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Agosto 2011 Problemas Nacionais 677 Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo Sumário Em busca de uma Educação antológica .................... 3 Arnaldo Niskier As relações comerciais entre o Brasil e a Itália .......... 14 Arnoldo Wald Petróleo – O deslocamento do poder . ...................... 18 Gilberto Paim O Banco Central do Brasil como executor da política monetária ....................... 37 Antonio Chagas Meirelles Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica ............................................ 78 Ernane Galvêas São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço. As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente, desde que citada a fonte. A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis no endereço www.cnc.org.br. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo Agosto 2011, n. 677 Brasília SBN Quadra 01 Bloco B no 14, 15o ao 18o andar Edifício CNC CEP 70041-902 PABX (61) 3329-9500 | 3329-9501 [email protected] Rio de Janeiro Avenida General Justo, 307 CEP 20021-130 Rio de Janeiro Tels.: (21) 3804-9241 Fax (21) 2544-9279 [email protected] www.cnc.org.br Publicação Mensal Editor-Responsável: Gilberto Paim Projeto Gráfico: Assessoria de Comunicação/Programação Visual Impressão: Gráfica Ultraset Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955 92 p. Mensal ISSN 0101-4315 1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico. Em busca de uma Educação antológica Arnaldo Niskier Doutor em Educação, membro da Academia Brasileira de Letras e Presidente do CIEE/RJ N o Brasil, lê-se muito pouco: 4,7 livros por habitante é o índice nacional. Este número inclui os livros didáticos, em geral distribuídos gratuitamente pelo Governo em mais de 200 mil escolas públicas. Se tirarmos os didáticos desse índice, o número cai para 2. Para se ter uma ideia da distância que nos separa dos países industrializados, basta dizer que a média de livros lidos por habitante nesses países é de 8 a 10 exemplares anuais. Esperar que a inclusão digital acabe com essa diferença seria aguardar por um milagre. O mais certo é que se cave um fosso ainda mais profundo. As carências na educação brasileira são brutais. Estamos nas últimas colocações, entre 65 países cadastrados no Pisa – um exame internacional que inclui provas de matérias essenciais, como Matemática, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 3 Ciências e Leitura. Somado à existência de 14 milhões de analfabetos acima dos 15 anos de idade, o problema deixa os nossos educadores com a sensação do fracasso escolar. Já estivemos em situação mais favorável, em gerações passadas. As causas são variadas, indo desde melhores e mais motivados professores, a mudanças curriculares lamentáveis, como a retirada oficial da Literatura Brasileira das grades do ensino médio (Governo Fernando Henrique Cardoso), a supressão do Ditado e da Caligrafia e, talvez, o maior dos males: o fim das Antologias Escolares. Entre os especialistas, sempre que se toca no tema, há quase uma unanimidade, na condenação desse desaparecimento. A explicação para o fato se deveu, basicamente, a uma discutível interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre os direitos autorais dos escritores. Qualquer citação, sem autorização dos detentores dos direitos autorais (vivos ou herdeiros), pode ensejar processos com vultosas multas. A decisão do STF, de 1976, trouxe medo aos editores responsáveis pelas antologias existentes. Herdeiros brigam entre si pela partilha, resultando na proibição do uso de qualquer parte da obra literária. O lamentável processo de desconstrução do nosso idioma atingiu níveis abaixo da crítica por uma série complexa de fatores. A precária capacitação dos professores, os baixos salários, o elevado preço de capa dos livros, a valorização da civilização eletrônica e a destruição das antologias escolares são elementos que não podem ser descartados. Vamos insistir na análise do fim das antologias e os seus efeitos na educação brasileira. A burocratização do acesso ao conhecimento, que complicou a vida dos antologistas, desestimulou as editoras a produzir essas obras. Como resultado, escritores contemporâneos deixaram de ser quase referidos, em benefício daqueles que viveram 4 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 há mais de 70 anos. Esses se encontram em domínio público, sem o drama dos direitos autorais ou das licenças, em geral negadas pelos detentores dessa riqueza cultural. O acadêmico Lêdo Ivo escreveu uma crítica contundente sobre o direito de imagem, no jornal O Globo, de 30 de janeiro de 2011. Vale a pena acompanhar o raciocínio irado do grande sonetista: “A atual legislação me proíbe de publicar as incontáveis fotos que possuo de Manuel Bandeira. Proíbe-me de usar até mesmo aquelas em que estou ao seu lado. Proíbe-me ainda de divulgar as cartas de Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Cardoso ou qualquer outro integrante do meu universo afetivo. Pela lei, elas não me pertencem, embora dirigidas a mim. Por 70 anos, pertencem a parentes de quem as enviou. Caso ouse expô-las ao sol, serei processado judicialmente.” Em protesto contra o pagamento aos herdeiros, alguns dos quais chamados de “famélicos” ou “fominhas póstumos”, Lêdo Ivo pergunta: “Fui amigo de Manuel Bandeira durante 30 anos. Ele era solteiro e solitário. Não deixou nenhum descendente direto. Que herdeiros são esses, que jamais o visitaram em sua solidão?” O artigo termina deixando uma excelente ideia à presidente Dilma Rousseff: “Incorpore a obra de Manuel Bandeira ao patrimônio nacional. Assim ela poderá ser acessada de forma livre e democrática.” Talvez seja o melhor caminho para a abertura desses ferrolhos literários. Outro ponto que merece discussão é o que se refere às adaptações. Se fossem proibidas, como a televisão poderia trabalhar em cima de grandes autores da literatura brasileira, como já aconteceu com Érico Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 5 Veríssimo, Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Dinah Silveira de Queiroz, para citar apenas alguns? Rachel de Queiroz, ao vender os direitos de adaptação do seu grande clássico Memorial de Maria Moura, jamais supôs que o mesmo, transposto para a televisão, pudesse ajudar a vender livros. É comum uma telenovela alcançar a audiência de 30 milhões de pessoas, como acontece com Insensato coração, de Gilberto Braga. As adaptações acabam expandindo a circulação dos livros de origem, em função do público imenso da televisão. Numa época em que se questiona o abalo provocado pela inovação dos e-books, a inteligente simbiose das mídias pode prolongar ad infinitum a existência do livro impresso. Em defesa das antologias escolares, recorro à experiência do acadêmico Evanildo Bechara. Com a ressalva de que “a seleção de adultos nem sempre agrada às crianças”, o que é um outro problema, o ilustre gramático e filólogo lembra as antologias que fizeram história na vida brasileira: Antologia nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet; Nova antologia brasileira, de A. F. Sousa da Silveira e Seleta moderna, de Otoniel Mota. Duvido que haja alguém, da geração madura, que não tenha recorrido a esses tesouros para conhecer, mesmo que de forma ligeira, os grandes nomes da nossa literatura. Muitas vezes, junto com a primeira impressão, surgia a motivação pela obra propriamente dita – e aí o fenômeno da leitura se completava. No que se refere ao trato da língua portuguesa, a Academia Brasileira de Letras sempre foi um centro de fundamental importância. Em 1897, quando a ABL começou a funcionar, iniciaram-se as discussões 6 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 em torno de questões ortográficas, como a que foi suscitada por José Veríssimo: se o nome Brasil deveria ser escrito com s ou com z. Foi um período de grande fulgor das antologias escolares, o que fazia sentido pela presença, em nossa cultura, de grandes filólogos, cuja relação se estendeu no tempo. Podemos lembrar os nomes de João Ribeiro, Mário de Alencar, Laudelino Freire, Amadeu Amaral, Heráclito Graça, Ramiz Galvão, Aurélio Buarque de Holanda (o Mestre Aurélio), Celso Cunha, Antonio Houaiss e Barbosa Lima Sobrinho. Como representantes legítimos dessa linhagem, temos hoje, na ABL, os professores Evanildo Bechara, Domício Proença e Eduar do Portella, da Comissão de Lexicografia e Lexicologia da Casa de Machado de Assis. Uma grande discussão sobre direitos autorais, aguçada pela participação da internet e seus satélites, envolve vários setores da sociedade atualmente. Há enorme complexidade no trato dessa questão, dados os avanços científicos e tecnológicos. A discussão sobre antologias, eletrônicas ou impressas, ganha assim uma dimensão universal. Ampliar o índice de leitura em nosso País requer o máximo de esforço. Na cruzada que se espera, no sentido da valorização do livro como instrumento de cultura, facilitar o acesso às nossas grandes obras é uma obrigação das autoridades. É preciso rever a legislação. Grandes acadêmicos editaram livros que resistiram aos séculos, quando não havia qualquer restrição ao uso de trechos de obras de autores brasileiros. Vejamos o trabalho de João Ribeiro, por exemplo, com o seu Autores contemporâneos, livro adotado no então ginásio nacional e nos exames preparatórios, elaborado em 1918 (12a edição), com o aval da Livraria Francisco Alves. Reparem os cuidados do autor, que inicia com uma advertência: Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 7 “Quando pensei em organizar este livro, que nem de longe posso dizer meu, avaliei desde logo as responsabilidades que se haviam de lançar à minha conta... Pedi a um grande poeta, o Sr. Raimundo Correa, o auxílio do seu bom-gosto para a seleção das poesias; ao Sr. Mário de Alencar também pedi os conselhos da sua crítica isenta de qualquer cor ou parcialidade; consultei depois os próprios autores, o quanto me foi possível, acerca da qualidade e da quantidade dos trechos escolhidos; e não recusei nenhuma advertência e nenhum alvitre dos que me foram propostos.” É interessante observar que a consulta formal era feita aos próprios autores, sem que isso representasse um impedimento, como acontece com a praga dos herdeiros, atualmente. Aparentemente um trabalho fácil, de uma simples escolha, as antologias, na verdade, implicavam em inúmeros cuidados, envolvendo várias questões éticas. Havia, ainda, uma particularidade essencial na obra do autor da antologia: o zelo com a seleção de conteúdos adequados, com textos que poderiam ser úteis nas salas de aula, onde a característica maior era o “magister dixit”, que hoje concorre com a presença de computadores dotados de recursos inimagináveis. O acadêmico João Ribeiro chamava de “graçolas insípidas e inumeráveis” as críticas aos trabalhos desenvolvidos pelos antologistas, no início do século passado, tomando como referência a ortografia utilizada. Em geral, faziam uso das recomendações da Academia Brasileira. As anotações ortografadas tiveram apoio de um sistema mais fonético, o que levou a certas contradições com a forma pela qual se expressavam os escritores da época. A simplificação ortográfica beneficiava a difusão da instrução popular que animava o País naquele momento. 8 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 Em 1925, Alberto de Oliveira lançou Céu, Terra e Mar, pela Livraria Francisco Alves. Voltado para os amantes das boas letras, Oliveira exerceu funções de educador quando mostrou que a sua antologia não interessava somente à escola. E parece ter revivido, para focalizar algo que está presente em nossos dias: “Não se trata de formar escritores, senão só de render à língua, e desde logo, o culto que ela merece, de tomar um pouco mais a sério este estudo tão descurado em nossos dias” (década de 1920, no século passado). Aproveita para criticar o sistema antipático e sem sabor, defendendo novos métodos, facilitando aos que aprendem ou tornando mais atraente o seu estudo. O papel relevante das antologias escolares estimulou o gosto pela leitura. Nessa digressão, chegamos a Laudelino Freire, com o seu Clássicos brasileiros, de 1923. Ele próprio temia que se falasse na “inutilidade do livro”, mas se defendia com uma citação do doutor S. Jerônimo: “Ninguém, por bem que escreva, se livra de censuras; porque, como adverte o ínclito Crisóstomo, as coisas não se julgam pelo que são, mas pelo afeto de quem as ajuíza: da mesma flor tira a vespa o amargoso, e a abelha o suave.” Não restam dúvidas de que a atual lei dos direitos autorais, com 12 anos de existência, é prejudicial à educação brasileira. Os obstáculos referentes à elaboração de antologias escolares cerceiam a liberdade de criação dos nossos mestres. O Brasil arrecada hoje algo em torno de 300 milhões de reais anuais de direitos autorais. Para conhecer pormenores do anteprojeto da Lei do Direito Autoral, que se encontra em discussão no Congresso Nacional, procuramos a orientação do especialista, Dr. João Carlos Müller. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 9 O direito do autor é uma garantia constitucional, como o direito à vida, à honra etc. Mas as reclamações são inúmeras. O ECAD, órgão pelo qual temos o maior respeito, não pode estar em todas as partes do País, trabalhando com o sistema de amostragem. Além disso, a inclusão digital cresce em progressão geométrica. A pirataria tornou-se uma fonte espetacular de faturamento, sobretudo na música e no cinema, gerando embaraços diversificados. Há divergências igualmente na compreensão dos direitos e deveres das figuras públicas. Segundo o Dr. Müller, uma biografia não autorizada pode ser feita, desde que não ofenda a honra ou a dignidade do retratado. Sempre existirão penas por injúria, calúnia ou difamação. Toma-se como exemplo o caso da biografia de Garrincha, escrita por Ruy Castro. A família protestou, mas os fatos citados pelo escritor, como o comportamento sexual do atleta ou o excesso de bebida, eram públicos. O que os herdeiros queriam, e conseguiram na Justiça, era ganhar dinheiro. O direito patrimonial da família é igual ao do falecido autor. Proíbe-se qualquer tipo de cópia. No entanto, existe em todas as legislações do mundo uma licença compulsória para obra completamente esgotada, sob a alegação de uso para fins didáticos. Entre nós, esse movimento está ganhando corpo, o que poderá revitalizar a existência das antologias escolares. A bola da vez é a internet. Ao contrário do que muitos pensam, a rede não é um território livre, estando sujeita às mesmas leis que governam o mundo real. Em alguns dispositivos, a legislação vigente prevê o uso de medidas tecnológicas para prevenir a cópia indiscriminada ou a publicação não autorizada, criando a figura de “por à disposição”. Mas ainda existe muita confusão na interpretação dos meios legais, o que facilita 10 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 o movimento dos sem-lei, responsáveis, hoje, pela quase destruição da indústria fonográfica. A nova lei – nº 5.988, de 1973 – considerou que o autor é titular dos direitos morais e patrimoniais da sua obra intelectual. Daí em diante, a interpretação que passou a vigorar valeu também para os herdeiros das obras literárias, o que hoje é muito discutível pela notória comercialização que adveio. E pela pior das consequências: o desestímulo à elaboração de antologias escolares, que antes haviam prestado indiscutíveis serviços à educação brasileira. Para prejuízo dos nossos esforços culturais, especialmente dos professores de Língua Portuguesa, as antologias morreram de inanição. Ao contrário dos herdeiros, que costumam ser complicados, os autores vivos, em muitos casos, cedem seus direitos sobre trechos de obras para que sejam citados em livros didáticos. Isso constitui até uma honra. Mas é um caso ou outro. As antologias foram condenadas à morte. Há, porém, uma novidade na praça. Dois projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Deputados, visando atender à liberação de informações biográficas de pessoas públicas. Uma decisão favorável do Congresso Nacional poderia, por similitude, reabrir a questão das antologias escolares. Os que consideram a lei vigente um resquício de Censura, que envergonha o País, têm toda a razão. O que não pode é existir mentira. Para isso, sempre haverá recursos ao Judiciário. Homens públicos, sujeitos de forma permanente ao noticiário de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão, não têm como se esconder, principalmente agora, com o advento da internet. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 11 Dois pesos e duas medidas, o que contraria o princípio elementar do Direito, é o caso do escritor Carlos Didier. Em uma bem-sucedida parceria com João Máximo, Didier produziu uma belíssima biografia de Noel Rosa. Ganhou um processo por danos morais, de autoria de duas sobrinhas do grande compositor de Feitiço da Vila, por ter mencionado os suicídios da avó e do pai de Noel, fatos divulgados amplamente, inclusive em jornais da época. O livro Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, escrito por Ruy Castro, foi outra questão que rendeu farto noticiário. As filhas do craque do Botafogo interpuseram uma ação para proibir a circulação da obra, o que foi conseguido por 11 anos. Como foram contados fatos notórios da vida do craque de pernas tortas, como a sua paixão por mulheres e bebida, as filhas pediram 1 milhão de reais de indenização, como “reparo moral”. Depois de um intenso tiroteio pela imprensa, a Companhia das Letras liquidou a questão, pagando 30 mil reais a cada filha. Aí já se poderia dizer qualquer coisa de Garrincha. O dinheiro salvou tudo, mas Ruy Castro se sente desestimulado a enfrentar outra aventura semelhante. Resistir à explosão de e-books é como remar contra a maré. No Brasil, já temos 300 mil só de iPads e provavelmente mais 100 mil de outras tabuletas (tablets), provocando impacto no mercado de edições eletrônicas. A disputa entre Google e Apple pelo mercado de conteúdo digital, que beneficia grandes editoras de livros, jornais e revistas, é a grande discussão, hoje, no mundo desenvolvido. Assinaturas estão sendo vendidas aos milhões, com preços cada vez mais atraentes. Essa competição favorece as empresas que produzem conteúdo digital. A perspectiva é ainda mais animadora para os que chegarem mais 12 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 depressa às plataformas móveis. Ou seja, os computadores de mesa podem estar com os seus dias contados. O que está mais evidente, nisso tudo, é a valorização do conteúdo digital. Se for de qualidade, maiores as chances de conquistar o público. Como relacionar esses fatos com a questão das antologias escolares? Primeiro, com a convicção de que a mídia impressa ainda terá muitos anos de vida – e nisso se inclui o livro no seu formato retangular habitual. Segundo, com a realização de trabalhos de altíssima qualidade literária, o que é perfeitamente possível. Alguém poderia argumentar que, em lugar dos tradicionais livros, com as informações necessárias, bastaria clicar no Google e pedir as biografias com as quais se trabalha em classe. Não é tão simples. Os instrumentos eletrônicos constituem um hardware de primeira classe, mas ainda não contêm softwares elogiáveis. Os dados são ligeiros, às vezes incompletos. Na competição, ainda perdem para trabalhos que são grifados por nomes do mais alto respeito acadêmico. Eis uma das causas da luta para desanuviar as relações entre produtores e detentores de direitos autorais, sobretudo os herdeiros, para facilitar o uso desse caminho inexorável. Com um pormenor que chama a atenção: no Brasil, com muitos computadores sendo instalados em salas de aula, ou com a disponibilidade das milhares de lan-houses espalhadas pelo nosso imenso território, ainda não chegamos a ter metade da população com acesso aos benefícios da mídia eletrônica. Precisamos ampliar o acesso aos livros, instrumento insuperável de cultura, com bibliotecas em toda parte. É um árduo caminho, a ser percorrido pela atual geração. Palestra pronunciada em 5 de maio de 2011 Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 3-13, ago. 2011 13 As relações comerciais entre o Brasil e a Itália Arnoldo Wald Advogado, Professor Catedrático de Direito Civil da UERJ, Presidente do Conselho da Academia Internacional de Direito e Economia, Doutor honoris causa da Universidade de Paris II, Membro da Corte Internacional de Arbitragem da CCI. A importância crescente da economia brasileira, cujo PIB se aproxima do italiano, tem ensejado um acréscimo do comércio entre os dois países e um aumento substancial dos investimentos que realizam um no outro. Por muito tempo, coube ao Brasil tão somente receber importantes capitais italianos e empresas, como a FIAT, a Impregilo, a Pirelli, a TIM, Barilla Alimentare SPA e outras tantas que deram importante contribuição ao desenvolvimento da economia brasileira. Já nos últimos anos, começou a haver a bilateralidade e várias joint ventures foram realizadas, por empresas brasileiras e italianas, para atuar na Europa e no resto do mundo. Ocorre que, por mais estranho que possa parecer, recentemente foram criadas dificuldades para o bom funcionamento na Itália dessas joint ventures, sob a descabida alegação de que se deveria aplicar o princípio da reciprocidade e que existiriam restrições à atuação de 14 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 14-17, ago. 2011 administradores estrangeiros em subsidiárias de empresas italianas sediadas no Brasil, o que não é verdade e jamais ocorreu. Algumas decisões administrativas (italianas) aceitaram todavia tal entendimento. Essas alegações, que evidentemente não têm qualquer fundamento jurídico, decorrem da confusão que alguns juristas italianos fizeram entre o Conselho de Administração da Sociedade e a sua diretoria, aplicando aos conselheiros requisitos que tão somente são exigidos dos diretores. Trata-se de entendimento que é pernicioso para as relações comerciais entre os dois países, num momento em que as economias emergentes adquirem mais importância. Acresce que, entre as mesmas, certamente o Brasil é o País mais próximo da Itália, pela sua cultura, pelas suas tradições e pelo seu regime jurídico. Em primeiro lugar, a legislação italiana já não mantém o princípio da reciprocidade, que constava do Codice Civile (Código Civil, italiano de 1942), pois a matéria foi objeto de novas regras que trataram do assunto, naquele país, em virtude do Decreto Legislativo nº 286/98. Por outro lado, tanto no direito brasileiro quanto no italiano, os estrangeiros gozam, em princípio, de todos os direitos civis que são atribuídos aos nacionais, sem discriminação. Essa mesma norma se aplica no direito empresarial. Por outro lado, as condições estabelecidas, no direito brasileiro, para o exercício do cargo de membro do Conselho de Administração se aplicam igualmente a todos os profissionais e executivos, sejam eles nacionais ou estrangeiros. Assim, os requisitos da legislação societária são gerais e não dependem de nacionalidade das pessoas que vão exercer o cargo, não podendo estar sujeitos, pois, ao princípio da reciprocidade. Acresce que a lei brasileira, quando trata do Conselho da Administração e da diretoria se refere ao domicílio e não à Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 14-17, ago. 2011 15 nacionalidade, exigindo dos diretores que sejam residentes no País e dos membros do Conselho que, quando residentes no exterior, possam ser citados no Brasil, tendo para tanto procurador com poderes específicos (artigos 146, § 2º da Lei nº 6.404 alterada pela Lei nº 10.303 de 31.10.2001). Não se trata, pois, de problema de regimes distintos entre nacionais e estrangeiros, mas entre pessoas residentes ou não no País. É uma consequência da adoção pelo Brasil do princípio geral do jus soli em vez do jus sanguinis que, em geral, domina as legislações europeias. A questão, se cinge, pois, a reconhecer preliminarmente que não está mais em vigor o princípio da reciprocidade e que, mesmo se tivesse sido mantido, não se aplicaria em relação às normas que tratam igualmente os estrangeiros e os nacionais. Efetivamente, a reciprocidade condiciona tão somente a aplicação de certas normas a uma determinada previsão do ordenamento jurídico, que estabelece uma discriminação entre nacionais e estrangeiros. É evidente que as normas gerais de aplicação a todas as pessoas que se encontram no território nacional não podem ser afastadas sob a alegação do princípio da reciprocidade, para aplicar a lei estrangeira aos estrangeiros. Aliás a Corte de cassação italiana já teve o ensejo de afirmar, por várias vezes, que a reciprocidade deve examinar a questão do reconhecimento, pela legislação de um terceiro país, de um direito igual ou similar ao direito que um nacional daquele país tenciona exercer na Itália e o fato de a legislação de tal país não ser discriminatória em relação a estrangeiros. 16 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 14-17, ago. 2011 Mas mesmo se considerarmos vigente o princípio da reciprocidade e aplicável ao caso, o que só se admite ad argumentandum, ainda assim, os problemas recentemente suscitados por autoridades e juristas italianos não têm qualquer base jurídica, pois decorrem de uma confusão terminológica e do desconhecimento do direito comparado. Efetivamente, ocorre muitas vezes que institutos com a mesma denominação, existentes em vários países, tenham funções e regimes diferentes em cada um deles. É o que acontece com o Conselho de Administração que, no direito brasileiro não tem função executiva, embora alguns dos seus membros possam exercê-la se forem simultaneamente diretores da empresa. Ora, se os conselheiros não são obrigados a ter residência no Brasil, não faz qualquer sentido exigir que, quando eleitos membros do Conselho de Administração numa empresa italiana, lhes seja exigido que sejam domiciliados na Itália. É aliás o que bem salientaram as autoridades brasileiras em manifestação recente que fizeram ao Ministério das Relações Exteriores da Itália. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 14-17, ago. 2011 17 Petróleo – O deslocamento do poder Gilberto Paim Jornalista A maciça transferência de recursos líquidos, dos países consumidores para os produtores de petróleo, sobretudo os membros da OPEP, a partir de 1973, representou a mais radical alteração dos termos de intercâmbio entre as partes de que se tem notícia na história da economia mundial. Salvo as duas grandes guerras mundiais do século passado, poucos acontecimentos históricos produziram repercussão internacional semelhante à dos dois choques do petróleo nos anos 1970. Não encontram paralelo na história da economia industrial as alterações verificadas no relacionamento entre consumidores e fornecedores de matérias-primas. Nunca os exportadores de bens primários alcançaram êxito tão retumbante e duradouro na relação com os consumidores de seus produtos. Entre os fatos relevantes do acontecimento, ganha relevo a industrialização ascendente nos países petrolíferos, antigas vítimas do colonialismo. Depois da transferência de dinheiro, a montagem de indústrias é acompanhada 18 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 da transferência de empregos dos países consumidores para os produtores de petróleo. Essa é uma das faces do fenômeno que simboliza a profundidade da mudança. Essa estrondosa vitória dos países exportadores de petróleo contrasta com a fracassada tentativa brasileira de montar um monopólio do café, a partir do Acordo de Taubaté, de 1906. O resultado foi o empobrecimento, representado pela queima de 80 milhões de sacas do produto. Outro exemplo de monopólio fracassado foi o da borracha, liquidado pelas plantações do sudeste asiático. O efeito imediato da mudança, no caso do petróleo, foi o enriquecimento das oligarquias do Oriente Médio e da África do Norte, figurando também nesse bloco a Indonésia e a Venezuela. Nos 10 ou 12 anos que se seguiram, os recursos disponíveis foram depositados em bancos do Ocidente, produzindo os petrodólares, serviram para comprar empresas ocidentais e foram em boa parte usados para o consumo perdulário das oligarquias. Esse enriquecimento não afetou a essência do regime político absolutista, onde as relações entre o trabalho e o capital mantiveram a característica do escravismo, a que são submetidos os trabalhadores imigrantes. Há casos em que os imigrantes formam a maioria da população, como em Bahrain. Passaram-se os anos e no decênio de 1990 chegou o momento em que os mestres e doutores, formados, principalmente, na Inglaterra e nos Estados Unidos, assumiram o comando da economia e orientaram os recursos para a industrialização e a modernização. Foram executados grandes projetos de infraestrutura, ao lado da instalação de refinarias de petróleo. Mas logo se abriu a perspectiva da petroquímica, voltada para associações de capital com empresas do exterior, selecionadas segundo a posse de tecnologias ultramodernas. É significativo o fato Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 19 de que a Dow Chemical, a conhecida gigante americana, participa de seis projetos industriais nos países do Golfo, onde agora se aplica a última palavra da técnica. Outros ramos da indústria de transformação foram objeto de fortes investimentos, como nas indústrias de cimento, amônia, alumínio e metalurgia. No caso do alumínio, a associação de capital estabelecida oferece o exemplo de participação do capital estrangeiro, como veremos adiante. Já se pode afirmar que houve mudança de 180 graus. Os elevadíssimos saldos do comércio exterior, a implantação de indústrias altamente competitivas, a criação de centros financeiros com irradiação para o sul e sudeste da Ásia e a liderança da economia regional, exercida por crescente camada de técnicos especializados no exterior, representa o deslocamento do poder dos Estados Unidos e da Europa para os países árabes exportadores de petróleo. Está efetivamente superado o colonialismo anterior a 1973. Até 2015, os países do Golfo contribuirão com 20% da produção petroquímica mundial. Em todos os países do Golfo não há reserva de mercado. De acordo com a política de comércio exterior, a imposição da tarifa aduaneira igual a zero demonstra a capacidade exportadora das empresas industriais, que podem competir com as congêneres mais modernas do mundo. A tarifa zero e a tecnologia de ponta representam a base da orientação exportadora, o que significa que o Ocidente está perdendo empregos e mercados para a nova região industrial. Agora, sopram ventos novos, que trazem um intenso movimento pró-reformas. O amplo esforço em prol da diversificação da economia não oculta as tensões políticas reinantes na Arábia Saudita, depois de iniciada a onda de protestos populares que está varrendo os países produtores de petróleo do Oriente Médio e África do Norte. Tropas sauditas e do Catar foram enviadas à ilha principal de Bahrain, para 20 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 sufocar protestos que ameaçavam explodir em rebelião. Na própria Arábia Saudita houve, em algumas cidades do oeste, manifestações em defesa de presos políticos. Mas o governo saudita afirma que não vai tolerar protestos populares. Enquanto em diferentes países da OPEP o viés estatizante e socialista recusava a ideia de forte associação com empresas estrangeiras, a Arábia Saudita, cujo governo é favorável aos Estados Unidos, e dispõe de uma camada de técnicos diplomados no estrangeiro, pôde usar os seus contatos para facilmente formar joint ventures, não só na área da petrroquímica, mas em outros ramos da indústria. Dados recentes demonstram crescente interesse de investidores estrangeiros pela economia saudita, somando US$ 204 bilhões o estoque de capital estrangeiro existente no país, em 2010. Com uma reserva cambial de US$ 468 bilhões a Arábia Saudita representa um campo atraente para investimentos diretos externos, e sua riqueza mineral, além do petróleo, de que é o maior exportador do mundo, inclui minério de ferro, cobre, fosfatos, urânio, bauxita, carvão, tungstênio e zinco. A exploração mineral é dirigida pela empresa estatal Maaden, que, entre outras associações de capital com empresas do exterior, formou uma joint venture com a Alcoa (Aluminium Company of America) para implantar uma fábrica de alumínio, inteiramente integrada e de primeira linha no País. A estatal saudita detém 60% do capital, cabendo os 40% restantes à Alcoa e seus parceiros no empreendimento. A parcela estrangeira do empreendimento totalizará US$ 900 milhões. A empresa assim constituída produzirá alumínio primário, alumina e produtos de alumínio, a um custo que será o mais baixo do mundo e que terá acesso aos mercados em expansão da região do Oriente Médio. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 21 São numerosas as empresas formadas com variável participação de capital estrangeiro. Sobre a empresa de alumínio declarou o Presidente da Maaden, Abdallah Dabbagh, em linguajar de técnico: “Sob todos os aspectos, a parceria nesta empresa integrada traz consigo um valor enorme, não só em termos de tecnologia, recursos e experiência, mas em termos de compromisso comprovado com a sustentabilidade.” No que foi seguido pelo Presidente da Alcoa, Klaus Kleinfeld, que afirmou: “Essa joint venture é uma oportunidade ímpar para a Alcoa, para a Maaden e para o reino da Arábia Saudita. Estamos criando um complexo de alumínio totalmente integrado, que será o mais avançado do mundo em termos de tecnologia, sendo também o mais eficiente em termos de custo.” Mas o destaque principal é da petroquímica, cujos investimentos em projetos modernos levam a uma produção saudita de 7,3 milhões de toneladas de eteno, matéria-prima que dá origem a 80% dos subprodutos petroquímicos. O custo de produção da tonelada de eteno é de US$ 250, em comparação com até US$ 1.000 nos Estados Unidos e US$ 1.200 no Brasil. O ensino superior na Arábia Saudita, nas ciências humanas, dura quatro anos, e de cinco a seis anos na engenharia, medicina e farmácia. Existem 21 universidades públicas, nas seguintes cidades: Taibba, Qassim e Taif. As faculdades oferecem cursos de mestrado e doutorado, em várias especializações científicas e humanas. Esse aspecto da modernização 22 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 abrange diferentes serviços à comunidade. Algumas faculdades e departamentos oferecem ensino a distância. Também existem faculdades particulares e faculdades comunitárias, filiadas às universidades públicas. De acordo com dados do governo, de 2006, havia então 636.245 alunos matriculados no ensino superior, sendo 268.080 homens e 368.161 mulheres. A diferença entre os dois números, de 56% em favor das mulheres, representa um indicador de mudança social em escala considerável. Durante a guerra do golfo, em 1990, as mulheres sauditas se revelavam espantadas quando viam mulheres americanas no comando de pelotões. Hoje, elas estão cada vez mais perto de semelhantes feitos. O exemplo de mulheres médicas, superando preconceitos de origem remota, é apenas um dos indicadores das transformações determinadas pelo recente movimento pró-modernização. Com uma renda per capita de US$ 24,200, dado de 2010, e uma população de 25.750.000 mil habitantes, a Arábia Saudita constitui um mercado de consumo, que absorve por ano diferentes produtos no valor de cerca de US$ 100 bilhões. É de 2.150.000 de km2 a extensão territorial do país e sua população inclui 10% de imigrantes. A população economicamente ativa é de 7 milhões 337 mil pessoas. A agricultura absorve 6,7% da força de trabalho; a indústria – 21,4%; e os serviços – 71,9%. Em 2010, o desemprego chegou a 10,8%, a dívida pública se limitou a 16,7% do produto interno bruto e os preços ao consumidor subiram 5,7%. Outro aspecto em que se revela a modernização está na irrigação, com água do mar dessalinizada. Por esse meio a Arábia Saudita tornou-se um grande produtor de trigo. São também importantes as culturas de tâmara, tomate, melancia, cevada, uva, pepino, abóbora, beringela, batata, cenoura e cebola. Muitos desses itens figuram na pauta de exportação. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 23 O fato de, numa população de 25,7 milhões, a força de trabalho representar apenas cerca de 30% do total revela desequilíbrios sociais graves. A indústria de transformação, instalada em bases modernas, com tecnologias de ponta, poupadoras de mão de obra, não tem capacidade de absorver mais de um milhão e meio de trabalhadores, enquanto a mão de obra nos serviços chega ao nível de países desenvolvidos. É provável que a Arábia Saudita tenha de refrear ou proibir o ingresso de imigrantes, em busca de trabalho, gerando conflitos com os países exportadores dessa mão de obra, a qual não desfruta de todos os benefícios sociais, conferidos aos nativos. Olhando em perspectiva, a partir de dados oficiais sobre os avanços da educação, pode-se especular a respeito da possível implantação do sistema democrático no Oriente Médio e na África do Norte, em futuro não muito distante. Nos países do Golfo Pérsico, é gratuito o ensino da pré-escola à pós-graduação, havendo copiosa oferta de bolsas de estudo em universidades ocidentais. Em consequência é crescente a camada de pessoas ilustradas, cuja formação é incompatível com o absolutismo oligárquico opressivo, que proíbe a existência de partidos políticos. A Arábia Saudita tinha uma universidade em 1957, em comparação com 21, atualmente. Exemplo de avanço do sistema educacional é dado pela recém-inaugurada Universidade de Ciência e Tecnologia, cuja instalação custou um bilhão meio de dólares e cujo patrimônio figura entre o das seis universidades mais ricas do mundo. Ali convivem alunos de ambos os sexos e as universitárias podem dirigir carros e comparecer às aulas sem usar a capa conhecida como abaya. Trata-se de uma demonstração da abertura de brechas no absolutismo que até agora sustenta as oligarquias e que está sendo contestado em toda a região. Indício de que o movimento geral de contestação 24 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 envolve aspirações democráticas são os manifestos de professores, estudantes universitários e profissionais liberais pedindo liberdade para todos os cidadãos e libertação de presos políticos. Por toda parte, os governantes muçulmanos estão fazendo concessões de natureza política, indicando que não mais se sentem seguros no atual sistema, o qual suprime as liberdades e direitos inscritos nas constituições das nações democráticas. Depois dos protestos populares realizados desde 2009, a Anistia Internacional tem denunciado centenas de prisões de manifestantes, inclusive ativistas de direitos humanos e críticos pacíficos do governo, além de prisioneiros de consciência. Têm sofrido restrições a liberdade de expressão, de religião, de associação e de reunião, ao mesmo tempo em que ocorrem as piores violências contra prisioneiros. Abrimos aspas para reproduzir matéria de fonte insuspeita, a Cia Factbook, a agência de inteligência do governo norte-ameriano: “A Arábia Saudita é o país de destino de trabalhadores do sul e do sudeste da Ásia, que são submetidos a condições tais que constituem servidão involuntária. Os trabalhadores imigrantes sofrem castigos físicos e as mulheres, trabalhadoras domésticas, abusos sexuais. Ocorrem o não pagamento de salários, a reclusão e a retenção de passaportes, como restrição aos movimentos dos imigrantes no interior do país. As trabalhadoras domésticas são particularmente vulneráveis, porque não podem sair da casa onde trabalham e assim ficam impedidas de pedir ajuda. A Arábia Saudita é também o destino de nigerianos, paquistaneses, afeganos, samálios e malaios. Crianças sudanesas, sujeitas a traficantes, são forçadas a pedir esmolas e à servidão como vendedoras na via pública. Há notícia de mulheres nigerianas, levadas por traficantes, para a exploração como prostitutas. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 25 A Arábia saudita não adota medidas, que representem o padrão mínimo de combate ao tráfico de pessoas. E não faz esforços significativos nessa direção. O governo continua a não dispor de adequada legislação contra traficantes e, a despeito da evidência de propagação dos abusos nessa área, não há notícia de procedimentos criminais, ou sentenças de prisão contra os crimes do tráfico, cometidos contra trabalhadoras domésticas estrangeiras.” Diante de denúncias feitas no Ocidente, o governo saudita enviou delegação, pela primeira vez, ao Comitê da ONU que analisa relatórios sobre diferentes formas de discriminação contra a mulher no país. Os direitos dos trabalhadores imigrantes têm sido violados de forma extensiva e impune. Diante das manifestações populares, que varrem o mundo árabe no Oriente Médio, e que se estenderam ao Azerbaijão, na antiga Ásia Soviética, a Arábia Saudita não ficou a salvo dos protestos do público. O regime é extremamente rígido. Sob pressões internacionais, realizou as primeiras eleições municipais somente em 2005. Informa-se que houve fraudes, resultantes do absolutismo. Reconhecendo, em parte, a legitimidade das reivindicações populares o rei Abdullah promoveu uma reforma ministerial, em fevereiro de 2011, e anunciou um aumento nos benefícios sociais para a população, inclusive um aumento de vencimentos em favor dos funcionários públicos e mais recursos para a compra de moradia. Esse pacote, de US$ 36 bilhões, beneficia particularmente os desempregados e os jovens. Catar A capital do Catar, Doha, tornou-se um nome conhecido em todo o mundo, depois de sediar a célebre reunião da Organização 26 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 Mundial do Comércio, de 2001. Mas, nos primeiros meses de 2011, a importante rede de televisão Al-Jezira, patrocionada pelo governo, ampliou essa popularidade por estar instalada nesse pequeno país do Golfo Pérsico, também chamado de golfo Árabe pelos nascidos na região. O canal de satélite da Al-Jezira, apoiado em eficiente agência de notícias, tem sido considerado como a fonte de inspiração dos movimentos populares que têm abalado os países do Oriente Médio e da África do Norte. Segundo o New York Times, “a noção de que existe uma luta comum em todo o mundo árabe é algo que a Al-Jezira ajudou a criar”. Falando a esse jornal, o professor Marc Lucas, da cadeira de Estudos do Oriente Médio na George Washington University, disse que a rede “não provocou esses eventos, mas é quase impossível imaginar tais acontecimentos sem a influência da Al-Jezira”. Criada em 2004, a rede serve de fórum de debate pela Internet sobre as perspectivas do Oriente Médio no contexto do mundo globalizado. Trata-se de jornalismo livre, quando se trata de assuntos dos demais países, com ênfase no noticiário sobre as nações árabes, mas sujeito a rígidos limites quando são abordados assuntos internos do emirado. Depois da Arábia Saudita, os países do Golfo são de pequena extensão territorial, como é simbólica a posição do Catar, que ocupa apenas 11.521 km2 na península do Golfo Pérsico. A sua população, segundo o Anuário Estatístico das Nações Unidas, era, em 2010, de 1.508.000 habitantes, distinguindo-se por um desequilíbrio estrutural único no mundo. Essa população dividia-se em 1.137.000 homens e 370 mil mulheres. A alta percentagem de imigrantes no país responde por esse forte desequilíbrio entre os sexos. Os trabalhadores estrangeiros, estimados em 637 mil, incluem paquistaneses, indianos, iraquianos, afeganos e outros, que representam a parcela maior da população. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 27 O pequeno país apresenta dados reais de progresso social, como a esperança de vida de 75,6 anos, a mortalidade infantil de 8,2 por mil nascidos vivos e a alfabetização de 93% da população. A agricultura absorve apenas 1% da população economicamente ativa; a indústria: 78,8% e os serviços apenas 21,1%, enquanto a economia, em 2009, registrou crescimento de 19,4%. Diante dos estímulos ao investimento estrangeiro em todos os setores da economia, com exceção de petróleo e gás, continuam a surgir empreendimentos no setor industrial. O petróleo e o gás representam mais de 50% do PIB, cerca de 85% das exportações e 70% da receita pública do Catar. Considerando-se o fato de que o setor agrícola é quase inexistente e de que a contribuição dos serviços para a formação do produto nacional é de apenas 21%, verifica-se o grande desenvolvimento da indústria de transformação. O valor da parcela industrial no PIB, de 78%, equivale a pouco menos de 100 bilhões do produto total, que em 2010 atingiu a cifra de US$ 126 bilhões. No setor industrial, os itens principais, ao lado do petróleo e gás, são petroquímicos, amônia, fertilizantes, aço, cimento e estaleiros de reparos de navios. O Catar se transformou num importante centro financeiro, que tem ramificações externas, em particular no sul e sudeste da Ásia. As reservas provadas de petróleo, de 25 bilhões de barris, são suficientes para 57 anos, se mantidas as cifras atuais de produção e consumo e se não houver descoberta de novas jazidas. As reservas de gás natural do Catar excedem de 26 trilhões de metros cúbicos e correspondem a 14% do total mundial. No ano de 2022, o Catar será sede do campeonato mundial de futebol, da FIFA, o que demonstra que o pequeno país do Golfo Pérsico terá instalações capazes de abrigar o evento. 28 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 Bahrain Pressionado pelo receio de esgotamento de suas reservas petrolíferas, o governo de Bahrain, arquipélago de 33 ilhas no Golfo Pérsico, tem revelado empenho na diversificação da economia. A ilha principal tem apenas 741 km2 e sua capital, Manama, que abriga 170 mil habitantes, tornou-se importante centro financeiro e industrial, que tem em suas proximidades cidades também dedicadas à manufatura. Com uma população de cerca de 730 mil habitantes, Bahrain abriga 235 mil não nacionais, representando 37% do total, e enfrenta graves problemas de meio ambiente, cujas causas têm diferentes origens: períodos de seca, tempestades de areia, degradação na costa por derramamento de óleo e outras descargas dos petroleiros. Reina a preocupação com a degradação da área agricultável. A falta de fontes de água potável, leva o arquipélago a depender da extração de águas subterrâneas e de água do mar, dessalinizada. Bahrain era um protetorado britânico, cuja independência foi proclamada em 1971. O Estado tem como chefe o rei Hamad Bin Isa Al-Khalifa, um dos homens mais ricos do mundo. O chefe do governo é o primeiro-ministro Bin Salman Al-Khalifa, tendo como vices três membros da família real. O gabinete é nomeado pelo rei. O ramo legislativo compreende o Conselho Consultivo, composto de 40 membros, nomeados pelo rei, e do Conselho de Representantes, de 40 membros, eleitos para cumprir mandato de sete anos. São proibidos os partidos políticos. Por lei de 2005, foi admitida a formação de sociedades políticas. Os transportes e as telecomunicações são bastante desenvolvidos. Bahrain é sede de numerosas empresas multinacionais, que operam Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 29 na região do Golfo. Em 2009, havia em uso cerca de 1,6 milhão de telefones celulares, para 730 mil habitantes, em comparação com apenas 240 mil telefones fixos. A ilha principal possui três aeroportos modernos. Não é novidade na área o importante papel que desempenham na economia do país as instalações de extração e refino de petróleo, que respondem por 60% da receita cambial e por mais de 70% da receita pública. Em 2010, era a seguinte a composição do PIB: agricultura: 0,5%; indústria: 56,6%; e os serviços: 42,9%. Durante os últimos anos, a economia nacional tem recebido grande impulso com a instalação de empresas petroquímicas. O alumínio é o segundo item na pauta da exportação, depois do petróleo, enquanto a produção de eletricidade depende cem por cento do uso do petróleo. Também ganham destaque a produção de aço, a pelotização de minério de ferro, os fertilizantes, as empresas de seguros, a reparação de navios e o turismo. A indústria têxtil, que dispõe de instalações modernas, compete no comércio exterior com as congêneres de outros países. Por sua vez, os setores financeiro e de construção têm função relevante no país. No mundo árabe, Bahrain é conhecida pela eficiência de seu sistema bancário, que hoje compete em escala internacional com a Malásia, transformada em centro financeiro mundial. A ativa política de diversificação de sua economia tem por objetivo reduzir a dependência do petróleo. Como parte desse esforço, o seu governo assinou com os Estados Unidos um Acordo de Livre Comércio, o primeiro acordo desse tipo que os americanos concluem com países do Golfo. Os imigrantes da África e do sul e sudeste da Ásia, chegam a Bahrain como operários ou empregadas domésticas e enfrentam condições de servidão, em que há práticas de não pagamento de salários, retenção 30 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 de passaportes, restrições aos movimentos, ameaças, castigos físicos e abuso sexual. Existe tráfico de mulheres da Tailândia, Marrocos, Europa Oriental e Ásia Central para a rede de prostituição de Bahrain. Em 2007, o governo de Manama, a capital do país, pôs em vigor uma lei que proíbe todas as formas de tráfico de pessoas, mas não há informação oficial sobre processos judiciais envolvendo esse tipo de crime, nem se tem notícia de condenação de acusados de participação nessa rede, apesar do registro, em 2008, do número substancial de pessoas submetidas à servidão ou ao tráfico para exploração sexual. O desemprego, especialmente entre os jovens, e o esgotamento de seus campos de petróleo e de águas subterrâneas constituem problemas econômicos de longo prazo. Bahrain sofreu os efeitos da crise financeira de 2009. Mas com a recente alta dos preços do petróleo, houve a recuperação. Nos primeiros meses de 2011, os protestos populares assustaram os investidores e houve fuga de capitais. Oman Diante da redução progressiva das suas reservas de petróleo, o governo de Oman está vivamente empenhado na execução de um plano de desenvolvimento, que tem por base a diversificação, a industrialização e a privatização. Tendo fixado o objetivo de, até 2020, reduzir a 9% a contribuição do petróleo à formação do PIB, o governo deposita esperança numa grande contribuição do turismo. A taxa de investimento em capital fixo era de 26,3% em 2009, com tendência a manter-se elevada. Situado na entrada do Golfo Pérsico, o sultanato tem uma extensão territorial de 212,4 mil km2, e uma população de três milhões de habitantes, que inclui 377 mil não nacionais, os quais representam Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 31 a baixa parcela de 13% do total. Os indicadores sociais revelam um certo atraso em relação ao Catar e a Bahrain: a população cresce a mais de 2% ao ano, a mortalidade infantil é de 12 óbitos por mil nascidos vivos, a urbanização não ultrapassa 73%. Outro indício de atraso social se encontra na pirâmide populacional, onde o grupo etário de 0 a 14 anos representa a alta taxa de 31,2%, sendo de apenas 3% o número de pessoas com mais de 65 anos. A parte alfabetizada da população é de 81%, sendo de 86% de homens e 73% de mulheres. A economia nacional baseia-se na produção e exportação de petróleo e gás natural, produtos que respondem por 85% das exportações. O país está convencido de que suas reservas de petróleo irão esgotar-se, daí resulta o plano de diversificação econômica. Ultimamente, têm sido aplicadas, com êxito, técnicas avançadas de recuperação da extração do óleo. Com isso, Oman ganha mais tempo para diversificar a sua economia. A elevação dos preços do petróleo em 2010 trouxe grande aumento dos recursos disponíveis para desenvolvimento. No setor político, o sultão é o chefe de Estado e primeiro-ministro, desde os primeiros anos do decênio de 1970, isto é, há quase 40 anos. O Legislativo, bicameral, consiste na Câmara Alta, integrada por 71 membros, todos nomeados pelo monarca. A Câmara Baixa se compõe de 84 membros, eleitos pelo voto popular, que têm apenas poderes consultivos, com mandato de quatro anos. Não há partidos políticos. A data nacional é o dia de nascimento do Sultão Qabus. A onda de protestos populares, que começou a varrer os países do Oriente Médio e da África do Norte, atingiu algumas cidades de Oman, inclusive a capital, Muscat (Mascate), exigindo os manifestantes a libertação de presos políticos, oportunidades de emprego, liberdade de imprensa e menor controle político. Houve também 32 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 ali greves por melhores condições de existência da população de baixa renda. Em 2010, quando o PIB chegou a US$ 76 bilhões, a composição do produto nacional, atribuía à agricultura apenas 1,4%; à indústria: 48,2%; e 50,3% aos serviços. O PIB per capita era de US$ 25,8 mil. Com uma população economicamente ativa de 969 mil pessoas, a arrecadação de impostos foi de US$ 20 bilhões, em 2009, quando a dívida pública era de 4,4% do PIB. A PEA, de 969 mil pessoas, representava menos de uma terça parte da população, contendo, portanto, alta taxa de desemprego. Emirados Árabes Unidos A diversificação da economia parece ser a palavra de ordem de todos os países do Golfo Pérsico. Essa onda abrange os Emirados Árabes Unidos, cuja política de diversificação registra animadores êxitos, que se refletem na diminuição da parte do petróleo na formação do seu produto interno bruto. A parcela do petróleo e do gás no produto está reduzida a 25%. Graças ao intenso desenvolvimento econômico, dos últimos decênios, a área antes empobrecida se transformou num Estado moderno, com elevado padrão de vida. Programas do governo estão voltados para a expansão da infraestrutura e a criação de empregos, ao mesmo tempo em que os serviços públicos são um setor aberto ao investimento privado. Em 2004, o governo dos Emirados assinou com Washington um esboço de acordo sobre comércio e investimento. As Zonas de Livre Comércio, que existem nos Emirados, oferecem aos investidores estrangeiros vários estímulos, inclusive zero de im- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 33 postos, o que representa um forte atrativo. Não há tarifa aduaneira para barrar a entrada de similares estrangeiros. As empresas industriais nascem com vocação exportadora, como ocorre nos demais países do Golfo. O ingresso de investimentos contribuiu para atenuar os efeitos da crise internacional de 2009, ao lado de medidas objetivas em termos de aumento dos dispêndios oficiais e de apoio à liquidez do sistema bancário. O setor industrial está bastante diversificado, com destaque para a produção de petróleo e petroquímicos, alumínio, cimento, fertilizantes, materiais de construção, tecidos, reparos navais e pequenos estaleiros. A produção de petróleo chegou a cerca de 2,8 milhões de barris diários. As reservas de gás natural são estimadas em 6 trilhões de metros cúbicos. Em 2010, o PIB chegou a US$ 239,7 bilhões, acusando crescimento de 2,6%, o que se considera como sinal de fim da crise. No mesmo ano o produto per capita foi de US$ 40,2 mil e o PIB teve a seguinte composição: agricultura – 0,9%; indústria – 51,5%; e os serviços – 47,6%. O Estado de S. Paulo, edição do dia 3 deste mês (abril de 2011), reproduziu nota do Departamento de Estatística dos Emirados Árabes, informando que a população do país chegou a 8,2 milhões de habitantes, em junho de 2010. A informação foi também divulgada no site Arabian Business. Dos mais de oito milhões de cidadãos, apenas 11,5%, ou 947.997, são nascidos no próprio país. A população imigrante soma 7.316.000, ou 88,5%. O período em que a população acusou maior crescimento foi entre 2006 e 2008, quando passou de 6,2 para 8 milhões. De acordo com o citado Departamento de Estatística, Abu Dhabi, a capital dos Emirados, concentra 400 mil nascidos no 34 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 país, enquanto 168 mil se encontram em Dubai, cuja população é de quase dois milhões de habitantes. É precária, nos Emirados, a situação dos direitos humanos. Em março, um grupo de intelectuais dos Emirados publicou na Internet um manifesto, em que pedia eleições diretas e um parlamento com poderes legislativos autênticos. O documento foi assinado por 133 pessoas, inclusive professores universitários, jornalistas e defensores dos direitos humanos. O texto, dirigido ao presidente da Federação dos Emirados Árabes, afirma que “os rápidos acontecimentos regionais e internacionais tornam necessário melhorar a participação popular”. O documento faz pormenorizada referência à derrubada dos presidentes do Egito e da Tunísia e às lutas dos rebeldes líbios contra Khadafi. Kuwait Para concluir, restaria fazer uma breve referência ao Kuwait, país de 17.800 km2, cuja invasão por tropas do Iraque deu origem à guerra do Golfo de 1990-1991, vencida por uma coalizão ocidental. O pequeno país registrou um dispêndio de US$ 5 bilhões para reparar os danos causados pela guerra. Ocorreu uma brecha no sistema político absolutista com as eleições, em 2009, para a Assembleia Nacional, onde ocupam assentos quatro mulheres, o que no mundo árabe representa um grande avanço. O Kuwait segue o receituário dos demais países do Golfo no que diz respeito ao desenvolvimento econômico, com ênfase na instalação de empresas petroquímicas, de cimento e outras. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 35 Em março passado, houve seguidos protestos populares quando os manifestantes exigiram a queda do primeiro-ministro e maior liberdade política no país, que é o quarto maior produtor de petróleo do mundo. Em 2009, a produção diária de petróleo era de 2,5 milhões de barris. O teor político dos protestos se revelava nas palavras de ordem: “o povo quer o fim da corrupção”, “fora Nasser”, o primeiro-ministro. Amparada em tecnologias modernas, a industrialização dos países do Golfo reflete-se no Ocidente sob a forma da perda de empregos e de mercados. Trata-se de um movimento irreversível, iniciado há menos de 40 anos, o que ressalta o dinamismo dos acontecimentos no setor do petróleo. Palestra pronunciada em 24 de maio de 2011 36 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 18-36, ago. 2011 O Banco Central do Brasil como executor da política monetária Antonio Chagas Meirelles Economista S egundo o Banco de Pagamentos Internacionais (BIS), Banco Central é a instituição de um país à qual se tenha confiado o dever de regular o volume de dinheiro e de crédito da economia. O Banco Central usa os seus instrumentos de política monetária – operações de mercado aberto, redesconto e reservas compulsórias – para alterar a base monetária (papel moeda em poder do público e reservas bancárias), o volume de crédito e a taxa de juros de curto prazo, de tal maneira a atingir as principais metas da política monetária. Atualmente a principal meta é a estabilidade do poder de compra da moeda nacional, ou seja, a manutenção de uma taxa baixa e sustentável de inflação. Igualmente importante é a manutenção de um nível de emprego elevado e crescimento econômico alto e sustentável, ou seja, espera-se que a política monetária seja capaz de suavizar o ciclo econômico e neutralizar os choques que possam ocorrer no curto prazo. Além disso, a maior parte dos bancos centrais tem como mis- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 37 são promover o desenvolvimento, a eficiência e a solidez do sistema financeiro e administrar o sistema de pagamentos do país. A história dos bancos centrais data do século XVII, quando foi criada a primeira instituição reconhecida como tal: o Riksbank, fundado na Suécia em 1668, como um banco comercial privado, encarregado de administrar os recursos do governo sueco. Algumas décadas depois, o Banco da Inglaterra, fundado em 1694, inicialmente como banco privado, foi a primeira instituição a agrupar de forma mais clara as funções de um banco central. Os primeiros bancos centrais emitiam notas privadas que serviam como moeda e geralmente possuíam o monopólio da emissão de papel moeda do país. O Banco da França foi criado por Napoleão em 1800, com o objetivo de estabilizar o valor da moeda, após a hiperinflação provocada pela Revolução Francesa. Embora esses primeiros bancos participassem do processo de financiar os gastos governamentais, exercendo, portanto, a função de banqueiro do governo, eles continuavam a ser instituições privadas, captando e emprestando recursos para o público em geral. Essas instituições, pelo tamanho de suas reservas e pela sua rede de correspondentes, passaram a acolher depósitos de outros bancos e aos poucos foram se tornando banqueiro dos bancos, facilitando transações interbancárias e prestando outros serviços financeiros. Os bancos centrais foram também, paulatinamente, assumindo a função de emprestador de último recurso em situações de crise financeira, provocada por quebra de safra agrícola, falência de empresas de transporte ferroviário etc.; eventos que muitas vezes provocavam a 38 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 corrida dos depositantes aos bancos para converter seus depósitos em moeda. Na Inglaterra, no começo do século XIX, o Banco da Inglaterra, em situação de stress financeiro, procurava prioritariamente defender suas reservas de ouro, deixando de atender os bancos correspondentes, o que acabava por provocar pânico com corrida aos bancos para saque de numerário. Em 1857, em resposta às inúmeras críticas, o Banco da Inglaterra resolveu assumir a “doutrina da responsabilidade” (responsibility doctrine), proposta pelo economista Walter Bagehot, que postulava que o Banco deveria sobrepor o interesse público do sistema bancário como um todo aos seus interesses privados. Desde então, o Banco passou a atender outras instituições que precisassem de liquidez, descontando títulos de boa qualidade e a taxas punitivas (acima das taxas de mercado), para evitar moral hazard. O Banco aprendeu a lição e, nos 150 anos seguintes, até 2007, nenhuma crise financeira ocorreu na Inglaterra.1 O Banco Central do Brasil (BCB), autarquia federal integrante do Sistema Financeiro Nacional, foi criado em 31/12/1964, com a promulgação da Lei nº 4.595. O BCB foi criado com o objetivo de assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda e um sistema financeiro sólido e eficiente. O BCB é hoje uma instituição essencial à estabilidade econômica e financeira, indispensável ao desenvolvimento sustentável e à melhor distribuição da renda no Brasil. Grande parte do que se segue, em que se descreve como as funções típicas de autoridade monetária eram conduzidas antes da criação Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 39 do BCB e como o BCB exerce as suas funções de executor da política monetária, foi transcrito do excelente manual preparado pelo Banco Central, Diretoria de Política Econômica, para esclarecimento do público e treinamento de seus funcionários: Funções do Banco Central do Brasil – 2009.2 “O BCB, como um banco central clássico, tem as seguintes funções: (a)monopólio de emissão; (b)banqueiro do governo; (c)banco dos bancos; (d)supervisão do Sistema Financeiro; (e) executor da política monetária; e (f)executor da política cambial e depositário das reservas internacionais. A partir de 1945, antes do surgimento do BCB, as funções típicas de autoridade monetária eram desempenhadas conjuntamente pela Superintendência de Moeda e do Crédito (SUMOC), pelo Banco do Brasil (BB) e pelo Tesouro Nacional. O Tesouro Nacional era o órgão emissor do papel moeda. Já a Sumoc foi criada com a finalidade de exercer o controle monetário e preparar a organização de um banco central, tendo a responsabilidade de fixar os percentuais de reservas obrigatórias dos bancos comerciais, as taxas de redesconto e de assistência financeira de liquidez, e os juros sobre depósitos bancários. Além disso, supervisionava a atuação dos bancos comerciais, orientava a política cambial e representava o País junto a organismos internacionais. 40 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 O BB, por sua vez, desempenhava as funções de banqueiro do governo e banco dos bancos, mediante o controle das operações de comércio exterior, o recebimento dos depósitos compulsórios e voluntários dos bancos comerciais e a execução de operações de câmbio em nome de empresas públicas e do Tesouro Nacional, de acordo com as normas estabelecidas pela Sumoc. Desde a promulgação da Lei n° 4.595, buscou-se dotar o BCB de instrumentos legais para o desempenho do papel de “banco dos bancos”. Além disso, coube-lhe exercer o monopólio de emissão, nos termos do artigo 164 da Constituição Federal e da Lei n° 4.595, que estabeleceu competência privativa do BCB para emitir papel-moeda e moedas metálicas e executar os serviços do meio circulante, a supervisão do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e executar as políticas monetária e cambial. Essa mesma lei não definiu, no entanto, limites claros de separação na relação entre o BCB, o BB e o Tesouro Nacional, o que dificultava a atuação do BCB na condução da política monetária, cabendo-lhe inclusive a responsabilidade por contas do orçamento fiscal, como as relativas à dívida pública. Em 1965, passou a funcionar a conta movimento do BB, que registrava as operações realizadas na condição de agente financeiro do BCB. Essa conta passou gradativamente a ser utilizada como fonte de suprimento automático do BB, permitindo, assim, a realização da política de crédito oficial e outras operações do Governo Federal, sem o prévio aprovisionamento de recursos. Em 1985, com o objetivo de definir linhas mais claras de responsabilidade na atuação do BCB, foi promovido o reordenamento financeiro governamental com a separação das contas e das funções do BCB, BB e Tesouro Nacional. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 41 Em 1986 foi extinta a conta movimento e a transferência de recursos do BCB ao BB passou a ser claramente identificada nos orçamentos das duas instituições. Eliminaram-se, dessa forma, os suprimentos automáticos que prejudicavam a atuação do BCB no controle monetário e contribuíam para acelerar o processo inflacionário.”3 Executor da política monetária A função de executor da política monetária é a que define o sentido mais amplo de um banco central e é aquela que, em última instância, engloba as demais. O Banco Central usa os seus instrumentos clássicos de política monetária – operações de mercado aberto, redesconto, reservas compulsórias, além de outros menos ortodoxos como os controles quantitativos e seletivos de crédito – para alterar a base monetária (papel moeda em poder do público mais reservas bancárias), o volume de crédito e a taxa de juros de curto prazo, de tal maneira a influenciar as decisões de consumir, poupar e investir dos agentes econômicos, permitindo a consecução das principais metas da política monetária. Atualmente, a principal meta é a de preços estáveis, ou seja, estabilidade do poder de compra da moeda nacional, o que, como já vimos, significa a manutenção de uma taxa baixa e sustentável de inflação. Igualmente importante é a manutenção de um nível de emprego elevado e crescimento alto e sustentável, ou seja, espera-se que a política monetária seja capaz de suavizar o ciclo econômico e neutralizar os choques que possam ocorrer no curto prazo. A política monetária influencia a evolução dos meios de pagamento e controla o processo de criação de moeda e do crédito, mediante os seguintes instrumentos de ação dos bancos centrais: 42 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 1) Clássicos: (a) Reservas Compulsórias (b) Redesconto (c) Operações de Mercado Aberto 2) Heterodoxos: Controle quantitativo e seletivo de crédito. Reservas compulsórias O objetivo das reservas compulsórias é esterilizar parte dos recursos captados pela instituição financeira, de forma a controlar a liquidez agregada e reduzir a capacidade de criação de moeda pelas instituições financeiras. Ao realizar crédito em conta-corrente, a instituição bancária cria meios de pagamentos que, ao serem utilizados pelo tomador de crédito, geram depósito em outra instituição financeira, que passa a dispor da capacidade de gerar novo crédito a outro cliente e assim por diante. A repetição desse mecanismo mostra a capacidade do setor bancário de multiplicar a moeda. No intuito de reduzir essa capacidade, o BCB exige que certa parcela dos depósitos à vista e de outras rubricas contábeis da rede bancária permaneça depositada na autoridade monetária. O BCB está autorizado, pela Lei n° 7.730, de 31/01/1989, a instituir recolhimento compulsório de até 100% sobre os depósitos à vista e de até 60% de outros títulos contábeis das instituições financeiras. Dentro desses limites, o BCB pode adotar percentagens diferenciadas em função das regiões geoeconômicas, das prioridades que atribuir às aplicações e da natureza das instituições financeiras. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 43 “O recolhimento compulsório sobre recursos à vista incide sobre os depósitos à vista e sob aviso, e também sobre recursos transitórios acolhidos pelos bancos, tais como cheques administrativos, recebimento de tributos e assemelhados, recursos em trânsito de terceiros e recursos oriundos de garantias realizadas.” “Diferentemente de outros instrumentos de política monetária, a reserva legal (compulsório) tem de ser cumprida obrigatoriamente. Em alguns casos, parte do encaixe pode ser coberta com títulos governamentais. Por afetar as posições dos bancos, este não é um instrumento flexível, haja vista que mudanças bruscas nas taxas de reserva legal podem provocar descasamento na estrutura temporal entre ativos e passivos das instituições submetidas a esses recolhimentos.” 4 Redesconto Existe uma distinção entre a atuação do BCB como executor da política monetária e a função de prestamista de última instância. Quando faz política monetária, o foco de sua atuação é o controle da liquidez do sistema bancário com o objetivo de atuar sobre a taxa de juros. Quando atua como prestamista de última instância, seu foco é resolver problemas de liquidez de instituições específicas. Nesse último caso, o mercado pode estar líquido e a instituição estar ilíquida ou insolvente, não conseguindo financiamento no interbancário e recorrendo ao redesconto do BCB que, nesse caso, atua como emprestador de última instância. Atualmente a regulação da liquidez do sistema bancário não se faz com redesconto e sim com operações de mercado aberto (open-market) que permitem maior flexibilidade na execução da política monetária. “O acesso ao redesconto é restrito às instituições financeiras titulares de conta reservas bancárias. As operações concedidas a exclusivo 44 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 critério do BCB, por solicitação da instituição interessada, são realizadas nas modalidades de compra com compromisso de revenda e redesconto. O BCB concede recursos em geral mediante venda, pela instituição tomadora do crédito, de títulos públicos no valor correspondente à operação. De acordo com a finalidade e os prazos, as operações podem ser: a) Intradia: operações compromissadas com títulos públicos federais destinadas a atender necessidades de liquidez ao longo do dia. A instituição, que necessita reservas e que possua títulos públicos federais em sua conta de custódia no Selic, pode vendê-los ao BCB com o compromisso de recomprá-los no mesmo dia da contratação, ao mesmo valor da venda, até o fechamento do Sistema de Transferência de Reservas (STR) em tempo real. Trata-se de operações sem custo financeiro para a instituição contratante e de curso automático. O regulamento do redesconto permite que as operações intradia pendentes de liquidação, ao término do horário de funcionamento do STR, sejam convertidas automaticamente em operações de um dia útil à taxa punitiva (taxa Selic + 6% a.a.), tendo por objeto os mesmos títulos da concessão intradia. b) De um dia útil: para atender o descasamento de curtíssimo prazo no fluxo de caixa. c) De até 15 dias úteis (podendo ser prorrogadas por até 45 dias) na hipótese de descasamento de curto prazo no fluxo de caixa, não caracterizado como problema de desequilíbrio estrutural. Dependem de prévia autorização da diretoria de Política Monetária, com base em fluxo de caixa diário da instituição interessada e na assinatura prévia do contrato. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 45 d) De até 90 dias úteis (podendo ser recontratadas até 180 dias corridos) para viabilizar ajuste patrimonial da instituição financeira com desequilíbrio estrutural. Dependem de contrato prévio e da aprovação da Diretoria Colegiada do BCB. A instituição deverá apresentar pleito fundamentado, acompanhado das necessidades de caixa projetadas para o período de operação e programa de reestruturação, visando a sua capitalização ou venda do controle acionário pelo acionista controlador. Na modalidade de compra com compromisso de revenda podem ser utilizados os seguintes ativos: títulos públicos federais, outros títulos e valores mobiliários, créditos e direitos creditórios, preferencialmente com garantia real, e outros ativos. As operações intradia e de um dia útil contemplam exclusivamente os títulos públicos federais.”5 Em um contexto de estabilidade do sistema financeiro predominam as operações intradia, não havendo registro atualmente das outras modalidades. Operações do mercado aberto As operações de mercado aberto apresentam grande flexibilidade, agilidade e alcance para a regulação dos meios de pagamento, sendo de impacto imediato e direto sobre os agregados monetários, e regulando simultaneamente a taxa de juros e a oferta monetária. É o instrumento atualmente utilizado pela ampla maioria dos bancos centrais para a execução da política monetária. Esse tipo de operação se realiza mediante compra e venda de títulos governamentais de curto prazo, no mercado secundário, com rendimentos competitivos. Ao comprar títulos públicos, o Banco 46 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 Central entrega moeda (depósitos) em troca de títulos do governo, aumentando as reservas dos bancos, o crédito e a oferta monetária, causando aumento dos preços dos títulos e queda na taxa de juros. Em sentido oposto, quando o BCB vende títulos do governo, recolhe, em contrapartida, a moeda do sistema bancário, diminuindo a liquidez na economia, provocando queda dos preços dos títulos e incremento dos seus rendimentos. As intervenções (compra e venda de títulos) realizadas pelo BCB são de dois tipos: operações compromissadas voltadas para ajustes de liquidez; e operações definitivas, voltadas para mudanças de tendências. Nas operações compromissadas, o BCB toma (ou empresta) recursos por um prazo definido, vendendo (ou comprando) títulos com o compromisso de recomprá-los (ou revendê-los) em data combinada, a um determinado preço. Nesse tipo de operação (leilão informal), o BCB atua no mercado por meio de instituições dealers credenciadas periodicamente pelo BCB. Nas operações definitivas, o título incorpora-se à carteira da instituição compradora. A compra ou venda definitiva dá-se por meio de leilões informais, restritos aos dealers, ou leilões formais (ofertas públicas) dos quais podem participar todas as instituições financeiras com conta na Selic.6 Apenas títulos do Tesouro Nacional em circulação no mercado podem ser utilizados para fins de operação de mercado aberto. O BCB pode comprar títulos diretamente do Tesouro Nacional apenas quando a compra se destina ao refinanciamento de dívida mobiliária vincenda de sua carteira. “O ajuste diário de liquidez é realizado por meio das operações compromissadas. O processo pode ser descrito, sinteticamente, da seguinte forma: antes de o mercado começar a operar, o BCB estima se há excesso Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 47 de reservas no sistema bancário ou deficiência de reservas. Esta estimativa é obtida por meio de consultas a diversas fontes, referentes a operações que afetam as reservas bancárias. Por exemplo, se o Tesouro Nacional realiza despesas, ou se o BCB liquida operações de compra de moeda estrangeira (liquidadas mediante crédito em moeda nacional em favor da instituição vendedora), é necessário compensar a expansão do nível de reservas bancárias, tomando os recursos excedentes. Essa operação se materializa pela venda de títulos que são recomprados em data posterior. Da mesma forma, quando ocorre escassez de reservas, causada por recolhimentos significativos de impostos federais ou por conta de liquidação da venda de câmbio pelo BCB, a mesa de operações realiza transações de compra de títulos que são revendidos em data posterior. Considerando, portanto, a estimativa quanto a excessos ou defi ciências de reservas, bem como a meta para a taxa Selic estabelecida pelo Copom,7 realizam-se as intervenções no mercado aberto com o objetivo de manter a taxa Selic efetiva próxima da meta.”8 Controle quantitativo de crédito Em determinadas situações em que as autoridades monetárias necessitem afetar prontamente o volume de crédito concedido pelo setor bancário visando conter o dispêndio global da economia, políticas que objetivem impactar a base monetária para alterar o crédito bancário podem ser insuficientes. 48 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 O controle quantitativo de crédito9 foi usado diversas vezes no passado como uma medida complementar aos instrumentos clássicos de política monetária ou como uma alternativa ao seu uso. Na Inglaterra, em 1959, o “Relatório Radcliffe” já apresentava argumentos para o controle quantitativo do volume de crédito naquele país. O Relatório Radcliffe10 e outros estudos (já na década de 1970) destacam três vantagens do contingenciamento de crédito em relação a métodos indiretos de controle da base monetária. “Em primeiro lugar, o controle quantitativo representa instrumento de política adicional, reforçando tendências induzidas por instrumentos tradicionais de política monetária. Em segundo lugar, tem a vantagem na rapidez na implementação e na obtenção de resultados. Evitando-se a defasagem observada quando do uso de instrumentos que afetam a base monetária, diminui-se o horizonte temporal sobre o qual as autoridades monetárias devam fazer previsões corretas, o que num mundo de incertezas é uma vantagem apreciável. Finalmente, o controle direto tem maior precisão do que instrumentos de ação indireta que têm maior margem de erro, seja quanto à ordem de magnitude, seja quanto ao tempo de efetivação do comportamento esperado. Esta vantagem é particularmente importante quando um país assume compromissos de metas quantitativas com organismos como o FMI, como foi o caso do Brasil no passado.”11 Ao longo das décadas de 1960 e 1970, em diversas ocasiões, as autoridades monetárias brasileiras criaram restrições para determinadas Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 49 categorias de crédito e particularmente para o crédito ao consumidor (redução de prazos mínimos de financiamento e do valor financiado). Adotaram-se também diversas medidas que afetavam a composição das aplicações dos bancos comerciais, buscando orientar uma parcela daquelas para setores específicos, notadamente para a agricultura, bem como as taxas de juros cobradas sobre determinados empréstimos. Dado o volume global de aplicações possível para o conjunto dos bancos comerciais, a obrigatoriedade de certas aplicações reduzia os recursos disponíveis para as demais e, em particular, para aquelas sobre as quais incidiam juros livres. No entanto, somente a partir de abril de 1980, foram estabelecidos “tetos” para o crescimento das aplicações dos bancos comerciais, dos bancos de investimento e de financeiras (SCFI). Os tetos para o crescimento das aplicações dos bancos comerciais e dos bancos de investimento foram mantidos até junho de 1983, quando foram eliminados pelo CMN. Em 1979, os meios de pagamento (M1) cresciam à taxa de 73%, um pouco inferior à taxa do IGP, de 77%. O crédito das instituições financeiras, como um todo, apresentava uma expansão de 60%. Os percentuais acima dramatizam a dificuldade por parte das autoridades monetárias para controlar a expansão da moeda e do crédito em face de uma inflação crescente. Em dezembro de 1979, o cruzeiro foi desvalorizado em 30% em relação ao dólar. Com o objetivo de evitar a formação de expectativa inflacionária, o governo adotou, no início de 1980, diversas medidas: prefixou para o ano todo a correção monetária em 45%, a variação cambial em 40% e a expansão dos meios de pagamento em 50%. 50 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 Em abril, em face da inflação em 12 meses ter atingido 83%, a Resolução 605 do BCB, de 02/04/1980, limitou em 45% o crescimento das aplicações, no exercício de 1980, dos bancos comerciais, dos bancos de investimento e das SCFI. Excetuaram-se daquela limitação as operações de repasse de recursos externos através da Resolução 63, com o objetivo de incentivar a captação de recursos externos para equilibrar o balanço de pagamentos. Também não foram incluídos no teto de 45% os empréstimos aos setores agrícola e exportador, bem como aqueles decorrentes de repasses do Banco Central, BNH, BNDE e Finame, que representavam parcela importante do total das aplicações das instituições submetidas a controle. A Resolução 605 obrigava os bancos comerciais, de investimento e financeiras a comprarem títulos do Tesouro com os recursos que excedessem o teto de 45%, o que viria a facilitar a colocação desses papéis na carteira dos bancos. O IOF foi aumentado de 0,2% para 0,6% ao mês. Em 25/06/1980, a Resolução 623 elevou de 50% para 60% do valor global das operações de crédito o percentual mínimo a ser obrigatoriamente direcionado a pessoas físicas brasileiras e a empresas controladas por capitais privados nacionais pelos bancos comerciais, de investimento, financeiras e companhias de leasing. Assim, ao controle quantitativo do crédito bancário adicionava-se o controle seletivo, visando favorecer o acesso ao crédito por parte de empresas privadas nacionais em detrimento de empresas públicas e estrangeiras. Em setembro de 1981, o controle quantitativo do crédito estendeu-se às sociedades de arrendamento mercantil (leasing), cujas aplicações até o final de 1981 foram limitadas em 16,5% pela Resolução 705 (18/09/81). Em dezembro, a Resolução 711 estabeleceu restrições e penalidades aos bancos comerciais que excedessem o percentual máximo de crescimento fixado para suas aplicações. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 51 O controle quantitativo que se estendeu pelos anos de 1980, 1981 e 1982 conseguiu êxito apenas por breves períodos, como em 1981, quando ocorreu uma significativa contração real dos meios de pagamento, recuo da taxa anual de inflação e uma queda do PIB de 3,5%. No restante do período, distorções, vazamentos e um crescente emaranhado de regulamentos impediram o cumprimento dos objetivos de controle do crédito, da demanda agregada e dos preços que, no início de 1983, já atingiam a taxa de 120% a.a. Diante deste quadro, em 09/06/83, a Resolução 835 do CMN extinguiu o controle quantitativo à que estavam sujeitas as instituições financeiras. Corrêa do Lago, na conclusão de seu excelente trabalho12 já citado anteriormente, destaca: “No entanto, ao tentar alcançar os objetivos de conter o dispêndio global e atenuar pressões inflacionárias através do controle de crédito, as autoridades econômicas podem, ao mesmo tempo, criar várias distorções na economia. O controle é tanto mais eficaz quanto mais abrangente for a sua aplicação. Se este tiver apenas natureza parcial, como foi notadamente o caso do Brasil no período 1980/1983, os agentes econômicos sofrem uma interferência temporária nos seus canais costumeiros de financiamento, mas tentam readaptar-se o mais brevemente possível, voltando-se para fontes alternativas de recursos. Na presença de controles creditícios, verificou-se, por exemplo, um forte aumento da emissão de títulos pelas empresas, principalmente de debêntures. Por outro lado, a ausência de controle rígido sobre empréstimos com base em recursos oriundos do exterior também permitiu contornar ‘tetos’ de expansão de empréstimos. Ou seja, existindo 52 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 certa ‘substituibilidade’ entre fontes alternativas de financiamento, controles creditícios impostos apenas parcialmente não impedem necessariamente uma forte expansão global dos empréstimos. Adicionalmente, se determinados setores de atividade (ou regiões) recebem tratamento preferencial, a presença de controles pode exacerbar a discriminação já existente na ausência desses controles. Quanto mais longo o período de vigência do controle quantitativo, maior a tendência para o agravamento de distorções e para a busca de fontes alternativas de financiamento que tendem a enfraquecer aquele instrumento. Uma conclusão de caráter geral, que também é comprovada pela experiência de outros países em que vigoraram tetos de expansão do crédito, parece ser que a eficiência do controle quantitativo do crédito depende de sua abrangência e pode ser maior no curto ou médio prazos do que no longo prazo. Aplicados sobre as várias instituições do sistema financeiro e não apenas sobre os bancos, os ‘tetos’ de expansão de empréstimos podem ser um importante fator de contenção de despesas na economia, especialmente quando utilizados conjuntamente com uma política monetária restritiva, durante um período de tempo suficientemente curto para impedir uma ‘readaptação’ por parte de vários agentes econômicos.” O regime de metas para inflação Desde 01/07/1999, a política monetária do BCB é conduzida sob o regime de metas para inflação. Esse regime é caracterizado pelo comprometimento do BCB de atuar de forma que a inflação observada esteja em linha com uma meta preestabelecida pelo CMN e anunciada publicamente. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 53 O regime de metas de inflação (Inflation Targeting – IT) não tem uma definição única. Formalmente ele deve ter cinco componentes: 1) O anúncio público de uma meta quantitativa, de médio prazo, para a taxa de inflação. 2) O comprometimento institucional em torno da estabilidade de preços como o principal objetivo da política monetária ao qual todos os outros objetivos estão subordinados. 3) Um sistema de informações abrangente baseado em diversas variá veis econômicas, e não apenas nos agregados monetários e taxa de câmbio, para melhor definir a utilização dos instrumentos de política. 4) A maior transparência possível na informação ao público e ao mercado sobre os planos, objetivos e decisões da autoridade monetária. 5) Prestação de contas, no seu sentido mais amplo (accountability), por parte do Banco Central, ou seja, verificar se a meta que se pretendia foi alcançada e, caso não tenha sido, por que não foi e o que se pretende fazer para alcançá-la. De acordo com o FMI, duas características básicas distinguem o IT dos outros regimes de condução da política monetária: a) O Banco Central assume o compromisso formal de perseguir um valor numérico específico ou um intervalo de variação para a taxa anual de inflação. A escolha de um único índice de preços como meta de inflação destaca a prioridade dada à estabilidade de preços e o valor numérico fixado serve para identificar para os agentes econômicos o que a autoridade monetária entende por estabilidade de preços. b) A projeção da inflação para um período futuro é, na realidade, a meta intermediária da política monetária. Por isso, a política de 54 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 fixar metas de inflação é muitas vezes conhecida como a política de projeção de metas de inflação. Como no curto prazo a inflação já está parcialmente determinada pelos contratos em vigor de preços e salários e/ou indexação a uma inflação passada, a política monetária só pode influenciar a inflação futura. Ao alterar os agregados monetários, com base em novas informações, o Banco Central influencia a expectativa de inflação de tal maneira a, através do tempo, aproximá-la da meta fixada. O regime de metas de inflação (IT) acaba de completar 20 anos. A Nova Zelândia, em 1990, foi o primeiro país a adotar o novo sistema de condução da política monetária. Hoje já são 26 países, metade deles economias emergentes ou de baixa renda.13 Interessante estudo, publicado em março/2010 na revista Finance & Development do FMI,14 faz uma análise comparativa da inflação e do crescimento econômico em países que adotaram a IT vis-à-vis países que adotam outros regimes. Entre os períodos 1991-2000 e 2001-2009, os dois grupos de países apresentaram crescimento econômico e queda da taxa de inflação, no entanto os dois índices apresentaram melhor resultado nos países que adotaram o IT. A volatilidade dos preços e da taxa de crescimento, entre os dois períodos, também foi menor para os países que adotaram o sistema de metas de inflação. O Brasil adotou formalmente o regime de metas de inflação como o seu novo arcabouço de política monetária com a publicação, em 01/07/99, do Decreto n° 3.088, de 21/06/1999. As principais medidas listadas no Decreto eram as seguintes: 1) As metas de inflação bem como o seu intervalo de segurança (banda) serão definidos pelo CMN. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 55 2) As metas de inflação serão estabelecidas pelo CMN com base em um índice de preços amplamente conhecido. O índice adotado foi o IPCA, publicado pelo IBGE. 3) Ao Banco Central será dada a responsabilidade de implementar as ações necessárias para que a meta seja atendida. 4) As metas de inflação para os anos 1999, 2000 e 2001 serão fixadas em 30/6/1999; para o ano 2002 e, para os anos subsequentes, as metas devem ser fixadas em 30 de junho para os dois anos seguintes. 5) As metas serão preenchidas sempre que a inflação acumulada no período janeiro-dezembro de cada ano se mantenha dentro de intervalo de segurança. 6) No caso de não cumprimento das metas fixadas pelo CMN, isto é, quando a inflação rompe, acima ou abaixo, os limites do intervalo de tolerância em torno da meta central, as razões para o descumprimento, bem como as providências tomadas para que a trajetória da inflação convirja para meta estabelecida e o prazo no qual se espera que as providências produzam efeito, deverão ser explicitadas pelo Presidente do BCB em Carta Aberta ao Ministro da Fazenda. 7) O Banco Central deverá publicar trimestralmente um Relatório de Inflação com detalhadas informações sobre o comportamento do IPCA, a influência da ação da política monetária sobre o índice e as expectativas do mercado em relação à inflação futura. O Comitê de Política Monetária – COPOM é o órgão decisório da política monetária do BCB, responsável pelo cumprimento das metas de inflação fixadas pelo CMN. O Comitê é composto pela Diretoria Colegiada do BC: Presidente e Diretores. 56 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 O Copom se reúne oito vezes por ano, durante dois dias, para definir a taxa de juros Selic que deverá prevalecer até a reunião seguinte. A maior parte dos bancos centrais utiliza uma taxa de juros de curto prazo como instrumento principal de política. O regime brasileiro de metas para inflação utiliza a taxa Selic como instrumento básico da política monetária. A taxa Selic é a taxa de juros média que incide sobre os financiamentos diários com prazo de um dia útil (overnight), lastreados em títulos públicos federais registrados no Sistema de Liquidação e Custódia – Selic, ou seja, é a taxa de juros que equilibra o mercado de reservas bancárias. Em sua reunião de março de 1999, antes da implantação do regime de metas, o Copom já antecipava as diretrizes da nova política monetária: – manter a estabilidade de preços é o principal objetivo do Banco Central; – em um sistema de taxas flexíveis de câmbio, a estabilidade de preços é o resultado da soma da austeridade fiscal com a austeridade monetária; – como no curto prazo a política fiscal é um dado, todo o esforço de controle da pressão inflacionária deve ser exercido pela taxa de juros. Desde a adoção do regime de metas, a inflação observada ultrapassou o intervalo de tolerância em 2001, 2002 e 2003. Em 2004, 2005, 2008 e 2010, o IPCA ficou acima do centro da meta, mas dentro do limite superior do intervalo de tolerância, tendo ficado abaixo do centro da meta em 2006, 2007 e 2009. Em 2001, 2002 e 2003, o Presidente do BC enviou Carta Aberta ao Ministro da Fazenda com a descrição Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 57 e análise das causas que induziram ao não atendimento da meta e as providências que seriam tomadas para que a trajetória da inflação convergisse para a meta estabelecida. A execução da política monetária foi sensivelmente aperfeiçoada com a consolidação, nos últimos 12 anos, do Regime de Metas de Inflação (IT): a definição de estabilidade de preços como meta prioritária da política monetária; a escolha da taxa Selic como principal instrumento de política monetária; a implantação de um eficiente sistema de acompanhamento das principais variáveis econômicas de tal maneira a antecipar mudanças de rumo e/ou choques exógenos que possam desviar a taxa de inflação da meta prevista; a formalidade, a transparência e a regularidade nas informações transmitidas aos agentes econômicos que proporcionam, como retorno, uma melhor aferição das expectativas do mercado. Os agentes econômicos já se acostumaram a ouvir a “fala” do BC expressa nas Atas das oito reuniões anuais do Copom e no relatório de Inflação Trimestral. Na medida em que o BC anuncia sua estratégia de política monetária e comunica a sua avaliação das condições econômicas, os mercados têm melhores condições de compreender o padrão de respostas da política monetária aos rumos da economia e aos choques eventuais. Os movimentos de política monetária passam a ser mais previsíveis e as expectativas de inflação podem ser formadas com mais eficiência e precisão. À medida que o regime de metas ganha credibilidade, os reajustes de preços tendem a tangenciar a meta prefixada. O BC, por outro lado, “ouve” através do Boletim Focus as previsões semanais do mercado sobre o comportamento da inflação, da taxa 58 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 de juros e de outras variáveis macroeconômicas para o final do ano em curso e do ano seguinte. Taxa de juros versus reservas compulsórias A taxa de juros é a principal variável pela qual a política monetária afeta a inflação e o crescimento econômico. Os canais de transmissão da política monetária via taxa de juros são amplos. Variações na taxa de juros impactam a decisão de gastar ou poupar das pessoas, ou seja, se vão consumir hoje ou adiar para o futuro os seus gastos. A taxa de juros influencia a produção e, por conseguinte, a atividade econômica, através do custo financeiro da compra de máquinas e equipamentos, aumentando ou diminuindo a propensão a investir das empresas. O nível de investimento também é afetado por variações na taxa de juros por intermédio de outras vias de transmissão: variações nos preços dos ativos, expectativas e no crédito bancário. Variação na taxa de juros provoca alteração de portfólio entre ativos de baixo risco (renda fixa) e ativos de maior volatilidade e risco (ações), o que afeta o processo de capitalização das empresas. Alteração no preço das ações pode, portanto, estimular ou desestimular a propensão a investir. O efeito-preço da taxa de juros sobre os ativos também influencia o consumo. Como a riqueza pessoal é distribuída entre imóveis, títulos Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 59 de renda fixa, ações etc., variações na taxa de juros que afetem esses preços atingem a economia através do consumo. A taxa de câmbio é outro importante preço que sofre influência da taxa de juros. Uma taxa de juros mais alta torna os títulos em moeda local mais atraentes que aqueles denominados em outras moedas, estimulando o fluxo de recursos externos e valorizando a taxa de câmbio. As exportações caem e as importações aumentam, afetando a demanda agregada. O preço dos produtos importados cede, estabelecendo um canal de transmissão direto entre taxa de juros e inflação. Como já abordamos anteriormente, na análise do Regime de Metas de Inflação, a taxa de juros também afeta a economia através das expectativas. Na medida em que os agentes econômicos tenham familiaridade com a política monetária, eles antecipam os impactos de variações na taxa e rapidamente ajustam as suas decisões de consumo, de investimento e preços em função das medidas anunciadas. Outro importantíssimo canal de transmissão da taxa de juros é o crédito bancário. Ao elevar a taxa de juros, a autoridade monetária afeta a disponibilidade de recursos do sistema bancário através de operações de open-market, influenciando a oferta de crédito, consumo e investimento. Por intermédio do canal de crédito bancário, os efeitos de variações nos juros potencializam aqueles resultantes do canal de transmissão de variações nas reservas compulsórias, exigência adicional de capital, controle quantitativo etc., aumentando o efeito contracionista sobre a procura agregada. Os depósitos compulsórios mantidos pelos bancos comerciais no BC guardam relação inversa com a capacidade do sistema bancário de expandir o crédito. A reserva legal esteriliza parte dos recursos que, 60 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 de outra maneira, seriam utilizados pelas instituições bancárias para realizar empréstimos ou investimentos. Ao aumentar o encaixe compulsório, o BC reduz a capacidade potencial dos bancos para expandir o crédito. O canal de transmissão do compulsório, sobre a atividade econômica e a inflação, é mais restrito do que o da taxa de juros, pois depende de algumas condições de mercado, como liquidez e grau de substituição entre ativos. Empréstimos bancários e títulos do governo não devem ser substitutos perfeitos, ou seja, o banco não pode responder ao aumento de suas reservas compulsórias simplesmente se desfazendo de títulos governamentais e mantendo o mesmo volume e condições de crédito. Se o sistema bancário apresentar elevada liquidez – que deve estar aplicada em título de curto prazo do governo –, o impacto do compulsório no crédito e na atividade econômica deve ser menor. Os bancos reduzem a sua carteira de títulos públicos e aumentam as suas reservas sem alterar os seus empréstimos. As empresas não devem poder compensar, sem custos, a redução do crédito bancário através da emissão de debêntures. Portanto, o aumento do compulsório tende a impactar com maior intensidade empresas de pequeno e médio porte, que possuem limitada capacidade de se financiarem fora do sistema bancário. O alcance do impacto da elevação das reservas bancárias sobre o crescimento econômico é de difícil quantificação, pois depende do nível de liquidez do sistema bancário e do grau de substituição entre ativos, ou seja, ele depende da capacidade das empresas de se financiarem fora do sistema bancário. As medidas macroprudenciais prejudicam os agentes econômicos que dependem do crédito bancário, relativamente aos que têm acesso Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 61 a outras fontes de recursos, gerando ineficiências na alocação de recursos e afetando o crescimento de longo prazo. Não se pode, no entanto, ignorar o fato de que no Brasil a taxa de juros de referência é a Selic, taxa que corrige 32% do estoque da dívida pública mobiliária financeira, de R$ 1,69 trilhão (04/2011). Portanto, qualquer variação na taxa Selic tem impacto direto no montante da dívida pública, o que não ocorre com o aumento das reservas compulsórias. Como comparar o efeito sobre a inflação e o crescimento econômico de alterações na taxa Selic e nas reservas compulsórias? Recente estudo do Banco Itaú,15 usando diversos modelos econométricos, procurou medir o impacto equivalente em pontos percentuais da taxa Selic da alta nas reservas compulsórias determinada pelo CMN em 03/12/2010.16 O trabalho do Banco Itaú conclui que o aumento da taxa de reserva compulsória equivale a uma elevação de 0,75% na taxa Selic ou 1%, caso se leve em conta o aumento na capitalização em operações de crédito ao consumidor de mais de 24 meses. O estudo mostra também que o impacto de uma alta de 1% na taxa Selic tem seu efeito máximo, sobre o crescimento econômico, 05 (cinco) trimestres na frente. O maior impacto sobre a inflação ocorre 06 (seis) trimestres adiante. Um aumento de 5% no compulsório leva mais tempo, de 07 (sete) a 08 (oito) trimestres, para afetar a taxa de inflação. 62 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 Estimativas sobre os efeitos de alterações nas reservas compulsórias são difíceis de mensurar, como já vimos anteriormente, em função de sua dependência na liquidez do sistema bancário e no grau de substituição entre ativos. No que se refere ao grau de substituição entre ativos, é interessante observar o rápido crescimento do estoque de letras financeiras (LF) a partir do aumento, em dezembro/2010, do compulsório bancário sobre depósitos a prazo fixo. Nos três primeiros meses de 2011, o estoque de LF cresceu R$ 18,5 bilhões contra R$ 30 bilhões em todo ano de 2010. O mercado projeta que o saldo atual de R$ 44,3 bilhões cresça para R$ 100 bilhões no final de 2011. Como os bancos não podem emitir debêntures, as LF foram criadas em janeiro de 2010 para permitir o alongamento dos passivos bancários. A LF é um título com prazo mínimo de vencimento de dois anos e taxa CDI. Elas não decolaram até que, em dezembro, o BC isentou-as do recolhimento compulsório, ao mesmo tempo em que elevava o compulsório sobre depósito a prazo fixo de 15% para 20%. Relaxamento monetário internacional, acumulação de reservas, recursos externos, taxa de câmbio, superávit primário, dívida pública e inflação A recente onda de relaxamento monetário, implementada pelas principais economias desenvolvidas, veio consolidar a impressão de que o baixo nível de juros e a elevada liquidez internacional vieram para ficar por um bom tempo, o que parece assegurar um fluxo crescente de recursos externos para o Brasil, atraídos pela elevada taxa de juros, crescimento econômico e estabilidade política. O saldo de movimentação de divisas nos 04 (quatro) primeiros meses de 2011, US$ 30 bilhões, já supera em muito os US$ 24 bilhões acumulados em todo ano de 2010. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 63 As reservas internacionais atingiram, no final de abril, o valor recorde de US$ 325 bilhões. Em 03 de dezembro de 2010, o CMN e o BC resolveram ampliar o seu arsenal de instrumentos de política monetária, elevando o compulsório de depósitos à vista (de 8% para 12%) e a prazo (de 15% para 20%), aumentado ainda o índice de capitalização do crédito ao consumidor de prazo superior a 24 meses, de 11% para 16,5%. As medidas do CMN representaram uma alternativa em relação à ortodoxia, indicada pelo Regime de Metas, de elevar a taxa Selic para tentar conter a pressão inflacionária que ameaçava se espalhar por todos os índices de preços. A decisão do CMN de utilizar medidas chamadas de “macroprudenciais” (na realidade instrumentos de política monetária já utilizados no passado) parece ter sido influenciada pelo impacto sobre a economia da difícil convivência entre altas na taxa Selic e o crescente influxo de recursos externos. Na saída da crise de 2009/2010, mesmo com a redução dos juros de curto prazo para quase zero, a economia americana não apresentava sinais de uma recuperação sustentada. Diante deste cenário, o FED (Federal Reserve), visando estimular a economia e derrubar as taxas de juros mais longas, ampliou a sua política de relaxamento monetário. A derrubada dos juros americanos – e os de outras economias desenvolvidas – provocou uma fuga de ativos em dólares para ativos de outros países, principalmente de economias emergentes que tinham sofrido menos com a crise financeira e que estavam em processo de recuperação, provocando uma depreciação do dólar e valorização de outras moedas. As commodities, principalmente os minerais e alimentos, que já vinham apresentando uma tendência de alta em função de uma 64 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 maior demanda por parte dos países asiáticos e de uma sequência de fatores climáticos adversos, passaram a sofrer um processo especulativo de alta, como resultado da fuga do dólar em direção a ativos reais de alta liquidez internacional. O Brasil e outras economias emergentes têm monitorado o fluxo de recursos externos e a apreciação cambial através da compra de dólares, à vista, a prazo e em contratos reversos e pela adoção de medidas fiscais, como as sucessivas elevações do IOF sobre os empréstimos externos. A preocupação com o fluxo de capitais tem feito com que os bancos centrais dos países emergentes evitem aumentar os juros para não atrair mais recursos, especialmente os especulativos de curto prazo. Para compensar a não elevação dos juros a curto prazo, a autoridade monetária lança mão de outros instrumentos para evitar que a inflação se afaste da meta estabelecida. Essas medidas, como o aumento do compulsório, que fazem parte do arsenal clássico de instrumentos de política monetária, vinham, no Brasil, sendo preteridas em favor da taxa de juros, por serem menos abrangentes e por introduzirem distorções na economia. A conjuntura econômica extremamente favorável do Brasil, vis-à-vis outras economias emergentes, com crescimento econômico, estabilidade política e social, reservas externas elevadas, aliada à mais alta taxa real de juros do mundo (6,2% em abril/2011), tornaram o País um porto seguro para recursos ociosos ao redor do mundo. O economista Gil Castello Branco, em artigo no jornal O Globo do dia 10/04/2011, expressa com ironia o que vem acontecendo: “a dinheirama que o banco central americano injetou no planeta faz com que boa parte desses dólares passem férias no Brasil”. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 65 O nível baixíssimo dos juros internacionais, o influxo de recursos externos e o real sobrevalorizado trouxeram vantagens e des vantagens para o País. Parte significativa dos capitais que ingressaram no Brasil, sobre a forma de Investimento Direto, vem contribuindo para aumentar a capacidade produtiva do País e, quando somados às aplicações do portfólio direcionadas para o sistema financeiro e mercado de capitais, têm permitido com folga o financiamento do crescente déficit em conta-corrente. O real mais valorizado impede que uma boa parte da alta internacional do preço das commodities seja transferida para os preços domésticos. Juros internacionais baixos estimulam a captação externa e o seu repasse interno e um acentuado processo de renegociação de dívida externa por parte de bancos e empresas, reduzindo o seu custo financeiro. Por outro lado, o câmbio valorizado causa distorções no Balanço de Pagamento, incentivando importações de todo tipo e desestimulando exportações, principalmente de produtos manufaturados que não se beneficiam da turbinada demanda chinesa por commodities. O saldo líquido de recursos externos é continuamente enxugado pelo BC, através de operação do mercado aberto, e se incorpora às reservas internacionais do País. Ao final de abril/2011, as reservas externas somavam US$ 325 bilhões, crescendo 9% em 30 dias! A enorme diferença entre o retorno gerado pelas reservas e o custo dos títulos públicos utilizados no seu carregamento é estimado em cerca de R$ 50 bilhões para 2011, valor semelhante ao corte de despesa orçamentária proposta pelo Governo para o mesmo ano. A colocação de títulos públicos para drenar o excesso de liquidez do sistema bancário provoca um aumento no endividamento público e redução no superávit primário. 66 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 No momento em que o Banco Central do Brasil, o Ministro da Fazenda e o mercado discutem a eficácia de novos aumentos na taxa de juros vis-à-vis a utilização de instrumentos alternativos de política monetária, com o objetivo de recolocar a inflação em linha com a meta estabelecida, o Banco Central da Turquia (BCT) inova ao adotar um pacote de medidas monetárias contracionistas, em que se destaca a baixa na taxa básica de juros (6,5% para 6,25%, em janeiro/2011). O crescimento da Turquia pós-crise (8,9% em 2010), como no Brasil e em outros países emergentes, veio acompanhado de preocupantes distorções ocasionadas pelo relaxamento monetário nas economias desenvolvidas: crescente fluxo de capitais, de curto prazo e especulativo, atraídos por taxa real de juros elevada (2,2% em abril/2011, segundo lugar no ranking mundial atrás apenas do Brasil, com 6,2%), demanda interna forte, crédito acelerado (35% de expansão em 2010), câmbio sobrevalorizado, exportações crescendo menos que importações, déficit em conta-corrente elevado e crescente. No sistema bancário da Turquia coexistem depósitos na moeda do país (lira turca) e em outras moedas. O BCT constatou um acentuado descasamento entre o prazo dos depósitos e o dos empréstimos, principalmente nos de moeda estrangeira, o que, em função de sua volatilidade, poderia afetar a estabilidade do sistema bancário. Embora o núcleo da inflação estivesse em linha com a meta, o crescimento da demanda de crédito, a queda na taxa de desemprego e a alta internacional das commodities causavam preocupação com o surgimento de expectativas inflacionárias. Diante desse quadro, a Turquia, que como o Brasil adota o regime de metas de inflação, deveria acionar o seu principal instrumento de ação, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 67 ou seja, elevar a taxa de juros de referência para manter a inflação o mais próximo possível do centro da meta. O BCT, porém, chegou à conclusão que um aumento de juros aceleraria a entrada de capitais especulativos, ampliando as graves distorções por ele causadas. O BCT inova, reduz a sua taxa de juros de referência, eleva o compulsório sobre os depósitos à vista e a prazo, e introduz uma série de medidas restritivas na área cambial. Embora, no primeiro momento, a utilização de instrumentos de política monetária com sinais opostos pareça conflitante, na realidade visa ao mesmo objetivo, ou seja, manter a taxa de inflação dentro da meta e evitar o surgimento de expectativas inflacionárias. O aumento na reserva compulsória retira liquidez do sistema bancário, reduz a expansão de crédito, a demanda interna e procura neutralizar qualquer eventual efeito expansionista provocado pela redução na taxa de juros. Por outro lado, mas na mesma direção, a redução na taxa de juros e as medidas cambiais desestimulam o fluxo de capitais, induzidos pela elevada liquidez internacional, desvalorizam a moeda e equilibram o balanço de pagamentos. O BCT adotou, ainda, medidas de restrição ao crédito imobiliário – reduzindo a relação crédito/valor do imóvel – e ao crédito ao consumidor, aumentando o valor mínimo mensal de pagamento do cartão de crédito17 e tributando alguns tipos de empréstimos (IOF). Em resumo, o saldo líquido das medidas adotadas foi avaliado, pelo BCT, como contracionista, ou seja, de aperto monetário. 68 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 Concomitantemente o Governo da Turquia se comprometeu a manter uma rígida disciplina fiscal, reduzir gastos de consumo e o déficit orçamentário (o déficit caiu de 13,5% em 2001 para 3,5% em 2010, em um esforço para se enquadrar ao padrão fiscal básico exigido pela União Europeia, de 3%). O BCT “falou” para o mercado de maneira extremamente clara e objetiva, detalhando todas as medidas adotadas e o seu cronograma de implantação. A “fala” deixou bem claro que o “mix” de medidas adotadas seria mantido enquanto perdurassem os efeitos do relaxamento monetário das economias desenvolvidas e que, caso o processo de recuperação dessas economias fosse mais rápido do que o previsto, provocando um aumento na inflação global e a adoção de políticas monetárias restritivas, o BCT voltaria a aumentar a sua taxa de juros de referência. O mercado, por outro lado, “comprou” o cenário pintado pelo BCT e os resultados imediatos foram surpreendentes. As taxas de mercado acompanharam a redução da taxa básica, provavelmente como resultado na queda da expectativa inflacionária de 9% em 12/2008 para 6,5% em 12/2010 (as taxas de longo prazo não se alteraram, refletindo a incerteza do mercado quanto ao futuro das taxas de referência), o spread bancário diminuiu e a moeda se desvalorizou, contribuindo para o equilíbrio do balanço de pagamentos. A expansão do crédito continua alta (30% em 12 meses) respondendo a segunda onda de relaxamento monetário e como efeito imediato da própria baixa das taxas de mercado. O BCT declara estar atento à evolução do crédito e pronto para ampliar a intensidade das medidas restritivas, caso não se observe um arrefecimento na taxa de crescimento dos empréstimos. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 69 Embora exista no Brasil um sentimento generalizado entre os agentes econômicos (pessoas, empresas e governo) de que nossas taxas de juros são historicamente elevadas e que precisam ser reduzidas, a atual conjuntura, com a demanda aquecida, crédito em expansão, inflação alta e difusa, não recomenda a adoção de uma política de redução da taxa de juros aliada a apertos adicionais nas medidas macroprudenciais.18 Nos últimos 12 (doze) anos, desde a implantação do programa de metas, o BC vem procurando convencer os agentes econômicos de que a taxa de juros é o instrumento monetário mais eficiente para combater a inflação e neutralizar as expectativas inflacionárias. O mercado espera que a reação do BC a uma alta na inflação seja uma subida na taxa Selic. Coerência e credibilidade são importantes pilares do regime de metas de inflação. Como reagiria o mercado, educado para, em determinada situação (alta de preços) esperar por uma reação do BC (alta de juros), se o BC abaixasse a taxa Selic e apertasse o torniquete das medidas macroprudenciais? Parece-nos que o BC ainda não se convenceu da eficácia das medidas macroprudenciais (devido a sua dependência na liquidez do sistema e no grau de substituição entre ativos) para isoladamente neutralizar o efeito expansionista de uma redução na taxa de juros. O BC deixa transparecer, nas entrelinhas de seus comunicados, que ainda não é o momento de abrir mão do efeito positivo sobre os preços internos de um real sobrevalorizado e que o fato da economia americana estar se recuperando conduziria a uma desvalorização do real. 70 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 Conclusões Estamos entrando no 2º trimestre de 2011 com inflação e juros altos, superávit e câmbio baixos. O BC, diante da persistente alta no nível de preços e em sua difusão pelos diferentes setores da economia e coerente com o regime de metas, aumentou, nas três primeiras reuniões do COPOM, a taxa de juros, que passou de 10,75% em dezembro/2010 para 12% em abril/2011. Na reunião de abril, o BC elevou a taxa Selic em 0,25%, dando sequência ao ciclo de aperto, mas reduzindo o ritmo de elevação dos juros ocorrido nos meses de janeiro e março (0,50%). No mesmo período, procurando reduzir a oferta de crédito com recursos externos e os efeitos negativos da sobrevalorização do real, o BC elevou o IOF sobre empréstimos externos, de até 720 (setecentos e vinte) dias, para 6%. A elevação de 0,25% em abril, acompanhada de nota do BC explicando que prefere doses menores por mais tempo, deixou o mercado intranquilo, com a impressão que o BC não teve liberdade para fixar um valor superior para a Selic. Estudo do Departamento Econômico do Bradesco19 já antecipava e justificava a elevação de 0,25% com base no Relatório da Inflação de março e em manifestações do Presidente do BC nos dias 22 e 25 de março, deixando claro, como se pode ver a seguir, que não havia razão para surpresa por parte do mercado e que a decisão do BC foi coerente com suas manifestações anteriores: Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 71 1. Há um descompasso entre demanda e oferta, mas a maior fonte de pressão sobre a inflação atual advém de choques de oferta causados pela alta de preços das commodities desde o 2º semestre de 2010. 2. Os custos de combater os efeitos primários desses choques são elevados em termos de atividade econômica e, diante da flexibilidade do regime de metas, é possível buscar a convergência para a meta em um período mais prolongado. 3. As medidas macroprudenciais adotadas tem surtido efeito. 4. A inflação acumulada em 12 meses tende a permanecer em patamares elevados até o 3º trimestre. 5. A política fiscal dará sua contribuição com o cumprimento da meta de superávit primário neste ano. 6. As expectativas de inflação de curto prazo dos agente têm sido impactadas pela elevação corrente de preços, influenciados pelos choques de oferta. 7. A inflação de serviços é fruto, ainda que parcialmente, de mudanças estruturais na economia. 8. A situação atual é parecida com aquela ocorrida em 2003/2004, quando o BC trabalhou com meta ajustada, divulgada na ocasião. 9. A variável câmbio ganhou relevância nos cenários considerados. Como se vê, o BC não surpreendeu o mercado, mas não convenceu e no regime de metas convencer é a parte mais importante. Para que isto ocorra tudo tem que parecer coerente. 72 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 Os agentes não veem coerência na fala do BC, principalmente quando ele diz que a política fiscal dará sua contribuição com o cumprimento da meta de superávit primário. Poucos, além do Ministro da Fazenda e do Presidente do BC, acreditam que possa haver alguma melhora no superávit primário via redução de despesas, e temem que o Governo aumente suas receitas, ressuscitando, com outro nome, a CPMF de triste memória. No entanto, o superávit deve crescer porque sem ajuda do lado fiscal o BC terá de adotar medidas ainda mais duras, como novas altas na taxa Selic e seus indesejáveis subprodutos: aumenta o juro, aumenta o déficit público, valoriza a taxa de câmbio, estimula o ingresso de capitais, o BC compra os dólares excedentes, injeta liquidez, o BC coloca títulos para enxugar a liquidez e evitar que a inflação cresça ainda mais e assim por diante, em um círculo vicioso sem fim. Não adianta repetir os truques contábeis para criar um falso superávit como o de 2010. A economia não se deixa enganar e acusa o aumento dos gastos e dos subsídios ao crédito. O Governo tem um enorme volume de atrasados a pagar (R$ 128 bilhões) e se vê diante de altíssimos subsídios pela compra maciça de dólares e pelas recentes operações do BNDES financiadas por títulos públicos. Promete cortar gastos e se compromete com gastos futuros, como um aumento de 14% para o salário-mínimo em 2012, promete desindexar a economia e indexa o mínimo e o Imposto de Renda, promete reduzir a dívida e se endivida para emprestar dinheiro ao BNDES, que por sua vez concede crédito barato para “empresas selecionadas”. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 73 Enquanto procura fazer milagres para melhorar o superávit primário, o Governo se depara com grandes investimentos em infraestrutura para evitar um vexame internacional por ocasião da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, sem abrir mão do projeto biliardário do Trem Bala e da Compra dos aviões da FAB. O Banco Central não pode pensar que vai resolver sozinho a inflação. Esta só vai cair na medida em que o Governo reduza seus gastos, corte os incentivos ao consumo e limite a expansão do crédito subsidiado e dirigido dos bancos oficiais para empresas que nem sempre precisam de ajuda. Sem a efetiva contribuição da política fiscal, é inútil o BC ficar alternando a utilização dos diferentes instrumentos monetários, pois vai continuar “enxugando gelo”. Como diz um velho ditado mineiro: não adianta escolher atalhos se o caminho está errado. Notas 1 A Brief History of Central Banks. Michael D. Bordo. Federal Reserve Bank of Cleveland, Dez. 2007. 2 Acessível pela internet. Entrar no Google com o título: Funções do Banco Central do Brasil. 3 “Funções do Banco Central do Brasil” – BCB. 4 “Funções do Banco Central do Brasil” – BCB. 74 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 5 “Funções do Banco Central do Brasil” – BCB. 6 O Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), do BCB, é o depositário central dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, sendo responsável pelo processamento da emissão, resgate, pagamento de juros e custódia desses títulos. O sistema é gerido pelo BCB e operado por ele em parceria com a Associação Nacional das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (AMBIMA) (2009). A Taxa Selic pode ser definida como a média ponderada e ajustada das operações de financiamento por um dia, lastreadas em títulos públicos federais e cursadas no sistema Selic na forma de operações compromissadas. 7 O Comitê de Política Monetária (COPOM) é o órgão decisório da Política Monetária do BCB, responsável por estabelecer a meta para a taxa Selic, cujo principal objetivo é o alcance das metas de inflação estabelecidas pelo CMN. O COPOM é composto pela Diretoria do BCB: Presidente e os diretores de Administração, Política Monetária, Política Econômica, Assuntos Internacionais, Normas e Organização do Sistema Financeiro, Fiscalização, Liquidações e Controle de Operações de Crédito Rural. 8 “Funções do Banco Central do Brasil” – BCB. 9 Não confundir com credit rationing (racionamento de crédito), situação em que os próprios bancos restringem a expansão do crédito acima de um certo volume, influenciados por outras variáveis além da taxa de juros, como o risco de mercado. Fator amplamente observado durante a recente crise financeira de 2008/2009, em que a liquidez dos bancos ficou empossada devido à impossibilidade de avaliação do risco de crédito. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 75 10 O Relatório Radcliffe foi o resultado do trabalho do Comitê Radcliffe (Committee on the Working of the Monetary System), sob a Presidência de Lord Radcliffe, advogado, com poderes para inquirir sobre o funcionamento do sistema monetário e do crédito e para fazer proposições. Além do Presidente, o Comitê era composto por oito conceituados membros: dois banqueiros, dois empresários, dois sindicalistas e dois economistas de renome (Caincross e Sayers). 11 Controle Quantitativo e Seletivo de Crédito: Aspectos Teóricos e a Experiência Recente do Brasil. Luiz Aranha Corrêa do Lago, Departamento de Economia PUC/RJ, 1983. 12 Luiz Aranha Corrêa do Lago. Controle Quantitativo e Seletivo do Crédito: Aspectos Teóricos e a Experiência Recente do Brasil. Departamento de Economia PUC/RJ, dez. 1983, p. 69 e 79. 13 O Federal Reserve (EUA), o Banco do Japão e o Banco Nacional da Suíça estão, aos poucos, adotando componentes do regime de metas de inflação. 14 Scott Roger. “Inflation Targeting Turns 20”. Finance & Deve lopment, March 2010. 15 “How much Selic is the reserve requirement worth?”. Ilan Goldefajn. Chief Economist, 27/12/2010. 16 Compulsório: Sobre depósitos à vista, aumento de 8% para 12%; sobre depósitos a prazo, de 15% para 20%; aumento na exigência de 76 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 capital de 11% para 16,5% nas operações de crédito ao consumidor de mais de 24 meses. 17 O Banco Central do Brasil acaba de adotar idêntica providência elevando, a partir de 01/06/2011, o valor mínimo mensal de pagamento do cartão de crédito de 10% para 15% e para 20% em dezembro/2011. 18 O crédito ao consumidor, que cresceu 40% em 2010, vem desacelerando, devendo fechar o ano com expansão de 25%. 19 “Conjuntura Macroeconômica Semanal”. Departamento Econômico Bradesco, chefe Otávio de Barros, em 15/04/2011. Palestra pronunciada em 10 de Maio de 2011 Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 37-77, ago. 2011 77 Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica Ernane Galvêas Ex-Ministro da Fazenda Pânico A economia mundial vive um drama de difícil solução, em que os Estados Unidos e a Europa precisam ativar o consumo e a produção e superar o desemprego para sair da crise, ao mesmo tempo em que necessitam cortar gastos públicos para impedir o agravamento do déficit fiscal. Nos Estados Unidos, a retração do consumidor endividado faz cair o investimento das empresas. O Governo deveria comandar os investimentos, mas não tem recursos. Daí, a recessão e a queda no emprego, em um círculo vicioso cujo final é difícil de ser previsto. A situação na Europa é semelhante, com exceção da Alemanha. A falta de perspectivas levou pânico aos mercados mundiais nos dias 3 a 8 de agosto, com quedas fragorosas nas Bolsas de Valores. No dia 8, a Bolsa de Nova York caiu 5,55%, Londres – 3,43% e a Bovespa – 8,08%. 78 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 Não há solução à vista e ao que tudo indica, a economia mundial deverá permanecer estagnada por vários anos. O Brasil está vivendo um momento de prosperidade causado pelo alto preço das commodities, puxado pela China. Na medida em que a China diminuir o ritmo de crescimento de sua economia, o Brasil vai sofrer as consequências. A nova “política industrial” (Plano Brasil Maior), lançada no dia 3 de agosto, destinada a compensar a sobrevalorização cambial, pode vir a ser uma decepção, na medida em que o Banco Central, na contramão da política econômica, continue comandando uma política de juros (Selic) altos, que estimula o ingresso de capitais especulativos, com todas suas consequências negativas. Analisando as medidas específicas do Plano, pode-se dizer o seguinte: 1) A desoneração da folha de pagamentos, com isenção seletiva das contribuições ao INPS e compensação mediante tributação do faturamento, é um passo errado, um retrocesso que poderá inviabilizar uma solução racional para a previdência social; 2) A solução dada aos derivativos também foi equivocada. Não se trata de tributar essas operações, mas de limitá-las sob regulação severa. Não é por essa via, que se vai corrigir a taxa de câmbio; 3) A redução do IPI para a indústria automobilística, até 2016, na expectativa de que volte a expandir a indústria nacional de peças e partes complementares, foi um excesso de favorecimento, na medida em que a produção de veículos cresceu 4,3% até julho, o licenciamento aumentou 8,6% e o valor das exportações 23,5%. A questão das importações requer outro tipo de solução. Em suma, na raiz da valorização da taxa de câmbio está a elevada taxa de juros Selic, a mais alta taxa de juros reais do mundo que, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 79 como diz o Ministro Delfim Netto, faz do Brasil o “mais apetitoso peru com farofa”. A Conjuntura Econômica Mundial A irresponsabilidade dos políticos americanos está jogando o mundo no buraco. Primeiro, foi a crise do sub-prime, que se espalhou pelo resto do mundo e criou uma situação fiscal de insolvência na Europa. Agora, é a revelação de uma dívida descomunal, agravada, a cada ano, por governos incompetentes e políticos irresponsáveis. É compreensível que os Estados Unidos ajudem Israel, de um lado, e o Egito do outro, para proteger a Arábia Saudita da fúria de países vizinhos, tendo em vista sua situação de maior fornecedor de petróleo, produto estratégico e fundamental para a economia americana. Mas sabe-se, hoje, que foi um erro primário e desastroso, as intervenções no Iraque e no Afeganistão, das quais não consegue se desvincular. Os Estados Unidos têm uma economia vulnerável, provocada pelo déficit fiscal anual de US$ 700 bilhões e pelo déficit externo de US$ 600 bilhões. Nos oito anos de Governo W. Bush, a dívida pública interna aumentou US$ 6,1 trilhões e nos dois primeiros anos do Presidente Obama vai crescer US$ 2,4 trilhões. A dívida externa em dólares não preocupa pela sua dimensão, mas a dívida interna em títulos, pelos juros que devem ser pagos anualmente, cerca de US$ 200 bilhões, poderia levar ao calote, com resultados desastrosos para os Estados Unidos e para o mundo. Mas isso não vai acontecer. 80 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 O resultado das Bolsas de Valores, nos dias 3 a 8 de agosto, deu uma ideia das consequências possíveis. Aliás, inexplicavelmente, a BM&F Bovespa está desabando com a maior queda mundial (só perde para a Grécia!). O Brasil está vulnerável em dois pontos capitais: 1) tem uma crescente dívida pública bruta de R$ 2.177 trilhões (56% do PIB), à qual devem ser acrescentados R$ 418,8 bilhões de depósitos compulsórios dos bancos; e 2) no 1º semestre, teve um déficit de US$ 25,4 bilhões em Transações Correntes, que foi coberto por uma massa de US$ 67,0 bilhões de capitais estrangeiros, em grande parte instáveis e de caráter especulativo, aplicados em derivativos. O Brasil está se tornando o paraíso da especulação, perdendo bilhões de dólares para os espertos especuladores. O Banco Central não vê isso, com a sua inexplicável Selic de 12,5%, que se situa na origem de todas essas distorções. Crise Sistêmica Nos Estados Unidos e na Europa, os governos queimaram todos os recursos na primeira fase da crise e acumularam dívidas fiscais impagáveis. Agora, estão sem saída. Os Estados Unidos têm uma dívida interna que caminha para US$ 16 trilhões e no FED há uma liquidez empoçada de US$ 3 trilhões. A economia mundial entrou em um círculo vicioso: com medo do desemprego, o consumidor não consome, o empresário não investe e o Governo não tem recursos para fazer uma intervenção keynesiana. A China tem muitas deficiências na área das matérias-primas e está procurando superá-las com investimentos em outros continentes, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 81 principalmente na África, e também no Brasil. Os Estados Unidos não têm mais recursos orçamentários para manter a política de subsídios agrícolas. Ao que tudo indica, vem aí uma nova revolução no comércio mundial. Nada disso, porém, justifica a esdrúxula proposta da China no sentido de substituir o dólar como moeda de referência nas transações internacionais. Da mesma forma, foi simplesmente ridícula e irresponsável a ação da Standard & Poor’s de rebaixar a classificação dos Estados Unidos, quando todos os grandes investidores e os Bancos Centrais continuam aplicando suas reservas em dólares. Por uma simples razão: Os Estados Unidos são a maior economia mundial, possuem uma democracia estável e oferecem a maior segurança jurídica aos contratos e investimentos. Não causaria surpresa, se os desempregados ou ameaçados de desemprego nos Estados Unidos se revoltassem contra a S&P, como os gregos, espanhóis, ingleses e chilenos vêm fazendo contra seus governos. Diretrizes da política econômica Pelo que se deduz das declarações publicadas na imprensa, as prioridades da política econômica divergem entre os principais agentes do Governo. Para o Governo, como um todo, há três princípios básicos: a inflação dentro da meta de 4,5%, o sistema de câmbio flutuante e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 82 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 Para a Presidência da República, a prioridade é o crescimento do PIB em torno de 4,5%, com eliminação da pobreza e crescente redução das desigualdades sociais. Para o Banco Central a primeira prioridade é o controle da inflação, dentro da meta de 4,5% fixada pelo Conselho Monetário Nacional. Para o Ministério da Fazenda o ideal será o déficit fiscal zero (déficit nominal), a inflação dentro da meta de 4,5% e a taxa de câmbio ao nível de R$ 1,80/US$. Para o Gabinete Civil e o Ministério do Planejamento, a prioridade é corrigir as deficiências da infraestrutura no contexto do PAC. Para outros, é a educação, a saúde, o saneamento básico, a habitação, a segurança pública. A nosso ver, a taxa básica de juros (Selic) fixada pelo Banco Central confunde todas as prioridades. O fato de elevar absurdamente a taxa Selic, de 10,75% em janeiro para 12,5%, atualmente, tem os seguintes inconvenientes óbvios: sobrecarrega o déficit fiscal e a dívida pública, atrai um caminhão de recursos externos especulativos que expandem a liquidez e o crédito internos, provoca uma transferência de renda em favor dos investidores em Fundos de Renda Fixa e, ainda mais, aumenta os custos de produção, elevando os preços (inflação). Em princípio, pode-se chegar à conclusão de que aumentar a taxa Selic aumenta as pressões inflacionárias, e não o contrário. Será que o Banco Central ainda não percebeu que a inflação vem de fontes que nada têm a ver com a taxa Selic? Todo mundo sabe que a Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 83 inflação brasileira de hoje, em torno de 6%, vem da forte demanda da China, por matérias-primas e alimentos, dos gastos deficitários do Governo, dos reajustes salariais e do Custo Brasil, oriundo principalmente do peso da carga tributária, dos juros, da insuportável burocracia e da ineficiente infraestrutura. E sobretudo, vem da abusiva expansão do crédito fomentada pelo Governo, em evidente contradição com os objetivos do Banco Central. E tudo isso, sem falar da corrupção, que além de desmoralizar o serviço público, encarece o custo dos serviços e das obras governamentais. É estranho, muito estranho, que os analistas de mercado se refiram, constantemente, à política de aperto monetário do Banco Central. Pergunta-se: que política de aperto monetário, se o crédito vem se expandindo a uma taxa anual superior a 20%, puxada pela expansão dos bancos oficiais, BNDES, Caixa Econômica e Banco do Brasil? Observe-se que o papel-moeda emitido aumentou 10,9%, nos últimos 12 meses, e a base monetária 19,3%. É justo que o Governo eleja o combate à inflação como uma de suas prioridades. Mas é preciso realizá-la com inteligência, sem atropelos e pressões políticas que não atentam para os compromissos com os interesses nacionais. O Governo está para cometer dois grandes equívocos, absolutamente desnecessários: primeiro, realizar um arremedo de reforma tributária, mediante transferência das contribuições previdenciárias da folha de pagamentos para o faturamento das empresas. Essa medida teria o sentido falso de reduzir a carga tributária e o objetivo ardiloso de favorecer algumas indústrias, em detrimento do comércio, serviços e setores financeiros, que pagariam a diferença. Uma ideia descabi- 84 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 da, que sugere compensar a taxa de câmbio valorizada, que estaria prejudicando as exportações industriais, mediante a desoneração da folha de pagamentos. O que uma coisa tem a ver com a outra? Uma evidência clara de que o Governo está desorientado, pressionado e não sabe bem o que fazer. O segundo grande equívoco seria extinguir o “fator previ denciário”, a única medida inteligente adotada nos últimos 20 anos para confrontar as mudanças na pirâmide demográfica que vão desestruturar o sistema de previdência social. O Brasil gasta com previdência social 7,0% do PIB, a mais alta taxa do mundo. Mas os grandes favorecidos não são os componentes da classe pobre, mas, sim, os altos funcionários públicos, os militares, os políticos e os membros do Poder Judiciário. A Previdência Social, no Brasil de hoje, é um amontoado de erros. No futuro próximo, será uma calamidade. A Presidente Dilma não precisa fazer barganhas escusas com o Congresso Nacional, para realizar reformas política, tributária, previdenciária, trabalhista, sindical etc. Tudo isso pode ser feito, em grande parte, sem a necessidade de deprimentes negociações políticas. Atividades econômicas Indústria Pesquisa da CNI revela onda de desânimo na indústria, com queda acentuada em dez setores: alimentos, bebidas, têxteis, vestuário, calçados, papel e celulose, plásticos, máquinas e equipamentos, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 85 veículos e móveis. Essa situação está levando o setor a pressionar o Governo por uma compensação pelos prejuízos causados pela taxa de câmbio sobrevalorizada. O grande erro dessa proposta é a sugestão de isentar as empresas industriais do pagamento da contribuição previdenciária, sendo a perda do INSS compensada por alíquota mais elevada sobre o comércio, serviços e sistema financeiro. Uma tremenda provocação, que inexplicavelmente, contaria com a simpatia do Ministério da Fazenda. É evidente que a indústria luta com enorme falta de competitividade, devido principalmente ao câmbio, à carga tributária e à infraestrutura. Mas a solução liderada pela Fiesp não faz sentido. No ano passado, a indústria cresceu 10,5%. Para este ano a previsão é de 3,0%. A produção de veículos está diminuindo, mas as vendas ainda cresceram 1,6% na primeira quinzena de julho. No primeiro semestre, a produção de aço cresceu 8,2% e o consumo de energia elétrica continuou aumentando 2,2% em junho, sendo +5,5% no comércio e serviços. Impressionante: a venda de imóveis usados, no Estado de São Paulo, cresceu 11,7% em maio, em relação a abril. Comércio O índice de intenção de consumo (ICF), divulgado pela CNC, cresceu 2,2% em julho sobre junho, mas o índice de confiança (ICEC) registrou queda de 3,1% em junho/maio, basicamente tendo em vista o alto nível dos estoques. O índice de endividamento das famílias (PEIC) recuou para 63,5% em julho, contra 64,1% em junho, com alta nas dívidas em atraso e queda de 1,1% na aquisição de bens de consumo duráveis. 86 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 No primeiro semestre, as vendas dos supermercados cresceram 4,25%, com destaque para bebidas (Abras) e a ocupação nos hotéis de São Paulo cresceu 4,6%. A aviação doméstica cresceu 19%, nesse período, superando a China, Estados Unidos e Índia. No Distrito Federal, as vendas do comércio, em junho, tiveram alta de 0,66% (Fecomércio-DF). Segundo a Serasa, a devolução de cheques sem fundos cresceu 1,9% no primeiro semestre, enquanto as contas não pagas aumentaram 13,1%. Agricultura A safra de cana caiu 14,8% e a de etanol hidratado 31,8%, até 15 de julho (Única), mas os preços do açúcar e do etanol continuam em alta. A produção agrícola na Região Sul poderá ser prejudicada pelas fortes chuvas. Sobe para 26 o número de cidades gaúchas em situação de emergência. Mercado de Trabalho Segundo o IBGE, a taxa de desemprego caiu para 6,2% em junho, ante 6,4% em maio, enquanto a remuneração média subiu 0,5%, com destaque para Salvador (+2,0%), Belo Horizonte (+5,0%), São Paulo (+1,2%) e Porto Alegre (+2,4%). Recife ficou estável e houve recuo de 3,4% no Rio de Janeiro. A construção civil contratou 33,8 mil trabalhadores em maio (+1,15%), acumulando +5,6% em cinco meses. A região que mais contratou foi o Sudeste, seguida da Região Sul e Nordeste. Houve queda na Região Norte. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 87 Pelos dados do CAGED, no primeiro semestre, foram criados 1,265 milhão de empregos, menos 14,1% em relação a 2010. Segundo o Dieese, a taxa de desemprego teve ligeira alta em junho (11%) ante maio (10,9%). Na indústria, o emprego recuou 0,13% em junho, ante maio, mas com expansão de 4,5% no semestre (Fiesp). De um modo geral, o mercado de trabalho continua aquecido, em face dos reajustes dos salários. Setor Financeiro O montante de crédito no sistema financeiro continuou registrando expansão de 20% em 12 meses, até junho (47,2% do PIB), desafiando todas as ações do Banco Central. Em junho, houve alta de 1,6% e no ano de 7,5%, com destaques para habitação (+20,7%), comércio (+8,6%) e pessoas físicas (+7,01%). A inadimplência perdeu fôlego, após cinco altas consecutivas. O Banco Central restringiu as operações de empréstimos consignados e o Ministério da Fazenda coibiu operações de derivativos na BM&F, visando conter a expansão da liquidez. Contraditoriamente, a União levantou US$ 500 milhões no exterior e o BNDES mais US$ 3,0 bilhões, enquanto a Caixa Econômica lança mais R$ 2 bilhões em Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e os bancos se preparam para maior captação com uma nova letra imobiliária. Não dá para entender. Inflação A inflação, embora reduzida, continua baseada nos impulsos fiscais, forte expansão do crédito, alto nível de emprego e reajustes salariais, 88 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 além da pressão de demanda por matérias-primas e alimentos, que vem da China. Em julho, o IGP-M/FGV ficou negativo (deflação) em 0,12%, repetindo a deflação de 0,18% de junho, com registro de alta de 8,36% nos últimos 12 meses. No momento, a resistência maior à queda encontra-se no setor Serviços. Contratos novos de aluguéis, em São Paulo, tiveram alta de 17,6% em junho. As principais quedas no atacado foram café, minério de ferro, laranja, soja e tomate. O índice nacional do custo de construção (INCC) subiu 1,43% em junho e 0,59% em julho, ante o mês anterior. A primeira prévia do IPCA-15, em julho, desacelerou para 0,10% e a do IPC-5 para 0,11%. Em meados de julho, o Banco Central elevou a taxa básica Selic para 12,5%, após cinco altas consecutivas, com efeitos mínimos sobre a inflação. O Ministério da Fazenda está tentando restringir os efeitos inflacionários do ingresso de capitais estrangeiros, mediante restrições às operações de derivativos. Esse é o tipo de medida que o Governo já deveria ter adotado há muito tempo, pois é bastante evidente que o mercado de derivativos na BM&F está entre os maiores responsáveis pela sobrevalorização da taxa de câmbio. Setor Fiscal Embora o Ministério dos Transportes, em julho, tenha “roubado” a cena, a situação fiscal continua no topo das preocupações. No primeiro semestre, o Governo economizou (superávit primário) R$ 78,2 bilhões para pagar juros de R$ 119,8 bilhões, resultando em um déficit nominal de R$ 41,6 bilhões (2,12% do PIB). Em consequência, a dívida pública bruta atingiu R$ 2.177,1 bilhões (56,0% do PIB), com alta de R$ 30,3 bilhões sobre maio e R$ 165,6 bilhões Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 89 no ano (!). A dívida mobiliária alcançou R$ 1.729,5 bilhões, mais R$ 64,2 bilhões no mês e R$ 125,6 bilhões no ano. O Governo federal, no primeiro semestre, arrecadou R$ 393,5 bilhões (+19,3%), ante R$ 337,9 bilhões de despesas (+10,8%). Esse substancial aumento da carga tributária explica um certo desafogo do Tesouro, o que não impediu o forte acréscimo da dívida pública. Setor Externo O comércio exterior continua sustentando a economia nacional. Em julho, as exportações alcancarm US$ 22,3 bilhões, acumulando no ano US$ 140,6 bilhões, com alta de 31,5%, acima de qualquer outro país, inclusive a China. As importações chegaram a US$ 19,1 bilhões, com US$ 124,5 bilhões no ano, representando crescimento de 27,5%. Até julho, o saldo da balança comercial atingiu US$ 16,1 bilhões, 74,2% superior a julho 2010. Entretanto, agrava-se o déficit em Transações Correntes, em face do forte resultado negativo da conta Serviços (US$ 17,9 bilhões) e Rendas (US$ 22,1 bilhões), no primeiro semestre. O resultado negativo em T/C, no total de US$ 25,4 bilhões, foi coberto pelo maciço ingresso de capitais de US$ 67,0 bilhões, dos quais US$ 25,8 bilhões representam investimentos estrangeiros diretos e o restante, financiamentos em grande parte de caráter especulativo. No acumulado janeiro/julho, a exportação de produtos básicos alcançou US$ 66,9 bilhões, com alta de 43,3%, enquanto os semimanufaturados atingiram US$ 19,5 bilhões (+30,5%) e os manufaturados 90 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 US$ 51,2 bilhões (+19,1%). Do lado das importações, combustíveis e lubrificantes aumentaram 35,3%, bens de consumo 31,9%, matériasprimas 24,9% e bens de capital 24,4%. Ao que tudo indica, não faz sentido a crítica contra as exportações do agronegócio, eis que, no momento, não se pode perder a chance de aproveitar em toda sua dimensão a conjuntura que nos está sendo propiciada pela China. Até mesmo porque o País não teria suficiente produção de manufaturados, para inverter a situação. O ingresso desordenado de recursos externos vem dificultando seriamente a política econômica do Governo, obrigando o Banco Central a comprar bilhões de dólares, que se acumulam em excessivas e onerosas reservas cambiais; por outro lado, todos esses dólares são comprados mediante emissões de títulos públicos, aos juros mais altos do mundo, que desestruturam a política fiscal. Foi acertado, embora tímida, a medida do Conselho Monetário Nacional que impôs restrições aos derivativos cambiais na BM&F. No final de julho, as reservas cambiais chegaram a US$ 343,8 bilhões, US$ 55,2 bilhões acima do saldo em 31/12/10. Em contrapartida, a dívida externa alcançou US$ 393,3 bilhões, inclusive intercompanhias, um acréscimo de US$ 41,4 bilhões, até junho. Na esfera internacional, o fato mais relevante foi o acordo político entre republicanos e democratas, que permitiu aos Estados Unidos elevar a dívida pública de US$ 14,3 trilhões para mais US$ 2,4 trilhões, a serem distribuídos em parcelas, segundo critérios estabelecidos por uma Comissão de seis representantes democratas e seis republicanos. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011 91 Pelo que consta, esse problema voltará à pauta em 2012, durante a campanha para reeleição do Presidente Obama. A situação na Europa não apresenta melhoria, podendo agravar-se, caso a Espanha caminhe para uma solução semelhante à da Grécia. Na Ásia, não há mudanças relevantes na China, nem no Japão. 92 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 677, p. 78-92, ago. 2011