF, 1964, p. 99-100). 1 UFMS/DLE/CCHS – Campo Grande- MS, Brasil – CEP 79070-900 – [email protected] 310 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Com efeito, os padrões linguísticos seguidos por uma comunidade de fala caracterizam a norma, aqui entendida na perspectiva coseriana – nível da língua de caráter abstrato e coletivo que intermedeia a língua e a fala, apresentando constâncias aceitas e realizadas coletivamente. A norma linguística apresenta variação em diferentes níveis linguísticos de acordo com a motivação que desencadeia a ocorrência de tal fenômeno. Se a motivação for geográfica, tem-se o dialeto, que “em sentido amplo, é qualquer variedade linguística de natureza geográfica ou sociocultural – que constitui um sistema unitário, singular” (ALVAR apud BRANDÃO, 1991, p. 79). Considerando a extensão territorial do Brasil e também os fatores sócio-históricos relacionados ao desenvolvimento do país, sabe-se que o português brasileiro não dispõe de uma norma linguística homogênea. Características distintas entre si, no que se refere à norma e às escolhas lexicais dos falantes, são evidenciadas nas diferentes regiões do país, singularizando-as: [...] considerando-se a extensão territorial do país, bem como seu rápido processo de urbanização, parece justo supor também aqui a ocorrência de uma pluralidade de normas, decorrentes do policentrismo cultural brasileiro. É provável que as diferenças regionais afetem mais de perto a norma oral, e nesta, os níveis fonológico e lexical. [...] São precisamente esses níveis que apresentam os maiores índices de variação [...] (CASTILHO, 2002, p. 310). Nessa perspectiva, o nível lexical representa um traço diferenciador marcante em relação à variação linguística no eixo horizontal – os regionalismos –, uma vez que a variação, responsável pelo enriquecimento do léxico, conduz as mudanças na norma linguística regional lexical, como evidencia Isquerdo (2003, p. 165): “tratar da questão dos regionalismos implica levar em consideração a questão da norma linguística no nível lexical, o que nos remete à questão da variação”. Tendo em vista “a incidência de ‘marcas’ regionais, o matiz local” (OLIVEIRA, 1999, p. 5) na norma linguística do português brasileiro nas diferentes regiões geográficas, o estudo dos regionalismos permite que se abstraia parte da configuração da realidade linguística do Brasil. Faz-se necessário, então, definir regionalismo. No dicionário de Linguística e Gramática (1977), tem-se a seguinte definição: [...] em sentido lato, traços linguísticos privativos de cada uma das regiões em que se fala uma dada língua, assim dividida em dialetos. Em sentido estrito, os regionalismos léxicos especialmente quando recebem guarida na língua escrita e literária, são de forma (vocabulares) ou de significação (semânticos) (CÂMARA Jr, 1977). Já Biderman (2001), com base na adaptação do conceito de regionalismo proposto por Boulanger (1985), define regionalismo como: 311 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 [...] qualquer fato linguístico (palavra, expressão, ou seu sentido) próprio de uma ou de outra variedade regional do Português do Brasil, com exceção da variedade usada no eixo linguístico Rio/São Paulo, que se considera como o português brasileiro padrão, isto é, a variedade de referência, e com exclusão também das variedades usadas em outros territórios lusófonos (BIDERMAN, 2001, p. 136). O aspecto dinâmico da língua, em especial o nível lexical, que se renova ininterruptamente – por meio do processo de acréscimo de vocábulos e desuso de outros2 – de acordo com o uso e com as necessidades dos falantes, pode ser visualizado segundo um recorte espaço-temporal em atlas linguísticos, que representam: [...] verdadeiras fotografias sociolinguísticas; resgatam e registram a distribuição espacial de formas linguísticas que refletem particularidades étnicas, condicionantes histórico-culturais que afetam a linguagem de um grupo social. Assim, documentam, além de fatos linguísticos, valores, hábitos, crenças de um grupo de falantes (ISQUERDO, 2007, p. 533). Este estudo3 discute, valendo-se de fundamentos da Dialetologia e da Geolinguística, a variação diatópica no nível lexical da língua portuguesa em sua modalidade oral, no campo semântico jogos e diversões infantis, uma área semântica que favorece a transparência de elementos culturais de uma comunidade de fala, apresentando variações não apenas em suas realizações, como também nas designações atribuídas a um mesmo referente em cada região do Brasil. Essa área semântica foi escolhida considerando também a importância exercida pelos jogos, os brinquedos e as brincadeiras tradicionais no desenvolvimento da socialização da criança, “pois brincando e jogando a criança estabelece vínculos sociais, ajusta-se ao grupo e aceita a participação de outras crianças com os mesmos direitos” (BERNARDES, 2006, p. 543), além de fazerem parte da cultura de um povo. Para a constituição do corpus deste estudo, foram extraídos dados de inquéritos linguísticos realizados em três localidades da região Norte, integrantes da rede de pontos do Projeto Atlas Linguístico do Brasil – Projeto ALiB: ponto 022 - Guajará-Mirim (RO), ponto 019 - Cruzeiro do Sul (AC) e ponto 001 - Oiapoque (AP). O Projeto ALiB 2 “[...] embora o léxico seja patrimônio da comunidade linguística, na prática, são os usuários da língua – os falantes – aqueles que criam e conservam o vocabulário dessa língua” (BIDERMAN, 2001, p. 179). 3 Este trabalho discute resultados iniciais da pesquisa em desenvolvimento como dissertação de Mestrado, no Mestrado em Estudos de Linguagens/CCHS/UFMS, sob a orientação da Profª. Drª. Aparecida Negri Isquerdo. 312 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O Projeto ALiB (Atlas Linguístico do Brasil), de caráter nacional e de natureza interinstitucional, almeja realizar um atlas linguístico da língua portuguesa falada em todo o Brasil, estabelecendo isoglossas que evidenciem a divisão dialetal do país e que apontem as diferenças regionais observadas. Para isso, será analisado o material linguístico coletado, não só em termos diatópico, mas também sob a perspectiva de variáveis sociolinguísticas que possam condicionar a realidade linguística das localidades estudadas. A rede de pontos do Projeto constitui-se de 250 localidades em todo o território nacional. Os inquéritos linguísticos, fonte dos dados coletados para este texto, foram realizados com quatro informantes em cada localidade interiorana, segundo critérios espaciais – nascidos e criados nas localidades e cujos pais sejam da mesma região linguística – e sociolinguísticos – faixa etária (18 a 30 anos e 50 a 65 anos), sexo (masculino e feminino) e escolaridade (em localidades do interior, são selecionados informantes com escolaridade fundamental, e nas capitais, mais quatro, com curso superior). O questionário utilizado nos inquéritos linguísticos é composto por três tipos de questionários: Fonético-fonológico, Semântico-lexical e Morfossintático, além de questões de prosódia, questões referentes à pragmática, temas para discursos semidirigidos, perguntas metalinguísticas e texto para leitura. Contexto histórico da região pesquisada A ocupação do território brasileiro teve início nas regiões costeiras. A presença estrangeira na região onde hoje se situa o município de Oiapoque, por exemplo, foi constatada desde o século XVI, tendo sido internacionalmente disputada por ser um ponto litorâneo estratégico de acesso ao continente sul-americano. A região costeira onde hoje se situam as regiões político-administrativas Norte e Nordeste foi ocupada inicialmente por franceses, e o litoral leste do país – atuais regiões Nordeste e Sudeste –, majoritariamente por portugueses. Os franceses do litoral norte eram aliados dos povos autóctones da região, traficavam animais e drogas do sertão e já haviam até mesmo fundado uma cidade – a atual São Luís (MA). Representavam uma ameaça aos lusoespanhois que, no intuito de expulsar indivíduos de outras nacionalidades em terras brasileiras, construíram vários fortes, os quais posteriormente deram origem a cidades como, por exemplo, as atuais João Pessoa (PB), Natal (RN), Fortaleza (CE), Belém (PA). Em se tratando de desenvolvimento, naquela época a s localidades litorâneas da atual região Nordeste sobressaíam-se em relação às demais cidades brasileiras. Com a fundação do atual município de Belém (PA), esperava-se que o espaço geográfico onde hoje se situa a região Norte do Brasil se desenvolvesse, porém fatores como as condições adversas – insalubridade, epidemias – somado ao fato de não ter sido o solo paraense favorável à produção agrícola com a tecnologia da época (século XVIII), acarretaram o fracasso de tal empreendimento. Acresce-se a tal insucesso o renascimento agrícola do Nordeste brasileiro, “cuja produção de açúcar, fumo e algodão se desenvolveu, tornando-o [o Nordeste] mais atraente e lucrativo para grandes 313 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 agricultores e comerciantes do que o longínquo e despovoado Pará” (CÁCERES, 1993, p. 73). A atividade econômica que se desenvolveu por certo período na região Norte, com início no século XVI, foi a captura e consequente exploração de mão-de-obra indígena, comumente explorada pelos jesuítas e normalmente para exploração de drogas do sertão. Ainda sobre a economia da região Norte, pode-se dizer que A base da economia da bacia amazônica eram sempre as mesmas especiarias extraídas da floresta que haviam tornado possível a penetração jesuítica na extensa região [...]. O aproveitamento dos demais produtos da floresta deparava-se sempre com o mesmo obstáculo: a quase inexistência de população e a dificuldade de organizar a produção com base no escasso elemento indígena local (FURTADO, 2003, p. 131). A região Norte do Brasil passou a ser polo atrativo de fluxos migratórios – especialmente de nordestinos – no auge do ciclo da borracha, marco na história sócio-econômica do Brasil, ocorrido no final do século XIX/início do século XX, tendo por base o extrativismo do látex das seringueiras. A extração do látex teve como fator impulsionador o crescimento industrial dos países desenvolvidos, o que valorizou a borracha, aqueceu a produção e a exportação dessa matéria-prima, existente em abundância no Norte do Brasil (especialmente na região onde hoje se situa o Estado do Acre) e atraiu povos das mais diversas origens para a região mencionada. Com a elevada demanda pelo látex das seringueiras, diversos indivíduos interessados em trabalhar nos seringais se fixaram no local onde havia concentração de seringueiras – atual Estado do Acre. Ocorre que essa região pertencia à Bolívia; os habitantes, contudo, não queriam se submeter ao poder do governo boliviano. Após um período de conflitos entre os habitantes do atual Estado do Acre e o governo boliviano, a Bolívia, “em constantes disputas com o Chile e a Argentina, não podia arriscar-se em outra disputa com o Brasil” (CÁCERES, 1993, p. 258). Isso porque o governo brasileiro apoiava os descontentes com o governo boliviano. Em vista disso, a Bolívia aceitou firmar com o Brasil um acordo conhecido como Tratado de Petrópolis, assinado por ambos os países em 1903. O Tratado previa a anexação do território acreano ao Brasil, mediante, dentre outros deveres, o pagamento de uma indenização ao governo boliviano e a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, que permitiria o escoamento da produção de borracha e exportações bolivianas. A estrada de ferro que ligava as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, construída entre os anos de 1907 e 1912, foi responsável por acelerar o povoamento local e desenvolver a economia dos municípios em questão. Essa ferrovia, que esteve em funcionamento de 1912 até 1972, ficou conhecida como “Ferrovia do Diabo” devido ao grande número de mortes de trabalhadores durante a execução da obra4. Devido ao fato de o Brasil ter sido praticamente fornecedor mundial exclusivo do látex até o início do século XX, a produção brasileira atingiu alta cotação no mercado internacional: 4 Fonte: <http://www.efmm.net/historia.htm>. Acesso em 22 ago 2011. 314 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 “de 45 libras por tonelada nos anos quarenta [século XIX], o preço médio de exportação sobe para 118 libras no decênio seguinte, 125 nos anos sessenta e 182 nos setenta [...], alcançando, no triênio 1909-11, a média de 512 libras por tonelada” (FURTADO, 2003, p. 132). Com tamanho reajuste nos preços do látex, que, de acordo com os aumentos observados, em pouco tempo alcançaria preços inviáveis ao mercado consumidor, ficou evidente a necessidade de reestruturação da produção amazônica e da oferta de látex, que contava apenas com as árvores nativas da floresta e com métodos rudimentares de extração. Para atender à crescente procura pela borracha, devido ao desenvolvimento econômico dos países desenvolvidos, era importante que a produção brasileira fosse racionalmente organizada, para aumentar a produtividade e reduzir custos. Antes que isso acontecesse, os ingleses levaram mudas de seringueiras para o Oriente, onde o vegetal se adaptou bem, propiciando condições de desenvolvimento e posterior oferta de látex ao mercado mundial. O látex oriental adentrou o mercado internacional no início do século XX e a produção oriental no segundo decênio desse século, a preços bem mais acessíveis 5, havia superado a brasileira, levando os Estados da região Norte à falência: Produção racionalmente organizada, com abundância de capitais, fretes mais baratos, técnicas mais modernas de extração e coagulação do látex, mão-de-obra abundante e barata, custos de produção menores e produtividade maior e controle das condições políticas fizeram com que a borracha do Oriente suplantasse a frágil e nativa produção da borracha extraída da floresta amazônica (CÁCERES, 1993, p. 234). Após o declínio da extração e oferta amazônica do látex, foi criada a borracha sintética, fato que reduziu significativamente a importância da borracha natural no mercado mundial. Após contextualizar historicamente a região em foco, passaremos a seguir a uma breve explanação sobre a situação educacional dos habitantes da região pesquisada. Situação das escolas das localidades pesquisadas Considerando que o grau de instrução dos informantes é um fator de suma importância para a pesquisa, uma vez que influencia diretamente o léxico e o falar dos indivíduos, julgamos importante apresentar um esboço da situação educacional dos habitantes das localidades pesquisadas a partir de dados coletados no site do IBGE. Os resultados obtidos por meio do recenseamento realizado em 2010 demonstram que a densidade demográfica do município de Oiapoque (AP) é de 0,91 hab./km2, e a localidade conta com a porcentagem de 95% dos 5 “Com efeito, ao introduzir-se a borracha oriental de modo regular no mercado, depois da Primeira Guerra Mundial, os preços do produto se reduziram de forma permanente a um nível inferior a cem libras por tonelada” (FURTADO, 2003, p. 133). 315 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 estabelecimentos escolares de nível pré-escolar e fundamental, e apenas 5%, de nível médio 6, dados que apontam para a possibilidade de baixo nível de escolaridade dos habitantes. Já em Cruzeiro do Sul (AC), a distribuição de estabelecimentos escolares no município respeita a seguinte porcentagem: 20,9% das escolas são de nível pré-escolar; 74%, nível fundamental; e apenas 5,1%, nível médio. Isso nos leva a crer que a escolaridade média dos habitantes não é elevada, tendo grandes possibilidades de estar abaixo da média nacional, já que em todo o país há 9,1% de escolas de nível pré-escolar; 53,3% de nível fundamental e 37,4%, de nível médio. Guajará-Mirim (RO), por seu turno, conta possivelmente com a média de escolaridade de seus habitantes semelhante à realidade das outras duas localidades mencionadas, pois o número de escolas no município de Guajará-Mirim (RO) se assemelha aos números de Oiapoque (AP) e Cruzeiro do Sul (AC). Apresentação dos dados e discussão A partir de dados levantados dos inquéritos linguísticos realizados nas três localidades citadas, as variantes fornecidas como resposta à pergunta 157 do Questionário Semântico-lexical (QSL), que busca designações para o conceito “o brinquedo feito de uma forquilha e duas tiras de borracha, que os meninos usam para matar passarinho”, foram analisadas tanto quantitativamente quanto qualitativamente, considerando a variação diatópica e diageracional, sob a perspectiva léxico-semântica. Foram documentadas apenas duas variantes lexicais ao consultar os doze inquéritos que serviram de suporte para o levantamento dos dados a serem analisados nessa pesquisa: baladeira e estilingue. O Gráfico 1, a seguir, apresenta a distribuição diatópica e percentual das ocorrências dessas variantes, na totalidade das respostas fornecidas pelos informantes. Observa-se que a variante estilingue não foi mencionada apenas na localidade de Guajará-Mirim (RO). Como primeira resposta, onze dos doze habitantes das localidades em foco mencionaram a variante baladeira, o que corresponde a 91,6% das ocorrências; e apenas um informante de Oiapoque (AP) lançou a variante estilingue como primeira resposta (8,4%). Já Cruzeiro do Sul (AC) registrou o item lexical baladeira em 66,6% das respostas. Considerando todas as ocorrências, vê-se que a variante baladeira compõe 80% dos casos; e apenas 20%, estilingue. 6 Os percentuais constantes no tópico dedicado a questões históricas foram extraídos do sítio do IBGE. Disponível em <www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm>. Acesso em 27 ago. 2011. 316 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Gráfico I – Designações para “estilingue” na região Norte do Brasil – perspectiva diatópica Do ponto de vista diageracional, considerando o conjunto das três localidades e todas as respostas para a pergunta em questão –, tem-se que a variante estilingue ocorreu entre os jovens em 66,6% dos casos, e consequentemente apenas 33,3% dos idosos mencionou a variante em questão. Todos os informantes mencionaram a designação baladeira, conforme se observa no Gráfico 2 a seguir: 317 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Gráfico II Designações para “estilingue” na região Norte do Brasil – perspectiva diageracional No dicionário de Ferreira (2004), a variante baladeira é definida como regionalismo do Acre e de Pernambuco, e há a remissiva para o verbete atiradeira. Esta, por seu turno, é definida como “forquilha de madeira ou de metal, munida de elástico, com que se atiram pequenas pedras” (FERREIRA, 2004), e há vários sinônimos registrados7: baladeira, baleeira, beca, bodoque, badoque ou badogue, estilingue, funda, peteca, seta, setra. Já no dicionário Houaiss (2001), baladeira também é dicionarizada como regionalismo do Acre e de Pernambuco, sendo definida como “mesmo que atiradeira” (HOUAISS, 2001). A variante atiradeira é classificada como um regionalismo, pelo mesmo lexicógrafo, na seguinte acepção: “arma ou brinquedo infantil para arrojar pedras ou objetos afins, de dimensões reduzidas, que consiste numa funda de material elástico, geralmente borracha, presa às extremidades da bifurcação de uma pequena forquilha de madeira, plástico ou metal” (HOUAISS, 2001). As definições registradas nos dicionários mencionados estão muito próximas ao conceito constante na pergunta 157 do QSL. O que ocorre é que nenhuma das obras lexicográficas apresenta baladeira como regionalismo de uma região político-administrativa (região Norte), mas registram apenas como de duas Unidades da Federação: Acre e Pernambuco são mencionados como Estados a que pertence a variante regional em pauta, informação incompleta em relação àquela evidenciada pelos dados coletados nesta pesquisa, uma vez que a designação 7 Segundo Ferreira (2004), os sinônimos apresentados são utilizados “em vários pontos do Brasil”. 318 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 baladeira foi registrada não somente em Cruzeiro do Sul (AC), mas sim nas três localidades estudadas. Pesquisa realizada por Isquerdo (2007) aponta que a variante baladeira foi registrada em todas as localidades, por exemplo, da rede de pontos do Atlas Linguístico do Amazonas, o que confirma a tese de que essa designação não se configura apenas como um regionalismo do Acre e de Pernambuco, conforme consta nos dicionários mencionados neste trabalho. Outro dado importante refere-se à distribuição espacial da designação estilingue, por exemplo, em Minas Gerais (EALMG, 1977): é a variante mais produtiva em 79% das localidades, e “o percurso dessa variante no mapa permite afirmar que se trata de forma inovadora de influência paulista ou carioca que se disseminou para o Estado de Minas Gerais” (ISQUERDO, 2007, p. 537), o que reitera a hipótese levantada de que a variante estilingue pertence à norma do eixo linguístico padrão Rio/São Paulo, e que se trata de forma inovadora nas localidades em pauta neste estudo. Além disso, não há registro da variante baladeira no Estado mineiro. No Estado do Paraná (ALPR, 1994) ocorre situação semelhante à descrita, em que estilingue também se mostra a variante mais produtiva em 75% das localidades investigadas, e que “a distribuição diatópica de estilingue pelo território paranaense aponta para a forte influência mineira e paulista que se iniciou em todo o norte do estado” (AGUILERA, 2004), influência desencadeada pelo ciclo do café – fazendeiros se fixaram no norte do Paraná devido à terra roxa, que atende às necessidades do cultivo do café. Apesar dos intensos fluxos migratórios ocorridos por questões econômicas, conforme foi abordado no tópico de contextualização histórica (fato que deslocou indivíduos das mais diversas origens rumo à região Norte do Brasil, abrigando parte da norma linguística lexical de outras partes do país), nota-se que a variante regional baladeira predomina dentre as escolhas linguísticas dos nortistas das localidades estudadas, possivelmente “porque não tem sido tradição os habitantes da região Norte se deslocarem em grandes levas para as demais regiões brasileiras. Ali ocorre o contrário: a região tem dado guarida a grandes contingentes de brasileiros oriundos de diferentes regiões” (COSTA, 2010, p. 514); isso faz com que o léxico regional não “caminhe” para outras localidades. Considerando, então, que o vocábulo baladeira é um regionalismo da região Norte, podese dizer que essa forma ainda resiste nas localidades interioranas aqui estudadas, mas apresentando sinais iniciais de “competição” com a variante inovadora8 estilingue, com tendência a ser adotada pelos mais jovens, conforme se observa nos comentários dos informantes: Ponto 001/ informante 4 (sexo feminino; segunda faixa etária) 9: INFORMANTE – Estilingue que eles chamam agora, antigamente é baladeira. INQUIRIDOR – Mas aqui ainda as pessoas chamam de baladeira? 8 9 Inovadora na região estudada. Na citação foi respeitada a norma linguística do informante. 319 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 INFORMANTE – Uns chama baladeira, outros chama estilingue também. A fala da informante aponta para a coexistência entre as duas designações nas localidades estudadas. Em outro comentário, há a confirmação do caráter regional da variante baladeira. Durante a realização do inquérito linguístico, a informante 2 (sexo feminino; primeira faixa etária) do ponto 019, sobre a designação para o conceito em foco, afirma : “Estilingue. A gente chama de baladeira”. Essa passagem evidencia que a informante tem consciência de que a designação estilingue é utilizada em outras regiões do país, mas que naquela localidade a designação comumente adotada é baladeira. Com isso, fica evidente que as localidades interioranas tendem a ser mais conservadoras do ponto de vista linguístico, e que a forma linguística utilizada no eixo linguístico considerado padrão (Rio/São Paulo) está sendo introduzida pelos mais jovens, possivelmente devido à influência do padrão imposto pela escola, apesar da possível baixa média de escolaridade dos habitantes locais. Considerações finais Este trabalho permitiu a visualização de aspectos da norma linguística regional do Norte do Brasil. Notou-se que as localidades interioranas exploradas ainda se mostram conservadoras do ponto de vista lexical, considerando que o brinquedo de origem indiana trazido para o Brasil pelos portugueses (cf. MACHADO, 2003 10) tem como designação mais produtiva a palavra baladeira, apesar da influência da escola e da disseminação do léxico “do eixo linguístico Rio/São Paulo, que se considera como o português brasileiro padrão, isto é, a variedade de referência” (BIDERMAN, 2001, p. 136). A coexistência das formas linguísticas conservadora e inovadora, neste estudo, não se mostrou significativa, haja vista que 80% das respostas (primeira e segunda) foram a variante baladeira. Esta mesma forma linguística, considerando apenas a primeira resposta, alcançou o índice de 91,7% das ocorrências, levando-nos a crer na possibilidade de os habitantes das localidades em foco terem poucos anos de estudo – considerando dados expostos sobre a distribuição do número de escolas por nível em cada localidade, infere-se que a procura por escolas de nível médio seja pequena, ou seja, muitos habitantes não chegam a cursar esse nível –, e com isso a escola ainda exerça pouca influência sobre as escolhas lexicais dos falantes. Além do exposto, a região Norte do Brasil, nas últimas décadas, não tem se configurado como polo de atração de fluxos migratórios tão intensos, o que talvez justifique o conservadorismo lexical observado, já que a variante estilingue, presente na norma de prestígio 10 Disponível em <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=464&Itemid=181>. Acesso em 06 ago 2011. 320 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 do eixo linguístico padrão, parece não ter tanto espaço na norma linguística das localidades em pauta. Há que se considerar, também, que com o desenvolvimento da tecnologia e com a diminuição do número de habitantes na zona rural, os brinquedos produzidos manualmente, nos grandes centros, perdem espaço para os produtos tecnológicos desenvolvidos para fins de entretenimento, tal como o vídeo game, por exemplo. Esse quadro, contudo, pode ser bem distinto nas localidades estudadas, por serem municípios distantes dos grandes centros urbanos. Ficou evidente, frente ao exposto e dentro dos limites deste trabalho, a importância das pesquisas geolinguísticas para a documentação da norma lexical de determinado limite espaçotemporal e, consequentemente, o valor dos atlas linguísticos como fonte para as obras lexicográficas, à medida que documenta in loco os regionalismos lexicais, o que lhes confere o status de fonte segura desse tipo de dado lexical. THE ESTILINGUE IN THE NORTH REGION OF BRAZIL: ANALYSIS OF ASSIGNMENTS DOCUMENTED BY THE ALIB PROJECT ABSTRACT: Considering that the world view of a speech community is evidenced by the lexical level, it is possible, through the regional lexicon study, to abstract historical-cultural elements from the group which inhabits the local under study. This work presents initial results of the lexical study, based on geolinguistics data of semantic area games and entertainment for children from the Lexical-Semantic Questionnaire of the Project Atlas Linguístico do Brasil - Project ALiB, focusing on the appointments obtained from the question 157 from the Lexical-Semantic Questionnaire, documented by linguistic surveys conducted by the project team ALiB in three strategic locations in the North region of Brazil: Oiapoque (AP), Cruzeiro do Sul (AC) and GuajaráMirim (RO), analyzing the diatopics variations under the lexical-semantic perspective. The four informants in each locality were selected according to the following criteria: age - 18 to 30 years old and 50 to 65 years old – from both sexes who have not spent more than a third of their lives in another linguistic region and must have only primary education. It was realized that the regional signs to the concept mentioned, as it happens to the nomination baladeira, still remains in the lexicon of the inhabitants of three villages, despite the influence of the school and spreading by the media of the lexicon which is considered standard by the inhabitants of linguistic axis Rio - Sao Paulo, particularly the variant estilingue. Keywords: Lexicon. Estilingue. North region of Brazil REFERÊNCIAS: AGUILERA, V. de A. Subsídios para a história do português paranaense: primeiros passos. In: Encontro do Círculo de Estudos Linguísticos do Sul, 6, 2004, Florianópolis, SC. MIOTO, Carlos et al. (orgs.). Anais... Florianópolis, CELSUL, 2006. Disponível em <http://www.celsul.org.br/Encontros/06/Individuais/168.pdf >. Acesso em 14 ago 2011. 321 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 BERNARDES, E. L. 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Dessa forma, como ponto importante para o discurso, tem-se a questão das modalidades veridictórias. Em busca da comprovação de sua descoberta, Horácio empenha-se para ver o pé da jovem, mas não consegue realizá-lo, uma vez que ela o impede de todas as formas. Na avaliação do nível discursivo, as figuras de Laura, do vestido, da mãozinha recobrem o tema da identidade da dona da botina; são figuras que o discurso organiza para dificultar o descobrimento da verdadeira dona do objeto. Palavras-chave: Semiótica. Modalidades Veredictórias. Nível discursivo Da origem do objeto Esse artigo apresenta informações retiradas de um corpus, sua origem corresponde ao recorte do cap. II, referente à dissertação de mestrado, defendida em 23 de março de 2011, na UFMS, intitulada “Um olhar semiótico sobre a figuratividade e a Intertextualidade em “A Pata da Gazela”, de José de Alencar, neste o objetivo é explanar os caminhos percorridos durante o processo de análise, frisando como foram investigados alguns dos principais recortes que fazem parte da pesquisa, tendo como temática a investigação da referida obra literária, sob o respaldo da semiótica greimasiana discursiva. Quanto às hipóteses levantadas citam-se: a) Qual a relação entre os textos: “A Pata da Gazela” de José de Alencar, “Cinderela” de Perrout e a “Fábula do leão amoroso” de La Fontaine? b) Por que essa obra romântica, “A Pata da Gazela”, no seu percurso narrativo final, apresenta um de seus personagens lendo a “Fabula do Leão Amoroso” de La Fontaine, fato que levou ao 1 Mestre em Estudos de [email protected] Linguagens: Linguística e Semiótica, UFMS, Campo Grande - MS. 324 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 levantamento das indagações, dentre elas, qual o sentido desse final no contexto da obra romântica? Como toda investigação exige um respaldo científico, busquei amparo na ciência da significação, a semiótica discursiva, uma vez que, como afirma um dos grandes estudiosos da área, Fiorin (2008, p.123), “o objeto da semiótica não é o sentido, mas sua organização; não é o conteúdo, mas sua forma”, sob esse conceito buscamos investigar na arquitetura de “A Pata da Gazela”, o estudo das relações internas do romance com outras obras ( o conto de Cinderela e a Fábula do Leão Amoroso), resultando numa possível intertextualidade. Quanto ao uso da intertextualidade, no romance de Alencar é outro ponto a ser analisado, como ele relacionou os três textos e suas figuras, para que a obra mantivesse sentido e harmonia de um romance de época? Para prosseguimos antes de tudo é necessário traçar o caminho, pelo qual o processo de investigação seria trilhado, desde a decodificação das isotopias figurativas, as figuras e o (s) tema (s) abordado (s), sabendo que para que os sentidos fossem construídos, segundo a teoria semiótica do discurso, tais figuras, receberiam dentro do contexto da obra de Alencar um valor semântico, no qual resultaria no tecer dos jogos de relações e significações entres as figuras dos demais textos “Cinderela” e a “Fábula do Leão Amoroso”, iniciando um jogo de relações, no qual resultaria no recobrimento de um determinado tema, conforme explanaremos no decorrer desse artigo, quanto a semântica discursiva, temos a seguinte definição: A semântica discursiva, ao investir figurativamente os conteúdos, cria efeitos de realidade que ajudam a persuadir e a convencer, mas são os mecanismos sintáticos do discurso que promovem a relação entre enunciador e enunciatário. [...] A sintaxe discursiva, em resumo, explica as relações entre enunciação e enunciado-modalização virtualizante do sujeito do enunciado, delegação do saber, relações entre actantes e atores discursivos e actantes narrativos, instauração do tempo e do espaço do discurso – e entre enunciador enunciatário – implicitação de conteúdos, realização dos atos de linguagens, procedimentos argumentativos - como recursos discursivos para comunicar valores e convencer e persuadir o enunciatário. (BARROS, 1988, p.110-112). A autora explana sobre os procedimentos que interagem no processo discursivo, na obra “A Pata da Gazela”, observamos que os temas e figuras estão postos em relação para dar sentido e forma ao ambiente, tornando real um mundo fictício, com pessoas, espaço, tempo e fatos ocorrendo a partir da busca dos personagens masculinos para encontrar a mulher amada e, possivelmente, a dona da botina perdida, tema que movimenta o enredo da obra, em torno deles, organizam-se as figuras e temas principais desencadeando fatos, acontecimentos e mal entendidos, relacionados à questão do ser e do parecer. Ser x Parecer, o jogo das relações veredictórias em “A Pata da Gazela 325 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Explanaremos nesse item as questões discursivas referentes às modalidades veridictórias, embora pertencentes ao nível narrativo, abrigam elementos com nítida consequência na passagem para o nível discursivo; por isso, devem ser levadas em consideração, auxiliando na discussão de certas relações entre os atores de “A Pata da Gazela”. É importante ressaltar que em relação ás questões das modalidades verdictórias, a semiótica dedica-se apenas a predicados modais manifestados na superfície do texto, situando a modalidade em nível mais geral e abstrato: ela fala em “valores modais”; desse modo, o /saber/ ou /poder fazer/ (as barras oblíquas servem para indicar que se trata de valor modal) de um sujeito podem ser expressos por predicados de “saber” e de “poder”, mas igualmente por atores ou objetos figurativos. As modalidades fundamentais são limitadas: as que modalizam são “dever”, “saber” ou “poder”, as quais modificam os enunciados de “fazer” ou de “ser”; há também o “fazer” que modaliza o “fazer” (fazer fazer) e, consequentemente, todas as modalizações do fazer (fazer crer, fazer saber, etc), podendo combinar-se entre si no quadrado semiótico, desde que se aplique a dupla regra da asserção e da negação, alternadamente, em seus enunciados constitutivos. Antes de adentramos no contexto da análise propriamente, vale apresentar os personagens principais de “A Pata da Gazela”: trata-se de uma obra romântica, cujo espaço figurativizado é o Rio de Janeiro Imperial, tendo como personagens principais: Amélia e sua prima Laura, ambas pelos trajes e pela carruagem parecem e são ricas, da alta sociedade e estavam a fazer compras ou a passeio, figurativizado pelo luxo do carro, os valores da cultura (são ricas, andam de carruagem luxuosa, vestem vestidos de seda, fazem compras, etc.) e guardam entre sim um segredo, relacionando- as com a figura da princesa em Cinderela. Horácio, o jovem rico e desocupado hora chamado também como o leão, o lei dos salões, o príncipe da moda, com todos os adjetivos que se remetem a ele, é um homem boêmio e sem ocupação social, sujeito que figurativiza a nobreza da alta sociedade do Rio, quando a ele é remetido o título de príncipe,o nobre superior aos outros, por seu status social, relacionando - o com o príncipe de Cinderela, como também, sujeito que representa os vícios da cultura (ser desculpado, boêmio, vaidoso, fazer uso de grifes famosas, aquele que supervaloriza a beleza para consumo e não a essência do ser humano com suas virtudes), contudo no decorrer na narrativa termina como o leão da fracassado da Fábula de La Fontainne, aquele que se destituiu de seus valores, sua própria natureza por uma paixão e por conta dela se deixara abater pelo mais simples rival, sendo a sua vaidade, uma arma contra si mesmo. O outro personagem o jovem Leopoldo, pelas características apontadas sobre sua pessoa, levam a comprovação de ser um jovem simples sem posses, ou seja, não rico e apontando como sujeito em estado de luto destituído de alegria pela vida e de amor próprio, mas que no decorrer da narração ganha vida e brilho por conta de um amor despertado por um sorriso, o qual lhe restitui o valor eufórico pela vida. 326 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 É o sujeito que figurativiza os valores da natureza, a verdade, o amor a valorização da essência do sujeito, também figurativizando a Cinderela, uma simples jovem aldeã, que sofre a transformação de seu estado devido ao casamento, assim como Leopoldo, no final da narrativa, casa-se com Amélia e passa do estado de disforia para euforia, tendo ele e Cinderela os valores morais como elemento principal da vida e tais valores lhe glorificam com a conquista do amor que tanto almejam. Contudo, a figura da botina em “A Pata da Gazela”, é o elemento de valor incalculável tanto para as jovens, devido ao segredo que esse objeto guarda de ambas, como também para Horácio, esse último, com seu excesso de luxúria e vaidade, julga ser valoroso apenas a beleza carnal, especificamente a beleza da mulher, durante a narrativa as olha feito um apreciador de estátuas vivas e já com os sentidos gastos pelo uso, não encontra em nenhuma valor, até o momento em que acha na calçada uma botina perdida, e apaixona-se pelos contornos e o olor da dona do pezinho, a quem busca como uma caça e um grande prêmio, desse modo botina é a chave do segredo, que pode trazer a tona a identidade de sua dona, assim como ocorreu em Cinderela, com o sapatinho de cristal,objeto que levou o príncipe a encontrar a jovem misteriosa do baile, por quem se via apaixonado. A partir das ações desses atores, “A Pata da Gazela” é traçada com um encanto e entrelaçamento de textos, cujas figuras transitam de um texto para outro, visando hora dar pistas ou esconder dos atores a identidade de sua amada, presente também a cenas do baile, onde o príncipe encontra a princesa, remetendo aos encontros de Leopoldo e Amélia na casa da dona Clementina. Como se pode observar no breve resumo do romance de Alencar, as pistas que levam as relações entre os textos são os elementos que formam o discurso: as figuras, os espaços e os temas, recobertos por isotopias figurativas, dando margem no discurso a um jogo de ser e parecer, fazendo com que as modalidades verectórias sejam postas em práticas para que os autores possam no decorrer das ações, se identificarem dando início ao jogo do parecer x ser. O espaço na Rua da Quitanda é o ponto de partida para o início da narrativa, dentro de uma carruagem as duas moças aguardam pelo mancebo, que ao correr para entrar na carruagem deixa cair do embrulho, um objeto valioso para ambas, ( uma botina) ,não pelo valor em si dessa botina mas pelo valor efetivo e estético que ele recobria para uma dessas jovens. A botina aqui é um objeto que guarda a identidade da sua dona, mas também esconde algo que as possam denegrir perante a sociedade ou ferir-lhes a vaidade, enquanto no conto de Cinderela, o sapatinho de cristal, também era o portador do segredo, de sua identidade ou daquela que parecia ser princesa, mas não era, a presença da botina, remete na memória do leitor ao conto de Cinderela de Perrault, onde o príncipe busca com um sapatinho em mãos a jovem misteriosa que conhecera no baile. Exemplos de análises veredictórias: o ponto de vista dos atores Horácio e Leopoldo, em a “Pata da Gazela”, sob o objeto desejado. 327 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Antes iniciarmos as exemplificações, vale frisar que, a sintaxe discursiva, analisa as projeções actanciais, espaciais e temporais da enunciação no enunciado, bem como os mecanismos argumentativos em sentido amplo, que levam o enunciador a fazer o enunciatário a crer no enunciado, aceitando o contrato veridictório proposto; enquanto a semântica discursiva estudará os investimentos sucessivos realizados no percurso narrativo. Focando na questão da semântica discursiva, obtivemos ferramentas para concluir a análise, investigando os valores investidos nas figuras da “Pata da Gazela”, levando ao processo de criação de sentido e fornecendo informações também sobre as relações do texto de Alencar com o conto de Perrault e a fábula de La Fontaine. . [...] no nível do discurso, o contrato fiduciário é um contrato de veridicção, que determina o estatuto veridictório do discurso. A verdade ou a falsidade do discurso dependem do tipo de discurso, da cultura e da sociedade [...] O contrato de veridicção determina as condições para o discurso ser considerado verdadeiro, falso, mentiroso ou secreto, ou seja, estabelece os parâmetros, a partir dos quais o enunciatário pode reconhecer as marcas da veridicção que, como um dispositivo veridictório, permeiam os discursos. A interpretação depende, assim, da aceitação do contrato fiduciário e, sem dúvida, da persuasão do enunciador, para que o enunciatário encontre as marcas de veridicção do discurso e as compare com seus conhecimentos e convicções, decorrentes de outros contratos de veridicção, e creia, isto é, assuma as posições cognitivas formuladas pelo enunciador. (BARROS, 1988, p. 93-94). Segundo a autora, o enunciador não produz discursos verdadeiros ou falsos, mas constrói discursos que criam efeitos de sentido de verdade ou de falsidade. Dessa forma, por exemplo, um parecer verdadeiro é interpretado como um ser verdadeiro, a partir do contrato de veridicção assumido. Um exemplo que dessa veredicção encontrada na Pata da Gazela, pode ser visto no seguinte recorte, quando Horácio deduz por sua intuição que a botina pertencera à Laura, levado pela aparência física da moça, mais precisamente pelo tamanho de suas mãos, ele infere que, pela similaridade da pequenez, aquela mão poderia ser irmã do pezinho idolatrado. __Aquela mão é irmã do meu adorado pezinho! Não tem a graça dele, sem dúvida, nem se compara com aquele mimo de amor; mas há um certo ar de família, um quer que seja!... Assim cogitando, Horácio chegara à porta de um camarote, e pela fresta fitara com disfarce o olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena e calçada por uma luva muito justa, custava a segurar o binóculo de madrepérola. O moço, apenas reconheceu o vestido de seda violeta e a mãozinha que lhe servia de fanal, abaixou o olhar para a fímbria do vestido a ver se descobria alguma coisa, o peito, a sombra ao menos do pezinho mimoso, do ídolo de sua alma. Mas não foi possível: o vestido arrastava no chão; nenhum movimento fazia ondular a seda; e contudo o mancebo ali ficou imóvel , palpitante de emoção, como se esperasse dos lábios o monossílabo que devia decidir seu destino. 328 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 [...] Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura. A atenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu agrado;cumpria-lhe agradecer. Fitando com mais força o olhar na pupila da moça como para travar-lhe da vontade, Horácio abaixou lentamente esse olhar até a fímbria do vestido de charmalote com uma insistência significativa. Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtraiu ás vistas ardentes do leão. __É ela! exclamou o coração do mancebo afogado em júbilo. Não há dúvida. Para sentir esse pudor exagerado e incompreensível é preciso ter ali oculto um pé como aquele que eu sonhei. Um pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um céu! ...è o pudor da violeta, que esconde na sombra; é o pudor da pérola, oculta na concha, é o pudor do diamante sumido no seio da terra, é o pudor da estrela, imergindo-se no azul. (ALENCAR, 2006, p.23:28). Nessa passagem o indício de actorialização, que se refere à parte do corpo de Laura e ao seu pudor, revestido por Horácio com elementos da natureza (concha, sombra, seio da terra, estrela azul), contrapondo-os com elementos da cultura que escondiam à jovem (camarote, luvas, vestido de charmalote, vestido de seda violeta, binóculo, porta do camarote, fresta da janela). Pautado no crer ser verdadeiro, o ator julga já saber a identidade da moça misteriosa. Na cena, Horácio passa a crer que seja Laura a dona da botina e, consequentemente, do pezinho, objeto desejado por ele; assim, unem-se as modalidades do ser e do parecer, uma vez que o sujeito correlaciona o parecer verdadeiro a um ser verdadeiro, que, no momento, mesmo os enunciatários desconhecem. Nesse sentido, julga ser Laura a mulher a quem procura, por uma avaliação sua da mãozinha de moça, considerando a possível semelhança entre a mãozinha e o pé (ser pequenina a mão). Em busca da comprovação de sua descoberta, Horácio empenha-se para ver o pé da jovem, mas não consegue realizá-lo, uma vez que ela o impede de todas as formas. Na avaliação do nível discursivo, as figuras de Laura, do vestido, da mãozinha recobrem o tema da identidade da dona da botina; são figuras que o discurso organiza para dificultar o descobrimento da verdadeira dona do objeto. Um dos elementos responsáveis pela manutenção do sentido recebe a denominação de isotopia. Segundo Denis Bertand (2003, p.157), a isotopia mantem a duração de um determinado efeito de sentido ao longo da cadeia discursiva, não dizendo respeito à categorização em si, mas ao desdobramento das categorias semânticas ao longo do discurso. As isotopias são classificadas, em relação às categorias enunciativas que ajudam a construir, como: temporal, espacial e actorial, atuando como investimentos semânticos que, em última instância, respondem pela coerência textual. Nas isotopias actoriais, por exemplo, em “A Pata da Gazela”, tais desdobramentos semânticos revestem de valores os atores Amélia e Laura, já a partir da primeira cena do romance: “Dentro do carro havia duas moças; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada no talhe, era talvez mais linda que sua companheira” (ALENCAR, 2006 p.11). 329 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Notamos também, uma relação entre o espaço físico de “A Pata da Gazela” e “Cinderela” de Perrault, neste último, o espaço é o do reino, onde há rei, príncipes, princesas e todos aqueles que compõem a corte, no primeiro, o espaço é o da corte na qual prevalece à presença ironizada de um rei (da moda), de um leão, atributos dado a Horácio pela sua virilidade e seu comportamento, daquele que está à procura de uma presa nova, a figura do leão também aponta para aquele que domina o espaço onde se encontra, por sua superioridade, traços investidos na assimilação de Horácio ao leão. Era noite fechada; o céu, carregado de nuvens, anunciava próxima borrasca. A frente da casa do negociante estava às escuras; contudo quem observasse bem, perceberia a coarse pelos interstícios das janelas um tênue reflexo de luz interior. No portão da chácara a meio cerrado, ninguém aparecia. O leão penetrou no jardim. Nesse momento um carro parou à porta da casa: três pessoas saíram dele. Em um, Horácio viu, estremecendo, roupas de sacerdote. Só então refletiu o moço no aspecto soturno do edifício. [...] Por acaso avistou o leão a mangueira, e subindo sem hesitar, achou-se justamente fronteiro às janelas iluminadas. Em princípio a claridade súbita ofuscou-lhe a vista, e não pode ele distinguir o que se passava no interior. Actorialização Espacialização Temporalização O leão/ três pessoas/ um carro Um sacerdote/ o moço/ Aspecto soturno do edifício O leão/ janelas iluminadas Ele/ deslumbramentos dos Olhos/ deslumbramento d’ alma Ele/ um altar erguido Círios acesos/ sacerdote oficiando/ Amélia e Leopoldo de joelhos/ dois amigos como testemunhas/ Sales e D.Leonor Casa do negociante No portão da chácara No jardim A porta da casa Janelas Reflexo de luz interior Noite fechada, céu carregado de nuvens Próxima borrasca Estavam escuras Reflexo de luz Penetrou no jardim Neste momento parou Saíram/ avistou uma mangueira subindo sem hesitar/ achou-se justamente / fronteiro a janela/ em princípio/ ofuscou-lhe a vista/ distinguir o que se passava via e duvidava/ serviram/ tinha visto Mas afinal o deslumbramento dos olhos cedeu ao deslumbramento d’alma. Ele via, e duvidava. Um altar erguido, círios acessos, o sacerdote oficiando, Amélia e Leopoldo de joelhos, ao lado Sales, D. Leonor, e dois amigos que serviam de testemunhas: eis o quadro que se ofereceu aos olhos de Horácio. Tinha visto na comédia da vida muitos lances dramáticos, mas nenhum tão imprevisto e curioso. (Ibid., p.95) 330 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 No trecho, ocorre o desfecho de “A Pata da Gazela”, em que Horácio recebe de Amélia uma ação pragmática de castigo definitivo, a qual se desdobra em três momentos: no primeiro, ao ouvir-lhe a conversa da adoração pelo pezinho e não por sua pessoa, castiga-o com a ilusão (usando uma botina de Laura), para que pense ser ela a dona do pé aleijão; no segundo, ao ver que ele a observava na rua, ergue a barra do vestido ao caminhar, para que, propositalmente, veja seus pés, como a mostra de um troféu ao perdedor; e no terceiro, casa-se com Leopoldo numa cerimônia íntima, pois, como já fora noiva, não queria mostrar-se em sociedade novamente com o título de noiva, com o que oferece a Leopoldo a sanção pragmática do prêmio, seu amor e os tão desejados pés pelos quais, Horácio se deixara dominar. Observamos que a isotopia temporal ajuda a denotar e conotar, para Horácio, uma situação de tempestade que está por vir, no contexto climático, pois realmente chove no momento em que se ele se encontra no jardim, e no existencial, pois sofrerá a grande desilusão ao ver a dona do pezinho casando-se com outro, como se seu mundo viesse a desabar, pois ele, que nunca perdera uma conquista, agora se via em posição de derrotado. A isotopia espacial remete à exclusão do interior, pois para aquele, a quem todas as portas, antes, estavam abertas, é barrado, colocado em espaço externo, no jardim, junto à árvore e sob céu aberto, exposto a chuvas e trovoadas, como um animal selvagem em seu meio. Na isotopia actorial, tem-se a referência do ator ao leão; ao perder os sentidos, a razão se vai, levando-o a se portar como um selvagem: pula o muro, entra no jardim, sobe na árvore; esquecendo-se dos valores da cultura, do homem elegante, age como um invasor, um ser em estado de caça, que adentra o espaço onde julga encontrar sua presa. Quando vê a cena do casamento de Amélia e Leopoldo, o ator reflete, recuperando a razão e a condição humana, voltando a ser tratado como Horácio. Esse ator e o leão da fábula relacionam-se pela transformação vivida, ainda que de modo invertido: um quer humanizar-se em favor de uma paixão, negando sua natureza e morrendo atacado por uma manada de cães; o outro, por um desejo e pelo prazer, perde os sentidos e os valores humanos, animalizando-se, e essa sua incapacidade de amar, segundo a condição humana, deixa-o à mercê dos caprichos de Amélia, que o derrota por meio de sua prudência e sabedoria. Quanto a Leopoldo, de acordo com a aparência vista por Horácio, nota-se que sua transformação ocorreu já no primeiro instante em que vira sua amada Amélia; relutou em suas dúvidas, mas prevalecera o amor acima de tudo, sendo compensado pelo reconhecimento do valor dos sentimentos acima de qualquer estética, e, financeiramente, conforme o costume da época recebera um bom valor como dote do pai de Amélia, transformando-se num homem, feliz e rico. Sua transformação ocorre de forma semelhante com a de Cinderela, que, ao ser encontrada por seu amado, recebe amor e prestígio social. Para finalizar a análise, observamos a cena da entrega do prêmio para Leopoldo: 331 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 [...] porém através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o tremor involuntário que agitava seu lindo talhe. __É meu presente! disse ela com timidez. E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de seda, atado com fita azul. Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de cetim branco, os mesmo que Amélia começara a bordar no dia seguinte ao baile. O moço enleado, não compreendia. Invisivelmente seu olhar desceu à fimbria do roupão. Sobre a almofada de veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas e de dois pezinhos divinos. Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra. __Calce! Leopoldo ajoelhou-se aos pés da noiva. (Ibid., p.96) A emoção do esposo se explica pelo fato de ele ter se casado com Amélia ainda acreditando que sua amada fosse aleijada. Contudo, apesar das primeiras emoções negativas que aquele aleijão lhe causara, o amor à essência de Amélia prevalecera em seu espírito; por isso, a surpresa do moço ao ver a beleza que eram os mimosos pezinhos da mulher amada. Em um típico final romântico, tudo termina bem – para os que encarnam os valores da virtude, é claro! Conclusão Relatamos nesse artigo uma breve exposição do trabalho que fora desenvolvido, buscando detalhar as informações, mostrando parte do processo de investigação do discurso, levantando hipóteses, pistas e comprovações da intertextualidade entre os textos relacionados: o conto de Cinderela de Perrault, a fábula de La Fontaine e a obra de Alencar, resultando numa aventura da escrita e da pesquisa, neste artigo visaramos compartilhar parte desse trabalho com público. O objetivo do artigo é apontar os caminhos percorridos em busca de sentidos semânticos que validassem as hipóteses levantadas, não se explana por inteiro a dissertação, não é o objetivo deste, mas apontar os caminhos percorridos, mostrando parte da análise, trechos de “A Pata da Gazela”, os quais serviram de ponto de investigação, por onde verificamos o uso de elementos discursivos como figuras e isotopias figurativas, as quais recobriram as temáticas da beleza e do amor,procuramos trilhar os caminhos da investigação, apontando como já mencionado alguns pontos. É indescritível a postura de um sujeito que passa de um simples leitor curioso, por haver se deparado com uma obra romântica, na qual em seu final difere dos demais, tendo uma metáfora como chave do mistério de todo o enredo “é verdade o leão deixou-se se esmagar pela pata da gazela”. O desvendar da obra aparentemente simples, “Pata da Gazela “ passa despercebida dentre as outras já consagradas de Alencar, mas misterioso mesmo é esse dom da escrita, dado a 332 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 poucos, o domínio de uma linguagem que atravessa séculos, gerações e adquire mais valor e sabor , quando lida sob a ótica de uma teoria científica, no caso a semiótica greimasiana. Ciência com a qual nos respaldamos para realizar as investigações e juntas construirmos ou desvendamos o real sentido implícito e as relações internas que ligam os textos de Cinderela de Perrault, a Fábula de La Fontaine, “A Pata da Gazela”, essa última criada por José de Alencar, num processo de intertextualidade e alusão, bem como conexões entre as figuras dessas três obras, o que resultou na delicadeza e encanto, assim como uma leitura agradável do referido romance. Em síntese pode concluir com esse trabalho que a intertextualidade fora construída por meio da figura da botina, um objeto que se torna uma pista para que Horácio, tratado como um dos príncipes da moda encontre a sua dona, por quem se vê apaixonado mesmo sem conhecer-lhe a identidade; assim, configura-se a intertextualidade com o conto de Perrault, no qual, após dançar com a jovem misteriosa, o príncipe se vê apaixonado e, com um sapatinho de cristal em mãos, desenvolve todo um percurso de busca da mulher amada pelo reino, com esse ato os nobres homens, se deixam inferiorizar pelo desejo de encontrar suas musas, assim como o leão da fábula, se inferioriza também pela paixão por uma linda jovem, no entanto desses três apenas o príncipe de Cinderela alcança seu objetivo, ele encontra e case-se com a jovem aldeã a qual conhecerá revestida por mágica como sendo uma jovem fidalga da corte, quando na verdade era uma simples órfã aldeã do reino. Em contrapartida Leopoldo é figurativizado como um simples aldeão, da corte do Rio Imperial destituindo de valores da cultura desde o traje ao estilo de vida, totalmente contrário ao de Horácio, mas que se vê em mutação durante o discurso e finaliza como Cinderela, casado, com posses e ao lado do seu amor, ambos foram recompensados por suas virtudes, enquanto o leão e Horácio, foram castigados por ser destituírem das suas virtudes. Esses dois textos (Cinderela e “A Pata da Gazela” têm em comum a figura de um príncipe, de um pezinho misterioso e de um sapatinho encantador - objetos que são utilizados como única forma para se encontrar a dona. Em Cinderela, para concretizar um amor e casar-se com a bela moça misteriosa que apareceu no grande baile da corte, por quem o príncipe se apaixonara; em “A Pata da Gazela”, por interesses particulares, para saciar o desejo de conquista de Horácio, que mantém uma paixão cega pelos contornos impregnados na botina e, como um caçador, busca fareja os passos de sua dona, sendo, contudo, traído pela autoconfiança. Apaixonados e por essa paixão, tornam–se submissos a seus subordinados ou inferiores é um tema que relaciona o texto de Alencar com a Cinderela e a Fábula do Leão Amoroso. O príncipe, assim como Horácio, busca por um pezinho, e por ele se submete a calçar o sapatinho de cristal em todas as jovens do reino, sem distinção de sua classe, porque a sua felicidade estava subordinada à dona do sapatinho; por isso, estava disposto a encontrá-la e casar-se com ela. Já Horácio, sem alternativa, submete-se a uma proposta de casamento como único meio de ver o pezinho idolatrado de Amélia, comprometendo sua liberdade por esse desejo de posse. 333 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Quanto ao leão amoroso de La Fontaine, também por uma paixão, pede a um pai que deixe casar-se com sua filha, o qual, não podendo negar-se a atender ao pedido do leão, pela sua superioridade e o risco contrariar a fera e ser devorado, impõe- lhe impõe algumas condições, as quais o levam a ficar indefeso perante os inimigos, mesmo os mais simples. Assim, a relação entre os atores dos três textos encontra-se em seu estado de paixão, que os submete a seus subordinados e os condiciona a um estado de felicidade, conforme a vontade do outro. Com o uso de figuras e do recurso intertextual, constrói-se Horácio herdando características do príncipe de Cinderela e do leão amoroso. Todos eles vêem a superioridade ruir conforme seus sentimentos, uma paixão que os deixa imprudentes incapazes de perceber a deteriorização de sua nobreza. THE GAZELLE'S PAWFROM THE PERSPECTIVE OF SEMIOTICDISCOURSE ABSTRACT: In orderto disclosethe paths followedthe Master's dissertationStudies inLanguages,whichanalyzed theliterary work: "The Gazelle's Paw"by José deAlencar, it is aclipping fromChapterII: Principles of analysisin "ThePawgazelle, "specifically thesub-topic that addressesthe question of beingin the workand opinion, and the attitude of the playersaboutthe scenes thatconfuse them. We tried topoint outinthistopic,a few momentswhere theplayersdribbletheappearance ofinvestigationsof the actors, especially Horácio.Thus,as an important issuefor speech,there is thequestion of howveridictórias. In search ofproof ofhis discovery, Horácioendeavors tosee thefoot of theyoung,but cannotdo it, since itpreventsall forms. In assessing thelevel of discourse, the picturesof Laura,dress,handcovers thetheme of identityof the ownerof theboots, they are figures thatorganizesthe discourseto hinderthe discoveryof the trueownerof the object. Keywords: Semiotics. Veredictórias modalities. discursive level REFERÊNCIAS: ALENCAR, J. de. A pata da gazela. 17ª Ed. São Paulo: Ática, 2006. AUGER, R. (Org.). Les Contes de Perrault. Paris: Sérvier, 1950. BARROS; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999. 334 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 BARROS, L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos: São Paulo: Atual, 1988. BERTRAND, D. Caminho da semiótica literária. Bauru, São Paulo: Edusc, 2003. FIORIN, J. L. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008. FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 14ª ed. São Paulo: Contexto, 2006. FIORIN, J. L. O dialogismo. In: Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006, 144p. LA FONTAINE. O euvres completes. Paris: Seuil, 1965. PERRAULT, C. Cinderela, coleção conta pra mim; ilustração Marcelo Tadeu Q. Martins; trad. Maria Cimolino, GraziaParodi. São Paulo: Rideel, 2000. PERRAULT. A Gata Borralheira. Adaptação Tatiana Belinky; ilustrações Agustí Asensio. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 335 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O gênero textual fórum na educação à distância: (Re)Conhecendo suas características e possibilidades Evelyn Fuzeta ALVES1 RESUMO: O artigo discute as possibilidades de exploração em atividades de ensino do gênero textual fórum no Ambiente Virtual de Aprendizagem da Educação à Distância – EaD. Focaliza com base em pesquisa bibliográfica, um recorte de pesquisa maior em fase inicial, de abordagem qualitativa, que está sendo desenvolvida no curso de Mestrado em Estudos de Linguagens, que analisa o gênero textual fórum em cursos de graduação à distância da Coordenadoria de Educação Aberta e à Distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Considerando que cada gênero tem propósito comunicativo definido ao ser selecionado para atuar em sua esfera de circulação, o gênero fórum - emergente no contexto das novas tecnologias de comunicação e informação - tem apresentado propósitos, funções, conteúdos e ações explorados em diversos níveis, satisfatórios ou não, de suas potencialidades colaborativas de realização linguística atribuídas. Partindo da noção de gênero como fenômeno social e histórico e da teorização bakhtiniana, a pesquisa contemplará a linguagem como interação, investigando as possibilidades que o gênero oferece em relação à modalidade de ensino em que está inserido e aos objetivos pretendidos em sua escolha como ferramenta de ensino-aprendizagem. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros textuais emergentes. Educação à distância. Ambiente virtual de aprendizagem. Fórum. Introdução O presente artigo focaliza as características do gênero textual fórum apresentadas por estudiosos da área, conforme pesquisa bibliográfica, produzido no ambiente virtual de aprendizagem da Educação Aberta e à Distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, examinando-se tanto os procedimentos de organização textual como também as variáveis sócio-históricas e as condições de produção que engendram o sentido do discurso produzido, relacionado ao contexto em que está inserido. Os estudos das linguagens manifestadas na internet adquiriram grande relevância nos últimos anos. Percebe-se nitidamente que as novas tecnologias de informação e comunicação – 1 UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens. Campo Grande – MS – Brasil. 79070-500 – [email protected]. 336 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 TICs - ganham destaque, com participação efetiva nas atividades sociais, sejam em espaços comerciais, de trabalho, de entretenimento, de estudo, de pesquisa. Isso posto, as linguagens verbais, não-verbais e sincréticas presentes nas TICs interagem e evoluem sincronamente com as manifestações dos diversos discursos que configuram a sociedade, a história e a cultura na emergente perspectiva espacial de circulação em questão, a internet. Segundo Marcuschi (2008, p.51), a língua tem como conceito ser “um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas”, permitindo ao homem interagir socialmente. Ainda em Marcuschi (2002, p.1), a relevância de se estudar as linguagens manifestadas nesse novo espaço é observada pelo poder que essa tecnologia possui “tanto para construir como para devastar” e que “seguramente, uma criança, um jovem ou um adulto, viciados em Internet, sofrerão seqüelas nada irrelevantes”. Observar as transfigurações ocorridas na linguagem e toda a potência criada em seu uso é também observar o mundo. Os avanços tecnológicos digitais são reflexos do desenvolvimento dos interesses e das necessidades reais da sociedade, questionando-se até a hipótese de um prejuízo na vida social de quem não está conectado ao mundo virtual. Com efeito, surgem produtos – computadores, celulares, datashow, notebooks, netbooks, IPad, IPhone e outras tecnologias – com funções dinâmicas e facilitadoras que contribuem para a formação da cultura eletrônica na vida contemporânea. A globalização da internet, a grande revolução no contexto midiático e a maior acessibilidade a tais produtos proporcionada nas últimas duas décadas, em especial ao computador, são vistas pelos professores como ferramentas de auxílio no ensino e na aprendizagem, exigindo, porém, conhecimento prévio suficiente das tecnologias para inseri-las nas abordagens educativas. Concretizando formas de comunicação potencializadas para um novo espaço de circulação e discussão, essa acessibilidade às TICs vem de um processo histórico natural pensando-se na EaD que é proposta hoje, também são geralmente recursos próximos das rotinas diárias dos envolvidos, sendo levados para o ambiente de ensino, elaborando uma interconexão da linguagem com a vida social e cultural estabelecida e muitas vezes até exigida. Assim sendo, as TICs oferecem para a linguagem um terreno arenoso para suas construções textuais, repleto de inovações e flexibilidades linguísticas e com suas implicações peculiares, pois são frequentes as atualizações das TICs e a mescla de subsídios para composição de seus gêneros. Conforme afirma Koch (1992), a linguagem tem diferentes concepções e pode ser sintetizada como ferramenta de comunicação, lugar de ação e interação e espelho do mundo e do pensamento, não podendo ficar à margem de todas as transformações coletivas, pois acompanha e reflete os movimentos dos seus usuários, construindo e desconstruindo as formas de uso nas situações emergentes desse novo contexto. 337 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A atividade humana exercida com as novas tecnologias em sala de aula se alia, entre outros fatores, a necessidade de aprender e ensinar melhor, dinamizar o ensino, torná-lo atrativo, ligá-lo ao grande canal de comunicação atual que é a internet, aproximar seus usuários, explorando as possibilidades que a rede oferece. Mas é preciso estar vigilante considerando-se as problemáticas da internet que se diferem de acordo com a circulação e com seus usuários, por isso é necessário aplicar a devida atenção ao universo das TICs ao trabalhar com seus recursos, porque conforme afirma Fiorin “Os Gêneros estão sempre vinculados a um domínio da atividade humana, refletindo suas condições específicas e suas finalidades”. (FIORIN 2006, p. 61), tornando-se importante a edificação da formação crítico-reflexiva dos envolvidos, das condições necessárias para a utilização para que as possibilidades e finalidades de ensino e de aprendizagem realmente aconteçam. A EaD é uma prática antiga que vem sendo modificada ao longo do tempo, mas possui como característica básica se adequar tanto de acordo com as ferramentas disponíveis no ambiente de ensino quanto à necessidade de seus usuários, recentemente incorporando o potencial das TICs em função de sua expansão, regulamentação e popularização adquirida. Neste novo ambiente para exercício do ensino e da aprendizagem, inserimos a linguagem e a língua. O formato da circulação influencia nas inovações que ocorrem com os gêneros discursivos2 selecionados para compor seu espaço, sendo realizadas pelos próprios indivíduos participantes. A esfera eletrônica da EaD pede que os gêneros textuais estejam aliados à educação e à aprendizagem, realizando um papel mediador entre professores/professores, professores/estudantes e estudantes/estudantes. O gênero textual pode ser conceituado então como “parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”, segundo a concepção de Bazerman (2006) e os gêneros textuais digitais como gêneros emergentes, transmutados de gêneros textuais préexistentes em ambientes não virtuais, conforme Marcuschi (2005). O gênero fórum, que passa pela transitoriedade da fala para escrita, em sua historicidade é conhecido fora do ambiente virtual como um gênero de discurso que consiste em discutir problemáticas diversas em um amplo debate. Sabendo-se que o gênero não é escolhido ao acaso, que possui uma organização social e uma intencionalidade de transmissão ao ser eleito como constituinte do discurso, são atribuídas funcionalidades ao gênero fórum na EaD, focando nas potencialidades que fornece. Não há comunicação que possa ser realizada a não ser pela mediação de um gênero. A escolha do gênero já faz com que o texto esteja circulando por um caminho previsível em sua 2 O artigo não entrará na questão da pertinência quanto à expressão “gênero discursivo” ou “gênero textual”. Conforme Marcuschi (2008) orienta seus leitores, adotaremos a posição de que todas as expressões podem ser usadas intercambiavelmente, a menos que se queira identificar algum fenômeno teórico em específico. 338 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 funcionalidade, intenção, propósito e ação e são essas potencialidades que serão investigadas no gênero fórum no desenvolvimento da pesquisa maior . Pretendemos através dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin apresentar parte dos fundamentos dos gêneros discursivos, abordando historicamente o surgimento da EaD e explicitando as características e possibilidades do gênero fórum através de análise simplificada dos aspectos de circulação e recepção, com estruturação encontrada no campo pesquisado do curso de graduação da Coordenadoria de Educação Aberta e à distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, UFMS. São análises iniciais que posteriormente serão desenvolvidas com mais profundidade durante a dissertação. O objetivo agora não é analisar as ocorrências de interações verbais em análises de trechos de fóruns, os papéis dos sujeitos envolvidos e suas ações e a composição do gênero fórum. Mais adiante as conclusões da pesquisa bibliográfica do presente artigo serão motivadoras para a investigação do gênero, considerando através das referências e das pesquisas realizadas que o gênero fórum e outros gêneros presentes na EaD assumem uma nova roupagem e funcionalidade, pois são emergentes no espaço virtual e são selecionados para contribuir de determinada maneira, o que em um outro espaço poderia ser feito por outro gênero. Educação à Distância Caminharemos por um breve histórico da Educação à distância no Brasil para apresentarmos as modificações ocorridas até os dias de hoje e os modelos de plataforma de ensino e aprendizagem adotados, assim como a implantação dos cursos de EaD na UFMS. Os fatores que originaram a EaD são múltiplos, não sendo o nosso foco de abordagem, mas concernem aos contextos culturais, históricos, políticos e sociais vividos pela sociedade. Não nos interessa aprofundar com firmeza nessas perspectivas de ensino, são apenas para nos situar dos caminhos percorridos para chegar até o momento da presente pesquisa. Prática bem antiga, a EaD ao longo do tempo vem sendo modificada de acordo com os anseios sociais, adequando-se sempre a uma proposta que corresponda a uma aprendizagem colaborativa entre professores e alunos, a uma filosofia de aprendizagem que proporcione ao estudante a troca do saber com os demais, ao mesmo tempo em que se torna relativamente autônomo, responsável e disciplinado. Pode-se identificar no decorrer da leitura que os modelos de EaD estão intrinsecamente ligados aos usos de tecnologias e de comunicação propostas na época. Ao longo das décadas, a Educação à distância foi desenvolvida através de correspondências e Belloni (2003) caracteriza essa geração pelo uso exacerbado da escrita manuscrita ou impressa. Com a implantação do ensino nas rádios, iniciando suas atividades na década de 20 no estado do Rio de Janeiro, desenvolveram-se escolas radiofônicas também na região nordeste, constituindo um sistema de ensino à distância não-formal. Com isso, aliou-se a palavra manuscrita ou impressa aos meios de comunicação audiovisuais. 339 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ainda não regulamentada pelo Governo Federal, nas décadas de 60 e 70, ocorre a instalação de emissoras de televisão educativa em vários estados brasileiros, promovendo atividades educativas e culturais através do rádio e da televisão, objetivando a educação de adultos através de tele-educação por multimeios3. No estado de Mato Grosso do Sul, foi criada em 1983 a TV Educativa. Para capacitar professores universitários, na década de 70 foi implantado o Posgrad – Pós-graduação Tutorial à Distância – pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior – Capes – com o objetivo de preparar os docentes universitários do interior do país, contribuindo para a consolidação do ensino à distância. A partir da maior integração com as tecnologias de informação e comunicação, temos a fase da geração multimídia, na qual essas ferramentas atuam como um processo social para o ensino e para a aprendizagem e as questões pedagógicas e institucionais são trabalhadas juntamente com a tecnologia, de forma colaborativa. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 4, em 1996, a EaD é regulamentada no Brasil: Art. 80. O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino à distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada. § 1º A educação à distância, organizada com abertura e regime especiais, será oferecida por instituições especificamente credenciadas pela União. § 2º A União regulamentará os requisitos para a realização de exames e registro de diploma relativos a cursos de educação à distância. § 3º As normas para produção, controle e avaliação de programas de educação à distância e a autorização para sua implementação, caberão aos respectivos sistemas de ensino, podendo haver cooperação e integração entre os diferentes sistemas. § 4º A educação à distância gozará de tratamento diferenciado, que incluirá: I - custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens; II - concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas; III - reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais. É também na última década que a modalidade de ensino passa pelo processo de reconhecimento, crescimento e expansão, tendo sua caracterização recentemente regulamentada pelo Decreto Nº. 5.6225, de 19 de dezembro de 2005: 3 Uso de televisão, DVD, gravador, computador, material impresso, rádio, internet, favorecendo a construção de novos conhecimentos, busca de novas fontes de informação utilizando diferentes linguagens e articulando a escrita, a fala, sons, imagens e movimentos. 4 Para mais detalhes, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação está disponível em www.mec.gov.br. 5 Também disponível em www.mec.gov.br. 340 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Art. 1o Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação à distância como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos. Brevemente, conheceremos os principais pontos da implantação da EaD na instituição selecionada para o nosso corpus. De acordo com a página6 na web da Coordenadoria de Educação Aberta e à Distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com dados embasados no histórico da Instituição, a EaD teve seu início, em 1991, por meio de ações descentralizadas, coordenadas por grupos específicos. A primeira ação foi desenvolvida pelo Grupo de Apoio ao Ensino de Ciências e Matemática no 1º Grau (GAECIM) com o objetivo de criar um grupo interdisciplinar de apoio aos professores da rede pública de Mato Grosso do Sul, para a formação continuada, nas áreas de ciências e matemática, à distância, por correspondência e e-mails. No ano 2000, a UFMS passou a integrar o consórcio de universidades, a Universidade Virtual Pública do Brasil (UNIREDE), objetivando democratizar o acesso à educação de qualidade por meio da oferta de cursos à distância; potencializar o acesso ao ensino público universitário; contribuir para o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem nas variadas áreas, como Educação, Ciência, Tecnologia, Arte e Cultura. Em 2001, a UFMS foi credenciada por meio de Portaria do MEC para o oferecimento de Cursos de Graduação e Pós-Graduação à Distância, desenvolvendo já no ano de 2005 ações de extensão, graduação, pós-graduação, atendendo às diversas áreas do conhecimento. Atualmente, em parceria com a CAPES/UAB 7, oferece cursos de graduação, formação continuada e pós-graduação, nos seguintes municípios de Mato Grosso do Sul: Água Clara, Bataguassu, Camapuã, Campo Grande, Chapadão do Sul, Costa Rica, Coronel Sapucaia, Dois Irmãos do Buriti, Jardim, Miranda, Paranhos, Porto Murtinho, Ribas do Rio Pardo, Rio Brilhante, São Gabriel do Oeste. A oferta também ocorre em alguns municípios dos Estados do Paraná e São Paulo: Apiaí/SP, Igarapava/SP, Cidade Gaucha/PR, Cruzeiro do Oeste/PR, Nova Londrina/PR, Paranavaí/PR e Siqueira Campos/PR. A integração da UFMS ao Sistema UAB possibilitou a ampliação da oferta de vagas e a ampliação das atividades no Ambiente Virtual de Aprendizagem e outras mídias 6 www.ead.ufms.br. A Universidade Aberta do Brasil – UAB - é um sistema integrado por universidades públicas que oferece cursos de nível superior para camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária, por meio do uso da metodologia da educação à distância. Instituído pelo Decreto 5.800, de 8 de junho de 2006, para "o desenvolvimento da modalidade de educação à distância, com a finalidade de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior no País". Para mais informações, disponível em www.uab.capes.gov.br. 7 341 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (videoconferência, web conferência, utilização de salas virtuais, aulas gravadas e outras TICs disponíveis) além dos momentos presenciais dos professores nos pólos de apoio presencial. São oferecidos Cursos de Graduação na Modalidade à distância como Administração (bacharelado); Administração Pública (bacharelado); Ciências Biológicas (licenciatura); Letras / Espanhol (licenciatura); Matemática (licenciatura); Pedagogia (licenciatura), Cursos de Especialização como Gestão Pública; Gestão Pública Municipal; Educação do Campo; Mídias na Educação; Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica; Atenção à Saúde da Família (em parceria com a FIOCRUZ), Cursos de Extensão como Educação para a Diversidade; Educação de Jovens e Adultos; Educação para as Relações Étnico-Raciais; Educação em Direitos Humanos; Educação Ambiental; Escolas Sustentáveis e Com-Vida; Formação de Professores na Temática Cultura e História dos Povos Indígenas; Formação de Mediadores de Leitura; Formação de Tutores; Formação de Conselhos Escolares; Gênero e Diversidade na Escola; Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça e Mídias na Educação. Temos resumidamente em uma retrospectiva, o ensino por correspondência, passando pelo tele-ensino, pelas multimídias e por último e atual, a aprendizagem em rede. Cada estruturação que a EaD recebeu ao longo dos séculos XX e XXI é composta por representação e distribuição de conteúdos específicos, comunicação professor/aluno e aluno/aluno bem variada em sua prática, com algumas tecnologias predominantes. É evidente que a expansão das TICs, da Internet e do perfil social dos estudantes de hoje contribuíram para a EaD se consolidar no país. Como referência, podemos citar a cidade de Campo Grande/MS, região macro da pesquisa. De acordo com dados do Sistema de Consulta de Instituições Credenciadas para a Educação à Distância e Polos de Apoio Presencial – SIEAD8 há 36 polos cadastrados com 4 instituições credenciadas, sendo 1 federal e 3 privadas. Compondo a EaD, o Ambiente Virtual de Aprendizagem, também conhecido como 9 AVA , é onde ocorre a maioria das atividades à distância propostas pelo sistema de ensino. Nesse ambiente, o acadêmico pode ter acesso aos textos recomendados para leitura, às notícias do curso, às atividades avaliativas propostas e seus resultados, ao calendário acadêmico, ao acervo bibliográfico, a bate-papos entre os acadêmicos, professores e tutores, entre outros. O AVA oferece em sua estruturação importantes ferramentas ao processo de construção do ensino e da aprendizagem, apresentando aos envolvidos opções de comportamento comunicativo necessários ao desenvolvimento das tarefas e contatos com os envolvidos, configurando o espaço da educação virtual. As ferramentas digitais dependem da escrita para sustentar a integração de suas propostas comunicativas, inclusive as que se utilizam de imagens e sons. Luiz Antônio Marcuschi (2008, p. 8 www.siead.mec.gov.br. Os Ambientes Virtuais de Aprendizagem são definidos como ambientes que simulam os ambientes reais de aprendizagem, com o uso das tecnologias de informação e comunicação, apresentando recursos para disponibilização de conteúdos, materiais de apoio, informações gerais sobre professores, fóruns, chats, e-mails, ferramentas de avaliação. 9 342 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 154) defende que “as comunicações verbais só são realizáveis por algum texto, assim como os textos só são realizáveis por algum gênero”. Com efeito, surgem então os gêneros textuais na composição da EaD, realizadores da comunicação verbal, tornando-a possível no ambiente de ensino. A multimídia e a hipermídia são usadas como veículos de transmissão de informação ou instrução com o auxílio dos gêneros. Os gêneros textuais presentes na EaD configuram a organização, papéis e atividades propostas pela modalidade de ensino explorada nesta pesquisa. São gêneros que podem ser chamados de emergentes, mas não se originam da mídia eletrônica, surgem, geralmente, de gêneros já existentes, porém apresentando peculiaridades formais próprias nesse espaço de circulação. Apesar de serem considerados gêneros secundários, deve-se sempre ter cautela sobre as renovações dos gêneros na mídia virtual, pois são, em geral, contraparte de gêneros já conhecidos, situados agora em uma área recente de estudos, sem muitas designações e em fase de exploração. Podemos citar, então, como gêneros textuais emergentes presentes no AVA, o e-mail, chat, aula-chat, fóruns, bate-papos, feedback. Não há uma lista completa e fechada de todos os gêneros participantes. Marcuschi (2008) afirma desconhecer levantamentos exatos de quantos gêneros poderiam ser identificados, e a dinamicidade do próprio ambiente virtual provoca novas nomenclaturas e gêneros inseridos. Estimulando o intuito da pesquisa, consideramos que os gêneros presentes no ambiente virtual não são escolhidos ao acaso para participarem do processo de ensino. A cada um compreenderá um papel, uma função, um fluxo comunicativo típico, para assim reger seu funcionamento no ambiente virtual de aprendizagem, otimizando as questões de aquisição do conhecimento, de comunicação, de tempo-espaço, contrastado entre ensino presencial e à distância. A partir dessa definição, selecionamos o gênero fórum com a pretensão de reconhecer e configurar sua potencialidade como ferramenta para a construção colaborativa no ensino e na aprendizagem, verificando os propósitos, conteúdos, funções e ações atribuídos ao gênero em sua utilização, considerando também as situações de interação e interatividade, as formas de expressão, atividades síncronas e assíncronas 10, flexibilidade linguística, oferecendo recursos que possibilitem estratégias que minimizem à distância entre os participantes e facilitem a aprendizagem. Toda essa preocupação e novas pesquisas ocorrem justamente porque a EaD vem ganhando espaço no sistema de ensino, principalmente no de nível superior, que é onde se constatava a maior barreira de acesso ao conhecimento e que hoje a própria EaD vem contribuindo para a sua expansão, proporcionando acesso antes inimaginável em determinadas 10 As atividades síncronas são as de ocorrência simultânea ou em ritmo regular e definido, como por exemplo, os bate-papos. As atividades assíncronas não ocorrem concomitantemente, como o e-mail e feedback. 343 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 localidades. É hoje uma opção muito procurada principalmente por aqueles que não dispõem de tempo nem de condições para participar do sistema de ensino presencial. As manifestações de linguagem nessa modalidade de ensino por si só apresentam novos espaços de veiculação de conhecimentos e informações, gerando infinitas possibilidades comunicativas para que se consiga compreender a fala do outro e fazer-se compreender pelo outro, de forma colaborativa. Marcuschi (2008, p. 154) postula que “quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares” e a EaD é uma delas. Com efeito, conheceremos as teorizações sobre os gêneros textuais. Os Gêneros Textuais e o Fórum Marcuschi (2008) afirma que o estudo de gênero não é novo, mas está na moda. Estamos há 25 séculos iniciados por Platão e Aristóteles estudando os gêneros literários e retóricos. E o interesse em trabalhar determinado gênero presente no ambiente virtual de aprendizagem da modalidade de ensino à distância surge ao se perceber, por meio de experiências pessoais, que os textos são produzidos em gêneros com características que podem ser consideradas próprias da EaD, sejam eles realizados por professores, tutores ou alunos, organizando tanto a atividade social quanto a construção de sentido Para Bakhtin, a linguagem tem diversidade de produção infinita e o sujeito em sua competência linguística constrói cada enunciado além da frase ou da oração. Essa competência caminha para o que Bakhtin (1997) define como tipos relativamente estáveis de enunciados, o todo discursivo, isto é, os gêneros do discurso. Os gêneros do discurso são diferentes formas de uso da linguagem, variáveis às suas esferas de circulação orais e escritas nos processos de troca verbal, usados com segurança e adequações concretas, porém muitas vezes ignorados em sua existência teórica. E assim como as esferas de atividades do homem são muito variadas, os gêneros do discurso também são. Os gêneros têm presença na vida diária que, muitas vezes, até nos esquecemos do que são, como são, onde estão. O processo de uso se torna tão intrínseco das faculdades humanas que a incidência de atenção e análise durante o uso se torna pequena. Como melhor define Marcuschi (2000, p. 72), “usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir aos textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica”, ou seja, os textos se apresentam aos participantes das práticas comunicativas podendo ser constituídos de maneiras distintas apesar de ter o mesmo conteúdo temático. E hoje, mais do que em qualquer outra época, gêneros novos aparecem dentro das novas tecnologias, em foco as vinculadas ao processo de ensino à distância, potencializando a evolução 344 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 dos gêneros emergentes por ser um espaço que situa história, sociedade, cultura, comunicação, linguagem, que vem expressa de maneira verbal, não-verbal, tendo a escrita grande evidência. Pelo dicionário Houaiss (2009), o léxico fórum tem diferentes acepções, podendo significar: reunião, congresso, conferência que envolve debate de um tema, Fórum jurídico, Fórum Humorístico, Fórum de discussão, entre outros. De origem latina, é algo que permite o movimento. Os fóruns são hoje gêneros textuais muito praticados na comunidade acadêmica, mas também são comuns fora dela. Têm finalidades diversas e se formam por interesses de grupos bem definidos constituídos como comunidades virtuais que se agrupam em torno de determinados interesses. Os principais elementos que configuram um fórum em qualquer domínio discursivo em que se apresente são os debates. As estratégias utilizadas para atingir o propósito da discussão devem levar em conta o tema bem como o perfil das pessoas envolvidas. Segundo Bazerman (2007, p. 49): “Dentro de fóruns de comunicação reconhecidos, também nos damos conta de que nossos enunciados serão responsabilizados por vários elementos e procedimentos considerados relevantes por pessoas que participam daquele fórum.”. Diferentemente dos debates orais, que se realizam de forma síncrona, o fórum na EaD ocorre assincronamente, mas não impede uma discussão “quase síncrona”, se dois ou mais participantes estiverem postando simultaneamente em tempo real. Ainda assim, não corresponde a mesma sincronia de um bate-papo que é disponibilizado, por exemplo. A relevância do gênero emergente fórum nessa comunicação mediada pelo computador é a da sua realização pela escrita, no ponto de vista composicional na EaD, o fórum é configurado na modalidade escrita, mesmo tendo contraparte prévia em gêneros da oralidade, como as discussões e os debates, não havendo uma contrapartida de gênero impresso com o qual possa ser comparado. Para compreensão, as figuras a seguir foram retiradas do curso de graduação da Coordenadoria de Educação Aberta e à distância da UFMS, sem especificação do curso porque a seleção fará parte da pesquisa realizada mais adiante. As figuras são para facilitar e ampliar a nossa visualização de como se estrutura o gênero fórum. Afirmamos que o nosso interesse, inclusive por estarmos trabalhando com gêneros, não é o de análise da forma e sim de sua funcionalidade, mas sabemos das estruturações relativamente estáveis que existem como forma de organização e manifestação dos objetivos e funcionalidades pertinentes ao gênero em questão. 345 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Figura 1: Fóruns gerais de curso de graduação da Coordenadoria de Educação Aberta e à distância da UFMS. Figura 2: Fóruns para atividades de aprendizagem de curso de graduação da Coordenadoria de Educação Aberta e à distância da UFMS. Podemos perceber uma divisão entre os fóruns, elencado para aspectos gerais e para aspectos de atividades para aprendizagem. Os temas em discussão são variados e o gênero que 346 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 vinha sendo usado interpessoalmente na fala agora está na escrita, com formas de elaboração e condução das atividades de produção que precisam ser realmente conhecidas para que possa assim ser explorado em sua potencialidade nas sequências de eventos criadas pelos usuários. Koch (2009, p. 58) apresenta os gêneros como modelos de abstrações de situações e do modo de nos comportarmos linguisticamente, portanto, em sua constituição, entram de forma inter-relacionada aspectos cognitivos, sociais e interacionais. Com a organização presente nas Fig. 1 e Fig. 2, é possível definir que quando escrevemos, não somos totalmente livres para utilizar indiscriminadamente qualquer forma textual. Isso fica evidente nas titulações que os fóruns desse curso de graduação receberam. Foram divididos de acordo com seus conteúdos e focos de intencionalidade. Percebemos então que o gênero fórum possui uma participação em diversos tipos de situações no ensino, tanto nas atividades avaliativas quanto nas atividades informais de comunicação que fazem parte do conteúdo temático do gênero. É a própria organização que favorece o entendimento do gênero em sua composição, conteúdo e estilo, pelo o que nos é apresentado nas Fig. 1 e Fig. 2. Temos uma esfera de troca entre os enunciados relativamente estáveis, formando o plano composicional, onde alguns elementos se sobressaem. Em seu conteúdo temático, o gênero expressa o tema através do título de cada fórum, e o estilo está ligado ao tema e ao conteúdo apresentados. Qual é o modelo que temos dessa produção? É o uso que nos traz essas caracterizações. Não há ainda um conceito de que participar de um fórum da EaD nos dirá que essa produção terá isto, isso e aquilo, pois aí está o caráter emergente do gênero e do espaço midiático. Dominar um gênero instável é dominar a situação comunicativa. Para que o fórum on-line e os demais recursos virtuais de aprendizagem cumpram a sua função, que é a de permitir uma efetiva interação entre os sujeitos presentes no ambiente on-line e que possibilite a construção do conhecimento pelo aluno, mediada pelo professor, todas as suas potencialidades devem ser conhecidas pelos usuários desse ambiente. Contribuindo com o ensino e com a aprendizagem, além de evidenciar o objetivo pretendido na escolha do fórum, a interação com os outros sujeitos envolvidos é fundamental para a organização do pensamento acerca de um problema de forma mais elaborada, lógica e analítica, sendo um dos aspectos que serão investigados posteriormente na pesquisa maior por ser relevante a análise das particularidades da linguagem que o gênero fórum promove. A escolha do gênero fórum na EaD, que não é aleatória como já afirmado, faz com que o(s) texto(s), materializados nesse gênero, circule(m) por um caminho previsível em sua funcionalidade, intenção, propósito e ação, pois Bazerman (2005, p.38) anuncia que a “maioria dos gêneros tem características de fácil reconhecimento que sinalizam a espécie de texto que são. E, frequentemente, essas características estão intimamente relacionadas com as funções principais ou atividades realizadas pelo gênero.” 347 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fundamentando-se em Bakhtin, Fiorin (2006) afirma que os gêneros são modelos comunicativos e servem muitas vezes para criar uma expectativa no interlocutor e prepará-lo para determinada reação. Então não é o gênero que estabelece o contexto do uso e sim a situação, operando prospectivamente para o caminho da compreensão. Foi atribuída a estratégia de dividir os fóruns das Fig. 1 e Fig. 2. E muitas vezes se as estratégias se perdem pelas próprias exigências do espaço de circulação: A imposição de que o texto para o ambiente virtual seja curto obriga o seu produtor, no momento de sua concepção, a operar reduções. Entretanto, em cursos em ambientes virtuais de aprendizagem, muitas vezes, não podemos omitir informações sob o risco de tornar o conteúdo pobre ou incompreensível para o aluno. Ao contrário, devemos ter o cuidado de não omitir nenhuma informação que seja importante para a compreensão, pois o aluno não terá o professor por perto para dirimir suas dúvidas; contará apenas com a leitura do texto para seu estudo. (CABRAL, 2008, p. 162) Apesar de que a “criatividade social em fazer coisas novas acontecerem de novas maneiras” (BAZERMAN, 2005, p. 23) seja constante nas execuções dos gêneros, principalmente nos emergentes, acredita-se que o fórum na educação à distância não deva ser apenas um depositário de textos para que, por exemplo, o aluno poste sua produção, seja avaliado e receba uma nota, sem nenhuma estratégia didática. Existem três dimensões sociais, e os gêneros, segundo Meurer (2008), têm um fluxo conforme a mesma relação de fluxo existente na vida humana, sendo: parte de práticas sociais (ensino) que são executadas por indivíduos atuando conforme papéis correspondentes às suas identidades (professor, acadêmico, tutor)11 e em alguma estrutura social definida em termos de regras e recursos (modalidade à distância). O fórum no aspecto da escrita pode ser considerado como prática comunicativa em sua perspectiva atual, através da sua composição, conteúdo e estilo. Segunda Koch (2009) quando essas práticas comunicativas são comuns aos usuários, somos propensos a construir um ‘modelo’ sobre o que são, sobre suas definições, em qual situação podemos produzi-los, reconhecer destinador e destinatário, que conteúdo é esperado nessas produções e em que estilo fazê-los. Os gêneros emergentes na Educação à distância são mais flexíveis e transformáveis que o comum, talvez por influencia do próprio espaço em que está situado, pois a internet é dinâmica e com certeza consegue desenvolver muito melhor em seus objetivos quando vem acompanhada de gêneros que propiciam determinadas caracterizações e funções. Compreender os gêneros é compreender o processo cognitivo do texto (sua recepção e produção). Conclusão: 11 Há particularidades, como tutor à distância, tutor presencial, professor especialista e cada um com sua especificidade no sistema de ensino. 348 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O artigo baseia-se em pesquisa bibliográfica que compõe a pesquisa maior desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens. A organização do gênero fórum é produzida para um contexto específico de relações interpessoais e de avaliação. É fundamental que se compreenda a situação, envolvendo campo, relação, modo e indivíduo porque são eles os responsáveis pela configuração do gênero textual que os integrantes vão construindo. Em cada esfera de atividade social os falantes utilizam a língua de acordo com gêneros do discurso específico como forma de interação social, objetivando a comunicação. A comunicação ocorre entre falante/ouvinte, entre emissor/receptor, entre eu/tu, entre discurso/discurso, regendo sempre a questão do diálogo e tendo como produto o enunciado, ou seja, a situação material concreta dessa interação. “A maioria dos gêneros tem características de fácil reconhecimento que sinalizam a espécie de texto que são. E, freqüentemente, essas características estão intimamente relacionadas com as funções principais ou atividades realizadas pelo gênero.” (BAZERMAN, 2006, p. 38) E esse comportamento apresentado, conforme afirma Marcuschi (2004), deve-se pela linguagem ser flexiva e plástica, adaptando-se às mudanças que a modalidade de ensino necessita, assim como também adéqua o gênero às necessidades que os estudantes e professores possuem para que dialoguem entre si e ao mesmo tempo exerçam sua autonomia com os recursos oferecidos no ensino, tendo a linguagem então como auxiliar na disseminação das transformações geradas pela criatividade do ser humano. A EaD é uma prática social de ensino, na internet, que possui então peculiaridades em sua estrutura, em sua organização, necessidade de recursos que permitam uma maior proximidade entre os usuários. A interação proposto nos tópicos apresentados provoca a proximidade, é através dela que essa distância pode diminuir. Do contato com o texto, o usuário pode criar contato com os outros participantes do universo da internet, à distância. A linguagem escrita é a predominante apesar da existência de outros recursos midiáticos, como vídeos, imagens, conferências de voz. E mesmo com a criação de tantos outros meios de comunicação verbal e não-verbal, a escrita nunca perderá seu espaço, inclusive por ser a ferramenta mais simples e facilitadora de construção no espaço da internet. Os gêneros são relativamente estáveis, caso contrário dificultariam o uso principalmente em um local de ensino, mas são gêneros modelados e remodelados a cada uso, pois são resultados das participações dos sujeitos. A corrente principal do fórum é a contexto de interação, em oposição a outros gêneros que não apresentam esse aspecto. Essa interação é fundamental na sua formação funcional para demonstrar a articulação presente. É caminho longo e necessário investigar as estratégias linguísticas, as condições de produção e as adaptações sofridas pelo gênero fórum na modalidade de ensino à distância para se compreender e aferir suas potencialidades. 349 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ainda há muito que se analisar do gênero textual fórum no ambiente virtual de aprendizagem, para verificar em que medida os usuários participam do processo cooperativo de ensino e aprendizagem possibilitados pelo gênero em foco, orientando os envolvidos sobre uma utilização produtiva do fórum tendo em vista a contribuição que ele pode oferecer para a aprendizagem cooperativa, foco da futura pesquisa. THE FORUM TEXTUAL GENER IN DISTANCE EDUCATION: (RE)COGNIZING ITS POTENTIAL. ABSTRACT: In this article I discuss the potential of the forum as text genre in Distance Education environment. It is an excerpt from a qualitative approach research that is being developed in the Master in Language Studies Program, which examines the forum genre in undergraduate Distance Education courses offered by the Federal University of Mato Grosso do Sul. Considering that each genre has a pre-defined communicative purpose to be selected to act in its own medium, the forum as gender - in the context of newly emerging technologies of communication and information - it has presented purposes, functions, contents and activities explored at various levels, whether or not satisfactory, of its potential for assigned collaborative linguistic realization. Starting from the notion of genre as a social, historical as well as Bakhtinian theory, the research of language as interaction, addressing and investigating the potential which the genre offers in relation to the form of teaching in which it is inserted and to the objectives it wishes to achieve in its choice as a tool for teaaching and learning. KEYWORDS: Emerging text genre. Distance Education. Virtual learning environment. Forum. REFERÊNCIAS: BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. BRASIL. Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005. BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. DIONÍSIO, A. P.; HOFFNAGEL, J. C. (Orgs.) São Paulo: Ed. Cortez, 2005. BELLONI, M. L. Educação à distância. 3. Ed. Campinas: Autores Associados, 2003. CABRAL, A. L. T. Produção de Material para cursos à distância: coesão e coerência. In: MARQUESI, S. C.; ELIAS, V. M. da S.; CABRAL, A. L. T. (Orgs.). Interações virtuais: 350 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 perspectivas para o ensino de Língua Portuguesa à distância. São Carlos: Ed. Claraluz, 2008. p. 157-170. FIORIN, J. L. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. KOCH, I. G. V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2004. MARCUSCHI, L. A. O hipertexto como um novo espaço de escrita em sala de aula. In: AZEREDO, J. C. (Org.) Língua Portuguesa em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. ______. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital. In: Conferência na 50ª Reunião do GEL – Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo. São Paulo: USP, 2002. ______. Produção Textual, Análise de Gêneros e Compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MEURER, J. L. 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Para tanto, foram utilizados como referências os textos a respeito da semiótica filosófica formulada por Charles Sanders Peirce desenvolvidos por Lúcia Santaella, Winfried Nöth e Marcelo Moreira Santos; além das bases teóricas a respeito da linguagem cinematográfica feitas por Marcel Martin, Christian Metz e Terence Marner. A sequencia escolhida para ser analisada mostra a estratégia de caça desenvolvida por um raro mamífero predador, o cão selvagem africano (Lycaon pictus), que age em grupo, em uma perseguição a um grupo de impalas (Aepyceros melampus). Como resultado, pode-se enxergar a capacidade narrativa da montagem alternada e perceber de que forma o plano e os ângulos de visada de câmera se comportaram incidindo significado e ritmo à estrutura narrativa. Por fim, compreendeu-se o processo de significação na sequência analisada como um fenômeno construído a partir da semiose em diferentes níveis sígnicos, orquestrados no processo de montagem da sequência. PALAVRAS-CHAVE: Significação. Sequência. Montagem. Ângulos. Enquadramentos. Introdução O filósofo Charles Sanders Peirce (1839–1914) se dedicou a formular um arcabouço teórico com o objetivo de estudar os signos e a arquitetura do pensamento. A semiótica, também conhecida como Lógica, está inserida na obra de Peirce, e foi a teoria mais explorada por pesquisadores com o objetivo de compreender o sentido por meio das leis do pensamento (SANTAELLA, 2007). Para ele, o pensamento só é possível por meio da articulação de signos em diferentes níveis. O signo é um mediador entre um objeto real ao qual se refere e um interpretante ao qual se direciona. O signo pode ser estudado, então, nestes três níveis: o nível do fundamento do 1 UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mestrado em Estudos de Linguagens – Centro de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Letras. Campo Grande – Mato Grosso do Sul – Brasil. CEP 79022040. [email protected] 352 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 signo, que é o que lhe confere status de signo; o nível que leva em conta sua relação com o objeto e aos problemas relativos à denotação; e, por último, o nível entre o signo e seu interpretante (SANTAELLA, 2007). Para Peirce, o signo é: Um signo intenta representar, em parte, pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela mente, algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto pode ser chamada de interpretante. (PEIRCE, C. S., 1931, p. 58 apud SANTAELLA, 2005, p. 42) Portanto, todas as linguagens permeiam e articulam signos. O nascimento do cinema, há mais de um século, influenciou a maneira de se construir a narrativa de histórias e suscitou a curiosidade e o interesse de estudiosos por essa nova linguagem. O vasto leque de possibilidades criativas e instrumentos operacionais do cinema motivaram o homem a apreender e a dominar suas técnicas. Da apreensão e domínio delas, surgiram inúmeros gêneros fílmicos, que incorporaram em sua linguagem, marcas próprias e específicas. O documentário é um gênero cinematográfico distinto. Assim como os demais gêneros, utiliza códigos da linguagem cinematográfica para a construção de sua estrutura narrativa, mas se difere dos demais no aspecto que marca sua origem no cinema: o tratamento dos fenômenos por uma visão realista, a visão que credita ao cinema uma potencialidade reveladora do mundo. Dessa forma, explora aspectos naturais da realidade para produzir conhecimento acerca desta mesma realidade. A esse respeito, Santaella (2002) afirmou: Nos vídeos, como nas fotografias, o aspecto indicial domina. Os vídeos são de fato partes da realidade que retratam. Vem daí por que os vídeos se prestam tão bem à documentação informativa (...). Aquilo que está neles retratado existe na realidade. A lindíssima plenitude vital da natureza não é uma projeção da imaginação do videasta. Os desastres ecológicos e suas cicatrizes indeléveis, tristíssimas, atrozes, insultantes, estão efetivamente lá. Não dá para fingir que se trata apenas de um filme. A imagem grita sua verdade. (SANTAELLA, 2002, p. 127). Dessa maneira, este artigo visou à análise semiótica de três aspectos cinematográficos aplicados em uma sequência do documentário “Planeta Terra – a Terra como você nunca viu”: planos ou enquadramentos, ângulos de visada de câmera e a montagem. Com a análise, pretendeu-se percorrer os caminhos da significação no que tange a esses três elementos dentro da sequência em questão. Para tanto, foram utilizadas as teorias sobre cinema formuladas por Christian Metz, Marcel Martin e Terence Marner, e a teoria semiótica de Peirce por meio dos textos de Lúcia Santaella, Winfried Nöth e Marcelo Moreira Santos. 353 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Ao analisar os planos, ângulos de visada de câmera e a montagem nos três níveis, percebeu-se aspectos icônicos, indiciais e simbólicos no que se refere aos objetos dinâmicos. Termos que serão explicados no próximo item. O signo sequência Na semiótica de Peirce, para que algo tenha capacidade de agir como signo, é necessário se fazer notar. Isso ocorre quando há no signo, primeiro, uma qualidade latente à percepção; ou segundo, um objeto existente, de caráter real ou; terceiro, possui em si um caráter de lei, de ordem (SANTAELLA, 2007). Quando o signo é reconhecido por sua semelhança, por sugerir de algo, um sentimento vago, seu fundamento é qualitativo, sensorial, é uma qualidade. Quando esse poder de sugestão que uma qualidade evoca é encontrado no signo, ele é denominado quali-signo. Quando o signo age como quali-signo, ele terá, em sua relação com o objeto, uma relação de iconicidade. Será um ícone. Quando o signo tem como fundamento um ser existente, ele se denomina sin-signo. Esse tipo de signo ocorre graças a sua capacidade de fazer referência a algo, ele exprime parte de um todo, real e concreto. Se o seu fundamento é um sin-signo, a sua relação com o objeto será indicial. Ele funcionará como um índice. Como exemplo, podemos citar a marca de uma pegada em terra úmida, que faz referência a alguém, real e existente, que pisou ali e sua pegada serve como pista, como prova (SANTAELLA; NÖTH, 2005) de que alguém passou por ali. A terceira possibilidade do signo é agir como símbolo. O símbolo é o nível mais complexo e completo do signo. Seu fundamento é a generalidade. Os símbolos são convenções, portanto, um símbolo é um particular sígnico que, por conter características comuns a outros particulares, se acomoda em uma classificação de universais. Outro aspecto importante a respeito do signo, segundo Peirce (apud SANTAELLA, 2005), é que o signo sugere, indica ou representa seu objeto apenas por um ângulo dele. Por mais profunda que seja a relação entre signo e objeto, o signo é incapaz de conter o objeto como um todo em uma perfeita presentificação do objeto, sempre faltarão informações a respeito do objeto. Ou seja, a capacidade de significação do signo é parcial. Por isso o signo é um mediador e não o objeto em si. Nesse sentido, a sequência Cão selvagem africano versus Impala possui essa característica em sua atuação como signo. A natureza do signo/sequência dentro da linguagem cinematográfica é de uma convenção, algo que segue princípios lógicos e que, por isso, permite que seja reconhecida como um código dentro da linguagem do cinema. De maneira geral, uma sequência cinematográfica pode ser formada por: primeiro, a apresentação do problema; situação desestabilizadora; uma promessa; uma expectativa; antecipação de problemas; um conflito emergente; segundo, a complicação do problema, crise; e, por fim, o clímax, reversão de expectativas, resolução (SOUZA, 2011). Isso se observa na sequência analisada: 354 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Primeiramente, são apresentados personagens e ambiente. Conforme a narrativa se desenvolve, são mostradas as necessidades do personagem predador e os hábitos da personagem presa. Em seguida, o foco se atém ao modo de organização de ambos os grupos. Então, o momento em que os dois interagem, dando início ao clímax da sequência: a caçada. A perseguição é acompanhada e detalhada até o seu desfecho, quando a matilha, mesmo que com o integrado trabalho em equipe, perde a presa que se evade ao saltar em um lago, salvando-se. Por último, há um paralelismo entre cenas que retratam ações intercorrentes, nas quais os cães selvagens deixam o impala no lago para juntar-se ao restante do grupo que capturou outra presa e, por outro lado, imagens nas quais o impala fugitivo nada até encontrar uma das margens e apressa-se a deixar o local. Essa sequência, que trata dos cães selvagens africanos e sua presa, pode ser dividida, então, em cinco momentos: apresentação das personagens; estratégia de caça; preparo do ataque; perseguição; desfecho. Dessa forma, o termo sequência age como um legi-signo. E todo legi-signo, em relação ao seu objeto, atua como um símbolo. Sendo símbolo, sempre que se falar em sequência cinematográfica, se estará falando de um fragmento dentro de uma estrutura maior, a de um filme/documentário, composta por todos os elementos pertencentes à estrutura narrativa (SOUZA, 2011) aptos a significar em conjunto. Como produtora de significado, a sequência é um símbolo que articula, internamente, outros tipos de signos: os índices e ícones. Esses demais signos costumam aparecer de maneira mais evidente e predominante em elementos da linguagem cinematográfica, como o plano ou enquadramento, ângulos de visada de câmera e montagem, agregando significado à estrutura narrativa, como explanaremos a seguir. Significação Dentro da sequência, a montagem funciona como aquilo que dá corpo à estrutura narrativa. Por meio dos estudos cinematográficos, compreendeu-se que a significação emerge dos filmes e documentários graças a um mecanismo-chave desenvolvido na montagem: a ideia de continuidade. A continuidade, composta por diferentes níveis de interação entre os elementos cinematográficos, é o que garante a ligação ente um plano e outro sem que essa transição cause uma ruptura no entendimento da estrutura narrativa do filme/documentário. Ela orquestra uma sequência gradual de significação (SANTOS, 2011) no discurso. Encontramos nessa sequência sete tipos diferentes de planos: grande plano geral, plano geral, plano conjunto, plano médio, close up, detalhe e extreme close up. A respeito da escolha dos planos para o processo de significação, deve-se considerar que um plano aberto (grande plano geral, plano geral), geralmente, é composto por uma quantidade maior de elementos quando comparado a um plano de conjunto, detalhe ou close-up. 355 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A relação do plano utilizado com a quantidade de informações enquadradas por este afeta o tempo de exibição de uma cena (MARTIN, 2005) e direciona o olhar do espectador para aquilo que é importante na narrativa, uma vez que é necessário que haja tempo suficiente para que este possa captar, compreender e assimilar o que ocorreu na imagem, conforme observação de Martin (2005): (...) deve existir uma adequação entre a dimensão do plano e o seu conteúdo material, por um lado (o plano é tanto maior ou aproximado quanto menos coisas nele houver para ver), e o seu conteúdo dramático, por outro lado (o plano é tanto maior quanto sua contribuição dramática ou a sua significação ideológica forem grandes). (MATIN, 2005, p. 47) No primeiro momento da sequência (fig. 1), predominam os planos fechados em ângulos de visada de câmera normal ou neutro, que permitem a apresentação e caracterização das espécies animais protagonistas do fenômeno. Esses tipos de plano estabelecem com a imagem uma função descritiva (MARTIN, 2005). O valor predominante nos planos é o indicial, uma vez que a apresentação das personagens por meio de conexão física (incidência da luz no ambiente captada pelo sensor da câmera) permite o acesso ao fenômeno, emoldurado pelo plano, de maneira a se conectar fisicamente com uma face daquele. Fig. 1: Trecho do primeiro momento da seqüência Cão selvagem africano versus Impala São alternadas imagens das personagens. A alternância de planos caracteriza o tipo de montagem narrativa alternada. Esse tipo de montagem confere a esta sequência um dinamismo notável por meio de valores icônicos, uma vez que sugere ações, causando sensações como apreensão diante das imagens de aproximação da matilha em relação aos impalas que pastam por perto. 356 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Em seguida, observamos que o conteúdo dramático dos primeiros planos indica a habilidade do predador se aproximar sorrateiramente de sua presa, ressaltada pela câmera lenta e pelo plano de conjunto (MARNER, [1985?]). Indicam porque dentro da estrutura do vídeo, há uma relação de oposição, alteridade entre o predador e a presa, estabelecida desde as primeiras cenas da sequência, sendo índices de seu comportamento de caça. À medida que os planos são alternados na sucessão da montagem, cria-se uma expectativa da iminência do ataque. Essa expectativa se deve a um valor icônico presente na montagem, relacionado à impressão, já que os movimentos corporais dos personagens captados pelos planos neste momento inicial sugerem uma aproximação em forma de motim, por parte dos predadores, que é recebida com movimentos que sugerem o estado de alerta das personagens presas. Apesar de a natureza da montagem possuir latente o aspecto simbólico, no caso deste estudo, foi possível constatar a importância que exercem os aspectos icônicos e indiciais como elementos ligados ao funcionamento efetivo da montagem. Isso foi notado inicialmente devido ao poder sugestivo essencial da montagem alternada. Para elucidar o aspecto indicial da montagem, é necessário retomar o conceito de índice para Peirce. Os índices, segundo Peirce, são signos que possuem uma conexão dinâmica com seus objetos (índices genuínos) ou se dão por meio da referência (índices degenerados) (SANTAELLA, 2007). Uma vez que a montagem busca estabelecer um grau coerência entre sua construção narrativa e o fenômeno natural, concreto, real, existente; ela é condicionada pela forma com que o fenômeno acontece na realidade. Desse modo, seus constituintes são fragmentos indiciais genuínos (planos), mas, em si, a montagem possui caráter indicial degenerado. A montagem toma, então, seu objeto, o fenômeno natural, como referência e se liga, se conecta, se prende a isso para se construir. Observemos o segundo momento da sequência No segundo momento da narrativa (fig. 2), entretanto, ao invés do ataque, as imagens reforçam o tipo de comportamento entre os membros da matilha, crucial para estratégia de caça desta espécie, que requer vários indivíduos. Esse reforço das imagens vem significar aspectos qualitativos da organização espacial da matilha, que só são possíveis de se observar em ângulos específicos contidos nos planos: é o modo como a matilha se organiza que dita a escolha do plano e do ângulo de visada de câmera adequado para a estrutura narrativa que se contempla. 357 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig. 2: Trecho do segundo momento da seqüência Cão selvagem africano versus Impala Neste momento da sequência, as potencialidades dos ângulos de visada de câmera são exploradas trazendo valores semióticos que colaboraram para a construção da narrativa. Em sua variedade, os ângulos, assim como os planos e os demais elementos da linguagem cinematográfica, apresentam-se em caráter simbólico: acomodados em nomenclaturas e funções estipulados pela linguagem. Nesse sentido, existem diversos tipos de ângulos de visada da câmera. Os mais comumente mencionados na literatura são o plongée ou picado, no qual se filma o fenômeno de obliquamente de cima para baixo; o contra-plongée/contra-picado, quando a câmera fixa-se em uma posição inferior ao objeto filmado, enquadrando-o obliquamente de baixo para cima; e, enfim, o ângulo chamado normal ou neutro através do qual se tem uma visão horizontal no nível dos olhos das personagens (NOGUEIRA, 2010). Há, também, um ângulo particularmente raro, mas que muito nos interessa para a análise da sequência/objeto deste trabalho: é a filmagem vertical (MARTIN, 2005), ou zenital, na qual há duas variações, primeiro, a câmera inicia a filmagem em solo e acompanha algum objeto ou personagem subindo, alçando vôo, etc. Ou, em uma segunda opção, a câmera filma o evento perpendicularmente, num ângulo vertical em relação ao mesmo: O plano zenital comporta igualmente uma importante função descritiva. Este tipo de plano consegue-se colocando a câmara na sua máxima verticalidade em relação à acção. Desse modo, permite como que mapear todo o espaço mostrado e localizar geograficamente as personagens e os objectos nesse mesmo espaço. Este efeito de mapeamento corresponde, metaforicamente, a uma espécie de percepção divina – ou seja, omnisciente – dos acontecimentos, como se fosse possível tudo ver de uma só vez. Não sendo muito frequentemente utilizado, ele pode ser útil para mostrar diversos núcleos de acção que decorrem em simultâneo e cuja percepção global de outro modo se revelaria difícil. (NOGUEIRA, 2010, p. 42) 358 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O uso dos planos de conjunto, geral e grande plano geral, principalmente com as tomadas aéreas em plongée e vertical, teve como fundamento possibilitar que o espectador acompanhasse a chamada “formação em catavento” (CREEL E CREEL, 1995), retratada no vídeo como a formação circular ao redor das presas por parte dos predadores. Os planos e movimentos de câmera impõem um novo ritmo, mais ágil, em acordo com as atividades da matilha. Enfim, o terceiro momento, no qual os cães preparam seu ataque aos impalas (fig 3). As imagens contidas nos planos indicam que, posicionada, a matilha aguarda a iniciativa do líder; escuta, cheira e espreita suas presas em potencial. A escolha do plano aqui cumpre o propósito de valorizar o conteúdo dramático do assunto frente à câmera. Retangular, visto sob um ângulo de visada de câmera específico, seleciona aquilo que há de essencial para a continuidade narrativa: neste caso, a câmera estática e o uso do plano de detalhe enquadrando os órgãos sensoriais do cão selvagem africano, junto à narração cadenciada, têm o poder de elevar o clima de apreensão. Sugere o silêncio da aproximação, o farejar dos predadores, o preparo para o ataque, para o clímax do fenômeno. Fig. 3: Trecho do terceiro momento da seqüência Cão selvagem africano versus Impala O ritmo volta àquele percebido no primeiro estágio da sequência. Os impalas parecem perceber a presença de algo diferente em seu território. Isso se deve ao fato de o enquadramento propiciar o nítido recorte direcionando o olhar do espectador para a forma com que o impala observa seus próprios observadores. Toda a tensão é criada pela câmera, ela é o elemento intermediário entre o público e a narrativa, enquanto que as ações chegam fragmentadas e ganham tais sentidos por meio da montagem, da escolha da imagem ideal e de sua seguinte e assim por diante, até o término do processo. A imagem causa tensão, ouvem-se apenas passos entre a vegetação, com o auxílio da amplificação sonora. Os impalas estão em alerta. A possibilidade de descrição de um estado emocional de uma personagem deste vídeo é propiciada pela articulação de planos mais fechados, que direcionam o olhar para o rosto dos animais. Mas a intercalação entre planos do 359 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 cão e planos do impala, junto a outros elementos que não cabem a esta análise, como o som, os movimentos de câmera, os efeitos técnicos causados pelos tipos de lentes das câmeras, etc, conferem à essa dualidade predador/presa um sentimento de tensão, angústia, ansiedade, novamente valores icônicos da montagem. A escolha do tipo de montagem é o que potencializa ainda mais as possibilidades narrativas. A tensão provocada pela cena é interrompida por um ruído agudo. O ataque efetivamente começa: com efeito de edição de câmera lenta o líder dos cães selvagens salta e corre em direção aos impalas (fig. 4). Esta cena possui um dos enquadramentos mais interessantes da sequência. A imagem é estática, e o plano de conjunto emoldura o cão, de costas, correndo em direção aos impalas, que olham para o predador, na mesma direção da câmera. É como se o espectador estivesse entre os cães selvagens. Os impalas, assustados, fogem. No documentário, a filmagem em plongée dá dinamismo à câmera, diferente da função geralmente atribuída ao uso deste ângulo: tornar um indivíduo pequeno, inferior em relação a uma outra personagem que se destaca (MARTIN, 2005). O plongée aqui tem função descritiva junto ao enquadramento das filmagens aéreas. A filmagem vertical (MARTIN, 2005) proporciona dois efeitos: um, quanto ao enquadramento, segundo Martin (2005, p. 45), “muda o ponto de vista normal do espectador”, permitindo ao público assistir a caçada de um ângulo que o homem jamais conseguiria sem os recursos cinematográficos utilizados; e desempenha a função de mostrar a organização da estratégia de caça desses animais, captando o posicionamento dos cães selvagens pelo terreno numa espécie de “mapeamento geográfico” da ação. A perseguição é muito rápida e as imagens em quase sua totalidade possuem o fundo varrido e os animais nítidos, em destaque, na maioria das vezes, em corpo inteiro (plano conjunto) ou excluíam-se as pernas (plano médio). Esse tipo de imagem contém um valor icônico, de plasticidade, uma vez que se assemelha ao panning, técnica fotográfica muito utilizada em eventos de alta velocidade. A caçada é filmada por dois ângulos de visada predominantes: neutro e vertical, ambas desempenhando o papel de descrever a ação do melhor ângulo possível. As imagens intercalam ora uma espécie e outra ou as duas juntas no ato da perseguição/fuga, mas sempre uma em relação à outra. As imagens aéreas permitem ao espectador uma visão ampla da perseguição. O ritmo é imposto pelos movimentos de câmera que compõem os planos juntamente com os ângulos de visada de câmera que variam entre plongée, vertical e neutro, exercendo uma função fundamental na sequência: (...)a câmera, perpetuamente móvel, cria uma espécie de dinamização do espaço, o qual em vez de permanecer como um quadro rígido, se torna fluido e vivo: as personagens tem o aspecto de ser arrastadas num movimento balético (...), por outro lado, modificando a cada instante o ponto de vista do espectador, os movimentos incessantes da câmera desempenham um papel análogo ao da montagem e acabam por conferir ao 360 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 filme um ritmo próprio que é um dos elementos essenciais do seu estilo. (MARTIN, 2005, p. 57) Fig. 4: Trecho do quarto momento da seqüência Cão selvagem africano versus Impala A última parte do trecho é marcada mais uma vez pela evidenciação do comportamento de equipe entre os membros da matilha (fig. 5). Durante a perseguição, um grupo se une atrás de um impala, mas a presa escapa momentaneamente do ataque saltando em um lago. O ato inesperado cria uma impressão de desfecho surpreendente. É necessário notar que no momento em que o impala pula no lago, não há passagem entre dois planos. É um plano geral que se torna grande plano geral, por meio de um recuo no enquadramento da cena. O ato inesperado do impala, junto à obrigação da câmera de registrar o momento é marcado por tal recuo que amplia o ângulo de visão do espectador. Essa passagem de um plano a outro dentro de um mesmo plano possui significado icônico, que sugere a surpresa do cinegrafista, que possivelmente possa ser a mesma no público, um sentimento de “ruptura do óbvio” que aconteceria, já que ao longo da filmagem, houve toda uma exaltação das habilidades de predação do cão selvagem africano e da vulnerabilidade do impala no ambiente. 361 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig. 5: Trecho do quinto momento da seqüência Cão selvagem africano versus Impala O grupo de cães envolvidos na perseguição permanece unido às margens do lago aguardando o possível retorno do impala à terra (fig. 6). Foram utilizados consecutivamente: o plano aberto em plongée, o plano de conjunto em ângulo normal e o close-up em angulação normal, todos sem a movimentação da câmera, criando a sensação do mergulho gradual do espectador entre os cães que aguardam a presa. Emerge uma sensação de frustração por parte dos cães causada pela atitude do impala. Fig. 6: Matilha observa sua presa fugindo (imagens pertencentes à quinta parte da seqüência) No entanto, a sequência continua. A cena dos cães à beira do lago é interrompida por grunhidos e se inicia uma repentina movimentação do grupo e das câmeras que o acompanha (fig. 7). Nas imagens que se seguem, a filmagem aérea foi essencial para acompanhar em plongée a trajetória do grupo que caminha em direção aos grunhidos como se respondessem a chamados. Enfim, o motivo da movimentação é encontrado pela câmera aérea: o restante do grupo obteve sucesso na caçada e alertou os demais membros, para se alimentarem junto ao 362 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 grupo. A utilização da filmagem aérea capturou imagens e contextualizou elementos que provavelmente escapariam da filmagem em terra, que está sujeita aos obstáculos visuais do terreno e ao menor dinamismo e capacidade de cobertura da paisagem. Fig. 7: ações simultâneas da matilha e do impala (imagens pertencentes à quinta parte da seqüência) Localizados os cães selvagens se alimentando, cenas em angulação normal, em plano de conjunto e fechadas em close-up e extreme close-up foram empregadas com a câmera fixa, transmitindo o detalhamento das ações e de elementos dramáticos, como a agitação das caudas dos cães como se celebrassem o momento (fig. 8): Fig. 8: desfecho da seqüência (imagens pertencentes à quinta parte da seqüência) Por fim, uma tomada aérea do impala que havia escapado dos cães no lago é realizada em plano aberto em plongée, com a câmera sem movimentação, deixando que o único animal presente no enquadramento deixe este, dando a idéia de finalização da sequência. A cena é complementada pela narrativa mostra o impala salvando a sua vida. Há momentos em que a continuidade se verifica na sucessão dos planos, fundamentada na direção do olhar dos indivíduos (MARNER, [1985?]) na justaposição dos planos. Como, por exemplo, na sequência, quando o cão caminha em uma direção de maneira sorrateira, preparando um ataque. E o plano seguinte, que mostra a presa olhando, atenta, para a suposta direção em que o cão se encontra. Ou, quando o cão olha para a câmera em um close up e é sucedido por um 363 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 plano também em close up no qual o impala também olha para a câmera, dando a impressão de que ambos se olham, se notam. Mas essa é uma impressão propiciada pela montagem, em consonância com a estrutura narrativa. Entretanto, observou-se que a inserção de alguns planos no final da montagem (fig. 9) fez com que a continuidade da sequência se quebrasse, podendo provocar dúvidas no espectador. Isso pode ser explicado pela perda de referência no eixo da ação da fuga do impala no lago (MARNER, [1985?]). Esta direção genérica da deslocação chama-se eixo da ação, e o actor move-se ao longo desse eixo. Se todos os planos forem obtidos do mesmo lado desse eixo, então o actor movimentar-se-á constantemente na mesma direção dentro do enquadramento. O eixo da ação é criado pela trajetória da movimentação das personagens em ação dentro desse plano, situando-se a câmara em posição tal que, relativamente à acção, garanta a correcta continuidade visual (MARNER, [1985?], p. 92) Fig. 9: Quebra de continuidade nos planos que filmam o impala no lago Nos planos que mostraram a fuga do impala no lago, surge um confundimento, que causa uma ruptura no raciocínio do espectador. Não foi possível determinar precisamente se o impala volta para a margem da qual saltou ou se nada em direção à margem oposta. Isso pode ter ocorrido devido à utilização de diferentes posicionamentos de câmera, na montagem da cena ou pelo uso de planos que limitaram a percepção do ambiente, retirando do enquadramento os elementos referenciais da imagem. Contudo, esta tomada foi realizada em planos mais fechados, provavelmente, buscando a expressividade do impala nadando no lago, atitude incomum que só é presenciada em situações extremas. Considerações finais A utilização da teoria semiótica de Charles Sanders Peirce, junto às considerações teóricas a respeito do cinema nas falas de Tenrence Marner e Marcel Martin, contribuiu para a compreensão de como ocorre o processo de significação dentro da sequência escolhida, pertencente à série documentária Planeta Terra – a Terra como você nunca viu. Foram analisados os papéis da montagem, dos planos ou enquadramentos e dos ângulos de visada de câmera no processo de significação do vídeo. 364 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O papel dos planos e enquadramentos, dentro de suas convenções na linguagem cinematográfica (caráter simbólico), esteve ligado mais fortemente ao caráter indicial genuíno, e por indicarem aspectos relativos à filmagem e cumprir a função de delimitar o assunto dentro do quadro. E aos aspectos icônicos em menor grau, por possibilitarem impressões de proximidade dos animais, impressão de velocidade, percepção de texturas e de tensão ou tranquilidade. Os ângulos de visada de câmera são analisados em seu valor simbólico quando utilizados dentro das convenções da linguagem cinematográfica. Como aspecto indicial, os ângulos de visada de câmera podem ser considerados índices genuínos que indicam o local e posicionamento da câmera em relação ao fenômeno. Os ícones ficam por conta das impressões causadas pelos planos, uma vez que todo plano é composto por ângulos de visada de câmera. Os aspectos semióticos da montagem narrativa alternada desta sequência se encontram nos três níveis sígnicos: icônicos, indiciais e simbólicos. Isso ocorre da seguinte maneira: a montagem é o processo de organização dos planos com o objetivo de que essas escolhas seqüenciais propiciem um entendimento. Entretanto, essa ordenação dos planos, no caso do objeto de estudo deste artigo, visa a compreensão de um fenômeno natural que ocorre de fato em um mundo existente, pertencente ao mundo concreto. Para que seja compreendido o fenômeno, o signo sequência se expõe em seu caráter indicial degenerado. Isso significa que a montagem da sequência obedece à forma como se dá o fenômeno existente e para isso, toma-o como referência para sua construção de significado. Por não haver filmagem sem cortes, a construção da montagem precisa buscar na gama de planos filmados a identificação e possibilidade de conexão entre os planos. Isso se dá por meio da ideia de continuidade presente no fundamento da montagem, essa ideia de continuidade está relacionada, neste objeto de estudo, ao nível icônico da montagem, que se dá por meio das sensações, sugestões e impressões que a montagem cria dentro da estrutura narrativa. Esses valores icônicos são o que permite criar, entre um plano e outro, uma conexão, uma relação de ligação entre os dois. É o que garante, por exemplo, a impressão de “certeza” de que o impala percebe a presença do cão selvagem africano em seu território, pois ele olha para a câmera e em seguida, o cão selvagem africano olha para a câmera ou está em posição de motim, ataque. São planos em que as espécies aparecem sozinhas no quadro, não há conjunto ou um plano que evidencie, neste momento, que as duas espécies estão em confronto, há apenas a impressão causada pelo intercalar de planos. Tais impressões ficam mais fortes quando há um plano que enquadra as duas espécies ao mesmo tempo, em um só plano. Isso é o que legitima todas aquelas impressões anteriores em que se instalavam, como um sentimento de apreensão da iminência do ataque. SEMIOTIC ANALYSIS OF THE RELATIONSHIP BETWEEN FRAMEWORK, ANGLES OF VIEW AND FILM EDITING IN A SEQUENCE OF THE DOCUMENTARY SERIES “PLANET EARTH – AS YOU’VE NEVER SEEN IT BEFORE” 365 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 ABSTRACT: This article focuses on a semiotic analysis of the relation among framings, camera angles of view and film editing at the meaning process in one sequence of the documentary series about wildlife “Planet Earth – as you have never seen it before”. The objective was to understand how these elements could bring significance to the video narrative structure. So, we used as a reference the texts on the philosophical semiotics created by Charles Sanders Peirce and expanded by Lúcia Santaella, Winfried Nöth and Marcelo Moreira Santos; besides the studies of cinema language made by Marcel Martin, Christian Metz and Terence Marner. The sequence chosen to be analyzed shows a hunter strategy developed by a rare mammal predator, the wild African dog (Lycaon Pictus), that acts in group, during a chase after a group of impalas (Aepyceros melampus). As a result, it was possible to see the capacity of alternate editing and notice the way that framings and camera angles of view acted bringing meaning and rhythm to the narrative structure. Finally, the signification process in this sequence was understood as a phenomenon constructed from the semiosis in different levels of the sign, arranged in the editing process of the sequence. Keywords: Signification. Sequence. Film editing. Angles. Framework. REFERÊNCIAS: CREEL, S.; CREEL, N. M. Communal hunting and pack size in African wild dogs, Lycaon pictus. Revista: Animal Behaviour. Nottingham, n. 50, p. 1325-1339, 1995. MARNER, T. S. J. A Direção Cinematográfica. São Paulo: Martins Fontes, [1985?]. MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005. METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1977. NOGUEIRA, L. Manuais de Cinema III: Planificação e Montagem. Covilhã: Livros LabCom, 2010. Disponível em: <http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/nogueiramanuais_III_planificacao_e_montagem.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2011. SANTAELLA, L.; NÖTH, W. IMAGEM: Cognição, semiótica, mídia. 4ª ed. São Paulo: Iluminuras Ltda. 2005. 366 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 SANTAELLA, L. Semiótica Aplicada. São Paulo: Thomson Learning, 2007. SANTAELLA, L. Matrizes da Linguagem e Pensamento: sonora, visual, verbal. 3 ed. São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 2005. SANTOS, M. M. O plano e a mise-en-scène: uma análise semiótico-sistêmica sobre a sintaxe e a forma da imagem em movimento. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista [suporte eletrônico], São Paulo, n. 02, p. 1-17, mai. 2011. Disponível em: < http://www.semeiosis.com.br/wp-content/uploads/2011/05/Marcelo-Moreira-Santos.-O-planos-ea-mise-en-sc%C3%A9ne.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2011. SOUZA, H. A. G. de Tópicos Especiais III: Disciplina de estudos de linguagem cinematográfica. Campo Grande: Programa de Pós-graduação Mestrado em Estudos de Linguagens, 3 mar. a 16 jun. 2011 (notas de aula). 367 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 A figura da mulher na toponímia sul-mato-grossense: Questões históricoideológicas Letícia Alves Correa de OLIVEIRA1 Aparecida Negri ISQUERDO2 RESUMO: Este artigo discute resultados de estudo sobre antropotopônimos femininos na toponímia sul-matogrossense, que buscou identificar mecanismos de nomeação envolvendo a figura da mulher no recorte toponímico estudado e detectar possíveis relações entre a produtividade dessa categoria de topônimos e o contexto sóciohistórico-cultural do Estado de Mato Grosso do Sul. A análise foi orientada por princípios teórico-metodológicos da Lexicologia e da Toponímia, em especial o modelo teórico de Dick (1990; 1998; 2000). O corpus integra o Banco de Dados do Atlas Toponímico de Mato Grosso do Sul (ATEMS) e foi analisado em termos quantitativo e qualitativo. A pesquisa ratificou uma tendência geral da toponímia brasileira, à medida que constatou a predominância de topônimos com nomes masculinos e de base portuguesa no universo toponímico estudado apenas 23,95% são topônimos formados por nomes de mulher, dos 480 antropotopônimos no total, apenas 115 são nomes femininos. A mesma tendência foi confirmada entre os hagiotopônimos femininos, universo em que foi detectado um percentual de 32% nomes de santas (dos 349 nomes de santos, apenas 114 são nomes de santas). A pesquisa comprovou que o comportamento toponímico reflete a postura social predominante na sociedade, que por meio dos topônimos privilegia o elemento masculino em suas homenagens. PALAVRAS-CHAVE: Antropotopônimo. Mulher. Mato Grosso do Sul. Introdução O léxico é o acervo vocabular de uma língua e nomeia todos os conceitos linguísticos e não linguísticos acumulados ao longo do tempo, configurando-se, portanto, o patrimônio vocabular de uma comunidade linguística. Segundo Biderman (2001, p.12), o léxico das línguas naturais é “um sistema aberto com permanente possibilidade de ampliação, à medida que avança o conhecimento, quer se considere o ângulo individual do falante da língua, quer se considere o ângulo coletivo da comunidade lingüística”, daí a sua versatilidade gerar crescentes mudanças no sistema lexical das línguas. 1 UFMS. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Centro de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Letras. Campo Grande. Mato Grosso do Sul. Brasil. 79070-900. [email protected]. 2 UFMS. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Centro de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Letras. Campo Grande. Mato Grosso do Sul. Brasil. 79070-900. [email protected]. 368 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 O homem, ao longo de sua existência, sentiu a necessidade de situar-se espaço em que vive e, para tanto, tem se valido do acervo vocabular da língua para nomear os acidentes geográficos e orientar-se nesse espaço. Esse processo de nomeação dos acidentes gerou na língua a categoria dos nomes de lugares (topônimos), que passou a ser objeto de investigação de uma área da Onomástica, ciência que se ocupa do estudo dos nomes próprios de pessoas e de lugares. Assim, enquanto a Antroponímia estuda os nomes de pessoas, a Toponímia ocupa-se do nome de lugares (acidentes geográficos). Como afirma Dick (1990, p.16), a Toponímia e a Onomástica acham-se, assim, em uma verdadeira “relação de inclusão”, em que aquela será sempre, desta, “uma parte de dimensões variáveis”. O emprego dos signos linguísticos é fundamental nas ciências onomásticas, que devem levar em conta a natureza do código verbal, responsável pela definição do campo conceitual da disciplina e, no caso da Toponímia, pela nomenclatura geográfica em suas características internas e externas. Nesse contexto, é preciso considerar que os nomes de lugares traduzem a visão de mundo do denominador que, por sua vez, é produto de um modelo cultural permeado de crenças, mitos, ideologias, estereótipos que integram a macrovisão da cultura do grupo/sociedade. Em razão disso, muitos nomes, em especial os que traduzem homenagens, [...] destacam a relação dominante/dominado, ou melhor dizendo, o poder do mando e da sujeição, mesmo em regiões em que o exercício de autoridade não se define pelo continuísmo ou pela transmissão hereditária. A toponímia antroponímica, por esses constituintes, reflete, subjacente à forma, motivos de ordem psicológica mais profunda que levam o pesquisador a tentativas de explicação [...]. Mas (o modelo) revela muito da pressão social, da coerção que o próprio sistema impõe aos seus membros (DICK, 1998, p. 99-100). Nota-se que, dada a natureza do seu objeto de estudo, não raras vezes as pesquisas toponímicas necessitam de dados sobre a cultura e a história do lugar para conseguir interpretar a causa denominativa que deu origem ao topônimo: [...] as relações Toponímia e História se fazem sentir no quotidiano dos próprios fatos que os designativos revelam. O lado dinâmico da disciplina Onomástica não poderia deixar à parte ocorrências e nomes particulares, pelo simples motivo de não terem alcançado, ainda, uma grande amplitude de emprego. Muitas vezes, salienta-se, é a difusão mais ou menos rápida e nítida, num contexto geográfico específico, que confere, a um topônimo, dimensões maiores que a sua própria regionalidade ou o seu conteúdo significativo (DICK, 1990, p. 105). Em razão disso, a Toponímia analisa os designativos geográficos em sua bipartição física e humana, uma vez que tanto os nomes das pequenas vilas e dos pequenos cursos d´água, quanto os das grandes metrópoles trazem consigo uma carga histórico-cultural muito vasta, razão pela qual 369 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 [...] a Toponímia reserva-se o direito de se apresentar como a crônica de uma comunidade, gravando o presente para o conhecimento das gerações futuras. Assim é que os elementos mais diferenciadores da mentalidade do homem, em sua época e em seu tempo, em face das condições ambientais de vida, que condicionam a sua percepção do mundo, estão representados nos nomes de lugares, senão todos, pelo menos os mais flagrantes (DICK, 1990, p.22). Mesmo o topônimo sendo um significante, sua funcionalidade adquire uma dimensão maior, uma vez que, como explica Dick (1990, p.18), “o que era arbitrário, em termos da língua, transforma-se, no ato do batismo de um lugar, em essencialmente motivado, não sendo exagerado afirmar ser essa uma das principais características do topônimo”. A motivação toponímica se dá na intencionalidade que anima o denominador a eleger um determinado nome para um acidente geográfico e na própria origem semântica da denominação. Essas modalidades configuram-se em perspectivas sincrônicas e diacrônicas do estudo da toponímia e interferem na formalização das taxionomias dos nomes de lugares, as quais permitem a aferição objetiva de causas motivadoras dos designativos geográficos, como por exemplo, a taxe dos antropotopônimos – “topônimos relativos aos nomes próprios individuais” (DICK, 1990, p.32), cuja causa denominativa é centrada na homenagem a pessoas ilustres da comunidade. Nessa perspectiva, deve-se entender o conceito de Antroponímia e seus processos peculiares responsáveis pela ação denominativa propriamente dita. Segundo Dick (2000, p. 218), a Antroponímia pode ser considerada um subsistema da Onomástica, possuindo, como objeto de trabalho, uma dupla natureza: o nome individual e a forma parental. O primeiro diz respeito à distinção do portador dos demais membros da comunidade e o segundo, à definição do indivíduo pelos laços de sangue, como integrante de um grupo familiar: “[...] os nomes próprios fazem parte integrante de sistemas tratados por nós como códigos: meios de fixar significações, transpondo-se para termos de outras significações” (LÉVI-STRAUSS, 1970, apud DICK, 2000, p. 219). Nos dias atuais, define-se o nome pelos traços pessoais de seu portador, sem a preocupação de considerá-lo um signo de língua, dotado de significado e motivação social. A carga emotiva e valorativa do nome esvazia-se no ato da denominação. (DICK, 2000, p. 219). O nome individual distingue o portador dos demais membros da comunidade e a forma parental o definirá como integrante de um grupo familiar: “transmitido de geração a geração, o nome ou apelido de família carrega em si todas as marcas da descendência gentílica, não sendo por isso de livre escolha dos cidadãos” (DICK, 2000, p. 218). No ato da denominação, leva-se em conta toda a carga emotiva e valorativa do nome: “as marcas pessoais em um nome podem ser de origem física flagrante (plano da visibilidade externa) ou de origem moral (plano da subjetividade interna e do caráter pessoal)” (DICK, 2000, p. 220). A motivação do prenome tem sido fonte de estudo da Onomástica brasileira. Como lembra Dick (2000, p.222), 370 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 [...] a motivação dos prenomes tem sido uma fonte de pesquisa dentro do tema geral dos padrões semânticos da onomástica brasileira, a que vimos nos dedicando. Dos motivos gerais elencados por Guérios (1981: 21-29) são poucos os que permanecem e que ilustram, hoje, o batismo das crianças. A fé, por exemplo, ainda persiste, e se manifesta na devoção de alguns dos santos mais populares como Santo Antônio, São José, São Francisco ou São João; dentre as santas, os que recordam termos específicos da Virgem, em composição (Maria da Penha, Maria Aparecida) ou em aplicações simples (Fátima, Aparecida) e aqueles relativos à Santa Isabel, Santa Rita, Santa Catarina e Sant’ana. Para Dick, do ponto de vista da Lexicografia, dois dados vêm se contrastando: o decréscimo dos nomes indígenas de origem tupi, provavelmente devido ao esvaziamento das matrizes tradicionais comuns até os anos de 1960 a 1970, como Ubirajara, Jaci, Iracema, dentre outros, e a intercorrência de estrangeirismos de origem americana, empregados com defeituosas variações gráficas, como Kellie, Daiana, Jaison, para citar alguns. Pautando-se na análise da Toponímia antroponímica brasileira, Dick (2000, p. 222-224) propôs uma tríplice tipologia de nomes correntes em antropotopônimos brasileiros: Nomes perenes: nomes tradicionais oriundos das primeiras camadas portuguesas, como João, José, Antônio etc; Nomes cíclicos: ocorrem em determinadas épocas, acionados por um fator social, como Carolina, Ana Carolina, Gabriela etc; Nomes de moda ou nomes de época: Marcelo, Adriano, Tiago, Gabriel, Roberta etc. O antropotopônimo é o topônimo formado por um nome próprio de pessoa, como ilustra o córrego Conceição, localizado no município de Rio Brilhante, no caso, um topônimo formado por nome próprio de mulher. O antropotopônimo é o objeto de estudo deste trabalho, que tem como foco a pesquisa acerca da questão da presença feminina na toponímia sul-mato-grossense, considerando para tanto a macrotoponímia (nomes de municípios/cidades) e a microtoponímia urbana (vilas, distritos, povoados) e rural (rios, córregos, corixos, ilhas, cabeceiras...). Metodologia O Projeto ATEMS tem como objetivos catalogar, classificar, analisar e cartografar os nomes dos acidentes físicos e humanos do Estado, distribuídos pelos 78 municípios que integram as onze microrregiões administrativas definidas pelo IBGE para Mato Grosso do Sul. O ATEMS trabalha com dados oficiais registrados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em folhas cartográficas (mapas oficiais) com escala de 1:250.000 (1ª etapa do Projeto – 2002/2006) e de 1:100.000 (2008/2010). Os topônimos analisados neste estudo foram, pois, extraídos do Banco de Dados do Projeto ATEMS que, até o estágio da coleta dos dados para esta pesquisa, reunia cerca de 6.700. Levantados todos os topônimos classificados como 371 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 antropotopônimos (nomes assim classificados pela equipe de pesquisa do Projeto ATEMS, depois de conferidos quanto à classificação taxionômica), inicialmente os dados foram organizados segundo a microrregião e o município a que pertencem3. Análise e discussão dos dados A Toponímia não tem registrado índices significativos de nomes femininos, fato explicado por razões histórico-ideológicas que ultrapassam as questões toponímicas. O Projeto ATEMS (Atlas Toponímico de Mato Grosso do Sul), por exemplo, que já tem registrado em seu banco de dados cerca de 6.700 topônimos, confirma o exposto, à medida que, desse total, 480 pertencem à categoria dos antropotopônimos e, dentre eles, apenas 115 (23,95%) são topônimos formados por nomes femininos. Os demais se distribuem entre nomes masculinos (60,83%) e sobrenomes (15,20%). A Figura 1, a seguir, ilustra essa distribuição em termos percentuais. 15,20% 23,95% 60,83% nom es fem ininos nom es m asculinos sobrenom es Figura 1 – Distribuição dos antropotopônimos sul-mato-grossenses, segundo a natureza do nome próprio. Como se observa, os antropotopônimos femininos são pouco evidentes se comparados à presença de nomes masculinos, já que, na nomeação de lugares, são homenageados, mais frequentemente, políticos, religiosos, pioneiros e proprietários de terras. Constatações similares foram obtidas por Aguilera e Bergantini (2002, p. 149), em estudo sobre o lugar da mulher nos nomes dos 400 municípios do Estado do Paraná, que integram a base de dados do Projeto ATEPAR (Atlas Toponímico do Estado do Paraná). Esse estudo apurou que em 125 topônimos 3 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada à Coordenadoria de pesquisa/PROPP/UFMS como Relatório Final de bolsa de Iniciação Científica/UFMS/2009. Cf. Oliveira; Isquerdo, 2009. Disponível em: http://www.propp.ufms.br/gestor/titan.php?target=openFile&fileId=612 372 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (31%) do universo de dados, “homenageia-se a figura humana seja do mundo profano (antropotopônimo, axiotopônimo, acronimotopônimo) ou do mundo religioso (hagiotopônimo), com predomínio da imagem masculina em 100 deles, ou seja, 25% do total, restando à figura feminina pouco mais de 6%, totalizando 25 municípios”. Observando-se apenas os topônimos que formam a nomenclatura dos municípios sul-mato-grossenses, nota-se tendência similar, uma vez que, dos 78 nomes de municípios, apenas 17 são antropotopônimos (20,51%) – 03 com nomes femininos (3,84%), 12 com nomes masculinos (15,38%) e com 02 sobrenomes (2,56%) – e 06 (7,69%) são hagiotopônimos/hierotopônimos. Dentre essa última classificação, 04 (5,13%) são nomes femininos. Analisando os dados relativos à macrotoponímia paranaense, concluem as estudiosas que [...] o lado do pioneiro sempre esteve a mulher, a filha, a mãe, lutando juntos contra os perigos da mata e das doenças, criando e educando os filhos, executando o serviço doméstico, cuidando da criação de pequenos animais e da lavoura de subsistência da família. Todo esse suporte era fundamental para o chefe da família poder desbravar a mata, fazer as picadas e estradas, construir o rancho, e iniciar a agricultura extensiva. No entanto, à mulher destinou-se o anonimato, a sombra (AGUILERA; BERGANTINI, 2002, p. 153) (grifo nosso). Outro aspecto observado neste estudo diz respeito à quantidade dos municípios do Estado de Mato Grosso do Sul, cujos mapas registram a presença de antropotopônimos femininos na designação de acidentes físicos e humanos. Dos 78 municípios sul-mato-grossenses, em apenas 51 foram registrados topônimos dessa categoria (65,38%), enquanto os outros 27 apresentam apenas antropotopônimos formados, ora por nomes masculinos, ora por sobrenomes (34,60%), categorias essas também com ocorrência nos 51 municípios com registro de topônimos que prestam homenagem a mulheres. A Figura 2, na sequência, informa esses dados em termos percentuais. 34,60% 65,38% Municípios com registro Municípios sem registro 373 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Figura 2 – Distribuição dos municípios sul-mato-grossenses, em termos de registro de antropotopônimos femininos. Observa-se que em 27 municípios não foram registrados antropotopônimos femininos, fato que pode ser explicado pela herança histórica e social dessas localidades. A observação desses dados sob a perspectiva da distribuição diatópica – municípios onde se concentram os antropotopônimos femininos – evidencia uma distribuição irregular entre as cidades, a saber: 23 municípios (45%) com 01 ocorrência; 13 municípios (25,6%) com 02 ocorrências; 08 municípios (15,6%) com 03 ocorrências; 03 municípios (5,8%) com 06 ocorrências. Por fim, foram identificados quatro municípios com os seguintes números de ocorrências de topônimos com nomes femininos: 08 (Ivinhema), 07 (Iguatemi), 05 (Três Lagoas) e 04 (Corumbá). Observando-se agora o conjunto dos 115 antropotopônimos femininos sob a perspectiva do tipo de acidente nomeado, detectamos que, desse montante, 19 nomeiam acidentes humanos (cidades, vilas, povoados, fazendas...) e 96, acidentes físicos (rios, córregos, corixos...). Um dado significativo nesse particular é a grande produtividade de acidentes físicos nomeados com antropotopônimos femininos, o que aponta para uma tendência de maior valorização da figura feminina na toponímia local, já que o predomínio da categoria de antropotopônimos recai normalmente na nomeação de acidentes humanos. A Figura 3, a seguir, ilustra essa distribuição. 16,50% 16,50% 83,50% 83,50% acidentes acidenteshumanos humanos acidentes acidentesfísicos físicos Figura 3 – Distribuição percentual dos antropotopônimos femininos, segundo o tipo de acidente nomeado. Outro aspecto considerado na análise dos dados foi a dimensão etnolinguística dos antropotopônimos femininos. No conjunto dos dados, podemos citar como nomes que evidenciam a influência das diferentes camadas dialetais responsáveis pela formação étnica da população desse Estado: base portuguesa (60), espanhola (14), indígena (03), nomes híbridos 374 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (português + indígena) (09) e outras origens (28). De base portuguesa aparecem nomes como Manuela, Mariana, Aparecida, Maria, Glória, Conceição; de base espanhola: Anita, Estelita, Panchita, Paloma, Consuelo, Quitéria; os nomes indígenas catalogados foram: Araci, Jurema; nomes híbridos: Leiva-Cuê, Marcolina-Cuê, Marcelina-Cuê, Ladesina-Cuê e Rufina-Cuê; e de outras origens: Bianca (italiano), Eulália (grego), Leonor (árabe), dentre outros. Os antropotopônimos femininos de base indígena e os híbridos são mais recorrentes nas microrregiões de Dourados e de Iguatemi, regiões fronteiriças que abrigam 31 municípios sulmato-grossenses. Um dado que particulariza a toponímia do sul do Estado é a presença do formante “cuê”, um radical da língua guarani que, segundo Theodoro Sampaio, na obra O Tupí na Geographia Nacional (1928), vem de Cué é “adj. Contracção de Cuéra, mais freqüente no guarani, Paraguay”. O formante cuéra, por sua vez, é definido pelo mesmo estudioso, como “adj. Velho, antigo; o que já foi, o passado, velhaco, esperto, entendido”. Essa informação é confirmada pelo dicionário guarani-português, de Tibiriçá (1989), que define Cué como “que conota ideia de passado, o que foi”. Esse elemento de base guarani aparece em justaposição com formantes de base portuguesa em topônimos como: Leiva-Cuê e Marcolina-Cuê, no município de Amambai; Candinha-Cuê e Leiva-Cuê, em Coronel Sapucaia; Marcolina-Cuê e Marcelina-Cuê, em Iguatemi; Leivia-Cuê, em Paranhos; Ladesina-Cuê, em Ponta Porã, além de Rufina-Cuê e Marcelina-Cuê, em Tacuru. Outro aspecto observado nos dados em exame é a presença de designações que se enquadram na tipologia de nomes correntes em antropotopônimos brasileiros, constatada por Dick (2000, p.224) e já focalizada neste trabalho, ou seja: i) nomes perenes, categoria identificada em municípios como Caarapó: Córrego Aparecida; Ponta Porã: Arroio Glória; Maracaju Riacho Gertrudes; Iguatemi: Córrego Manuela; Porto Murtinho: Ilha Maria, dentre outros; ii) nomes cíclicos, ilustrados pela presença do topônimo Quitéria, que nomeia 01 acidente geográfico nos municípios de Aparecida do Taboado, Inocência e Paranaíba; e, por fim, iii) nomes de moda e nomes de época, ilustrados pela presença do antropotopônimos Marcela, que nomeia 01 acidente nos municípios de Amambai, Iguatemi e Tacuru, Mariana, que designa 01 acidente em Amambai e Angélica que, além de servir de nome de uma localidade sul-matogrossense, aparece como designação de 01 acidente no próprio município de Angélica e 01 em Jardim. Comparando-se o universo de antropotopônimos catalogados no Banco de Dados do Projeto ATEMS com o montante de hagiotopônimos também registrados nessa mesma base de dados, notamos que as tendências evidenciadas na primeira categoria toponímica (antropotopônimos) confirmam-se na segunda (hagiotopônimos), uma vez que, dentre as 349 designações de santos que emprestam nomes a topônimos sul-mato-grossenses, apenas 114 são de santas. Esse dado indica que a pouca produtividade de nomes femininos não se restringe às homenagens a mulheres, estendendo-se também à homenagem a nomes de santas de devoção da população. A Figura 4, a seguir, evidencia a comparação entre os antropotopônimos e os 375 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 hagiotopônimos sul-mato-grossenses, distribuídos segundo duas categorias: “masculino” e “feminino”. 292 235 300 250 200 150 100 114 115 50 0 antropotopônimos masculinos hagiotopônimos femininos Figura 4 – Distribuição percentual dos antropotopônimos e dos hagiotopônimos formados com nomes masculinos e femininos. O conjunto de dados analisados evidencia que, assim como na toponímia brasileira como um todo, a figura da mulher é pouco expressiva entre os designativos toponímicos de Mato Grosso do Sul, fato explicado por razões histórico-ideológicas. Não é demais lembrar o fato de que historicamente a mulher tem lutado pelo seu espaço numa sociedade de cultura predominantemente machista, que veicula a imagem feminina como de um ser frágil, sem poder de decisão, apenas desempenhando o papel social de dona-de-casa e mãe. As desigualdades sociais sempre foram a tônica das sociedades de diferentes épocas na história da humanidade, fenômeno explicado por Fiorin (1988, p. 28), para quem, [...] a partir do nível fenomênico da realidade, constroem-se as idéias dominantes numa dada formação social. Essas idéias são racionalizações que explicam e justificam a realidade. Na sociedade capitalista, a partir do nível aparente, constroem-se os conceitos de individualidade, de liberdade como algo individual, etc. Aparecem as idéias de desigualdade natural dos homens. Daí se deduz que as desigualdades sociais são naturais. Em Mato Grosso do Sul não houve registro de nomes de líderes femininas na toponímia. Destaca-se o topônimo Inocência que, segundo Castiglioni (2008), configura-se como uma homenagem à protagonista do romance Inocência de Taunay (1872). Um dado que se destaca nesse particular é o fato de o nome Quitéria ter tido 04 ocorrências na toponímia estudada, além 376 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 de Santa Quitéria aparecer com 01 ocorrência. Não foi possível apurar a causa denominativa desses topônimos. Seria uma alusão à heroína brasileira da Guerra da Independência, Maria Quitéria de Jesus, uma militar de Feira de Santana que, pelos seus feitos foi promovida a Alferes de Linha, em 1823, pelo Imperador Dom Pedro II. Trata-se de um tema a ser investigado com mais profundidade em estudos posteriores. Considerações finais Como foi demonstrado ao longo deste trabalho, na categoria dos antropotopônimos predominaram topônimos com nomes masculinos, ratificando uma tendência geral da toponímia brasileira. São apenas 115 antropotopônimos femininos (23,95%), num universo de 480 nomes motivados por nomes próprios de pessoas. Entre as bases linguísticas dos antropotopônimos documentados por este estudo, destacam-se os nomes de origem portuguesa, um legado deixado pelo colonizador luso no território sul-mato-grossense; os de origem espanhola, etnia que também povoou parte do Estado de Mato Grosso do Sul e nomes híbridos (português + guarani) que representam marcas do contato linguístico existente nas regiões de fronteira com a Bolívia e, em especial, com o Paraguai, área onde esse tipo de nome foi documentado. O estudo confirmou ainda a importância das pesquisas toponímicas como forma de resgate de aspectos culturais e ideológicos dos grupos sociais, uma vez que os nomes de lugares traduzem a visão de mundo do denominador. Nesse particular, este estudo confirmou a valorização de nomes masculinos em detrimento aos femininos, dado que traduz o pensamento vigente na sociedade, que normalmente ainda atribui à mulher um papel secundário em muitas instâncias da vida social, profissional e familiar. Dos antropotopônimos catalogados, apenas 23,95% são topônimos formados por nomes femininos. Os demais se distribuem entre os nomes masculinos (60,83%) e os sobrenomes (15,20%). Nessa perspectiva, pôde-se constatar que o registro dos hagiotopônimos femininos assemelha-se, em termos de produtividade, aos antropotopônimos femininos, já que dos 349 nomes formados com designações de santos, apenas 149 recuperam nomes de santas. O estudo também estabelece possíveis relações com o contexto sócio-histórico-cultural e com a visão de mundo do homem sul-mato-grossense, tendo-se verificado que os antropotopônimos femininos de base indígena e híbridos são mais recorrentes nas microrregiões de Dourados e de Iguatemi. Além disso, um dado que particulariza a toponímia no sul do Estado analisado por este trabalho é a presença do formante “cuê”, ocorrência que evidencia a influência da cultura guarani no Estado do Mato Grosso do Sul. Enfim, o estudo demonstrou que a presença dos antropotopônimos masculinos é mais expressiva que a dos femininos na toponímia sul-mato-grossense, fato que pode ser explicado pela preferência em homenagear políticos, religiosos, pioneiros e proprietários de terras. Essas atividades dificilmente poderiam ser exercidas pelas mulheres, uma vez que durante séculos a 377 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 sociedade brasileira seguiu um sistema patriarcal, confirmado pelos textos que embasaram este trabalho. Assim como o papel social da mulher vem ganhando espaço nas sociedades modernas, estudos toponímicos posteriores poderão comprovar também que as motivações para nomear acidentes físicos e humanos talvez acompanhem as mudanças sociais, uma vez que o léxico de uma comunidade linguística traduz a realidade do grupo humano que o utiliza. É a toponímia funcionando como testemunha da história, de ideologias de uma sociedade! THE FEMALE FIGURE IN THE TOPONYMY OF THE BRAZILIAN STATE OF MATO GROSSO DO SUL: HISTORICAL AND IDEOLOGICAL ISSUES ABSTRACT: This article discusses results of a study of the anthrotoponymy using names of women used in the toponymy of the Brazilian state of Mato Grosso do Sul, seeking to identify the designation mechanisms involving the use of names of women and detect possible relations between the productivity of this toponymical category and its social-historical-cultural context in the state of Mato Grosso do Sul. The study uses the theoretical model of Dick (1990; 1998; 2000). The corpus is part of the "Atlas Toponímico de Mato Grosso do Sul (ATEMS)" database analyzed under quantitative and qualitative terms. The research has ratified a general tendency of Brazilian toponymy which is the predominance of reference to the Portuguese origin names of men in toponymys in this study – only 23.93% are toponymys formed using names of women, out of 480 anthrotoponyms, only 115 are names of women. The same trend has been confirmed with the hagiotoponyms; with a percentage of 32% female saints (349 names are of male saints, 114 are names of female saints). The study has proved that the toponymic behavior reflects the social attitude prevalent in society, that the male figure is preferred when awarded with the toponymical privileges. KEYWORDS: Anthrotoponymy. Women. State of Mato Grosso do Sul. REFERÊNCIAS: AGUILERA, V. de A.; BERGANTINI, V. Nome e lugar: o lugar da mulher na toponímia paranaense. Boletim. Centro de Letras e Ciências Humanas – UEL. Londrina, v. 1, nº 42, p.147160, 2002. BIDERMAN, M. T. C. Teoria Linguística: teoria lexical e lingüística computacional. 2. ed. 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Disponível em: http://www.propp.ufms.br/gestor/titan.php?target=openFile&fileId=612. 379 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 SAMPAIO, T. O Tupi na Geographia Nacional. Salvador: Secção Graphica da Escola de Aprendizes Artificies, 1928. TIBIRIÇÁ, L. C. Dicionário Guarani Português. São Paulo: Editora Traço, 1989. 380 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Os hidrotopônimos de base indígena presentes na toponímia rural das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda no Mato Grosso do Sul Lucimara Alves da C. COSTA1 Vitória Regina SPANGHERO 2 RESUMO: Este trabalho é um recorte da dissertação “Estudo lexical dos nomes indígenas das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda no Estado de Mato Grosso do Sul: a toponímia rural, defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campus de Três Lagoas, em fevereiro de 2011, e tem por objetivo discorrer sobre os hidrotopônimos de base indígena que configuram a toponímia rural das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda no Mato Grosso do Sul. Depois dos fitotopônimos e zootopônimos, os hidrotopônimos- ocupam um lugar bastante significativo no processo de designação toponímica das regiões supracitadas. Valendo-nos da classificação taxonômica proposta por Dick (1990), que propõe uma divisão em 27 taxes: 11 de natureza física e 16 de natureza antropocultural, a classe dos hidrotopônimos (taxe dada aos topônimos resultantes de acidentes hidrográficos em geral) se destaca devido ao grande número de córregos, rios, corixos e alagados, próprios do bioma Pantanal, o que justifica essa grande influência em nossos designativos, topônimos estes, na maioria das vezes, mais relacionados a aspectos culturais, que a características físicas propriamente ditas. PALAVRAS-CHAVE: Toponímia. Língua indígena. Mato Grosso do Sul. Introdução Ao atentarmos sobre a prática da nomeação, é necessário, antes de tudo, considerar que esse processo se constitui na relação entre ambiente, cultura e vida de um povo. Dick (1990, p. 5) ressalta que a nomeação dos lugares é uma prática exercida pelo homem desde os primeiros tempos alcançados pela memória humana, uma vez que essa simples ação proporcionava àquele não apenas um maior contato com o acidente nomeado, mas também uma inegável relação de posse entre possuidor e objeto nominado. Como exemplo desse ato designativo, Dick aponta a Bíblia, que traz em seus livros uma coletânea de nomes ligados a seus possuidores por uma relação histórica e cultural. Foi assim que passamos a ter conhecimento de nomes de acidentes físicos, como Mar Vermelho, ou nomes de entidades religiosas, como Jesus e Maria. Nesse constante processo de nomeação, surgiram ruas com nomes de personalidades históricas, rios 1 2 UFMS/CPTL- Três Lagoas – MS – Brasil. Cep:79600-000 UFMS/CPTL- Três Lagoas – MS – Brasil. Cep: 79600-000 [email protected] [email protected] 381 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 relacionados a nomes de animais ou vegetais e cidades relacionadas a etnias indígenas, entre outros. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo discorrer sobre os hidrotopônimos de base indígena que designam acidentes físicos das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda, no Estado de Mato Grosso do Sul. Buscamos, nesse estudo, verificar aspectos como: processo de formação desses topônimos e a motivação para escolha de tal designativo, buscando compreender a relação entre o homem, no caso o indígena, o ambiente físico e o topônimo propriamente dito. Para melhor compreensão do trabalho, optamos por dividi-lo em duas partes: na primeira procuramos estabelecer a relação entre o ambiente e o processo de designação toponímica e na segunda, apresentamos, por meio de fichas lexicográficas toponímicas, os dados levantados e análise dos mesmos. Por fim, passamos às considerações finais e referências. O ambiente como forma de influência no processo de nomeação Estudar a relação entre o ambiente e o processo de nomeação dos acidentes que o compõem é conceber a relação entre homem, léxico e cultura, pois, para Biderman (2001), o léxico relaciona-se ao processo de nomeação e percepção da realidade, pois é a forma mais usual de o ser humano registrar seu conhecimento sobre o universo, visto que, ao nomear os seres e objetos que o cercam, o homem os classifica e, ao mesmo tempo, identifica-os e caracteriza-os. Segundo a autora, a partir do momento em que passou a identificar as semelhanças e diferenças entre esses seres e discriminar os traços distintivos que permitem a identificação e individualização desses objetos, o homem começou a estruturar o mundo que o circunda, e foi esse frequente processo de nomeação que deu origem ao léxico das línguas naturais, uma vez que o ato nomeativo propicia ao indivíduo uma melhor apropriação da realidade e uma melhor reflexão sobre ela. Nesse sentido, Solis Fonseca (1997, p. 22) aponta que o topônimo é o meio que o homem emprega para humanizar a paisagem como parte de sua relação com seu ambiente geográfico. Colocar nomes é um meio de introduzir uma ordem humana à paisagem 3. De acordo com Sapir (1969), léxico e cultura relacionam-se diretamente, uma vez que é na língua que se reflete o ambiente físico e social de um povo. Entretanto, em relação ao nosso corpus específico, que consistiu em topônimos de origem indígena retirados de mapas cartográficos na escala 1: 125.000, disponibilizados pelo IBGE, compreendendo as regiões de Aquidauna, Corumbá e Miranda no Estado de Mato Grosso do Sul, verificamos a predominância de elementos de natureza física, o que justifica-se pela relação de proximidade e mesmo de cumplicidade entre o indígena e o ambiente, comprovando a tese de 3 Un nombre toponímico es un medio que utiliza el hombre para humanizar el paisaje como parte de su relación con su ambiente geográfico. Poner nombres es parte de un proceso de introducir un orden humano en el paisaje. 382 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Sampaio (1987), de que o indígena recorria, constantemente, a elementos de seu ambiente para nomear os acidentes físicos e humanos de seu convívio. Sendo assim, o ambiente físico funciona como a principal motivação do processo de denominação toponímica em que o nome confunde-se, muitas vezes, com o próprio acidente nomeado, uma vez que, como aponta Sampaio: O indígena fazia uso, globalmente, de elementos descritivos do seu ambiente e, [...] não apenas dos descritivos puros, mas também dos descritivos associativos porque é portador de uma visão prática e objetiva. [...] Assim, os diversos sistemas toponímicos apresentam expressões que significam, em seu universo onomástico, o mesmo fato, ou traduzem uma condição semelhante (SAMPAIO, 1987, p.8). A respeito dessa afirmação, Dick (1990, p 41) destaca que, “quando Sampaio fala em nomes descritivos deve fazê-lo não apenas voltando-se para as cargas naturais e permanentes [...] que transformam o topônimo em um espécime simbólico ideal”, ou seja, o topônimo não é sempre a representação ideal do que se deseja exprimir, nem um símbolo dessa representação, uma vez que, além dos descritivos puros, há os descritivos associativos, como os fatos temporários e circunstanciais que identificam um dado lugar ou acidente, traços esses que, mesmo não sendo ligados diretamente aos aspectos descritivos, não são menos importantes para o processo designativo desses acidentes. A autora exemplifica sua posição ao ressaltar a influência da fauna e da flora como forma de motivação toponímica: É o caso da vegetação brasileira, que contribuiu com tantos nomes para a toponímia fitonímica, ou dos próprios animais que, independente de um determinado espaço, definido como habitat próprio, o distinguem pela sua presença, isolada ou em bandos (DICK, 1990, p. 41). Relacionado aos hidrotopônimos encontrados em nossa pesquisa, verificamos que essa categoria ocupa um lugar bastante significativo nesse processo de nomeação, o que se justifica pelo grande número de córregos, rios, corixos e alagados, próprios do bioma Pantanal. Como exemplos desses topônimos, podemos citar os designativos: Aquidauana, caranday, guanabara, lalima, Paraguai, Piauí e Piracicaba, entre outros, que nomeiam rios, fazendas e córregos das regiões analisadas. Os hidrotopônimos de origem indígena: apresentação e análise dos dados Com um número de 16 topônimos, encontrados entre os 131 nomes analisados em nossa pesquisa, a classe dos hidrotopônimos nomeia diversos acidentes físicos das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda no Estado de Mato Grosso do Sul, entre eles, fazendas, rios e córregos da região. Elencamos a seguir, alguns exemplos desses designativos. 383 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig.1 Ficha lexicográfico-toponímica 1 Termo apresentado por Sampaio (1901, p. 109) “como proveniente de amambahy”. Segundo o autor, esse termo possui uma interpretação incerta, isto é, “talvez seja um vocábulo equivalente à ambayba ou embayba, embay, árvore oca muito conhecida em Matto Grosso e Paraguay”. Em outra acepção, Sampaio apresenta samambaia como “correspondente de çã-bambaí, olho torcido e enrolado, olho que desponta enrolado” (SAMPAIO, 1901, p.149). Tibiriçá (1997, p. 18) afirma que este termo provém do guarani “Amambaí-y, que significa “rio das samambaias”. Posteriormente, este mesmo autor define o topônimo Amambaí como “samambaia, nome comum de várias plantas gleiquenáceas” (TIBIRI Á, 1989, p. 27). Também seguindo esta etimologia, temos Guasch & Ortiz (1996, p. 517) e Assis (2008, p.27) que definem este topônimo como “samambaia, nome comum de inúmeras pteridófitas”. Entretanto, conforme apontam Isquerdo e Tavares (2005, p.139-140), “o topônimo Amambai configura-se como um dos mais controversos quanto à sua origem”. Segundo as autoras, Sampaio (1987, p. 311) apresenta a forma çama-mbai, termo associado à samambaia “traçado de cordas [...] entrelaçadas, [...] emaranhadas, alusão à trama confusa dessas plantas”. Apresentam, ainda, a acepção proposta por Bueno (1998, p. 558) que acrescenta à forma amambay, cujo radical- amã, significa chuva Outra definição é ainda apresentada por Tavares (2004, p. 191) que, citando o dicionário 4 indígena, completa, em parte, a definição de Bueno ao apresentar o topônimo Amambai como 4 Dicionário on line, disponível no site www.dicionárioindígena.com.br. 384 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 “feto dos lugares úmidos, amambaia, mambaia e samambaia; Amambaí, de Amã, que significa “rodear, enrolar” e -baí/-paí, que quer dizer “pendente”. Fig.2 Ficha lexicográfico-toponímica 2 Topônimo que apresenta muitas discordâncias quanto à sua etimologia. Segundo Tibiriçá (1997, p.21), é um termo de origem terena que nomeia o rio e uma cidade de Mato Grosso do Sul. De acordo com Robba (1992, apud SOUZA, 2006, p.09), “alguns autores advogam que o nome Aquidauana, conforme a toponímia tupi-guarani e dos índios guaicurus, quer dizer: ac, que significa “grande”, da, que significa “lugar” e oana, que corresponde a “araras”; portanto, a definição literal seria “lugar das araras grandes”. Entretanto, conforme Souza (2006, p. 09), “o que se percebe é que os kadiwéus emprestaram sua língua para originar o nome da cidade, na verdade, do rio. Entretanto, não se refere às “araras grandes”, e sim a “rio estreito ou pequeno”. Dessa forma, comungando com a definição de Souza, o dicionário da língua kadiwéu organizado por Griffiths (2002, p. 13) afirma que 'Aquidauana' provém do termo kadiwéuAkidawaani, que significa "rio estreito”. A respeito dessa formação, Griffths & Griffths (1976, p.95-96), apontam que o grau diminutivo, no kadiwéu, é formado de acordo com as seguintes regras: (a) perde-se a vogal final do tema nominal, exceto no caso de vogais duplas; (b) em temas nominais masculinos, consoantes plosivas sonoras perdem a sonoridade; 385 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (c) acrescentam-se os sufixos diminutivos: -awaanigi, quando o substantivo for masculino, e –awaana, se o substantivo for feminino. Entretanto, estes mesmos autores apontam a forma diminutiva do termo 'rio' como akiitawaanigi e não Akidawaani,definição dada a “rio estreito ou rio pequeno”. Fig.3 Ficha lexicográfico-toponímica 3 Termo de origem tupi apresentado por Sampaio (1901, p. 119) como forma proveniente de capivar-y-pe, alteração de capivar-y-be, que quer dizer “rio das capivaras”. De acordo com Tibiriçá (1997, p. 38), capivari é um termo originado da forma Ca-pií-guar’y, “rio das capivaras”. 386 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig.4 Ficha lexicográfico-toponímica 4 Topônimo apresentado por Sampaio (1901), Tibiriçá (1997) e Houaiss e Vilar (2001) como um termo de origem tupi. Para Sampaio (1901, p. 120), este nome corresponde à carandáyba ou caraná-yba, “a palmeira carnahuba”, numa segunda acepção, pode ser também “a bica, o cano, a calha”, ou, ainda corresponder à carandá-y, “rio das carnahubas”. Segundo Sampaio (1997, p. 39), o nome caranday apresenta como forma variante o termo carandai do tupi caranda’y, “rio da carnaúba ou pode ser apócope de caranayba, carnaubeira”. Conforme o dicionário Houaiss e Vilar (2001), este termo equivale a “uma palmeira de até 8 metros, [...] que possui folhas em leque e bagas ovóides pretas, suas fibras são usadas na confecção de chapéus, os frutos fermentados fornecem álcool e as sementes produzem óleo”. No entanto, de acordo com Tibiriçá (1989, p. 42), caranda-ĩ é um termo de origem guarani e nomeia uma “palmácea que fornece a conhecida cera de carnaúba”. Esta etimologia também é apresentada por Guasch & Ortiz (1996, p. 599), que advogam que esse termo é uma forma variante de karanda’y, “cierta palmera” e por Assis (2008, p. 139) que afirma que a forma caranday é o mesmo que karandá, ou seja, “uma espécie de palmeira”. 387 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig.5 Ficha lexicográfico-toponímica 5 Topônimo de origem tupi que, segundo Sampaio (1901, p. 53), é “formado pela composição de dois vocábulos tupis: guanã-bara, que é o mesmo que guanã-pará, tendo-se abrandado o p para b, por estar precedido de uma sílaba nazal.” O vocábulo goanã ou goá-nã, significa ‘bacia ampla, enorme e também Bahia’, portanto, goana-pará quer dizer: “rio da bahia ou barra da Bahia”. De acordo com Tibiriçá (1997, p. 51), a “versão classica corrente deste termo é gua-nã-bará, que quer dizer “mar semelhante baía, ou, baía-mar”, porém, segundo o autor, este nome pode apresentar em uma segunda interpretação: guananã-bará, “mar das marrecas”. Entretanto, de acordo com o dicionário Houaiss e Vilar (2001), guanabara significa “embarcação à vela de porte médio, de regata e recreio, com um só mastro, vela grande, bujarrona e balão”. 388 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig.6 Ficha lexicográfico-toponímica 6 Topônimo de origem kadiwéu definido por Souza (2006, p. 09) como “sumidouro”. Segundo o autor, “a grafia utilizada e conhecida pelos não-índios está em desacordo com a dos kadiwéu, uma vez que essa palavra deriva da palavra kadiwéu lalimagadi” (SOUZA, 2006, p.09). Este termo não se encontra registrado no dicionário da língua kadiwéu organizado por Griffths (2002). 389 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Topônimo de origem guarani proveniente do topônimo paraguay que nomeava o rio e posteriormente passou a designar o país inteiro que se estabeleceu na região. De acordo com Montoya (1876) 5 este termo pode ser definido como “rio coronado”, formado pela junção dos termos paragua que significa “corona de palmas” e y, “água ou rio”. Segundo Gubetich (1951, p. 13), a versão mais aceita e de melhor comprovação desse termo é a que o desmembra em três segmentos: pará, que significa “mar”; gua, que quer dizer “origem” e y, “rio”. Em sua tradução literal esse termo seria: “rio que origina um mar”. Gonzalez (1993, p. 71-72) advoga que a tradução correta do termo paraguay seria “rios de los moradores del mar”, que se refere ao povo guarani que habitava aos arredores desse rio e o dominava em boa parte. Segundo o autor, este termo seria assim analisado: [...] Paraguá’y (de Pará, mar; gua, morador, oriundo; y, rio o água), dice literalmente rio de los moradores del mar, clara referencia a los guaraníes que eran los señores de su corriente y navegaban por el Atlántico, en gigantescas piraguas, desde el Plata hasta el mar Caribe. (p.13). Entretanto, Sampaio (1901, p. 144) destaca que este termo origina-se do tupi paragua-y, que significa “rio dos papagaios”. Este apontamento também é defendido por Guasch & Ortiz 5 No escrito original não consta a numeração das páginas. 390 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 (1996) que destacam que pagua, em tupi significa “lorito”. Paraguay seria, então, “rio dos loritos o papagayos” 6 (GUASCH & ORTIZ, 1996, p. 705). Fig.7 Ficha lexicográfico-toponímica 7 Topônimo de origem tupi definido por Sampaio (1901, p. 146) como forma correspondente de Piauí, que significa: “rio dos piaus”. Tibiriçá (1997, p. 96) apresenta esse termo como forma correspondente de piau-y, “rio do piau, ou piaba”. De acordo com o dicionário Houaiss e Vilar (2001), este termo é documentado em Iracema, de José de Alencar (1829/1877 apud HOUAISS E VILAR, 2001), como o tupi pi'awa “piaba” ou o tupi pi ('ra) 'awa “piau, peixe grande” e 'ï , “rio”, logo Piauí, significa “'rio das piabas ou dos piaus”. 6 Rio dos louros ou papagaios (TL) 391 UFMS ANAIS II ENCONTRO REGIONAL DO GELCO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL AS PESQUISAS EM LETRAS: DIVERSIDADE E ENSINO 24, 25 e 26 de agosto de 2011 ISSN 2176-1256 Fig.8 Ficha lexicográfico-toponímica 8 Topônimo de origem Tupi formado pela justaposição de pirá, que significa “peixe”, e sycaba, que significa “fim, conclusão”; isto é, “lugar aonde chegam os peixes” (TIBIRI Á, 1997, p. 97). De acordo com o dicionário Houaiss e Vilar (2001), este termo designa o “remanso de um rio próprio para a pescaria”. Considerações finais Conforme mencionamos na introdução deste trabalho, tivemos como objetivo consistiu em estudar os hidrotopônimos de origem indígena que designam os acidentes físicos e humanos presentes na zona rural das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda, n