Teorias dos Meios de CoMuniCação no Brasil e no Canadá
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Teorias dos Meios de CoMuniCação no Brasil e no Canadá
Teorias dos Meios de Comunicação no Brasil e no Canadá Volume 1 teoria-meios-comunicacao_v1.indb 1 5/20/14 4:31 PM Universidade Federal da Bahia Reitor Dora Leal Rosa Vice-reitor Luiz Rogério Bastos Leal Editora da Universidade Federal da Bahia Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria Vidal de Negreiros Camargo teoria-meios-comunicacao_v1.indb 2 5/20/14 4:31 PM Teorias dos Meios de Comunicação no Brasil e no Canadá Volume 1 Luiz Claudio Martino Giovandro Fer reira Antonio Hohlfeldt Osvando José de Morais O r g a n i z a d ores Tr a d u ç ã o d e Sigr id Janus e Luiz Claudio Martino S alv ad or . E d u fb a . 20 13 teoria-meios-comunicacao_v1.indb 3 5/20/14 4:31 PM 2013, autores. Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal. Capa Charles Ribeiro Vicente Reis Projeto Gráfico e Editoração Gabriela Nascimento Revisão Lucas Guimarães Pacheco Normalização Susane Barros Sistema de Bibliotecas - Ufba Teorias dos meios de comunicação no Brasil e no Canadá. / Organizado por Luiz Claudio Martino; tradutores Sigrid Janus, Luiz Claudio Martino - Salvador: EDUFBA, 2013. V.1. 312p. ISBN 978-85-232-1131-8 1. Meios de comunicação – Brasil . 2. Meios de comunicação – Canadá. 3. Comunicação midiática. 4. Jornalismo. I. Martino, Luiz Claudio. II. Janus, Sigrid. III. EDUFBA. CDU – 659.3 CDD – 302.23 Editora filiada à Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo s/n - Campus de Ondina 40170-115 - Salvador - Bahia Tel.: +55 71 3283-6164 Fax: +55 71 3283-6160 www.edufba.ufba.br [email protected] teoria-meios-comunicacao_v1.indb 4 5/20/14 4:31 PM Sumário { Volume I 11Apresentação 13 O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado Gaëtan Tr emblay 35 O campo dos estudos em comunicação no Canadá: ponto de vista a partir do programa de doutorado conjunto em Montréal Ér ic George 53 Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto: Notas sobre a atualidade dos trabalhos de Goody Oumar Kan e 73 Civilização, transporte e assentamento: comunicação organizacional nas primeiras obras de Harold Innis W illiam J. Buxton 91 A pesquisa-criação explicada: quatro modos interligados Owen Chapman e Kim S aw c h uk 111 Entre ecologia e arqueologia: uma perspectiva sobre a teoria mediática teoria-meios-comunicacao_v1.indb 5 Thier r y B ardin i 5/20/14 4:31 PM 137 A opinião na comunicação: uma abordagem construtivista- crítica Milton N. Campos 157 Das teorias da comunicação: um breve percurso da mensagem a certos desafios da análise dos discursos mediáticos Giov an dr o Marcus Fer r ei ra 175 Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais An ton io Hohlfeldt 191 Considerações sobre a explicação em comunicação L uiz Claudio Martin o 213 Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação: esboço para uma contribuição às “novas teorias” e aos “novos métodos” Os v an do Jos é de Mo rai s 233 Teorias da Palavra II: de conexões e relações Paulo B. C. Schettino 259 A comunicação como artifício: uma leitura sobre Vilém Flusser Mír iam Cr istin a Car l os Si l v a 273 As teorias do cinema e a atualização dos gêneros Cr is tian e Fr eitas 287 O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 6 Jan ara Sous a 307 Sobre os autores 5/20/14 4:31 PM Sumário { Volume II 11Apresentação 13 Ensaio sobre a identidade das ciências da comunicação e da informação Juçara Gor s ki Br ittes e L or en a Rúb i a Per ei ra Cami n h as 43 Repensando o arcabouço teórico-metodológico na construção da cidadania pelo viés da análise do discurso Giov an dr o Fer reira e C l ar i s s a V i an a Matos Moura 55 A proposta interdisciplinar de Innis e McLuhan e a pesquisa em comunicação brasileira Katr in e Tokar s ki Boav en tura e Rod r i g o Mi ran d a Bar b os a 73 O campo comunicacional e as teorias da publicidade Rosan a Nan tes Pav ar in o 91 Chamem o Conar! O efeito de terceira pessoa e o apoio às intervenções regulatórias na publicidade de cervejas An dr é B omf im dos Santos 107 Survey e análise de conteúdo: revisitando os instrumentos analíticos da abordagem quantitativa nos estudos iniciais sobre mídia e audiência Adr ian o de Oliv eira Samp ai o teoria-meios-comunicacao_v1.indb 7 5/20/14 4:31 PM 121 A Literatura de autoajuda e a teoria funcionalista dos usos e satisfações: uma análise da linguagem de Augusto Cury Emilson Fer reira Gar c i a Jun i or e Rob ér i a Nád i a Araújo Nas cimen to 129 Percepção de mídia hostil no Twitter R afael Cardoso Samp ai o e João S en n a Tei xei ra 145 A compreensão de internet nos artigos publicados na E-Compós L uis a Maran hão de Araújo 159 Novos parâmetros na comunicação: reflexão sobre relações comunicativas via tecnologias da informação e da comunicação teoria-meios-comunicacao_v1.indb 8 Edien ar i Oliv eira dos An jos 175 Espaço acústico, paisagem sonora e espaço sonoro: relação de figura e fundo entre os conceitos aplicados ao estudo da teoria dos meios e do espaço Macello Medeir os 189 Diálogos possíveis entre semiótica e iconologia: o caso dos ex-votos do Brasil e das Américas José Cláudio Alv es de Ol i v ei ra 205 Jornalistas assessores de imprensa: a tensão entre os campos da comunicação e da informação e a configuração do processo produtivo da notícia Giov an dr o Fer reira e Cl aud i an e Car v al h o 221 Enquadramento colaborativo: uma análise comparada do framing adotado pelos cidadãos-repórteres durante a Rio+20 no WikiNotícias e Indymedia Yur i Almeida 5/20/14 4:31 PM 237 O enquadramento do sofrimento em notícias de violência envolvendo crianças e adolescentes: estudo de caso dos jornais Massa! e Correio Iv an is e Hilbig de An drad e 261 A cobertura de meio ambiente pela Globo News: análise do Jornal das Dez e do Cidades e Soluções L eila Nogueira 279 Expectativas do leitor e Newsmaking L idian e San tos de L ima Pi n h ei r o 293 Os casos de homofobia no Estadão.com: uma análise do enquadramento noticioso Mar ian a Guedes Con de 311 Sobre os autores teoria-meios-comunicacao_v1.indb 9 5/20/14 4:31 PM teoria-meios-comunicacao_v1.indb 10 5/20/14 4:31 PM A p r e s e n ta ç ã o Esta coletânea de artigos contém os textos apresentados no Colóquio Internacional Teorias dos Meios de Comunicação no Brasil e no Canadá, realizado na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, entre os dias 22 e 26 de outubro de 2012. O encontro reuniu pesquisadores brasileiros do projeto Teorias da Comunicação (TeCOM), financiado pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e que abrange a Universidade Federal da Bahia, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a Universidade de Brasília e a Universidade de Sorocaba, em parceria com pesquisadores do Doutorado Conjunto em Comunicação de três universidades canadenses: Université de Montréal, Univesisté du Québéc à Montréal e Concordia Univesity. A diversidade de temas, opiniões e pontos de vista aqui expressos reflete um dos objetivos do encontro, que foi o de conhecer as tendências atuais presentes nos trabalhos realizados nos dois extremos do continente americano. O Canadá é um dos raros países a serem reconhecidos por terem desenvolvido uma tradição própria de pesquisas em comunicação. A chamada Escola de Toronto – da qual Harold Innis e Marshall McLuhan são os mais ilustres representantes – é, sem dúvida, uma das grandes contribuições ao pensamento comunicacional, e boa parte dos textos aqui reunidos retomam e renovam esta tradição. Mas o Canadá também tem, evidentemente, outras correntes de pensamento, e os dois volumes da presente publicação esperam poder contribuir para sua divulgação. Além do valor intrínseco de cada texto, o contraponto com os pesquisadores brasileiros permite contrastar e melhor entender algumas linhas de rupturas e continuidades da pesquisa em comunicação desenvolvida nestes dois países. Lui z C la ud i o Ma r t i no teoria-meios-comunicacao_v1.indb 11 11 5/20/14 4:31 PM teoria-meios-comunicacao_v1.indb 12 5/20/14 4:31 PM O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado Gaëtan Tremblay Introdução Em 1998 – uma edição especial da revista Loisir et Société (Lazere Sociedade) dedicada às teorias da comunicação, que coordeno com Bernard Miège – publiquei um artigo intitulado O lugar virtual das ciências da comunicação. Tenho aqui a intenção de revisitar este texto, cerca de 15 anos mais tarde, perguntando-me o que ainda tem de relevante e o que mudou ao longo dos anos. As ciências da comunicação institucionalizaram-se em grande parte durante as últimas décadas. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e com ritmo mais acentuado desde o final dos anos 60, aumentou o número de departamentos, institutos e escolas de comunicação, grupos e centros de teoria-meios-comunicacao_v1.indb 13 13 5/20/14 4:31 PM pesquisa, revistas e coleções de livros, em todos os continentes. Iniciadas por professores “marginais” do sistema acadêmico, na periferia, em comparação com a definição clássica das disciplinas, se impuseram progressivamente, apoiadas por um desenvolvimento tecnológico sem precedente e programas de pesquisa públicos e privados. Mas, apesar desses sinais exteriores de institucionalização, não se pode concluir que as ciências da comunicação amadureceram ou que ganharam o reconhecimento e o respeito das mais velhas disciplinas sociais. Não pretendo neste texto, fazer a história do surgimento e da institucionalização dos estudos de comunicação. Outros já cumpriram essa tarefa melhor do que eu poderia fazer – por exemplo: Flichy (1991); Lacroix e Lévesque (1985); Mattelart (1992, 1994), Miège (1995). Meu objetivo aqui é mais modesto. A partir das minhas raízes numa sociedade específica, o Québec – onde o desenvolvimento das ciências da comunicação tem necessariamente tomado um caminho particular –, e a partir do meu conhecimento incompleto desta gama de atividades inteletuais, proponho levantar uma série de questões que aparecem agora relevantes para a reflexão teórica sobre o campo e no campo da comunicação. Dentre as questões acerca do objeto das ciências da informação e da comunicação, seus métodos e abordagens, suas relações com as ciências vizinhas, escolho três entre muitas outras. A primeira concentra-se sobre as origens e a identidade das ciências da comunicação. Desde o legado das ciências sociais até a criação e a institucionalização de novas ciências, a comunicação aparece alternadamente e simultaneamente como um objeto específico, disputado e compartilhado. Entre as ciências sociais, as ciências da educação e as ciências da gestão, quais são as ciências da comunicação? A segunda questão aborda as ambições expressas recentemente pelas ciências da comunicação sobre o advento da sociedade da informação: pode-se compreender e explicar a sociedade global a partir da sociedade da comunicação? A terceira questão revela as peculiaridades das relações entre a teoria e a prática, o conhecimento acadêmico e a prática profissional no campo das comunicações, que é de alguma forma um lugar de encontros e conflitos entre as ciências sociais, as ciências da gestão e as ciências da educação. As ciências da comunicação constituem um campo privilegiado para analizar as dificuldades da multidisciplinaridade e das ambiguidades da 14—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 14 5/20/14 4:31 PM parceria universidade-indústria na mudança das condições de docência e investigação em ciências humanas e sociais. Questões de origem e de identidade As ciências da comunicação são ciências sociais? E, em caso afirmativo, o que as distingue de outras ciências sociais? Existem, com certeza, ciências da comunicação que nada têm de social, em particular aquelas ligadas à física e à engenheria da comunicação. Há outras que se interessam apenas marginalmente pelo social, como a psicologia da comunicação e algumas correntes da semiologia. Essas, evidentemente, não estão em questão quando investigamos as relações das ciências da comunicação com as ciências sociais. A resposta seria muito óbvia: nem todas as ciências da comunicação são ciências sociais. Mas entre aquelas que integram o social em sua problemática, poderíamos pensar em um conjunto original, um conjunto distinto da sociologia da comunicação, da economia política da comunicação, da ciência política da comunicação etc.? Em suma, existe algo que seria uma ciência social da comunicação? Vamos discutir rapidamente esta questão das relações entre as ciências sociais e as ciências da comunicação em quatro pontos: 1) o legado das ciências sociais, 2) a criação de um corpo de conhecimento específico e diversificado, 3) o peso da tecnologia, 4) um objeto adequado, mas disputado e compartilhado. O legado das ciências sociais As ciências da comunicação, sem dúvida, foram criadas por meio de empréstimos importantes em abordagens teóricas e métodos desenvolvidos pelas ciências sociais e humanas, tanto se não mais do que a cibernética, a teoria de sistemas e a engenharia. Sua influência foi variável de acordo com os contextos nacionais e culturais, mas a linguística, a psicologia social, a sociologia, a economia e a história inspiraram muito o trabalho de pesquisadores que se dedicaram ao estudo das comunicações. Além disso, muitas vezes estes O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 15 15 5/20/14 4:31 PM pesquisadores foram formados em pelo menos uma destas ciências sociais. Apesar de sua contribuição inquestionável, não são geralmente engenheiros que fundaram departamentos, institutos ou escolas de comunicação. Não são eles também que escreveram os livros didáticos e a maioria dos textos de referência. No Québec, pelo menos – mas nós sabemos que esse também era o caso em muitos outros lugares – são acadêmicos formados em ciências sociais e humanas que formaram a base da docência e da pesquisa em comunicação. Desde o final do século XIX, o psicólogo social francês Gabriel Tarde estava interessado na imprensa popular e chamou a atenção para a nova forma de agrupamento social que ela favoreceu: o público. Alguns anos mais tarde, os pesquisadores da Escola de Chicago, o filósofo John Dewey (1990), o sociólogo Robert E. Park (1955) e o psicólogo social George H. Mead (1967) fizeram avançar um pouco mais essas primeiras reflexões e esboçaram as primeiras teorias sociais e políticas da comunicação. Em comparação, não foi somente depois do fim da Segunda Guerra Mundial que apareceriam as primeiras contribuições dos engenheiros e dos matemáticos – a teoria estatística da informação de Shannon (1949) e a cibernética de Wiener (1948). Os primeiros estudos sobre a propaganda, por sua vez, datam da Primeira Guerra Mundial. O livro de Lasswell, conhecido por ser importante no surgimento de ciências da comunicação, será publicado em 1927. A consulta de textos históricos fornecerá ao leitor muitos outros exemplos mostrando que, desde o início, as ciências da comunicação têm sido fortemente influenciadas pelo legado que receberam das ciências sociais, com efeitos diferentes dependendo dos contextos geográficos e culturais, porque essas ciências sociais são caracterizadas mais pela multiplicidade e diversidade de seus modelos teóricos do que pela homogeneidade. Estas relações de filiação vão continuar ao longo do tempo. Ao longo da sua curta história, as ciências da comunicação têm sido influenciadas pelas grandes tendências que cruzaram as ciências sociais: o funcionalismo, o behaviorismo, o marxismo, o estruturalismo, o liberalismo. Os autores de referência – de Marx a Sartre, de Foucault a Bourdieu – têm produzido os mesmos efeitos de moda e o mesmo impacto. Pode-se encontrar, em ciências da comunicação como em outros lugares, uma corrente administrativa e outra mais crítica, sendo a primeira em grande parte dominante. 16—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 16 5/20/14 4:31 PM Os mesmos dilemas, as mesmas grandes oposições que atravessaram as ciências sociais e que ainda são relevantes – ator e sistema, voluntarismo e determinismo etc. – também assombram as ciências da comunicação. Finalmente, a influência das ciências sociais também é sentida no design de modelos alternativos para o desenvolvimento de projetos experimentais e de transformação social, que se materializaram no Québec, por exemplo, em experimentos de educação social como TEVEQ,1 a rádio e a televisão comunitárias, e na América Latina, em uma filosofia de desenvolvimento que tem inspirado vários projetos de intervenção social. No Québec, todas essas experiências de participação, animação e desenvolvimento, que surgiram na década de 60 por iniciativa de pessoas formadas em sociologia e nas ciências da educação, bem como nas profissões da comunicação, influenciaram profundamente o desenvolvimento da reflexão e da análise em departamentos acadêmicos criados a partir dos anos 70. A criação de um corpo de conhecimentos sobre a comunicação As ciências da comunicação não constituem uma disciplina particular, no sentido clássico e um pouco old-fashioned, caracterizado por um objeto que seria inteira e exclusivamente específico e por alguns métodos específicos (haveria muitas ciênciais sociais que também poderiam satisfazer a esses requisitos?). A comunicação – como a saúde ou a educação – é mais um campo de estudo, um conjunto de questões e problemas. Ela corresponde aos desejos de um C. Wright Mills (1967), sociólogo americano fora do mainstream, que apelou para a formação de equipes de pesquisa e a organização de conhecimentos mais em termos de problemas que de estruturas rígidas disciplinares. As teorias da comunicação são múltiplas, diversificadas e não integradas em um todo coerente, como é também o caso em sociologia, em antropologia, em economia e em outras ciências sociais. Elas têm todas por objeto a comunicação, processo de troca de mensagens, ao qual tem sido dado as definições mais diversas. A comunicação é tanto um requisito prévio e um 1 Projeto de televisão educativa participativa desenvolvido na região do Saguenay no fim dos anos 60. O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 17 17 5/20/14 4:31 PM produto da vida social; por isso, é assim integrado à maioria das construções teóricas gerais da sociedade, tanto no modelo estrutural-funcionalista de Talcott Parsons (1951) ou no modelo estruturalista de Claude Lévi-Strauss (1958). O que distingue os especialistas das ciências da comunicação é que eles tornaram a troca de mensagens o foco central de suas preocupações e a articulação de sua visão da sociedade. Em suas tentativas de compreender a complexidade do objeto comunicação, os cientistas sociais rapidamente se confrontaram ou foram levados a obter o conhecimento em áreas mais ou menos alheias às ciências sociais como a engenharia, a matemática, a psicologia e até a fisiologia. O viés para a comunicação, para um campo em vez de uma disciplina, tem levado pesquisadores provenientes das ciências sociais a desenvolverem uma abordagem “comunicacional”, que lança uma luz específica sobre o social e contribui de modo original para a compreensão da sociedade como um todo. Levaria muito tempo para sistematicamente identificar e avaliar qualitativamente as contribuições dos estudos de comunicação ao conjunto de conhecimentos acumulados pelas ciências sociais. Ainda lembremos que elas contribuíram com vários conceitos: informação, redundância, feedback, códigos, canal, ruído, redes, viés espacial e viés temporal, monopólio e oligopólio de conhecimento, opinião pública, espaço público. Elas destacaram fenômenos como a impossibilidade de não comunicar (WATZLAWICK et al., 1972), ressaltaram a importância de sistemas técnicos de comunicação e contribuíram para a compreensão de processos complexos, tais como a influência da mídia e das mensagens. Elas especialmente ajudaram a perceber a importância adquirida pelas comunicações nas sociedades modernas desde meados do século XIX até o ponto de poderem ser consideradas um setor específico, assim como a educação e a saúde, irredutível a meras manifestações de uma superestrutura que seria totalmente dependente da infraestrutura econômico-política, e cuja análise é tão necessária para a compreensão da estrutura e do funcionamento da sociedade como um todo. As pesquisas sobre a industrialização da cultura e da comunicação, entre outras, têm permitido ao mesmo tempo enfatizar a integração desses campos ao vasto movimento que orienta o desenvolvimento da economia e da 18—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 18 5/20/14 4:31 PM sociedade, bem como destacar os traços que caracterizam o processo de comercialização e industrialização nessas áreas. O peso da tecnologia e da aborgagem determinista O objeto que se impôs às ciências da comunicação, sob o efeito combinado do fascínio pela tecnologia e os interesses dos doadores privados e públicos, é, no entanto, na maioria dos casos, menos comunicação em si que as máquinas para comunicar – os meios de comunicação, ou as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). A história do pensamento comunicacional é de fato marcada, orientada em cada uma de suas etapas por avanços tecnológicos. Assim, Gabriel Tarde (1901) cunhou o conceito do público em relação ao desenvolvimento da imprensa de um centavo (a penny press). A Escola de Chicago sonhou com o potencial democrático da rádio, da imprensa e do telégrafo. Os estudos sobre os efeitos da comunicação foram encomendados pelas estratégias de manipulação e temores despertados pelo uso das técnicas mais recentes. A teoria da informação de Shannon (1949) foi o resultado de uma estratégia de tecnologia de telecomunicações racional, eficiente e lucrativa. E assim por diante. Goste-se ou não, deve-se notar que o fator técnico é fundamental para o surgimento e desenvolvimento das ciências da comunicação, a tal ponto que poderíamos até dizer que são mais ciências da mediatização que ciências da comunicação. Com exceção, talvez, da semiótica, da retórica e de algumas abordagens para a comunicação interpessoal, mais relacionadas aos estudos literários e à psicologia. E ainda pode-se mostrar que elas não ficaram imunes à influência dos modernos desenvolvimentos tecnológicos. Psiquiatras em Palo Alto (WATZLAWICK et al., 1972), por exemplo, basearam sua pragmática da comunicação na teoria dos sistemas e na cibernética, desenvolvidas por engenheiros, preocupados com a instalação e o desempenho de dispositivos técnicos. O desenvolvimento da semiótica, nos anos 60 e 70, está relacionado, pelo menos em parte, com a nova importância do fenômeno televisual e a civilização da imagem que ela devia demonstrar. Este peso desproporcional da tecnologia na definição do objeto das ciências da comunicação é quase inseparável da inclinação para se concen- O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 19 19 5/20/14 4:31 PM trar em uma abordagem determinista. De fato, parece que o determinismo se manifesta com mais força e com mais repetição em ciências da comunicação que nas ciências sociais em geral. Pode-se referir a McLuhan (1968, 1970) ou, em menor medida, a Innis (1950, 1951), que fizeram dos meios de comunicação fatores-chave na evolução das sociedades. Mas poderíamos facilmente identificar vários outros autores que participam da mesma tendência. Mesmo que eles se defendem explicitamente a adotar o determinismo tecnológico, transmitem seus pressupostos em suas análises. Autores como Pierre Lévy (1990, 1995) e Régis Debray (1991), sem dúvida, pertencem a este grupo. Tudo se passa como se as ciências da comunicação repetissem continuamente um velho modelo circular da forma seguinte: em primeiro lugar, uma inovação técnica imediatamente estimula uma abordagem determinística, que capta as consequências “inevitáveis”; em segundo lugar, a observação e análise de situações concretas invalidam a perspectiva determinista; em terceiro lugar, uma outra inovação técnica provoca um retorno ao determinismo; novas observações e análises invalidam a perspectiva determinista e assim por diante. Os primeiros estudos sobre a propaganda e os efeitos das mídias começaram este padrão recorrente: no princípio, cremos na onipotência dos meios. Os resultados da pesquisa levaram a relativizar essa perspectiva. O mesmo processo foi repetido com cada inovação técnica e está se recuperando em movimento, hoje, com a mesma simplicidade e a mesma ignorância histórica, sobre a implementação da autoestrada da informação, o advento da multimídia e da expansão do ciberespaço. Essa “obsessão” da técnica é encontrada no discurso sobre a “sociedade da informação”, como veremos a seguir. É urgente para as ciências da comunicação adotarem e desenvolverem uma perspectiva dialética na análise do fenômeno técnico: embora reconhecendo a exterioridade que lhe confere a sua materialidade, deve ser entendido como parte de um processo de produção social das máquinas, assim como de seus usos. 20—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 20 5/20/14 4:31 PM Um objeto disputado e compartilhado. As ciências da comunicação entre as ciências sociais, as ciências da educação e as ciências da gestão É certo que são significativas as contribuições das teorias e métodos das ciências sociais para o surgimento das ciências da comunicação. Isso não deve impedir a conclusão de que a institucionalização destas últimas levou a uma relativa autonomia. Pesquisadores de comunicação agora se recrutam em grande número entre os programas de pós-graduação em comunicação, que não têm as mesmas relações com as ciências sociais que tinham seus antecessores. Junto com o crescente reconhecimento oficial dos currículos em comunicação, os fenômenos que eles estudam chamaram a atenção de todas as ciências sociais, de tal modo que o objeto que eles se deram se encontra disputado. Sociólogos como cientistas políticos, economistas, geógrafos, tais como advogados, cientistas da gestão ou da educação, entre muitos outros, estão cada vez mais interessados em novas técnicas de comunicação e de informação e desenvolvem muitos trabalhos de pesquisa. A falta de interesse da maioria dos cientistas sociais para os fenômenos da comunicação foi, certamente, um dos fatores que têm levado muitos pioneiros das ciências da comunicação a criarem departamentos ou escolas especificamente dedicados ao estudo da comunicação nos anos 60 e 70. Mas esses dias estão muito longe. Quase em todos os lugares agora, as ciências sociais e as humanidades integraram as comunicações no seu âmbito de preocupações preferidas. Com exceção, talvez, da economia. Curiosamente, no momento em que os políticos, as mídias e os analistas de todos os tipos chamam a economia moderna de economia do conhecimento ou da informação, há – pelo menos no Canadá – poucos economistas que se interessam ativamente nestas questões e poucos departamentos universitários de economia oferecem cursos ou opções em comunicação. Em contraste, a comunicação invadiu disciplinas dedicadas à gestão, chamadas ciências administrativas. Ou deveríamos dizer que os especialistas em gestão e administração invadiram o campo da comunicação, contribuindo grandemente para o desenvolvimento de estudos em comunicação organizacional? O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 21 21 5/20/14 4:31 PM Herdeiras de ciências sociais e humanas, as ciências da comunicação, por muito tempo ignoradas, desprezadas, criticadas, dedicaram-se ao estudo de um objeto que agora chama a atenção de todos. A tal ponto que muitos propõem caracterizar a natureza da sociedade contemporânea tomando como referência a importância que a informação tem adquirido. Então, a questão das relações entre as ciências sociais e as ciências da comunicação surge com uma nova urgência em um quadro renovado. Especialmente como outras influências que se manifestaram no campo da comunicação nas últimas décadas. Não se pode agora analisar as relações entre as ciências da comunicação e as ciências sociais sem ter em conta as ciências da gestão, nas quais os estudos de comunicação se desenvolveram em um ritmo preocupante nas últimas duas décadas. Currículos acadêmicos, pesquisas e publicações abundam em marketing, publicidade, gestão de pessoal ou de Tecnologia da Informação (TI). Estes trabalhos são, naturalmente, inspirados mais pelos imperativos da gestão que pelas abordagens das ciências sociais e são mais focados no negócio que na sociedade. Mas, na realidade, as coisas não são recortadas tão claramante como acreditam alguns. São muitas as áreas de sobreposição, de colaboração ou de conflito. Por exemplo, currículos de relações públicas ou de publicidade são encontrados tanto nas escolas de comunicação quanto de gestão. Professores formados em ambos os campos trabalham tanto em uma área como na outra. E as mesmas teorias da organização abastecem cursos de comunicação organizacional ou de comunicação administrativa. Em suma, a comunicação tornou-se, gostemos ou não, um lugar de encontro e de conflito entre as ciências de gestão e as ciências sociais. Os poderes públicos têm estimulado ou provocado essa orientação. Isso pelo menos é o caso no Québec e no Canadá. Programas de assistência à pesquisa são organizados, desde alguns anos, a fim de promover a parceria entre governo, empresas privadas e universidades. A organização da pesquisa, orientada para o desenvolvimento de parcerias, cria este lugar de encontro e define as condições para a prática da pesquisa. Isto não pode ser feito sem efeito sobre as orientações da teoria comunicacional. As ligações com as ciências da educação, em particular com a educação de adultos, são ainda mais antigas. Assim como nas ciências sociais, as preocupações educacionais populares no Québec têm inspirado os primeiros desenvolvimentos das ciências da comunicação e exercem uma influência 22—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 22 5/20/14 4:31 PM decisiva, até o final dos anos 70. A institucionalização da formação e a decolagem da pesquisa em comunicação nas décadas 60 e 70 foram produzidas no contexto de um amplo movimento de participação, de animação e educação popular. Pode-se descrever como modernista a filosofia geral que as inspiraram, seja por suas reivindicações do direito de falar por todos, seja pelo direito à comunicação ou por suas aspirações de transformação social e de apropriação coletiva do projeto de mudança. As experiências de comunicação alternativa e de educação popular foram, então, lugares de encontros e conflitos entre especialistas de ciências sociais e de ciências da comunicação, profissionais da informação e de produção audiovisual, educadores, facilitadores sociais, ativistas do meio associativo. Os meios de comunicação eram vistos como ferramentas para mudar a sociedade. A partir dos anos 80, a problemática passa por profundas transformações que resultam, em grande parte, da ascensão das ciências da administração e da sua crescente influência no campo das comunicações. A concepção da relação comunicação-sociedade muda radicalmente. Os meios de comunicação são cada vez menos vistos como instrumentos de mudança. Eles tornam-se instrumentos de gestão de empresas, é claro, mas também do Estado e da sociedade. As comunicações agora ocupam o polo magnético da relação comunicação-sociedade. Então, já não se pensa em termos de utilização de meios de comunicação para a mudança social, mas sim em termos de uma adaptação social necessária às mudanças no mundo das comunicações, uma adaptação necessária do conjunto das necessidades da sociedade da informação. Ainda é um projeto modernista, sem dúvida, mas de uma natureza totalmente diferente. A gestão é o mundo da computação e da racionalidade instrumental. Nós gerenciamos tudo em nossas sociedades modernas, como fartamente indica o vocabulário, tanto na vida cotidiana como em várias áreas especializadas. Gerenciamos nossa relação matrimonial, nossos problemas pessoais, gerenciamos nosso tempo, nosso estresse, o meio ambiente como gerenciamos nossas finanças, para não mencionar que, nossa sociedade, gerenciamos o sistema de saúde, de educação, as prisões etc. O pensamento estratégico é triunfante. É um paradoxo interessante analisar o fato de que esta atitude proativa frequentemente coexiste nos mesmos indivíduos que aderem ao determinismo tecnológico. “O interesse dos es- O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 23 23 5/20/14 4:31 PM pecialistas em administração em relação à comunicação é compreensível, especialmente porque os avanços da digitalização têm expandido as possibilidades de controle e, consequentemente, de gestão”. (BENIGER, 1986) Esta invasão da área de comunicação por especialistas de gestão não deixa de ter influência sobre a orientação da teoria. Talvez devesse ser analisada nesta perspectiva a tese daqueles que afirmam que o cálculo assumiu a hegemonia sobre o idioma. (LÉVY, 1990) Isso indicaria uma revolução do pensamento? Sim, sem dúvida, do pensamento ideológico. Pois é um fato que a influência da abordagem gerencial tende a marginalizar a reflexão sobre as finalidades em comparação com o pensamento que se dedica ao cálculo dos meios. Este renovado interesse para a comunicação não surpreende. Máquinas para informar e comunicar gradualmente se impuseram em todas as áreas da atividade social, tanto no local de trabalho como em casa. Especialistas em todas as ciências sociais e ciências da gestão as encontram a qualquer tempo, intimamente relacionadas ao tema de suas preocupações mais imediatas. O cientista político está questionado por seu uso em estratégias eleitorais, na administração pública e pelas perspectivas da democracia futurista eletrônica. O especialista em gestão por sua proliferação em todos os tipos de organizações e empresas, tanto para as atividades de produção como para o planejamento, a administração ou a distribuição. O sociólogo por transformações, reais ou percebidas, que sugerem sua generalização em todos os sectores da vida social e da comunidade. Sua onipresença levanta as questões mais diversas e chama a atenção de especialistas de todos os tipos. Como essas máquinas influenciam a organização do trabalho? Como usá-las para melhorar a oferta de educação, saúde, assistência social? Elas oferecem uma melhor produtividade? Elas contribuem para o desemprego ou a criação de emprego? Qual é o seu impacto na vida familiar e social? P o d e u m a t e o r ia d a c o m u n i c a ç ã o e x p l i c a r a sociedade global ? Entre os anos 70 e 90, a reflexão sobre as relações comunicação-sociedade se desloca do tema da experimentação social alternativa para se fixar no tema da gestão da sociedade global. Se a ideologia da comunicação (BRETON; 24—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 24 5/20/14 4:31 PM PROULX, 1989) se impôs, ao ponto de dizer que a sociedade foi conquistada pela comunicação (MIÈGE 1989, 1997), isso significaria que a teoria da comunicação pode dar conta da sociedade global? Podemos entender a sociedade atual a partir da comunicação, colocando-a como ponto de partida e como ponto de chegada, como o alfa e o ômega da realidade social? Esboços de teorias globalizantes eram relativamente numerosas em ciências da comunicação. (MIÈGE, 1995) Também não é uma característica exclusiva delas. As ciências sociais, especialmente a sociologia e a economia, têm compartilhado esta ambição desde muito tempo. As tentativas mais recentes, em comunicação, foram formuladas em termos de sociedade da informação e em termos de globalização. E essas “teorias” são interessantes porque parecem ser compartilhadas por especialistas de outras origens, tanto das ciências sociais, como das ciências da gestão ou da educação. A sociedade da informação e a globalização ou a ambição da globalidade Com a popularidade que conhece agora a expresão “sociedade da informação”, parece que a comunicação não só impulsiona a vanguarda, mas constitui a essência da sociedade que está a tomar forma diante de nossos olhos, sendo a chave que leva à sua compreensão. Alguns economistas (MACHLUP, 1979; PORAT, 1977) e alguns sociólogos (BELL, 1973; TOURAINE, 1969) destacaram, já faz tempo, a importância da informação e do conhecimento no funcionamento das economias e sociedades modernas. Mas é somente a partir dos anos 90, com projetos de construção de redes de banda larga, que o termo conseguiu notoriedade. Nem todos os discursos que descrevem a sociedade da informação têm um carácter teórico. Longe disso. Mas seria um erro negligenciá-los. A história mostra a importância dos temas “propostos” pelos poderes públicos e privados no desenvolvimento da pesquisa em comunicação (ver entre outros Mattelart (1992) e Tremblay e Sénécal (1987). Tal sociedade da informação seria aquela em que a informação e o conhecimento se tornariam os principais fatores de produção e onde a maioria dos trabalhadores estaria ocupada com tarefas de recolha, tratamento e trans- O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 25 25 5/20/14 4:31 PM missão de informações; uma sociedade onde a competitividade da economia dependeria principalmente do domínio do conhecimento e da inovação. O uso adequado das novas tecnologias de informação e comunicação deveria, de acordo com os seus promotores, permitir, ao mesmo tempo, aumentar a produtividade e melhorar a qualidade dos serviços. Claro que, nesta nova sociedade, as redes de banda larga e a rápida difusão cobrem todo o planeta e tornam disponíveis, a preços acessíveis a todos, os recursos disponíveis em termos de conhecimento, informação e entretenimento.2 Entretanto há mais. A expresão “sociedade da informação” reflete o desejo de pensar a totalidade do social em termos de comunicação (especificamente em termos de informação). Ela indica a superação de uma concepção instrumental da comunicação definida como um conjunto de recursos para fazer a guerra, para assegurar o progresso e a cultura (MATTELART, 1994) em que ela substitui uma abordagem essencialista da comunicação, na qual a comunicação parece como a essência da sociedade. A hipótese é plausível e iluminadora? As ciências da comunicação se tornaram ciências da sociedade global, substituindo – ou abraçando – a sociologia em seus esforços para explicar o fato social total (MAUSS, 1980)? Estaríamos tentando alcançar o sonho de um Lévi-Strauss (1958) que, nos anos 50, evocou, em um capítulo de Antropologia estrutural, criar uma vasta ciência da comunicação baseada nos isomorfismos que poderíamos observar entre as regras de troca de bens materiais, de pessoas e de símbolos? É legítima tal reivindicação ao status de “rainha das ciências sociais”? Não é uma ambição excessiva, mesmo em uma perspectiva mcluhanienna? A todas estas questões, outra está subjacente: é possível projetar a totalidade da sociedade como um vasto sistema de comunicação? É possível compreender a sociedade só a partir da comunicação? A comunicação é, naturalmente, necessária para a vida social. Toda organização, cada cultura é impensável sem código e sem sistemas de troca. Mas isso não significa que a vida social é reduzida apenas para actividades de comunicação. 2 Tratamos este tema da sociedade da informação com mais detalhes em Tremblay (1995) e também em Lacroix e Tremblay (1997). 26—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 26 5/20/14 4:31 PM Qualquer tentativa de generalizar postulados necessariamente parciais, subjacentes a qualquer disciplina; ou pior ainda, tentar generalizar os “a priori” de uma escola de pensamento ou de uma teoria em particular no campo desta disciplina, tudo isso leva necessariamente a visões reducionistas e a teorias simplistas do social, como bem o ilustraram os economistas liberais e os neoliberais ao tentarem estender à totalidade do social seus pressupostos questionáveis sobre o homo economicus e o funcionamento perfeito do mercado. As teorias da comunicação não podem escapar das mesmas armadilhas quando viajarem pelas mesmas vias. Para entender a sociedade em sua totalidade a partir da comunicação é essencial completar e enriquecer a sua perspectiva de partida com a necessária contribuição de outras perspectivas disciplinares. A complexidade social só pode ser compreendida através de uma atitude aberta, que implica a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade. As teorias da sociedade da informação não atendem a esses requisitos. Observemos, em primeiro lugar, os termos usados. Falam de sociedade da informação e não de sociedade da comunicação, com bastante ambiguidade para substituir um termo pelo outro. A escolha das palavras nunca é inocente. Informação é um conceito mais preciso, porém, mais restrito do que o de comunicação. A informação é conteúdo, trocado ou armazenado. E desde que Shannon (1948) propôs uma medida, expressa em bits,3 para melhorar o desempenho e o custo das trocas por sistemas de telecomunicações, a informação refere-se a uma sucessão de sinais, independentemente do seu sentido, o seu significado. A informação ignora a semântica como a pragmática, a outra seção das ciências da comunicação que se concentra sobre as relações de interinfluência entre aqueles que se comunicam uns com os outros. A informação assim se refere ao que pode ser medido quantitativamente e economicamente. A informação é um produto que tem um valor que pode ser armazenado, processado, vendido e comprado. 3Notemos que a fórmula de medição da informação de Shannon é contemporânea aos primeiros desenvolvimentos da informática. A unidade de medida, o bit, é aliás utilizada tanto em informática como em telecomunicações. A convergência entre as técnicas de comunicações, das quais tanto se fala desde os anos 90, já havia colocado seus primeiros fundamentos desde o Pós-Guerra. O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 27 27 5/20/14 4:31 PM A comunicação, ao contrário, inclui tudo, tanto o conteúdo como o recipiente e o processo. Comunicar é ligar as pessoas, os grupos sociais. A comunicação não se limita à produção, transmissão e recepção de informação que é instrumental e econômica. É troca de símbolos, um processo multifuncional. Certamente, pode ser utilitária, funcional (função informativa). Mas também é compartilhar significado (função semântica), objeto dos estudos semióticos. Finalmente, desenvolve o que o linguista Roman Jakobson chamou a função fática, ou seja, essa relação sem utilidade aparente, só prazer de troca, comunicar com os outros, para repetir e reforçar os laços sociais.4 A comunicação pode, evidentemente, ser objeto de medição. Podemos atribui-la um preço, como sabem fazer as empresas de telefonia, que vendem o uso de infraestrutura de transmissão e o tempo de comunicação. Mas esta tradução quantitativa da comunicação pode ser feita à custa da redução a seus componentes técnicos, utilitários, informativos. É a deriva que ameaça toda abordagem em termos de sociedade da informação. O determinismo tecnológico subjacente ao modelo da sociedade da informação, em que a evolução da tecnologia da informação e comunicação é apresentada como o fator determinante de mudança, é uma explicação reducionista necessariamente incapaz de tomar em consideração as estratégias dos jogadores e os conflitos resultantes. É também uma leitura que oculta todos os problemas e desafios enfrentados pelas sociedades contemporâneas, que não resultam diretamente ou principalmente do desenvolvimento das técnicas de comunicação e informação: as desigualdades sociais, a pobreza, a marginalização e a exclusão etc. Precisa-se enraizar as ciências da comunicação no campo das ciências sociais Uma teoria da comunicação que tem como objetivo dar conta do social deve necessariamente ser articulada a uma teoria da produção material (de transformação do mundo, de produção de riqueza) e a uma teoria das relações de 4Lee Thayer (1968), de sua parte, distingue quatro tipos de funções da comunicação: a função informativa, as funções de ordem e de instrução; as funções de influência e de persuasão; as funções integrativas. 28—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 28 5/20/14 4:31 PM poder, em suma, ao que Nicholas Garnham (1990) chama de uma economia política da comunicação. Esta exigência é tanto mais necessária nas sociedades de hoje, onde a comunicação, desde a criação de seus produtos até a sua distribuição, é ampla e profundamente enraizada no modo de produção capitalista. A obra de Harold Innis é um bom exemplo desta necessária conexão das ciências da comunicação com outras ciências sociais, particularmente a história, a sociologia, a economia e a ciência política. Se a tese de Innis é construída em torno do papel central das tecnologias de comunicação na criação e sobrevivência dos impérios, os conceitos de monopólio ou oligopólio do conhecimento e do equilíbrio entre os meios de comunicação favorecendo viés temporal e viés espacial – uma transposição de conceitos da economia – desempenham um papel maior na construção de seu argumento. E se o ponto de partida de seu pensamento tem, a priori, a favor de um certo determinismo tecnológico, a análise histórica e detalhada que ele desenvolve, ela atribui grande importância aos conceitos de interesse, de poder, de acessibilidade e alocação de recursos. Isso resulta em um modelo explicativo muito mais complexo do que se podia vislumbrar a partir da hipótese inicial. Espera-se que as ciências da comunicação reconectem com essa perspectiva que abraça a história, a sociologia, a ciência política e a economia. É somente através de tal esforço que poderão chegar a uma explicação abrangente da sociedade a partir de uma análise da comunicação. C o n h e c i m e n t o t e ó r i c o e e x p e r i ê n c ia p r át i c a Sociólogos que se interessaram por temas como direito e saúde não criaram programas de formação em direito e medicina, nem fundaram novos departamentos acadêmicos. Fizeram sociologia do direito e da saúde em departamentos de ciências sociais ou se integraram a facultades de direito e medicina, onde se encontraram em minoria e em situação marginal. Suas pesquisas e escritos, sem dúvida, influenciaram os currículos e a prática profissional, mas ambos permaneceram respectivamente sob a responsabilidade dos advogados ou médicos. O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 29 29 5/20/14 4:31 PM Não tem sido o caso em comunicação. Os cientistas sociais que acreditavam na necessidade de desenvolver estudos e pesquisas em comunicação tiveram que criar seus próprios espaços institucionais para isso. E nestes locais – escolas, institutos, departamentos – muitas vezes se combinaram com as ciências sociais e a formação profissional. Assim se iniciaram relações originais entre a teoria e a prática, entre o conhecimento das ciências sociais e a prática profissional em comunicação. Ao contrário do que aconteceu quando os sociólogos estavam interessados em direito ou em medicina, a participação de cientistas sociais de comunicação tem resultado em influência real e significativa sobre os currículos e projetos de pesquisa. Mas, ao mesmo tempo, estes marginais em sua própria disciplina – o resultado de escolhas pessoais ou indiferença ou desprezo de seus colegas pelos fenômenos de comunicação – encontraram-se fazendo outra coisa, mas não ciências sociais. Eles sempre enfrentaram problemas de gestão e de prática profissional. Por interessante que seja, essa posição levanta novas questões sobre a relação entre teoria e prática, que devem ser clarificadas. Pelos teóricos da comunicação, ela também provoca muitas vezes um emaranhado complexo entre análise e normatividade, cujas consequências foram pouco aprofundadas. Evoco rapidamente aqui essa complexa questão das relações entre o conhecimento teórico e a prática profissional. É necessário fazer uma análise mais cuidadosa porque as ciências da informação e comunicação estão no centro do acelerado processo de industrialização e mercantilização da educação, um processo ainda mais acentuado no nível de pós-graduação, pela expansão das novas tecnologias de informação e de comunicação. C o n s i d e r a ç õ e s f i n ai s : a c r i s e d a s c i ê n c ia s s o c iai s As ciências sociais estão passando por um período difícil desde os anos 80. Alguns não hesitam em falar de crise. Ela se manifesta de várias formas: um declínio na popularidade de seus programas; a falta de credibilidade em relação aos tomadores de decisão, públicos e privados, ou em relação à população; um questionamento de seus modelos gerais, uma renovação teórica difícil etc. Mais geralmente, é preciso invocar a ênfase em todo o sistema de 30—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 30 5/20/14 4:31 PM ensino sobre a qualificação profissional e a formação utilitária em detrimento do aprofundamento do conhecimento, da análise teórica e da pesquisa desinteressada. Isso resulta em uma desqualificação das análises críticas. Esta crise também afeta as ciências da comunicação a partir de vários ângulos. Com certeza, novos temas e objetos de pesquisa se impuseram ao longo dos últimos quinze anos. Porém, me parece que a problemática aqui analizada permanece relevante. Os estudos de comunicação ainda são muito populares entre os alunos. Mas eles são mais atraídos por seus aspetos práticos e as profissões de produção – do jornalismo ao multimídia passando pelo audiovisual –, que pela análise inspirada por paradigmas das ciências sociais. Além da sedução da clientela de alunos, o verdadeiro desafio da vitalidade de uma abordagem inspirada pelas ciências sociais fica na própria definição do lugar que as ciências da comunicação querem ocupar além da gestão e do profissionalismo. R e f e r ê n c ia s BELL, D. The coming of the post-industrial society: a venture in social forecasting. New York: Basic Books, 1973. BENIGER, J. The control revolution: technological and economic origins of the information society. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1986. BRETON, P.; PROULX, S. L’explosion de la communication: la naissance d’une nouvelle idéologie. Paris: La Découverte, 1989. DEBRAY, R. Cours de médiologie générale. Paris: Gallimard, 1991. DEWEY, J. Démocratie et éducation. Paris: A. Colin, 1990. FLICHY, P. 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O lugar “virtual” das ciências da comunicação revisitado— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 33 33 5/20/14 4:31 PM WATZLAWICK, P.; HELMICK-BEAVIN, J.; JACKSON, D. Une logique de la communication. Paris: Seuil, 1972. WIENER, N. Cybernetics: control and communication in the animal and the machine. Cambridge: MIT Press, 1948. 34—gaëtan tremblay teoria-meios-comunicacao_v1.indb 34 5/20/14 4:31 PM O campo dos estudos em comunicação no Canadá Ponto de vista a partir do programa de doutorado conjunto em Montréal Ér ic George Introdução A comunicação é, antes de tudo: uma prática, uma arte ou então uma ciência, uma disciplina? Este tipo de questionamento não é recente. No entanto, me parece ainda ser de grande atualidade. O simples fato de falar em estudos em comunicação (ou Communication Studies) nos leva a fazer uma escolha em favor de um conhecimento que é possível, pelo menos em certa medida, de transmitir e enriquecer no contexto das instituições de ensino, incluindo a teoria-meios-comunicacao_v1.indb 35 35 5/20/14 4:31 PM universidade. E se estamos realmente no âmbito da ciência, podemos falar de um registro no campo das ciências sociais, humanidades ou devemos também colocar a ênfase nas ciências da engenharia ou ciências da natureza? Por outro lado, poderíamos falar de disciplina ou seria melhor optar pela interdisciplina, ou apenas simplesmente pelo objeto, que seria, por sua parte, comunicacional, devido à falta de perspectiva? Todas estas questões merecem ser contempladas em um livro dedicado às teorias da comunicação (midiática) no Brasil e no Canadá. Além disso, seria ainda possível considerar a possibilidade ou não, e também a relevância, de distinguir a pesquisa em comunicação midiática e a pesquisa em comunicação que não se refere aos meios. Se for possível distinguir os subconjuntos que constituem a comunicação mediática, a comunicação organizacional e a comunicação interpessoal – embora uma definição ampla da organização pudesse prontamente incluir a comunicação interpessoal –, torna-se rapidamente mais difícil distinguir de um lado a comunicação mediática e do outro a comunicação pública ou comunicação social. Este conjunto de questionamentos parece tanto mais complexo de analisar que essas considerações epistemológicas serão difíceis de examinar sem fazer referência ao contexto, notadamente o contexto institucional no qual os estudos que doravante chamaremos de estudos em comunicação, se desenvolvem. Por contexto institucional consideramos, especificamente, o contexto da universidade em que trabalham, pelo menos no Canadá, a maioria dos pesquisadores e estudantes que refletem sobre essas questões. Departamento de Comunicação da Universidade de Montréal, Departamento de Informação-Comunicação na Universidade Laval, Departamento de Letras e de Comunicação da Universidade de Québec em Trois-Rivières (UQTR), do Departamento de História da Arte e Estudos da Comunicação na McGill University, Departamento de Letras e Comunicação da Universidade de Sherbrooke, Departamento de Estudos de Comunicação na Concordia (Montréal), Escola das Mídias e Departamento de Comunicação Social e Pública da Universidade de Québec em Montréal (UQAM); as designações que incluem pesquisadores e estudantes variam muito, mesmo dentro da província do Québec. O objetivo deste texto é focar nossa atenção na situação dos estudos em comunicação a partir da análise da evolução do conteúdo, especialmente em termos de cursos, dentro do programa conjunto de comu- 36—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 36 5/20/14 4:31 PM nicação de três das quatro universidades de Montréal: Concordia University, a Universidade de Montréal e a Universidade de Québec em Montréal. Esta perspectiva nos parece particularmente relevante, pois acreditamos que a reflexão sobre o estado dos estudos em comunicação vai depender, pelo menos em parte, da graduação anterior, atual e futura dos doutorandos que terão concluído esses estudos, doutorandos que têm ou chegarão a ter cargos de professores e pesquisadores. Para completar a nossa análise, vamos discutir em primeiro lugar a criação do programa e as orientações iniciais. Depois, vamos analisar em uma segunda etapa as mudanças importantes feitas durante a década de 2000. Para concluir questionando o futuro dos estudos em comunicação, veremos que, se inicialmente a busca de coerência era dominante, particularmente desde a década de 2000, a ênfase tende a ser colocada sobre a diversidade que aparece doravante caracterizar antes de tudo os estudos em comunicação. D e v o lta à c r ia ç ã o e à s o r i e n ta ç õ e s i n i c iai s O programa conjunto foi lançado em 1987, em um contexto em que existia somente um doutorado em comunicação no Québec, na Universidade McGill, e no Canadá inglês, na Universidade Simon Fraser, em British Columbia. Ele foi criado quando, em média, 25 estudantes de mestrado se formavam a cada ano nas quatro universidades da cidade de Montréal, embora McGill oferecesse apenas três vagas por ano no seu programa de doutorado. Além disso, com um corpo docente de cerca de 60 membros, as três universidades que compunham o futuro programa conjunto concentravam a metade dos recursos do Canadá inteiro. No entanto, tiveram que contratar jovens professores que tinham concluído seu doutorado ou em outras disciplinas ou em outros países, devido à ausência de ofertas significativas de programa de doutorado em comunicação no Québec e no Canadá. Logo no início, 22 professores foram capacitados para ensinar e orientar teses. Parte dos colegas da UQAM não podia, de fato, pretender intervir neste nível de estudos de pós-graduação, pois, enquanto profissionais, eles próprios não tinham diplomas de doutorado. No entanto, a oferta de cursos sempre foi significativa O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 37 37 5/20/14 4:31 PM no contexto da formação seguida por todos os estudantes. No lançamento do programa, este período de curso incluía, entre outros, 18 créditos de seminários. Todos deviam ser liderados por dois professores de duas das três universidades de ensino em team-teaching e havia um fórum de doutorado que depois reunia todos os estudantes inscritos no programa. Os especialistas externos consultados pelo subcomitê de avaliação dos programas da Conferência dos Reitores e Diretores das Universidades do Québec (CRÉPUQ)1 também destacaram a importância acordada aos seminários no momento de autorizar a criação deste programa. (UdeM; UQAM, 1987) Ainda hoje, essa grade curricular representa uma fase importante, com os 15 créditos de cinco seminários e 6 créditos do fórum de doutorado aos quais devem ser adicionados os 6 créditos do projeto de tese que concluem o curso. Além disso, o programa incluía quatro eixos principais em termos de ensino e pesquisa: • Aspectos sociais e culturais das tecnologias de informação e comunicação • Análise dos discursos e mensagens dos meios • Organização e redes de comunicação • Comunicação e desenvolvimento Cada estudante deve se inscrever em um ou dois eixos e seguir os cursos integrados nos mesmos. Além disso, era necessário passar a fase da prova de síntese, rebatizada desde então de prova de doutorado, no final do primeiro ou, se for o caso, no final do segundo ano. Esta tinha como objetivo avaliar os conteúdos teóricos suscetíveis de interessar o estudante durante seu percurso até a defesa da tese. Uma pergunta, a mesma para todos, era apresentada ao estudante que devia responder com a ajuda de uma bibliografia, na qual uma dúzia de referências vinha de uma lista específica de cada eixo, atualizada mais ou menos regularmente pelos professores que registravam suas pesquisas em um determinado eixo. 1 Conférence des recteurs et des principaux des universités du Québec. 38—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 38 5/20/14 4:31 PM O primeiro ano, o percurso de formação era como se segue, conforme descrito no documento Rapport d’évolution 1987-1993,2 (1994, p. 4): Dois seminários dos eixos a serem escolhidos dentro dos quatro oferecidos anualmente 12 créditos Seminário de epistemologia 6 créditos Fórum do doutorado 3 créditos Oficina de Pesquisa 9 créditos Aceitação do projeto de tese 6 créditos Total das aulas 36 créditos Tese 54 créditos As características do programa mencionadas acima (necessidade da inscrição em um ou dois dos quatro eixos, obrigação da existência de um seminário de epistemologia, aulas ministradas por dois professores de duas universidades, bibliografia parcialmente imposta para a prova de síntese) inicialmente procuravam se basear numa coerência forte objetivando estruturar fortemente o campo dos estudos em comunicação, enquanto se beneficiavam das contribuições recíprocas de dois colegas de duas universidades diferentes. No entanto, as mudanças foram muito rápidas. Em 1993-1994, o percurso tornou-se o seguinte: Dois seminários dos eixos a serem escolhidos dentro dos quatro oferecidos anualmente ou Um seminário de eixo e dois seminários especializados de 3 créditos 12 créditos Fórum do doutorado 6 créditos Duas Oficinas de Pesquisa de 3 créditos 9 créditos Aceitação do projeto de tese 6 créditos Total das aulas 30 créditos Tese 60 créditos 2Relatório de evolução. (N.T.) O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 39 39 5/20/14 4:31 PM O seminário de epistemologia foi cancelado após os dois primeiros anos, pois foi considerado que duplicava os seminários dos eixos. Também foram introduzidos os seminários de 3 créditos dados por um só professor, em setembro de 1993. Os mesmos tinham como objetivo “proporcionar uma formação mais especializada em determinadas áreas, particularmente em metodologia” assim como “tratar das temáticas que sobrepõem vários eixos e promovem a articulação dos mesmos”. (UdeM; UQAM, 1993, p. 5) O fórum de doutorado se revelou ser um elemento importante da proposta pedagógica e passou a ter 6 créditos, dos 3 anteriores, em 1990-1991. A oficina de pesquisa realizada com o orientador da tese passou de 9 a 6 créditos e foi dividida em dois (2 vezes 3 créditos) para promover uma maior flexibilidade. A busca por certa coerência ou até por uma coerência certa no início do programa foi então dando gradualmente lugar a uma expressão cada vez mais plural. Isso é explicado, em parte, pela evolução do número de professores. Em 1987, 22 professores eram elegíveis para o programa de doutorado (6 na Concordia, 7 na Universidade de Montréal e 9 na UQAM). Em 1993, esse número havia aumentado em 68%, com um total de 37 para as três universidades (9 na Concordia, 12 na Universidade de Montréal, 16 na UQAM). Pode-se também notar que, se os eixos 1 e 2 eram altamente dominantes em termos de interesses de pesquisa entre os professores no início do programa, o forte crescimento da participação de professores registrando suas atividades nos eixos 3 e 4, entre 1987 e 1993, favoreceu grandemente um reequilíbrio entre os quatro eixos. No entanto, o estudo da história do programa vai nos levar a considerar que as mudanças mais importantes foram feitas alguns anos mais tarde. A s m u d a n ç a s n o táv e i s d e s d e 2 0 0 5 Em 2005, a estrutura do programa tinha mudado um pouco, ou seja: 63 créditos para a tese, 21 créditos para os cursos, 6 créditos para o projeto de tese, a prova de síntese ainda não tinha créditos. Foi nesta época que aconteceram as mudanças mais significativas na estrutura do programa. Antes de prosseguir 40—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 40 5/20/14 4:31 PM para as mudanças realizadas, é importante aqui mencionar alguns novos elementos de contexto. Primeiro, outros programas de doutorado foram criados no Canadá, desde a criação do programa conjunto em Montréal. Pensamos, por exemplo, nos das universidades de Calgary, de Carleton (Ottawa) e de York (Toronto). Segundo, o período foi marcado pela graduação de estudantes matriculados no programa e também pela contratação de novos professores. Em 2012, 45 professores na UQAM, 26 na Concordia e 18 na Universidade de Montréal podem ser elegíveis para o programa de doutorado para orientar teses de doutorado em comunicação. Terceiro, os estudantes solicitaram a possibilidade de seguir um percurso mais flexível para especialmente seguir os seminários de sua escolha de acordo com seus interesses de pesquisa para realizar sua tese em seguida. Primeira mudança notável: a substituição dos quatro eixos em cinco áreas e a criação de novos cursos. Com o fim dos quatro seminários de eixos, os seminários especializados foram desenvolvidos, uma maioria vinda de um banco de cursos permanentes e uma minoria correspondente a cursos de conteúdo variável em função dos interesses de pesquisa dos professores. Isso resultou no seguinte percurso: Seminário de integração 3 créditos Quatro cursos (4x3 cr.) 12 créditos Possibilidade de trocar um seminário por uma oficina de pesquisa Fórum do doutorado 6 créditos Aceitação do projeto de tese 6 créditos Total das aulas 27 créditos Tese 63 créditos Anteriormente, tínhamos o seguinte esquema (excluindo os seminários de conteúdo variável). O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 41 41 5/20/14 4:31 PM Eixos e cursos correspondentes (antes da reforma de 2005) • Eixo 1: aspectos sociais e culturais das TICs3 As indústrias culturais Recepção das mídias As Políticas de comunicação Tecnologias de comunicação • Eixo 2: análise dos discursos e mensagens médiadas Comunicação e desempenho Teorias semióticas e hermenêuticas Discursos e representação Análise do discurso social • Eixo 3: Organização e redes de comunicação A organização como discurso: a noção de cultura organizacional Comunicação organizacional e ambientes A comunicação interpessoal nas organizações A Mudança organizacional • Eixo 4: Comunicação e Desenvolvimento Comunicação, Cooperação Internacional e Desenvolvimento Comunicação e as instituições multilaterais Comunicação intercultural Globalização dos meios de comunicação e desenvolvimento cultural 3 Tecnologias da Informação e da Comunicação. 42—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 42 5/20/14 4:31 PM Áreas e cursos relacionados (após a reforma de 2005) • Área 1: Comunicação Internacional e Desenvolvimento Comunicação e Desenvolvimento Comunicação, conflitos e paz Identidades e intercâmbios culturais Globalização das comunicações • Área 2: Comunicação organizacional e redes de comunicação. Teorias da comunicação organizacional Cultura Organizacional Comunicação e mudança nas organizações Comunicação, interações e discurso nas organizações Organização e redes de comunicação Tecnologia e organizações • Área 3: Estudos midiáticos e Cultural Studies Teorias culturais em estudos de comunicação Recepção das mídias História e historiografia das mídias e da cultura Mídias alternativas Cultura popular • Área 4: Tecnologias da Informação e Comunicação e Sociedade Indústrias Culturais Políticas de comunicação Tecnologias de comunicação e sociedade Tecnologia midiática como prática Usos das tecnologias da informação e da comunicação O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 43 43 5/20/14 4:31 PM Interação humano-computador Comunicação, democracia e poder • Área 5: Teorias e análise dos discursos Comunicação e desempenho Análise do discurso social Discursos e representação Estratégias e estilos de comunicação Discursos do Corpo O que podemos aprender com essas mudanças? Primeiro, o antigo eixo 1 Aspectos sociais e culturais das tecnologias da informação e da comunicação foi dividido em duas áreas: a área 3, Estudos midiáticos e Cultural Studies e a área 4, Tecnologia da Informação e Comunicação e Sociedade. Nesta ocasião, o campo dos Cultural Studies que não parava de se desenvolver na Universidade de Concordia foi institucionalizado. Podemos também notar o forte desenvolvimento de cursos dedicados às tecnologias, especificamente às tecnologias da informação e da comunicação (TIC). De fato, passamos da oferta de um único curso (Tecnologias da Comunicação) a cinco cursos (incluindo o curso Interação humano-computador que não inclui a palavra “técnica” em seu título). Note-se também que o termo “comunicação” tornou-se muito mais presente na área 2 do que era no eixo 3. Enquanto às áreas 1 e 5, ficaram bastante próximas aos antigos eixos 2 e 4. Não devemos esquecer a presença contínua de seminários de conteúdo variável, que foram justificados da seguinte maneira: Cada ano, o programa oferecerá uma seleção de seminários especializados representativa das diferentes áreas do programa, com cerca da metade destes seminários vindo de um banco de cursos permanentes (cursos com conteúdo determinado), a outra meta- 44—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 44 5/20/14 4:31 PM de sendo constituída por seminários atendendo às necessidades pontuais ou contemplando conteúdos particulares propostos pelos professores/professoras (cursos de conteúdo variável). (UdeM; UQAM, 2004a) Em segundo lugar, a eliminação dos eixos resultou em várias outras mudanças: nesta ocasião, os cursos dos eixos foram, naturalmente, também eliminados. Por consequência, isso permitiu que os estudantes tivessem uma oferta de cursos mais aberta, visto que antes eles tinham restrições em suas escolhas de cursos de acordo com sua inscrição em um determinado eixo. Doravante, as áreas de pesquisa representam apenas pontos de referências. No entanto, para não incentivar demasiada dispersão, um novo seminário, chamado seminário de integração, foi criado. O mesmo tinha como objetivo: Para proporcionar um lugar para a apresentação de recursos e orientações do programa e oferecer ao estudante uma série de abordagens, objetos, teorias e métodos privilegiados pelos professores do programa, e isso através dos três departamentos parceiros e das cinco áreas contempladas pelo programa. O mesmo poderá também servir para introduzir as abordagens epistemológicas e metodológicas que caracterizam o campo. (UdeM; UQAM, 2005, p. 3) Dito isto, além desta apresentação, este seminário foi dado de diferentes maneiras de acordo com os colegas que o proporcionavam. Observamos, entretanto, que essa era uma oportunidade de convidar vários colegas das três universidades que assim apresentavam suas perspectivas epistemológicas, suas escolhas teóricas e metodológicas assim como seus resultados de pesquisa. Parece-nos que isto permitia, por consequência, que os estudantes do programa encontrassem assim um ponto de vista um pouco mais global sobre os estudos em comunicação do que permitiam os seminários especializados. Estamos falando no passado porque o seminário foi posteriormente cancelado, especialmente após críticas estudantis relativas à forma como o mesmo foi dado. Terceiro, o lugar da metodologia tem sido objeto de debate. Lendo os documentos que relataram as discussões em reuniões, incluindo das jornadas O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 45 45 5/20/14 4:31 PM de estudo entre professores e estudantes, por exemplo, o dia 13 de fevereiro de 2004, verificou-se que os representantes das três universidades tinham posições divergentes sobre a importância da metodologia no currículo. A posição era muito favorável à existência de um curso obrigatório para todos os estudantes de doutorado da Universidade de Montréal. No entanto, na Concordia e na UQAM, a tendência era de não estabelecer obrigações muito fortes para os estudantes porque, na verdade, a tendência dominante era pela abertura em termos de seleção de curso. (UdeM; UQAM, 2004b) As discussões incluíram, em especial, o fato de que era impossível contemplar um curso em que todos os métodos de pesquisa mobilizados em comunicação poderiam ser apresentados e testados em detalhes. O campo dos estudos em comunicação foi considerado vasto demais para ser objeto de um único curso. Assim, decidiu-se que os métodos de pesquisa e além, a metodologia, deviam ser tratados mais especificamente em cada seminário. Isso refletiria assim a diversidade, tornando-se a característica número um dos estudos em comunicação. Nota-se também que cada colega pode desejar dar um curso com enfoque metodológico no contexto de um seminário com conteúdo variável. Mas isso depende doravante apenas das iniciativas pessoais pontuais e da maneira como essas propostas serão recebidas pelos membros dos comitês de programas locais e conjuntos encarregados da atribuição dos cursos a cada ano. Em quarto lugar, os elementos de bibliografia obrigatórios para a prova de doutorado foram removidos com o fim dos eixos em 2005. Em seguida, dois anos depois, foi a questão única que foi excluída. Até então, na verdade, todos os estudantes deviam responder à mesma pergunta. No final da década de 2000, antes de sua remoção, a pergunta era a seguinte: “Exponha as principais correntes de pensamento em seu campo de pesquisa e desenvolva uma reflexão crítica em relação a essas correntes. Na conclusão de sua prova, indique a relevância desta reflexão para seu projeto de tese”. Doravante, os professores membros dos comitês da prova de síntese, rebatizada na ocasião prova de doutorado, tiveram a possibilidade de eles mesmos escolherem as duas perguntas que seriam respondidas pelo estudante. Essa mudança foi explicada como se referindo à autonomia acadêmica tanto dos professores, quanto dos estudantes. Durante uma jornada de es- 46—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 46 5/20/14 4:31 PM tudo realizada em 3 de novembro de 2000, alguns professores tinham até se perguntado se a imposição de tal bibliografia não era incompatível com o princípio da liberdade acadêmica. Mais uma vez, nos afastamos mais um pouco de um modelo acadêmico normativo para favorecer um modelo à la carte. Em quinto lugar, em 2005, a possibilidade de realizar a tese em pesquisa-criação, e não apenas da forma tradicional em pesquisa, foi introduzida. Na verdade, a possibilidade foi introduzida em Concordia e na Universidade de Montréal, mas não na UQAM, onde o programa de mestrado em pesquisa-criação era, contudo, dinâmico. O problema era principalmente de ordem institucional e deveria ser resolvido em breve, após mais de sete anos. De qualquer forma, a abertura para a pesquisa-criação abriu ainda mais o campo da comunicação visto que, segundo a definição de uma tese de pesquisa-criação, a mesma deve incluir os elementos seguintes: A tese de pesquisa-criação inclui um componente de prática de criação ou de produção inovadora na área dos meios/comunicações, e um componente de escrita. Ela responde aos mesmos requisitos que a tese-pesquisa tradicional, salvo o tamanho do componente de escrita (cerca de 150 páginas). Continuidade em termos de requisitos e especificamente da coerência da problemática até a metodologia, passando pelo quadro teórico, mas também mudança com a introdução de um trabalho de criação que se refere à produção. Pa r a c o n c l u i r A reforma de 2005 foi baseada nos seguintes objetivos: O principal objetivo da reforma é a introdução de uma maior flexibilidade no programa, sem sacrificar a coerência. Isso representa um grande desafio, especialmente tendo em conta as três culturas departamentais que coexistem dentro do programa. A reforma proposta tem por objetivo, portanto, manter e fortalecer a natureza conjunta do programa, enquanto permite O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 47 47 5/20/14 4:31 PM uma maior margem de manobra para as unidades locais. Mais importante ainda, ela também pretende fornecer um percurso mais individualizado para cada estudante, inclusive eliminando a necessidade de o estudante se associar fortemente com um determinado eixo desde o início de seu programa de estudos. Finalmente, pretende-se atualizar a cara do programa, substituindo os quatro antigos ‘eixos’ em seis ‘áreas’, para melhor refletir a orientação global do programa e dos interesses de seus membros. (UdeM; UQAM, 2004c) Introduzir uma maior flexibilidade no programa, mantendo a sua coerência. Flexibilidade e coerência. Não é tão óbvio, nem tão simples, combinar as duas qualidades. Como vimos anteriormente, a coerência estava definitivamente presente na criação do programa e essa qualidade era provavelmente necessária de qualquer maneira para que ele fosse aceito pelo Ministério da Educação do Québec. Mas ela continua sendo uma característica marcante do programa? Podemos ao menos nos permitir formular essa pergunta. Ao longo do tempo, a ênfase tem sido colocada na flexibilidade e, como já mencionado, na diversidade. De outra parte, é preciso dizer que o próprio campo dos estudos em comunicação vem se tornando cada vez mais complexo e isso muito além de Montréal e do programa conjunto. Podia-se ler, dessa forma, o trecho que se segue, extraído do Projeto de maior modificação do programa em 2005: O campo das comunicações evolui rapidamente. A inovação tecnológica e social é constante. Um programa elaborado há mais de dez anos não podia integrar, por exemplo, todos os fenômenos associados com o desenvolvimento do multimídia e da Internet. As problemáticas da globalização também passaram por mudanças significativas na última década e os movimentos sociais antiglobalização também têm crescido consideravelmente. Cada um desses fenômenos comunicacionais – e seus componentes econômicos, sociais e políticos – levou à realização de muitos estudos e à publicação de uma quantidade considerável de livros, documentos e artigos. A abordagem de ‘Cultural Studies’, por exemplo, tão importante na tradição Inglesa, diversificou-se consideravelmente. 48—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 48 5/20/14 4:31 PM A análise do discurso, a semiologia e a retórica continuaram seu desenvolvimento e sua contribuição para a compreensão dos conteúdos. A história das ciências da informação e da comunicação tem sido enriquecida por muitas novas contribuições. A teoria da difusão tem sido alvo de críticas consideráveis e de novas abordagens, como a teoria da tradução, surgiram como alternativas de explicação. A teoria das indústrias culturais e a economia política da comunicação se tornaram mais complexas e formularam críticas importantes acerca da sociedade da informação e da economia do conhecimento. A apropriação das tecnologias digitais tem levado ao desenvolvimento de novas teorias dos usos, dos objetos (como o corpo) foram problematizados e teorizados em uma perspectiva comunicacional. (UdeM; UQAM, 2005, p. 6) Em paralelo, a composição do corpo docente das três universidades continuou a crescer e a se diversificar. Na UQAM, em 2011-2012, havia 31 professores no Departamento de Comunicação Social e Pública e 30 professores na Escola das Mídias, 45 podendo ensinar e/ou orientar teses de doutorado. Na Universidade de Montréal, o Departamento de Comunicação tinha 18 professores. Na Universidade de Concordia, o Departamento de Estudos de Comunicação tinha 26. A maioria podia ensinar e/ou orientar teses. Deve-se notar aqui que todos os professores qualificados para dar aulas não podem necessariamente ensinar e orientar teses. Na verdade, ter um doutorado e ter experiência em pesquisa não é o suficiente para poder orientar teses de doutorado. Ser autorizado a orientar este tipo de trabalho requer a apresentação de uma aplicação que será considerada tanto pelo comitê de programa local da universidade de origem do candidato quanto pelo comitê do programa conjunto. Para fazer isso, é necessário demonstrar atividades de pesquisa, especialmente durante os últimos cinco anos e ter experiência em orientação. Em outras palavras, ter orientado três teses de mestrado com sucesso para se candidatar (no caso da UQAM). Portanto, os professores em início de carreira não podem orientar tese. Finalmente, é a flexibilidade, a diversidade que tem prevalecido e tivemos a oportunidade de observar, durante o colóquio dos estudantes realizado em abril de 2013 sobre os Desafios e Futuros de comunicação, que esta quali- O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 49 49 5/20/14 4:31 PM dade, a diversidade, era considerada muito positiva pela maioria dos nossos colegas, começando com os de língua inglesa. Isso tudo é um pouco preocupante, pois é questionável até que ponto não há aqui uma falta flagrante de vontade de refletir profundamente sobre a natureza dos estudos em comunicação. Dito isto, nenhuma situação está imutável, porque o programa de doutorado sempre se baseou na constante adaptação em vários procedimentos de avaliação parciais, especialmente em torno das jornadas de estudo. Assim, em uma reunião do subcomitê sobre a reforma curricular realizada em 27 de janeiro de 2003, se contemplou a possibilidade de manter apenas três eixos: 1) Mídias e tecnologias, 2) Práticas culturais e interculturais; 3) Redes, comunidades e organizações. Havia também a questão da revisão dos eixos a cada cinco anos para refletir sobre a natureza sempre em mudança dos estudos em comunicação, bem como o perfil dos professores contratados ao longo dos anos nos departamentos. Desde então, continuamos a assistir ao questionamento de um modelo pedagógico baseado em padrões, em favor de um modelo que depende muito da escolha do estudante e da liberdade acadêmica dos professores. Esta evolução correspondeu simultaneamente à diversificação das perspectivas desenvolvidas no contexto dos estudos em comunicação e à vontade de aumentar as escolhas para os estudantes em termos de curso. Mas nada diz que esta tendência dominante no momento não encontrará uma tendência contrária, por exemplo, se houver contratação de novos colegas que têm um doutorado em comunicação, seja do programa conjunto ou de outro lugar. Suas sensibilidades em favor de uma reflexão sobre o que são os estudos em comunicação poderiam, talvez, mudar esta situação. Isso ilustra o quanto as dimensões epistemológicas e institucionais são, decididamente, intrinsecamente ligadas. R e f e r ê n c ia s UdeM - UNIVERSIDADE DE MONTRÉAL; UQAM - UNIVERSIDADE DE QUÉBEC. Parecer do Conselho de Universidades para o Ministro da Educação e da Pesquisa. Projeto de programa conjunto de doutorado em comunicação apresentado pela Universidade de Concordia, a Universidade de Montréal e a Universidade de Québec. Montréal: Québec,1987. 50—Éric George teoria-meios-comunicacao_v1.indb 50 5/20/14 4:31 PM UdeM - UNIVERSIDADE DE MONTRÉAL; UQAM - UNIVERSIDADE DE QUÉBEC. Projeto de reforma do programa, Versão 2.2. Montréal: Québec, 20 abr. 2004a. ______. Projeto de reforma do programa, versão 2.0. 5 abr. Montréal: Québec, 2004c. ______. Projeto de maiores modificações do programa, em 2005. Programa conjunto de doutorado em comunicação da Universidade de Concordia, da Universidade de Montréal e da Universidade do Québec em Montréal. Montréal: Québec, 2005. ______. Relatório de evolução 1987-1993. Programa conjunto de doutorado em comunicação da Universidade de Concordia, da Universidade de Montréal e da Universidade do Québec em Montréal. Montréal: Québec, 1993. ______. Tabela síntese das consultas, em 2004. Programa de doutorado conjunto em comunicação da Universidade de Concordia, da Universidade de Montréal e da Universidade do Québec em Montréal. Montréal: Québec, fev. 2004b. O campo dos estudos em comunicação no Canadá— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 51 51 5/20/14 4:31 PM teoria-meios-comunicacao_v1.indb 52 5/20/14 4:31 PM Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto Notas sobre a atualidade dos trabalhos de Goody Oumar Kane Introdução O primeiro capítulo de A razão gráfica (La raison graphique) de Jack Goody (1979) abre em destaque com uma citação do poeta senegalês Léopold Sédar Senghor: “A emoção é negra, a razão helênica”. Palavras às quais ecoam imediatamente a refutação do escritor nigeriano Wole Soyinka que contesta a validade da teoria estética da negritude e acusa a mesma de tentar essencializar certos traços culturais, e de retomar o “silogismo racista” característico do debate ideológico europeu. teoria-meios-comunicacao_v1.indb 53 53 5/20/14 4:31 PM E é, em parte, entre os extremos deste debate que Goody procura efetuar uma mediação, através de seu interesse pelos modos de comunicação dominantes nas sociedades humanas e sua análise das relações entre meios de comunicação e modos de pensamento. Seu primeiro campo antropológico será, para este propósito, a sociedade LoDagaa do Gana. As mediações operadas pelos sistemas e os modos de comunicação são determinantes aos olhos de Goody, o conceito de mediação permitindo-lhe se colocar à revelia tanto das teses materialistas como das espiritualistas. Entretanto, ele não subestima as implicações da escrita que perturbam até os procedimentos cognitivos humanos. Este é o objetivo do conceito de tecnologias do intelecto, que ele forjou para relatar este processo. Um pouco como Harold Innis, mas partindo de uma perspectiva diferente, Goody tenta explicar a organização social não supondo uma “mentalidade pré-lógica primitiva” ou um “milagre grego”, mas, ao contrário, estabelecendo uma correlação com os modos de comunicação da oralidade e da escrita. Ao fazer isso, ele arranha en passant Lévi-Strauss que, com sua distinção entre sociedades quentes e frias e seu conceito de “pensamento selvagem”, teria se colocado na linha de Lévy-Bruhl. Este último, cuja influência científica não poderia ser superestimada, mobilizou as noções de “mentalidade pré-lógica” e de “mentalidade lógica”, sem considerar a influência determinante dos meios de comunicação sobre a produção do social e sobre os processos cognitivos. Para Goody, a escrita influencia a organização social e as relações sociais, e nisto ele concorda com Innis. Mas ele vai mais longe, porque para ele a influência da escrita sobre os processos cognitivos e sobre o desenvolvimento da ciência é determinante: “Sem listas e sem tabelas, não há bio-logia (é um logos científico); sem saber escrever, não há matemática e sem traços sobre uma folha, não há geometria; sem mapas ou esquemas não tem geografia (está escrito na própria etimologia da palavra!)”. (GOODY, 2007, p. 238) Sem que um diálogo explícito tenha se estabelecido entre os dois estudiosos, manifestadamente eles se empenharam em analisar os mesmos fenômenos com a mesma ambição teórica e a mesma perspectiva histórica, com resultados por vezes convergentes, por vezes irreconciliáveis. Vamos tentar identificar alguns dos fios desta emaranhada teia teórica que tem grandes implicações nas ciências da comunicação e na teoria mediática. Parece-nos também que este questionamento cruzado dos trabalhos de dois pesquisa- 54—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 54 5/20/14 4:31 PM dores a partir de categorias que lhes são comuns é relevante e merece ser complementado por uma aproximação de Goody e de McLuhan. Em outras palavras, nos parece que a obra de Goody seja uma mediação útil, se não necessária, para qualquer comparação entre McLuhan e Innis. Este desvio pela antropologia britânica permite estabelecer a ligação entre os pesquisadores da Escola de Toronto, na qual se costuma classificar Innis e McLuhan. No entanto, vamos nos restringir, no âmbito deste artigo, a iniciar um diálogo entre Goody e Innis. Em um segundo momento, traremos as contribuições de Herrenschmidt, que se interessa pela semiologia das escritas, a fim de questionar a relevância da obra de Goody para pensar novas formas de registro, incluindo as formas correlativas ao desenvolvimento da informática e das redes informáticas. Goody servirá como pivô para questionar seu predecessor (Innis), antes de ser ele mesmo questionado por trabalhos mais recentes que estudam os mesmos objetos que ele (Herrenschmidt). A partir deste diálogo duplo, esperamos mostrar a importância da contribuição de Goody para a teoria mediática nas ciências da comunicação. a. Innis à luz de Goody Em sua introdução a The Bias of Communication, uma das principais obras de Innis (1968), Marshall McLuhan afirma que o livro é o resultado de uma investigação sobre as causas das mudanças nas sociedades humanas, e que seu autor é um identificador de patterns em dadas conjunturas históricas. É ao estudo desses patterns ou formes que Innis e Goody se dedicaram, a partir de culturas disciplinares diferentes, mas com implicações importantes para as ciências da comunicação. Ou seja, o estudo dos determinantes relativamente estáveis n o estudo dos meios foi o objeto da atenção destes autores, o que não deixou de expô-los a grandes salvas de críticas. A e s c r i ta e n t r e m e i o s , m o d o d e c o m u n i c a ç ã o e t e c n o l o g ia d o i n t e l e c t o Quais são os meios aproveitados pelo letramento (literacy) para construir seu poder e seu império sobre a sociedade? Goody se vale do conceito de modos Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 55 55 5/20/14 4:31 PM de comunicação, seguindo duas modalidades bastante distintas. Em A razão gráfica, o modo de comunicação é explicitamente enviado ao modo de produção de Marx: “não se pode realmente separar – para, em outro contexto, me servir da terminologia de Marx – os meios de comunicação das relações sociais, que em conjunto formam o modo de comunicação”. (GOODY, 1979, p. 100) A evocação da relação entre os modos de comunicação e os modos de produção e de reprodução do pensamento é muito clara, sendo que é graças aos primeiros que os homens estão em interação mútua e “transmitem de geração em geração sua cultura e seus padrões de comportamento’”. (GOODY, 1979, p. 86) Mais recentemente, Goody (2007) parece distanciar-se do registro marxiano e usa a expressão “modos de comunicação” como sinônimo de meios de comunicação ou tecnologia do intelecto.1 De fato, ele afirma que o letramento não é um substituto para a oralidade como o capitalismo substituiu o feudalismo (ou o feudalismo a escravidão), mas que nasce um processo de articulação entre a escrita e a oralidade no seio mesmo das sociedades. O conceito de interface permite dar contar dessa articulação. O problema da interface, ou seja, da coexistência de várias tecnologias do intelecto (ou meios na terminologia de Innis) é analisado de forma muito diferente pelos dois autores. Goody fala de uma “interface dissimétrica” entre a escrita e a oralidade, devido à superioridade da segunda sobre a primeira, daí o termo ecricultura por ele cunhado. Assim, aqueles que não dominam a escrita numa cultura escrita são rotulados de disléxicos. Estamos muito longe do conceito de equilíbrio que sustenta a teoria innissiana e o faz lamentar a idade de ouro da oralidade no momento em que o viés espacial está em seu pico. Voltaremos mais adiante a essa divergência teórica entre os dois autores. O termo medium ou meio não é usado por Goody, ao contrário de Innis (1971) que o utilizou em sua ampla extensão, pois, para ele, o trilho ferroviário, por exemplo, era um medium de comunicação. A diferença entre Goody e Innis concerne, em parte, ao fato de que Innis se interessa pela comunicação a partir de uma abordagem de economia política, enquanto Goody se concentra na escrita enquanto tecnologia, o que tem 1O termo se refere às “operações concretas e formais, práticas e cognitivas, linguísticas e culturais que a escrita permite num modo específico e intensivo.” ( GOODY, 2007, p. 242) 56—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 56 5/20/14 4:31 PM implicações diretas para a cognição (o saber) e indiretas para o poder. Para Innis (1971), as tecnologias são os meios (meios de comunicação), que permitem o contato entre civilizações e definem os contornos de suas economias domésticas, enquanto para Goody,2 trata-se de entender o funcionamento das culturas partindo não de uma análise culturalista (que ele critica qualificando-a de culturalismo difuso ou de relativismo difuso), mas considerando as tecnologias que estas civilizações dispõem e que, ao mesmo tempo, dão-lhes forma de maneira significativa. Outra semelhança entre os dois autores está relacionada à perspectiva agnóstica comum, considerando que os meios ou modos de comunicação induzem uma dissimetria dentre os atores sociais e nas relações de poder em função dos vieses (bias)3 que lhes são inerentes (INNIS, 1968, 1972) ou das exclusões que elas induzem. (GOODY, 1979, 1986) As análises dos dois autores em termos de dependência encontram ecos explícitos na evocação da situação colonial que caracterizava, ainda fortemente enquanto escreviam, tanto as sociedades africanas analisadas quanto a situação colonial (ou quase colonial no caso do Canadá) que queria retratar Innis ao se interessar pelas fontes da dependência entre as periferias e os centros imperiais em diversas conjunturas históricas. Neste sentido, encontra-se nos dois autores uma perspectiva crítica, mesmo se as escolhas normativas subjacentes são opostas, com destaque para a escrita em Goody4 e com destaque para o tempo (e, portanto, para a oralidade) em Innis (1968, p. 190, tradução nossa): “Meu preconceito é com a tradição oral, particularmente como refletido na civilização grega e com a necessidade de recuperar algo de seu espírito”.5 Esta oposição entre tempo e 2Ele também usa o termo “civilização”, mas em seu sentido hierárquico, como uma forma de sociedade caracterizada por certo grau de progresso. (GOODY, 2007, p. 195) 3Além disso, o viés espacial dos mídias identificado por Innis tem, segundo ele, como resultado uma espacialização e fragmentação do espaço em unidades mensuráveis, que tem uma afinidade com a cultura da escrita e o desenvolvimento de unidades de medida de alta precisão mencionadas por Goody (2007). 4 Goody (2007, p. 15) teria provavelmente respondido que Innis alimentava assim uma “nostalgia das oralidades perdidas”. 5 “My bias is with the oral tradition, particularly as reflected in Greek civilization, and with the necessity of recapturing something of its spirit”. Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 57 57 5/20/14 4:31 PM escrita é superficial e só permanece válida se ficar circunscrita à teoria innissiana dos vieses (bias) mediáticos. Levando a análise mais longe, podemos ver que ambos os autores concordam apesar de sua discordância, pois em seus respectivos sistemas cada um dá preferência ao tempo: preferência do tempo sobre o espaço (Innis) e preferência do tempo sobre a não cumulatividade (Goody). Em última análise, por causa de seus diferentes modos de conceituação e perspectivas normativas (mais explícita em Innis do que Goody), ambos os autores privilegiam o tempo, o que leva a um privilégio concedido à oralidade em Innis e à escrita em Goody. Em outras palavras, a divergência mediática esconde um acordo ontológico sobre a categoria temporal. Esta discordância é simplesmente ligada às implicações que eles dão à oralidade. Onde aparece claramente uma diferença significativa entre os dois autores, é na caracterização da oralidade como time-binding e como promovendo a continuidade para Innis. No seu conjunto, a obra de Goody tratou de refutar essa interpretação que considera que as culturas orais das sociedades são movidas pela reprodução do mesmo e a identidade de si mesma. Goody argumenta que as culturas orais são inerentemente inovadoras e caracterizadas pela mudança. Então, para ele, a escrita é muito mais time-binding que a fala, e assim se opõe drasticamente a Innis e sua hierarquia dos suportes midiáticos (Figura 1). Figura 1 - Hierarquia de viés por tipo de mídia Fonte: BABE, 2000, p. 75. 58—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 58 5/20/14 4:31 PM Sobre esta questão dos suportes, vemos novamente os dois autores não se oporem, mas se interessarem em aspectos diferentes do mesmo problema. Ambos estão focados na materialidade dos suportes, mas enquanto Innis (1972) enfatiza a difusão e o manuseio do papiro ou do pergaminho, Goody se interessa, por sua parte, a sua conservação e ao efeito da sua degradação sobre a memória e a cumulatividade do conhecimento. É por causa desse interesse nos processos cognitivos que Goody (2007) chega a distinguir os fenômenos que seguem uma lei acumulativa (aritmética), e aqueles que obedecem a uma lei cumulativa (geométrica). Obviamente as mudanças induzidas por estes últimos na organização social são muito mais importantes, como atesta amplamente o caso da escrita através do tempo e do espaço de acordo com Goody. A e s c r i ta e s ua s i m p l i c a ç õ e s : o p r o b l e m a d a c au s a l i d a d e Para Goody, a língua não é um simples meio de comunicação, mas um instrumento de produção do social e do cognitivo. O mesmo acontece com a escrita enquanto tecnologia do intelecto. Suas relações com o poder são manifestas de várias maneiras. Em um capítulo intitulado Escrita e revolta na Bahia, Goody (2007) revela o papel da escrita na série de revoltas entre 1807 e 1835 em Salvador, na Bahia, uma província brasileira produtora de açúcar. Os líderes desta revolta foram escravos e homens livres muçulmanos que tinham o domínio da escrita árabe. Com base nomeadamente numa vasta literatura que inclui o trabalho de Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, na qual ela analisa o papel do Islã na Bahia no século XIX, Goody argumenta que as figuras de proa destes eventos foram membros de culturas guerreiras, mas destaca o domínio da escrita e da leitura em árabe como a caraterística mais determinante de sua liderança nas revoltas mencionadas. Como prova disso, depois de 1835, muitos negros libertos que sabiam ler e escrever foram devolvidos à África para evitar a agitação social. (GOODY, 2007, p. 140) Os efeitos do Islã sobre as revoltas nas Américas não seriam devidos ao Islã em si, mas ao fato de que se trata de uma “religião do Livro”, que podia, assim, transmitir fielmente uma Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 59 59 5/20/14 4:31 PM mensagem de respeito da norma religiosa à qual os alfabetizados podiam se referir, se mantendo a distância das formas sincréticas amplamente difundidas no Brasil e favorecidas pelas autoridades. (GOODY, 2007, p. 152) Mais amplamente, a relação entre a escrita e o proselitismo religioso é analisada extensivamente por Goody (1986, 2007). Em Poderes e saberes da escrita, ele considera que o proselitismo religioso é uma implicação6 (2007, p. 212, 244) da escrita e da existência de um livro sagrado como um conjunto de crenças fixas, e desenvolve, de maneira convincente, os efeitos da escrita sobre a organização social e em seus subsistemas (direito,7 religião,8 economia etc.) a longo prazo. Sobre as implicações da escrita, a análise converge em Innis e Goody: o alto grau de abstração da escrita, a possibilidade de padrões éticos e da lei, a possibilidade de aparições dos profetas são evocados explicitamente pelos dois autores. Em outras palavras, a aparição do universal como categoria do entendimento se torna possível devido à descontextualização radical que a escrita permite em relação a uma palavra que, por sua vez, está sempre situada hic et nunc. (GOODY, 1986; INNIS, 1968) Mas as dificuldades metodológicas ligadas ao empreendimento científico são enormes, considerando as críticas às quais as mesmas expõem os escritores que nele se engajam. As críticas de determinismo unifatorial (técnico ou não), de perspectiva unilinear ou de funcionalismo, se opõem regularmente à pesquisa antropológica. A questão do determinismo ainda está pendente e a análise de Goody pretende ser muito conservadora na medida em que ele usa o conceito de tendência e não o de causa. Ele considera que se 6E não das consequências, termo que induz a ideia de efeitos mecânicos e forçados. É interessante notar que Innis (2004, (p. 34, grifo nosso) também evita usar uma terminologia causalista e recorre repetidamente ao mesmo termo implications: “I have attempted to suggest that Western civilization has been profoundly influenced by communication and that marked changes in communications have had important implications.” (INNIS, 1968, p. 3) ou ainda mas especificamente: “We can do little more than urge than we must be continually alert to this implications of the bias and perhaps hope that consideration of the implications of other media to various civilizations may enable us to see more clearly the bias of our own.” 7A existência da lei (vs. direito costumeiro) está relacionada com o aparecimento da escrita que permite documentar os antecedentes. 8 “O letramento fabrica também a ortodoxia, principalmente as religiões escritas que fixam uma vez por todas (?) uma versão das escrituras e procuram impor uma única leitura, uma só interpretação”. (GOODY, 2007, p. 237) 60—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 60 5/20/14 4:31 PM a escrita tem implicações manifestas sobre a organização social, se trata mais de uma radicalização de fatores presentes na sociedade oral do que de uma verdadeira revolução. A este respeito, sua tese em A razão gráfica (1979), segundo a qual as sociedades da escrita são mais conservadoras e as sociedades da oralidade mais inovadoras é mantida em A lógica da escrita (1986). Goody responde à crítica de determinismo tecnológico, argumentando que ele não sustenta que a escrita seja o único fator, mas que é um fator significativo do qual tentou distinguir as implicações em longo prazo sobre a organização social e cognitiva. Isto não significa negar que a organização social e as tecnologias do intelecto sejam “sistemas dialéticos em interação”. (GOODY, 1986, p. 9) Innis, de forma idêntica, foi acusado de determinismo tecnológico, notadamente por Rogers (1997) sobre o motivo que, em sua análise, os meios de comunicação determinam a organização social. Mas o conceito de viés (bias) é justamente escolhido por Innis para mostrar que não há inferência automática no sentido que Goody dá ao termo “consequências”, mas que têm fatores facilitadores ligados aos diferentes meios. Em Goody, tanto quanto em Innis, os modos de comunicação têm certamente uma influência sobre a organização social, mas a seus olhos toda a monocausalidade deve ser rejeitada. Aqui vemos um ponto muito claro de convergência entre os dois autores sobre a inter-relação entre os processos de difusão do conhecimento e os modos de comunicação: O impacto da ciência sobre o desenvolvimento cultural foi evidente em sua contribuição para o avanço tecnológico, particularmente na comunicação e na disseminação do conhecimento. Por sua vez, isto ficou claro nos tipos de conhecimentos disseminados, quer dizer, a ciência vive sua própria vida não apenas no mecanismo que proporciona a distribuição de conhecimento, mas também no tipo de conhecimento que será distribuído. (INNIS apud BABE, 2000, p. 61) Da sua parte, Goody (2007, p. 197) estava muito consciente das críticas que enfrentaria ao desenvolver o conceito de tecnologias do intelecto. Este conceito suscita fortes oposições, porque supõe uma “determinação por forças externas não humanas”. Ele opõe a esta crítica recorrente, que McLuhan Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 61 61 5/20/14 4:31 PM e Innis também enfrentaram argumentos contrários, sendo os dois mais importantes os seguintes: 1) a determinação é uma causalidade monofatorial, mas muitos outros fatores culturais específicos interferem. Segundo Goody, é preciso discriminar dentro da cadeia das implicações e evitar o uso de um culturalismo difuso, que não explica nada; 2) a tecnologia não é de forma alguma não humana, uma vez que é o produto da atividade humana. Já em A razão gráfica ele chamava a atenção contra o uso das explicações unilineares e monocausais para explicar a complexidade de “assuntos humanos”. Mais uma vez, ele opta por uma via mediana entre escolher uma causa única e rejeitar qualquer explicação causal, entre afogar tudo na causalidade estrutural ou a coerência funcional e isolar um único fator material como causa dominante ou mesmo determinante; permanece aberto todo o campo de feixes de causas convergentes, dos mecanismos de retroação, dos meios de avaliar o peso relativo de uma pluralidade de causas. (GOODY, 1979, p. 49) C o n v e r g ê n c ia s e d i v e r g ê n c ia s d e I n n i s e G o o dy Um ponto de concordância entre os dois autores diz respeito ao grau de abertura ou fechamento das sociedades orais. Innis (1968) se refere a isso ao falar de elasticidade enquanto Goody (2007) fala de inovação ou de pura variação9 (1979). Mas as conclusões que tiram são opostas, já que para Innis o costume supostamente detém uma força vinculativa em termos de respeito da norma. Goody usa o mesmo conceito de costume (de acordo com ele, a lei é um privilégio das culturas da escrita), mas para mostrar que costume, inovação e mudança são normas que andam de mãos dadas nas culturas orais. O conceito de monopólio, importante para Innis, é homólogo ao de “difusão restrita”, conforme definido por Goody no registro da exclusão. Por exemplo, o caso da epopéia de Gilgamesh que Goody evoca e que teria tido 9Isto é provavelmente porque ele prefere o sintagma “formas orais padronizados” ao conceito polêmico de “literatura oral” para explicar a estabilidade de determinadas produções em culturas orais. 62—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 62 5/20/14 4:31 PM uma “difusão escolar”, caracterizada pelo controle da escrita por um grupo especializado. É neste sentido que uma perspectiva agnóstica está presente na obra de ambos os autores. Isto permitiu, por exemplo, a autonomização de uma organização distinta do Estado, dotada de recursos e de alto grau de legitimidade: a Igreja. (GOODY, 1986) Embora menos explícita do que em Innis, vemos aparecer aqui a análise política, quando da análise da posse da técnica da escrita e de sua restrição a apenas uma parte da sociedade. De outra parte, o conceito de tecnologia do intelecto está destinado a reconciliar os termos de binarismo, que são o (plano) material do qual participam as tecnologias e o (plano) espiritual do qual sai a vida intelectual. É uma forma para Goody de mostrar que as mutações tecnológicas têm implicações cognitivas importantes ao nível individual (ontogenético) e coletivo (filogenético). Para Innis, o suporte mediático induz os vieses sobre a organização social e o exercício do poder. Este é o significado de sua famosa análise frequentemente citada: De acordo com suas características, ele [um meio de comunicação] pode ser mais adequado para a disseminação do conhecimento ao longo do tempo do que sobre o espaço, especialmente se o meio é pesado e durável e não é adequado para o transporte ou para a difusão do conhecimento sobre o espaço ao invés do tempo, particularmente se o meio é leve e facilmente transportado. A relativa ênfase no tempo ou no espaço implicará uma[sic] viés de significação para a cultura no qual ela está inserida. (INNIS, 1968, p. 33) Estas palavras colocam com clareza o alcance da perspectiva innisiana e a causa de seu interesse nos suportes mediáticos. Elas ressoam com a análise de Goody (2007, p. 46), que examina as mudanças ligadas às diferenças entre os modos de comunicação: O que dizíamos então, e que mantemos ainda, é que é mais razoável combinar determinados aspectos das diferenças ou das alterações perceptíveis (isto é, as diferenças vistas num quadro dinâmico e evolutivo) com as diferenças ou alterações nos meios e modos de comunicação do que às artes de uma cultura ou ao gênio de um povo. Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 63 63 5/20/14 4:31 PM Assim para Goody (2007), o interesse na materialidade da escrita continua central, mas é a escrita em si como tecnologia, em vez de seus suportes, que chama sua atenção. Ainda se acrescenta o papel central da memória que é, de alguma maneira, objetivada e desterritorializada sob a forma de traços escritos, o que permite um conhecimento cumulativo e uma crítica reforçada. As mudanças nos modos de comunicação levam a mudanças substanciais nos modos de armazenamento e nas formas de acesso a um conhecimento acumulado. Esta é uma das funções da escrita, de favorecer uma mudança neste domínio, mudança no sentido de uma maior fidelidade dos traços em comparação com a oralidade. b. Goody frente à proliferação das escritas Nos parágrafos seguintes, vamos evocar a proliferação das escritas e das inscrições correlativas das inovações tecnológicas recentes. Uma atenção particular será dada à moeda e à informática que são caracterizadas, respectivamente, por uma escrita aritmética e digital. Este processo não é de nada linear, tanto do ponto de vista da historicidade dos suportes (antiguidade da moeda) que das idas e voltas (a etimologia do código remete ao antigo codicilo). Sobre a escrita aritmética Em trabalhos sobre as implicações da escrita, Goody e Watt (1968) focalizam o caráter específico da escrita alfabética em relação a outras formas de escrita. Mais recentemente, Goody (2007) reconheceu que este privilégio concedido à escrita alfabética era devido à influência exagerada que os trabalhos de Havelock (1981) tiveram sobre eles na época. Isso o levou a reconsiderar sua posição inicial e ampliar o espaço de seu interesse a outras formas de escrita. Mesmo assim, é essencialmente a escrita da língua e a cultura letrada decorrente10 que consistentemente tem sido focada em seus trabalhos. Seu interesse reside na 10O letramento designa, segundo Goody, mais do que competência técnica de leitura e de escrita, refere-se à possibilidade de recorrer a esta competência, a fim de atingir os seus fins. 64—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 64 5/20/14 4:31 PM escrita da língua como inovação gráfica, apesar ou por causa da diversidade de contextos sócio-históricos que analisa. Para outros autores, no entanto, a escrita da língua é uma forma de escrita entre outras, e não é por acaso que, enquanto Goody fala da escrita (no singular), Herrenschmidt usa o termo no plural em seu livro As três escritas. Herrenschmidt (2007) estabelece uma distinção entre a escrita da língua (que segundo as grafias podem mobilizar unidades diferentes) e aquela dos números (sob a forma de algarismos):11 escrita linguística e escrita aritmética são assim dois modos de registro diferentes que respondem a modalidades específicas de organização. Sobre o antigo Oriente Médio, Goody considera que a escrita está relacionada com a circulação de bens e a utilização da moeda no âmbito de uma economia de mercado. Mas se interessa menos pelas inscrições e por aquilo que seria uma escrita aritmética. Assim, considera somente a finalidade da moeda, e não sua materialidade ou especificidade gráfica. Quando ele fala das incidências da alfabetização e monetização sobre a organização social, evoca Parsons (apud GOODY, 1986, p. 177), que parece mais próximo do que ele a considerar a moeda como medium institucionalizado possuindo “as propriedades de uma linguagem e de um meio de comunicação”. Para Herrenschmidt, a moeda cunhada foi um suporte de escrita de algarismos, uma escrita monetária aritmética, os algarismos, neste caso, considerados como unidades aritméticas e não linguísticas. Isso tem implicações em termos de circulação e recepção muito mais amplas do que a perspectiva goodiana permite captar quando focaliza somente na escrita linguística. A escrita monetária aritmética favoreceu uma economia de troca, mas manteve-se atrelada a uma tradição vernacular, cujo processo está à revelia da circulação dos escritos acadêmicos (linguística e matemática) caracterizados por seu cunho restrito, na acepção de Goody. O processo de crescente abstração é fundamental em termos de escrita de algarismos. As unidades de medida (milhas, côvados, dedo etc.), antes inseparáveis da prática social, resistiram à imposição de um sistema métrico abstrato válido em qualquer lugar, a qualquer momento e o 11Uma distinção operacional entre o número e o algarismo seria que o primeiro é uma unidade aritmética, e o segundo uma entidade gráfica. Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 65 65 5/20/14 4:31 PM mesmo para todos. Outrora, as unidades de medida não somente não valiam o mesmo, dependendo do local, mas a mesma unidade mudava, dependendo da natureza rara ou preciosa do produto medido: “De facto, a mesma medida como o minot valia 3 bushel no caso do trigo, 4 se fossem sal e 5 se medimos aveia”. (HERRENSCHMIDT, 2007, p. 342) A grande variabilidade dos instrumentos de medição foi assim reduzida com a institucionalização do espaço de trocas econômicas de unidades abstratas e, dessa forma, universalizáveis: As primeiras moedas permitiram ver a materialização de vários buris, em seguida, as moedas da região grega dos séculos V e IV A.C. difundiram uma escrita de números e suas relações sob a forma geométrica, uma escrita específica que, oriunda da pesquisa matemática, ganhou a via gráfica das moedas, espalhando-se no social, encontrou dificuldades teóricas e retornou ao domínio matemático. (HERRENSCHMIDT, 2007, p. 226) Mais tarde, com o surgimento da impressão, a variedade de suportes se amplia e o papel permite acrescentar cartas de câmbio, cheques e notas promissórias ao panorama de suportes mediáticos monetários. Este processo levou finalmente à consolidação das economias-mundos analisadas por Braudel (1985). Apesar de sua especificidade em relação à escrita da língua, a escrita monetária aritmética é uma forma de escrita no sentido de Goody e, portanto, mantém as suas implicações sobre os processos de cognição: Artefato político e econômico, a moeda cunhada em metal precioso, pesada e escrita tornou equivalente coisas e pessoas que não são equivalentes, nos mecanismos de troca de mercado e de punição jurídica. Ela generalizou o uso dos números usados em sua notação para avaliar as coisas, os seres, as situações e calcular suas relações... a moeda serviu de ferramenta cognitiva. (HERRENSCHMIDT, 2007, p. v) Neste sentido, Herrenschmidt se interessa muito mais pelos suportes materiais dos meios que Goody (ela é mais próxima neste sentido de Innis), mas seu interesse é essencialmente articulado em torno dos processos cog- 66—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 66 5/20/14 4:31 PM nitivos e das implicações dos sistemas gráficos sobre a cognição. Quando ela afirma que os romanos “... criaram as minúsculas em vez das maiúsculas, substituíram o rolo de papiro ou pergaminho, o volumem, pelo livro costurado e paginado, o códex, que garantiu a difusão do Novo Testamento e do Cristianismo” (HERRENSCHMIDT, 2007, p. 224), obviamente ela se interessa à genealogia dos suportes midiáticos, mas se interessa muito pouco à questão do poder ou da circunscrição das habilidades de leitura no mundo antigo como fizeram respectivamente Innis e Goody . O código: historicidade e performatividade Caracterizada por Herrenschmidt (2007) como terceira revolução gráfica (depois da escrita das línguas e da escrita monetária aritmética), a escrita informática começa com um interesse nas matemáticas, antes de incluir em seu campo de ação o conjunto total dos registros (incluindo o vivo). Isto foi alcançado aplicando a seus objetos a hegemonia de um código binário: “O código constitui a linguagem numérica da tradução da qual se serve a máquina para escrever, a seu modo, tudo que o usuário coloca dentro e o que está preparada para receber”. (HERRENSCHMIDT, 2007, p. ii) A máquina de Turing tem um lugar essencial neste processo mais próximo de nós através da importância dada ao algoritmo:12 Com efeito, o digital permite tornar manipulável qualquer conteúdo ligando-o a símbolos sem sentido, manipuláveis por regras também sem sentido. Esta ausência de significância permite a mecanização, o que a máquina de Turing teoriza e nossos computadores concretizam. (CROZAT et al., 2011, p. 13) É interessante notar que Turing chamou sua máquina de “máquina de papel”, o que articula metaforicamente os suportes da revolução tardia do impresso e da escrita monetária original. 12 “Uma série finita de regras a aplicar, em uma ordem específica, a qualquer quantidade de dados, para chegar, em uma quantidade finita de etapas, a um resultado, e isso tudo qual que sejam os dados processados“. (HERRENSCHMIDT, 2007, p. 434) Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 67 67 5/20/14 4:31 PM Apesar de sua importância fundamental, a revolução do impresso tinha seus limites internos. Um deles é que “a impressão não sabia contar”, possibilidade de computação onde a informática se tornará, quatro ou cinco séculos mais tarde, a campeã: […] o cálculo estava liderando a dança das invenções da mecanização e aritmética – revanche sobre a imprensa, que, desenvolvida no terreno da escrita alfabética, multiplicava os textos, reproduzindo as línguas, fabricando autores e leitores. Mas a impressão, que havia construído um império, não sabia contar. Quando as máquinas de calcular foram capazes de escrever textos em linguagem natural, este império viu-se ameaçado. (HERRENSCHMIDT, 2007, p. 430) Sem que se possa enunciar um julgamento definitivo sobre a ameaça do digital sobre o impresso, deve-se reconhecer, na cultura contemporânea, a centralidade do cálculo e do imperativo de calculabilidade. O código tem sido de fato frequentemente analisado em relação às restrições, notadamente de uso, que impõe aos usuários finais. Lessig (1999), em seu famoso livro Code and other laws of cyberspace, considera que o código remete ao design técnico e permite a estruturação anterior do espaço dos usos possíveis13 dos dispositivos e das redes informáticas. O código informático resulta de uma atividade de escrita (DOUEIHI, 2008), mas tem especificidades, incluindo as relacionadas com seu caráter de escrita coletiva. (COUTURE, 2012) Existem atualmente estudos de etnografia do código14 que analisam os modos de escrita dos programadores em informática e a forma de socialidade que caracteriza estas comunidades específicas. Os Estudos Críticos de Código (ou Critical Code Studies - CCS) tentam, por outro lado, aplicar as ferramentas da hermenêutica crítica à interpretação de código informático. (MARINO, 2006) Portanto, o código considerado como um sistema de signos torna-se, como toda a escrita, suscetível de análise se- 13Se limitarmo-nos à informática, parece que as práticas de leitura que o computador “autoriza” são, em sua maioria, diferentes do que o papel permite. 14Este é o título de uma edição especial da revista eletrônica TeamEthno-online, publicada em 2006. 68—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 68 5/20/14 4:31 PM miótica ou mesmo plástica, se seguimos aqueles que estão interessados em analisar o código como uma forma poética. Isso significa que o código como objeto de estudo é apropriado de formas muito diferentes por parte daqueles que o estudam. Isso abre o caminho para a circulação e as influências do código através dos sistemas informáticos que o veiculam na sociedade. Esta perspectiva apenas abordada, mas não retida por Herrenschmidt (2007), permite apreender o código como escrita sob o duplo registro de sua materialidade e dos efeitos da sua circulação “restrita” sobre os fenômenos cognitivos e as relações de poder. Ao contrário das outras escritas, o código se destina a ser “lido” por um ator não humano: o computador. Mesmo que outros programadores possam ler, e de fato, muitas vezes leem o código informático, por exemplo, a fim de melhorá-lo, permanece o fato de que, pela primeira vez na história das escritas, o código se destina à interação homem-computador, no mais alto grau. Kittler (apud MARINO, 2006) retraçando a genealogia do “código” retorna ao códex analisado por Goody e Innis e ao codicilo, este “pequeno tablete de madeira coberta com cera, a fim de inserir as letras”. Em outras palavras, o código que agora designa uma forma de escrita específica da informática, significava originalmente o suporte material da escrita. O códex veio a designar mais tarde uma coleção de textos legais, mostrando assim seu parentesco com o código: o de instrumento de controle à distância (MARINO, 2006), mas que ainda permaneceu sujeito a uma difusão restrita enquanto tinha uma pretensão à universalidade. De acordo com Bachimont (2000), a escrita informática caracterizava uma razão computacional da mesma maneira como a escrita da língua caracterizou uma razão gráfica. Além disso, “a transição para a escrita digital não é apenas uma mudança de suporte, é uma reconfiguração do sistema técnico de produção e de manipulação, que age sobre a própria natureza do conhecimento”. (CROZAT et al., 2011, p. 10) Assim, a escrita digital e o código renovam, quase nos mesmos termos, as análises iniciadas por Goody sobre a escrita da língua, há quase quatro décadas. Escrita(s), mídias e tecnologias do intelecto— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 69 69 5/20/14 4:31 PM Conclusão Através desta breve viagem entre estes três autores que se interessaram na importância dos meios sobre a organização social, visitamos três regiões do saber: economia política, antropologia e semiologia histórica (incluindo a contemporânea ao código). Encontramos caminhos interessantes para pensar uma teoria mediática dos registros, atenta aos meios mais antigos e mais recentes. Uma peculiaridade desta jornada, que fez dialogar autores que não necessariamente têm mantido relações, é que os mesmos não se limitam às barreiras disciplinares e, sem a pretensão de interdisciplinaridade, atravessam alegremente fronteiras em busca de elementos suscetíveis de esclarecer o seu objeto de pesquisa. Os importantes trabalhos de Goody permitem lançar luz sobre os de Innis, devido a seus interesses convergentes. Por outro lado, os desafios postos pelos desenvolvimentos recentes da teoria mediática ao pensamento goodiano (enraizado em diversas tradições disciplinares) são de grande interesse. Os casos da escrita aritmética (moeda) e da escrita digital (o Código) em relação ao conceito de informação são instrutivos a este respeito. Desprendida do ouro, que tinha se tornado arbitrário, a moeda sem referência e solta teria se tornado no século XX “livre como a informação”. (HERRENSCHMIDT, 2007) Este fenômeno teria tido consequências importantes sobre o pensamento humano. Herrenschmidt se junta aqui à tese central de Goody sobre as ligações entre a escrita e o pensamento humano, como evidenciado em seu capítulo intitulado “Os números e sua representação conquistam o pensamento humano.” Ela permite ampliar os limites dos trabalhos de Goody e assim, de pensar uma teoria mediática atenta tanto à escrita quanto à calculabilidade antiga e ao código recente que dele se aproveita. Os efeitos da escrita aritmética seriam muito mais importantes do que os da escrita da língua, visto que se relacionam com o surgimento do “homem gráfico” e a concepção do homem como “media” dos cálculos realizados sobre suas práticas sociais ou sua fisionomia. A “gigantesca mudança semiológica” que introduziu a hegemonia do código (HERRENSCHMIDT, 2007, p. 351-351) tem agora incidências signifi- 70—Oumar Kane teoria-meios-comunicacao_v1.indb 70 5/20/14 4:31 PM cativas sobre o vivo e a replicação do vivo. O código genético e nosso universo reticulado agora parecem ter a mimese como lei, a lei do desejo, levando consigo, na mesma dança, todas as outras. (GIRARD, 1961) Mas, com estas considerações, entramos no contexto de uma teoria totalizante que contrasta com a precaução sistemática, que tanto Goody como Innis demonstraram no conjunto de suas obras. R e f e r ê n c ia s BABE, Robert E. Canadian communication thought. Toronto: University of Toronto Press, 2000. BACHIMONT, Bruno. 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Materiality, Agency and discourse: A Tribute to the Work of James R. Taylor, Montréal, Maio de 2008. Sua elaboração foi financiada pelo Standard Research Grant (#410-2008-1949) do Social Sciences and Humanities Research Council of Canada. Partes deste texto aparecem de forma um tanto diferente em North by Northwest: Harold Innis and ‘the advancement of knowledge of the Canadian North, Introdução a W. Buxton (Ed.). Harold Innis and North: Appraisals and Contestations. Montréal/ Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2013. teoria-meios-comunicacao_v1.indb 73 73 5/20/14 4:31 PM que argumentou em favor da influência do trabalho de Innis neste campo talvez tenha sido James R. Taylor (2000, 2001). Tal como a maioria dos estudiosos que tomaram por base os escritos de Innis para lançar luz sobre questões de comunicação, Taylor inferiu numerosas contribuições a partir de dois textos que Innis produziu no final de sua carreira, a saber, Bias of Communication (O Viés da Comunicação) e Empire and Communications (Império e Comunicações) (INNIS, [1950] 1972, [1951] 1964). Depois de ter delineado “a dinâmica que Innis identifica no macrocosmo do surgimento e desaparecimento histórico dos grandes impérios do passado”, Taylor (2001, p. 11) argumenta que as mesmas tendências atuam “no microcosmo, na dinâmica organizacional do crescimento e declínio das grandes empresas em nosso próprio tempo e nossa própria sociedade”. Embora Taylor tenha demonstrado que podemos nos basear nos insights dos escritos tardios de Innis para examinar a dinâmica organizacional contemporânea, isso não nos permite chegar a nenhuma conclusão sobre como o próprio Innis examinou a natureza e estrutura da vida organizacional. O que não seria um problema crítico se Innis tivesse pouco a dizer sobre as grandes organizações e suas dinâmicas, seria perfeitamente justificado proceder como Taylor, extraindo contribuições dos escritos tardios de Innis e aproveitando-os para analisar a vida organizacional contemporânea. Não se trata de Innis não ter conseguido dar a atenção para a natureza e funcionamento de grandes organizações, pois ele escreveu extensivamente sobre as dinâmicas organizacionais – especialmente no início de sua carreira. Taylor (2000, p. 3) está correto em seu julgamento quando disse que “Innis nunca contribuiu para os estudos de comunicação organizacional”, mas apenas porque o campo não existia enquanto Innis estava vivo. Além disso, enquanto Taylor (2001, p. 1) se refere à Innis como “um intelectual profundamente engajado”, ele realmente não explora as implicações desta afirmação, examinando Innis principalmente em termos acadêmicos convencionais, como alguém mais interessado em interpretar o mundo do que em mudá-lo. Minha tese é que Innis tinha um persistente interesse pela vida organizacional, não apenas em descrevê-la, mas em construí-la a seu próprio modo. 74—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 74 5/20/14 4:31 PM O objetivo deste artigo é tomar certa distância para corrigir essas abordagens enviesadas. Seu argumento é que, se desejamos identificar as contribuições de Innis para a compreensão das dinâmicas organizacionais contemporâneas – e por extensão da comunicação organizacional – o melhor ponto de partida não são os escritos tardios de Innis – que tratavam apenas indiretamente das grandes organizações. Em vez disso, defendo que é muito mais proveitoso examinar os primeiros escritos de Innis, onde as grandes organizações são abordadas com certo detalhe. Muito tem sido escrito, é claro, sobre o estudo pioneiro de Innis, The Fur Trade of Canada (O comércio de peles no Canadá, 1930). Porém foi dada menos atenção à forma como Innis examinou a estrutura e a dinâmica per se de algumas das organizações envolvidas com o comércio de peles, ou seja, a Company of New France, a Northwest Company e a Hudson Bay Company. Do ponto de vista organizacional, os extensos escritos de Innis sobre o comércio de peles lançam luz sobre o funcionamento destas e de outras organizações de comércio de peles. Em minha opinião, no entanto, penso que o ponto focal dos primeiros trabalhos de Innis não foi de fato as peles e outros produtos básicos, per se; seu principal ponto de referência era muito maior, a saber, a civilização. Assim, ele acreditava que era em virtude da produção de produtos básicos que uma civilização única poderia ser estabelecida no norte da América do Norte. Mas esses produtos básicos não determinavam por si próprios, de modo algum, a forma que esta civilização iria tomar. Innis era da opinião de que era através da interação entre a geografia e a atividade humana – enquanto mediada pela tecnologia – que se deu o processo civilizatório. Sem dúvida, as mais importantes características do mundo físico para Innis eram a extensão geográfica do Canadá, a vegetação e a fauna encontradas no conjunto interligado de bacias hidrográficas que formavam o Canadá. Na visão de Innis, a geografia natural desse país podia ser melhor entendida como proporcionadora de uma série de restrições e de possibilidades que poderiam conduzir a diferentes resultados civilizacionais, dependendo das necessidades, dos projetos e das atividades dos habitantes humanos. Neste sentido, Innis – como Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 75 75 5/20/14 4:31 PM ele prontamente admitiu – foi muito influenciado pela tradição possibilista francesa como praticada por Vidal de la Blache (1922), Jean Brunhes (1912), e Demangeon Albert (1942).2 Na visão de Innis, o desenvolvimento da civilização ocorreria de maneira evolutiva. Neste sentido, ele não era neutro em relação à civilização; seu próprio trabalho pode ser visto, a seu modo, como constitutivo do processo civilizatório. Ele acreditava que através do conhecimento que ele era capaz de produzir, o desenvolvimento da civilização seria subsidiado e fomentado. Se examinarmos o projeto inicial de Innis como sendo um projeto para definir e ajudar a constituir os aspectos chaves da civilização, então somos obrigados a repensar a forma como o seu trabalho é compreendido e periodizado. Admintindo-se que seu ponto de referência era de uma civilização em evolução, isto sugere que ele estava preocupado com mercadorias básicas apenas na medida em que a produção e distribuição das mesmas contribuiriam para o processo civilizatório. Innis nunca considerou os produtos básicos como entidades separadas, isoladas umas das outras, ele os via como formando um conjunto que trabalhava com outros fatores, tais como povoamento, transporte e tecnologia, para constituir civilizações. O que foi central para as civilizações modernas, segundo Innis, foi o fenômeno da industrialização. Innis estava particularmente preocupado com a forma como se deu o processo de industrialização em um país jovem como o Canadá e que consequências teve. Colocar a civilização – com especial referência à industrialização – como o ponto central dos primeiros trabalhos de Innis exige repensar a forma como entendemos o corpus desses primeiros trabalhos. Isso significa dar mais atenção a aqueles primeiros escritos que empregavam bastante explicitamente a ideia de construir uma civilização como um ponto de referência. Dessa forma, então, podemos melhor contextualizar outros escritos do período em que seus pontos de vista sobre a civilização permanecem, em grande parte, implícitos. 2Em uma carta a Isaías Bowman (1935), um dos maiores geógrafos da América, Innis notou que ele (Innis) tinha sido muito influenciado por “O Francês”. 76—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 76 5/20/14 4:31 PM Com este objetivo, vou tratar de um trabalho em particular, a saber, a History of the Canadian Pacific Railway 3 (História da Companhia Ferroviária do Canadá). Depois de examinar o que este revela a respeito do projeto inicial de Innis, vou considerar brevemente a sua relevância para alguns de seus (menos conhecidos) escritos posteriores sobre a interação entre os produtos básicos (ou seja, pele, trigo e peixe) e os processos mais amplos de povoamento, urbanização e industrialização. A Hi s t ó r ia d a Ca n a d ia n Pa c i f i c Rai lway Durante muito tempo, a História da Canadian Pacific Railway foi relegada à categoria juvenília de Innis. No entanto, uma leitura atenta do texto revela que se trata de muito mais do que a Canadian Pacific Railway (CPR). Assim, em seu estudo, Innis procurou dar substância, corpo e sentido à forma organizacional contemporânea da ferrovia, que identificava inicialmente como pivô para o surgimento da “civilização” no Canadá. No entanto, de forma mais ampla, o estudo pode ser visto não apenas como um esforço para mapear o Canadá em um sentido espacial, mas para fornecer um mapa conceitual da interseção da estrada de ferro, enquanto uma forma de tecnologia, com a paisagem canadense, as indústrias de produtos básicos, a industrialização e a ocupação humana (do mesmo modo com fenômenos tais como as viagens transoceânicas, o turismo e o imobiliário). Em particular, Innis se esforça em demonstrar a extensão em que o comércio de peles define as condições de desenvolvimento do sistema de ferrovias. Além disso, como examinarei adiante, um tema recorrente no texto de Innis consistia em como o transporte e a comunicação – tal como consagrados no crescimento e desenvolvimento da CPR – poderiam ser vistos como constitutivos de uma civilização emergente no Canadá. A análise do texto deixa claro que Innis não estava simplesmente escrevendo um estudo descritivo da estrada de ferro, ele estava às voltas com a questão do surgimento do Canadá. Ele ressaltou que embora este país tenha 3Depois de concluir sua tese de doutorado sobre a CPR na Universidade de Chicago em 1920, Innis publicou uma versão revisada deste trabalho em 1923. Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 77 77 5/20/14 4:31 PM alcançado algum grau de união política com a Confederação,4 essa união era fraca e atenuada. De acordo com Innis, ela ligaria as civilizações que tinham crescido em torno de três das maiores bacias hidrográficas, nomeadamente, o Pacífico, a Baía de Hudson e o Saint Lawrence. Todas formadas graças ao comércio de peles. No entanto, sua análise deixa claro que o Canadá não se formou simplesmente nas searas do comércio de peles, como muitos têm afirmado, ele ressaltou que a exigência de grandes áreas inabitadas fazia do comércio de peles algo amplamente antitético em relação à civilização. De fato, a preservação do comércio de peles pela Hudson’s Bay Company serviu para retardar o povoamento humano. Logo, em decorrência dos conflitos que engendrou, a civilização que se desenvolveu em relação dialética com o comércio de peles foi um catalisador para a civilização. Em virtude dos assentamentos que a Hudson’s Bay Company implantou para administrar o mercado de peles, o comércio e a indústria que ali floresceram acabaram por suplantar os assentamentos. De fato, Innis procurou situar a CPR em relação ao desenvolvimento de assentamentos dentro das três subcivilizações que existiam no Canadá, em grande parte em decorrência das atividades da Hudson’s Bay Company. O capítulo introdutório faz o mapa dos modos como a civilização e os assentamentos se desenvolveram nas três bacias hidrográficas, e os desafios em jogo quando foram feitos esforços para uni-las na parte norte da América do Norte. O relato de Innis surpreende, pois não procede cronologicamente, mas em ordem cronológica inversa. Ele começa no oeste, se volta para Manitoba, e conclui com a base de drenagem do St. Lawrence. Por que isso? Pode-se argumentar que seu estudo foi firmemente ancorado no presente e, portanto, começou com o contemporâneo, trabalhando para trás para entender suas raízes. A questão era saber como a civilização canadense poderia ser realizada, por assim dizer, fazendo da união política uma união real, graças ao fortalecimento das relações econômicas e dos vínculos civilizatórios. Embora Innis evidenciasse certa simpatia pela British Columbia e a Red River Colony 4A Conferação do Canadá refere-se ao processo de formação deste país na década de 1860. No início eram apenas quatro colônias britânicas e outras foram gradualmente integradas até formar o Canadá de hoje. (N.T.) 78—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 78 5/20/14 4:31 PM (Colônia do Rio Vermelho), seu ponto de referência era claramente o leste canadense em conformidade com as suas elites políticas e econômicas. A este respeito, as duas subcivilizações do oeste apresentaram problemas diferentes em virtude de cada uma ter uma maneira diferente de operar o comércio de peles. No caso da British Columbia, o comércio de peles foi importante no início, mas diminuiu depois no sul nas regiões de povoamento americano. O Imperialismo norte-americano resultou na disseminação de colonos, que forçaram uma resolução do litígio de fronteira em 1846, dando aos Estados Unidos terras ao sul do paralelo 49. Este arranjo político forçou os britânicos a desenvolver suas organizações comerciais independentemente do rio Columbia. Além disso, a Hudson’s Bay Company estava em uma posição frágil por causa da distância entre sua sede e a costa oeste, o que significava que as autoridades locais poderiam ter certo controle para incentivar o povoamento e o desenvolvimento de uma infraestrutura para a civilização. Em decorrência da corrida do ouro, foi estabelecido um desenvolvimento dinâmico, combinando transporte, mineração e povoamento, desimpedido pelo comércio de peles. Assim, devido a este crescimento de força e de autonomia – a uma distância muito grande do centro do poder, no leste canadense –, era vital estabelecer linhas de comunicação, para evitar a possibilidade de estabelecer uma causa comum com seus vizinhos do Sul. Innis em seguida voltou-se para o sistema da Baía de Hudson, dando atenção especial para a Red River Colony, localizada em uma área controlada e monopolizada pela Hudson’s Bay Company. Isto resultou em uma relação altamente conflituosa entre o povoamento e a Companhia. O legado foi uma colônia muito alienada às autoridades centrais e precisando ser colocada na linha, novamente através do fortalecimento das linhas de comunicação entre a mesma e o leste canadense. A subcivilização da bacia hídrica do St. Lawrence, segundo Innis, tinha sido capaz de desenvolver a indústria e o comércio de forma irrestrita, porque tinha sido estabelecida em uma área em que o mercado de peles do império francês tinha se desmoronado. Assim, ela poderia servir melhor como fonte para a modernização do resto do Canadá através de meios tecnológicos. O que tornou possível a civilização canadense, na visão de Innis, foi uma ligação das três civilizações através de uma ferrovia transcontinental. Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 79 79 5/20/14 4:31 PM Ele comparou o sistema ferroviário a uma ponte que atravessava os principais pilares das três áreas do sistema hídrico. Os comentários de Innis revelam que ele tinha em mente mais do que simplesmente uma ligação entre o leste e o oeste, ele se esforçou em enfatizar a importância da rede de linhas que foi construída, trazendo a civilização, os assentamentos e a circulação de mercadorias até áreas remotas. Innis tinha uma visão clara da emergente internacionalização do Canadá muito antes de publicar The Cod Fisheries (A Pesca do Bacalhau, 1940). Ele não apenas via o Canadá como um posto avançado da civilização europeia, o qual estava se adaptando ao novo mundo; ele também via a integração do Canadá à ordem do mundo imperial através das operações da Canadian Pacific Railway. A história da CPR de Innis pode ser vista como um primeiro levantamento e inventário do Estado do Canadá, identificando e mostrando a relação de suas partes constituintes. Neste sentido, é notável que Innis tenha organizado seu relato em termos de “índices” de civilização. De fato, alguns capítulos são organizados desta forma. Em sua opinião a ferrovia oferecia claros padrões de civilização. O uso de índices revela o engajamento ativista de Innis com o processo de evolução. Um índice, por sua própria natureza, consiste em um padrão de avaliação do desenvolvimento. Ele permite determinar em que medida a civilização foi realizada dentro de uma variedade de domínios, tornando possível a tomada de ações concertadas em caso de necessidade, e corrigir áreas onde a evolução ficou para trás. Tomados em conjunto, os vários índices que determinavam o lugar que a civilização canadense tinha na escala evolutiva forneceriam uma imagem instantânea do desenvolvimento, o que seria valioso para os políticos, assim como para as elites trabalhando no setor privado5. Para Innis, alguns índices importantes incluíam contratos, o valor do frete, bem como o frete de passageiros, os lucros, as taxas de frete e a eficiência. Ao fazer uso dos índices como marcadores para a civilização, Innis notou a presença de grupos de desenvolvimentos derivados que acompanhavam o índice em questão. Por exemplo, ele observou que a expansão da estrada e 5A discussão de Innis sobre o comércio contemporâneo de peles também usou índices como pontos de referência, notadamente em sua discussão sobre como o aumento dos preços serviu como um índice. (INNIS, 1927) 80—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 80 5/20/14 4:31 PM o desenvolvimento do transporte de mercadorias estavam ligados não só à circulação de mercadorias, mas também ao aumento de equipamentos (tais como locomotivas, carros de primeira classe, carros para fumantes, carros de caixa, carros de plataforma, carros de gado, vagões de carga e carros de ferramentas). (INNIS, 1923, p. 133) Além disso, outras facilidades, como o telégrafo, elevadores de grãos, serviço de lago (com melhoramento das instalações nos terminais), bem como lojas de automóveis e lojas de consertos estavam ligados. (INNIS, 1923, p. 134) A vontade de estender o serviço de frete também levou à expansão de ramais (para compensar os custos gerais da linha principal) e à aquisição de instalações portuárias na fachada atlântica. (INNIS, 1923, p. 135-137) As taxas de frete também foram importantes para Innis devido ao que elas revelam sobre as relações entre as margens e a periferia, bem como do movimento dos bens de primeira necessidade. Neste sentido ele examinou com muita atenção as questões de regulamentação. Através de seu estudo, ele tornou-se extremamente consciente dos desequilíbrios que tinham ocorrido. O motor de crescimento para a Canadian Pacific Railway foi o amplo desenvolvimento da rede de ramificações de linhas no oeste, o que resultou em amplo movimento de cargas e pessoas. No entanto, por causa dos elevados investimentos envolvidos na construção da estrada através do longo e improdutivo terreno ao norte do Lake Superior, a Companhia estava sob pressão para recuperar seu investimento. Devido à situação de concorrência no leste, o que limitou os preços que podiam ser cobrados, esta opção não foi aberta. Por isso ela procurou recuperar o seu investimento através da cobrança de elevadas taxas de frete para o oeste canadense, o que criou um grande descontentamento junto aos agricultores das pradarias e alimentou a formação do Partido Progressista. Embora Innis tivesse certa simpatia com os interesses do oeste, ele acreditava que o assunto tinha sido efetivamente atendido pelo Conselho de Comissários Ferroviários (Board of Railway Commissioners - BRC), que desempenhou o papel de mediação entre os proprietários da ferrovia e os agricultores do oeste. Seguindo sua abordagem evolucionista, Innis achava que o BRC representava um mecanismo que a civilização desenvolveu para regular as tensões internas. Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 81 81 5/20/14 4:31 PM Na época em que Innis escreveu sua History of the Canadian Pacific Railway, nem a comunicação organizacional, nem tampouco o estudo das dinâmicas organizacionais existiam como campos de estudo. Não obstante, pode-se perceber um grande interesse de Innis por questões pertinentes a essas áreas de estudos acadêmicos. Em particular, ele era da opinião que o transporte, que por sua própria natureza envolvia linhas e redes de comunicação em grandes áreas muito dispersas, formava a base da civilização. Isso ficou claro em seus comentários sobre as canoas usadas no início do comércio de peles, o desenvolvimento de estradas e canais e, em particular, a construção de linhas ferroviárias. Para invocar um termo que ele mesmo iria popularizar mais tarde, estes sistemas de transporte poderiam ser vistos como formas de comunicação com tendência ao espaço (space-binding). O que distinguia a ferrovia de outras formas de transporte/comunicação era o nível de sofisticação e engenharia tecnológica que representava, os custos gerais que envolvia, sua velocidade e capacidade de transporte, e acima de tudo, sua capacidade de servir de catalisador para outros desenvolvimentos. A ferrovia, ao contrário de outras formas de comunicação, tornou possível o povoamento humano em larga escala. A ferrovia não só transportava colonos e seus bens, mas permitiu que eles se concentrassem em novas áreas urbanas, e abriu novo território agrícola onde poderiam trabalhar a terra. Além disso, uma vez estabelecidos os colonos, a ferrovia transportava seus produtos e mercadorias até o mercado, trazia bens manufaturados até eles, e fornecia os serviços postais e telegráficos que precisavam para se manter em contato com o resto do mundo. A ferrovia, segundo Innis, tornou possível a criação de novas redes globais de transporte e de comunicação. Ele continuamente enfatizou que a construção da Canadian Pacific Railway estava intimamente ligada ao desenvolvimento do transporte dos navios a vapor de longa distância, tanto nas águas internas dos Grandes Lagos, quanto nos oceanos Atlântico e Pacífico. Isso significava que a combinação de linhas ferroviárias com as linhas de transportes dos navios a vapor não só permitiu que o Canadá se desenvolvesse como um posto avançado da civilização ocidental, mas permitiu que a nova nação se tornasse o nexo central de comunicação entre as civilizações europeias e asiáticas. 82—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 82 5/20/14 4:31 PM A History of the Canadian Pacific Railway de Innis é importante não só para o que tinha a dizer sobre a relação entre ferrovia, comunicação e civilização; ela também fornece um ponto de entrada para entender seus primeiros trabalhos. Na verdade, vários estudos que Innis publicou durante o período de 1927-1930 foram estruturados pelo ponto de vista que ele havia desenvolvido em seu trabalho sobre a CPR. Innis: sobre transporte, povoamentos e produtos de primeira necessidade Esse período é crítico para a obra de Innis, visto que começou a explorar o lugar emergente do Canadá no mundo. Ele não só analisou a forma como a jovem nação recém-industrializada se ajustou na ordem política e econômica global, mas explorou suas relações com outros países. Enquanto os escritos em questão se referem a vários produtos de primeira necessidade, Innis enfatizou que a produção desses produtos só poderia ser compreendida a partir do modelo de povoamento que emergiu com a industrialização impulsionada pela ferrovia. Por exemplo, a ferrovia teve grande importância em um artigo sobre o povoamento do oeste canadense que Innis apresentou nas reuniões da International Geographical Association, realizadas na Universidade de Cambridge, em 1928, no qual ele discute como o desenvolvimento da economia do trigo no oeste canadense foi afetado pelos “desenvolvimentos tecnológicos nos Estados Unidos, responsáveis por um aumento rápido na produção de trigo”, bem como pela “industrialização crescente da Grã-Bretanha”. (INNIS, 1930a, p. 373) Acima de tudo, ele ressaltou o impacto da construção da ferrovia no oeste canadense: A Canadian Pacific Railway foi concluída de Winnipeg até Vancouver no oeste e até Montreal no leste. O país foi rapidamente vistoriado e o território aberto para novos colonos, que foram introduzidos no país através de uma ampla publicidade por parte da ferrovia e do governo. (INNIS, 1930a, p. 373) Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 83 83 5/20/14 4:31 PM Alinhado com o quadro de referência “possibilista”, Innis argumenta que as características físicas das pradarias interagiam com a tecnologia ferroviária para produzir resultados específicos em termos de comércio e assentamentos: A regularidade das pradarias do oeste canadense facilitou a construção rápida da ferroviária e a rápida ocupação pelos colonos. A relativa ausência de árvores de grande porte tornou possível a rápida divisão do solo virgem e apressou a produção de trigo. Os Grandes Lagos ofereceram um curso de água conveniente para o transporte de grandes quantidades de trigo para o litoral do Atlântico. As desvantagens geográficas ocasionadas pela localização de passagens de montanha, que determinaram a projeção da linha principal, foram de importância relativamente pequena. (INNIS, 1930a, p. 373) Innis também dedicou muita atenção à estrutura organizacional da CPR, que, em sua opinião, fluiu a partir do “fundo político” do dia: O controle da ferrovia foi colocado nas mãos de uma única empresa para que a construção fosse realizada mais rapidamente e que o país fosse colonizado de forma mais eficaz. As energias encarregadas do rápido povoamento poderiam ser direcionadas com grande eficácia para a única tarefa de incentivar a imigração e desenvolver o tráfego migratório. (INNIS, 1930a, p. 374) Innis chamou a atenção sobre como “a eficiência crescente do mecanismo de preço”, alimentando a disseminação da industrialização através da ferrovia, afetou bastante o desenvolvimento da economia de trigo. O trigo produzido no Canadá era vendido em um mercado mundial em troca de pagamento em dinheiro à vista. As várias operações envolvidas na transferência do trigo, do produtor canadense ao consumidor inglês, necessitavam de um elevado grau de eficiência na comercialização do trigo e no mercado de câmbio internacional e interno. Bancos canadenses foram rapidamente extendidos a partir da sede no leste e foram feitas adaptações para que o trigo 84—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 84 5/20/14 4:31 PM pudesse ser enviado, com o mínimo atrito possível, diretamente da fronteira até os centros da industrialização. (INNIS, 1930a, p. 374) O que tornou possível essa maior eficiência, segundo Innis, foram as “melhorias de comunicação, a formação de habilidade bancária, e um sistema educacional comparativamente mais eficaz. Os efeitos cumulativos destes fatores podem ser vistos no rápido e acentuado aumento na produção e exportação de trigo”. (INNIS, 1930a, p. 374) Este padrão de desenvolvimento, sugere Innis, teve implicações importantes para a organização da vida urbana e rural no Oeste canadense. Em decorrência de fatores como a dispersão dos colonos em faixas estreitas transzonais às linhas ferroviárias, a ocupação de terras que poderiam ser “divididas para cultivo sem dificuldade” e o trabalho de campo baseado em flutuações sazonais, “a vida em família e a vida social foram temporariamente separadas”, e “a vida em comunidade foi seriamente prejudicada”. “Centros urbanos”, argumentou Innis, “foram criados em relação direta com as ferrovias e a conveniência de elevadores para o embarque de grãos... Estes centros se tornaram ponto de distribuição para suprimentos, por exemplo: implementos agrícolas, madeira, carvão e mercadorias em geral”. Esses grandes centros “floresceram em pontos divisionais”6 e eram “dependentes da localização de linhas secundárias e dos pontos de entroncamento, de pontos terminais, e do estímulo à população oferecido por prédios públicos, instalações educacionais e casas populares”. Assim, o crescimento das cidades foi possível graças às “ferrovias e os subsídios do governo”. Isso significou que os centros urbanos do Oeste canadense eram caracterizados por “períodos de febril especulação imobiliária e pelos pesados encargos das longas linhas de bondes, das linhas de luz elétrica, das tubulações de gás, das linhas telefônicas e dos sistemas de esgoto”. (INNIS, 1930a, p. 375) No entanto Innis sustentou que a vida nessas comunidades estava melhorando: linhas secundárias foram construídas dando maior acessibilidade. O automóvel, o telefone e o rádio contribuíram para a solução dos problemas. Melhores condições de vida segui6No Canadá divisional points são estações que fornecem acesso e serviços aos passegeiros, como também abastecem e cuidam da manutenção dos trens. Foram fomentadores do crescimento urbano, várias cidades importantes tiveram como origem um ponto divisional. (N.T.) Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 85 85 5/20/14 4:31 PM ram as melhorias de transporte e de comunicação. O pool para a exploração do trigo se desenvolveu como a manifestação de uma nova solidariedade. (INNIS, 1930a, p. 376) Esta linha de argumentação também serviu de pano de fundo para The Fur Trade in Canada (O Comércio de Peles do Canadá, 1927). Com base no extenso trabalho de campo e nas pesquisas de arquivos, Innis examina esta atividade com destaque para sua prática e perspectivas.7 O fato de estes estudos garatiram a ele o centro do palco durante a década de 1920, revela que a sua preocupação principal neste momento não era tanto se envolver na história econômica canadense em si mesma, mas ao contrário, dar sentido ao estado da construção da civilização no Canadá – um projeto, claro, que podia ser auxiliado e estimulado pela pesquisa histórica. Ao descrever a indústria do comércio de peles da década de 1920, Innis salientou a sua estreita ligação com a urbanização, um processo que estava intimamente associado com o desenvolvimento do transporte ferroviário: A demanda de peles estava localizada principalmente em centros populacionais que acolhem uma grande classe social voltada ao lazer. Eram áreas com populações em que as diferenças de classe foram estabelecidas como parte inerente da organização social, ou que tinham aumentado a produção de bens através de novos processos, como nos países recentemente submetidos ao alcance da indústria da máquina[...] o crescimento das grandes cidades [foi] possível graças à existência de um excedente de bens [...]. (INNIS, 1927, p. 17) Pela mesma razão, Innis observou um aumento no número de caçadores brancos, cujos métodos de caça ele considerava superiores aos dos nativos. De acordo com Innis, a crescente presença desses caçadores se devia às “novas 7 The Fur Trade in Canada tinha a intenção de apenas complementar o trabalho anterior, fornecendo-lhe o contexto histórico. Como R.M. Maclver notou em seu prefácio ao texto, essa história do comércio de peles, aqui apresentada pelo Doutor Innis, pode ser considerado como uma introdução ao estudo analítico desta indústria, que aparece em outro volume, The Fur trade of Canada. (1927) Os dois volumes juntos têm a intenção de dar uma sinopse da indústria, mostrando, dentro do contexto, histórico a importância social e econômica do comércio de peles, o papel que desempenhou e continua a desempenhar na vida geral do país. (INNIS, 1930) 86—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 86 5/20/14 4:31 PM linhas de transporte ligadas à construção das ferrovias”. (INNIS, 1927, p. 94) De maneira geral, Innis acreditava que a transformação do transporte, enraizada na disseminação da tecnologia ferroviária, aumentaria a rivalidade entre os comerciantes de peles: As perspectivas não são promissoras. Parece provável que a concorrência entre os comerciantes vai aumentar com constante a melhoria dos meios de transporte. Em condições favoráveis de transporte, o pequeno comerciante experiente tem certas vantagens sobre a grande empresa. (INNIS, 1927, p. 96) O ponto de vista de Innis era aquele do Estado, confrontado com o problema de fazer a indústria de peles funcionar de forma mais eficaz através da busca de maneiras de aumentar a oferta e de regular a produção. Encarnando o evolucionismo que Innis via como característica da civilização ocidental, o Estado, de acordo com Innis, exigia uma base de conhecimento para poder manter as indústrias de produtos de primeira necessidade em equilíbrio. Portanto, o conhecimento que ele e seus colegas produziam sobre a indústria de peles – enfatizando a relação desta com a industrialização, com novas redes de transporte e povoamento – era intrinsecamente de natureza prática e bem alinhado com as tendências tayloristas do período.8 Conclusão Há muito mais em jogo neste artigo do que demonstrar que Harold Innis fez importantes contribuições para a comunicação organizacional. Trata-se também de questionar os pressupostos profundamente arraigados sobre que tipos de organizações são considerados dignos de estudo e o que significa a comunicação dentro de uma organização. Acima de tudo, ele fornece alguns insights sobre como a comunicação organizacional pode ser examinada historicamente. Fazer isso, no entanto, significa repensar em que medida os nossos conceitos atuais, tanto de organização, como de comunicação, podem 8 Como Veblen e Taylor, Innis era um grande admirador da profissão de engenharia e seu ethos de eficiência. Civilização, transporte e assentamento— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 87 87 5/20/14 4:31 PM ser aplicados a períodos anteriores. De maneira geral, a pesquisa neste campo centrou-se na cena contemporânea, com particular referência à comunicação oral e textual em organizações que operam dentro de fronteiras espaciais delimitadas. Dados esses preconceitos “presentistas”, não é de admirar que tão pouca pesquisa histórica sobre a comunicação organizacional tem sido produzida; examinada através da lente de categorias e pressupostos contemporâneos, fenômenos históricos parecem ter pouca relevância para o campo da comunicação organizacional.9 No entanto, se abandonarmos as nossas noções atuais do que organização e comunicação significam para nós em favor do que organização e comunicação significavam para pensadores e profissionais do passado, poderemos desenvolver uma melhor apreciação de como questões de relevância para a comunicação organizacional foram abordadas, muito antes de o próprio campo tomar forma.10 No caso de Innis, como acontecem com muitos de seus contemporâneos, as organizações se referiam a amplas entidades espacialmente dispersas (como a Canadian Pacific Railway e a Hudson’s Bay Company), que eram definidas não tanto pelo que se passava em suas sedes, mas por suas atividades nos territórios distantes do interior canadense. Em virtude das grandes distâncias envolvidas e da dificuldade do terreno, a comunicação no interior das organizações ocorria, em grande parte, através de transporte. Isso não só envolvia a movimentação física de cartas, relatórios e memorandos, mas também colocava as pessoas face a face, assim como produzia e reproduzia as redes da coletividade, fossem essas redes compostas por postos de comércio de peles, pools para a produção de trigo, pontos de divisão das estradas de ferro, ou vilas de pescadores. Ao mesmo tempo, esta comunicação através do transporte tornou possível a formação de numerosas e diversificadas estruturas organizacionais, que acompanhavam os processos de povoamento, cultivo e que eram ligados 9Refletindo sobre essa tendência, vale ressaltar que a Divisão de Comunicação Organizacional (OCD) [da Associação Internacional de Comunicação] centra-se na análise, compreensão e crítica das práticas de comunicação na vida organizacional contemporânea (ICA, 2009, grifo nosso). 10A obra de Raymond Williams sobre palavras-chave (1976) é instrutiva a este respeito, pois permite-nos analisar criticamente como os conceitos como a comunicação e a organização evoluíram enquanto as circunstâncias históricas mudaram. 88—William J. Buxton teoria-meios-comunicacao_v1.indb 88 5/20/14 4:31 PM à propagação da ferrovia, dos navios a vapor e outras novas formas de transportes mecanizados. De um ponto de vista innisiano, as formas de transporte – da canoa até a ferrovia, passando pelos navios a vapor, o trator e o avião – foram, em virtude do seu papel comunicativo, um produto de primeira necessidade para a disseminação da “civilização”, assim como foram as peles, o peixe, a madeira e o trigo. R e f e r ê n c ia s BRUNHES, Jean. La géographie humaine: essai de classification positive, principes et exemples. Paris: F. Alcan, 1912. DEMANGEON, Albert. Problèmes de géographie humaine. Paris: A. Colin, 1942. ICA - International Communication Association. Divisão de Comunicação Organizacional. In: CONFERENCE OF THE INTERNATIONAL COMMUNICATION ASSOCIATION, 2009. Chicago, Illinois, EUA. Disponível em: <http://www.icahdq.org/>. Acesso em: 03 nov. 2008. INNIS, Harold. Empire and communications. Rev. por Mary Q. Innis; Forward by Marshall McLuhan. Toronto: University of Toronto Press, 1972. Originally published by the Clarendon Press. ______. 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Nos Estados Unidos, é chamada de pesquisa baseada nas artes (arts-based research, LEAVY, 2009) ou é equiparada aos doutorados em criação artística. (ELKINS, 2009) As teses e os projetos de pesquisa-criação incluem uma componente estética experimental, uma obra artística ou um processo criativo nos resultados finais de um estudo. Os tópicos contemplados não poderiam ser examinados, nem explorados se a prática criativa, independentemente da teoria-meios-comunicacao_v1.indb 91 91 5/20/14 4:31 PM expressão adotada, não tiver como base uma produção artística: vídeo, performance, filme, obra sonora, blog ou texto multimídia. As universidades e outras instituições de ensino que conferem títulos acadêmicos estabeleceram formalmente protocolos e práticas que identificam as áreas válidas do conhecimento e que são também usados como quadro normativo para os modos de apresentação e de avaliação. Seja qual for a forma que assuma, o gênero acadêmico é facilmente reconhecível: o texto acadêmico geralmente envolve um enunciado, uma pergunta de pesquisa, uma revisão da literatura, uma teoria, uma metodologia, uma apresentação de resultados, uma análise e uma conclusão. A tese tem que ter todos estes componentes. Enquanto, no caso da pesquisa-criação, a tese e a pesquisa frequentemente rejeitam as formas argumentativas que caracterizam a maior parte do conhecimento acadêmico. De fato, os aspectos teóricos, técnicos e criativos de um projeto são realizados em paralelo. Os modos de apresentação também variam. Portanto, enquanto metodologia, a pesquisa-criação questiona as representações convencionais do gênero acadêmico assim como a produção de conhecimento nas culturas do impresso. Apesar da aparente “novidade” da pesquisa-criação, existem importantes precursores na cultura escrita do conhecimento nas ciências humanas: Walter Benjamin e seu uso inovador da alegoria (1969); Marshall McLuhan e sua experiência tipográfica em Counterblast (1970) (MCLUHAN; PARKER, 1970); Donna Haraway e sua remodelação do manifesto (1991); e Roland Barthes (1977) e sua implantação do alfabeto como modelo para uma análise do discurso sobre o amor. Estes exemplos mostram que acadêmicos experimentam há muito tempo formas de redação que questionam a hegemonia dos modos de argumentação e de apresentação lógico-dedutivos ou analíticos. Este artigo tem como objetivo explicar, decompor e desenvolver o conceito de pesquisa-criação em algumas de suas manifestações mais recentes. Primeiro, revisamos alguns dos estudos acadêmicos atuais que analisam a relação entre a pesquisa e a prática criativa. Então, a partir da noção de “semelhanças de família” desenvolvida por Ludwig Wittgenstein (2009), discutimos as quatro maneiras em que o termo “pesquisa” e a ideia de “criação” podem se articular entre si. Concentrando nossa atenção sobre o que interliga as duas 92—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 92 5/20/14 4:31 PM partes da expressão “pesquisa-criativa”, descrevemos e examinamos quatro modos: “a pesquisa para a criação”, “a pesquisa pela criação”, “as apresentações criativas da pesquisa” e enfim “a criação como pesquisa”. Em cada um desses casos, enfatizamos que a pesquisa-criação representa um modo válido de expressão das ideias, dos conceitos e dos resultados de experimentos. Para fazer isso, apelamos para nossos trabalhos e nossa jornada como teóricos e profissionais no campo das mídias. As quatro subcategorias listadas representam potenciais momentos do processo de pesquisa-criação, que, dependendo dos projetos, se tornam mais ou menos importantes. Elas não são nem mutuamente exclusivas, nem exaustivas. O objetivo é de destacar as perspectivas que permitam melhor entender a pesquisa-criação enquanto forma rigorosa de intervenção crítica que reflete as experiências midiáticas e os modos de conhecimento atuais dos estudantes e dos pesquisadores. O i n í c i o d e u m d e b at e Recentemente, um grande número de trabalhos acadêmicos têm se concentrado no conceito de pesquisa-criação. (ZEFFIRO; SAWCHUK, 2012) Alguns de seus autores – especialistas em ciências sociais e humanas – têm se esforçado para esclarecer o papel da criatividade e da imaginação enquanto funções intrínsecas da pesquisa. Às vezes muito recentes, todos esses estudos, no entanto, são baseados em livros como A imaginação sociológica de C. Wright Mills (1967) ou o ensaio importante de Laurel Richardson (2000) sobre a escrita como um método de pesquisa. Lembramos que esta autora defende o papel essencial da criatividade, da imaginação e da política da forma nas ciências sociais e humanas. Os acadêmicos que se dedicam a essas perguntas agora vão além das definições extensivas e tentam ser mais específicos. Haseman (2006) fala de “investigação orientada pela prática” (practice-led research). Em Leavy (2009), essa expressão é usada em paralelo com as de pesquisa baseada nas artes (arts-based research) e de pesquisa performativa (performative research). Barrett e Bolt (2010), por sua vez, tratam de “pesquisa em estúdio” (studio-based inquiry) e de “prática como pesquisa” (practice as A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 93 93 5/20/14 4:31 PM research). Embora eles usem um vocabulário diferente, os autores levantam questões não apenas fascinantes, mas complementárias sobre a avaliação de tais trabalhos. Os estudos recentes se diferenciam precisamente daqueles que os precederam pelo interesse para as normas de avaliação. Barrett e Bolt (2010), Leavy (2009) e Haseman (2006) concordam com o seguinte fato: por omissão, os subsídios – e outras formas de reconhecimento oficial do potencial de um programa de pesquisa – muitas vezes são dados para trabalhos realizados através de uma abordagem quantitativa e positivista. Por sua natureza muitas vezes experimental e processual, a pesquisa-criação tem um enorme potencial enquanto intervenção neste “regime de verdade” gerando formas de conhecimento contextualizado, juntamente com novas formas de desenvolver e disseminar o conhecimento, a pesquisa-criação ajuda a descobrir os diferentes quadros e métodos de análise cultural (por exemplo, uma representação de dança ou de teatro no teatro ou em outro lugar, uma série de composições áudio gravadas em estúdio e a prototipagem colaborativa de novas aplicações de mídia). (FOUCAULT, 1980) Inspirando-se em Pierre Bourdieu, Barrett e Bolt (2010) operacionaliza conceitos como “conhecimentos tácitos” e “a outra lógica da prática”. Assim, ela alinha a pesquisa-criação com os métodos mais convencionais, assumindo que os modos de conhecimento “não científicos” e intuitivos poderiam estar na origem de toda descoberta, uma ideia que é rejeitada quase sempre no contexto dos paradigmas de pesquisa tradicional. Barrett e Bolt (2010, p. 4) corretamente salienta que os conhecimentos subjetivos e tácitos estão relacionados com o sentimento de fazer “parte do jogo”. Neste contexto, as ideias e estratégias surgem segundo as demandas que se manifestam durante os processos criativos. Essa concepção do papel dos “conhecimentos tácitos”, da “intuição” e dos “sentimentos” proporciona um dos principais motivos do comprometimento dos pesquisadores-criadores com os métodos dos quais são promotores. De fato, é somente através de uma abordagem artística e criativa de seus temas de pesquisa que conseguem se envolver e se engajar em um processo que lhes-convêm. Esta motivação é, sem dúvida, essencial para a continuação de todo programa de pesquisa; é particularmente importante no caso da 94—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 94 5/20/14 4:31 PM pesquisa-criação uma vez que a mesma enfatiza a tomada de riscos criativos, ato muitas vezes vivido como um tipo de jogo. Além disso, Barrett e Bolt (2010, p. 11) destaca que, “tanto como uma obra de arte, a redação de uma pesquisa qualitativa tem como objetivo, finalmente, (re)presentar um conjunto de significados para uma audiência”. Os métodos focados nas artes são meios para criar uma consciência crítica ou para sensibilizar as pessoas; são úteis para o trabalho de identidade e podem ajudar a expressar opiniões minoritárias e a promover o diálogo (BARRETT; BOLT, 2010), incluindo a apresentação dos trabalhos acadêmicos a um público mais amplo. Além disso, eles sugerem, por métodos indutivos, significados frequentemente múltiplos. Os projetos de pesquisa-criação podem produzir formas poderosas de introspecção e intervenção. “A s s e m e l h a n ç a s d e fa m í l ia” Como demonstrado em nossa análise inicial, a “pesquisa-criação” descreve um conjunto de abordagens e atividades que integram os processos criativos e envolvem a produção de obras de arte no âmbito universitário. Nosso objetivo é de definir e desenvolver este campo. Para fazer isso, vamos estabelecer distinções no próprio seio do universo metodológico da pesquisa-criação em vez de comparar esta prática com a pesquisa qualitativa ou quantitativa tal como é geralmente considerada – embora as opiniões sobre o tema variem. Nessa ótica, gostaríamos de oferecer quatro conceitos relacionados ao termo pesquisa-criação. Através deste exercício, não pretendemos definir a essência desse conceito, mas sim representar suas tipologias no contexto das “semelhanças de família” de Wittgenstein (2009). O livro Investigações Filosóficas1 deste autor é organizado em torno de uma série de aforismos. É interessante notar que Wittgenstein usa os “jogos” para ilustrar a noção de “semelhanças de família”. Ele questiona o fato de que eles ajuntam atividades tão diversas como xadrez, beisebol ou charadas. Ao invés de explicar o que têm em comum, a ideia de “semelhanças de família” é um incentivo para prestar atenção não só as suas características comuns, mas também suas particularidades. 1Data de publicação original 1953. A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 95 95 5/20/14 4:31 PM É assim que “encontramos uma complexa rede de similaridades que se sobrepõem e se entrecruzam, tanto em sua globalidade quanto em seus detalhes”. (WITTGENSTEIN, 2009, p. 36, tradução nossa) Wittgenstein compara este tipo de relacionamento em rede com a noção de semelhanças de família, o que difere do conceito platônico de princípio filosófico. A fim de estabelecer semelhanças de família, buscamos determinar tanto as semelhanças como as diferenças de determinados fenômenos, relacionados e heterogêneos. Wittgenstein (2009, p. 38) concordava que havia “limites difusos” entre os conceitos e que não era possível estabelecer distinções claras. Dada essa imprecisão, como então descrever um conceito? O autor propõe o uso de exemplos para aumentar a compreensão e para facilitar a análise: “É precisamente assim que se explica o que é um jogo. São dados exemplos na esperança de que eles vão ser interpretados da maneira desejada”. Estes exemplos não descrevem a essência de uma coisa e não constituem também uma definição clara, é por isso que precisam ser implantados e que precisa-se fazê-los agir. Além disso, eles não podem se substituir à compreensão de um fenômeno, fazem parte integrante de sua ilustração. As explicações de Wittgenstein sobre o uso de exemplos para ressaltar as “semelhanças de família” são inseridas em uma concepção teórica da ontologia da pesquisa-criação – não enquanto entidade específica, mas sim como conceito cujos limites são difusos. Obviamente, a pesquisa-criação não é uma metodologia com contornos definidos ou perfeitamente claros. Refere-se, de fato, a uma ampla variedade de possibilidades. As considerações de Wittgenstein orientam nosso uso de exemplos em termo de pesquisa-criação. As quatro modalidades que discutiremos a seguir constituem, de fato, formas de organizar os exemplos coletados. Claro, outras categorias e outros exemplos poderiam ser propostos. Ao oferecer quatro modos de pesquisa-criação – a “pesquisa para a criação”, a “pesquisa pela criação”, as “apresentações criativas da pesquisa” e a “criação como pesquisa” chamamos a atenção para os dois termos principais. Melhor, estamos realçando-os enquanto elementos mutualmente constitutivos nos exemplos enumerados, o que é devido tanto à relação a eles atribuída que à maneira desta concepção se formar e ser colocada em prática. 96—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 96 5/20/14 4:31 PM É também pela combinação de ambos esses componentes que a expressão pesquisa-criação pode ser considerada como uma forma de intervenção potencial. Além disso, graças às possibilidades oferecidas através dos diversos suportes utilizados em pesquisa-criação, os componentes de projetos podem ser apresentados e divulgados através de modos de conhecimento paralelos. Usando uma variedade de diferentes formas de citação ou de atribuição, tal método é, portanto, uma extensão da etnografia performativa, segundo De Garis (1999), sendo que “fazer” constitui uma forma eficaz de “conhecer”. Esta perspectiva é ecoada nos recentes debates sobre a filosofia do método que, de acordo com John Law, (2004, p. 2) trata da “bagunça na pesquisa em ciências sociais”. No contexto de tais debates, a pesquisa é vista como uma prática de “implementação” (enactment). Isso inclui a inédita interpretação do conceito de “montagem” de Bruno Latour (2005) e a afirmação de Law (2004, p. 55) que os “objetos de pesquisa” – ou o que geralmente designamos como tal – são, na verdade, construções oriundas de diversas formas de representação acadêmica. A p e s q u i s a pa r a a c r ia ç ã o Pode parecer enganoso distinguir as fases de pesquisa iniciais das fases de produção (devido a uma crença equivocada de que o tempo dedicado à pesquisa exclui o processo de produção “oficial”). No entanto, é importante reconhecer que a criação – mesmo (e especialmente), quando realizada como uma pesquisa per se – supõe, antes de tudo, uma compilação. Assim, os elementos – documentos, ideias, conceitos, colaboradores, tecnologias etc. – são reunidos durante um processo de “pesquisa”. Da mesma forma, a leitura de artigos de revisão recentes, a busca de referências importantes ou a realização de entrevistas desempenham um papel fundamental nas várias contribuições acadêmicas do conhecimento, tratando-se de trabalhos convencionais, projetos de pesquisa-criação ou de outras iniciativas. A compilação constitui um tipo de pesquisa porque ela tende a uma futura “revelação”, tornada possível por uma concepção artística da tecnologia enquanto prática ou técnica. (HEIDEGGER, 1977) A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 97 97 5/20/14 4:31 PM Tomamos por exemplo os trabalhos contínuos de Sawchuk sobre os rios subterrâneos em Montréal. Os pesquisadores se propõem de fato a criar um experimento in situ que permitirá aos usuários de smartphones descobrirem o percurso dos rios desaparecidos e enterrados da cidade (ver www.mobilities.ca). O projeto necessitou mais de um ano de pesquisas em arquivos do Canadá e do Québec. A consulta de mapas e relatórios da época – bem como a prospecção a pé – permitiu reconstruir a rede de cursos de água. O projeto também exigiu esforços constantes para encontrar a melhor maneira de compartilhar recursos graças à computação em nuvem, a programação em grande escala e o funcionamento do universo de aplicações. O aprendizado e a pesquisa relacionados ao projeto foram realizados tanto antes como durante a fase de produção, durante a criação do site e do lançamento da versão inicial do aplicativo. Durante todo o processo de produção, essas várias formas de coleta de dados usando mídias digitais influenciaram sem parar as escolhas éticas e estéticas da equipe. A “pesquisa para a criação” evoca o caráter ao mesmo tempo essencial e diversificado das práticas específicas da vida universitária – entrevistas, compilação de “conteúdo digital”, pesquisa documental rigorosa, análise documental, pesquisa técnica etc. na maioria dos projetos de pesquisa-criação. Ela requer a aplicação de uma série de técnicas de pesquisa de base bem conhecidas. Podemos citar especificamente os procedimentos a serem respeitados para uma revisão da literatura ou uma análise documental e a definição de um conjunto de conceitos que fornecem orientação intelectual e inspiração para os responsáveis do projeto. Deve-se ressaltar que muitos projetos de pesquisa-criação em estudos de mídia não são o trabalho de uma pessoa só. Estes são frequentemente colaborações complexas que envolvem significativamente a concepção participativa e a amizade como método (TILLMANN-HEALY, 2003) na determinação dos objetivos criativos. A p e s q u i s a p e l a c r ia ç ã o A pesquisa é mais do que apenas uma simples etapa na elaboração de projetos artísticos destinados a ter uma existência própria. Assim, as performances, 98—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 98 5/20/14 4:31 PM experiências, obras de arte interativas e outras produções permitem a produção de dados de pesquisa que, finalmente, favorecem a compreensão de diversas dinâmicas. A utilização da informação proveniente da pesquisa pela criação não ocorre no final do processo, com o único propósito de “avaliar” a eficácia do trabalho; de fato, o trabalho em si pode gerar informações sobre a obra em gestação. Este fenômeno pode ocorrer de várias maneiras, inclusive através de respostas oficiais de usuários objetivando a melhoria de um projeto ou a tomada cuidadosa de notas de pesquisa. Além disso, a concepção ou o teste iterativo supõem às vezes a participação de indivíduos ou de grupos pertencendo ao público-alvo. Por exemplo, através de uma série de oficinas relacionadas ao projeto de gravação áudio no campo Audio-Mobile (http://audio-mobile.org) de Chapman (em colaboração com Sawchuk), os participantes testam as novas versões do aplicativo móvel, bem como outras aplicações comerciais para gravar e remixar. Nessas oficinas – que variam em duração de um a dois fins de semana – também são discutidos vários outros tipos de projetos áudio in situ realizados ao nível internacional, bem como quadros teóricos e tecnológicos relacionados com vários conceitos: “gravação em campo”, “caminhadas sonoras”, “dispositivos móveis”, “paisagens sonoras” etc. A aplicação Audio-Mobile passou por várias melhorias depois destas oficinas, modificações na concepção da interface, adição ou remoção de algumas funções e mudanças na estrutura do menu e do sistema de navegação. Considerando a experiência e os conhecimentos que puderam ser extraídos destas oficinas, esses encontros são mais parecidos como breves colaborações entre os participantes. Elas também são a origem de muitos novos conceitos tecnológicos, metodológicos, teóricos e criativos que – seguindo o exemplo de Crow, Longford e Zeffiro Sawchuk (2008) – coletamos e perfeiçoamos atualmente a fim de estabelecer protocolos e práticas para nossas iniciativas atuais e futuras. No entanto, a inclusão de práticas artísticas colaborativas no mundo da pesquisa sancionada pelas instituições e as novas oportunidades de financiamento têm, pode-se dizer, um preço. De fato, quando os artistas estão se unindo com terceiros, às vezes são obrigados a preencher formulários complicados relacionados com o protocolo ético do projeto. Esses formulários A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 99 99 5/20/14 4:31 PM muitas vezes deixam os comitês acadêmicos encarregados de examiná-los e, confusos, influenciam as liberdades e as práticas dos próprios candidatos. A pesquisa acadêmica envolvendo seres humanos deve passar certamente por uma avaliação ética. No contexto da pesquisa-criação, o papel dos colaboradores artísticos é difícil de ser definido: são eles sujeitos de pesquisa ou cocriadores? Assim, as questões que envolvem os protocolos institucionalizados da ética da pesquisa são extremamente importantes para o futuro acadêmico da pesquisa-criação. Eles geram também muitos debates, especialmente no Canadá, onde os três órgãos administrando os protocolos de Ética da Pesquisa – o Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas (CRSHC), o Instituto de Pesquisa em Saúde do Canadá (IRSC) e o Conselho de Pesquisas em Ciências Naturais e Engenharia do Canadá (CRSNG) – publicaram em dezembro de 2010 uma nova versão de seus regulamentos. De acordo com esses regulamentos, as práticas criativas não constituem “pesquisa” em si. Tal declaração permite (e é, talvez, melhor assim) evitar a importante dificuldade que seria o estabelecimento de diretrizes éticas para as práticas artísticas colaborativas. No entanto, ela também reforça a distinção histórica entre arte e conhecimento. Contudo, um grande número de projetos de pesquisa-criação visa justamente o questionamento desse conceito e pretende intervir na realidade da universidade. Voltaremos a este assunto no final do nosso artigo.2 A s a p r e s e n ta ç õ e s c r iat i va s d a p e s q u i s a As apresentações criativas de pesquisa acadêmica tradicional é o terceiro modo da pesquisa-criação no contexto das “semelhanças de família”. A recente explosão de gêneros acadêmicos indica claramente a vitalidade desta forma de pesquisa-criação em muitas disciplinas: sociologia, estudos culturais, antropologia, comunicação e estudos de mídia, entre outros. Em 2000, em um excelente artigo intitulado Writing as a Method of Inquiry (“escrever como método de investigação”), Laurel Richardson descrevia as muitas maneiras com as quais práticas de escrita criativa intimamente relacionadas com a poética 2 Para mais informações sobre a Declaração de Política dos três Conselhos acesse: <http://www. pre.ethics.gc.ca/pdf/fra/eptc2/EPTC_2_FINALE_Web.pdf >. 100—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 100 5/20/14 4:31 PM das mídias questionaram os gêneros acadêmicos. Designando esse tipo de pesquisa pela sigla PAC3 (Prática Analítica Criativa), ela afirma que esses modos de escrita experimentais dão resultados que se manifestam não só ao fim de um projeto, mas também durante sua realização. O conhecimento não difere da prática de gravação; é efetivamente retrabalhando nossos projetos que chegamos ao conhecimento. Nas ciências humanas e sociais, a performer acadêmica Jackie Orr adotava, em 2005, um estilo de escrita inspirada da colagem para melhor transmitir os aspectos do estado mental de “pânico” que queria descrever. Nas conferências, ela utiliza amostras sonoras de boletim de notícias que pontuam, enfatizam ou apoiam adequadamente as ideias que apresenta. Enquanto ao projeto Lost Rivers (Rios Perdidos) de Sawchuk, foi concretizado por uma aplicação, um site e exposições apresentadas em galerias tradicionais. Nesses espaços, alguns dos “ativos digitais” do projeto foram mobilizados para uma projeção na vitrine, uma instalação de vídeo em grande escala e uma caminhada sonora móvel, complementados por composições de áudio interativas de Samuel Thulin – artista sonoro e doutorando em Comunicação. Dado a vontade entre os pesquisadores em adotar modos mais poéticos e evocativos de expressão, as revistas acadêmicas devem agora lidar com novos gêneros e encontrar maneiras originais de apresentar seu conteúdo on-line. RESmedia, por exemplo, convida os críticos a escrever artigos curtos e a incorporar no texto imagens ou trechos dos filmes estudados. O Canadian Journal of Communication também permite a inclusão de filmes, imagens e sons na sua publicação online. No entanto, é Vectors que vai mais longe, uma vez que apenas são selecionados projetos podendo existir somente online. Quanto às teses, as universidades estabelecem regras sempre mais restritivas e, paradoxalmente, mais elásticas. Por exemplo, à normalização do tamanho das margens e da fonte se junta a exigência de utilização de uma fonte específica e, para fins de arquivo, o uso de papel – embora algumas universidades, deve-se notar, estão se movendo para práticas de arquivamento digital. Da mesma forma, as imagens devem ser inseridas no texto segundo um código bem definido apenas como “figuras”, para ilustrar um ponto. 3 CAP <creative analytic practice/pratique analytique créative>. (N.T.) A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 101 101 5/20/14 4:31 PM As ilustrações, os arquivos de som, os trechos vídeos e outros meios não são considerados como elementos essenciais. Na verdade, na maioria das instituições, avaliação e arquivamento dos mesmos são problemáticos. Assim, em 2007, Chapman escreveu sua tese – Selected Sounds: A collective investigation into the practice of sample-based music – em HTML para poder organizar algumas partes de maneira não linear e inserir exemplos de áudio.4 Estes também foram gravados em um CD e colocados juntos com a cópia do documento que Chapman foi obrigado a submeter. O uso de novas mídias apresenta desafios, especialmente em termos de arquivamento e preservação. Tendo em conta a evolução constante dos sistemas operacionais, das atualizações frequentes de aplicativos de software e dos programas e o aumento da velocidade de processamento e da capacidade de armazenamento do material, a questão do arquivamento e acessibilidade futura desses projetos torna-se primordial. A c r ia ç ã o c o m o p e s q u i s a Para entender a mais complexa de nossas categorias – a criação como pesquisa – é importante entender que o surgimento de certos tipos de pesquisa não é possível sem o ato de criação. Por pesquisa, não queremos dizer aqui a análise de processo ou de produtos criativos na forma de dados. Defendemos ao contrário que – de acordo com a orientação de cada um – criar uma obra de arte constitui a pesquisa. Esta exploração pela criação pode incluir a experimentação, a análise, a crítica e um profundo compromisso com a teoria e metodologia. Como categoria, a criação como pesquisa tem como objetivo reconhecer este potencial. Trata-se de investigar a relação entre a tecnologia, o ato de reunir e o de revelar através do processo artístico, onde, de acordo com Franklin (1992) e Heidegger (1977), a “tecnologia” refere-se tanto ao “material” quanto a um estado de espírito e o ato de fabricar. Esta abordagem supõe que o tempo, a energia e a atenção necessários para a pesquisa estejam realocados no centro dos processos de prática criativa. 4 <http://selectedsounds.org>. 102—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 102 5/20/14 4:31 PM O projeto MemorySpace5 de Sawchuk (2012) ilustra esse ponto de vista. De fato, o processo criativo – a organização de uma exposição pública coletiva de fotografias pessoais, em colaboração com idosos – não teria tido o sucesso esperado sem a vontade de aprender, inclusive através da discussão e do uso de vários suportes de mídia digital. A simples redação de um texto sobre os idosos e seu consumo de tecnologia digital, por exemplo, não teria tido o mesmo impacto. O projeto, sem dúvida, levantou muitas questões teóricas. Assim, Sawchuk examinou a relação entre os suportes midiáticos e os vários sentimentos vivenciados pelas pessoas com relação à proteção de suas vidas pessoais, representadas, neste contexto, por imagens. De fato, estes sentimentos tomam o lugar da fronteira entre o público e o privado, limite que influencia tanto as imagens pessoais que os participantes estão dispostos a compartilhar os métodos de difusão que considerem aceitáveis. Como parte de sua tese de doutorado sobre o uso de sample6 na música (Selected Sounds, mencionada acima), Chapman, por sua vez, produziu um disco compacto7 em colaboração com outros seis artistas sonoros. Cada participante sugeriu uma amostra áudio para o projeto e compôs uma música usando apenas os sete tons propostos. Entrevistas com os artistas lançaram luz sobre suas práticas de amostragem/sample, suas definições das mesmas, as tecnologias que eles privilegiam e os processos que adotaram para contribuir com o projeto. Assim, a produção colaborativa forneceu não só um ponto de referência fundamental para o componente etnográfico do projeto, mas também permitiu a exploração do potencial deste tipo de práticas musicais e a sua demonstração frente aos auditores. Portanto, o processo de colaboração resultou em uma pesquisa pela criação. Os “resultados” da pesquisa também foram apresentados de forma criativa e original. Esta combinação de modos de pesquisa-criação não é surpreendente; como mencionamos anteriormente, as quatro categorias não são mutuamente exclusivas. No entanto, uma distinção essencial, embora sutil, vá até o próprio cerne de nossa concepção de criação como pesquisa. 5<www.memoryspace.mobilities.ca>. 6Sample refere-se a trechos de outras músicas servindo de base para uma nova. (N.T.) 7 CD. (N.T.) A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 103 103 5/20/14 4:31 PM O processo de amostragem colaborativo foi, para o próprio Chapman, um modo de pesquisa essencial que permitiu a realização, análise, contextualização e teorização de um conjunto de obras de arte originais e direcionadas. O resultado é uma experiência de aprendizagem rica e versátil. Durante o trabalho, a heterogeneidade idiossincrática das práticas musicais inspiradas de amostras – cuja filiação a esta categoria permaneceu clara por causa de seus ares familiares – se revelou. Prova irrefutável da diversidade das abordagens, das estéticas e das técnicas no campo, o disco compacto desta colaboração não poderia ter revelado esta “verdade” de maneira mais eloquente. No entanto, sem interpretação, seu conteúdo permanece opaco. Podemos considerar, entre outras coisas, as entrevistas realizadas no âmbito do projeto, bem como as observações dos participantes, como formas de identificar e explorar o conhecimento que já fazia parte da obra, por assim dizer, o que leva à noção de criação como pesquisa. Este é também o que faz deste empreendimento uma intervenção. Primeiro projeto de doutorado de pesquisa-criação em comunicação no Canadá, ele oferece um modelo original de pesquisa acadêmica. Em termos de contribuições textuais, uma ligação explícita foi estabelecida entre as citações de autores e a amostragem na música eletrônica. (CHAPMAN, 2011) De novo, essas formulações teóricas foram exploradas, primeiramente, através de práticas artísticas; Chapman as descreveu em seguinte, até mesmo as imitou em certa medida, na sua tese escrita. A artista performática e teórica, Natalie Loveless (2010), explica, admiravelmente, a nossa posição: Tenho a intenção de estourar nossas reflexões sobre as categorias de “prática” e “teoria” de modo que elas sejam secundárias em relação a uma ampla variedade de modos; eu quero interpretar a prática na teoria e a teoria na prática, um pouco como a fita de Moebius, isto é, como sendo diferentes apenas no contexto de um determinado momento de produção. Queria que nossos conceitos de “teoria” e “prática” sejam refutados enquanto opostos binários, não pela assimilação, mas pela compreensão de suas complexidades contextualizadas. 104—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 104 5/20/14 4:31 PM Se a pesquisa pela criação supõe um processo iterativo – idas e voltas entre a pesquisa e a criação ou a reflexão e o desenvolvimento de conhecimento – a criação como pesquisa, por sua vez, redefine os conceitos de teoria, criatividade e conhecimento como tais. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma forma prática de compromisso teórico e de reconhecimento dos processos de análise e de articulação de novos conceitos fazendo, por vezes, parte do processo de criação artística. A produção de conhecimento é feita através de um trabalho criativo, em vez de uma simples análise ou interpretação do mesmo. Assim, o trabalho criativo pode ser considerado como uma intervenção altamente eficaz que, pela sua forma de contribuir para o conhecimento, se afasta significativamente da norma acadêmica. Isto leva a repercussões epistemológicas. Fontes de conhecimento, as produções criativas – embora equivalentes em termos culturais – são distintas de outros tipos de pesquisa cujos resultados têm uma forma mais clássica: artigo de jornal especializado, livro estudioso, fórmula matemática, relatório de pesquisa, estudo, teses etc. Graças à pesquisa (ou seja, a interpretação e análise) e à criação (ou seja, a implantação e o compromisso prático), o fenômeno que nos interessa surge. Conclusão Longe de querer estabelecer categorias definitivas, nossa abordagem propõe promover um exame lúdico das “semelhanças de família” entre os vários aspectos da pesquisa-criação que muitas vezes inclui uma variedade de atividades. Obviamente não é fácil delimitar essas categorias, porque elas estão interligadas. Os modos de pesquisa-criação não são etapas lineares, mas processos que operam em paralelo. Aqui é onde nós queremos chegar: enquanto meio de analisar as mídias que permitem aos acadêmicos experimentar diversos processos criativos, a pesquisa-criação faz descobrir estruturas inéditas para entender, comunicar e divulgar conhecimento. A partir desta perspectiva, a pesquisa-criação também é uma intervenção epistemológica no âmbito da metodologia acadêmica. Os novos horizontes que ela abre mudaram de aparência, dependendo das disciplinas que a acolheram. Nossas experiências, por exemplo, foram A pesquisa-criação explicada— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 105 105 5/20/14 4:31 PM firmemente enraizadas nas áreas da comunicação, das mídias e dos estudos culturais, como ensinadas na Universidade Concordia. Cada projeto de pesquisa-criação é uma intervenção potencial, tanto no que diz respeito às tradições de pesquisa, prática e história nos quais está registrado quanto dentro da instituição que o patrocina. Essa heterogeneidade torna precisamente a pesquisa-criação um fenômeno tanto oportuno quanto problemático em termos da sua integração nos sistemas universitários de produção de conhecimento. Por transgredir as normas estabelecidas sobre a forma e o conteúdo da atividade universitária, a pesquisa-criação revela sua natureza construída em relação com toda forma de conhecimento. Ao fazê-lo, ela também aponta para outros elementos do “regime de verdade” endêmico do sistema universitário, incluindo a tendência a privilegiar as formas lineares e textuais de disseminação do conhecimento, os métodos quantitativos de medida de produtividades dos teóricos, a natureza institucionalizada e burocrática do financiamento e o conservadorismo de muitas publicações. Felizmente, um número crescente de universidades canadenses reconhece a importância da pesquisa-criação e colabora com pesquisadores, acadêmicos e artistas para encontrar maneiras de integrá-la como uma abordagem válida de pesquisa acadêmica em ciências sociais e humanas, bem como em belas-artes. No contexto da comunicação e dos estudos das mídias, foi necessário reconhecer que a produção e prática não são úteis apenas como uma “formação profissional” para aqueles que aspiram a uma carreira na indústria. De fato, elas podem também ser um componente essencial dos estudos em comunicação. R e f e r ê n c ia s BARRETT, Estelle; BOLT, Barbara (Ed.). Practice as research: approaches to creative arts enquiry. London, UK: I.B. Tauris, 2010. BARTHES, Roland. A lovers discourse: fragments. Tradução de Richard Howard. New York, NY: Hill and Wang, 1977. 106—Owen Chapman e Kim Sawchuk teoria-meios-comunicacao_v1.indb 106 5/20/14 4:31 PM BENJAMIN, Walter. Theses on the philosophy of history. 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Ou contemplando o ciberespaço em continuidade com as análises dos usos da informática. A marca das condições do passado de um medium institucionalizado e, por tanto, já historicizado, frequentemente se repercute nas concepções e percepções de um medium em fase de emergência. A extrapolação prospectivista serve, neste momento, de forma de raciocínio e, nesses casos, a análise parece ser evolucionista quase que por natureza. teoria-meios-comunicacao_v1.indb 111 111 5/20/14 4:31 PM As relações entre os media não constituem um campo de evidência, de experiência direta. Precisamos então antecipar tanto as rupturas como as continuidades em nosso estudo das novas configurações do saber emergente na encruzilhada atual dos media, em uma nova ecologia mediática. “Configuração” é a palavra-mestre desta abordagem: meu objeto de estudo são as configurações ou dispositivos mediáticos em vez dos media, simplesmente porque a palavra medium muito frequentemente se refere apenas aos dispositivos técnicos de transmissão ou de difusão da informação. Ao inverso, por configuração ou dispositivo mediático, entendo que se trata de um objeto de caráter complexo e compósito, constituído por redes dinâmicas de gestos, de imagens, de atos de linguagem ou de discurso, ancorado nas práticas que mobilizam entidades humanas e não humanas, naturais e artificiais, em processos de comunicação (que eles mediam). Em outros termos, uma configuração mediática é um dispositivo específico de mediação e, em vez de insistir no objeto medium, insisto no processo de mediação habilitado por um dispositivo específico. De fato, enxergo na emergência dos novos relacionamentos que se tecem entre as diversas configurações mediáticas, o fenômeno mais notável na produção da paisagem mediática contemporânea. As configurações mediáticas se escrevem, então, necessariamente em uma diacronia, dentro de diversos processos de transformação que associam (re) combinações de configurações mediáticas anteriores e fenômenos de inovação. A recombinação de configurações mediáticas anteriores às vezes os transforma profundamente, ao ponto de parecer reinventar o medium de origem. Devido à onda de informatização dos anos 80 e depois da onda de implementação de rede dos anos 90, a própria noção de mass-media foi assim submetida a uma mutação e se parece agora como uma montagem complexa de modalidades análogas e digitais, de mediações tradicionais e de “novas tecnologias”. Em suma, estamos agora nos deparando com uma verdadeira ecologia mediática que nada ou quase nada nos permite antecipar, senão analogias limitadas e rapidamente ultrapassadas. Considerando este contexto contemporâneo, este texto propõe uma perspectiva sobre a teoria mediática no cruzamento com as abordagens da ecologia mediática – inspirada pelos trabalhos fundadores de Harold Innis, 112—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 112 5/20/14 4:31 PM Marshall McLuhan e Neil Postman, mas também da mediologia francesa de Régis Debray e Daniel Bougnoux – e da arqueologia mediática – inspirada por Friedrich Kittler, Jussi Parrika e Erkki Huhtamo. Trata-se, de fato, de apresentar um conjunto conceptual apropriado à teoria mediática neste início de vigésimo primeiro século. U m a n o ta l e x i c a l : / m e . d j Ɔ m / , / m e . d j a / Antes de entrar no cerne da questão, permitam-me um instante de reflexão lexical. Alguns de vocês talvez questionem minha insistência em colocar em itálico a palavra “medium” nessas frases iniciais. Longe de qualquer efeito de estilo (duvidoso) que trataria de indicar ao leitor as palavras “importantes”, reservo de preferência essa convenção às palavras de origem estrangeira e, em particular neste caso, ao latim. Considero assim crucial distinguir tanto quanto possível, diversos sentidos e ortografias de uma constelação conceptual própria a meu propósito. A palavra /me.dja/ (na sua transcrição do alfabeto fonético internacional) representa, de fato, a ponta de um iceberg semântico que as convenções ortográficas deveriam nos permitir derreter. Assim, distingo aqui médium de medium e até mesmo de meios; as mídias de media e, sobretudo, a mediação da mediatização. Em sua acepção mais geral, mas também mais adequada para meu propósito de almejar o desenvolvimento de uma ecologia mediática, usarei a palavra medium, no plural media, nos dois casos em itálico, para significar os meios, intermediários ou meios de comunicação. O uso do itálico se faz necessário aqui visto que a palavra contemplada vem do latim, onde possui todos esses sentidos. Restringirei em seguida o uso da palavra “médium”, no plural “médiuns”, a seu sentido adquirido no século XIX de “pessoa conhecidamente dotada do poder de comunicar com os espíritos”. (MÉDIUM, 2008) Trata-se realmente de uma restrição do sentido da palavra /me.djƆm/, palavra aparecida na língua francesa no século XVI e que manteve seu sentido do latim até o século XIX. Segundo o dicionário, o sentido derivado de intermediário entre os vivos e os espíritos, remontaria a 1853 e seria proveniente do inglês. Os primeiros significados expressam com precisão o sentido em Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 113 113 5/20/14 4:31 PM latim: “1. (1704) MÚS. alcance da voz, registro dos sons entre o grave e o agudo [...] 2. LOG. Meio termo. 3. PINT. Líquido que serve para suavizar as cores”. Enfim, ainda segundo o dicionário, restringirei o uso da palavra “mídia”, no plural “mídias”, aos “meios de difusão, de distribuição ou de transmissão dos sinais portadores de mensagens escritos, sonoros ou visuais” destinados a um público de massa. Isso está em conformidade com a etimologia muito recente (1965) desta palavra em francês, sendo que se trata de fato da francização do inglês americano “mass media”.1 Mais que simples convenções ortográficas, as precisões anteriores pretendem oferecer vários meios de engajar nossas reflexões, no bom sentido, e traduzem, de fato, alguns axiomas fundamentais para pensar a ecologia mediática contemporânea: 1) Todos os media não são mídias. Em outras palavras, existem os meios, intermediários ou ambientes (milieux) de comunicação que não são direcionados aos públicos de massa. Everett Rogers, por exemplo, falava antigamente de “de-massificação” para evocar a capacidade de alguns “novos media” (como eram chamados na época) de permitir a interação interpessoal ao dar a seus usuários certo grau de controle sobre o processo de comunicação. (ROGERS, 1986, p. 5) 2)Os media podem funcionar como médiuns, disponibilizando o pensamento dos mortos, por exemplo, mas isso não constitui uma condição necessária, e menos ainda uma condição suficiente, para sua condição de ser-medium. A ecologia mediática contemporânea concerne tanto aos seres vivos quanto aos mortos e não pode ser reduzida unicamente a sua função memorial (nem tampouco à sua função de transmissão, como veremos mais adiante). 3) O sentido mais geral da palavra medium caracteriza essas entidades, humanas ou não, como intermediários ou ambientes; elas são, por definição, entre. Quando esse “entre” é considerado num sentido 1 Traduzimos aqui o termo francês “médium” por “mídia”. Ambos correspondem à adaptações do latim, respectivamente, ao idioma francês e ao idioma português. O francês também emprega as formas “média” e “médias” para designar meio e o plural de meios. Neste caso, usaremos “mídia” e “mídias”. (N.T.) 114—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 114 5/20/14 4:31 PM teológico, a palavra “meio de comunicação” deveria ser privilegiada. Trata-se, no entanto, de um sentido entre outros de medium, que não supõe necessariamente uma causalidade final. Ao inverso, veremos que a causa formal é crucial para entender, em um sentido pelo menos, a ecologia mediática contemporânea. Da e c o l o g ia m e d i át i c a Meu uso da noção de ecologia mediática se inscreve em várias tradições acadêmicas bem estabelecidas, algumas se identificam diretamente com esse vocábulo, outras o mobilizam de maneira menos central, até mesmo implícita. Essas tradições, ou campos de estudos, parecem estar difundidos de maneira global, pelo menos na América do Norte, tanto como na Europa. Como Lance Strate (2006, p. 4-5), prefiro falar de campos de estudos (fields of study) do que de disciplina, de escola, de teoria ou de paradigma. Pois, como ele, penso que esses campos são de fato pluri, inter ou mesmo transdisciplinários; que eles não constituem uma escola, mas abrigam provavelmente várias delas (ou nenhuma, segundo os sentidos vagos que nos ligam a esse termo); que “teoria”, com seus sotaques cientistas e suas origens gregas, metaforicamente visuais, não convém para descrever seu discurso; e finalmente, que a diversidade desses campos, suas relativas ausências de comunicação, não milita para um estatuto pragmático (nos dois sentidos centrais descritos por Kuhn (1983), ou no sentido de Agamben (2008), mas de preferência pré-pragmático. (NYSTROM, 1973 apud STRATE, 2006, p. 4) Devido à falta de espaço, me limitarei aqui a conjugar duas abordagens centrais dos estudos da ecologia mediática: a nebulosa norte-americana (federada por Neil Postman) que reivindica seu nome, e a mediologia francesa (ao redor de Régis Debray), que me parece muito próxima da primeira. Não está no meu propósito aqui produzir uma verdadeira genealogia da noção de ecologia mediática, ainda mais que apareça relativamente sujeita a debates. Alguns, como Neil Postman, seu principal defensor americano, atribuem sua paternidade a Marshall McLuhan (POSTMAN, 2006, p. 65), e outros, a Neil Postman. (LUM, 2006, p. 9) De todo modo, penso que pode- Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 115 115 5/20/14 4:31 PM mos facilmente datar essa ideia no final dos anos 60, período que parece ser caracterizado pelas ressonâncias dessa noção de ecologia. Postman (2006, p. 62) atribui a origem moderna desta noção ao biólogo alemão Ernst Haeckel, quem a usava para qualificar “as interações entre os elementos de um ambiente natural”. Por sua vez, a mediologia francesa remete à introdução da noção do “ambiente” (milieu), primeiro passo rumo a uma “ecologia cultural”, no “século XIX, com Lamarck e Darwin, [que] importou a noção de ambiente da mecânica para a biologia”. (DEBRAY, 2009, p. 18) Mas, enquanto movimento militante de grande amplitude, foi nos anos 60 que a ecologia se desenvolveu, especificamente seguindo a publicação da obra pioneira de Rachel Carson, Silent Spring. (CARSON, 1962) Em sua conferência em homenagem ao conde Alfred Korzybski, Gregory Bateson (1970) já usava a noção de uma “ecologia das ideias”, que ele atribuía a Sir Geoffrey Vickers. Baterson (1980, p. 265) precisou essa ideia em 1974: Na raiz [desta perspectiva] está a noção que as ideias são interdependentes, que elas interagem entre si, que elas vivem e morrem. [...] Você tem este tipo de entrelaçamento complicado, vivendo, lutando e cooperando, idêntico a aquele que você encontraria em qualquer encosta de montanha com as plantas e os diversos animais que ali vivem – de fato, uma ecologia. O vínculo com Krozybski está longe de ser fortuito aqui, já que, segundo Postman (1974), a ecologia mediática, ou seja, o estudo dos media como ambiente, não é nada mais do que “a semântica geral levada ao extremo” [General Semantics writ large]. Durante sua palestra em homenagem a Korzybski, Postman (1974) indicava assim que ele não tinha feito nada mais do que melhorar o mapa fornecido pelo conde polonês, que, segundo ele, “sofria de uma curiosa e paradoxal obstrução da visão: não enxergava que os media deviam ser considerados como linguagens e assim não tinha refletido seriamente sobre como suas estruturas influenciam as percepções e os valores de uma dada época histórica”. Na mesma linha de pensamento, a mediologia francesa se refere deste modo ao livro “fundador” de André Leroi-Gourhan (1964), Le geste et la parole, para estabelecer essa isomorfia medium/linguagem na perspectiva de uma antropologia, ou melhor, de uma antropo-genética: “o 116—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 116 5/20/14 4:31 PM pré-histórico”, escreve Debray sobre Leroi-Gourhan, “estabeleceu que a linguagem e a ferramenta são ‘a expressão da mesma propriedade do homem’”. (LEROI-GOURHAN, 1964 apud DEBRAY, 2009, p. 20) Essa passagem pela técnica, aparentemente própria do homem,2 se torna a passagem obrigatória da natureza à cultura, da ecologia natural à ecologia cultural: no meio da passagem, os media, essas técnicas singulares, esses dispositivos de mise en abyme – e no abismo. Ou para retomar Derrida (1990, p. 191-192), questionando Heidegger: A mão do homem seria então uma coisa à parte, não tanto como órgão separável, mas porque é diferente, dessemelhante de todos os órgãos de preensão (patas, garras, unhas); ela está afastada de maneira infinita pelo abismo de seu ser. Esse abismo é a fala e o pensamento. Somente um ser que fala, ou seja, que pensa, pode ter a mão e realizar na manipulação as obras da mão. A mão do homem é o pensamento a partir do pensamento, mas a mesma é pensamento a partir da fala ou da língua. De um modo certamente menos antropocentrista, Deleuze e Guattari (1980, p. 79) confirmam: “o que chamamos propriedades do homem – a técnica e a linguagem, a ferramenta e o símbolo, a mão livre e a laringe flexível, ‘o gesto e a palavra’ – são na verdade, propriedades desta nova distribuição, cujo começo é difícil de atribuir ao homem enquanto origem absoluta”. Não se trata de uma propriedade, uma distribuição, como no caso de distribuição estatística, um novo dado; Guattari (1989) insistiria mais tarde na evocação de emaranhamento de suas três ecologias: “a ecologia ambiental deveria ser pensada em um único elemento com a ecologia social e a ecologia mental, através de uma ecosofia de caráter ético-político”. É neste sentido que Erich Hörl (2012, p. x) conclui hoje, evocando o fato que Essas constatações programáticas demonstram a cristalização progressiva de uma semântica nova em torno do conceito de ecologia, 2 Com ou sem maiúscula, essa figura que descobrimos então como sendo potencialmente obsoleta (ANDERS, 2002; FOUCAULT, 1966), ou, pior ainda, que o medo de seu desaparecimento é apenas o reflexo narcísico da angustia ecológica suprema, o desaparecimento da vida mesmo sob os golpes da técnica. Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 117 117 5/20/14 4:31 PM encarregada de descrever a condição técnico-mediática contemporânea – ao mesmo tempo em que mostram quanto o conceito de ecologia está em evidência, estando ele próprio num processo de deslocamento, de transformação e de reformulação. Da c o n f i g u r a ç ã o t e c n o -m e d i át i c a c o n t e m p o r â n e a : t o r n a r-s e c y b e r-m e d i a É preciso, cantam os mediólogos em harmonia, reformular a questão da técnica, ou melhor, sob sua aparência contemporânea, a questão das técnicas do sentido: “nos mostrando a articulação entre uma representação simbólica eficaz (organizadora) e uma inovação técnica, a mediologia de fato refere o pensamento à ferramenta e a ferramenta ao corpo, sede do sentido”. (BOUGNOUX, 1991, p. 35) A mediologia francesa, da qual Bougnoux é um orgulhoso representante, segui os passos de Régis Debray, que a colocou desde suas origens na ordem da transmissão, da qual ela representaria “o ponto de vista” próprio: ela reúne “tudo que diz respeito à dinâmica da memória coletiva”, consiste “em transportar uma informação no tempo”, tem “um horizonte histórico, e como base de partida, uma performance técnica (via o uso de um suporte)”. (DEBRAY, 2000, p. 3) Entrento, ainda é preciso, corrigiu rapidamente Louise Merzeau (2009a, p. 780), desconfiar das “oposições rígidas entre duas polaridades”, como a polaridade inicial estabelecida por Debray (comunicar/transmitir): “a demarcação clara e nítida entre uma continuidade cultural trabalhando no longo prazo e a dispersão instantânea de uma indiferenciação técnica impede de fato de pensar nos fenômenos de hibridação que caracterizam a hiperesfera” insiste, evocando a mediaesfera contemporânea sob seu nome mediológico (a hiperesfera, depois da logoesfera, a grafoesfera e a videoesfera, MERZEAU, 2009b). Encontramos aqui, sem dificuldades, as classificações esboçadas por Harold Innis (1950) e Marshall McLuhan (1962), cujas fases são revistas e renomeadas, antes de ser ampliadas por essa quarta e contemporânea descrição. Notamos, de passagem, a introdução de um novo termo vindo do léxico biológico, a hibridação e a ascensão em potência dimensional associada ao 118—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 118 5/20/14 4:31 PM prefixo “hiper”, mobilizado desde 1962 por Ted Nelson para qualificar as novas formas de escrita (hipertextuais). ( BARDINI, 2004) Em suas Notes Toward an Intellectual History of Media Ecology, Casey Man Kong Lum 2006, p. 32-33) resume a tradição de pesquisa da ecologia mediática em três propostas teóricas: 1) A forma simbólica de um medium impõe as características de um código no qual o medium apresenta a informação [...] e as estruturas que organizam os símbolos. Da mesma maneira, a estrutura física de um medium remete às características da tecnologia que carrega o código e os entraves físicos por a codificação, a transmissão, o armazenamento, a recepção, a decodificação e a distribuição da informação; 2) O conjunto único de características físicas, tanto quanto simbólicas de cada medium induz um conjunto de vieses que lhe são próprios; 3) Os media de comunicação induzem diversas consequências físicas ou perceptuais, sociais, econômicas, políticas e culturais, relacionadas aos vieses intrínsecos desses media. De outra parte, Lum (2006, p. 34) insiste sobre o fato que essas três proposições teóricas devem ser situadas dentro de uma perspectiva mais ampla que descreve um continuum indo do determinismo tecnológico ao determinismo duro (soft and hard determinism) e centrado na simbiose cultura/ tecnologia, “uma perspectiva para considerar a cultura humana como resultante das interações mutualmente transformativas entre as pessoas e as tecnologias ou media”. Assim, considerando os media como linguagens, a intuição original de Postman apenas fazia desenvolver a tese de Korzybski adicionando, na equação, a tecnologia – e mais especificamente as tecnologias do intelecto. (GOODY, 1979; LÉVY, 1990) Em outros termos, a perspectiva da ecologia mediática insiste nas formas e nas consequências da mediação linguística e assim nas configurações técnicas (ao mesmo tempo como processo e como resultado) de suas formas de expressão. De fato, Postman submeteu a tese Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 119 119 5/20/14 4:31 PM de Korzybski ao mesmo tratamento que Douglas Engelbart, o pioneiro da informática pessoal que inventou o mouse e a primeira interface gráfica hipertextual (BARDINI, 2000), deu à hipótese de Whorf-Sapir: ele a estendeu às tecnologias mediáticas e às suas hipóstases informáticas, permitindo assim sua plena entrada na cibercultura contemporânea. A hipótese de Whorf estipula que ‘a visão do mundo de uma cultura é limitada pela linguagem que esta cultura usa’. Mas parece que existe um fator a ser considerado na evolução da linguagem e da capacidade humana de raciocínio. Oferecemos assim a hipótese seguinte, que é parente da hipótese de Whorf: tanto a linguagem usada por uma cultura quanto a capacidade para a atividade intelectual eficaz são diretamente afetadas, durante sua evolução, pelos meios pelos quais os indivíduos controlam a manipulação simbólica externa. (ENGELBART, 1962, p. x) Esta conexão acabará sendo crucial para a aparição da ecologia mediática própria da cibercultura contemporânea: ela demonstra na realidade que estava tanto presente nas mentes de seus analistas ou críticos quanto de seus engenheiros. A relação com a hipótese de Whorf-Sapir não tinha escapado à atenção de Neil Postman, que a havia rebatizado de a hipótese Sapir-Whorf-Korzybski-Ames-Einstein-HeisenbergWittgenstein-McLuhan-et al., segundo a qual, a linguagem não é um simples veículo para a expressão, mas é também seu motorista: o que percebemos, e então podemos aprender, é uma função de nossos processos de linguagem. (POSTMAN; WIENGRATNER apud STRATE, 2006, p. 51) Segundo Lance Strate (2006, p. 86), Louis Forsdale, o professor de Neil Postman, ainda considerava que a compreensão que McLuhan tinha dos media era fundamentalmente só uma extensão da hipótese de Whorf-Sapir. Mas além da referência aos pensadores das mediaesferas passadas, dos períodos antedatadeluvianos (antes do dilúvio dos dados digitais), a ecologia mediática contemporânea atualiza uma equação original: ecologia X cibernética = meio. 120—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 120 5/20/14 4:31 PM Existe de fato um efeito de sincronicidade que eleva ao quadrado, que amplia, o que o ambiente veio a significar. Para além das ferramentas, as técnicas e os dispositivos, a ecologia mediática contemporânea descobre novamente (reinventa talvez) uma nova organização do mundo, onde tudo é só fluxo, processo, patterns: “Onde acreditávamos tratar com as coisas, precisávamos considerar os fluxos; trocar as causas pontuais pelos sistemas e as interações; entre os seres estáveis introduzir a dialética, os ciclos recursivos, em suma, o pensamento comunicacional”. (BOUGNOUX, 1991, p. 23) Régis Debray (1991, p. 234-235), com seus três princípios fundadores da mediologia como “ecologia das ideias”, tinha aberto o baile, e suas regras do método ecológico renovavam assim o vocabulário: “Não tratar as ideias como coisas, mas como organismos vivos, ou seja, como relações e não entidades” (o princípio de interação); “Tratar então de populações, conjunto dos indivíduos de uma mesma espécie, para restituí-las em um ecossistema, equilíbrio baseado em intercâmbios e interações” (o princípio de população), e, por fim, o princípio “Uma espécie, um nicho”. Insistimos, então: esta ecologia não é metafórica, uma simples translação de um método, do vivo (organismos) ao psíquico (ideias), ou como os simples de espíritos queriam nos fazer acreditar, dos genes aos memes (onde o resultado se acha origem em uma invenção lexical simplista e simplificadora, pobre Baldwin!). Não, longe da linearidade, incipit o ciclo estranho, porque recursivo, onde ninguém pode discernir o efeito da causa: a partir daí, tudo é só “um ciclo sem fim, com espirais sempre reiniciadas”. (DEBRAY, 2009, p. 13) D o e s t u d o d o s m e d i a a o s e s t u d o s d a s m e d ia ç õ e s A evocação de ciclos recursivos, ciclos sem fins e outras espirais, assim como o empréstimo de um vocabulário biológico (hibridação, simbiose), ancoram a ecologia mediática em um pensamento cibernético que testemunha de sua atualidade. Ciclo (loop), com seu qualificativo técnico de retroação (feedback) é, na verdade, um dos dois conceitos centrais – junto com código – da síntese cibernética. (BARDINI, 2011, p. 68-70) Nascido com a reciclagem do regulador equipando os antigos moinhos de água sobre os primeiros motores a vapor e Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 121 121 5/20/14 4:31 PM particularmente sob a forma do regulador de bolas do motor de James Watt, o ciclo retroativo invadiu também, desde o século XIX, o pensamento biológico. Gregory Bateson (1980, p. 47), de fato, notou que Alfred Russel Wallace, o codescobridor da teoria da seleção natural tinha se dado conta, desde 1856, que o princípio da seleção natural “é exatamente aquele do regulador centrífugo do motor a vapor, que controla e corrige toda irregularidade quase antes mesmo que elas estejam presentes”. Essa convergência conceitual se manteve central no pensamento mediático, como atesta esse comentário de Friedrich Kittler (2003 apud WHINTROP-YOUNG, 2011, p. 79) – um dos teóricos mais marcantes da mediologia alemã do final do século XX: as máquinas e particularmente as máquinas inteligentes contemporâneas concebidas por [Alan] Turing, em 1936, não estão aí para nós humanos – somos, por assim dizer, construídos em escala grande demais – mas seria na verdade como se a natureza, essa resplandecente, cognitiva parte da natureza, retroagisse sobre si mesmo [sondern daß sich die Natur, dieser leuchtende erkennende Teil der Natur, mit selbst selbst rückkoppelt]. Essa convergência cibernética possui duas características fundamentais para o pensamento da ecologia mediática contemporânea: 1) ela renova a concepção da causalidade mobilizada nesses estudos; 2) solicita outra concepção da temporalidade. Essas duas características juntamente contempladas justificam uma transição do estudo dos media ao das mediações. No que se refere à causalidade, a maioria das análises mediológicas reivindicam uma forma de causalidade diferente da clássica relação de causa e efeito. Essa causalidade, ou essa lógica, ou ainda essa escala temporal, à imagem do ciclo de retração, é frequentemente qualificada de “não linear” (BOUGNOUX, 1991, p. 40), de “recursiva” (LÉVY, 2009, p. 30) ou de “circular”. (MERZEAU, 1999) Isso permite geralmente aos mediólogos recusar as acusações de “determinismo tecnológico” e reivindicar ao contrário uma lógica da coconstituição ou da coprodução da sociedade (ou das relações sociais) e da técnica: “o espaço das circulações que tratamos não se encontra num regime mecanista (uma causa, um efeito), mas sistemista (circularidade causa/efeito/ 122—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 122 5/20/14 4:31 PM causa) [...] o laço causal entre uma técnica e uma cultura não é nem automático nem unilateral”. (DEBRAY, 2000, p. 87-88, grifo do autor) Cabe a Marshall McLuhan ter sido o primeiro a relatar essa mudança de lógica em relação à noção aristotélica de “causa formal”. (MCLUHAN, M., 1976) Seu filho Éric precisou essa questão num livro recente. (MCLUHAN, M.; MCLUHAN, E., 2011) No prefácio deste livro, Lance Strate (2011, p. x-ix) resume, perfeitamente, esse argumento: McLuhan, junto com os outros pesquisadores da ecologia mediática, foi acusado de ser tecnologicamente determinista. E embora o determinismo tecnológico tenha sido frequentemente usado como argumento espantalho para descreditar McLuhan e os outros sem devida consideração, é muito fácil cair, por força do hábito ou falta de alternativa facilmente accessível, na linguagem determinista de causa a efeito. Assim, acabaremos dizendo, como por um tipo de atalho, que o estribo é a causa do feudalismo, da mesma maneira que poderíamos dizer que a evolução nos faz andar de pé. Tanto para os ecólogos mediáticos como para os biólogos, entendemos esse tipo de linguagem com um atalho, até mesmo uma forma de poesia usada para representar os fenômenos bem mais complexos. Esta complexidade pode ser bem melhor representada pelo conceito de causa formal do que por aquele de causa a efeito (também conhecida sob o nome de causa eficiente); a causa formal é a causalidade das propriedades emergentes, a causalidade que os ecólogos mediáticos geralmente têm na cabeça quando consideram o impacto da mudança técnica sobre os indivíduos e as sociedades, sobre a comunicação, a consciência e a cultura. A circularidade da causa formal, que faz com que “o contentor ‘estilize’ o conteúdo” (HUYGHE, 2009, p. 83) corresponde bem às pretensões teóricas da mediologia e particularmente à concepção da tecnologia ou das relações sociedade/tecnologia. Se, como afirma Bougnoux (1991, p. 410), “a relação da ferramenta ao uso não é linear (causal), mas ecológica”, convém retificar este parêntesis precisando: causal, sim, mas não no modo eficiente, mas bem mais no modo formal. Ou para falar de maneira mais clara, formal, na medida em que Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 123 123 5/20/14 4:31 PM o público é, em todos os assuntos de arte e expressão, a causa formal [...]. A causa formal é uma questão de efeito e de forma estrutural, não de julgamento de valor [...]. Visto que as causas formais estão escondidas no ambiente, elas exercem uma pressão estrutural por intervalo e interface interpostos com tudo que se encontra no território ambiental. (MCLUHAN, M., 1975 apud MCLUHAN, M. MCLUHAN, E.,, 2011, p. 129-130) É unicamente em, e através de seu uso da causalidade formal, que o aforismo mais conhecido da mediologia – “o medium é a mensagem” (MCLUHAN, M., 1964, p. 25) – pode ser realmente entendido. A meu ver, é esse recurso, muitas vezes implícito, à causa formal que se traduz pela necessidade para a ecologia mediática tanto como para a mediologia, de passar do estudo das media ao estudo das mediações. Notamos, em primeiro lugar, que aqui aceito dizer mediação e não mediatização. A “mediação” é definida pelo dicionário por “intervenção destinada a fazer concordar, a conciliar, a reconciliar”, ou mais geralmente como “o fato de servir de intermediário”, enquanto a mediatização designa a publicidade feita em torno de um conceito, uma organização ou uma pessoa, pelas mídias (e, então, particularmente as mídias de massa): publicidade no sentido de tornar público, mas também no sentido da tentativa de influenciar um comportamento de consumo. Numa primeira aproximação, poderíamos dizer que a definição mais ampla do medium corresponde à mediação e às mídias de massa a mediatização. Mas, de maneira mais crucial para meu propósito, considero que a mediatização corresponde a um objetivo teológico (orientado para um propósito, uma causa final), enquanto não é necessariamente o caso para a mediação (apesar da primeira definição do dicionário). A mediação é a quarta e “última” fase da trajetória dos estudos que contemplamos aqui: eles vão da mensagem ao medium ao meio à mediação. (DEBRAY, 2009) Observam que “fase” deve ser entendida no sentido da termodinâmica, no sentido onde líquido, sólido e gasoso podem ser as fases de um corpo, segundo as condições de temperatura, de pressão, no sentido, então, onde o corpo contemplado é o conjunto dessas fases (a água, H²O, não é só um líquido). No sentido em que, por exemplo, James Watt não inventou o governador centrífugo, primeira invenção cibernética antes do tempo: foi 124—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 124 5/20/14 4:31 PM simplesmente uma defasagem, desde seu antigo funcionamento nas máquinas explorando a fase líquida do H²O (os moinhos) a aquelas explorando sua fase gasosa (os motores a vapor). Não no sentido de “estado”, implicando, então, uma linearidade cronológica, “não um momento temporal trocado por outro, mas um aspecto resultando de uma duplicação de ser e se opondo a outro aspecto”. (SIMONDON, 1989, p. 159) É exatamente por essa razão que “isso [tal medium, o livro] nunca matará aquilo [tal outro medium, a catedral]” (MERZEAU, 2009b). É exatamente por essa razão também que a palavra mestre da ecologia mediática é “o emaranhamento das formas da mediação” e que a “configuração mediática” é um conceito bem melhor que o fetiche reificado e impossível de se encontrar, “o medium”. O que Debray (2009, p. 21), ele de novo, traduz em um programa: o objeto de estudo [da mediologia] não é um objeto, nem uma região da realidade (as mídias), mas os relacionamentos entre objetos ou regiões. Entre uma idealidade e uma materialidade; um sentimento e uma máquina; uma disposição e um dispositivo. O recurso não é novo (HENNION, 1990), e não se limita ao estudo destes dispositivos técnicos particulares que antigamente achou-se certo chamar de “media”. Talvez seja válido para toda forma de técnica, como lembrou Madeleine Akrich (1993, p. 96-97): Manter que existem formas de mediação técnica [...] é se proibir o tipo de dicotomia entre, de um lado, os indivíduos e do outro, os objetos técnicos [...]. É supor que existem formas híbridas [...] que se baseiam numa combinação inextricável entre certos elementos técnicos e certas formas de organização social. Mas será mais válido para estes dispositivos singulares cuja circulação é o próprio? Outra vantagem, mais técnica, a palavra [mediação] designa uma operação, não operadores; não obriga a fazer uma separação de princípio entre ferramentas, permite circular sem solução de continuidade dos humanos às coisas, passando por sujeitos ou obje- Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 125 125 5/20/14 4:31 PM tos, instrumentos, sistemas, linguagens, instituições. (HENNION, 1993, p. 32) Falar de “mediação mediática” não é, então, uma tautologia. Os media são apenas uma forma técnica de construção da realidade social, mas, esta forma tem suas especificidades no nível de seus dispositivos e assim também no nível das interações que habilitam e/ou restringem, em outras palavras, enfim às formas de uso que permitem. Somente a análise das mediações mediáticas, análise formal e causal (mesmo assim), poderá, é a aposta metodológica e, então, triplamente ecológica (como o queria Félix Guattari), dar conta do emaranhamento contemporâneo das formas mediáticas, da intermedialidade (GAUDREAULT; MARION, 2000) constitutiva da híperesfera contemporânea. U m m é t o d o d u p l a m e n t e r e c u r s i v o : a a r q u e o l o g ia m e d i át i c a O aspecto talvez mais contraintuitivo, mas também o mais problemático, do recurso à causalidade formal é a temporalidade que a mesma mobiliza. Pensem um pouco. O tempo de ponta-cabeça, onde, de certa maneira, o efeito precede a causa. No entanto, é a temporalidade em ação, se podemos acreditar nos mediólogos e em outros ecólogos mediáticos: “os efeitos se tornam conscientemente acessíveis sob a forma de descobrimento ou invenção como novas causas, tanto equipamento como software”, escrevia Marshall McLuhan e Nevitt (1973 apud MCLUHAN, M.; MCLUHAN, E., 2011, p. 43) em seu texto precursor. E os mediólogos ainda insistem: “a mediação volta para trás para morar por dentro da mensagem, que só existe independentemente de seus médiuns e meios de transmissão”. (DEBRAY, 2009, p. 19) O ciclo temporal recursivo torna-se assim estranho, à imagem daquele que inicia o computador, o ciclo de inicialização cujo nome inglês [bootstrap loop] evoca a fantasia do barão de Munchausen saindo de um buraco se puxando a si mesmo pelos cabelos, ou em uma edição posterior, puxando as correias das botas [by his own bootstraps]. 126—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 126 5/20/14 4:31 PM Penso que é aqui que se impõe um embrião de discurso sobre o método. Se os mediólogos, ou pelo menos os mediólogos franceses, remetem sua mediologia ao “tempo da transmissão” (DEBRAY, 2000), e que esta temporalidade é o tempo circular das causas formais, o tempo das técnicas mediáticas, ainda precisa implementar uma concepção adequada de historicidade – “uma historia marcada por emergências”. (BOUGNOUX, 1991, p. 29) Como dar conta destas emergências que fazem e desfazem a história, e como assim articular temporalmente a ecologia mediática? Aqui se impõe uma ontogenética, e então, um método. A resposta vem, a meu ver, da mediologia alemã (e particularmente dos trabalhos de Friedrich Kitller, 1990, 1999 e 2010, mesmo se ele finalmente recusou a apelação de arqueologia mediática para qualificá-los), a partir dos trabalhos seminais de Michel Foucault (1966, 1969), e nos prolongamentos do que chamamos, enfim há pouco tempo, de arqueologia mediática. (HUHTAMO, 2011; PARIKKA, 2012) Devido à falta de espaço, não vou tentar estabelecer uma genealogia deste método e ainda menos uma arqueologia ao quadrado, de escavar uma arqueologia desta arqueologia mediática (as duas últimas referências contribuíram para isso). Vou tentar, ao contrário, ressaltar as especificidades e necessidades, a partir de um conceito emprestado de Friedrich Kitller: a recursividade (WINTHROP-YOUNG, ainda não publicado). Recursividade 1. Histórias do presente, ou a insustentável permanência do novo. Se as antigas tecnologias um dia foram novas (MARVIN, 1990), pode se perguntar até quando os novos media ainda o serão. A resposta provável é “perpetuamente”, e isto ao menos em um sentido: A consequência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de orientação, que se desvia do Eterno para apreender o novo. O novo supostamente não designa a moda, mas ao contrário a criatividade variável segundo os dispositivos [...]. Pertencemos a dispositivos, e agimos neles. Chamamos a novidade de um dispositivo em relação aos precedentes de atualidade dela, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas ao contrário, o que nos tornamos, o que estamos nos tornando, em outra palavra o Outro, nosso tornar-se-outro. Em todo dispositivo, é preciso distinguir o que somos (o que já não somos mais), e o que nós estamos Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 127 127 5/20/14 4:31 PM nos tornando: a parte da história, e a parte do atual. (DELEUZE, 1988) Se as novas mídias são perpetuamente (ou sempiternamente) destinadas a serem remediadas (BOLTER; GRUSIN, 1999), sua arqueologia inverte recursivamente as correntes dessas re-mediações, retrocedendo seus efeitos sobre suas materialidades: essas histórias do presente, que partem do presente, da perpétua novidade do atual, seguem as cadeias das causalidades formais e reencontram o novo a cada etapa, como tantas fases da novidade. Um atual qualquer será assim recursivamente constituído do conjunto das fases de novidades, não das passadas, mas tornadas contemporâneas deste atual na medida em que contribuem à novidade. O que importa é o movimento diagnóstico que parte do atual para reencontrá-lo, sempre o mesmo e diferente, nessas materializações anteriores, enterradas nas camadas da mediação. Em outras palavras, passar da arqueologia do discurso (FOUCAULT, 1969) à arqueologia destes suportes enquanto participantes destas condições de possibilidades, sem se confundir, uma espiral a mais ou a menos (os discursos/ as redes de Kitller, aufschreibesysteme, literalmente os sistemas de notação). Recursividade 2. Das condições de possibilidade às condições de existência às condições de medialidade (o reino da felicidade). Foucault (1969, p. 115), em um gesto pós-estruturalista, propôs de passar das condições de possibilidades às condições de existência do discurso. A arqueologia mediática propõe voltar às condições formais que permitem ao discurso tomar forma, as mesmas formalmente determinadas pelas condições técnicas dos suportes. A cada etapa, as causas formais, também recursivas, movem o problema e evitam “o fracasso metodológico da arqueologia”: “a ideia bizarra de regularidades que se auto gerenciam”, que é o sintoma deste fracasso em Foucault. Segundo Dreyfus e Rabinov (1984, p. 126), não é nada bizarra se aceitamos que a causalidade que mobiliza é formal e não eficiente, em outras palavras, recursiva. Assim, é possível entender, ao contrário do que dizem Dreyfus e Rabinov, como uma arqueologia ampliada, descritiva e não hermenêutica, pode de fato mobilizar “uma eficiência causal das regras que regem as formações discursivas”, sem por tanto “hipostatizar ilegitimamente as regularidades formais que descrevem estas formações e as tornar suas condições de existência: uma 128—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 128 5/20/14 4:31 PM eficiência causal formal em vez da eficiência causal eficiente”. Sendo que, segundo Brian Massumi, “as regras determinam o jogo [aqui, da linguagem] do ponto de vista formal, mas não o condicionam (são a sua causa formal, e não sua causa eficiente)”. (MASSUMI, 1998, p. 123) Isto não significa em caso nenhum recair na “ilusão formalizadora” que Foucault (2001, p. 756) descreve como “imaginar que as leis da construção [de uma ciência, ou do saber], são, ao mesmo tempo e por direito, condições de existência”. Aliás, Dreyfus e Rabinov (1984, p. 124-125) tinham já a intuição que “não se trata totalmente, portanto, da armadilha na qual ele [Foucault] cai”. Isto também não consiste, apesar da semelhança, em invocar de novo as condições de possibilidade, ou mesmo “um forma de determinação absoluta”. A estranheza não é mais bizarra se ao aceitar que “as práticas discursivas são autônomas e determinam seu próprio contexto”, e que de fato é possível “encontrar nas próprias práticas discursivas o princípio regulador nas quais elas estão submissas” (DREYFUS; RABINOV, 1984, p. 126), basta entender que as práticas discursivas são também práticas mediáticas e que a regulação aqui evocada nada mais é do que a recursividade intrínseca à causa formal – aliás, o princípio cibernético por excelência. As condições de medialidade estão para as condições de existência, assim como as mesmas estão para as condições de possibilidade, o que fecha o ciclo de retroação sem tautologia, mas ao contrário, em um modo quase tautológico. Neste “quase” se escondem a mediação e a remediação, a perpétua produção do novo que nomeamos “atual”: alguma coisa é deslocada nesta passagem, no círculo do ciclo regulador, alguma coisa se transmete; “porque a linguagem é confundida com seu próprio funcionamento e nele esconde, poderíamos dizer, o segredo”. (ROSSET, 1997, p. 57) Recursividade³. O ciclo-memória, desfeito pelo próprio ciclo. Mas o que acontece justamente quando a atualidade, a novidade das práticas mediáticas, está organizada pelo princípio operacional da recursividade? O que acontece quando a discretização do tempo, além de ser um artefato de método (do método arqueológico ou anarqueológico – ZIELINSKI, 2006), torna-se o modo operacional do artefato mesmo? Marshall McLuhan admitia seu pessimismo numa entrevista nas colunas da revista americana Wired, aliás um excelente medium, medium sagrado do qual é o Santo Padroeiro: “a eficiência da idade da máquina não poderia descobrir nada que vale a pena, agora”. (WOLF, 1996, Entre ecologia e arqueologia— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 129 129 5/20/14 4:31 PM p. 187) Uma entrevista com McLuhan em 1996? Até Wikipédia sabe que o mesmo faleceu em dezembro de 1980. No cabeçalho do artigo, o entrevistador se entregava: Uma após a outra, pequenas alusões, confirmadas por terceiros, antigamente próximos a McLuhan, convenceram Wolf que seu correspondente não era mesmo McLuhan, era um bot 3 programado com um conhecimento tão profundo e atemorizador da vida e da biografia de McLuhan e de sua inimitável perspectiva. (WOLF, 1996, p. 129) Em outras palavras, uma máquina de escrever foi programada para gerar um “novo” McLuhan, cuja perspectiva é, apesar de tudo, vista como “inimitável” por aquele mesmo que supostamente deveria questioná-lo. Ainda pior, esta máquina se revela pessimista de suas próprias capacidades de descobrir coisa alguma, por excesso de eficiência. Como dizem os americanos: “period!” Inconclusões Se a mediação é a quarta fase dos estudos mediológicos e se a arqueologia mediática possui as chaves de sua operacionalização metodológica com recursividade de uma série potencialmente infinita de causas formais, que são o inverso da semiose, então, talvez devessem entender esta quarta fase da mesma maneira que Marcel Duchamps entendeu outrora, no final da modernidade, a quarta dimensão: “Virtualidade como quarta dimensão: não a Realidade sob a aparência sensorial, mas a representação virtual de um volume (análogo a sua reflexão em um espelho)”. Este enunciado um tanto crítico faz sentido se fizermos o esforço de relacioná-lo aos comentários que o rodeiam. Sugere um programa: tratar a quarta dimensão de maneira intrínseca, não analógica, apoiando-a em uma definição topológica da dimensão. A ideia, se desenvolvermos até o final a intuição de Duchamps, é mais ou 3Abreviação de “robot”. Um programa de software que imita o comportamento de um ser humano, através da consulta de motores de busca ou da participação em bate-papo em chats ou em discussões. (N.T.) 130—Thierry Bardini teoria-meios-comunicacao_v1.indb 130 5/20/14 4:31 PM menos a seguinte: em vez de apreender a dimensão pelas bordas, ou em outras palavras, pelos frágeis perfis que ela nos apresenta em três dimensões, podemos tentar, ao contrário, nos colocarmos dentro dela, de uma só vez, como um tipo de salto da mente. Este salto, o dispositivo inteiro do Grand Verre,4 com seus múltiplos programas e diagramas, está encarregado de estabelecer sua possibilidade e mesmo sua necessidade. Uma formulação um pouco diferente da mesma exigência nos levaria a insistir no caráter intrínseco da abordagem: se a quarta dimensão pode ser retomada a partir da terceira (como agir de outra maneira?), não será como um limite externo, mas como uma dimensão evanescente, pronta a ser reabsorvida pela “superfície” de nosso espaço habitual. A realidade seria assim o depósito, o resíduo (em vez da projeção) de formas quadridimensionais que um espírito superior poderia desdobrar numa dimensão suplementar. E a virtualidade seria justamente a película evanescente, propriamente “infradelgada”, que nos separa desta outra dimensão. Recuperada através da experiência virtual, a quarta dimensão não é mais relegada aos confins da realidade ou dentro de qualquer fundo sem fundo; ela não pode ser procurada em outro lugar senão na sua superfície, ou em suas franjas. (DURING, 2007) Um espírito superior, disse você, Mister During? Um humano aumentado, talvez um cyborg? 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Campos Introdução Nosso objetivo com esse artigo é o de apresentar ao leitor uma visão integrada a respeito dos processos de comunicação, ilustrando-a com uma breve descrição de seu fundamento epistemológico (de orientação construtivista-crítica), da teoria que dele deriva (a ecologia dos sentidos) e de propostas metodológicas que respondem, ao mesmo tempo, às necessidades de verificação teórico-científica e às práticas comunicativas de intervenção social. Inúmeras razões nos levaram a propor tal abordagem. A razão principal consiste em compreender a comunicação como um processo fundamentalmente ético. A problemática do estatuto da comunicação deriva de sua própria história como disciplina, gerida já a partir do século XIX por meio, sobretudo, de estudos psicológicos, filosóficos e linguísticos, mas “nascida”, nos anos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 137 137 5/20/14 4:31 PM 30, de um sequestro que Benito chama de “invasão metodológica da sociologia” (1982). Não podemos ignorar, a não ser que queiramos enfiar a cabeça na areia, que a comunicação foi promovida a “disciplina” em um contexto de transferência histórica de poderes políticos, econômicos e militares da elite internacional do sistema-mundo capitalista (FRANK, 1980) do Império Britânico ao novo “bastião da liberdade individual”, a nação estadunidense. Ligada à propaganda nos anos 30, imediatamente após a crise de Wall Street e a emergência dos Estados Unidos como potência, a comunicação foi um instrumento crucial no confronto do capitalismo e do socialismo como ideologias, sistemas e projetos humanos internacionais (como evidencia a emergência da publicidade de guerra da BBC de Londres, do terceiro Reich sob o comando de Goebbels e do Regime Soviético Stalinista). Aceita-se hoje em dia, de uma maneira geral, a ideia segundo a qual a comunicação é um “campo”. Sabe-se que inúmeras disciplinas mais estabelecidas que a comunicação, como é o caso das naturais (biologia, psicologia) e sociais (ciência política, sociologia), sem falar nas exatas, têm múltiplas denominações, normalmente criadas com o objetivo de categorizar as principais em subcampos específicos (exemplos: biologia marinha, psicologia do desenvolvimento, política internacional, sociologia urbana etc.). No caso da comunicação, o problema é mais complexo. Dependentemente da denominação atribuída, podemos tratá-la de diferentes maneiras: como campo profissional relacionado às práticas comunicativas (jornalismo, relações públicas etc.), como “ciência” cujas pesquisas produzem conhecimentos julgados verdadeiros e ou válidos, ou ainda como um campo de “estudos” (referente à tradução da denominação inglesa Communication Studies). Este último parte do pressuposto segundo o qual os processos de comunicação não podem expressar universais e não são necessários (no sentido lógico do termo). Nesse caso, portanto, tratar-se-ia de uma não ciência, de um campo literário-filosófico. Falar então de subdivisões torna-se difícil. Se tomarmos somente o termo “comunicação midiática” ver-nos-emos diante do paradoxo de nos questionar se a mediação releva de meios profissionais (práticas de informação, práticas de persuasão etc.), teóricos (classes sociais, processos econômicos etc.) ou técnicos (televisão, redes de computadores etc.). 138—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 138 5/20/14 4:31 PM A história ocidental tem múltiplos índices que demonstram não só que a comunicação não foi uma descoberta “ianque”, mas que os “meios”, as “mídias”, as “mediações” que levaram os cientistas sociais norte-americanos a separá-la da psicologia social e da sociologia, não constituem o cerne do problema. A preocupação com a comunicação não nasceu nem com a propaganda nem com o desenvolvimento de tecnologias “midiáticas”. Se pensarmos no princípio que constitui a comunicação, razões e paixões se entretecem pela ética e, seja qual for o meio, a mídia ou a mediação (pouco importa como as definamos), seus fundamentos foram explorados ao longo da história das ideias no seio de outros campos disciplinares (lógica, filosofia, biologia, psicologia, matemática etc.). É certo que as técnicas que permitem a representação do diferido assombram os incautos. No entanto, elas não se distinguem, em seus fundamentos, das representações pictóricas das cavernas ou dos sistemas simbólicos de comunicação dos indígenas das Américas. Do ponto de vista histórico, é certo afirmar que o estatuto contemporâneo da comunicação se constituiu durante o desenvolvimento de tecnologias que possibilitaram formas crescentes de intermediações capazes de permitir que “realidades” representadas e re-representadas emergissem indefinidamente, criando novas formas de participação coletiva. No entanto, o uso das técnicas associadas às tecnologias contemporâneas não muda a essência da existência humana e da necessidade biológico-simbólica de comunicar. A comunicação, como disciplina, tem como foco, portanto, essa necessidade essencial interativa, e não o que a “media” ainda que esse aspecto justifique um subcampo específico de questionamento. De modo que as denominações contemporâneas de “ciência” ou “ciências da informação e da comunicação”, “ciência” ou “ciências da comunicação”, “estudos em comunicação”, parecem-nos mais servir à dinâmica da “especialização” obsessiva do empirismo de orientação norte-americana, limitando sua compreensão como campo de reflexão transversal, prévio a todas as disciplinas e práticas. Pela comunicação, expressamos juízos. A problemática dessa possibilidade de expressão vai além do necessário e universal e do contingente e particular (situado), o que nos permite colocar em questão todas as tentativas de se classificar a comunicação. Se, portanto, não podemos associá-la ao racionalismo, ao empirismo ou às abordagens fenomenológicas, a questão A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 139 139 5/20/14 4:31 PM consiste em saber qual seria o estatuto epistemológico mais adequado. Não podemos nos esquecer que a causalidade empírica é análoga aos mecanismos biológicos da inferência (operações mentais) e que as relações entre sujeito e objeto precisam ser compreendidas ao longo do tempo. As interações comunicativas são resultado de relações in media res entre sujeito e objeto. De um lado, construções mentais subjetivas que se desenvolvem ao longo do tempo (relativamente aos conhecimentos dedutivos possíveis capazes de extrair formas lógico-matemáticas solidárias à realidade empírica) – processos necessários e universais – e, de outro, percepções de ordem afetiva modeladas temporalmente em função da experiência (relativamente aos saberes indutivos fenomenológicos, capazes de expressar o mundo vivido) – processos contingentes e particulares. Ambos os polos das interações respondem, ao mesmo tempo, por valores e atitudes de ordem ética. A consequência dessa posição é um “relativismo relativo” que não exila a possibilidade de retirar conhecimentos necessários e universais do campo da comunicação nem de integrar, nos estudos, as possibilidades hermenêuticas que emergem da interpretação do vivido. Propomos, portanto, a ideia de “atravessar”, pela comunicação, os conhecimentos (resultando de processos rigorosos de verificação) e os saberes (resultando de interpretações calcadas na subjetividade ancorada em processos intersubjetivos). Para nós, a comunicação é prévia a todas as disciplinas e práticas porque sem ela, nenhuma delas seria possível: precisamos da comunicação para estabelecer todos os campos acadêmicos, da matemática à história. Ela é também condição necessária às práticas de intervenção informal ou profissional no mundo social. Trata-se, portanto, de uma transdisciplina, de uma transprática. Para tanto, delinearemos resumidamente a posição construtivista-crítica por meio de uma discussão específica resultando de um estudo preciso a respeito do problema do jornalismo de “opinião”, atravessando-o (porque poderíamos estudá-lo de um ponto de vista econômico, político, psicossociológico etc.). A partir de uma perspectiva construtivista-crítica, gostaríamos de problematizar a questão específica dos chamados “gêneros opinativos”, analisando-a do ponto de vista da ecologia dos sentidos. (CAMPOS, 2007) Estas se desenvolvem transversalmente junto aos participantes dos processos de comunicação e refletem sua imersão psicossocial (cognitiva, afetiva) em 140—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 140 5/20/14 4:31 PM contextos históricos e ético-políticos. Estruturamos esse estudo nas seções seguintes: “Opinemos sobre o que é opinião”, “Considerações teórico-metodológicas” e “A construção da opinião no espaço público”. Na conclusão, retomaremos a crítica que desenvolveremos relativamente à própria noção de “gênero opinativo”, obedecendo a abordagem construtivista-crítica. Dessa maneira o leitor poderá ter uma ideia, ainda que bastante limitada,1 da aplicação teórica da ecologia dos sentidos e da metodologia de análise do discurso habilitada pela lógica natural. Faremos esse percurso discutindo a ética da prática jornalística, historicamente consagrada como uma das principais integrantes do campo da comunicação, tal como ele é entendido atualmente no Brasil. Opinemos sobre o que é opinião O objetivo da escolha da opinião, e de como ela é tratada dentro do âmbito do jornalismo, reside no fato de ela constituir um problema intelectual que está longe de ser esclarecido, mas que pode ser compreendido, ainda que de maneira parcial, à luz do desenvolvimento histórico da sociedade e das tensões geradas pelas lutas sociais. Este problema diz respeito ao estatuto de verdade que costuma acompanhar as histórias difundidas através das mídias jornalísticas. Sabe-se que a prática profissional jornalística construiu, ao longo de sua história, tradições relativas às maneiras pelas quais a comunicação com o público deveria ser estabelecida. O resultado, adaptado de acordo com a natureza de cada mídia, tomou a forma do que convencionamos chamar, na academia, de “gêneros jornalísticos”. As práticas das redações, dos jornais às rádios, das televisões às mídias digitais que fazem uso da internet, tiveram como resultado o desenvolvimento de dois tipos básicos de tratamento do “novo”: a notícia – fundamentada na ideia segundo a qual os fatos existem em si e podem ser objetivamente comunicados, e a opinião – fundamentada na ideia segundo a qual os fatos objetivamente apresentados mereceriam um tratamento reflexivo e analítico resultante de tomadas de posição. Encontra1 Para maiores esclarecimentos, convidamos o leitor a consultar nossas publicações. A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 141 141 5/20/14 4:31 PM mos, em cada um desses dois tipos básicos de gêneros jornalísticos nomeados segundo certa tradição acadêmica que distingue o empirismo absoluto supostamente objetivo do subjetivismo radical, formas mais específicas. Entre as que se referem ao segundo caso, a opinião, encontramos, por exemplo, o editorial, os comentários, as colunas dos leitores, as charges e as trocas virtuais – estabelecidas graças a procedimentos de produção como, por exemplo, os que encontramos na coluna do jornal O Globo Online “Eu repórter”. A opinião poderia ser definida sucinta e popularmente como a manifestação de ideias a respeito de imagens do mundo: representações que fazemos de coisas e experiências, relativamente a conhecimentos e saberes. Fundamentalmente resultado de interações que entretecem a subjetividade (ligada ao valor) e o mundo objetivo (ligado à possibilidade de se afirmar um “fato”) (HABERMAS, 2003), ela expressa universos de sentidos constituídos na progressão do mundo vivido dos sujeitos. A opinião tece esses mundos vividos sócio-historicamente na vida de grupos aos quais pertencem (as várias comunidades que se intersectam no conjunto da sociedade) e que se desenvolvem em contextos de trocas com o meio natural (o meio ambiente). Ainda que expressa subjetivamente, a opinião não está condenada ao mundo interior. Ela constitui-se dinamicamente no mundo social. Além disso, é deste constituinte por conta das imbricações sócio-político-econômicas que a produzem dialeticamente. Afirmar a existência do “jornalismo opinativo” como gênero implica que este seja elemento de uma estrutura mais ampla na qual sejam categorizados outros gêneros. Pode-se considerar didaticamente aceitável tal “gênero”, por exemplo, quando professores ensinam a alunos de graduação como se desenvolveram as formas de expressão jornalísticas. De fato, folheando um jornal ou “hiperlinkando” um website, podemos identificar produções “informativas”, “analíticas”, “opinativas”. Classificações como estas nos permitiriam dizer que uma produção é informativa quando ela trata de fatos “objetivamente” narrados; que uma produção analítica (ou interpretativa) desconstrói posições que se confrontam em debates públicos que merecem ser classificados sem que o autor, necessariamente, tome uma posição; que uma produção opinativa é a única que permitiria ao jornalista, em tese, de tomar uma posição, de defendê-la criticando visões concorrentes e de, eventualmente, apresentar pistas 142—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 142 5/20/14 4:31 PM de solução e assumi-las como corretas. Ora, tal constelação estrutural pede uma reconfiguração diante de uma análise construtivista-crítica. Ainda que o atual “modelo” profissional que encontramos nas redações dos jornais, rádios e tevês seja o resultado de um desenvolvimento histórico e que o jornalismo tenha passado por diferentes fases que o consolidaram de certa maneira e não de outra na sociedade brasileira (porque não podemos falar em jornalismo no singular, mas em jornalismos no plural), a distinção categórica que exila a opinião em determinados estilos jornalísticos merece ser colocada em questão. As razões para tal empreitada são múltiplas, mas a mais fundamental é que a manifestação expressiva de uma forma jornalística dada responde a imperativos complexos que tecem sujeitos, comunidades e sociedades em função de razões, de sentimentos e de julgamentos de fato e de valor que moldam configurações de sentidos (as ecologias dos sentidos). Definir uma opinião não é, portanto, tarefa menor. Preferimos fazer um percurso analítico de modo a tratar um conjunto de questões de fundo que, acreditamos, permitirá um entendimento renovado sobre o que seria uma opinião. C o n s i d e r a ç õ e s t e ó r i c o -m e t o d o l ó g i c a s Para explorarmos mais profundamente a problemática da opinião, faremos, na próxima seção desse ensaio, uma análise discursiva de um artigo de jornal, fundamentada na ecologia dos sentidos. Para tanto, nos serviremos da lógica natural. Acreditamos que, fundados na manifestação empírica de uma expressão simbólica (o artigo do jornal), poderemos avançar a discussão sobre o estatuto da “opinião”. No que diz respeito à ecologia dos sentidos (CAMPOS, 2011), trata-se de uma teoria que defende a ideia segundo a qual, para se compreender processos de comunicação, é necessário desvelar como as estruturas cognitivas, afetivas e ético-morais dos interlocutores são tecidas no mundo social, de modo a descrever e explicar a construção das trocas na medida em que se desenvolvem as ações comunicativas. Ela se fundamenta nas trocas simbólicas que obedecem a imperativos que interpenetram, de um lado, o mundo vivido dos sujeitos e, de outro, as estruturas da sociedade, modeladas pelo que A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 143 143 5/20/14 4:31 PM chamamos de fatores comunicativos. Do ponto de vista do mundo vivido, os sujeitos constroem imagens do mundo nas quais estão imersos, graças a suas estruturas cognitivas e afetivas e, complementarmente, a suas condições materiais de subsistência. Cognições e afetos são governados pela consciência de existir dos sujeitos e pelo exercício da vontade, que se traduzem como valores morais. Do ponto de vista das estruturas sociais, produto e resultado da organização das comunidades e sociedades – no caso das contemporâneas, trata-se das organizações civis, de direito privado, público etc. –, suas instituições determinam o conjunto dos bens que permitem a elas gerenciar riquezas. Ambas são governadas pela ordem jurídica (dos estatutos de pequenas organizações ao direito geral que rege o Estado) que reflete o seu caráter ético (ou não ético). Do nosso ponto de vista, as interações que se estabelecem graças às trocas simbólicas que definem as coconstruções de imagens do mundo de sujeitos e coletividades são mediadas não por objetos técnicos possibilitados pelas tecnologias da informação e da comunicação (como tradicionalmente são apresentadas por teorias da comunicação), mas por mediações de outra ordem. Ainda que as técnicas e as tecnologias determinem limites nas construções de expressões comunicativas e as modelem (e as chamamos aqui de fatores comunicativos), as interações, na verdade, são “mediadas” por estruturas de comunicação bem mais amplas e poderosas. Acreditamos na pertinência da visão do filósofo alemão Jürgen Habermas (1987a, 1987b), para quem estas mediações são estabelecidas, de um lado, pelo poder econômico através da linguagem do dinheiro e de seus outros códigos e, de outro, pelo aparelho do Estado através da burocracia administrativa e do sistema político. Essas mediações comunicativas estão, na verdade, no centro da problemática do espaço público e da ética que, ainda que determinada até certo ponto pela história, obedecem a imperativos da ordem do desejo, aqui definidos como os valores que modelam crenças como, por exemplo, o ideal democrático das trocas cooperativas e a amizade como recusa do servir. (CHAUÍ, 1982) Segundo o epistemólogo Jean Piaget, a cooperação é um processo de trocas simbólicas no qual os participantes, livres das amarras da coação, são iguais ou se consideram iguais uns aos outros, o que é o fundamento da democracia social (1977). Esse estado de equilíbrio das trocas, que Habermas chama 144—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 144 5/20/14 4:31 PM de agir comunicativo, se distingue dos processos mediados por linguagens do poder econômico e administrativo-político, fundamentalmente coativos e instrumentais. A maneira pela qual entendemos a ecologia dos sentidos e a visão específica de mediação, de “midiático”, foi aplicada parcialmente em um estudo no qual analisamos onde estão e como se relacionam intrinsecamente os mundos vivido e social. Nele, tomamos uma supostamente ingênua forma de jornalismo informativo retirada de uma notícia que a Folha de São Paulo apresentou como fato, com o objetivo de examinar se ela esconde – ou não – uma dimensão opinativa, e se seria possível pensar o informativo em termos não opinativos. Aplicamos, para compreender as trocas que se estabelecem entre os interlocutores desse processo de difusão e de acesso à notícia, como instrumento de análise, a lógica natural. Esta é considerada uma teoria lógica. Na comunicação, ela nos serve como método. Trata-se de uma linguagem desenvolvida pelo lógico e comunicólogo suíço Jean-Blaise Grize (1982, 1997, 1996) que serve para identificar e descrever as operações mentais que os interlocutores de uma situação de comunicação ativam quando “esquematizam”, isto é, quando interpretam e cointerpretam progressivamente as representações evocadas pelas imagens que fazem do mundo, através de suas subjetividades, passando pelas construções intersubjetivas e pelas objetivas (compreendidas como aquilo que todos consideram real). As esquematizações (o ato de escrever esse artigo sendo um exemplo de tais processos) expressam como os sujeitos, quando conectados pela interação comunicativa, constroem e reconstroem imagens do mundo com base em finalidades fundadas em suas estruturas cognitivas (as capacidades cerebrais que os permitem acessar o mundo vivido, nomeá-lo e compreendê-lo) e afetivas – as capacidades cerebrais que os permitem perceber, sentir o mundo vivido. Por serem finalidades, essas estruturas acabam por expressar juízos que, por sua vez, expressam valores morais e ético-políticos. Tais finalidades se ancoram nas representações de mundo enraizadas em noções culturalmente pré-construídas ao longo da história das comunidades e sociedades. Ao serem processadas cognitiva e afetivamente pelo organismo, acabam por moldar o entendimento que fazem do mundo graças a sua capacidade de A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 145 145 5/20/14 4:31 PM perceber e de, pelos sentidos da linguagem, re-tecer o legado simbólico dos antepassados, criando novas significações e construindo novos mundos. A integração desses diferentes níveis de olhar é o que fundamenta uma análise ecológica dos sentidos. Tentaremos aqui mostrar uma pequena dimensão de sua capacidade heurística ao fazer o exercício de desvelar a emergência da opinião, aplicando a lógica natural. (GRIZE, 1996, 1997) As lógicas tradicionais são objetivas e seus objetos são relacionados por operações (tais como a afirmação, a negação, o condicional etc.). A natural acrescenta à lógica dos objetos, a lógica dos sujeitos, o que faz com ela tenha operações diferentes relacionadas a uns e outros. As operações da lógica natural não se confundem com as da lógica formal. Além disso, ela se ancora na linguagem, podendo aplicar-se também a outras multilinguagens como as dos sons, das imagens etc. (CAMPOS, 2010) Uma explicação detalhada da lógica natural está além do âmbito desse texto. No entanto, cabe ao menos esclarecer que ela lida com o sujeito, os objetos e as relações entre uns e outros que se estabelecem através das múltiplas linguagens. Do ponto de vista da lógica dos sujeitos, leva-se em consideração o caráter daquele que se responsabiliza pelo ato de comunicar (operação sigma). Do ponto de vista dos objetos (operações alfa, delta, gama, iota, ômega, rô), trata-se de construções cognitivas e afetivas expressas pela linguagem. Na intersecção entre as duas, temos a predicação – que descreve os conteúdos de juízos expressos através de enunciados e configurações (operação etá) – que nos permite de ir além da lógica e inferir, graças à análise construtivista-crítica, os valores morais e ético-políticos subjacentes às escolhas dos sujeitos. (CAMPOS, 2011) A c o n s t r u ç ã o d a o p i n i ã o n o e s pa ç o p ú b l i c o As trocas comunicativas são múltiplas e plurais, podendo tomar diversas formas, serem estabelecidas por poucos ou muitos sujeitos, os sujeitos entre si ou entre instituições, as instituições entre si ou entre grupos sociais etc. Aqui, como tratamos de uma problemática relacionada a uma das múltiplas maneiras pelas quais a comunicação foi institucionalizada no domínio público, no caso o jornalismo, lidamos com uma troca simbólica que se dá entre o leitor do jornal e uma matéria. Esta traz em seu bojo uma complexidade relativa a 146—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 146 5/20/14 4:31 PM sua produção, que ultrapassa o exclusivo tratamento cognitivo, afetivo, moral e ético-político, do jornalista que a redigiu, mas inclui todos os sujeitos envolvidos em sua produção. Lidamos, nesse caso, com interações que englobam as esferas privadas de muitos sujeitos (em suas dimensões cognitivas, afetivas e morais), e um espaço público preciso, consolidado pela história recente do país, na qual a ética política emerge. O princípio de base de uma esfera pública própria a uma democracia social consiste no acesso de todos os participantes à vida social e política, em uma necessária independência de interesses privados (normalmente comerciais, mas podendo se revestir de outros tipos de interesse) e governamentais, e em um ambiente permitindo que debates críticos racionais possam ser estabelecidos. (HABERMAS, 1987a, 1987b; POLAT, 2005) No entanto, não podemos falar da possibilidade de uma esfera pública, mas de inúmeras esferas públicas. Por exemplo, tomemos o caso de periódicos que poderiam, classicamente, serem classificados como jornalismo opinativo: os pasquins liberais que floresceram durante o Primeiro Império. Este foi curto, turbulento, e domesticado pela Constituição outorgada em 1824 por D. Pedro I após o fechamento da Constituinte, uma vez que os liberais que a dominavam exigiam um modelo imperial em que o soberano tivesse um papel meramente figurativo. Frei Caneca, e outros tantos jornalistas, tiveram triste fim: aprisionamento, tortura e morte. (SODRÉ, 1996) Neste caso, num tempo em que o jornalismo “informativo” era quase que totalmente inexistente, e em que as práticas eram quase sempre de tomadas de posição (fosse para apoiar a autoridade de Sua Majestade, o Imperador, ou para contestá-la), falamos de um espaço público imperial, onde as vozes eram colonizadas pela estrutura econômica e administrativo-política: para votar era necessário fazer demonstração de riqueza, o que eliminava a maioria da população, sem falar, é claro, dos escravos. As caricaturas floresceram um pouco mais tarde e, como se sabe, estas sempre comunicam opiniões pela via do humor. Ainda que durante a crise que se instalou no Segundo Império, por volta dos anos 50 do século XIX, elas tenham tido um papel significativo que seria mantido ao longo do desenvolvimento do jornalismo nacional (SODRÉ, 1996), o espaço público era essencialmente o mesmo, mas mais oligárquico e menos imperial. Se saltarmos no tempo e tratarmos, por exem- A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 147 147 5/20/14 4:31 PM plo, dos editoriais no início do século XX, estes só apareceram com clareza com a profissionalização dos jornalistas e o estabelecimento de grandes empresas jornalísticas porque antes quase tudo era “editorializado”. (SODRÉ, 1996) Durante a Primeira República, cuja constituição tinha sido promulgada sob a égide de um golpe militar e que exclui o voto aos mendigos e analfabetos, cuja grande maioria era oriunda da população negra que foi literalmente abandonada pelo Estado, além de violentamente condenada ao abismo da negação de sua humanidade em suposta liberdade, estamos diante de um espaço público burguês de fundo oligárquico que coloniza a maioria pela Lei e pela interiorização de sua própria servidão. (LA BOÉTIE, 1982) A noção de espaço público só pode ser compreendida historicamente. Do outro lado da moeda, temos a esfera privada das construções de ordem cognitiva e afetiva, com suas consequências morais. É preciso sublinhar que o exercício da opinião – de ordem privada –, no espaço público, está delimitado pela ordem social e política normatizada pelo direito em vigor. Não é possível aceitar a categorização estrutural da opinião jornalística como algo separado da notícia (como mostraremos no estudo que apresentaremos a seguir), ao menos de um ponto de vista construtivista-crítico, porque ela releva de imbricações entre o público e o privado. Pergunta Habermas relativamente ao espaço público de hoje – aquele em que se inserem as notícias supostamente neutras da Folha e das outras formas atuais de jornalismo brasileiro: Seria possível, e em qual medida, que um espaço público dominado pelas mídias de massa possa propiciar oportunidades para que os atores da sociedade civil levem ao fracasso qualquer esperança dos poderes invasores das mídias políticas e econômicas, ou seja de transformar, de reconstituir de maneira inovadora, e de filtrar criticamente o espectro de valores, de temas e de razões canalizadas por uma influência exercida de fora? (HABERMAS, 1992, p. 186, tradução nossa)2 2Est-il possible, et dans quelle mesure, qu’un espace public dominé par les mass-médias puisse accorder des chances aux acteurs de la société civile de faire échec quelque espoir au pouvoir envahissant des médias politiques et économiques, donc de changer, de reconstituer de façon innovatrice et de filtrer de façon critique le spectre des valeurs, des thèmes et des raisons canalisées par une influence exercée de l’extérieur? 148—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 148 5/20/14 4:31 PM Habermas responde acreditar ser possível compreendê-lo de maneira política, de modo a que possamos buscar soluções analíticas adequadas para uma teoria da democracia. Ora, a questão que se coloca, relativa à maneira pela qual a opinião foi categorizada, é a seguinte: o espaço público brasileiro é verdadeiramente democrático? As pretensões à validade da verdade dos fatos veiculados como notícias e das ideias apresentadas como opinião são plenamente exercidas? Existem fronteiras entre essas duas formas? Tomemos o objeto de nosso resumido estudo, a manchete de primeira página da Folha de São Paulo do dia 7 de dezembro de 2011 (o título e os dois primeiros parágrafos): Brasil para de crescer A economia brasileira parou de crescer no terceiro trimestre e fez o governo reduzir a previsão de crescimento do PIB (soma dos bens e serviços do país) em 2011 de 3,8% para 3,2%. A estagnação foi recebida com alívio, pois temia-se uma retração. Só a agropecuária teve ganho; serviços e indústria encolheram [...]. (SOARES et al., 2011) O editorial – modo francamente opinativo – da mesma edição, intitulado Crescimento zero (p. 2) relata que “não surpreendeu a informação” relativa ao anúncio do governo de que “os números aventados pelas autoridades são bastante discutíveis”. Afirma, mas não explica o porquê. Trata-se de uma opinião não submetida à exigência de um espaço público democrático, qual seja, o de permitir que o leitor tenha as condições mínimas para compreender e interpretar as razões que são apresentadas a título de pretensões à validade das supostas verdades, de modo que ele possa julgá-las e reconstruir sua própria opinião. (HABERMAS, 2003) É possível afirmar isso examinando a notícia que fundamenta o editorial – supostamente não opinativa. Veremos que as condições para o estabelecimento de um espaço público permanecem as mesmas. Apliquemos a lógica natural no que diz respeito à responsabilização do sujeito da comunicação (aquele que escreveu com a finalidade de avançar certas representações fundamentadas em pré-construídos culturais das camadas da sociedade brasileira que leem jornais), aos objetos do discurso e às predicações, utilizando apenas quatro de suas operações: A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 149 149 5/20/14 4:31 PM 1) operação sigma, de responsabilização do sujeito – esta operação está obscurecida. O autor escreve em terceira pessoa, como se o dito não fosse o dito de qualquer um. Dessa forma, em vez de ele se responsabilizar pelo dito, transfere essa responsabilização a um outro que deve tomá-la como verdadeiro por conta da maneira supostamente “exterior” pela qual os dados são apresentados. Alguém “diz”, que não é ele (mas, que ele mesmo pode ser), especialmente quando atribui – supostamente ao governo – um alívio paradoxal relativamente à estagnação da economia brasileira, por conta de um também suposto temor de retração. 2) operação alfa, de extração dos objetos principais do discurso, e operação gama, de constituição dos objetos subordinados aos principais – a aplicação destas duas operações nos permite identificar dois objetos principais, o primeiro com inúmeros subordinados: Alfa 1 - Economia brasileira Gama 1 - terceiro trimestre Gama 2 - previsão Gama 3 - crescimento Gama 4 - PIB (bens e serviços) Gama 5 - 3,8% Gama 6 - 3,2% Gama 7 - Estagnação Gama 8 - Retração Gama 9 - Agropecuária Gama 10 - Ganho Gama 11 - Serviços e indústria Alfa 2 - Governo 3) operação etá, de extração de predicações – trata-se de uma operação que sempre exige a menção a seu oposto, pois indica uma escolha 150—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 150 5/20/14 4:31 PM (possibilitando que infiramos o que é subjacente a um juízo, ressaltando a qualidade moral e ética do discurso). Temos aqui: Etá 1 (sobre Alfa 1) parou de crescer; não parou de crescer Etá 2 (sobre Alfa 2) fez o governo reduzir a previsão; não fez o governo reduzir a previsão Etá 3 (sobre Gama 7) foi recebida com alívio; não foi recebida com alívio Etá 4 (sobre Gama 8) temia uma retração, não temia uma retração Etá 5 (sobre Gama 9) teve ganho; não teve ganho Etá 6 (sobre Gama 11) encolheram; não encolheram Para fins de análise, fixemo-nos somente nas consequências das predicações (ignorando, desse modo, outras dimensões analíticas possíveis resultantes da aplicação das operações alfa e gama), porque reveladoras da dimensão ético-política. Estas são da ordem do direito de escolha que o sujeito que se responsabiliza pela comunicação exerce através de sua maneira de apresentar pretensões à validade de supostos fatos. Ora, esse sujeito da comunicação, o jornalista (imerso em um meio ambiente ao mesmo tempo natural e social), avança tais pretensões crendo que elas terão como resultado uma aceitação de sua validade. Tal movimento na direção do outro, tomado como escolha e, portanto, apresentando um caráter minimamente opinativo (porque a terceira pessoa o apaga), é feito na intenção de ser recebida pelo outro de maneira maximamente informativa. Este outro pode ficar satisfeito ou não com a explicação. O editorialista do jornal, por exemplo, não se satisfez: julgou insuficientes as explicações do governo, desvalorizando, assim, contraditoriamente, a informação que o mesmo jornal apresenta em manchete, sob a forma de “notícia”, na primeira página. O que diriam outros sujeitos leitores? A única coisa que podemos afirmar é que eles recebem afirmações não explicadas sobre o fato de o governo reduzir a previsão de crescimento. Recebeu-se com alívio. Quem? Temia-se uma retração. Da parte de quem? Seria o jornalista, o governo ou ambos? Seriam outros, como por exemplo, economistas? E se a agricultura vai bem, mas os serviços e a indústria menos, isso é necessariamente uma má notícia? Fica ao leitor a tarefa de decidir se A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 151 151 5/20/14 4:31 PM rejeita ou se assimila como suas as formulações do jornalista, reconstruindo-as. Existe uma ambiguidade inerente ao estatuto da opinião informativa. Conclusão As escolhas discursivas de jornalistas são ético-políticas à part entière e, dificilmente, poderiam ser consideradas exclusivamente informativas. Elas são da ordem da cognição porque o jornalista usa determinadas razões, expressas discursivamente, para pretender que o suposto fato que é tratado, o é de maneira isenta. O jornalista assim minimiza a opinião maximizando a informação supostamente explicitadora de uma realidade que poucos compreendem. Pode-se supor que sentimentos ligados a sua existência o façam agir dessa maneira (que podem ser da ordem ideológica como uma crença ou resultado de uma colonização ideológica interior, ou ainda de subserviência profissional, além de outras explicações impossíveis de serem acessadas através da simples interpretação do leitor). Tais ações ocultam escolhas de termos, verbos e estilos, que são, efetivamente, maneiras de opinar. Ao fazê-lo, comprometimentos morais estão em jogo e determinações ético-políticas agem sobre o espaço público, sob a forma de discursos comunicativos. No caso do espaço público brasileiro atual, em que uma cultura enraizada em práticas históricas totalitárias e manipuladoras insidiosamente contaminam as instituições (cujo novo estado de direito ainda se configura, dado que a última constituição brasileira ainda não foi totalmente regulamentada, abrindo espaço para a cultura das leis que “colam” ou “não colam”), as palavras publicadas na primeira página da Folha não são somente expressões estritamente “profissionais” e, menos ainda, ingênuas. São discursos que se constroem e se estabelecem em espaços “públicos” nos quais existem opacidades, em cujas águas turvas se coconstroem juízos. Longe de querer negar o caráter democrático das instituições “midiáticas” – tais como as empresas jornalísticas e seus periódicos – e de seu papel fundamental na configuração da sociedade brasileira contemporânea, a ideia segundo a qual o jornalismo comercial de mercado de orientação norte-americana constitui modelo de isenção, profissionalismo (MATOS, 2009) e responsabilidade está longe de 152—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 152 5/20/14 4:31 PM ser demonstrada. Nosso estudo, ainda que resumido e limitado, revela a impossibilidade mesma de tal pretensão, o que sugere a pertinência de se pensar os meios, as mídias e as mediações não em termos técnico-tecnológicos (ainda que o desenvolvimento de lentes dessa ordem estruturem as comunicações de maneiras impensáveis no passado), mas em termos econômicos e ético-políticos. A informação é sempre construída opinativamente. A questão que se coloca não é a de eliminar a opinião, mas de se construir alternativas públicas que permitam ao jornalista de contribuir para o debate sem mascarar suas próprias escolhas. Apesar do radicalismo gritante dos pasquins do Primeiro Império ou da imprensa revolucionária da ditadura (KUCINSKI, 2006; SODRÉ, 1966), essas formas de jornalismo francamente opinativo, análogas às práticas de certa imprensa europeia político-partidária, permitem a explicitação – e não o mascaramento – da opinião, ancorada em projetos de sociedade. A opinião está longe de ser um elemento de uma estrutura, ou seja, um gênero jornalístico ao lado de outros. A opinião é a própria essência das instituições de comunicação como participantes (a título de representantes) de um espaço público considerado como ágora independente de interesses instrumentais de classes ou grupos políticos. (HABERMAS, 1992) Se é verdade que o jornalismo atual de mercado amplificou a “qualidade” da informação (se adotarmos essa ilusão difundida pela direita) exilando outras formas como o jornalismo francamente engajado (por conta de excessos de esquerda), tais contrapontos poderiam sinalizar a busca de um jornalismo equilibrado e renovado no contexto de uma esfera pública representativa de uma democracia realmente social. Nem prá lá, nem prá cá, mas discursos que expressem uma ética da cooperação e de um agir comunicativo estrangeiro não somente às formas de colonização impostas de fora, mas também as autogeradas pelos sujeitos por conta de construções cognitivas, afetivas e morais de subordinação que Habermas (1989) chama de colonização interior. A problemática do ponto mediano vai além das coconstruções dos sujeitos nos contextos concretos da comunicação pública. O ideal do “onde deveríamos chegar” é de ordem ética, de escolha (da operação etá da lógica natural). Não só jornais, mas teorias da comunicação, a título de discursos, podem ser objetos de controle ideológico e de colonização mental. Para ter A opinião na comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 153 153 5/20/14 4:31 PM poder liberador, tais discursos precisam expressar processos de comunicação de maneira inversa à pensada por La Boétie (1982, p. 49), para quem É incrível como o povo, quando se sujeita, de repente cai no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para recobrá-la, servindo tão francamente e de tão bom grado que ao considéra-lo dir-se-ia não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão.3 A resposta inversa, para nós, é a de se pensar a comunicação como transdisciplina e transprática, que buscamos revelar ao aplicar os construtos teóricos da ecologia dos sentidos (CAMPOS, 2011). Ela emerge da necessidade de se pensar a ação comunicativa como exercício pedagógico de liberdade (FREIRE, 2007), atravessando conhecimentos e saberes, preocupações sublinhadas por Freitag: Was ist der Mensch? A abordagem inter e multidisciplinar nos torna sensíveis ao caráter ao mesmo tempo biológico, psicológico e social do homem. Ele não é a priori um ser dotado de razão, mas tem um potencial para a racionalidade teórica e prática que somente se constitui como razão em decorrência de processos interativos. (FREITAG, 1992, p. 286) Acreditamos que só desmontando as ideologias subjacentes ao que entendemos ser teorias e subteorias da subordinação e concebendo a comunicação, essencialmente, como campo transversal focalizado no exercício da ação ética, é que poderemos pensar em um futuro que nos liberte da violência que construímos no presente e da que guardamos na memória do passado. Ainda que teorias não sejam soluções sociais, elas fazem parte das ideologias difundidas pelo sistema-mundo (FRANK, 1980), que são as que, muitas vezes, abraçamos acriticamente. Optar por aquelas que fazem a crítica da farsa das academias, da prática das redações e das múltiplas formas de comuni3Il n’est pas croyable comme le peuple deslors qu’il est assujetti, tombe si soudain en un tel et si profond oubly de la franchise, qu’il n’est pas possible qu’il se resveille pour la rvoir, servant si franchement et tant volontiers qu’on diroit, a le voir qu’il a non pas perdu sa liberté, mais gaigné sa servitude 154—Milton N. Campos teoria-meios-comunicacao_v1.indb 154 5/20/14 4:31 PM cação, como instrumentos ideológicos da servidão, nos parece um caminho promissor. Não nos iludamos: para que as gerações mais jovens que se interessam pelas práticas comunicativas possam contribuir para a transformação da sociedade, é preciso pensar a ética como fundamento de todo e qualquer discurso. Acreditamos que no princípio construtivista-crítico da cooperação e da ação comunicativa está o fundamento ético que nos permite edificar relações respeitosas, fundamento dos direitos humanos. Ainda que nossa contribuição epistemológica, teórica e metodológica seja apenas um dos múltiplos caminhos possíveis de se pensar a comunicação, acreditamos que o exercício da ética – ausente de muitas teorias – seja o mínimo que podemos esperar de intelectuais e profissionais em suas práticas discursivas. R e f e r ê n c ia s BENITO, Á. Fundamentos de la teoria general de la información. Madrid: Ediciones Pirâmide, 1982. CAMPOS, M. N. Ecology of meanings: a critical constructivist communication model. Communication Theory, v. 17, n. 4, p. 386-410, 2007. ______. Navegar é preciso. Comunicar é impreciso. 2011. 496 p. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2011. ______. La schématisation dans des contextes em réseau. 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Porém, ela se torna mais popular nos anos 50 sendo empregada em estudo de diversos temas cobertos pelos meios de comunicação: violência, racismo, situação da mulher, perfis comparados de jornais no mundo etc. Já surgem, nesta época, as críticas ao excessivo peso no aspecto quantitativo da análise que se concentrava basicamente nas informações manifestas. Os estudos sobre a mensagem surgem, portanto, em contestação aos modelos de massificação, fazendo apelo, entre outros, à decomposição do teoria-meios-comunicacao_v1.indb 157 157 5/20/14 4:31 PM então ato de comunicação, trazendo em questão a importância da articulação ou estruturação da mensagem nos efeitos provocados pelos meios de comunicação. (FERREIRA, 2007) Lasswell foi um pioneiro, com seus estudos oriundos da sociologia e da política, na introdução da análise do conteúdo no âmbito das mensagens mediáticas, enriquecendo a reflexão em torno dos atos de comunicação, como se dizia, então, juntando-se aos estudos dos emissores, dos meios e dos efeitos. No entanto, continua havendo uma visão que a ação, a iniciativa é uma exclusividade do emissor e os efeitos recaem, também exclusivamente, sobre o público ou os receptores. Essa assimetria reforça, igualmente, a concepção de linearidade, causalidade e determinação nos estudos dos meios de comunicação. Tal concepção é observada não só nos estudos oriundos da mensagem no domínio da comunicação, mas também aqueles tendo a cultura e a técnica como eixos estruturantes, forjando uma espécie de relação de estímulo-resposta, ativo-passivo no ato comunicativo. Também se atendo ao estudo da mensagem, mas numa perspectiva de sua otimização a partir do fluxo comunicacional, a teoria informacional ou das telecomunicações, faz, igualmente, seu aparecimento no contexto de pesquisa do campo mediático e é, essencialmente, uma teoria da transmissão, segundo o esquema proposto por Shannon (apud WOLF, 1996). Há uma fonte que emite sinais através de um aparelho de transmissão, e, por sua vez, há um receptor que realiza a conversão de tais sinais para um destinatário. A mensagem neste aparelho pode conter ruídos, e a teoria da informação se apega ao código, pois ele torna possível a inteligibilidade da transmissão da informação, ou seja, a diminuição do ruído. O código é um conjunto de sinais, que serve de parâmetro para reduzir a equiprobabilidade na fonte. A informação é apreendida pelo seu lado mensurável no interior de um código, ou seja, o aspecto ressaltado é o sistema sintático. Neste caso, todo o aspecto referente ao significado é desconsiderado, algo intrínseco a toda comunicação humana. Segundo Escarpit (1991, p. 30), Os teóricos da telecomunicação se interessam antes de tudo ao significante que deve ter um certo número de qualidades: resistência ao ruído, facilidade de codificação e decodificação, velocidade 158—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 158 5/20/14 4:31 PM de transmissão. Eles se interessam ao significado na medida onde suas características têm uma incidência sobre o significante. Robert Escarpit explora o exemplo do correio para ilustrar as preocupações da teoria da informação. O correio deve transmitir um telegrama, sem estar, no entanto, interessado no conteúdo da mensagem. Para o correio o significado da mensagem é indiferente na medida em que sua tarefa é a transmissão de uma quantidade de informação. Porém, tal modelo comunicativo teve e tem grande repercussão na sociedade e teve, igualmente, desdobramentos no interior da pesquisa em comunicação. O linguista russo Roman Jakobson, que migra para a América do Norte, foi um arauto na ampliação do modelo em questão, buscando articulá-lo com a linguística. Para ele, a atividade comunicativa é representada como transmissão de um conteúdo semântico fixo entre dois pólos, igualmente definidos, encarregados de codificar ou decodificar o conteúdo, segundo as restrições de um código igualmente fixo. (JAKOBSON, 1963, p. 87) Jakobson tem o mérito, mesmo se apropriando da teoria da informação, de ser também um dos primeiros linguistas a fazer a distinção entre o processo de produção e o processo de recepção de frases. Mesmo se esta distinção não tenha as características que se empregam atualmente. (VERON, 1985) Recebendo influência de outras disciplinas, com destaque para a linguística, a problemática da teoria da informação vai sendo ampliada e posicionada não somente junto ao significante, mas também à noção mais geral da significação. Este novo posicionamento será definido por alguns como o modelo semiótico-informacional. Ele guarda essencialmente o esquema precedente, porém, o mais importante é que a linearidade da transmissão se encontra arraigada ao funcionamento dos fatores semânticos, através do conceito de código. A comunicação se realiza pela transformação de um sistema por um outro, e não por uma simples transmissão de informação. (WOLF, 1987) Porém, a noção de código encontra-se ainda como balizadora na relação dos sistemas em questão. O código será a base contratual visto a partir de dois aspectos: de um lado, no tocante à articulação dos códigos, e de outro, acerca da situação Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 159 159 5/20/14 4:31 PM específica do processo de comunicação. Este último está presente na relação dos códigos e dos subcódigos entre a produção e recepção da comunicação (desníveis de códigos, hipercodificação, hipocodificação etc.) e nas circunstâncias forjadas pelos fatores sociais que provocam a assimetria entre os dois polos da comunicação. A noção de desajustamento na recepção da mensagem se torna cada vez mais evidente, assim como as implicações socioculturais. Do discurso Apesar dos limites dos modelos abordados até então, em particular as contribuições de Jakobson – há a importância de abrir o processo comunicativo às interferências sociais. Isso possibilitará uma ampliação, em estudos posteriores, da influência de tais fatores – socioculturais – na compreensão do processo comunicativo. Um novo modelo é esboçado para melhor apreender a relação entre a produção e a recepção, ou melhor, o reconhecimento das mensagens. Uma característica importante neste novo momento é pensar tal relação, não mais restrita a noção de código, mas a partir de “conjuntos de práticas discursivas”1(GEERTZ, 1978), que leva em consideração a sincronia da comunicação, mas também a sua diacronia. Assim, pode-se pensar a problemática extrapolando a sincronia do processo de comunicação, levando igualmente em consideração a significação através do passado, com a implicação do tempo. A indagação pode ser deslocada da seguinte maneira: por que sem saber das notícias do dia seguinte, muitos leitores já têm em mente qual jornal que gostariam de ler amanhã? Para entender o processo de comunicação, e toda significação que ele comporta, a pesquisa sobre o discurso mediático é levada, cada vez mais, à contextualização, ou melhor, às condições de produção e de reconhecimento dos processos comunicacionais em questão. 1A noção de “conjunto de práticas discursivas” encontra correspondência na antropologia do norte-americano Cliffort Geertz. Para este autor, a cultura pode ser igualmente representada como conjuntos de textos e como um sistema de regras que determinam a criação e a orientação das novas produções textuais. Logo, os conjuntos de textos ou sistemas de signos e discursos que circulam numa cultura vão provocar influências sobre a produção e o reconhecimento de mensagens dos meios de comunicação. A competência interpretativa dos receptores está articulada com o consumo precedente de tais discursos ou sistemas de signos, em vez de uma apreensão de códigos de maneira pura e simples. (GEERTZ, 1978) 160—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 160 5/20/14 4:31 PM Há um duplo processo na semiotização do mundo através do ato enunciativo: processo de transformação e processo de transação. (FERREIRA, 1999) O processo de transformação ocorre pela mimesis, ou seja, o mundo se transformando em discurso, cuja estruturação (mediação simbólica) depende dos fatores estruturais inteligíveis, recursos simbólicos e aspectos temporais. A mimesis é constituída por uma dupla face – imitação e criação – que se articula, ao nível externo, na capacidade de apreensão das coisas ou na capacidade de projeção fora de, engendrando “a coisa do texto”, e, ao nível interno, face explorada pela semiologia, que coloca todo empreendimento na relação dos sujeitos internos do discurso, enunciador e coenunciador (Sobre as mimesis, a semiotização global do processo comunicativo, vamos explorá-las mais à frente neste artigo). (FERREIRA, 1999) O conceito de enunciação se coloca no patamar da forma, tentando fugir, primeiro momento, do aspecto conteudístico da mensagem. Benveniste dizia de forma abreviada que “a enunciação é essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”(BENVENISTE, 1974, p. 80), ou de maneira próxima, segundo Jean Dubois (1969), referindo-se à enunciação como o impacto do sujeito no interior do seu próprio discurso. A linguística oferece ao conceito de enunciação as três categorias que estão sujeitas à instabilidade no discurso: as categorias de pessoa, de espaço e de tempo. Na análise do(s) discurso(s) no interior das pesquisas de comunicação mediática, o conceito de enunciação vai utilizado (ou ao menos realizado tentativas) em diferentes matérias significantes, também não verbais, sobretudo a partir de orientações ofertadas por Roland Barthes no seu último trabalho, dedicado ao estudo da fotografia. (BARTHES, 1980) Busca-se trabalhar com a noção de dispositivo de enunciação para operacionalizar a instabilidade e, por conseguinte, o posicionamento discursivo. Três instâncias se abrem, metodologicamente, tendo em vista o funcionamento enunciativo: o lugar daquele que fala, o lugar a quem é endereçado o discurso e o tipo de relação que se estabelece. Pelas tramas da enunciação, pode-se caracterizar estas instâncias que articulam a forma e sentido no/do discurso. Este nível de transformação, em estudo da análise do(s) discurso(s), vem sempre acompanhado do processo de transação, apegando-se, inicialmente, Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 161 161 5/20/14 4:31 PM ao quadro interior no qual se desenvolve o discurso (situação de comunicação) e, mais tarde, como um tecido arrancado de uma semiosis ternária, social, histórica e infinita, ou melhor, do fluxo de produção social do sentido. Nesta perspectiva, a produção e o reconhecimento do discurso são edificados num diálogo intertextual, cuja construção de um texto é “costurada” pelos ecos de outros textos precedentes. A perspectiva diacrônica do consumo de tais textos adquire relevância na produção e no reconhecimento de um processo comunicativo. Diante da complexidade, ou então, do mistério da recepção, no dizer de Daniel Dayan (1992), a noção de recepção vem carregada de desníveis e de “efeitos possíveis”. As implicações socioculturais tiram o receptor da condição de “depósito” da transmissão de mensagem e migram, por conseguinte, o estudo do signo, da análise do(s) discurso(s) para um conhecimento melhor da recepção, realizando articulações possíveis, nesta nova etapa de construção de uma semiótica da recepção e aproximando, o destinatário e o receptor, e concomitantemente, as abordagens sociológicas e semiológicas. Nas palavras de Mauro Wolf (1993, p. 217), pode estabelecer tal desafio na seguinte perspectiva: “conectar discursos, interações e contextos sociais, tal é o objetivo explícito de uma corrente para o qual o discurso não é somente um objeto semiótico, mas deve ser constantemente ligado a outros contextos caso se queira compreender sua dinâmica.” Uma questão aqui se levanta: como considerar um elemento relevante acerca de um determinado tipo de discurso? Para que um elemento seja considerado condição de produção e/ou recepção não é suficiente pleiteálo, é preciso que ele deixe pistas na superfície discursiva, levando assim os valores das variáveis postuladas como condições de um determinado tipo de discurso. Se tais condições mudam, o discurso muda igualmente. (VERON, 1979) Produção e recepção são dois polos conceituais produtores de sentido. O desnível entre eles é provocado pela circulação que adquire diferentes formas segundo o tipo de produção significante almejada. A circulação é o conceito oriundo de um modelo que posiciona o discurso entre seu engendramento e seus efeitos. Nestes termos, o que tradicionalmente se estuda como marcas linguísticas, nesta outra abordagem passam a ser traços ou pistas da operação de engendramento e/ou então de reconhecimento, que definem 162—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 162 5/20/14 4:31 PM o sistema de referência das leituras possíveis. A noção de circulação oferece ao modelo analítico uma dinamicidade acerca da variação do investimento de sentido nas matérias significantes ao longo do tempo (VERON, 1979), em outras palavras, pode-se caracterizar como a variação do ethos, fazendo do sentido uma materialização no tempo e espaço. A linearidade entre a produção e o reconhecimento foi durante muito tempo sustentada pela hipótese da convencionalidade: os atos de linguagem foram submetidos às convenções, pois a distinção entre dois polos do discurso não era, então, pertinente, pois uma regra convencional assegurara a univocidade do resultado. Portanto, fora dos performativos, a convencionalidade torna-se insustentável. Um enunciado qualquer, sem ter esgotado todas suas significações, não pode se submeter a nenhuma convenção, caso não seja essa que contribui a lhe dar sentido. (VERON, 1987)2 O desnível não é, igualmente, considerado por aqueles que têm uma posição não convencionalista. Nesse caso, a regra da convenção se desloca em direção à intenção: ela se torna “o objetivo consciente” do autor. Portanto, fica claro que só o autor tem acesso as suas intenções, pois ele não passa seu tempo verbalizando-as. Se ele não as comunica constantemente, elas não se constituirão num fenômeno de comunicação. Isto quer dizer que entre a produção e o reconhecimento, há mais indeterminação que supõe as perspectivas ligadas à convenção e à intenção. [...] o teórico não-convencionalista não poderá se contentar de ignorar essa distinção; ele será conduzido a produzir uma confusão permanente entre a produção e o reconhecimento. Para compreender a natureza desta confusão e o mecanismo de seu funcionamento, é preciso interrogar a noção mesmo de ‘intenção’[...] que tem um papel fundamental na teoria dos atos de linguagem, que jamais fora definida. (VERON, 1987, p. 186) A materialização da noção de circulação é fruto da diferença entre a produção e os efeitos dos discursos. As marcas sobre a superfície dos discursos 2Veron (1987) descreve em diversos capítulos de seu livro La sémiosis sociale - fragments... certos impasses que a hipótese da indeterminação relativa fez emergir entre a produção e o reconhecimento no seio do estudo do ato de linguagem. Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 163 163 5/20/14 4:31 PM são interpretadas a partir de dois polos analíticos, enquanto pistas ou traços das operações de engendramento da produção e do reconhecimento que definem o sistema de interpretações de leitura. As condições da circulação são variáveis, pois sofrem a influência do suporte material-tecnológico do discurso, da dimensão temporal, que possibilita a análise ser feita de maneira diacrônica, além, obviamente, da sincrônica. E m b u s c a d e u m a n o ç ã o d e e n u n c ia ç ã o “a b s t r at i z a n t e ” Todos os avanços acerca da noção de discurso e os vários momentos da semiologia devem ser acompanhados por uma mudança também na noção de enunciação. As matérias significantes são complexas, múltiplas, diferentes (verbais e não verbais, só para assinalar uma distinção primária) e a confortável noção oriunda da linguística dos anos 60 e 70 é fortemente pensada para o material verbal e ancorada no conteúdo. Uma página de um jornal é um objeto complexo para a análise do discurso. Ela contém um discurso a partir de texto, imagem e diagramação. Diante da complexidade desse corpus é preciso almejar procedimentos metodológicos que sejam capazes de apreender o funcionamento de tamanha heterogeneidade e, ao mesmo tempo, é preciso, igualmente se chegar a um efeito unitário. Diante da impossibilidade de tratar o jornal pela análise linguística (mesmo tendo a sua página texto também), torna-se necessário uma abordagem, que ultrapasse a descrição e se interesse nos funcionamentos do discurso. (VERON, 1986) A teoria da enunciação formulada por Antoine Culioli (1992) tem se demonstrado fecunda na perspectiva de análise dos discursos sociais (notadamente a imprensa) pelas seguintes razões: 1) Ela se fixa no cognitivo dos procedimentos linguísticos fomalizados de maneira não sequencial; 2) Ela tem um movimento “abstratizante” que corresponde às necessidades que tocam ao funcionamento mesmo do languageiro. 164—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 164 5/20/14 4:31 PM A teoria da enunciação de Culioli para bem apreender a dinâmica do discurso pelo viés “abstratizante” centra toda a problemática sobre a atividade modalizante de um sujeito enunciador. Antoine Culioli (1992, p. 21) observa dois momentos na realização desta análise: 1) a conjugação das modalidades enunciativas; 2) a construção das representações – “substitutos desgarrados da realidade”.3 As modalidades enunciativas são focadas sobre o conteúdo do enunciado. Elas indicam diferentes julgamentos sobre o enunciado e colocam em evidência a intervenção da relação intersubjetiva num discurso, pois o sujeito não é “real”, mas teórico, um modelo metalinguístico que permite um inventário dos funcionamentos cognitivos. Culioli (apud VERON; FISCHER, 1986) trabalha com 4 tipos de modalidades diferentes na relação intersubjetiva: -- As modalidades-1 correspondem às enunciações assertivas tradicionais. Normalmente, o lugar primordial é construído sob forma de predicação, uma formulação linguística que se valida como referência pela afirmação ou negação. -- As modalidades-2 fazem, de sua parte, referência às fórmulas linguísticas onde o julgamento sobre o enunciado está baseado sobre o necessário ou o possível do eventual ou do provável em certos casos. -- As modalidades-3 se encontram numa dimensão do afetivo ou apreciativo, centrada sobre o Ego (sujeito enunciativo). Por intermédio dos apreciativos, podem ser formulados julgamentos autocentrados, refugiando-se numa espécie de “eu penso que”, levando à validação ao reenvio à imagem especular do “eu”. Em certos casos limites as modalidades 3 poderão estar colocadas no patamar do “é evidente que [...]”. 3Na interpretação de Jean-Claude Milner, a teoria de Culioli pode ser lida segundo duas perspectivas: “uma de maneira ‘transcendental’, na qual a teoria aparece como uma reflexão sobre a essência de toda a linguagem, como é dito, senão de toda representação no que ela representa se houver representação – será um passo em direção a um filosofia do ‘espírito’ [...] e a outra empírica, pela qual a teoria aparece como uma série de propostas para eventuais substâncias naturais da língua”. (CULIOLI , 1992, p. 21) Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 165 165 5/20/14 4:31 PM -- As modalidades-4 tem uma relação modal que coloca em jogo o Ego e o Alter, o enunciador e o coenunciador. A injunção é uma fórmula linguística que utiliza esta relação intersujeitos no discurso, isto é, a presença do coenunciador na enunciação. Pela sua complexidade, esta fórmula linguística exige uma abordagem metalinguística. (VIGNAUX , 1988)4 Na comparação das três primeiras modalidades, as M-1 e M-2 têm como validação a objetividade, pois elas se abrem ao julgamento universal. Em contrapartida, as M-3 centram o modo de validação sobre a subjetivação, elas não procuram uma referenciação exterior. As três modalidades estão sob o jugo da validação objetiva ou subjetiva. Em relação às modalidades-4 (M-4), a validação não se encontra num ou noutro extremo. Que se pode observar nos exemplos abaixo: (A) Não fique aí sem fazer nada (B) Faça atenção! Esses dois enunciados injuntivos provocam algumas observações. Eles descrevem uma ordem, um desejo e eles tornam presente um coenunciador. As enunciações carregam as marcas do coenunciador pelo emprego da segunda pessoa ou pelo modo do verbo. Ambos os enunciados comportam, igualmente, marcas que estão na fronteira do linguístico e do paralinguístico, pelo uso do ponto de exclamação “!” e outros indícios que podem ser identificados como uma transcrição do oral, como formulação na escrita de práticas sociais reguladas. Este tipo de enunciado é uma interpelação que não admite um desnível entre a temporalidade da ação e o presente da enunciação. As modalidades-4 estão em ruptura com as M-1 (asserção tradicional), mesmo se todas as duas (M-1 e M-4) têm sua fixação no presente da enunciação, pois a introdução do 4 George Vignaux (1988, p. 111) acrescenta a estas quatro modalidades, um último tipo de modalidades pela sua importância em relação aos “registros de discurso”: “Estas da citação, do estilo indireto ou ainda das distâncias tomadas pelo enunciador vis-à-vis a este que é contado em todos os casos de narração, seja ela ‘real’ ou ‘imaginária’”. 166—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 166 5/20/14 4:31 PM coenunciador faz emergir uma indeterminação fundamental no tocante aos valores de verdade dos enunciados. Ambos enunciados (A e B) não podem ser considerados sob a responsabilidade unicamente do enunciador quando tratados objetivamente ou subjetivamente. Vejamos outros exemplos, propostos por Veron e Fischer (1986): (C) “Entrada proibida” (D) “Cachorro valente” Les deux enunciados fazem apelo às relações coenunciativas, de maneira escrita ficando o coenunciador numa situação anônima. O coenunciador ficaria explícito, caso o enunciado fosse oral: “o senhor não pode entrar”, “você corre risco ultrapassando o portão”. Esses enunciados têm um valor dêitico que não é levado em conta por marcas linguísticas, pois é o ambiente no qual o enunciado está inserido, coloca em evidência o referente da enunciação. Há um valor coenunciativo do presente, na medida em que a interdição se atualiza pela leitura de cada destinatário, pelo fato de efetuar a leitura. O enunciado (D) é mais complexo, pois ele mistura as M-3 (apreciativo = ele é valente) e as M-4 (relação Ego Alter). Portanto, esse não se reduz às M-3, já que as fronteiras do Ego são ultrapassadas (“eu penso que...”). Ela significa preferencialmente “veja um cachorro que você achará valente”. Numa abordagem em termos intersubjetivos é permitido de re-situar a análise dos agenciamentos sintáticos, colocando em evidência o tipo de relação em questão como constituinte do núcleo do dispositivo de enunciação. A. Culioli retoma esse ponto de vista quando afirma que “[...] pode-se considerar que cada vez que você produz um enunciado, você produz ao mesmo tempo um enunciado desarssertivo, de tal maneira que você produz, em seguida, o recuperar numa asserção”. (CULIOLI, 1992, p. 12) O enunciado caracterizado pela formulação enunciativa assertiva (pela marca do possível) se encontra num futuro visado pelo enunciador. Portanto, este acontecimento não se realizou numa “predição” pela qual sua execução encontra no dispositivo enunciativo construído. Pode-se, então, explorar dois caminhos analíticos a partir de uma abordagem topológica: de um lado, eles elaboram o plano enunciativo, estando o sujeito enunciativo na origem e, Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 167 167 5/20/14 4:31 PM de outro, o plano das representações. A relação entre esses dois planos introduz um desnível, uma distância, que permite trabalhar, não mais com marcas linguísticas, mas pelo viés de noções.5 A análise pensada em termos de caminhos se engaja desde já numa “metalinguística operatória”. No caso estudado, busca-se construir uma tipologia que tenha, desde sua origem, uma dupla escolha: (a) o enunciador estabelece ao coenunciador as condições e os limites de suas interpretações, e (b) a validação da construção proposta é “reenviada” ao coenunciador. (CULIOLI, 1990) Segundo Veron e Fischer (1986), a abordagem proposta por Antoine Culioli tem uma dupla vantagem: ela coloca em evidência uma problemática a partir das relações intersubjetivas e ela faz apelo, ao mesmo tempo, a instrumentos mais abstratos tendo em vista a explicação de operações cognitivo-linguageiras. Toda esta démarche possibilita analisar os discursos sociais que não são unicamente linguageiros, como é o caso da imprensa, televisão etc. Um paralelo pode, então, ser feito entre as características das injunções analisadas por Culioli e o discurso da imprensa: todos se caracterizam por uma produção que se endereça a alguém que poderia se encontrar em situação de recepção. Esse alguém é longe de ser anônimo quando se constrói um coenunciador bem determinado. Para esta construção, o coenunciador será o sujeito que assumirá as operações complexas e a quem se emprestará intenções, necessidades, interesses e uma identidade bem precisa. Enfim, em ambos os casos, os resultados poderão ser idênticos se não há exatidão ao nível da construção imaginária do coenunciador, quer dizer, a correspondência entre a imagem do destinatário e dos atores sociais que estarão em situação de leitura. 5 “Este termo noção provém da insatisfação que concerne ao tratamento lexicológico. Os estudos lexicológicos são feitos com objetivos precisos e o trabalho é feito de maneira coerente numa disciplina e não conduz sempre resposta à espera de outras disciplinas... As noções são sistemas de representação complexos de propriedades físico-culturais, isto é, propriedades de objetos saídos de manipulações necessariamente tomados ao interior de culturas e, deste ponto de vista, falar de noção é falar de problemas linguísticos. Eu não vejo como se poderia levantar o problema de outra maneira.”. (CULIOLI, 1990, p. 49- 50) 168—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 168 5/20/14 4:31 PM Se eu me engano na atribuição a meu co-enunciador uma apreciação de meu cachorro, eu serei verdadeiramente roubado. Se a revista não tem êxito de encontrar os destinatários que aceitem a imagem que a revista os propõe deles mesmos, ela não será comprada. (VERON; FISCHER, 1986) Esta démarche feita demonstra a necessidade de uma busca de um conceito mais abstrato, menos conteudístico – do dispositivo de enunciação para as análises dos discursos mediáticos. De um lado, pela importância e centralidade de tal conceito no domínio discursivo e, de outro, pela complexidade das matérias significantes dos discursos mediáticos, levaria a uma mutilação de corpus analisados pela originária concepção enunciativa marcadamente linguística, ancorada com exclusividade no conteúdo. Esta parte do artigo em conclusão, que busca repensar as relações no interior do núcleo enunciativo, clama por uma visão de um círculo semiótico ou hermenêutico que busca, igualmente, abarcar no seu interior as relações dos sujeitos discursivos e dos sujeitos empíricos. Este novo horizonte que será trabalhado em seguida. Do círculo semiológico ao círculo hermenêutico: a semiotização global da comunicação Além de repensar o conceito de dispositivo de enunciação nas pesquisas de comunicação, em especial no âmbito de discurso e mídia, também é preciso ultrapassar o círculo semiológico, considerado como uma totalidade do processo de significação por diferentes autores, mesmo que muitos deles se autodenominem semioticistas de terceira ou última geração. Neste desafio pode-se apelar à hermenêutica que se oferece como atividade “a reconstrução do conjunto de operações pelas quais uma obra se eleva sobre o fundo opaco de viver, de agir e de sofrer, para se dado por um outro a um leitor que a receber e muda assim seu agir.”(RICOEUR, 1983, p. 106-107), As operações conduzidas pela semiótica textual tornam-se uma parte do círculo hermenêutico na articulação das três mimesis. O círculo semiológico torna-se uma das mimesis (II) que se encontra situada entre as outras duas: a mimesis I ou a pré-figuração e a mimesis III ou a refiguração. (RICOEUR, Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 169 169 5/20/14 4:31 PM 1983) As três mimesis constituem um processo de semiotização global, pela qual procura-se demonstrar que o tempo é estruturado como uma narração. A passagem pelo narrativo marca a elevação do tempo do mundo ao tempo do homem ou o tempo fora da língua Zeit e o tempo da língua Tempus. (WEINRICH, 1973) As mimesis, segundo Ricoeur, constituem, ao mesmo tempo, uma teoria do texto e uma teoria da ação e descrevem uma dupla face do signo. De um lado, ele não é a coisa, ele não chega a se metamorfosear em coisa, mas de outro lado, ele evoca alguma coisa e ele é uma “imitação” ou uma “re-presentação” da coisa. Nesta dupla face encontra a força e a fraqueza do signo, da qual se origina o funcionamento dialético da tripla mimesis. (RICOEUR, 1986) Fazendo uma aproximação com a construção do discurso mediático, pode-se esboçar um quadro das Mimesis ( M I, M II e M III) do fato à interpretação da leitura. Esquema 1 - Implicações no processo de semiotização (posicionamento discursivo) Processo de Configuração Processo de Refiguração | | | | | | | | Fato Suporte Notícia Leitor Interpretação (M I) Mediático (M II) | (M III) | | | | processo de transação A relação entre a linguagem e a realidade, onde a “linguagem se constrói de alguma maneira marginalmente vis-a-vis à experiência”, torna-se um universo quase autônomo. Percebe-se, neste aspecto, uma certa legitimidade em estudos que não levam em conta o universo extradiscursivo. Estes estudos 170—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 170 5/20/14 4:31 PM são sensíveis ao “exílio do signo”, ou seja, no primeiro funcionamento da linguagem, porém não se pode ignorar o extralinguístico quando se estabelece como marcos da pesquisa (objetivos e problemas) que ultrapassam o domínio do linguístico, como é o caso, por exemplo, da evolução do posicionamento discursivo dos suportes mediáticos. Busca-se, então, como uma semiotização global, reabilitar o social ou o mundo da ação no estudo de fundo semiótico, e vice-versa, quando o ponto de partida for o chão das teorias sociológicas. Há uma relação de autonomia e de dependência entre as duas instâncias de significação pelos sujeitos implicados no ato de linguagem, ou melhor, no processo de enunciação. Pode-se designar quatro sujeitos engajados no duplo processo – transformação e transação – da tripla mimesis: os sujeitos sociais ou empíricos, protagonistas que se encontram no espaço do fazer – Sujeito Comunicante (Sc) e Sujeito Interpretante (Si); os sujeitos discursivos construídos no processo de transformação, circunscritos ao espaço do dizer – Sujeito Enunciador (E) e Sujeito Coenunciador (Co-E). A encenação do Dizer implica um olhar implícito no que tange à posição dos sujeitos empíricos. Pode-se dizer que o processo de enunciação conduz um duplo “contratos” que se influenciam mutuamente e se desenvolvem numa permanente relação. A evolução do posicionamento discursivo é a evolução do perfil dos sujeitos sociais e dos sujeitos discursivos numa constante troca entre eles. Todo posicionamento discursivo é, antes de tudo, um posicionamento sócio-semiótico no sentido pleno do duplo processo de significação. O estudo do posicionamento discursivo tem como objetivo analisar a construção de sentido de um ou mais suportes mediáticos levando em consideração a implicação de quatro sujeitos, dois empíricos (Sc – Si) e dois discursivos (Se – Sco). Pode-se mesmo postular que o sentido discursivo é fruto desta inevitável relação: [...] o sentido do discurso se constrói num encontro entre dois espaços, interno e externo, que têm, em verdade, uma certa autonomia,ao mesmo tempo, não há razão de existir se não for um em relação ao outro: o externo no interno, o interno no externo. (CHARAUDEAU, 1989, p. 14) Das teorias da comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 171 171 5/20/14 4:31 PM Além das buscas no tocante aos sujeitos discursivos, por isso que se colocou em relevo na parte precedente uma reflexão em torno da enunciação, há também em trabalhos analíticos um refinamento necessário em relação aos sujeitos empíricos tanto na produção quanto no reconhecimento ou recepção. O público “desenhado” pelas estratégias textuais refere-se aos sujeitos discursivos, mas há também sujeitos empíricos que traçam suas próprias estratégias em relação ao texto. Levando em conta um jornal, por exemplo, ele se encontra no interior de um chão de produção (regional, national etc). O chão de produção pode ser caracterizado como uma zona de concorrência, na qual diversos jornais com características semelhantes, buscam distinções na corrida por aumento de seus leitores. A zona de concorrência provoca uma dinâmica de semelhança e distinção orquestrada pelo busca do primeiro lugar. Os jornais buscam construir posições “distintas” (“individuação”) para se diferenciar dos outros na luta para conquistar um lugar privilegiado no seio da concorrência. A concorrência, em relação à produção, é uma fonte de significação nos estudos do posicionamento discursivo dos suportes mediáticos. Assim como as expectativas do público no que se refere ao reconhecimento. Em ambos os casos, o estudo do posicionamento discursivo se aproxima de conhecimentos oriundos da sociologia, gestão, marketing entre outros. O duplo espaço analítico que se atém os estudos do posicionamento discursivo se distancia da crítica de John Fiske, quando ele coloca em destaque os limites de certas pesquisas que mutilam seus objetos, no caso específico das análises de audiência: “Os programas são produtos, distribuídos, definidos pela indústria. Os textos são produtos de seus leitores.”6( MATTELARD, 1995, p. 89) Enfim, as preocupações aqui expostas buscam fazer um duplo movimento – centrípeto e centrífugo – em relação à construção de sentido dos discursos mediáticos. De um lado, revendo a noção de enunciação tendo em vista à diversidade das matérias significantes que compõem os discursos mediáticos e, conseguintemente, às exigências diferenciadas se for feita a 6Esta crítica de J. Fiske (Television culture, Londres, Methuen, 1987) foi reproduzida a partir do livro de Armand et Michète Mattelard. 172—Giovandro Marcus Ferreira teoria-meios-comunicacao_v1.indb 172 5/20/14 4:31 PM comparação com os estudos discursivos de décadas passadas (imanentistas) ou, então, aqueles circunscritos ao domínio da linguística. De outro lado, a atenção dada ao lançamento de pontes – das fronteiras às membranas – em relação a outros domínios científicos tão necessários no conhecimento das estratégias, sujeitos empíricos e de suas implicações com os sujeitos discursivos. Expostas tais preocupações, novos desafios vão se abrindo no tocante às construções metodológicas no âmbito da análise dos discursos mediáticos, tendo em vista que chão de pesquisa escolhido tem imbricações que o próprio dispositivo de enunciação pode desconhecer. R e f e r ê n c ia s BENVENISTE. Problèmes de linguistique génerale. Paris: Gallimard, 1974. v. 2. BARTHES, R. La chamber Claire: note sur la photographie. Paris: Gallimard: Seuil, 1980. CHARAUDEAU, P. La conversation entre le situationnel et le linguistique. Connexions, Paris, n. 53, 1989. CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation. Paris: Ophrys, 1990. ______. et al. La théorie de Antoine Culioli: ouvertures et incidentes. Paris: Ophrys, 1992. DAYAN, Daniel. 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É o caso do pernambucano Luiz Beltrão (1918-1986) que, na metade dos anos 1960, teoria-meios-comunicacao_v1.indb 175 175 5/20/14 4:31 PM justamente no momento em que eclode o golpe de Estado militar no Brasil, torna-se o primeiro doutor em comunicação social do país e, ao defender sua tese de doutorado junto a uma banca internacional, acaba por constituir talvez a única teoria comunicacional de gênese brasileira. Trata-se do que hoje conhecemos como a Folkcomunicação. A s o c i e d a d e d e m a s s a o c i d e n ta l A transformação das Gemmeinschaften em Gesellschaften, ou seja, a passagem das Comunidades à condição de Sociedades, conforme Ferdinand Tönnies (1947), [....] foi propiciada especialmente pela chamada Segunda Revolução Industrial, que gerou o forte processo de migração rural na Europa e nos Estados Unidos. Surgiram as grandes cidades, resultado de um processo de sucessivos fenômenos que Melvin Defleur assim alinha: urbanização, modernização, migração, divisão do trabalho, estratificação e mobilidade ascendente. (DEFLEUR, 1993, p. 200) Dito de outro modo, a industrialização produz grande migração da zona rural para a urbana; esta migração faz crescer significativamente cidades pequenas e médias, inchando as já cidades maiores, levando à divisão do trabalho e à especialização profissional e, consequentemente, à estratificação social (diferenciação entre as classes sociais), mas também a uma mobilidade ascendente. Podemos lembrar, aqui, a transformação experimentada por descendentes dos primeiros imigrantes europeus que chegaram aos Estados Unidos: irlandeses, poloneses, noruegueses etc., sem esquecer os chineses e nipônicos, que ocuparam as cidades, ali desenvolveram trabalhos considerados socialmente menores, mas ascenderam rapidamente na escala social, logo se tornando proprietários. O fenômeno chegou a ser observado e parcialmente estudado pelo francês Aléxis de Tocqueville que, ao visitar e demorar-se algum tempo nos Estados Unidos, escreveu poderoso e definitivo livro a respeito da modernização daquela nação. (TOCQUEVILLE, 1973[1835]) A migração, ao fazer crescer as cidades, provoca o fenômeno da urbanização e, por consequência da modernização, graças ao desenvolvimento de novas tecnologias que são logo adotadas pelas classes sociais ascendentes. 176—Antonio Hohlfeldt teoria-meios-comunicacao_v1.indb 176 5/20/14 4:31 PM Chegamos, assim, à era das multidões, o que parece preocupar a alguns, como Gustave Le Bom (2008[1895]), enquanto outros compreendem que se trata de um fenômeno nascente, mas plenamente controlável, graças a algumas novas práticas sociais, como a da imprensa: é o caso de Gabriel Tarde (1992[1901]), que menciona, como uma espécie de multidão domada, a emergência dos públicos. A valorização do jornal propicia a conversação e, por consequência, a organização de grupos de opinião, gerando o fenômeno que mais tarde seria estudado por Walter Lippmann (2008[1922]) enquanto a opinião pública. A explosão das grandes massas populares chamaria a atenção, não apenas dos estudiosos europeus quanto, especialmente, dos norte-americanos ou daqueles que se estabeleceram nos Estados Unidos. O l í d e r d e o p i n i ã o e o d u p l o f l u xo i n f o r m a c i o n a l Foi o caso do austríaco Paul Lazarsfeld (1901-1976). Em sua juventude, fez pesquisas empíricas em Viena, o que lhe valeu convite da Fundação Rockefeller para deslocar-se para os Estados Unidos, diante da ameaça nazista. Lazarsfeld deixa a Europa em 1933, estabelecendo-se em Nova York. Vai desenvolver o Radio Research Project, nas universidades de Newark e Princeton, e em 1940 estabelece-se na Universidade de Columbia, onde cria o Bureau of Applied Social Research.1 Entre 1941 e 1951, Lazarsfeld trabalha especialmente com Robert K. Merton, talvez o mais importante sociólogo funcionalista do século XX, estabelecendo uma espécie de contraponto aos estudos de Harold Lasswell e Wilbur Schramm, que se interessavam especialmente pelo poder que a mídia exercia sobre os receptores. Lazarsfeld e Merton, ao contrário – e mais tarde Elihu Katz e outros pesquisadores –, entendiam que tal influência era apenas relativa, já que, apesar da heterogeneidade social, havia a permanência de um certo número de características entre os integrantes de uma sociedade (DEFLEUR, 1971, p. 176), pois que as pessoas se organizavam estratificadamente em diferentes categorias sociais, identificando-se segundo suas classes sociais, religião, etnia, local de residência etc. Para eles, essas relações 1Os dados biográficos de Lazarsfeld foram colhidos especialmente na obra de Philippe Breton e Serge Proulx (2002, p. 145). Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 177 177 5/20/14 4:31 PM interpessoais acabavam se tornando mais importantes que a influência das mídias. (IGARTÚA; HUMANES, 2004, p. 206) Deste modo, a força da comunicação de massa, considerada enquanto aquele conjunto de procedimentos pelos quais grupos de especialistas se servem de inventos técnicos “[...] para difundir um conteúdo simbólico a um público vasto, heterogêneo e geograficamente disperso” fica relativizada. (IGARTÚA; HUMANES, 2004, p. 112) Se Tocqueville já havia surpreendido pioneiramente o fenômeno do anonimato nas grandes sociedades, expresso de passagem na obra antes mencionada, Melvin DeFleur e Sandra Ball-Rokeach (1993, p. 211) mostram o quanto Lazarsfeld e Merton valorizaram a importância dos relacionamentos sociais, numa sociedade originalmente igualitária, em que se reconhecia especialmente a livre iniciativa e a competência individual (conforme o mesmo Tocqueville também registrara). Daí que Lazarsfeld e seus companheiros vão se distanciar da onipotência do emissor sobre o receptor, expressa por Harold Lasswell (1927), para entender que os mídias, não apenas medeiam, mas também são mediados através de, no mínimo, três processos paralelos ou simultâneos de outras influências: a seleção individual, conforme os estereótipos (LIPPMANN, 2008[1922]) adquiridos e desenvolvidos por cada sujeito; o circuito das relações interpessoais e a dimensão temporal. (BRETON; PROULX, 2002, p. 148) A consequência dessa nova perspectiva é que se sai de um conceito relativamente simples para um conceito bem mais complexo, porque as relações entre mídia e receptores/consumidores se tornam mais críticas e autônomas. Quer em The people´s choice (1948), que Lazarsfeld escreve com Bernard Berelson e Hazel Gaudet, quer em Personal influence: The part played by people in the flow of mass communication (1956), produzido com a colaboração de Robert Merton, Wright Mills e Thelma Ehrlich Anderson, em volume que publica com Elihu Katz, Lazarsfeld apresentará quatro diferentes características que explicam a mediação social experimentada pelos próprios mídias: a) as pessoas não estão isoladas mas pertencem a grupos sociais; b) as respostas às mensagens dos mídias não são diretas, mas mediadas por essas relações grupais; c) deve-se distinguir dois momentos: o da recepção e atenção (à mensagem) e o de sua aceitação (ou rechaço); d) cada indivíduo cumpre 178—Antonio Hohlfeldt teoria-meios-comunicacao_v1.indb 178 5/20/14 4:31 PM diferente papel no ato comunicativo. (HOHLFELDT; FRANÇA; MARTINO, 2001; IGARTÚA; HUMANES, 2004) Não se pode menosprezar as evidências dessas pesquisas: no caso de The people´s choice, o trabalho envolveu 2400 eleitores do condado de Erie, no Ohio,2 enquanto Personal influence foi desenvolvido por uma equipe, com mais de 800 mulheres da localidade de Decatur, no Illinois, e mais tarde reunida e analisada por ele e Elihu Katz, quando refinaram as hipóteses iniciais de seus estudos. Daí advieram os dois conceitos-chave da teoria: existe, em cada grupo social, uma espécie de líder de opinião, “indivíduo que estava em maior contato com a mídia” (DEFLEUR; BALL-ROCKEACH, 1993, p. 212) e que, por isso mesmo, não apenas compreendia mais facilmente quanto tomava posição mais rapidamente a respeito do fato informado, provendo, assim, interpretações para os demais integrantes do grupo. Era, em última análise, a aludida referência pessoal, que tanto podia influenciar sobre muitos quanto sobre poucos, mas que dependia, para o seu sucesso, fundamentalmente, do reconhecimento dos pares como conhecedores daquele tema (RUDIGER, 1998, p. 55), observação semelhante à que Pierre Bourdieu já fizera, ao mostrar que ninguém alcança poder por si mesmo, mas tem seu poder reconhecido pelos pares que, assim, o legitimam. (BOURDIEU, 2002) Esse líder de opinião, assim, filtra e reinterpreta uma mensagem original. Neste caso, a mensagem original, oriunda de uma mídia, não atinge diretamente ao receptor, mas atravessa etapas intermediárias, sendo mediada por essas lideranças. Daí o segundo conceito central da teoria, que é o do duplo fluxo da informação, ou seja: ela sofre uma limitação em seus efeitos originais, pois é filtrada por aquelas lideranças, atingindo indiretamente ao(s) receptor(es). Dito de outro modo: as mensagens das mídias não atingem a todos os membros de um grupo, mas apenas a alguns (poucos) que se encarregam de, depois de filtrar, retransmitir aquela mensagem original que, evidentemente, já se acha modificada. Neste sentido, pode-se chegar a duas conclusões: 2 Mesma região que serviria de referência, anos mais tarde, para os estudos de Maxwell McCombs para a agenda setting. (HOHLFELDT; FRANÇA; MARTINO, 2001, p. 187) Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 179 179 5/20/14 4:31 PM a) as relações interpessoais são mais importantes que a influência dos meios (IGARTÚA; HUMANES, 2004, p. 211); b) a comunicação interpessoal é extremamente importante, mesmo nas chamadas sociedades de massa (ALSINA, 2001, p. 53), e hoje em dia, com o advento da internet, torna-se ainda mais significativa, na medida em que permite a formação das redes de comunicadores (diríamos, as redes sociais). D é f i c i t c o n c e i t ua l e a p l i c a ç ã o c o m p e n s at ó r ia Apesar de ser enorme a influência dos estudos de Paul Lazarsfeld, a ponto de ele ser considerado o pai da communication research (IGARTÚA; HUMANES, 2004, p. 117- 211), sua teoria é por demais generalista e embora mencione as diferenças sociais, não explora esta perspectiva. Neste sentido, seus estudos não se distanciaram significativamente daquele comportamento administrativo e formal que caracteriza boa parte das pesquisas norte-americanas. Foi preciso a figura do brasileiro Luiz Beltrão para recolocar, de certo modo, a teoria num contexto social objetivo e dar-lhe, então, sim, uma consequência. Isso vai ocorrer na redação de sua tese de doutorado, quando desenvolve o conceito de agente folkcomunicacional, assim caracterizado pelo autor: a) possui prestígio na comunidade; b) está exposto às mensagens do sistema de comunicação social massivo e industrializado); c) mantém frequentes contatos com fontes externas (à própria comunidade a que pertence) autorizadas de informação; d) possui mobilidade e e) guarda profundas convicções filosóficas. (BELTRÃO, 1980, p. 35) Como se sabe, o Brasil sofreu uma colonização por ocupação, diferentemente dos Estados Unidos, que teve uma cultura transplantada (RIBEIRO, 1970). Evidentemente, tais condições gerariam processos diversos de colonização. Nas colônias portuguesas, a metrópole jamais permitiu a existência de um prelo, com a única exceção de Goa (HOHLFELDT, 2011), ao contrário da colonização espanhola que, desde a primeira metade do século XVI, já tinha a imprensa estabelecida no México e, logo depois, no Peru. No caso brasileiro, a colonização estabeleceu o que, mais tarde, seria denominado os 180—Antonio Hohlfeldt teoria-meios-comunicacao_v1.indb 180 5/20/14 4:31 PM dois brasis (BASTIDE, 1957): havia um país mais urbano, próximo ao litoral, e um outro país, eminentemente rural, no interland do continente. Quando, já ao longo do século XIX, há o transplante da sede do reino português para o Rio de Janeiro, expandem-se as cidades e começa o processo de ocupação mais intensa do interior, mas a divisão permanece. O surgimento da imprensa, no Brasil, em 1808, ampliou ainda mais este fosso, pois a maior parte da população era analfabeta e, portanto, tinha escasso acesso à imprensa. Nem mesmo a aparição do cinema e do rádio, mídias que dispensavam o domínio da escrita, resolveu a dicotomia: a inexistência de linhas de transmissão de energia elétrica fazia com que tanto o cinema quanto o rádio continuassem confinados aos espaços já mais desenvolvidos. Havia, pois, como constata Luiz Beltrão, uma cisão ética e política (2001, p. 54), que refletia também uma cisão cultural e educacional. Contudo, isso não significava que as populações rurais do imenso interior brasileiro não acompanhassem os acontecimentos ocorridos nos espaços urbanos do litoral ou fossem desconhecidas dos aglomerados urbanos. Como registrou dinamicamente o comediógrafo Martins Pena, ainda na primeira metade do século XIX, ocorria, contudo, uma relação díspar: o aglomerado urbano menosprezava a tradição rural, desqualificando-a enquanto ignorante, e esta, ou assumia este julgamento preconceituoso, ou se isolava, para não sofrer tais pré-julgamentos. Os agrupamentos urbanos acompanharam, ainda que com alguma defasagem, as conquistas tecnológicas das sociedades industrializadas. Assim, a imprensa amplia sua circulação a partir dos anos 1850; o cinema chega, ainda ao final do século XIX, e o rádio já emite suas primeiras mensagens, nos anos 1920. A televisão estrearia nos anos 1950. Todos os mídias, contudo, atendiam a públicos ínfimos e reduzidos, circunscritos aos espaços próximos ao litoral. No espaço rural, distante e isolado, contudo, formavam-se circuitos alternativos aos processos industrializados de informação e comunicação. É a isso que Luiz Beltrão vai denominar de folkcomunicação, criando um termo que juntava a expressão mundialmente aceita de folk lore – cultura do povo – traduzida mais literalmente como folclore – e a comunicação. Conceituava ele, na obra antes mencionada: Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 181 181 5/20/14 4:31 PM Folkcomunicação é o processo de intercâmbio de mensagens através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore e, entre as suas manifestações, algumas possuem caráter e conteúdo jornalístico, constituindo-se em veículos adequados à promoção de mudança social. (BELTRÃO, 2001, p. 73) Buscando precisar o conceito, algumas páginas adiante, Beltrão retoma o termo: Folkcomunicação é, assim, o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, idéias e atitudes da massa, através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore. (BELTRÃO, 2001, p. 79) Tomemos um exemplo histórico: quando os padres jesuítas chegaram à nova colônia da América do Sul, a fim de alcançarem a catequese almejada dos indígenas, trataram de aprender o que denominaram idioma geral, o guarani, e assimilar alguns dos usos e costumes das diferentes aldeias. Assim, José de Anchieta, por exemplo, descobriu que os índios gostavam de música e de representações dramáticas. Não titubeou, pois, em escrever peças dramáticas a serem representadas nas aldeias, valendo-se do idioma português, o latim e a língua geral guarani. Neste sentido, podia-se dizer que os portugueses eram os grupos dominadores e colonizadores que se comunicavam com os grupos minoritários e marginalizados, através de agentes intermediários, folkcomunicacionais – os sacerdotes – que, tendo alcançado reconhecimento por parte dos indígenas, podiam transitar com certa liberdade entre os dois grupos, restabelecendo entre eles as necessárias pontes de comunicação, mas a cada momento adaptando e traduzindo as mensagens trocadas entre ambos. No estudo que constituiu a tese de doutoramento de Luiz Beltrão (2001, p. 127), ele identificou três grandes categorizações, quais sejam: a informação oral, a informação escrita e a informação opinativa. As informações orais teriam como agentes transmissores os cantadores do nordeste, que herdaram as práticas do cordel medieval; o caixeiro viajante; os motoristas de caminhão etc. Tais agentes, normalmente oriundos das comunidades rurais, por força de suas atividades profissionais, passam a circular nas comunidades urbanas, sem nelas se fixar: cruzam constantemente as fronteiras entre umas e outras, levando daqui para lá e de lá para cá, modos de falar, modos de ver, modos de se comportar que, quando nas novas comunidades, são adaptados às condições diferenciadas em que serão praticados. 182—Antonio Hohlfeldt teoria-meios-comunicacao_v1.indb 182 5/20/14 4:31 PM No caso da informação escrita, vamos encontrar os folhetos de cordel, os almanaques (outra tradição europeia medieval), os calendários e livros de sorte etc. No que toca à folkcomunicação opinativa, ela depende da existência de espaços e de práticas comunitárias, locais e oportunidades em que as comunidades se reúnem e terminam por se misturar: feiras, vendas e pulperias, portos, pátios de igrejas, barbearias e farmácias etc. Deve-se mencionar, ainda, as festas e folguedos: queima dos Judas (tradição portuguesa medieval), carnaval, mamulengos (representações teatrais com bonecos de enormes dimensões), bumba meu boi, artesanatos, esculturas etc. Em síntese, em princípio, os sistemas comunicacionais industrial (massivo) e rural correriam paralelos, sem nunca se encontrarem. Graças às práticas dos agentes folkcomunicacionais, contudo, os sistemas acabam se encontrando e entrecruzando, trocando mensagens que, na sua dinâmica de circulação, terminam por mudar de aspecto e, às vezes, até mesmo de sentido. No caso das comunidades rurais, esta dinâmica se expressa justamente através das atividades folclóricas ou, para ficar mais claro, através das atividades da cultura popular. Embora abrindo um caminho profundamente importante e amalgamador, que permitiria vencer as aparentemente profundas divisões entre os dois sistemas comunicacionais, a teoria de Luiz Beltrão enfrentou imensas dificuldades para ser reconhecida. Como registra José Marques de Melo, de um lado, havia os folcloristas conservadores e as forças reacionárias do governo que se estabelecera no país, após o golpe de estado de 1964: para esses, o folclore é uma manifestação do passado, que assim deve ser conservada, congelada, distante e isolada, como peça de museu. (MARQUES DE MELO, 1964, p. 4) Quanto aos militares, o fato de Luiz Beltrão lançar mão de teorias do folclorista Edison Carneiro, acusado de integrar grupos simpáticos ao comunismo, bastou para que a teoria encontrasse reservas e até restrições. Basta dizer que a primeira edição de sua tese teve cortada praticamente toda a exposição teórica, na medida em que a editora temeu enfrentar a censura se publicasse o capítulo teórico da obra. (BELTRÃO, 1971) Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 183 183 5/20/14 4:31 PM Do outro lado, nos anos 1960 e 1970, a esquerda descobria a teologia da libertação e, assim, para ela, a cultura popular deveria ser modernizada e valorizada, mas sob uma perspectiva reinterpretativa, com vistas à revolução e ao enfrentamento. Assim, os segmentos populares passaram a ser considerados como marginalizados, e uma dupla carga semântica acabou marcando e prejudicando a aceitação da teoria: a folkcomunicação seria um produto rural e, ainda por cima, marginalizado. Levou tempo para que Luiz Beltrão se desse conta que o caminho por ele iniciado era mais amplo e mais dinâmico do que poderia parecer. No segundo trabalho publicado, ele amplia o conceito de marginalizado para além do universo rural, chamando a atenção para três aspectos que, dali para a frente, marcariam a comunicação popular: a artesania, a transmissão horizontal e a ampliação do conceito de marginalização a todo e qualquer espaço, não mais limitado ao universo rural. (BELTRÃO, 1980) No novo trabalho, Beltrão (2001, p. 38) reconhece que a comunidade marginalizada em que ocorrem os processos folkcomunicacionais pode ser rural, urbana ou cultural. Pode-se dizer que é a marginalização cultural a que acaba sendo a perspectiva mais produtiva dos estudos que se seguirão, agora, não mais restritos a Beltrão, mas já contando com alguns primeiros discípulos, como o próprio José Marques de Melo, Roberto Benjamin, Sebastião Breguez, Joseph Luyten e, sucessivamente, Osvaldo Trigueiro, Cristina Schmidt e eu próprio. Os grupos marginais, rurais, urbanos ou culturais, podem compreender os grupos messiânicos, o aparecimento do coronelismo (LEAL, 1975[1948]), além de práticas variadas como o grafito – quer nas portas e paredes de banheiros, quer nas paredes das casas, em praticamente todas as cidades (BARBOSA, 1984; MAILER; NAAR, 1974; RAMOS, 2003), as legendas de parachoques de caminhões, as publicações de livros erótico-pornográficos (ASSUNÇÃO, 1984; MARINHO, 1983), a circulação de provérbios, ditados, jogos e brincadeiras, anedotas, advinhações, correntes, brincadeiras etc., para além de práticas sócio-religiosas, como a lavagem do Bonfim, procissões de Semana Santa etc. Essas práticas circulam dinamicamente e, embora mantendo sua essência, mudam aspectos externos de aparência e se adaptam facilmente a novos tempos. 184—Antonio Hohlfeldt teoria-meios-comunicacao_v1.indb 184 5/20/14 4:31 PM Lembro-me que, há alguns anos, estive na cidade de Caruaru, no interior de Pernambuco. Queria conhecer sua feira, famosa em todo o Nordeste. Lá estava a bandinha de pífanos e, na feira, os castiçais de velas e as grandes bacias feitas de latas de azeite que, depois de abertas, eram soldadas artesanalmente. Anos depois, ao retornar à feira, a situação era e não era a mesma: os castiçais haviam desaparecido, pelo simples fato de que a ação saneadora do governo federal e de governos estaduais havia estendido a rede elétrica por todo o estado de Pernambuco, dispensando as antigas velas. Quanto às bacias, que tanto serviam para se banhar quanto para utilidades na cozinha, elas continuavam, mas agora eram de plástico multicolorido, muito mais baratas, leves e práticas. Quanto às correntes, quem não recebeu, em algum momento, uma carta pelo correio, sugerindo a reprodução daquele texto, que deveria ser enviado a amigos e conhecidos, sob pena de enormes infelicidades para quem quebrasse a seriação? Ora, hoje, essas correntes circulam pela internet, com a mesma dinâmica e as mesmas ameaças. Mais interessante é a prática do ex-voto, casualmente um dos primeiros estudos desenvolvidos por Luiz Beltrão. No nordeste, o ex-voto reproduz algum membro do corpo a propósito do qual o crente fez a promessa a seu santo protetor, ou à Virgem. Em centros do sudeste brasileiro, o ex-voto foi substituído pelo santinho, que deve ser distribuído nas missas; pelo anúncio de jornal, em que se agradece ao santo por uma graça recebida; mas, sobretudo, pela vela – maior ou menor, mais cara ou mais barata – conforme a graça alcançada e a disponibilidade pecuniária do devoto para pagar a promessa. Hoje, nem esta vela sobrevive. Nas igrejas europeias, o devoto coloca uma moeda de um euro numa ranhura existente para este fim e a vela elétrica se acende, sendo sua luz mais intensa, ou permanecendo acesa por mais tempo, conforme o valor colocado. Mais recentemente, esse tipo de promessa pode ser realizada virtualmente, pela internet, através do cartão de crédito. Mudou o suporte, mas o procedimento folkcomunicacional permanece exatamente o mesmo. Para que se possa compreender, pois, claramente, e valorizar a contribuição de Luiz Beltrão: em sociedades com imensas divisões sociais – econômicas e culturais – como ainda ocorre com o Brasil, haveria a impossibilidade de Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 185 185 5/20/14 4:31 PM comunicação entre os diferentes segmentos e universos sociais, não fossem esses agentes folkcomunicacionais que vivem a cruzar as fronteiras entre um e outro universo. São eles que dinamizam e enriquecem os processos culturais, emprestando-lhes variedade e criatividade. Mais que isso, Luiz Beltrão acabou resolvendo um problema que, anteriormente, seu conterrâneo e contemporâneo, Paulo Freire (1980), havia levantado, a partir de sua experiência de ensino entre os mineiros peruanos. Freire entendia que um processo verdadeiramente educacional só poderia ocorrer se emissor (professor) e receptor (discípulo) se colocassem num mesmo patamar, o que permitiria a verdadeira dialogia, que só pode se dar entre semelhantes. Mas ele nunca chegou a resolver o problema sobre como chegar a esta situação ideal. Foi a teoria folkcomunicacional de Luiz Beltrão que deu a resposta àquele problema: através dos diferentes elementos da cultura popular, mobilizados pelos líderes de opinião, podemos alcançar esta situação paritária, como demonstrei em artigo recente. (HOHLFELDT, 2009, p. 94) Ou seja, e para concluir: menos marginalizados do que pode parecer; bem mais integrados do que poderíamos imaginar, muitos segmentos populacionais continuam vivendo à margem dos processos de comunicação social massivos e industrializados, mas isso não significa que estejam alienados ou marginalizados. Na verdade, eles circulam voluntariamente nestas linhas paralelas, mas podem e conseguem aproximar-se e intercambiar com os segmentos massivos e industrializados, ainda que sob outras perspectivas e adaptando os procedimentos disponíveis a seus próprios interesses. Basta observarmos a importância de engenheiros e arquitetos de departamentos municipais de urbanização e habitação entenderem e se disporem a conversar com populações para as quais desenvolvem projetos de moradia popular. Ou acompanharmos a vitalidade dos grafites que, por vezes, enfeiam nossas cidades ou os carros dos trens metropolitanos ou os banheiros de nossas universidades, mas que algumas municipalidades têm usado para enfeitarem empenas cegas de prédios cujas laterais não devem nem podem ficar vazias, quando o prédio lateral é derrubado para dar espaço a uma nova construção. Luiz Beltrão idealizou uma teoria aplicável a todas as sociedades, desenvolvidas ou não, industrializadas ou não, mas especialmente para as sociedades onde remanescem grandes diferenças sociais, econômicas e cul- 186—Antonio Hohlfeldt teoria-meios-comunicacao_v1.indb 186 5/20/14 4:31 PM turais. Ele objetivou e contextualizou aquele processo que Paul Lazarsfeld e Elihu Katz identificaram, sem, contudo, aprofundá-lo. Beltrão mostrou que o processo do duplo fluxo, na verdade, é mais que isso. É processo de múltiplos fluxos, sucessivos, contraditórios e simultâneos, que se enriquecem mutuamente, que se abrem e se ampliam permanentemente. Esta foi a sua grande lição. R e f e r ê n c ia s ALSINA, Miquel Rodrigo. Teorías de la comunicación: ámbitos, métodos y perspectivas. Barcelona: Aldea Global, 2001. ASSUNÇÃO, Otacílio d. O quadrinho erótico de Carlos Zéfiro. Rio de Janeiro: Record, 1984. BARBOSA, Gustavo. Grafitos de banheiro: a literatura proibida. São Paulo: Brasiliense, 1984. BASTIDE, Roger. Brésil, terre des contrastes. [Paris] : Éditions L’Harmattan, 1957. BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980. BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. Porto Alegre: Edipurcs, 2001. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. BRETON, Philippe; PROULX, Serge. L’explosion de la comumunication à l’aube du XXIème. Siècle. 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Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 189 189 5/20/14 4:31 PM teoria-meios-comunicacao_v1.indb 190 5/20/14 4:31 PM Considerações sobre a explicação em comunicação Luiz Claudio Martino I n t r od ução A epistemologia da comunicação vem sendo discutida há pouco mais de meio século, mas somente a partir dos anos 1980 ganha alguma regularidade. Seus principais temas têm sido o campo (Integração ou dispersão? Disciplina científica ou interdisciplinaridade?) e o objeto de estudo (O que estudamos?). Os trabalhos de história do campo e das teorias da comunicação também se encontram pouco desenvolvidos, apenas mais recentemente, há cerca de uma década, começam a ter um tratamento adequado (BUXTON, 1996; PAULY, 1997) e ainda têm pouco valor como contribuição epistemológica. (MARTINO, 2004) teoria-meios-comunicacao_v1.indb 191 191 5/20/14 4:31 PM Estas diferentes discussões, como se sabe, não são independentes (em grande parte se recobrem ou se implicam mutuamente) e têm consequências diretas sobre o que entendemos por teorias da comunicação. Muito desse esforço, no entanto, se dissipa em questões e objetivos que não são propriamente epistemológicos. Por exemplo, quando a reflexão se desenvolve de forma meramente descritiva (mapeamento das teorias, estabelecimento de redes de colaboração entre pesquisadores, número de citações), ou como julgamento político (teoria crítica versus pesquisa administrativa), como julgamento ético-estético (modernidade versus pós-modernidade) ou, ainda, como tentativa de justificar toda e qualquer pesquisa realizada em nossas instituições como sendo teoria da comunicação (interdisciplinaridade, estudos culturais, estudos feministas, crítica literária etc.). Além disso, o trabalho epistemológico frequentemente é confundido com outras abordagens que refletem sobre o conhecimento, tais como a sociologia da ciência, a gnosologia ou a filosofia da ciência (MARTINO, 2003), de modo que o simples tratamento de temas sobre comunicação ou a referência à abordagens que tratatam o saber comunicacional não são suficientes para caracterizarem um trabalho epistemológico de nosso domínio de estudos. Por essa razão, mesmo quando encarada diretamente, a reflexão sobre pontos capitais frequentemente não chega a alcançar uma dimensão epistemológica. Por exemplo, as questões sobre o campo, por vezes são reduzidas a aspectos institucionais (institucionalização do conhecimento), deslocando a análise para a sociologia da ciência; por vezes são substituídas pela história do campo (fundação das instituições, primeiros cursos, aparecimento de revistas, premiações etc.). Mesmo os conteúdos das teorias têm sido tomados e transformados em produção intelectual global, gerando índices para expressar a força ou a relevância de uma instituição (volume e distribuição da produção bibliográfica em categorias temáticas, índices de citações etc.). O que, de modo muito significativo, tem levado às questões políticas sobre o produtivismo (aliás, muito necessárias), mas não exatamente à discussão de problemas sobre teoria e epistemologia. O problema do objeto de estudo, por sua vez, não raro é entendido como a despropositada procura de um consenso, para se concluir, de forma sumária e despropositada, pela inviabilidade de haver um objeto de estudo. Isso, claro, quando não é simplesmente 192—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 192 5/20/14 4:31 PM confundido com a discussão de objetos empíricos (listagens e apontamentos sobre “coisas” ou temáticas interditas ou permitidas aos estudiosos da Comunicação). Com isso, a área de comunicação não vem aproveitando os mais relevantes potenciais da análise epistemológica, como o de refletir sobre as características que singularizam as teorias da comunicação frente a outras teorias e frente à realidade social, enquanto uma forma de abordagem relevante e particularizada. Reflexão epistemológica e produção teórica pouco se tocam. A questão da teoria, não raro, fica confinada à apresentação em manuais de introdução, que bem ou mal estabelecem o conjunto de conhecimentos de nossa área de conhecimento. De forma mais ou menos consciente eles dão resposta à questão “quais são as teorias da comunicação”, mas paradoxalmente não indicam os critérios que permitem saber o que faz delas teorias da comunicação. (MARTINO, 2007) As tentativas de apreender a unidade do campo sem a explicitação e discussão crítica desses critérios é um sinal claro da ruptura entre teoria e a reflexão epistemológica. (MARTINO, 2008) O propósito do presente texto é mostrar que – apesar de pouco evocada nos estudos de nossa área – a noção de explicação é fundamental para articular a questão da teoria às discussões epistemológicas, como aquelas relativas ao campo, disciplina e ao objeto de estudo. Ela nos permite resgatar a questão da teoria desde seu elemento mais profundo até seus aspectos pragmáticos e reorientar a discussão para aquilo que é mais próprio à reflexão epistemológica. Não podemos seguir discutindo se o campo é “aberto ou fechado”, se o objeto de estudo da comunicação deve ou não se restringir às formas tecnológicas (meios de comunicação). A dimensão epistemológica não se esgota com estas discussões e nem poderá atingir alguma consistência sem levar em conta a natureza da teoria enquanto recurso explicativo, ou seja, a natureza e o objetivo da teoria. As razões do “esquecimento” da noção de explicação podem ser buscadas tanto fora como internamente à nossa área de estudo. No primeiro aspecto destaquemos a forte concentração dos especialistas na questão lógica da explicação e no interesse pelas ciências da natureza (particularmente o movimento do empirismo lógico, como veremos em seguida). Quanto aos fatores Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 193 193 5/20/14 4:31 PM internos ao nosso domínio de estudo, a pouca familiaridade com a questão da ciência (formação do comunicólogo enquanto profissional dos meios de comunicação, estudos de Comunicação tomados como conhecimento técnico ou como arte etc.) levaram a uma fraca concepção epistemológica. Em parte isso se dá pelo baixo investimento, em parte pela crença ingênua de reivindicar para a comunicação uma condição sui generis no campo do conhecimento, o que leva a alguns a se aventurarem em arrojadas concepções do estatuto epistemológico de nosso saber, talvez por parecer-lhes ser mais fácil reinventar o conhecimento que procurar entendê-lo. L ó g i c a d a e x p l i c a ç ã o e c i ê n c ia s s o c iai s Historicamente a questão do conhecimento atravessa a história da filosofia, mas o ponto em questão, tendo por foco as teorias científicas, se inaugura com o empirismo lógico e seus críticos. Eles entenderam e se ocuparam da questão da explicação como um problema lógico, os modos de sustentação do conhecimento científico na linguagem e nas formas de raciocínio (modelos Hipotético-dedutivo e Indutivo-estatístico). Dentre suas principais preocupações está a definição do conhecimento científico, seja através da demarcação deste em relação ao senso comum, seja por meio da refutação e expurgo de todo elemento metafísico. A tradição do empirismo lógico (também conhecido como positivismo lógico) tem por referência um artigo que Hempel e Oppenheim publicaram em 1948. (SALMON, 1990) Ele deu forma ao debate epistemológico e muito influenciou o tipo de abordagem do problema da explicação, posteriormente designado e classificado como lógica da explicação. A partir dai foi possível importantes avanços em matéria de compreensão do que é uma teoria. Foram feitos debates reunindo filósofos e cientistas em torno de questões como a do falsificacionismo (uma teoria pode ser verificada pelos fatos?) e a do realismo (qual a relação entre as teorias e o mundo? Uma teoria científica é literalmente uma verdade, fala do mundo tal como ele é ou vale apenas por seu poder de explicação? Pode-se entender por isso, coisas tão diferentes como ela ser uma ficção útil ou uma aproximação do real?). 194—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 194 5/20/14 4:31 PM O empirismo lógico, porém, não constitui a única entrada. A epistemologia que emerge no início do século XX com esse movimento foi predominantemente uma reflexão filosófica sobre as ciências da natureza e particularmente da física. Ou seja, uma reflexão de filósofos e não de cientistas, que se apoiava na ideia da superioridade do modelo da física (o que denota que tantos seus adeptos como seus críticos partiram de pressupostos realistas como referência). De outra parte, os poucos trabalhos em epistemologia das ciências sociais frequentemente se restringiram a marcar a diferença de seu modo de explicação, normalmente insistindo na distinção com a noção de “compreensão”. Esta situação fortaleceu o predomínio da visão de que a epistemologia seria uma matéria exclusiva da filosofia, ou seja, que não haveria uma epistemologia elaborada pelos cientistas (retomaremos a este ponto mais à frente), que este trabalho não lhes caberia. Posição obviamente pouco aceitável, que não faz justiça à contribuição dos cientistas e particularmente para nós, ao grande envolvimento que os cientistas sociais tiveram e ainda têm com a fundamentação de suas disciplinas (basta lembrar o quanto foi intenso o debate na virada do século entre sociólogos, historiadores, psicólogos). Mesmo entre os autores que identificam e mostram sensibilidade a este problema não estão livres de vê-lo retornar. Kaplan (1975), por exemplo, faz uma boa apresentação ao apontar corretamente que filósofos e cientistas têm interesses diferentes. Seguindo a linha do empirismo lógico, os primeiros se propõem a distinguir a ciência da metafísica. Suas principais questões giram em torno da demarcação entre estas duas formas de conhecimento, eles procuram estabelecer os critérios de distinção entre o científico e o não científico (senso comum, metafísica). Contudo, como adverte Kaplan (1975, p. 41), O próprio cientista, entretanto, não pode conseguir muito com base no critério de distinção entre o científico e não científico. Para ele, a questão não é tanto a de afastar o sem-sentido metafísico, mas identificar e esclarecer a significação científica. Como devemos entender e empregar conceitos do tipo de ‘motivação inconsciente’, ‘estrutura social’ e ‘utilidade do dinheiro’? Não se trata de noções caracteristicamente metafísicas, mas que significados têm elas? Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 195 195 5/20/14 4:31 PM As teorias científicas são conceitos metafísicos? Devem, portanto, serem eliminados? A demarcação entre ciência e metafísica é necessária, mas até que ponto pode-se ser absolutamente rigoroso com o elemento especulativo sem reduzir a reflexão científica à mera descrição de elementos empíricos? Este problema – é preciso dizer – não gerou nenhuma “crise na ciência”, ao contrário, ele ajudou a melhor compreender o que é teoria. Para o empirismo lógico a questão da fundamentação da ciência continua sendo a observação, mas ela é deslocada para o plano da linguagem (ou da lógica). Seu objetivo é separar proposições metafísicas (ou sem sentido no plano da observação) e proposições que levam a fatos que podem ser observados (um elemento extralinguístico podendo, então, servir de critério para avaliação das teses). De modo geral, esta visão continua a ser interessante, mas deve obviamente ser temperada para se evitar a renúncia da teoria e adoção de uma posição hiperempirista inconsistente (apenas o observável, sem “concessões”). Se o projeto de fundamentar a ciência em uma linguagem perfeitamente depurada de elementos metafísicos não pôde ser realizado (seja pela lógica, seja pelo operacionalismo), isto não significa, de forma alguma, que não foram importantes ou que devam ser recusados em sua totalidade. Ao contrário, estas reflexões, seus impasses e imperfeições caso possam ser classificados como “fracassos” enquanto projetos filosóficos, de outro lado, alimentam e fazem avançar nosso conhecimento epistemológico. Em última instância, bem entender o problema da demarcação – ter em conta as linhas de continuidade e ruptura entre teorias científicas e elementos metafísicos – nos leva a compreender em que consiste a diferença entre ciência e filosofia. Então, se o problema filosófico da demarcação está longe de ser ocioso, também é preciso ter em conta, como faz Kaplan, que ele não ocupa a atenção de cientistas em suas atividades comuns, voltada para a elaboração de teorias e não para a justificativa da existência destas. Raramente o cientista discute se é válido ou não fazer teorias, até porque sua questão não é (e não pode ser) a fundamentação última da teoria na realidade, o que implicaria abandonar a ciência para fazer metafísica. Ele não discute se a realidade existe ou não, se a objetividade é mera quimera ou o efeito de um “gênio maligno”, sua preocupação é fornecer elementos que expliquem a realidade. 196—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 196 5/20/14 4:31 PM Kaplan coloca muito bem isto, no entanto, o problema indiretamente retorna quando consideramos o quadro de sua apresentação. A questão da explicação se dá totalmente dentro do espaço filosófico. O próprio empirismo é apresentado como um movimento que liga as questões do século XVIII (empirismo epistemológico, Locke, Hume, Kant) às do século XX (empirismo lógico, Círculo de Viena, Popper). Ficam de fora as contribuições dos cientistas sociais no século XIX, desconsiderando-se as discussões que fundaram a psicologia e as disciplinas das ciências sociais. As tradições que se seguiram ao positivismo lógico buscaram outros modos de fundar a explicação das teorias científicas. (MAYES, 2005) Para as novas correntes da epistemologia filosófica a fundamentação não se dá no real (empírico), nem na lógica (empirismo lógico), mas em aspectos psicológicos (crença) ou pragmáticos (utilidade, propósito, problema-resposta). Desse modo, entretanto, elas não alteraram a situação, apenas buscaram alternativas no tocante ao problema da fundamentação das teorias. De outra parte, nas ciências sociais a questão da demarcação toma outras formas. Inicialmente se refere à distinção destas com a filosofia, mas principalmente em relação às ciências da natureza, procurando a especificidade de sua forma de conhecimento. O foco da atenção não é prioritariamente uma relação com o real (metafísica, física), o que se busca estabelecer é a possibilidade de tomar o homem como objeto de estudo científico e principalmente a especificidade das diferentes disciplinas das ciências sociais, o ponto de vista de cada uma delas sobre este objeto comum, o homem. Devemos ter em conta esta diferença dos desenvolvimentos da discussão epistemológica entre a filosofia e as ciências sociais a respeito da discussão do problema da explicação. A atenção de cientistas sociais se volta para os modos de definição e esclarecimento de seu objeto. Este não é uma realidade imediata (todo pesquisador é um ser humano), centrada na realidade do indivíduo como unidade biológica, trata-se de um fenômeno que ultrapassa o indivíduo ou a soma dos indivíduos e requer um trabalho teórico especial, no qual o objeto aparece graças ao jogo das confrontações entre as perspectivas sobre o homem. Se estamos longe de um objeto natural, mesmo assim é preciso desnaturalizá-lo em relação à percepção do senso comum que cada pesquisador traz consigo. A multiplicidade de dimensões disciplinares (social, Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 197 197 5/20/14 4:31 PM psicológica, antropológica, econômica etc.), sua irredutibilidade teórica, mesmo em franca antinomia com a unidade ontológica do homem, representa o lastro e primeiro expediente epistemológico dessa operação fundamental de desnaturalização que fundamenta as ciências sociais. É assim que a questão da explicação ocupa um lugar central nas preocupações dessas ciências sociais. O que ganha relevância não é a fundamentação da teoria no real (o que implica uma ontologia ou uma redução à linguagem), mas o estabelecimento de um princípio epistemológico de distinção entre as disciplinas, entendidas como as grandes linhas que dão forma aos fenômenos humanos enquanto objeto de estudo. O que é explicar? Comecemos por uma questão de fundo: Podemos não explicar? A explicação, lembremos, ultrapassa o quadro da ciência. Enquanto atribuição de sentido, ela está presente na atividade dos seres humanos em geral, como sujeitos conscientes e observadores de seus meios ambientes ou simplesmente como seres inquietos. Trata-se de um ato inerente à consciência, no qual se estabelece a relação entre fatos (por exemplo, vejo um livro no chão de meu quarto e me pergunto por aquilo que o fez cair), a explicação é uma satisfação a nossa “curiosidade”, um modo de manter o controle sobre nosso ambiente imediato e assim agir sobre ele. Mas a pergunta tem um sentido diferente no âmbito da ciência. Primeiramente, a explicação não é uma operação facultativa, não é opcional. Se no âmbito do senso comum nem sempre se tem necessidade de explicar, em ciência, ao contrário, não explicar equivale a perder o sentido e a razão de ser da atividade científica, ainda que esta não se resuma a isso. Em seguida podemos nos perguntar: as teorias devem necessariamente ser explicativas ou podem ser apenas descrições? A resposta é taxativa: não. É próprio da teoria ser explicativa. As tentativas de opor descrição e explicação não são consistentes. (BROWN, 1972) Em geral elas repousam sobre a afirmação de que nosso conhecimento consistiria apenas em descrições. Por exemplo, não podemos 198—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 198 5/20/14 4:31 PM dizer por que a água ferve a 100 graus, mas somente que isto acontece.1 Isso, contudo, não toca o cerne da explicação, pois esta não se refere à informações isoladas (nossas formas mais básicas de conhecimento do mundo), e sim a formas de correlacionar ou de sistematizar informações. A informação sobre o ponto de fervura da água pode, por exemplo, em uma determinada situação, dizer por que desapareceu a água da panela ou servir para construir uma máquina a vapor. Pretender opor explicação e descrição é muito artificial, tal como a atividade de conceituação, a descrição pode ser uma etapa da construção da teoria, mas não uma forma independente e oposta. Também pode ser válido produzir descrições mesmo sem um objetivo teórico totalmente explicitado, como preparação para a teoria (pesquisas exploratórias). O que evitamos aqui são descrições aleatórias e que, desse modo, ficariam sem sentido. Este só aparece em relação a um quadro teórico.2 As teorias são sistemas organizados de informação, implicam relação entre informações. Estas não são “colhidas” em estado natural, são frutos de equacionamentos teóricos. Seria impossível tudo descrever e descrever qualquer coisa não teria valor algum. Em uma visão desnaturalizada, como requerida pelas ciências sociais, o sentido e a pertinência são dados pelo quadro teórico, não existem em si e por si mesmos. As teorias científicas, portanto, não podem prescindir da explicação. Seria como apresentar um mundo sem qualquer indagação sobre ele, sem “curiosidade”, sem inquietação.3 1 Temos aqui a distinção entre leis científicas (regularidades empíricas) e teorias. Todo objeto abandonado próximo da Terra cai. Esta regularidade empírica é explicada pela teoria da gravidade. Os protestantes ocupam melhores posições econômicas que os católicos (regularidade), Weber explica-a analisando a relação entre a crença dessa religião e os princípios do capitalismo. Enquanto a regularidade empírica é fruto da observação, a teoria exige a introdução de conceitos e relações mais complexas. Retomando o exemplo, a explicação da fervura da água poderia ser feita pela introdução de conceitos como átomos, elétrons, particulas subatômicas, energia etc. Enfim, pela relação de “entidades” teóricas, ou não diretamente observáveis. 2 Para uma discussão mais detalhada sobre a descrição, ver Brown (1972), La explicación en las ciencias sociales. 3Assim é a relação do pensamento com o mundo no âmbito do senso comum. Propícia para a ação e não para a reflexão sobre as coisas. Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 199 199 5/20/14 4:31 PM Chegamos ao que muitos entendem ser o ponto crucial da questão, sua relação com a noção de problema. Explicar é responder a questão por quê? E isso pode variar muito de acordo com os propósitos ou o quadro de referência no qual a pergunta é elaborada: Por que o tapete está manchado? Por que os canos d’água de uma casa estouraram no último inverno? Por que a eletrólise da água decompõe suas moléculas? Por que existimos? Este pequeno conjunto de perguntas nos dá uma ideia de quão variado pode ser o contexto da pergunta e a necessidade de discernir diferentes dimensões de pertinência e graus de exigência. Para o senso comum pode ser suficiente montar a sequência de fatos (antes não estava manchado, agora está); cientistas buscariam estabelecer a relação entre fatos concretos e leis abstratas (expansão da água pelo congelamento; quebra das moléculas da água); e filósofos, mais do que buscar uma resposta, podem fazer da questão um modo de refletir sobre a condição humana. A explicação está, portanto, situada pelos quadros de um problema, ele mesmo equacionado por fatores como o propósito (alguns autores consideram isto como a pragmática da explicação), o tempo para a resposta, o tipo de resposta que se pretende (científica, filosófica, senso comum etc.), enfim, fatores que situam o problema em um contexto e fazem com que certas respostas sejam pertinentes e outras não. O tapete está manchado porque Deus quis; os canos d’água congelaram por que a melancolia que corre em nossas veias envenena nossa atenção e prejudica os cuidados das coisas mundanas (alguém esqueceu de esvaziar os canos no inverno); a eletrólise insufla a luta de classes entre as moléculas. A impertinência deste conjunto de respostas revela que há uma satisfação intelectual a ser preenchida. A variedade de propósitos (expectativas, finalidades) e de pertinência das respostas em relação aos problemas indicam pontos importantes sobre o conhecimento científico: a) a ciência não trabalha com causas últimas, nem com um conceito absoluto de verdade; b) a explicação se insere em um quadro cujos limites e significação são relativos e dados pelo problema; c) o modo como representamos a realidade e os propósitos da pergunta estabelecem a dimensão de pertinência da explicação. Uma consequência direta disso é que podemos mudar este quadro e renovar indefinidamente o questionamento. Uma explicação pode ser resposta 200—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 200 5/20/14 4:31 PM dentro de um quadro, mas pode vir a ser questão e problema em um novo quadro. A cadeia de “por quês” é necessariamente infinita. Sempre podemos questionar as respostas, tornando-as novos pontos de interrogação: Por que o tapete está manchado? Por que alguém distraído esbarrou na xícara. Por que alguém estava distraído? Estava distraído porque estava esgotado. Por que estava esgotado? As atuais relações econômicas de produção e trabalho fazem com que o trabalhador seja levado a um estado em que se vê exaurido de suas forças físicas e mentais. Por que chegamos a este modo de produção? Historicamente, a luta de classes foi instaurada e as formas desse conflito levaram às características do estado atual. Mas por que há luta de classes? Com o aquecimento do planeta, há 10 mil anos atrás, foi possível novas formas de organização social. Por que houve um aquecimento do planeta... Deus! Como vemos, a cadeia causal é infinita (e, além disso, pode ter desenvolvimentos múltiplos, não obstante a linearidade do exemplo). O único modo de colocar-lhe um ponto final é recorrer a uma causa real ou verdadeira, que pode ser Deus ou outra entidade metafísica que represente o absoluto (o real, o Ser etc.). Esta resposta pode ser válida para o pensamento religioso ou para certas filosofias. Para o pensamento científico a cadeia de “por quês” não pode ser tomada de modo absoluto, pois as questões são relativas a certo quadro de pertinência. No caso da ciência não há causas últimas, temos apenas explicações relativas aos diferentes quadros de referência teórico-epistemológico, cada um deles representado, grosso modo, por uma disciplina científica. Dessa forma, as disciplinas correspondem às dimensões de pertinência de um problema, é no seu interior que se estabelecem os graus de exigência de uma explicação teórica, relativa ao estado do conhecimento naquela matéria. Brown (1972) mostrou que em ciência social a explicação última pode ter dois sentidos diferentes. No sentido em que o âmbito da explicação extrapola o quadro de refência estipulado (de onde podemos tirar a conclusão de que o elemento explicativo não corresponde à disciplina – portanto, trata-se de uma explicação não pertinente) e no sentido em que chegamos ao último elemento de uma série de explicações, para além do qual cairemos no caso anterior. Este limite é que faz com que os pesquisadores de um certo domínio de estudo encontrem significações cada vez mais profundas (derivações do significado dos objetos empíricos extraídas do objeto teórico) sem perderem Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 201 201 5/20/14 4:31 PM o quadro de referência e sem serem obrigados a passar a outros “níveis de realidade”, ou seja, a outras dimensões de análises, que exigiriam a troca do aparato conceitual e metodológico, portanto, uma redução de uma disciplina à outra (como na pirâmide do conhecimento proposta pelo positivismo de A. Comte). Também podemos entender isso formulando a explicação como uma operação de redução, ou séries de reduções que permitem passar de um certo elemento da realidade a outro mais significativo. Entendemos o primeiro graças ao segundo, pois ele contém a significação do primeiro; afirmar que algo é explicado por outra coisa equivale a dizer que a significação está nesta última. (MARTINO, 2011) Notemos que o elo entre elemento explicado e o elemento que explica não é apenas lógico, a forma que damos à realidade, a maneira que configuramos o objeto, é de onde extraímos as relações ou propriedades que serão encadeadas. Além do estabelecimento de nexos lógicos (dedução, indução), passamos de um elemento a outro por relações entre propriedades empíricas e também através do estabelecimento de uma hierarquia hipotética (a ação política explica o comportamento social, um processo econômico é explicado pelo estado do desenvolvimento tecnológico ou por uma certa mentalidade). A possibilidade de variarmos os termos explicativos nos leva a compor séries diferentes e a chegar a explicações diferentes e concorrentes. Não podemos resolver a priori se o homem é um ser mais social que político, ou mais econômico que histórico etc., só podemos ter um posicionamento epistemológico. Para as ciências sociais tais posicionamentos se tornam as matrizes disciplinares e restam vias abertas para compreender o homem. Então, seja tomando a explicação como resposta a uma questão do tipo “por quê?”, seja entendendo-a como redução a um elemento significativo, podemos dizer que as disciplinas científicas são definidas pelo tipo de explicação e que este estabelece os limites dentro dos quais a teoria faz sentido. Além de ser uma definição estritamente epistemológica, esta abordagem da disciplina científica também tem a vantagem de poder apontar tipos de interdisciplinaridade. Por exemplo, para as correntes marxistas que tomaram como base a teoria crítica de Horkheimer, a interdisciplinaridade é uma redução ao elemento político (pan-político, como chamamos), pois todas as outras dimensões dos fenômenos humanos podem e devem ser reduzidas à 202—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 202 5/20/14 4:31 PM política (dominação, poder, luta de classes), entendida como realidade última. Para o pensamento complexo, a explicação é completamente rejeitada, seja para substituí-la pela descrição, seja pela constatação da complexidade, acompanhando o desdobramento de um objeto indeterminável. O positivismo comtiano introduz uma hieraquia e faz da física o nível mais fundamental da realidade, ao qual todas as outras disciplinas podem ser reduzidas. O fisicalismo de Carnap propõe um reducionismo lógico e não ontológico, como o anterior. Estes exemplos mostram que os tipos de explicação permitem definir não somente as diciplinas como também os diferentes tipos de interdisciplinaridade, pois a explicação constitui o elemento não camuflável, não retórico, ao qual todas as reflexões devem se reportar enquanto reação às suas inquietações originais. Colocar o problema da disciplina científica na forma de uma tipologia mostra que elas se definem reciprocamente, pois equivalem a posicionamentos epistemológicos. A explicação em comunicação Duas questões se apresentam: 1) O que diferencia a comunicação de outras disciplinas? 2) Quais as modalidades de explicação empregadas em comunicação? Com relação a esta última, os modos de explicação em comunicação não são diferentes daqueles encontrados nas grandes correntes filosóficas que atravessam as ciências sociais. Como nas demais disciplinas, as pesquisas seguem padrões de explicação (causalidade, correlação, interpretação etc.). Estes podem ser formalizados em programas de pesquisas (BERTHELOT, 2001), também podem ser tipificados segundo a relação de causalidade (LITTLE, 1991), ou podem ser derivados dos princípios filosóficos dos grandes paradigmas das ciências sociais: funcionalismo, marxismo, estruturalismo, construtivismo etc., por exemplo, Brueny e colaboradores (1974). A variedade dos modos de explicação em nossa área reflete a condição geral do desenvolvimento desses modos nas ciências sociais. Alguns interpretam tal variedade como consequência da natureza particular de nosso conhecimento como campo de estudo interdisciplinar: o campo é Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 203 203 5/20/14 4:31 PM aberto, de natureza não disciplinar (inter, trans, pluridiscicplinar), supõe uma complexidade do objeto. Essa maneira corrente de entender o estatuto epistemológico da comunicação é na realidade muito problemática e bastante diferente daquela presente nos autores acima citados. O fato que padrões explicativos possam ser compartilhados (tal como acontece com os recursos metodológicos) não tem nenhuma significação especial para uma disciplina isoladamente. Não temos aí um argumento que torna a comunicação mais “interdisciplinar” que qualquer outra disciplina. O que alguns entendem ser uma reposta à primeira questão: a especificidade da comunicação enquanto disciplina residiria em sua abertura como campo de conhecimento. Mas se a comunicação é um campo aberto, como entender a relação entre explicação e campo? Uma de nossas conclusões foi que os tipos de explicação permitem definir as disciplinas, porém tal função não pode ser desempenhada na concepção de campo.4 Examinemos esta noção. Podemos defini-la como a convergência de teorias de várias disciplinas em um objeto empírico (interdisciplinaridade). Temos uma pluralidade teórica (sociologia, psicologia etc.), acionada para explicar uma classe de fenômenos, os processos de comunicação. A unidade recai sobre o objeto estudado, é ele que articula a diversidade das teorias em torno de si. Entretanto – e este é o ponto – não há necessidade de que esta unidade seja bem desenvolvida (quais processos de comunicação? O processo de transferência psicanalítica em um consultório? Uma rede social baseada em uma tecnologia como o Twitter? Uma emissão de TV, um choro de bebê, a dança das abelhas?). Não temos um conjunto de teorias a partir do qual elas são tencionadas. O encontro de teorias diversas em um objeto empírico não significa supor qualquer relação entre elas, por conseguinte, fica dispensando qualquer trabalho de sistematização teórica, razão pela qual a ideia de campo aparece como mais “pacífica” que a de disciplina. A diversidade teórica se expressa como um inumerável somatório de teorias e conduz a um espaço de discussão demasiado amplo e heterogêneo, incapaz de propiciar as condições 4 Fazemos aqui, para fins de expressão, a distinção entre campo e disciplina (termos que também podem ser usados como sinônimos). O primeiro termo remete à noção de interdisciplinaridade, o segundo à teoria científica. A noção de campo (de teorias científicas) deve ser entendida como abertura e inclusão indefinida, enquanto que a noção de disciplina científica exige uma matriz teórica. 204—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 204 5/20/14 4:31 PM de debate de teses e o desenvolvimento do conhecimento. Os recortes do objeto empírico são de tal forma variados que introduzem rupturas conceituais e metodológicas entre as problematizações, isolando-as. Dito de outro modo, se cada teoria comporta um trabalho de desconstrução do objeto empírico ou de construção de seu objeto, elas nunca poderão se encontrar no objeto empírico. A existência deste não seria compatível com as formulações teóricas. O que há de “pacífico” – a convivência “democrática”, a “tolerância” e a “liberdade” que alguns apreciam na ideia de campo – na verdade ela encerra um profundo problema epistemológico, conhecido como a incomensurabilidade das teorias, pois estariam isoladas uma das outras, na estéril paz das mônodas que as encerram. No vocabulário epistemológico, a noção de objeto empírico representa o ponto limite para a ancoragem das interpretações teóricas no real (a ciência se pretende um discurso sobre a realidade). Aqueles que evocam uma abertura do campo invertem este significado: a complexidade do objeto corresponde à ausência de tratamento teórico. Temos um objeto completamente indeterminado, ou seja, sem teoria. Daí a correspondência entre objeto empírico (sem recorte teórico) e a noção de campo: a indeterminação do objeto real leva a uma “abertura teórica” infinita. Esta fórmula vazia, que apenas expressa as inúmeras possibilidades de abordagem, opera uma verdadeira amputação dos fundamentos da teoria, uma vez que esta não pode ser considerada apenas em sua relação com os fatos. Voltamos a uma crença do positivismo ingênuo que, centrado unicamente no elemento empírico, desconsidera o importante papel da relação das teorias para a produção do conhecimento, desde a representação do objeto empírico até a validação das teorias. Em suma, o problema com a ideia de campo entendido como abertura e inclusão indefinida é uma total desarticulação da teoria. A produção de conhecimento depende de um conflito de teorias que devem estar tencionadas por uma unidade epistemológica (disciplina). Tal unidade corresponde à proposição hipotética de um objeto de estudo comum. O objeto introduz uma identidade cujo efeito é a geração de tensão, polêmica, criando um efeito sistêmico entre as diversas tradições de pesquisa, escolas e correntes teóricas. Desse modo, todo avanço significativo alcançado por uma escola, toda conquista realizada por uma pesquisa lança nova luz às pesquisas já realizadas, Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 205 205 5/20/14 4:31 PM fazendo com que todas as escolas tenham que se reposicionar. A ciência é impensável sem este efeito sistêmico, sem o qual não teríamos o conhecimento científico. Retomando nossas duas perguntas, podemos resumir a resposta à segunda questão dizendo que as modalidades de explicação empregadas em comunicação podem ser as mesmas das ciências sociais, à condição, claro, de a comunicação também ser uma disciplina e não um campo de estudo. A explicação é uma função da teoria e não pode ser separada de seu quadro de pertinência, que é a matriz disciplinar na qual se inscreve. Porém nada disso tem sentido na concepção de um campo aberto, ou de um objeto complexo (exigindo o concurso de várias disciplinas sem a possibilidade de tomá-las em separado). Resta agora apontar o que diferencia a comunicação. Uma questão que para muitos é praticamente impossível de ser respondida, considerando-se a variedade de assuntos em que os processos comunicacionais podem aparecer e sua implicação em várias formas de conhecimento. Correndo o risco de decepcionar, digo que a resposta pode ser bastante simples, se abandonamos a atitude em voga de querermos revolucionar o conhecimento tentando encontrar um lugar sui generis para nossa área de estudos. Se entendermos a comunicação como uma disciplina das ciências sociais, então passa a ser possível fazer apelo aqui à maneira como outras disciplinas respondem a esta questão. De pronto nos desvencilhamos da ideia de que nosso objeto de estudo seria mais complexo ou mais difícil de estabelecer que o de outras disciplinas. A resposta dada pelas ciências sociais é bastante simples: processos sociológicos implicam explicações sociológicas, processos econômicos implicam explicações econômicas, processos comunicacionais implicam explicações comunicacionais. Ou seja, é o modo de explicar que define a disciplina e esse modo é dado por um posicionamento epistemológico frente ao conjunto dos conhecimentos estabelecidos (disciplinas), ou seja, pela especificidade da abordagem teórica de cada disciplina em relação ao objeto empírico. Isso permite entender porque o número de disciplinas não é infinito, nem completamente determinável. Conforme nossa proposição de disciplina, a flexibilidade em questão é estritamente epistemológica, não estamos 206—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 206 5/20/14 4:31 PM nos referindo às vicissitudes da atualidade, modismos, tensões políticas e organizacionais das estruturas administrativas. Se a definição de uma disciplina deve ser referida ao conjunto das disciplinas, por um jogo de oposições sistêmicas, então os limites entre elas admitem transformações. As disciplinas científicas não são o produto de mera burocracia acadêmica, elas remetem a tipos de explicação que correspondem a vetores significativos da realidade examinada e aos quadros epistemológicos demarcados pela relação das disciplinas entre elas. O que equivale a dizer que o quadro disciplinar depende do estado atual dos conhecimentos. Por isso, não há nada de definitivo nestas delimitações, embora não seja tão fácil alterá-las, como sugere o ritmo das revoluções proclamadas a cada publicação de artigos em revista. A própria emergência da comunicação como uma ciência social leva a um novo arranjo disciplinar, novas relações entre as disciplinas. Notemos que isto não se deve à simples administração do espaço disciplinar, mas a emergência de fenômenos sociais até então desconhecidos, relacionados a um novo sentido das tecnologias de comunicação quando estas passam a desempenhar um papel de destaque na organização social. Tal como a sociologia emerge junto com o aparecimento de um novo elo social (solidariedade orgânica, no vocabulário de Durkheim) ou a economia com a descoberta da economia de mercado. Examinemos essa flexibilidade com mais detalhes. O objeto genérico das ciências sociais se apresenta como “multifacetado”, o homem é um ser social, histórico, econômico, político, comunicacional etc. As disciplinas correspondem a estes diferentes aspectos ou dimensões. Para o cientista social a realidade de seu objeto se apresenta a partir de um leque de planos de observação possíveis, os quais não podem ser tomados simultaneamente. A definição de um objeto de estudo não requer a desconsideração dos aspectos não contemplados, mas o estabelecimento de uma hierarquia entre eles.5 Dizer que o homem é um ser político, como supõe as ciências políticas, impli5Hierarquia, centralidade, figura-fundo, redução. São alguns termos empregados para marcar a opção por uma das dimensões do objeto empírico, o homem. A pregnância de uma dessas dimensões sobre as outras não pode ser definitivamente fundada no real, são opções epistemológicas, remetem a pressupostos axiomáticos, enunciados admitidos como princípios para uma formulação do objeto de estudo. As teorias não são demonstrações lógicas, nem as pesquisas podem ser verificações empíricas destes pressupostos iniciais. São derivados destes. Isto constitui uma fonte de mal-entendidos sobre a teoria: a pertinência de uma teoria não é uma prova, nem mesmo uma justificativa para uma hierarquia real. Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 207 207 5/20/14 4:31 PM ca em reconsiderar outras dimensões, isto é, organizá-las a partir do político. O que não acontece no mesmo grau com as ciências duras ou na concepção de campo. Por exemplo, a descoberta de novos níveis nas órbitas dos elétrons não exige uma reconsideração necessária da teoria da óptica ou do conceito de gene de um animal, ou do conceito de comunicação tecnológica. As ciências sociais trabalham de forma sistemática, a definição da sociologia tem implicações importantes para a economia ou a política, são visões diferentes do homem. Ao explicar, ao dar sentido à realidade, os pesquisadores acabam estabelecendo recortes, criando entradas e seleção do que é mais relevante para compreender os fenômenos que lhes inquietam. Eles constituem modos de explicação que, para além dos matizes e combinações próprias das pesquisas individuais, podem ser levados a algumas posições básicas que são as disciplinas. Uma disciplina é um posicionamento em relação à complexidade da realidade. O objeto de estudo de uma disciplina deve ser entendido como o primeiro recorte e tomada de posição epistemológica sobre a realidade. Trabalhar na condição de comunicólogo implica em tomar os processos comunicacionais como chave de leitura do mundo humano, reorganizar as outras dimensões do homem de modo que possam ser esclarecidas pela ação dos processos comunicacionais. Neles deve residir a significação dos fenômenos analisados. Não é uma posição fechada, que possa ser fundada definitivamente, mas é um posicionamento, uma opção. Qualquer divergência neste plano nos leva a outra disciplina ou mesmo a outra forma de conhecimento. Se acreditarmos, por exemplo, que a divisão do trabalho é o elemento explicativo, esta crença pode significar outra posição epistêmica (sociologia, economia política). Opções como estas extrapolam o âmbito comunicacional e não podem gerar teorias da comunicação. O máximo que aí podemos ter são teorias de outras disciplinas que tomam os processos comunicacionais (teorias sobre comunicação). (MARTINO, 2007) De outra parte, divergências sobre o que são ou como devem ser formulados os processos comunicacionais (enquanto significativos, e não apenas como processos empíricos) nos levam à diferenças teóricas, propriamente comunicacionais. Há, portanto, uma forte relação entre explicação e objeto de estudo. A unidade da disci- 208—Luiz Cláudio Martino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 208 5/20/14 4:31 PM plina, formulada de maneira abstrata no objeto de estudo, ganha um plano efetivo quando analisada pelo modo de explicação de cada disciplina. Um conjunto de explicações pode ser considerado pertinente à disciplina comunicação na medida em que este se refere à propriedades comunicacionais, seu limite serão aquelas explicações cujas variáveis exigem outras explicações em termos de propriedades não comunicacionais. Dito de outro modo, a explicação em comunicação será aquela em que a redução aos fatores significativos não recai sobre elementos contento explicações não comunicacionais. Por exemplo, o comportamento de uma emissora de TV (seleção de notícias, grade de programas etc.) pode ser explicado por fatores não propriamente comunicacionais, como seus compromissos políticos ou pelas relações econômicas, aos quais a emissora se encontra submetida como empresa de mercado. Mas inversamente, sua atividade comunicacional também pode ser tomada como o fator significativo que explica um processo econômico, como: a influência da publicidade sobre o mercado, um vazamento de informações com graves consequências políticas, ou uma notícia que altera o comportamento dos investidores etc. Enfim, explicar é tomar partido em uma hierarquia de fatores ou variáveis estabelecendo uma rede onde a significação de um elemento é extraída de outro. Uma explicação em comunicação toma como significativos os processos comunicacionais e, consequentemente, interpreta a realidade social por essa perspectiva. Definir uma disciplina por um tipo de explicação nos permite entender melhor o que é comunicação (processo e disciplina) e também nos permite evitar algumas vias equivocadas de formulação do objeto de nossa área de conhecimento (campo, complexidade do objeto), que supõem que a variedade de informações, assuntos ou de âmbitos da realidade constituem ou implicam em uma abordagem interdisciplinar. Além disso, também tem a vantagem de permitir à comunicação de se beneficiar da experiência e da produção epistemológica de outras disciplinas, colocando-a de vez no jogo de tensões e complementaridade da pesquisa em ciências sociais. Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 209 209 5/20/14 4:31 PM R e f e r ê n c ia s BERTHELOT, Jean-Michel. Programmes, paradigmes, disciplines: pluralité et unité des sciences sociales. In: ______. (Ed.). Épistémologie des sciences sociales. Paris: PUF, 2001. BROWN, Robert. La explicación en las ciencias sociales. Buenos Aires: Periferia, 1972. BRUYNE, Paul de.; HERMAN, Jacques.; SCHOUTHEETE, Marc de. Dynamique de la recherche en sciences sociales. Paris: P.U.F, 1974. KAPLAN, Abraham. A Conduta na pesquisa: metodologia para as ciências do comportamento. São Paulo: EDUSP, 1975. LITTLE, Daniel. Varieties of social explanation. Oxford: Westview Press, 1991. MARTINO, Luiz C. A interpretação do dado empírico no contexto das correntes teóricas em comunicação. In: BARBOSA, Marialva; MORAIS, Osvando José de (Org.). Quem tem medo da pesquisa empírica.? São Paulo: Intercom, 2011. p. 123-148. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org. br/ebooks/detalheEbook.php?id=45124>. Acesso em: 02 abr. 2013. MARTINO, Luiz C. Ceticismo e interdisciplinaridade: paradoxos e impasses da teoria da comunicação. 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Considerações sobre a explicação em comunicação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 211 211 5/20/14 4:31 PM teoria-meios-comunicacao_v1.indb 212 5/20/14 4:31 PM Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação Esboço para uma contribuição às “novas teorias” e aos “novos métodos” Osvando José de Morais Prolegômenos O texto que apresentamos a seguir é a ampliação, em forma escrita, da comunicação de mesmo título que fizemos oralmente no Colóquio Internacional teoria-meios-comunicacao_v1.indb 213 213 5/20/14 4:31 PM Brasil-Canadá realizado em outubro de 2012 nas dependências da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na cidade de Salvador-Bahia como atividade do projeto do Programa de Cooperação Acadêmica (Procad) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do qual somos criadores e signatários junto aos coordenadores de programas de Pós-Graduação das universidades UFBA, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Universidade de Brasília (UnB), desenvolvido sob a coordenação geral do prof. dr. Giovandro Marcus Ferreira. Na ocasião apresentamos de modo sucinto os resultados de pesquisa que empreendemos, especialmente para o projeto Procad, sobre as possíveis e necessárias intersecções entre as teorias da comunicação e a filosofia clássica, em caminho metodológico em direção aos pensadores Hans-George Gadamer e Paul Ricoeur. A justificativa de nossa pesquisa dá-se em função da premente necessidade de se pensar novas teorias para o fenômeno comunicacional que deem conta da efervescência atual da área motivada, principalmente, pela oferta de novos dispositivos produzidos pela ciência aplicada em nossa atualidade. Agregamos outros autores em torno dos nomes acima citados que constam de nossas referências para melhor compor o corpus teórico dos resultados de nossa pesquisa. T e o r ia s d a c o m u n i c a ç ã o, a h e r m e n ê u t i c a , o d i á l o g o, a c o m p r e e n s ã o e a i n t e r p r e ta ç ã o : e s b o ç o pa r a u m a c o n t r i b u i ç ã o à s “ n o va s t e o r ia s ” e a o s “ n o v o s métodos” Este trabalho tem como objetos principais as teorias da comunicação e o método científico de pesquisa, levando em conta as dificuldades enfrentadas em função de inúmeras correntes teóricas das ciências sociais aplicadas, e da diversidade de métodos de análise utilizados na área. Propõe-se, ao mesmo tempo, a hipótese de que a comunicação, em sua dinâmica, pode também ser compreendida a partir de suas matrizes filosóficas a fornecerem elementos de conhecimento e teorias, justificando pensar sobre os aspectos intrincados do conceito de comunicação. Propõe-se discutir ainda, as teorias da interpretação e do diálogo na tentativa de entender as relações sociais e humanas, vistas aqui como processo 214—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 214 5/20/14 4:31 PM complexo que inclui, na dinâmica das trocas, o caráter cognitivo, espiritual, emocional e interativo, mas requerendo, acima de tudo, entendimento e compreensão. Pretendemos acrescentar mais um objetivo nesta pesquisa que é a tentativa de aprofundar as análises das ideias de Gadamer, principalmente em Verdade e Método, e de Paul Ricoeur, em o Si mesmo como um outro e Teoria da Interpretação, com a finalidade de melhor pensar a comunicação. Acrescentamos termos que procedem a um levantamento de teóricos da comunicação que constam das referências. Dentre eles, destacamos alguns por acreditarmos trazerem discussões mais pertinentes e, às vezes, pouco usuais, casos de Shannon, Weaver, Luhmann, Nancy, Pearce e Petri. Por tratar-se de pesquisa teórica, propomos uma reflexão acerca dos fenômenos teóricos e metodológicos da comunicação como estratégia de abordagens do objeto de pesquisa e tratamento dos problemas. Aproveitando a clássica definição de Kant de que a filosofia é a ciência da relação de todos os conhecimentos com os fins essenciais de razão humana, parte-se do pressuposto de que a comunicação, em sua dinâmica, pode ser compreendida também como questão filosófica, dado que os eventos e as ações são matrizes centrais no processo comunicacional, e seriam imperceptíveis por sua condição subjacente nas relações sociais, combinando aspectos culturais, temporais e subjetivos. De outro modo, a partir da introdução de tecnologias, de início, a revolução industrial, pensada em seus vários estágios, ao inserir técnicas de produção e reprodução de imagens com suas máquinas mediadoras, pode-se perceber a erupção de outras formas de construção de culturas, outros condicionamentos, outras capacidades de significações, tanto no contexto social quanto no político e econômico. É neste sentido que entendemos que os sistemas de cultura possam representar as finalidades máximas da Razão. Neste sentido, a dificuldade de se definir a comunicação como processos subjetivos delicados de percepção, instigou-nos a repensar a comunicação como linguagens autogeradoras de sentidos indeterminados, sígnicos e imprevisíveis que provocam rupturas nos conceitos de comunicação suscitando a transcendência do ir além: o mundo mental seria parte de outro mundo diverso, e o percebido silencia-se no universo solitário e particular. Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 215 215 5/20/14 4:31 PM Uma das grandes contribuições de Gadamer consiste na ideia de que a linguagem atua constantemente como medium, isto é, como tradutora e mediadora das experiências humanas, levando em conta o conceito clássico que pressupõe não somente a compreensão que se funde na transferência de conhecimento para o outro, mas também a participação imediata de um no outro, pois só assim é possível compreender o que se exprime, pondo-se de acordo com a linguagem. Desse modo, objetivando exprimir consciente e inconscientemente o pensamento. As experiências vão além da mera reprodução abarcada pela linguagem, indicando acordos fáceis ou difíceis, tomadas de consciência e, ainda, as condições em que se realizam qualquer entendimento. Por isso mesmo, tenta-se evitar tanto o empirismo simplista como o racionalismo radical e dogmático. Por outro lado, todo entendimento pressupõe a transposição de sentido de um contexto para o outro. É nesse ponto que incluímos os conceitos de comunicação que preconizam a necessidade sine qua non do domínio de um mesmo código. Mesmo assim, comunicar para Gadamer significa traduzir, usando a linguagem como medium, em um processo de acordo que possibilita trocas, inclusive, também de consciências além de experiências entre os interlocutores. Mesmo que o conceito de troca seja questionado por muitos teóricos da comunicação, ele é essencial. Outro sentido explorado por Gadamer para comunicação é o de conversação, implicando reações entre os envolvidos. Esse debate pode dar-se em várias etapas, e a compreensão que envolve decisões dedicadas de ambas as partes, implicando uma reiluminação, “Como ocorre entre duas pessoas, também entre os terceiros dessa ‘conversação’ se dá uma comunicação que é mais que mera adaptação”. (GADAMER, 2005, p. 502) Neste sentido, pode-se dizer que a linguagem é o medium universal e cada meio de comunicação a desenvolve e aprimora a própria compreensão de mensagens, seja na forma escrita, oral ou por imagens, mantendo observância na inclusão de seus usos e costumes. Assim visto, cada meio de comunicação desenvolve sua linguagem, isto é, reconverte seu texto em linguagem, e Gadamer classifica esse processo como “consciência compreensiva” realizada através do que foi comunicado, incluindo aí a ideia da fala oral e de sua relevância nos meios massivos. 216—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 216 5/20/14 4:31 PM A palavra falada para Platão se constitui como o pensar verdadeiro e, como comunicação, surpreende pelo modo de falar, o tom, a cadência e não sofre da mesma debilidade do texto escrito que pode sucumbir a mal-entendidos. É na conversação que se dá prontamente a comunicação que fortalece o sentido do que foi dito. Pensar a comunicação seria ater-se a um conjunto de intenções possíveis que se revelariam abissais, pois o que realmente foi comunicado, em sua essência, ficou discreto por redução a uma dimensão mental. Neste ponto, a linguagem organiza didaticamente a compreensão e é essa possibilidade mediadora que torna concreto o próprio sentido. Por isso mesmo, pode-se dizer que por mais eficaz que a comunicação seja, ela é sempre aproximada. Apenas parte das intenções seria plenamente atingida. Os processos mentais de ordenação e seleção gerariam possibilidades em grau infinito. A comunicação, juntamente, com a difusão em jornais, rádio e da televisão, incluindo neste contexto seus modernos sistemas como, por exemplo, a complexidade de telefonia móvel, com todas as suas potencialidades, e da Internet que se impõe como base de convergência, ocupa um espaço importante nos estudos dos fenômenos sociais. É neste ponto que poderíamos aproximar, por exemplo, as teorias do linguista Roman Jakobson, que não reduz a comunicação a uma simples troca de mensagem, mas tenta entendê-la como Fenômeno de Interação entre fonte, mensagem e destinatário. A comunicação, neste contexto, não seria uma mera transferência, mas admite ser pensada, também, como mistério ou como fenômeno inexplicável. Não se pode, portanto, reduzi-la à simples transferência. Mesmo diante de argumentos teóricos sólidos conceitua-se, ainda, a comunicação impregnada dos sentidos de transmissão de mensagem, de notícia, de informação, de partilha. Independente de ser referência universal para a comunicação, o modelo de Shannon e Weaver é criticado por autores como os teóricos Carl Adam Petri, Barnett Pearce e Niklas Luhmann, que ampliam discussões ao conceito de como encontrar o interlocutor, compreender-se; problemas relacionados à privacidade e à publicidade e ainda à comunicação em rede. Estes autores argumentam e pensam no modo como a comunicação acontece e a enfatizam Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 217 217 5/20/14 4:31 PM não como fenômeno físico, mas como fenômeno social articulado à múltiplas dimensões e funções ou protocolos. Lembremo-nos que Shannon, como engenheiro empregado de uma companhia telefônica, teve como objetivo principal a melhoria de qualidade da transmissão do enunciado do falante ao receptor, independendo do conteúdo. Desse modo, acreditamos que “a teoria matemática” de Shannon deve estar situada mais apropriadamente entre as teorias da informação muito embora tenha seu lugar, também, entre as chamadas “teorias” da comunicação. Independente de quaisquer protocolos, a comunicação está relacionada à construção social da realidade e aos valores das ações e interações, à construção de histórias que cada um faz sobre si mesmo e o mundo, e buscar um sentido comum às mensagens transforma a comunicação em um mistério. A teoria dos sistemas de Luhmann foi construída como sistemas de comunicação que é também um processo seletivo, isto é, aquilo que é constituído como seleção, vale dizer, como informação. Portanto, o ato de comunicar está interligado à escuta e à informação. Por outro lado, a distinção entre informação e o ato de comunicação só é possível quando há divergência entre a escuta e as instruções de fonte. É neste sentido que ele é mais categórico ao afirmar que a comunicação só é possível como processo autorreferencial, pois o ato de comunicar, informação e escuta são três processos irredutíveis um ao outro. Faz-se necessário, neste sentido, ainda, discutir a comunicação a partir do conceito de sociedade da informação. Informação esta que permeia as relações sociais, econômicas, interpessoais e afetivas. Assumir que a transmissão de conhecimento se dá por sistemas de transmissão traz novas perspectivas de pensar a comunicação. A partir daí, por exemplo, surgem também abordagens comunicacionais novas para explicar fenômenos humanos diversos como: o funcionamento da mente humana e do sistema nervoso central; o caráter genético da individualidade dos seres humanos, entre outros. Novas formas de representação, memorização e manipulação podem ser repensadas ao mesmo tempo como comunicação e como informação. Torna-se fundamental saber, por exemplo, aspectos qualitativos e quantitativos daquilo que foi comunicado. Melhor dizendo, o que foi memorizado e o quanto foi esquecido e ainda o custo de tudo isto. A comunicação não está dissociada da 218—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 218 5/20/14 4:31 PM indústria de tecnologia da informação. E, a ampliação da potencialidade humana, como causa e efeito, mudou o modo de entender as complexidades dos processos sociais. Há um total controle de informação e das pessoas. De maneira planejada, as pessoas são submergidas cotidianamente por informações em quantidade acima de seus limites. Alegam-se o direito de gerar e também o de difundir informações. Há ainda o direito de recebê-las, mas há também o de não recebê-las. É neste sentido que a Sociedade da Informação parece estar reduzida às relações econômicas. Neste contexto cultural, pode-se também argumentar sobre a possibilidade de se fazer uma síntese do homo economicus com o homo juridicus como simples ator do mercado que tem leis, além de direitos, ambos estabelecidos pelas instituições. Por isso mesmo que recorremos às teorias de Gadamer para afirmar que a linguagem é o sinal da comunicação devido a sua natureza processual e pragmática. É na linguagem que os atos comunicativos ganham formas e sentidos. Jean-Luc Nancy faz uma distinção entre operar e comunicar, classificando a comunicação como a inoperância de obra social. E é esta mesma inoperância que torna a comunidade culturalmente forte, resistente à reificação mercantil indo além de qualquer lógica econômica, institucional ou técnica. Os jogos linguísticos elaborados pelas comunidades sociais criam vínculos, impõem limites, mostram divergências. No entanto, existe uma dinâmica na criação de regras, rompendo continuamente com os limites. A comunidade e a comunicação são constituídas por indivíduos, e não ao contrário, pois a segunda se faz necessária para fazer do homem um ser social, dando forma a seus comportamentos, multiplicando de maneira ilimitada a comunidade. Por outro lado, o contexto, a cultura e a comunidade em que acontece a comunicação desempenham papel importante, pois criam e transformam os contextos e projetam as relações entre contextos e cultura. É neste sentido que nos interessa discutir a comunicação como linguagem, aproximando o conceito de linguagem ao conceito de “fala” saussuriana como um processo contínuo que evolui também de maneira contínua, criando novas possibilidades a partir de como as pessoas a praticam. A linguagem é, de maneira abstrata, comunicação, pois é composta de múltiplos jogos linguísticos e caracterizam múltiplas comunidades e formas de vida do próprio homem. Compartilhar jogos linguísticos é comunicar. A comunicação só Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 219 219 5/20/14 4:31 PM consegue atingir seus objetivos, tornar comum, por meio dos jogos linguísticos que delimitam e regulam. Discutir sobre a comunicação como simples transferência obriga-nos a retomar em nosso texto o debate a respeito do momento crucial da comunicação que é a escuta, caracterizada pelos contextos sejam físico-espacial ou organizativo-social. Neste processo, há uma dependência da cultura e do compartilhamento devido, principalmente, a seu caráter dinâmico, processual e autorreferencial. (LUHMANN, 1990, p. 16) É neste sentido que podemos afirmar que a comunicação cria comunidades, coloca os seus participantes em estado de sincronismo ao criar uma identidade coletiva que os distingue de quem não participa. É na comunicação que a comunidade toma forma, cria limites e sentido. A comunicação é a ação que engloba as pessoas na comunidade e não haveria limites e nem identidades como processo. (LUHMANN, 1979, p. 25) Por isso mesmo, a comunicação só tem sentido dentro de uma comunidade, pois somente a comunicação cria comunidade. A comunicação, no entender de Luhmann, não somente cria, mas multiplica as comunidades. A comunicação multiplica as comunidades e a multiplicidade de comunidades cria novas formas de comunicações, como se pode observar, hoje, com o incremento das facilitações para interações comunicacionais entre os indivíduos, ainda que a priori sejam pertencentes a comunidades distintas. Acrescentando mais alguns argumentos a essa mesma discussão, JeanLuc Nancy diz que a comunidade e a comunicação são constituídas de individualidade, pois a comunicação se faz necessária para fazer do homem um ser social, dando forma a seus comportamentos sociais, multiplicando ilimitadamente as comunidades em que participa e dando forma a cada uma delas. De que maneira estes processos que criam, multiplicam, e dão forma poderiam ser pensados como objetos da comunicação? Da discussão acerca dos conceitos de comunicação como informação, transferência, escuta, troca, compartilhamento, diálogo e interpretação podem vir contribuições teóricas e metodológicas para se pensar a comunicação, hoje, com seus desdobramentos multidisciplinares, intertextuais e tecnológicos. Propõe-se aqui incluir aspectos relevantes nesta discussão a partir das ideias de Ricoeur e Gadamer sobre as diferentes maneiras que o Outro como 220—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 220 5/20/14 4:31 PM si mesmo e Outro se fazem presentes nos processos comunicacionais. Podese dizer que se trata de um sujeito diante de outro sujeito, em um processo contínuo de intersubjetividade. Conviver e viver com o outro, próximo ou distante, no tempo e espaço, são problemas essenciais da comunicação. No contexto atual, conviver e viver ganham novas dimensões por meio do uso massivo das tecnologias de telecomunicação exemplificadas nas redes sociais. É destas relações que são travados novos tipos de diálogos com consequências ainda imprevistas, envolvendo a intimidade, a impossibilidade e a pessoalidade como relações sociais. É esse “si-mesmo” como um Outro, é esse Outro que sou eu mesmo que estabelecemos múltiplas mediações, principalmente através das obras da cultura que os sujeitos produzem e nela se reconhecem. A cultura é o reflexo do sujeito que comunica, age e interage consigo mesmo e com os outros. A cultura como sistema são os fins máximos da Razão. É neste sentido, como aponta Kant, que se faz necessário um duplo combate contra o empirismo puro e outro, tão intenso quanto, contra o racionalismo dogmático. A cultura deveria ser entendida em vários sentidos que completam as dimensões do humano: a cultura, como astúcia, calcula e desvia. Nossas discussões centram-se na importância que o diálogo representa para a comunicação. É no diálogo que a linguagem se manifesta, estabelecendo o encontro de dois mundos com desdobramentos imprevisíveis, transformadores e enriquecedores entre os participantes do processo comunicacional. É no diálogo que o Outro se faz presente ou se apresenta. Evocam-se aqui as ideias de Paul Ricoeur ao rastrear esse Outro ou Outros na convivência, na vivência entre, próximos e distantes no tempo e no espaço. Em relação ao tempo, devemos levar em conta os antecessores como resgate, como dívida; pensa-se ainda nos sucessores, que como promessa, sofrerão as consequências das ações, decisões de cada iniciativa. Quanto ao espaço, fala-se dos contemporâneos, próximos e distantes, íntimos ou impessoais ou no anonimato como sendo relações intrincadas que se aplicam à comunicação, e não considerar tais complexidades seria fazer uma análise simplista. Difícil seria não colocar o humano com suas interrogações no centro. Na verdade, o humano traz de volta as relações sociais que poderiam ser traduzidas na trajetória sensível “recoeuriana” como puramente comunicação: o Outro que pode estar à nossa frente ou ao nosso lado. O Outro que está em nós. O Outro Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 221 221 5/20/14 4:31 PM que somos nós mesmos. Nós mesmos que somos Outro. Esse Outro, diverso de nós mesmos, somos nós mesmos. O Outro, mas o mesmo. O mesmo, mas o Outro. Neste jogo linguístico, percebe-se um processo comunicacional ativo e profundo. Impõe-se uma reflexão sobre todo o processo, que sem esse exercício, torna-se difícil pensar a comunicação. Os múltiplos sentidos gerados pelas relações sociais no processo comunicacional não iluminam os problemas do entendimento. As teorias do diálogo esclarecem as dúvidas. É no diálogo que você esclarece o que quis dizer. Como escolher entre as várias interpretações aquela que mais se aproxima da tradução da mensagem? Nesta perspectiva há, primeiramente, a necessidade de entender o Outro, o humano que está presente em todo ato comunicacional linguístico verbal, tanto na oralidade quanto no impresso e visual. É evidente que se pode dizer algo e compreender as interpretações divergentes, porém, fazendo parte de um projeto que pressupõe intenções intercaladas em um jogo de mensagens explícitas e implícitas. Encontrar significados divergentes diz respeito à autonomia do autor ou emissor. O que ele quis dizer pouco importa. A mensagem organizada e veiculada desprendeu-se das intenções, ganhou autonomia. O que se tenta interpretar independe do autor. Interpreta-se o que está organizado como mensagem. Verifica-se que há um abismo entre os dois: o autor e a interpretação do que foi produzido por ele. Não há controle das suas intenções sejam elas quais forem. Deste modo, reconhece-se a diferença do diálogo oral e da escrita. No diálogo, é possível esclarecer as dúvidas. Dizer com outras palavras, de outro modo. Já na escrita, o leitor interpreta a seu modo. O texto impresso está ali, organizado e aberto às boas e más interpretações. A tarefa do leitor é objetiva e ao mesmo tempo ativa. É ele que dá vida ao texto e o faz falar, a seu modo, é claro. E nesse falar pressupõem-se todas as brechas possíveis. Há um diálogo. É o diálogo do leitor com o texto. Há, portanto, uma briga entre os dois, estabelecendo uma relação de consciências. Por outro lado, pode-se prever a imposição do leitor do texto impresso que aproveita de sua suposta condição de ser agente. 222—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 222 5/20/14 4:31 PM Se a interpretação, enquanto comunicação, acompanhar as ações, os acontecimentos e as experiências humanas, se torna imperioso tomar cuidado para não se fechar em apressadas conclusões de que tudo é interpretação e, em decorrência do assim pensar que todas seriam válidas. Há forças, alheias ao texto, que, ao se imporem, transformam tudo em verdadeiro jogo. A dimensão objetiva com seus elementos estruturantes transforma-se apenas em uma base, mas não é suficiente para fornecer segurança e validar as interpretações. Neste ponto, pode-se falar de ideias autônomas: a do autor/emissor e a do receptor com todas as nuanças que o conceito requer. No entanto, a materialidade seja verbal-impressa ou visual independente do meio, é base para interpretação. O conceito de compreensão faz parte do grande projeto teórico de Gadamer que levanta discussões comunicacionais esclarecedoras. Isto quer dizer que o pensamento hermenêutico é na verdade uma dinâmica sequencial envolvendo a interpretação, abrindo caminho para um completo compartilhamento em constante diálogo, como base para determinar a comunicação. Na comunicação gadameriana está explícita uma teoria do diálogo que engloba, ao mesmo tempo, o entendimento e a interpretação, sem esquecer objetivamente a tradição e a historicidade que estes conceitos comportam. O contexto é rico em teorias e é justo dar a Friedrich Schleiermacher o papel de pioneiro, pois foi o primeiro a elevar a hermenêutica a outros parâmetros que ultrapassaram a simples interpretação, estabelecendo procedimentos metodológicos de abordagem de textos. É neste ponto que afirma não haver nenhuma gramática universal que possibilita aos falantes de uma mesma língua se entender e se comunicar. Deve haver sim, um esforço de compreensão que supere as diferenças. É neste sentido que a comunicação, como diálogo, deve ser entendida, e fundamentada nas naturezas filosóficas, preponderantemente nas clássicas. Não se deve esquecer uma outra influência importante nas teorias de Gadamer, que foi Wilhelm Dilthey ao difundir a compreensão como o elemento diferencial das ciências humanas em relação às ciências da natureza. Sua proposta era fundamentar um processo rigoroso nas ciências humanas por meio da compreensão, ligando os vários universos, as várias culturas, as Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 223 223 5/20/14 4:31 PM várias vivências, numa tentativa de supressão das distâncias numa prática de compartilhamento de experiências e de visão de mundo. Desse modo, acreditamos que a importância de Schleiermacher e Dilthey encontra-se no feito de direcionar o pensamento hermenêutico, centrando-o no conceito de compreensão. Constatada a presença dos dois pensadores no pensamento de Gadamer, é com Heidegger, seu professor, que há um intenso diálogo, provocando uma radicalização do termo “compreensão”. Heidegger vê a interpretação como um processo possibilitado pela compreensão que é, na verdade, uma intensificação do conceito diltheyano e marcará definitivamente os caminhos teóricos de Gadamer. As mudanças do pensamento filosófico de Heidegger sobre o Ser terão importância fundamental na dinâmica comunicacional que se estabelece nessas teorias. O Ser – aí compreende, mas que também se faz compreender em um processo intruso em diálogo como processo que se projeta no mundo como vivência e que faz o elo entre a compreensão e interpretação. Este mesmo elo dialoga com as estruturas prévias já sedimentadas e que fazem parte da tradição. Por exemplo, a compreensão como comunicação é um jogo com regras mutantes e o campo desse jogo é formado por elementos culturais, sígnicos e histórico-linguísticos. É dessa interação que poderíamos aplicar a ideia de Gadamer de fusão de horizontes à comunicação, pois, envolve uma pluralidade de elementos que orientam a performance compreensiva. Difícil não associar todo esse processo à comunicação, pois, o caráter institucional tão raro à comunicação se repete na necessidade de compreender e ser compreendido, independente das tecnologias e do número de pessoas envolvidas. Os horizontes, os universos culturais se misturam e se interpenetram. Por isso, faz-se necessário levar em conta os repertórios de vida, de acontecimentos e mundo que formam e determinam as modulações, obedecendo às condições particulares de cada horizonte que se interceptam. Toda compreensão envolve as estruturas prévias que, na verdade, são indispensáveis para se compreender ou participar do jogo interpretativo-comunicacional. Perceber mais elementos ou menos elementos da mesma obra, por exemplo, já determina os limites do universo de cada participante. É nesse 224—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 224 5/20/14 4:31 PM esforço de comunicar que entram no jogo comunicativo as trocas repertoriais necessárias, enquanto o modelo racional ganha espaço. O objetivo não descarta, mas ameniza o subjetivo. Embora seja necessário que se faça a distinção entre objetivo e subjetivo, é desse jogo comunicacional que surgem novas compreensões nascidas das tentativas e correção e autocorreção dos pressupostos. Toda compreensão, em sua circularidade, é uma realização própria inesgotável das possibilidades de sentidos daquilo que se pretende compreender, incluindo as repetições que fazem parte das regras do jogo da comunicação. O sentido de um ato comunicacional, daquilo que precisa ser compreendido, é para Gadamer uma interpretação finita que, porém, não se esgota e revela apenas uma possibilidade. É nesse sentido que o caráter da compreensão como comunicação é aberto e evita-se sequer pensar em qualquer tipo de arbitrariedade interpretativa. O que está em jogo é fazer emergir o que precisa ser compreendido e interpretado, eliminando e superando, com o intuito comunicativo, as distâncias temporal e espacial presentes no objeto interpretado. No sentido específico, a hermenêutica de Gadamer é uma crítica da compreensão finita, englobando, inclusive, a concepção da linguagem, isto é, o caráter político da linguagem para além do instrumental. A c a m i n h o d a s “ n o va s ” m e t o d o l o g ia s Fazendo justiça ao célebre começo de Crítica da Razão Pura, de Kant, intensamente comentado por Gadamer, quando associa diretamente conhecimento à experiência, fica explícito que devemos buscar metodologias que acompanhem a ciência no século XXI que sofre os efeitos das teorias e do fabuloso desenvolvimento tecnológico do século XX. Ainda estamos fazendo a passagem do século passado, pródigo em experimentações e teorias, mas foram esses mesmos movimentos que contribuíram para um novo projeto político e social cuja práxis dividiu o planeta em duas ideologias. É neste sentido que ainda estamos praticando as mesmas teorias, pensadas no século passado a provocar dúvidas quanto às suas Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 225 225 5/20/14 4:31 PM justificativas e aplicabilidade no século atual. Por exemplo, retomar Kant, ao assumir que conhecimento e experiência revelam a essência do ser humano e é caminhar em uma determinada direção em que há um saber adquirido, através da práxis, acumulado pelas vivências, verificado não só na herança cultural e na tradição, mas acima de tudo na necessidade de teorias e métodos que pensem esse sabor/saber subjetivo e instável e busquem caminhos científicos seguros para a experiência em nosso contexto. Não é possível avaliar em que dimensão poder-se-ia adaptar as teorias existentes ou, por outro lado, buscar novas que justifiquem a tentativa de delimitar os objetos, mesmo considerando ser interminável a tarefa do pesquisador que é a de determinar o objeto, no contexto contemporâneo da práxis como aplicação da ciência, pressupondo também escolha e decisão, o caráter infinito de ciência que, se contrapõe ao imediato de práxis. É neste sentido que a ciência não é mais a essência do sabor/saber sobre o mundo e o ser humano. A ciência moderna se traduz em experiência. Ultrapassar a estreiteza dos preconceitos já é, em si, a tentativa de se abrir para o outro, encontrar no outro o encontro de horizontes, a troca de experiências que se dá verdadeiramente como comunicação no diálogo. Nesse intercâmbio, há o acordo com consenso, mas com desfecho ainda ignorado comportando aventuras e riscos com final imprevisível. Em sua essência, o diálogo se constitui como um processo linguístico para Gadamer, mas ampliando um pouco mais o conceito de texto, com sentido linguístico, metodologicamente, incluímos às imagens eletrônicas (digitais ou analógicas) pictóricas também como objetos hermenêuticos, que abarcam inclusive as linguagens, ampliando ainda mais o espaço de troca, de diálogo enquanto compreensão de mundos, realidades e horizontes. Especificamente do caso brasileiro e também da América Latina para falar de teorias, faz-se necessário fazer uma retrospectiva, abordando as intrincadas questões históricas e culturais que são, acima de tudo, autor de questões políticas. Por exemplo, os meios de comunicação de massa, em sua totalidade, estão inseridos em um jogo político com funções determinadas, ainda que negadas peremptoriamente. Negação que nada mais é que fruto de cumplicidade. São as contradições latino-americanas que precisam, dialeticamente, ser estudadas para que um esboço teórico comece a ganhar forma e 226—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 226 5/20/14 4:31 PM fazer justiça ao sentido da palavra Theoria, que, vista de modo ampliado, quer dizer cortejo, ritual organizado com muitos participantes com a finalidade de justificar as práticas comunicacionais. É neste sentido que cultuar e cultivar e pensar as práticas juntamente com os instrumentos possibilitam enxergar o aliens, o alheio, o estranho, mas dominador e feitiço tanto quanto o colorido das miçangas trocadas em um processo contínuo de colonização. Estamos sob a ação de fetiches – alienados e encantados que somos pela teoria. Há que se desencantar para de novo voltar a nos reencantar. No Brasil e América Latina, as coisas são e não são ao mesmo tempo. Algo próximo ao realismo mágico de Gabriel García Márquez, restando buscar respostas que poderão estar na arte, na literatura, na cultura e na poesia. O século XXI, em nosso contexto geográfico, deveria retomar os ideais e refazer o convite de Feuerbach ao ativismo revolucionário do século passado. Considerações metodológicas Tornou-se necessário retomar aos teóricos que tratam da história da ciência, quando discutem os acontecimentos científicos colocados em sequência ou deslocados de seus contextos, as crises e surgimento de novas teorias. No entanto, é importante salientar que a história da ciência não se constitui somente do acúmulo de práticas, de ideias e de teorias. As questões filosóficas trazem à luz elementos que provam a herança dos iluministas que, por sua vez, retomam Platão e Aristóteles ao proporem o uso livre da razão e do intelecto que viria a determinar a cultura do século XX, englobando o mundo da técnica com seus desdobramentos relacionados à informação, conhecimento e suas contradições. Baudrillard e Postman, por exemplo, enfatizam que o acréscimo da informação não acarreta o aumento do conhecimento, ou seja, a inflação da informação pode significar “deflação do sentido”, crise que atinge o auge com os media, o computador e a internet. Constituem discussões necessárias para se pensar a comunicação hoje, envolvendo, obviamente, os conceitos de memória artificial garantida para os meios de comunicação de massa. Teorias da comunicação, a hermenêutica, o diálogo, a compreensão e a interpretação— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 227 227 5/20/14 4:31 PM O tema da memória e da construção de sentidos é pertinente na sociedade da informação com seus computadores e redes sociais, que podem ser vistos como máquinas de memória capazes de registrar, transmitir e memorizar tudo. São insuperáveis, quando comparadas à Enciclopédie, que não conseguia uma atualização instantânea como fazem atualmente as redes sociais. No entanto, todos os suportes materiais fazem e sempre fizeram esse mesmo papel: armazenar, prolongar e reter a memória humana, pois, diante da necessidade constante de atualização, se percebeu, inevitavelmente, os limites da memória humana, incluindo os objetos. Por exemplo, a arte com sua capacidade de reter e comunicar. A comunicação como processos constantes de atualizações, trocas e compartilhamentos teria a tarefa de provocar interpretações em seus múltiplos sentidos e, mais ainda, instituir diálogos. Sobretudo, aludíamos a alguns pensadores como, por exemplo, Francis Bacon, ao fazerem colocações sobre o método científico e a necessidade de isenção de preconceitos, devendo-se travar uma luta constante contra a generalização apressada, típica da natureza humana. Bacon propõe muito cuidado com estes estados na observação, atenção especial às ideias recebidas da educação, cuidados e precisão no uso da linguagem. Por fim, chama atenção para necessidade de se desenvolver experiências específicas para atender às interrogações científicas de pesquisa. Quando se discute as teorias e os fatos que as acompanham, Popper nega qualquer lógica na descoberta científica. Pode-se valer de tudo: insights, intuição, imaginação e observações controladas. Fazer uma leitura atenta da profusão de teorias e discussões metodológicas deverá ser atividade constante desta nossa pesquisa rumo ao entendimento e conhecimento das teorias da comunicação. Metodologicamente, existe uma relação estreita entre comunicação e cultura. Poderíamos dizer tratar-se de uma imbricação perceptível nas práticas e nas trocas, e inclusive nos conceitos. Por isso mesmo é que Edward Hall estabelece uma grande tríade composta de estados de consciência relacionados diretamente aos conhecimentos e práticas formais, informais e técnicas que, por sua vez, se desdobram em 228—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 228 5/20/14 4:31 PM efeitos que se ligam estreitamente a essas mesmas categorias, completando os vários sentidos nas relações humanas diretas como a própria essência da comunicação. Dessa relação triádica, pensada como comunicação e cultura, é que se busca reunir as diferenças culturais e comunicacionais divididas em países e regiões com suas especificidades como justificativas teóricas da comunicação, com todas as suas contradições observáveis no século atual. Não se pode esquecer, por exemplo, do encontro frutífero da desconstrução de Derrida com a Hermenêutica. Lembramos ainda do tradutor italiano de Verdade e Método, Gianni Vattimo, que associou o pensamento de Gadamer a um niilismo feliz. Acrescente-se o trabalho que R. Rorty faz com as ideias gadamerianas a estabelecer caminhos com vias diretas do pragmatismo norte-americano e a hermenêutica. São discussões travadas no contexto da modernidade (pós) do século XX que poderão gerar frutos teóricos e metodológicos frente às relações de pensamento e reprodução do “real” inconstante, na atualidade, e de seus efeitos no Outro, centro de interesse da hermenêutica com as teorias do diálogo, da compreensão e da interpretação. É a relação do Eu com o Outro que na verdade é a essência da comunicação. R e f e r ê n c ia s ASSUNTO, Rosario (Org). L’estetica de Immanuel Kant. Torino, Itália: Soc. Ed. Subalpina, 1971. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004. BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, JeanClaude. Ofício de sociólogo-metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. 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(7v.) 232—Osvando José de Morais teoria-meios-comunicacao_v1.indb 232 5/20/14 4:31 PM Teorias da Palavra II De conexões e relações Paulo B. C. Schettino Introdução A Comunicação, apenas recentemente, ganhou, pouco mais de um século, a importância que detém atualmente e o status de figurar como um ramo das ciências sociais aplicadas. Isso se observa, não apenas em função de sua presença no processo cotidiano de interação das pessoas, mas principalmente devido a sua transmutação em objeto de pesquisas e formulações de teorias construídas na intenção de seu conhecimento. A presente comunicação que agora se faz em texto acadêmico, por sua vez, resulta e dá continuidade à pesquisa que empreendemos para o Programa de Cooperação Acadêmica (Procad) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), priorizando a palavra como ferramenta e instrumento principais do fenômeno humano comunicacional ao independer das coordenadas tanto espacial quanto temporal, desde que se verifica sua presença constante em teoria-meios-comunicacao_v1.indb 233 233 5/20/14 4:31 PM todas as formas de tecnologias utilizadas ao longo de toda a história do desenvolvimento da humanidade e evolução de sua práxis. O Projeto Procad, ao reunir pesquisadores das teorias da comunicação de quatro universidades do país, nos deu o ensejo e liberdade de enveredar, cada um à sua escolha, pelos temas que a seu ver particular avultam em relação a outros, quando dividimos com alunos em sala de aula o resultado de nossas investigações. É no diálogo que remonta ao Sócrates de Platão que somamos o nosso pensamento ao do outro/outros e tecemos com a onipresente palavra os diferentes tipos de texto, seja na dissertação, na descrição, na argumentação, ou, finalmente, na narração, como quer Othon M. Garcia. Dessa forma, Garcia nos fornece a principal, e uma das possíveis sistematizações da tipologia textual; ao longo de nossa pesquisa, sentimos, ocasionalmente, a necessidade de diferenciar os textos segundo outros parâmetros, como se perceberá ao longo de nossa exposição. Por exemplo, quando recorremos ao apoio teórico de Gérard Genette, somos levados à opção de pensar a oposição Oralidade e Grafismo ou Fala e Escrita entre a diferenciação dos pares, se por modo ou forma. Genette, a princípio, quando questiona a divisão textual clássica dos estudos de Gênero Literário centrada na tríade composta por Épico/Lírico/Dramático, sedimentada sobre bases históricas que considera falsamente apoiadas em Platão e Aristóteles, reduz e propõe usar como parâmetro o Tema abordado pelo produtor do texto como principal elemento separador, e coloca Épico/Narrativa de um lado e Dramático como Modos de expressão deixando a Poesia (universalmente confundida como Gênero Lírico) limitada à questão da Forma – junto à opção de ser Prosa ou Verso – nesse sentido, Verso jamais seria sinônimo de Poesia ou do expressar-se pelo Poético, e coloca também como opção de questões formais a utilização de diferentes línguas e linguagens. Mais à frente poder-se-ia pensar a Poesia ou Lirismo como a possibilidade de atingir-se, paradoxalmente, o intangível por meio da capacidade de figurativização do produtor do texto quando abandona a objetividade do texto “prosaico”. O texto de Chico Buarque, que usamos como epígrafe, ilustra o pensamento de Charles Morris quando dá ao signo verbal as dimensões pragmáticas, sintáticas e semânticas. Quando o compositor nos permite metaforizar a concretude do tijolo do pedreiro, transmutando-o em palavra, por 234—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 234 5/20/14 4:31 PM consequência, a parede real que vimos ser levantada pelo obreiro associa-se ao texto verbal de conteúdo intangível construído com palavras utilizadas como unidades mínimas textuais à semelhança dos tijolos. E, assim, nos pomos a fiar, palavra com palavra, ora um texto mágico, ora um texto lógico, ou para os melhores tecelões – mágico e lógico. A busca da palavra adequada – le mot juste –, entre as tantas possíveis de um dicionário é que diferencia o ourives da comunicação verbal do outro tecelão preocupado antes com a intenção de transmitir uma informação imediata. Desse modo, de novo, podemos perceber mais uma divisão clara em dois tipos distintos nos textos que produzimos: textos subjetivos e textos objetivos. Da primeira tipificação pertencem os textos em que o autor se permite extravasar todo o seu universo interior, ao abusar da figurativização verbal – metáforas, na teoria literária ou símbolos, nas teorias da comunicação – aqui transformados em sinônimos, por meio de palavras existentes em seu repertório; enquanto que o segundo tipo reúne textos que priorizam o objeto principal da informação, sendo neles proibidos elucubrações fantasiosas do autor, viagens semânticas pelo universo dos sentidos diversos de uma palavra e uso de figuras da linguagem verbal. Em suma, neste processo de escolha se encontram em jogo de oposição a subjetividade e a objetividade do autor textual. Aqui trataremos primordialmente de comunicação; comunicação humana; ciências; fenomenologia; mediações e as relações e conexões traduzidas por vínculos que estas palavras possuem com os conceitos básicos de três categorias, a saber: comunicação – entendida como “fenômeno”; cultura – como “estado”, e educação – como “processo”. Se concordarmos com Teilhard de Chardin e aceitarmos que a existência do homem, imerso em uma miríade sem fim de outros seres vivos, constitui-se no que o autor chamou de “fenômeno humano” também se enquadrariam na categoria de “fenômeno” os impulsos inatos para a busca de relações com o outro, sejam quais forem suas molas propulsoras ou ainda desconhecidos interesses, que em diferentes formas somadas poderíamos considerar como “comunicação”. Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 235 235 5/20/14 4:31 PM Da c o m u n i c a ç ã o e d a c u lt u r a Tudo começou por algo que chamamos pele. Os estudiosos de citologia sabem que a protocélula viva – a primeira que soube engendrar-se – surge após o isolamento de uma porção do todo como decorrência ao desenvolvimento de uma membrana a dividir o dentro e o fora provocando a imposição de limite. O dentro – em tudo igual ao fora – mantém com a outra parte uma relação de trocas permitindo a entrada parcimoniosa do outro em si, partes estas utilizadas como alimento necessário para a sua manutenção e devolvendo para fora o rejeito após o processamento da matéria entrante. Essa relação primeira – a princípio uma “comunicação” ou relação, conexão? – bilateral entre o ser vivo e seu habitat, passará a ser reconhecida como simbiótica quando a parte isolada dá início a produção de seus semelhantes, formando colônias com seus pares, e fora, outras formas de seres vivos surgirem além de suas colônias imersas na imensidão do meio, também a formarem colônias sempre mantendo uma atividade de troca que interessa a todas as partes. (CAPRA, 2002) A matéria isolada parte para a viagem infinita das modificações e novas identidades que por força surgirão alhures frutos da complexidade crescente de seus centros ocupados por algo que se esboça – segundo Chardin: a encefalização progressiva rumo à complexidade do cérebro, a princípio objetivando a manutenção da geração de seus pares subsequentes. Quando uma dessas embrionárias formas de vida se desgarra ao assumir a sua diferença, um novo grupo social se forma, guerreiro, que lutará com unhas e dentes (quando os tiver como mecanismo inato de defesa de si e de sua prole) pela manutenção de sua diversidade e de sua cultura e de sua colônia. A produção da pele durante a ontogênese humana, enquanto que isola a individuação, irá proteger seu interior, mas por outro lado, garantirá as relações e conexões com o exterior devido à sua porosidade, à semelhança da prestação de serviço realizado pela membrana da protocélula primordial. Isoladas ilhas somos, mas nem tanto. Incorre-se no erro, ou no “pecado” de soberbia aquele indivíduo que esconde a sua dependência à relação que nega ao Outro, algo imprescindível de muito humano que Tzvetan Todorov chamou de necessário Reconhecimento do “simesmo” pelo Outro, desejo de nele ver o seu reflexo. E nascemos todos com essa necessidade e a aparelhagem de órgãos próprios criados pela natureza 236—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 236 5/20/14 4:31 PM em nós, com o fito único de nos capacitar a estabelecer conexões e relações que chamamos de “fenômeno comunicacional”. A Comunicação como um Enigma Empreende-se a busca do significado – sobre o enigma proposto na enunciação do emissor, conforme Hegel, quando afirma tratar-se de um jogo estabelecido entre emissor e o receptor. (HEGEL, 2000) O verdadeiro significado (ou sentido) da matéria expressada é obviamente conhecido pelo emissor ou propositor, e forma e substância que se utilizam no ato de expressá-lo seriam por meio de símbolos/signos/frases/ou texto proposto como enunciado. A decifração do enigma por parte do receptor é intencionalmente dificultada pelo emissor que embaralha a seu modo os dados propostos, que reunidos formam uma unidade ocultada insidiosamente, e esta unidade seria o conteúdo ou significado ou sentido da mensagem, em suma: a resposta do enigma proposto. Existem duas engenhosidades nesse jogo. A primeira pertencente ao emissor na construção do enigma que comporta a escolha das partes constituintes que decide usar para, depois de reunidas, comporem uma unidade – a solução do enigma. E da parte do receptor cuja engenhosidade consiste em sua capacidade ou competência de reconstruir a unidade que se encontra oculta pela escolha e disposição das partes no todo, e – EUREKA! – Saquei! É justo esse momento de epifania ou revelação ou desvelamento da solução ocultada que se entenderá como semiose. Por engenhosidade a equipe de tradutores preferiu traduzir a palavra alemã (Witz, ingenium) a capacidade de perceber semelhanças ou conexões ou relações em coisas diversas: perspicácia do receptor que em segunda instância é capaz de perceber várias coisas diferentes dentro do todo. Em suma, existe engenhosidade em perceber semelhanças e as reunir em um todo – construção; e no inverso: do todo (unidades) em direção às suas partes componentes. Em suma: trata-se de duas competências – construção e desconstrução/análise e síntese. De parte do propositor: a sua escolha dos sígnos elementares – palavras ou imagens, ou palavras e imagens – que irá utilizar no seu engenho de simbolizar/ocultar/velar sua proposição fruto de sua construção/ Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 237 237 5/20/14 4:31 PM codificação do símbolo; deixando para o receptor a tarefa de desconstrução e decodificação no intento de decifrar o momento epifânico da semiose. Será necessária a aquisição de competências específicas para decifrar ou decodificar as palavras que vemos ou ouvimos a partir das portas da percepção constituídas pelos inumeráveis buracos que tornam a nossa pele permeável – qual a célula primordial – e pelos sete “buracos” que possuímos em nossa cabeça, sendo que quatro deles distribuídos em duas duplas quase idênticas unidas por iguais funções que desempenham, dois a dois – a dupla que permite a entrada em nosso cérebro dos estímulos produzidos pela luz, e a outra, que permite a entrada dos estímulos produzidos pelo som. O processo desencadeado que se realiza quando escutamos ou vemos a frase “Queimar navios!” já não significa que sairemos em desabalada carreira com tochas de fogo nas mãos em busca de inexistentes embarcações. Se o fato ocorresse bem longe de rios ou mares, indagaríamos: “qual?”; ou ainda, “onde?”; ou talvez, “cadê?”. Trata-se de uma longa viagem até ao entendimento para quem fica exposto a essas palavras e perceber que só existe um destino para si, que é o de seguir sempre em frente. Desse modo fica bem mais claro para nós a relação ou conexão que podemos fazer entre as palavras que designam e denotam as diferenças entre o fenômeno comunicação e o processo educação. Para a comunicação fica a competência de produção e recepção das palavras, enquanto que o processo educacional se confunde com a sua principal função, que é o ensino do uso das diferentes linguagens possíveis ao ser humano tanto na sua vez de produzir como na de receber palavras. Há, hoje, um segmento específico da área das teorias da comunicação que se preocupa essencialmente com as relações entre comunicação e educação, chamadas intimamente por alguns pesquisadores de educomunicação, a reunir conhecimentos de intersecções observáveis nestes dois universos do conhecimento. Não se “educa” um aprendiz para que ele se transforme em um “clone” do mestre, no mais das vezes, mal formado, que seria no mínimo trágico ou patético, e sim para dotar o educando de conhecimento da linguagem, seja ela qual for, que o tornará apto a se comunicar. E, desse modo, capaz de compreender a si e ao seu habitat que é, em suma, a sua circunstância, com o acréscimo de, em conjunto com o outro, juntos, provocarem a mudança de estado da cultura comum que codividem. São as linguagens criadas pelo 238—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 238 5/20/14 4:31 PM homem, com o fito na comunicação, que irão multiplicar a cultura estilhaçando-a em culturas, quantas forem as mudanças de estado produzidas pela comunicação no seio de uma comunidade de humanos que se transformam e estão continuamente a transformar a sua comunidade e sua cultura. D e a l i t e r a ç õ e s e a s s o n â n c ia s Diz-se que os vocábulos vida e vento têm muito mais coisa em comum além da consoante inicial; ambos juntam ou separam, aleatoriamente, gentes e coisas. Portanto, de aliterações a aliterações chegamos ao vínculo ou associação ou relação ou conexão entre duas palavras ligadas indissociavelmente por amálgama bem mais forte ou infinitamente mais forte que a sonoridade inicial que ambas utilizam. Diz-se também ter sido por imitação ou mimesis dos sons circunstantes da natureza que o homem primordial deu os primeiros passos em direção à capacidade de gerir os sons que produzia. Alguns chegam a imaginar o homem aprendendo a modular e cadenciar seus sons mimetizando os sons que ouvia dos pássaros ou da repetição dos marulhos das ondas do mar. Não é de se espantar quando se constata que, dentre os filósofos gregos anteriores a Sócrates, muitos deles colocaram o Movimento ao lado das quatro raízes da natureza – ar, água, terra, fogo – e das duas forças – Philia/Neikós; amor/ ódio; atração/repulsão – na constituição do cosmo. Do movimento repetido, cadenciado e ritmado nasce a música, o modo maior de expressão criado pelo homem e que nela se embute a palavra, sonora de início. Desde o seu surgimento os detentores da palavra possuirão o poder. Palavra e poder sempre caminharão juntos, a primeira, tanto na forma oral quanto escrita. Os primeiros escribas que se tem notícia, da Suméria ao Antigo Egito, se não foram poder, dele se locupletaram. Fazendo como Kubrick e Clarke e construindo uma imensa elipse temporal – que não nega a evolução histórica da humanidade que passa por sucessivos impérios, todos assentados sobre a díade palavra e poder – chegamos ao nosso tempo dos Boothe-Luce, Roberto Marinho, Mondadori, Assis Chateaubriand, Murdoch e afins, todos muitíssimo bem representados pelo Cidadão Kane de Orson Welles. Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 239 239 5/20/14 4:31 PM Os sete postulados da comunicação verbal Os sete postulados da comunicação verbal em direção à sua crescente complexidade partem da palavra como unidade mínima do discurso, enovelando-se à medida em que, paulatinamente, adquire-se a competência não apenas de sua elaboração mas também rumo ao pensamento desdobrado, ao mesmo tempo que tece a produção de sua materialidade em um texto verbal, oral ou escrito. Quando em debate precisamos nos fazer entender frente aos alunos da disciplina de teorias da comunicação, aludimos a um estágio da ontogênese humana anterior à aquisição e uso da palavra que denominamos de Pré-Comunicação ao lançarmos mão do prólogo do filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Realizado pela dupla de criadores formada pelo cineasta Stanley Kramer e Arthur C. Clarke, justo a sequência da luta pela posse da água por dois grupos rivais de hominídeos, visiona-se a necessidade de se fazer entender pelo outro por meio do uso de dois recursos paralinguísticos: sons ainda inarticulados de alta intensidade transformados em urros, gritos e grunhidos devidamente acompanhados de expressões faciais exageradas e exageradas utilizações integralmente do corpo, em que se sobressaem gesticulações desordenadas dos braços e mãos. Produção alternada de som e imagem com a intenção clara de atemorizar e ameaçar traduzindo um esboço de discurso comunicacional com o conteúdo ainda não verbal de avisar ao outro o horrível que lhe aconteceria caso não desistisse de seu intento. Em outro estágio de sua evolução, tanto o homem arcaico, já de posse da palavra, quanto nós, ainda em nosso tempo, não iríamos abandonar de vez a utilização teatral do corpo para reafirmar e amplificar as palavras que utilizamos nas nossas relações interpessoais. O escritor inglês, Conan Doyle, em sua obra O Mundo Perdido, contribui para reforçar a estreita conexão que podemos estabelecer entre a palavra e as diferentes culturas. Logo após, a tribo inteira realizou um conselho, sentada no chão, em círculo; durante o conselho, nós nos mantivemos sentados ali por perto, numa laje de basalto, contemplando a cerimônia dos índios. Dois ou três guerreiros fizeram uso da palavra; por fim, o nosso jovem amigo, o índio chefe, procedeu a uma arenga fogosa; empregou expressões fisionômicas tão eloquentes, e gestos tão 240—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 240 5/20/14 4:31 PM consentâneos, que nos foi possível entender tudo o que ele disse, com tanta clareza como se conhecêssemos o idioma dele. (DOYLE, 1987, p. 13) Com os grifos que fizemos queremos chamar atenção para as associações possíveis com alguns conceitos saussurianos da comunicação verbal: 1) “uso da palavra”, 2) “empregou expressões fisionômicas”, 3) “gestos”, 4) “entender”, e por fim, 5) “idioma”, ou seja, 1) fala (parole); 2 e 3) paralinguagem; 4) semiose; e por fim, 5) língua (langue). Starobinski nos chamou atenção para uma pesquisa que Saussure empreendia e abandonara sobre o tema das palavras ocultadas pelas palavras – os anagramas – que hoje somente encontramos nas revistinhas de passatempo vendidas nas bancas de jornal. Saussure foi em busca de palavras escondidas entre as palavras que compunham os versos de autores clássicos. As encontrou nos versos de Homero, Virgílio, Lucrécio, entre outros, o que nos indica tratar-se de pensamento semelhante ao de Hegel, quando este assinala o discurso do emissor da comunicação como a proposição de um enigma a ser decifrado/decodificado pelo receptor, conforme vimos anteriormente. Presentemente, revisitando as narrativas de “aventuras” encontramos um sem número de romances, novelas e contos que partem de um enigma a ser decifrado pelo herói em seu percurso narrativo como principal arcabouço do texto – de Poe (O Escaravelho de Ouro), Verne (Viagem ao centro da terra; A Jangada); Doyle (no já citado O Mundo Perdido). Senão, vejamos: após uma longa exposição dos métodos adotados para decifrar o enigma proposto em O Escaravelho de Ouro, a pesonagem-narradora diz ao seu interlocutor: No caso atual, e em suma em todos os casos de escritas secretas, a primeira questão a resolver é a lingua da cifra, porque os princípios de soluções, particularmente quando se trata de cifras mais simples, dependem da genialidade de cada idioma e podem ser modificados. Em geral, não existe outro meio senão tentar sucessivamente, dirigindo-nos segundo as probabilidades, a todas as línguas que nos são conhecidas até encontrarmos a boa. Mas, na cifra que nos ocupa, qualquer dificuldade a esse respeito acha-se afastada pela assinatura. O jogo de palavras com a palavra Kidd só é possível na Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 241 241 5/20/14 4:31 PM língua inglesa. [...] No caso presente, porém, presumi que o criptogramas era inglês. (DOYLE, 1987, p. 29) Alguns anos mais à frente de Poe, o francês Júlio Verne (1973, p. 25) praticamente reproduz suas palavras então no seu Viagem ao Centro da Terra: É o que chamamos criptograma, combinação na qual o sentido se oculta baralhando de propósito as letras. Dispondo-as convenientemente hão-de dar uma frase completa. E talvez esteja aqui a explicação, ou pelo menos a indicação, de algum descobrimento maravilhoso. ..................................................................................................................... Primeiramente é preciso saber o idioma do criptograma. Coisa simples! Temos aqui cento e trinta e duas letras, das quais setenta e nove consoantes e cinquenta e três vogais. Ora é nesta proporção que são compostas as palavras das línguas meridionais, ao passo que os idiomas do Norte exigem muito mais consoantes. É, pois, uma língua do Sul. ..................................................................................................................... - É latim, não há dúvida! – dizia o doutor –, mas latim transtornado. ..................................................................................................................... Parece que a frase primitiva foi regularmente escrita e depois transformada conforme uma lei, que é preciso descobrir. Quem possui a chave desta cifra leria corretamente. Mas, qual é a chave? Sabes qual é a chave, Axel?. Chamamos a atenção para que se observe nos dois autores a utilização praticamente das mesmas palavras como enigma, criptograma, língua, ocultação, engenho, entre outras mais que também encontramos em Hegel, quando propõe a comunicação como enigma. Deve-se ressaltar que associamos o termo “cifra” à noção de “código”, quando tratamos de construção de linguagem no campo da comunicação. Deixamos de citar trechos semelhan- 242—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 242 5/20/14 4:31 PM tes de autoria de Conan Doyle em virtude de serem em grande quantidade, incontáveis, mesmo em sua série de narrativas dos casos protagonizados por sua personagem principal – Sherlock Holmes –, e pelo exaustivo trabalho sobre o assunto e autor nas obras do italiano Umberto Eco, desde o clima de decifração de enigma que emula em O Nome da Rosa ao destaque quando se refere ao O Signo dos Quatro, de Doyle. A Palavra A primeira aquisição da primeira ferramenta da comunicação se dá pela doação da palavra, conforme assinalamos na primeira parte de nossa pesquisa. E é em sua forma oral que a registramos junto à primeira imagem percebida. Em termos de fragilidade e dependência, o “filhote” do humano perde tão somente para aqueles da classe zoológica dos marsupiais – os nossos brasileiros “gambás” e os australianos cangurus, que nascidos prematuros se escondem em bolsas apropriadas das suas mães para completarem sua ontogênese. Sons e imagens se misturam indistintamente provocando movimentos desconexos de olhos esgazeados e torções de cabeça em busca da fonte geradora do estímulo percebido, acompanhados de movimentos convulsivos das mãos em tentativa de apreensão de algo que desconhece. O filhote do humano, com sua extrema fragilidade e dependência, deitado em decúbito dorsal, muito se assemelha às tartaruguinhas, que para serem caçadas e detidas em sua desabalada carreira salvadora são viradas com o casco para baixo sacodem desordenadamente ao vento seus principais órgãos de relação – cabeça e braços e pernas. Também suscita a lembrança da reprodução do Menino na manjedoura das pinturas renascentistas, e na estatuária dos presépios napolitanos. Ininteligíveis a princípio, as primeiras palavras se somam à primeira luz que vemos. Desse modo, tem-se início à reconstrução ou representação do mundo circunstante sob a forma de signos, portanto, virtual em sua essência, procedimento nominado por Blikstein de “fabricação da realidade”. É o russo Luria que complementaria Izidoro, e nos esclarece como se processa em nós, paulatinamente, a capacidade de acoplar sons e imagens até chegarem à imagem do mundo devidamente concebida como uma representação audiovisual Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 243 243 5/20/14 4:31 PM do primeiro espetáculo das coisas do mundo – palavra e imagem já agora indissociáveis e indistintas. Amalgamadas no hólo da representação sígnica, mantêm entre si uma relação biunívoca: transformamos palavras em imagens e imagens em palavras. Tornamos a nos apoiar em Saussure e seu estudioso Starobinski para estabelecer conexões entre a palavra, sua amplificação na complexidade da língua, e o discurso nas palavras de Saussure, quando afirma que a língua nasce por determinação da necessidade imperiosa do discurso e indaga para si o que separaria este daquela, e mais ainda: o que permitiria dizer que a língua somente entra em ação como discurso? A perífrase e o provérbio Encontramo-nos no vasto terreno da frase em que as palavras, vistas como sígnos quando proferidas ou registradas em sequência em série numérica, estabelecem entre si uma relação de dependência que resulta em outro signo, agora mais complexo, com outro significado, fruto do que Morris chamou de dimensão sintática do signo – a competência que todo signo detém de se ligar a outro para geração de outro ainda maior – aqui, no nosso estudo, a palavra –, que ao ligar-se a outra produz o sentido pretendido embutido na intenção do propositor constituindo seu discurso. Eis a frase em seu nascedouro como variável dependente da fonte (emissor? receptor?) ou qualquer que seja a intenção ou necessidade que a faz surgir. Usualmente encontradas nos manuais de gramática a dupla Castro Alves/O poeta dos escravos confirma a ideia hegeliana de proposição de enigma comunicacional quando o emissor opta primeiro pela enunciação do epíteto ou apelido do poeta baiano, e a frase “O poeta dos escravos” se traveste de perífrase – ou frase encobridora – da resposta esperada: “Castro Alves”. Toda perífrase, mais complexa que a palavra a embute, encobre ou oculta, e abusar de seu uso é tentativa de dificultar o discurso direto da comunicação transformando a performance da fala em circunlóquios, isto é, divagações figuradas ao contrário de dirigir-se à palavra que intencionalmente permanece no centro de círculos periféricos constituintes da linguagem enigmática ou criptografias – a palavra que deveria ser objetiva “enterrada” em tumbas construídas de palavras. 244—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 244 5/20/14 4:31 PM Das frases curtas, tais como: – “Mim, Tarzan” e – “You, Jane”, até as longas frases complexas capazes de conterem “pensamentos desdobrados” vai – segundo Vygotski, Luria, Piaget, entre outros autores – um também longo percurso histórico da evolução da humanidade à semelhança do longo período de aprendizagem da infância do indivíduo moderno à posse de competências para sua enunciação. Do homem comum ao poeta, seja por imitação ou por ato criador de textos verbais como reclama Aristóteles para aqueles por ele denominados de “poetas”, sobraram as frases que a História registra, com ou sem autoria explicitada, verdadeiros patrimônios universais da cultura. Disseminadas pelos quatro cantos do mundo, às vezes atemporais ou datadas, frutos que são do conhecimento empírico dos que vieram antes de nós, essas frases nos governam “mais do que a anatomia” como querem o escritores Gore Vidal e Dorothy Parker. Elas formam uma semiosfera a volutear invisíveis, porém, sentidas ou lembradas, em volta de nossas cabeças e se fazem presentes quando delas precisamos, seja como um veto às nossas ações ou um aviso de atenção. A depender de forma ou ocasião podemos chamá-las por muitos apelidos: Adágio, Moral, Máxima, Ditado... ou, também, provérbios. O Período e o Parágrafo Concretizada dentro do indivíduo a aptidão para o uso da palavra, oral ou escrita, e partindo em direção à complexidade crescente da comunicação, a depender da competência adquirida de expressar seu pensamento desdobrado vai-se construindo textos cada vez mais longos. Falar ou escrever demanda aprendizagem e nos faz vir à mente a memória do registro icônico dos três macaquinhos com as mãos ora vedando a boca, ora vedando os olhos, ora vedando os ouvidos a nos ensinar o adágio popular: “Quem não lê mal fala, mal olha e mal vê”, e também a outra: “Quem não lê, não escreve.” As crianças mantidas à margem do convívio humano, conforme registro de vários autores e, entre eles, principalmente Bakhtin e Wittgenstein, corroboram com seu silêncio e incapacidade de se relacionarem com o outro e com o mundo as já citadas palavras de Bakhtin, quando assevera que são do outro as palavras que usamos. Encontramos laconismo e seu oposto, a prolixidade nos indivíduos com que interagimos. Há alguns que nos aturdem pelo sequencial inesgo- Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 245 245 5/20/14 4:31 PM tável de palavras emitidas oralmente e dentre eles, os mais espertos fazem disso o seu meio de vida – o poeta Billy Blanco, com seu bom humor que lhe é peculiar, identifica dentre eles as profissões de camelôs ou políticos, mestres da oratória em seu discurso fácil e copioso. Períodos e mais períodos vão sendo construídos, em caudal, prolongando-se em parágrafos e mais parágrafos. O que se observa no domínio da fala também tem seu sucedâneo na competência da palavra escrita – oradores e escritores sempre estiveram à frente ou junto ao poder que lhes concede a palavra. A Parábola A narrativa como o locus do mito – duas palavras que se confundem etimologicamente no grego –, compreendendo-se ela mesma como o próprio mito, já que produzida por um narrador ou pela própria personagem transformada em Herói passa a ser construída passo a passo a sua História. Tal como a perífrase que por meio de circunlóquios oculta a palavra, a parábola também é encobridora construindo-se ao mesmo tempo em que se desnovela ao se desenredar, figurativizando a ponto mesmo de abusar de metáforas e alegorias, e nesse trabalho de se construir prolixamente, nada mais intenta que ocultar o provérbio. Tudo vale lançar mão para que fatos se transformem em fábulas – as suas representações – desde “imaginar” um tempo que indistintamente animais e gentes dialogavam, e que em estado de latência, enigmaticamente, a narrativa-esfinge espera que o seu receptor consiga desvendar a síntese de seu conteúdo resumido na frase. É, como veremos adiante, esse mito ou narrativa que reproduzido e alterado incansavelmente, por diversas razões, irá se constituir no elemento catalisador capaz de aproximar os diferentes meios de comunicação. A Paráfrase A intertextualidade em suas diferentes formas em concordância com sua natureza de diálogo entre textos verbais, de início, para sua possível ampliação entre textos de outras naturezas, tais como os predominantemente visuais ou imagéticos. A sua ocorrência é sutil a depender de uma antena sensibilíssi- 246—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 246 5/20/14 4:31 PM ma portada individualmente pelos leitores cuja sensibilidade cresce e se afina com o repertório de textos anteriormente lidos e armazenados. No entanto, o seu autor tem por obrigação deixar bem claro, ou através de pistas intencionais, que ele está recontando com suas próprias palavras algo que leu, fruto da lavra de outrem, sob pena de incorrer nos pecados que às vezes se comete, e deixar que seu texto resvale para os casos que veremos no próximo postulado, o sexto de nossa série. A Paráfrase distingue-se da citação explícita – aquela que agregamos ao nosso texto com recuo e corpo de letra diferenciado – por se caracterizar na utilização dos recursos linguísticos e repertório do novo autor, mas que não perderá de modo algum a sua natureza de citação, agora aparentemente implícita, porém, é certo que sua filiação não escapará do crivo de pelo menos um leitor atento – isso, sempre. A Paródia e o Pastiche e o Plágio Na Paródia a vinculação do novo texto autoral ao outro anteriormente preexistente deveria ser automática para o seu leitor, como no caso anterior da paráfrase. Ambos, paráfrase e paródia, são reunidos de acordo com o prisma da narratologia sob o epíteto de Texto de Chegada, enquanto que o texto do qual derivam, se originam, citam ou se apoiam recebe a denominação de Texto de Partida, visto que ambos não existiriam sem a existência desse anterior. Aqui é oportuno lembrar as relações passíveis de serem observadas entre as narrativas de Homero e Joyce sobre a mesma personagem – Ulisses – ainda que diste, no entorno de 3000 anos, a produção de uma e de outra. Oportuno lembrar aqui a visita aos mesmos tema e herói realizada por Olgaria Matos, pelo viés filosófico: A viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a humanidade precisa realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da auto-expressão ao autodesenvolvimento. O eu homérico que distingue as forças obscuras da natureza e a civilização expressa o medo original da humanidade diante do outro. O ato sacrifical repetido organiza a identidade do sujeito com Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 247 247 5/20/14 4:31 PM as forças da natureza, a fim de lhe permitir purificar-se da natureza no interior da própria humanidade. ..................................................................................................................... As etapas vencidas na viagem de volta a Ítaca são aquelas realizadas pela humanidade para poder chegar, partindo do mito, ao despregamento vitorioso da ratio: submissão dos instintos a um controle - repressão que é uma luta que se inicia com a conquista perpétua sobre as ‘faculdades inferiores’. Pelo menos desde Platão, a subordinação dos instintos é vista como elemento necessário da razão humana. A luta culmina em um sistema produtivo cuja manutenção requer que o corpo humano se submeta a suas necessidades. Ao dominar a natureza exterior domina-se a interior. Em Ulisses convergem Iluminismo e Mito. (MATOS, 1987, p. 157) De Homero a Joyce e Matos, o mito de Ulisses viaja nas asas de Cronos e transcende da figurativização do homem para a sua pluralidade, a humanidade; assim como faria a dupla de roteiristas, Kubrick e Clarke, ao chamar de odisseia a tumultuada viagem do coletivo do homem em direção ao futuro. Não seria esse o caso que aludimos acima, porém, o argentino (que se revolva na tumba!) Borges aventa a hipótese de possibilidade de existirem dois textos totalmente congruentes ainda que os separem eixos espaciais e temporais totalmente intransponíveis e mesmo assim são intertextuais na ideia, no tema, e até mesmo na forma e no modo – o argentino imaginou a possibilidade de dois indivíduos sonharem o mesmo sonho, em distantes épocas e lugares, o que não apenas endossamos como também consideramos de uma sagacidade extremada. De retorno às palavras deste sexto postulado, existe, porém, uma distinção marcante entre paráfrase e paródia: na primeira, o autor da paráfrase reproduz, além do conteúdo, também o tom do discurso, enquanto que na paródia o leva para oposição de 180º – da seriedade para o jocoso, da tragédia para a comédia, e principalmente, do sagrado para o profano. De modo geral, quase sempre se tem na paródia a intenção de “brincar”, à guisa de “popularizar”, com a sisudez tanto do autor quanto de seu texto original. É nessa 248—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 248 5/20/14 4:31 PM acepção que teria se criado, ao longo dos tempos, as oposições entre “Alta Literatura” e “Baixa Literatura”, “Cultura de Elite” e “Cultura de Massa” que remonta aos gregos, desde a A República de Platão aos movimentos sociais de luta de classes, passando pela Revolução Francesa no séc. XVIII, até eclodir no marxismo e na Revolução Russa, de 1917. A partir disso, tem-se o discurso entranhado de que tudo o que é popular também é vulgar, o que não seria de todo incorreto dado à etimologia da família das palavras “vulgar” ou “vulgata”. Quanto aos outros dois – pastiche e plágio – devem ser peremptoriamente evitados sob pena de cometimento de apropriação indébita de trabalho alheio. Se o primeiro encontra-se carregado negativamente por não ir além de uma “cópia feita em carbono” e mal feita, dir-se-ia mesmo pejorativo passível de execração pública, o segundo se transforma em caso de polícia por ser classificado como crime. Qualquer um de nós, acadêmicos, que tivermos um texto nosso colocado em uma das duas categorias estará a cometer suicídio moral a começar pela perda de credibilidade, e deverá procurar pousada bem longe, bem “a leste do Éden” da Academia. Parodiando o provérbio “O lobo perde o pelo, mas não perde o vício” nos parece que o ser humano insiste em não aprender com as experiências alheias, quando prefere estar à mercê de suas paixões. Mesmo na atualidade, observa-se que os casos de fraude acadêmica estão a se repetir mais frequentemente. A Poesia e a Prosa Aqui estamos a nos acercar de pontos polêmicos que tratam da delicada separação entre literatura e comunicação insistentemente defendida por alguns autores estudiosos da primeira. A raiz da palavra poesia foi gestada na Grécia, pelo menos para nós, partícipes da civilização ocidental judaico-cristã, mesmo retrabalhada pelo latim vulgar dos romanos, foi mantida sua essência original de significado vinculado à ideia de criação. Herdamos nossa língua do sincretismo produzido pela mistura, ao longo de séculos, dos dialetos falados pelas antigas comunidades da península ibérica com o estropiado – por isso, vulgar – das “falas” dos centuriões romanos durante a ocupação de seu império. Herdamos essa nova língua portuguesa de nossos descobridores e Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 249 249 5/20/14 4:31 PM colonizadores – bem mais isso que aquilo –, da qual deriva o nosso português, porém ficamos também com o elo que vincula poesia e criação. O conceito de poesia ligado à “a arte de escrever em verso”’ e “aquilo que desperta o sentimento do belo” se verifica somente a partir do século XVI. Uma prática muito encontradiça e muito perigosa, que hoje está a arrebanhar muitos adeptos entre orientadores de pesquisa acadêmica é o de assinar em conjunto com o orientando os textos que a este pertence. C o n s i d e r a ç õ e s f i n ai s Nunca se falou ou se escreveu tanto como agora. Qualquer que seja o meio de comunicação, ainda que cada um tenha construído uma linguagem própria e que cada um escolha o veículo de transporte que mais se lhe adéqua, ainda assim, se existe algo que os una mesmo diante de flagrantes diferenças, sem nenhuma dúvida seria a palavra, seja na forma oral ou escrita, ou nas duas em concomitância. Assim como aponta Saussure ser a língua comum o principal fator que produz identidade ao indivíduo e ao grupo social a que pertence permitindo que tanto um quanto o outro mantenham sua unicidade, seria o mito ou narrativa, à semelhança da língua natural que responde pela formação de uma comunidade humana, que uniria os diferentes meios de comunicação criados pelo homem por mais díspares que possam parecer já que possuem, cada um deles, a sua própria linguagem. Como já foi dito anteriormente o melhor exemplo ilustrativo do que afirmamos pode ser conferido na sequência final do filme Cortina de Fumaça/ Smoke, da dupla de cineastas Paul Auster e Wayne Wang (1995), quando se tem o mesmo mito de uma temática de Natal apresentado nos modos narrativo e dramático e nas formas: verbal oral, verbal escrito e imagético – ou forma audiovisual. Todas as representações produzidas pelo homem através da aplicação de um tipo particular de techné findam por apresentarem variações dos mesmos temas universais – o ser humano e suas paixões e o desnovelo de um particular percurso do herói da narrativa e as atribulações e percalços enfrentados. Os livros de literatura, as narrativas radiofônicas, as “notícias” jornalísticas, os enredos cômicos ou trágicos do teatro, cinema e 250—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 250 5/20/14 4:31 PM televisão estão sempre a apresentar novas releituras ou versões do “desejo de vingança produzido pelo ódio feminino nascido da rejeição” do mitologema de Medéia; do mitologema do Triângulo Amoroso envolvendo escolhas a produzir o Predileto e o Rejeitado no mito das relações entre a tríade composta por Deus-Pai, Caim e Abel narrado no livro do Genesis bíblico; e no mesmo livro, do mitologema a partir do conflito de gerações formado pelas relações turbulentas entre as personagens da díade – Deus-Pai e Adão, protagonistas do eterno drama originado pelos papéis desempenhados de Criador e Criatura – focado na obediência; e outras ilustrações advindas de narrativas produzidas pelo pensamento-mítico poético das civilizações humanas anteriores ao surgimento do registro da palavra escrita na Suméria. Nas universidades brasileiras a separação entre os cursos, seja de graduação ou pós, de Letras e Comunicação é, infelizmente, quase total. Quando nos cursos de Letras se torna imperioso abordar a conexão entre as palavras e as imagens o magistério dessas poucas disciplinas fica reservado aos professores de formação apenas em estudos literários. Tão violento quanto essa separação acima descrita é se perceber algo semelhante dentro do próprio seio da grande área das ciências da comunicação: a insistência de alguns setores da subárea do jornalismo se manterem a parte da comunicação. O mesmo problema se observa nas relações conflituosas entre o teatro, o cinema e a televisão provocadas por certos autores que insistem em ignorar que os três meios de comunicação estão unidos e inseparáveis – conectados – pelo uso comum que fazem da associação “gesto/imagem e palavra”. Essas dissensões nos fazem crer originarem-se da antiguidade das práticas reconhecidas como teatrais, literárias, e jornalísticas. Se, como acredita o vulgo através de ditado popular: “antiguidade é posto”, que seja, daremos primazia ao teatro, à literatura e ao jornalismo como os mais antigos meios de comunicação utilizados pelo homem, do primordial ao atual de nossos dias, e desse modo cremos lhes fazer justiça desde que não nos tentem impedir a utilização dos conceitos matemáticos da palavra “função” que estabelece relações e conexões entre duas variáveis – a dependente e a independente – que os iguala e submete à dependência da palavra, que sobre eles paira e sobrenada. Sonora ou visual, ou audiovisual; isolada ou conectada às suas semelhantes ou a outras formas auditivas ou visuais formando um tecido/texto, Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 251 251 5/20/14 4:31 PM com efeito discursivo à escolha do utente abrigando seu pensamento e seu propósito de comunicação. Virtual, aproveitada da Física, é uma das palavras mais encontradiças em todas as bocas na atualidade, e é parente próxima de outra – intangível – que também anda em alta a permear os mais disparatados discursos verbais. Virtualidade e intangibilidade seriam qualidades inerentes ao que não se pode apreender, a tudo que não se deixa nem sequer suavemente tocar – tanger. A comunicação entre computadores pessoais de dois indivíduos comuns, a princípio ensaiada nos Estados Unidos, após o fim da Guerra Fria – até então era para uso exclusivo entre militares das Forças Armadas como fora um dia a comunicação via rádio e os aviões – é disseminada em sua exploração comercial pelo mundo inteiro em fins do século passado. A internet, ao trazer em sua esteira a capacidade de comunicação instantânea e formação de redes de utentes e o aparente desaparecimento de intermediação entre os clássicos atores do fenômeno comunicacional – emissor e receptor – transforma-se em “coqueluche” mundial, como também fora um dia o cinema e a televisão. O progressivo desenvolvimento das tecnologias de comunicação a distância por meio do tráfego de palavras – rádio e telefonia – bem como o mesmo observado para o tráfego de imagens geradas a distância e viajoras até o destino visado – televisão, convergem para a internet. É oportuno, então, reiterarmos a reprodução do texto citado pelo italiano Castellani sobre a suposta profecia que teria feito uma monja alemã de Dresden, do período entre 1680 a 1706, quando se refere ao futuro em sua fala premonitória (SCHETTINO, 2009, p. 141): Chegará um tempo no qual voará a voz. E os homens conversarão entre si por além de mares e montanhas. Chegará ainda um tempo no qual voarão as imagens. E os homens poderão ver-se por além de mares e montanhas. Aquele será um tempo de grandes dores e de grandes tormentos. Voarão as imagens como os anjos, mas não levarão a luz dos anjos. Eis que, indubitavelmente é chegado o tempo aludido – o nosso tempo, século XXI – pelas palavras visionárias da religiosa alemã que as teria proferido lá pelos idos do século XVII ou XVIII. Semelhante aos nossos cérebros, que 252—Paulo B. C. Schettino teoria-meios-comunicacao_v1.indb 252 5/20/14 4:31 PM serviram de modelo para o protótipo da dita Inteligência Artificial concebida pelo homem, o computador tomará para si a tarefa antes humana de somar, subtrair, quantificar e medir, e, principalmente, armazenar virtualmente através de sua linguagem própria e simplificada os dados que lhe são fornecidos constituindo-se em uma grande memória da humanidade. Gradativamente irá minimizar-se graças, principalmente, aos conhecimentos ofertados pela utilização crescente da nanotecnologia a ponto de caber na palma de nossa mão e cada mão estendida, devidamente aparelhada, será transformada paradoxalmente em isolado nó de rede universal de comunicação a distância. Ao invés de telefonia móvel dever-se-ia saudar o aparecimento da comunicação móvel que nos possibilita manter a conexão comunicacional independente de deslocamentos espaciais geográficos ou no eixo temporal, já que a instantaneidade e simultaneidade foram atingidas. Dentro desse mesmo projeto Procad o pesquisador em comunicação e cultura, Osvando J. de Morais, publicou seu texto em que prioriza a necessidade de irmos em busca de teorias capazes de interpretar as mudanças observáveis no cotidiano atual das pessoas. Mudanças essas impostas pela exposição e utilização da avassaladora e contínua proposição técnica transformada em artefatos de comunicação disponibilizados para a massa. [...] a natureza interdisciplinar da comunicação aponta para alguns caminhos na superação dos obstáculos presentes nesse seu começo de existência. 1- A interação social através de mensagens trocadas entre os indivíduos e estes, por sua vez, com os meios massivos de comunicação, está presente na sociedade e na cultura, representando e refletindo simbolicamente o mundo. 2- Antes, os meios de comunicação de massa, como o próprio termo já denota, aglutinavam públicos. Agora, com a expansão dos canais, os públicos são fragmentados em segmentos estanques, cada qual a fazer sua própria escolha: selecionando e/ou editando e construindo sua programação particular, a partir daquela comum produzida e enviada para todos. 3- É imperioso pensar em teorias basilares de comunicação que deem conta dos processos atuais em que as práticas das comunicações interpessoal, grupal e coletiva ganham novas configurações. (MORAIS, 2010, p. 92) Teorias da Palavra II— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 253 253 5/20/14 4:31 PM Justo por pensar de igual forma é que concordamos com o pensamento – quase advertência – que se pode depreender das palavras expressadas por Morais: já nos encontramos munidos de uma enorme gama de instrumentos que modificaram por completo a prática da comunicação humana – e o mercado que existe é forte! – a provocar mudanças cada vez mais avidamente em curto espaço de tempo, e estes períodos por sua vez aceleradamente menor, disponibilizando artefatos cada vez mais sedutores (os modelos de aparelhos lançados no mercado se superam em seis meses). Se comunicação humana, meios de comunicação e sua aparelhagem artificial modificam-se seguidamente, nós, pesquisadores de comunicação e de cultura, devemos vislumbrar teorias outras devidamente alicerçadas sobre as anteriores – literalmente dizemos que ao conhecê-las subimos aos ombros dos que vieram antes e desse modo deles recebemos a competência de vermos mais longe, vislumbrando e descortinando horizontes cada vez mais amplos. Estes artefatos que todos portamos, carregando nos bolsos ou nas mãos, se transformaram na grande “onda” universal do momento. Fonte de riqueza para poucos e endividamento de muitos, poder-se-ia dizer milhões. Porém, juntamente com o pen-drive forma a dupla que vem alterando a vida de seus utentes de forma substancial. Poderemos até mesmo, por resistência, não nos transformarmos nos meios de comunicação, porém, o que de certa forma nos parece certo é que eles nos transformam substancialmente, ou no mínimo, neles dependentes. R e f e r ê n c ia s ARISTÓTELES. 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Em suas palavras: Ensaio é isto: tentativa de ver em que dá uma hipótese de trabalho. E o interessante do ensaio não é o resultado, a hipótese confirmada ou refutada. O interessante é o que se mostra ao longo da experiência empreendida. A suspeita inicial pode ter sido confirmada, refutada ou deixada aberta. (FLUSSER, 2011, p. 163) teoria-meios-comunicacao_v1.indb 259 259 5/20/14 4:31 PM E confirmar, refutar ou mesmo deixar aberta uma hipótese inicial, ainda não é o que move para a realização de um ensaio, porque o que o fundamenta é “o fascínio exercido pelas experiências relatadas”, pelos fenômenos, os quais “davam respostas inesperadas ao autor, confundiam as suas perguntas e rompiam os seus preconceitos”. (FLUSSER, 2011, p. 163, 165) A base dos escritos de Flusser, concretizados em ensaios, vem tanto da filosofia, apreendida de forma autodidática, quanto da poesia. Porém, não se deve confundir esta prática como confusão com o objeto observado, tampouco como aquilo que o próprio filósofo classificou como “transcendência irresponsável”, pois este afirma que, diante da admissão da objetividade como ideal impossível, “o distanciamento passa a ser desejável”, por se admitir o esforço para o que pode ser conhecido, a partir de um ponto de vista despreconcebido e amplo, atitude à qual Flusser denomina como “científica pós-objetiva”. Bernardo, em prefácio à edição brasileira de Natural: Mente, chama a atenção para o quanto o texto flusseriano se torna desafiador, graças a sua capacidade de assumir a condição ficcional de todo discurso, especialmente o acadêmico, no qual mesclava “silogismo com metáfora e axioma com ironia”. Portanto: assume a condição ficcional de todo discurso, escrevendo filosofia como quem faz ficção: antes mostrando que demonstrando, antes provocando que esclarecendo, antes driblando que afirmando, antes aludindo que apontando, antes suspendendo que pontificando. (BERNARDO, 2011, p. 8) Ao que tudo indica, trata-se de um texto desafiador, por construir-se a partir de uma metodologia que, por trás da aparente leveza poética, esconde a coragem de desmontar raciocínios solidificados, convidando a um refletir, que põe em relevo o tão discutido, mas pouco praticado, pensamento complexo, transdisciplinar, quando se trata de eleger metodologias e compartilhar pesquisas por meio de textos, no universo acadêmico. Bernardo (2011, p. 10) expõe o fato de que “mapas são teorias, a saber, ficções válidas por um certo momento. Quando essas ficções se reificam e se tornam crenças e sis- 260—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 260 5/20/14 4:31 PM temas dogmáticos, elas passam a ocultar todas as paisagens que pretendiam descrever”. Contrapondo-se aos dogmatismos, Flusser faz, com os fenômenos, o mesmo que Oswald de Andrade fazia com a realidade a sua volta, para criar poesia: como uma criança que desmonta o brinquedo para ver como este funciona, ao modo dadaísta, observa os fenômenos para apreendê-los, ou desaprendê-los, no sentido de desmistificá-los, para chegar à essência das coisas. Bernardo credita ao filósofo um certo ceticismo, somado a uma disponibilidade “para o casual, para o instante e para o detalhe” (FLUSSER, 2007, p. 9), o que caracterizaria a poesia, mas também esta filosofia dos céticos, que não se pretende erigir em sistema. É assim que Flusser consegue trazer à tona discussões sobre comunicação e mídia, antecipando problemas cada vez mais emergentes entre os teóricos da comunicação, tais como o do ambiente das tecnologias digitais e seus impactos sobre a comunicação e a cultura. Baitello Júnior fala a respeito da contribuição de Flusser: [...] por sua aguda e inovadora maneira de analisar a comunicação, suas novas ferramentas e seus impactos sobre a sociedade contemporânea. Flusser é considerado um dos maiores expoentes de uma moderna Teoria da Mídia, com um enfoque filosófico e antropológico dos fenômenos e processos da comunicação. (BAITELLO JÚNIOR, 2012, p. 146) Menezes (2009, p. 169) explica que Flusser provocava e se deixava provocar afetuosamente pela presença dos outros: “Assim, podemos dizer que experimentou um método fenomenológico, na medida em que cultivou a perspectiva da volta às coisas, isto é, da atenção aos fenômenos, ao que aparece à consciência”. Trata-se, por isto, ainda nas palavras de Menezes, de um pensador cuja metodologia “é marcada por perguntas, pela observação atenta dos fenômenos e, especialmente, pela coragem de duvidar”. Na instigante obra Natural: Mente, exemplar da metodologia usada pelo investigador, Flusser formula perguntas e mais perguntas – aproxima-se dos objetos “perguntando-os”, ao que aparentemente ele mesmo responde, mas, na verdade, trata-se de deixar que os objetos lhe falem – abrir-se para ouvi-los A comunicação como artifício— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 261 261 5/20/14 4:31 PM e novamente perguntar, em um movimento de construção de teses, antíteses e sínteses, que geram uma nova tese. Menezes (2009, p. 168) destaca a obra Bodenlos, palavra alemã que significa “sem chão”; “sem terra” ou “sem fundamento”, e relata o diálogo de Flusser com 11 interlocutores, sendo sete brasileiros e quatro imigrantes. Alex Bloch, Milton Vargas, Vicente Ferreira da Silva, Samson Flexor, João Guimarães Rosa, Haroldo de Campos, Dora Ferreira da Silva, José Bueno, Romy Fink, Miguel Reale e Mira Schendel. Estes foram alguns entre os interlocutores de Vilém Flusser. Como marca característica de Flusser, está a de alguém propenso ao diálogo, ainda que não à concordância, já que Bodenlos mostra que toda a construção do significado de sua vida e de sua produção intelectual aconteceu na conversação. Na relação com outras pessoas que também buscavam a compreensão do mundo e a justificativa para continuar a viver e manter um engajamento na contemporaneidade. (MENEZES, 2009, p. 168) O filósofo, de origem tcheca, nasceu em 1920, em Praga, e foi criado entre duas culturas, a judia e a alemã. O pensador afirma, contudo, que sua formação se deve a duas formas de cultura, às quais ele classifica e descreve: minha mente é produto de duas tradições contraditórias e jamais satisfatoriamente sintetizadas. Da tradição da voz e da tradição da imagem. Do mandamento, e da idéia. Do verbo, e do substantivo. Da decisão existencial, e da metafísica especulativa. Não posso simplificar o dilema ao dizer que tradição do invisível é a judia, e a do inaudível é a grega. É dilema anterior às duas culturas fundantes da minha mente. Já na cultura judia há elementos imaginativos, embora os profetas se tenham esforçado para expurgá-los. E já na cultura grega há elementos dialógicos, embora o “logos” tenda sempre a idealizar-se. (FLUSSER, 2011, p. 129) Flusser viveu a experiência do nômade, desde nascer e formar-se entre culturas distintas, à fuga da guerra, quando foi para a Inglaterra, em 1939, e, em seguida, chegou ao Brasil, em 1940, com a família do futuro sogro. Em terras brasileiras, permaneceu de 1940 a 1972, escrevendo em português, para 262—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 262 5/20/14 4:31 PM aproximar-se da cultura e da língua, mas também dos amigos de seus filhos, brasileiros, estudantes que frequentavam a sua casa. De 1972 a 1991 residiu na Provença. E é no final do ano de 1991, ao regressar à sua cidade natal para uma palestra, cidade esta à qual resistira retornar por longo tempo, que viria a falecer, em um acidente automobilístico. O já mencionado nomadismo é explicitado no texto Chuva, da obra Natural: Mente, em que Flusser descreve, a partir da observação de um cedro em seu jardim, a essência do estrangeiro, como “quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra”. (FLUSSER, 2011, p. 64) A metáfora parece se referir a ele mesmo, que viveu em terras brasileiras e criou vínculos, ao ponto de dominar por completo a língua portuguesa, escrevendo, dialogando com pares e díspares, mas sem nunca deixar de ser um estrangeiro, seja no Brasil ou nos outros lugares onde viveu: Eu sou o ruído do parque que transforma a sua redundância em informação significativa. Destoo, e tal dissonância é o núcleo da música do parque. É isto o significado das minhas respostas: sou estrangeiro por ser cedro, e é apenas com relação à minha estrangeiridade que o resto do parque se torna nativo. Ser estrangeiro é, pois, no fundo, isto: revelar ao contexto que ele próprio não é estrangeiro. (FLUSSER, 2011, p. 61) E sem perder a marca de estrangeiro, talvez, reforçando-a, lançou sobre o Brasil o seu olhar e o comunicou, pois criou vínculos, fez amigos e desafetos, foi adorado por uns e acusado de polemista e superficial por outros; em terras brasileiras, deu aulas e escreveu sobre diversos assuntos. Mesmo depois, vivendo na Europa, onde ganhou reconhecimento, passou a escrever em alemão e, em seguida, para publicar no Brasil, em português, língua com a qual extrapolou os muros acadêmicos, colaborando com artigos em jornais, e somou mais uma estrutura complexa, ou seja, mais uma língua, entre as quais ele já transitava para compreender o mundo. Vale lembrar que, Flusser, em Língua e Realidade, defende o poliglotismo como um método para se ultrapassar os limites linguísticos e, consequentemente, da visão de mundo expressa por esta língua. A comunicação como artifício— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 263 263 5/20/14 4:31 PM F l u s s e r , a c o m u n i c a ç ã o e a c u lt u r a Para Vilém Flusser a comunicação humana é um processo artificial, constituído de artifícios, de descobertas, de ferramentas e de instrumentos. Para que o homem possa estabelecer comunicação, símbolos são organizados em códigos, que procuram fazer com que a humanidade se esqueça, ainda que temporariamente, da sua condição inescapável de mortal. O autor explica que: “os homens comunicam-se uns com os outros de maneira não natural”. (FLUSSER, 2007, p. 89) O pensador ressalta que a fala, por exemplo, que parece ser nossa por natureza, é produto de aprendizado, e é diferente de cultura para cultura, assim como a escrita e os gestos, portanto, não se trata de natureza, mas de uma segunda natureza. Menear a cabeça em sinal de concordância ou franzir o cenho por estranhamento não são gestos naturais, instintivos, embora sejam aparentemente inconscientes. (FLUSSER, 2007) Pode-se acrescentar que, em uma esfera de outra complexidade, também não é natural fazer poesia, cinema, teatro, dança, considerados linguagem e artifícios humanos, muito diferentes da dança das abelhas quando encontram o néctar para fazer o mel. São artifícios carregados de complexidade. Esta condição não natural é o que define o homem, cujas relações não são naturais, e mesmo aquelas mais primitivas, tais como a amamentação e o sexo, são ações artificializadas, marcadas pela cultura. Assim, tanto a comunicação quanto a cultura são artifícios humanos. Cabe ressalvar, porém, que para ele, não apenas o conceito de cultura, mas o de natureza, também deve ser posto em dúvida, pois a natureza que vemos está mediada pela cultura, da mesma forma que a cultura é naturalizada ao ponto de impedir-nos de refletir. Ao retomar as referendadas ideias de cultura, o autor constrói e desconstrói definições, por exemplo, quando descreve “cultura” como “a imposição deliberada de um significado humano ao conjunto insignificante de natureza” e arte como “o método pelo qual o espírito humano se impõe sobre a natureza”. Mas, em seguida, acrescenta que “embora muitos possam efetivamente esposar tal conceito, é ele inteiramente insatisfatório”. (FLUSSER, 2011, p. 27) Essa insatisfação é constatada a partir da relação fenomenológica de Flusser com os objetos analisados, dos quais vai arrancando as camadas 264—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 264 5/20/14 4:31 PM aparentes, descobrindo que sempre há a possibilidade de uma nova camada a ser observada e retirada, gerando novas perguntas, que tendem à invalidação da resposta anterior. Em outra conceituação de cultura, parte das percepções, ao observar o fenômeno da chuva pela janela, bem como da segurança de estar em uma sala confortável, em sua casa, de onde pode visualizar a chuva através da vidraça. Em sua narrativa, fica patente a já mencionada metodologia de “perguntar” as coisas (perguntá-las) e, ainda, perguntar às coisas: Voltarei a olhar a chuva pela janela para ver se ela me diz algo a respeito. Eis o que está dizendo: aqui fora está chovendo, lá dentro estás abrigado. Isto é a distinção categórica entre natureza e cultura. Natureza é como a chuva: provoca a sensação de impotência; cultura é como a sala: provoca sensação do abrigo. (FLUSSER, 2011, p. 53) É possível que Flusser não se aborrecesse com uma discordância, ou pelo menos com outra pergunta. A cultura provoca sensação de abrigo, desde que seja a minha cultura. Já a cultura do outro pode provocar sensação de medo, estranhamento, repulsa e até indignação. Pode, é claro, produzir simpatia e cumplicidade, mas é, sobretudo, a partir dela, a cultura do outro, que posso me reconhecer na minha própria cultura, e aqui é possível se apoiar no mesmo Flusser, quando este define que “natureza como minha circunstância espontânea e isenta de problemas, é cultura como presença estranha e estrangeira na minha circunstância, que se autoafirma e, portanto, dá sentido à natureza”. (FLUSSER, 2011, p. 64) O autor afirma que, para os tecnocratas, a cultura é a transformação de algo em “bom” para um propósito deliberado, ressaltando que, para estes, a “cultura é injeção de valores no conjunto isento de valor chamado natureza”. (FLUSSER, 2011, p. 54) A estas definições, contrapõe o raciocínio de que a isenção de valor está na tecnologia, e não na natureza, cujas coisas são todas más, porque oferecem condicionamento e impotência: Se não fossem más as coisas da natureza, não se explicaria o engajamento em cultura. É sempre engajamento contra a natureza. As A comunicação como artifício— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 265 265 5/20/14 4:31 PM coisas da técnica são eticamente neutras, e passam a ser boas se me abrigam, e más, se me condicionam. Produzi-las é necessário, mas não basta. É necessário, porque resulta em coisas parcialmente boas. Mas não basta, porque pode resultar em coisas más se perdermos a consciência da cultura. Se progresso for, como o afirmam os tecnocratas, um processo ao longo do qual eventos naturais são transformados em lineares, então progresso (e ordem) não basta. O que urge, para que o progresso tenha sentido, é manter e refinar a capacidade crítica dos valores (a capacidade ética, política, em suma: liberdade). Tecnocratas não bastam. (FLUSSER, 2011, p. 54) Desta forma, tanto natureza quanto cultura são perniciosas quando condicionam. Flusser resume dizendo que “as coisas são boas apenas na medida em que contribuem para me libertar” (2011, p. 55), e que isto é a medida da cultura, pois “tecnologia ainda não é cultura. E tecnocracia (governo da tecnologia não controlado) é anticultura. Em suma: cultura é tecnologia mais liberdade”. (FLUSSER, 2011, p. 54) Até que ponto, portanto, ainda que Flusser não tenha se referido exatamente a isto, as tecnologias da comunicação podem ser consideradas cultura? Talvez a resposta possa ser: até o ponto em que nos libertam, ao invés de nos condicionar. O vislumbre de Flusser antecipa a crítica do uso indiscriminado e inconsciente das tecnologias da comunicação. Basta um breve passeio com os olhos por grupos de pessoas, em escolas, shoppings, parques, clubes, restaurantes, juntas e isoladas, com seus celulares, computadores e outros aparatos, para se perceber a pertinência da reflexão: A liberdade surge por salto dialético acima do acaso e da necessidade, salto este possibilitado pelo conhecimento. Sem o conhecimento, a máquina de escrever não é coisa da cultura, mas condição natural, como o é para macacos. Existem muitas situações, aparentemente culturais, nas quais manejamos aparelhos como se fôssemos macacos. Porque os ignoramos parcial ou inteiramente. Em tais situações os aparelhos funcionam, e os nossos dedos funcionam. E é contra tais situações que as revoluções se insurgem. Para libertar os dedos. (FLUSSER, 2011, p. 83) 266—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 266 5/20/14 4:31 PM Tornar cultura o natural, e verificar a naturalização do não natural, da cultura, faz pensar que “o natural mente quando se transforma em hábito”. (BERNARDO, 2011, p. 12) Por isso, o simples ato de amamentar, que parece um hábito natural, na maior parte das culturas, por estar associado à condição humana de mamíferos, pode ser visto também como um hábito cultural, marcado pelas interdições, por protocolos, por contextos que apontam que ele não pode ser visto nem como natureza e tampouco como cultura, apenas. Não há dúvidas de que a cultura imprime na mãe um olhar diferenciado para o filho amamentado, uma forma de se comportar durante o aleitamento, condições públicas e diferenciadas de se oferecer o seio ao alimentando, ainda que um seio des-erotizado, mas que pode se tornar contraventor, agressivo e censurado. Basta rememorar o episódio em que a mãe, que amamentava o filho em um Instituto Cultural de São Paulo, no ano de 2011, foi convidada a se retirar do recinto, já que o lugar era inadequado para o ato, na avaliação de um dos seguranças. Alegou-se, atendendo-se ao questionamento da mídia, que a interpretação do segurança teria relação com a proibição de “se alimentar” naquele local, curiosamente, um local de cultura e de arte, portanto, pelo menos em tese, um lugar de liberdade de expressão. Os diretores pediram desculpas às mães que, indignadas, organizaram um “mamaço” na frente do instituto. Para remediar a situação, os dirigentes disseram que orientariam melhor os funcionários, além de que todas as mamães eram bem-vindas, com ou sem suas crias penduradas às tetas. Mas é fato que há toneladas de notícias semelhantes mundo afora, como a de uma mãe expulsa de pub, por amamentar, em Londres, e de outras, presas, e outras, indignadas, porque as colegas não se dignam a cobrir os peitos enquanto amamentam. Enfim, trata-se de um ato natural, de uma comunicação profunda entre mãe e filho, entretanto, trata-se também de um ato nada natural, profundamente marcado pela cultura e pelos intertextos do erotismo, das sanções e da incompreensão coletiva. O sexo, necessidade primitiva para a preservação da espécie, é marcado pela cultura, ritualizado, erotizado, desviado de sua função reprodutiva para o lúdico, e, certamente, é ele uma das maiores interferências confusas no ato de amamentar, contaminado de culpa pelo desejo e pelo olhar do outro. Ainda, quem sabe, ele seja a memória A comunicação como artifício— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 267 267 5/20/14 4:31 PM de uma natureza e de uma fragilidade que não queremos lembrar ou que não achamos digna de tornar pública. Flusser (2007, p. 90) afirma, entretanto, que nem sempre o caráter artificial da comunicação é consciente: “após aprendermos um código, tendemos a esquecer a sua artificialidade”. Ocorre, deste modo, uma falsa naturalização daquilo que nasce artificial. Os códigos, explica, tornam-se uma espécie de segunda natureza. O mundo artificializado da segunda natureza é que nos faz esquecer o mundo da primeira natureza. A comunicação, relacionada à cultura, promove o artifício de nos iludir a respeito de nossa condição de seres mortais e solitários. Portanto, o objetivo primeiro da comunicação seria, sobretudo: nos fazer esquecer desse contexto insignificante em que nos encontramos – completamente sozinhos e ‘incomunicáveis’ – ou seja, é nos fazer esquecer desse mundo em que ocupamos uma cela solitária e em que somos condenados à morte – o mundo da natureza. (FLUSSER, 2007, p. 90) Neste sentido, podemos ler em Flusser um pessimista, que aponta a característica mais humana como a da incomunicabilidade. Porém, podemos também encontrar em suas palavras a definição do homem como artífice, cujo intento é destruir as barreiras desta profunda incomunicabilidade, ou seja, retomando o pensamento de Baitello Júnior (2012), capaz de erguer pontes sobre abismos, para tentar alcançar o outro, por meio da comunicação. A comunicação vista a partir de Flusser aproxima-se da criatividade e da arte, entendendo-se a arte, neste caso, como a organização do mundo em artefatos e códigos, sendo que os objetos e os códigos são ambos carregados de informação, que tentamos organizar, acumular, fazer ganhar sentido. O ato de comunicar, para Flusser (2007, p. 90), pode ser interpretado, desta maneira, como uma espécie de remédio, ou “um artifício cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada à morte”. A partir deste objetivo da comunicação, o de nos fazer esquecer de nossa essencial natureza, a de seres mortais, é que Flusser justifica a condição do homem como um animal político. O autor explica essa condição humana 268—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 268 5/20/14 4:31 PM “não pelo fato de ser um animal social, mas sim porque é um animal solitário, incapaz de viver na solidão”. (FLUSSER, 2007, p. 91) A teoria da comunicação é classificada por Flusser como uma disciplina interpretativa, inserida no campo das ciências humanas, já que ela necessita criar significados e interpretar os fenômenos muito mais do que explicá-los. Ele afirma que as ciências da natureza e as humanidades têm mapas contrários: “o tempo corre em direção oposta nas duas disciplinas. Nas ciências da natureza corre rumo à entropia: nas humanidades, rumo à informação crescente”. (FLUSSER, 2011, p. 34) Portanto, uma coisa se torna natureza na medida em que é explicada ou se torna espírito na medida em que alguém decide interpretá-la. Neste caso, a diferença entre ciência natural e ciência do espírito (ou ciências humanas) é definida pelo posicionamento do pesquisador. Um mesmo fenômeno, analisado sob aspectos diferentes, passa a ser um fenômeno diferente. A nuvem explicada não tem relação com a nuvem interpretada, não é o mesmo objeto, tornam-se nuvens diferentes uma da outra, de acordo com o ponto de vista. Flusser aponta a comunicação como uma disciplina interpretativa, ou seja, um fenômeno significativo a ser interpretado. A comunicação explicada, portanto, é diferente da comunicação interpretada. São fenômenos distintos. A comunicação como ciência interpretativa dá a abertura suficiente para um método fenomenológico, em que o pesquisador se deixe tocar pelo objeto de pesquisa, produzindo interpretações abertas a novas interpretações, como num processo de semiose – em que um intérprete, a partir de um signo, gera um interpretante, que será transformado em um novo interpretante, por outro intérprete, infinitamente. Flusser (2011, p. 37) pondera sobre a comunicação humana como inatural, contranatural, ao se propor a armazenar informações adquiridas, o que a torna negativamente entrópica, já que, ao passo que tudo tende à desorganização, a comunicação humana propõe uma organização das informações, pois “armazenar informações (neguentropia) é a meta da humanidade”, e acrescenta que esta é uma característica fundamental do homem, um animal que encontrou truques para acumular informações adquiridas. Este acúmulo de informações é um processo, mais do que de necessidade, de liberdade, se- A comunicação como artifício— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 269 269 5/20/14 4:31 PM gundo o teórico. Comunicar é, deste modo, uma tentativa de dar significado à insignificância de uma vida assombrada pela morte. Pode-se concluir, com o autor, que a comunicação humana é um fenômeno de liberdade, cujo propósito maior é acumular para iludir. Trata-se, porém, de uma ilusão que serve para tornar a vida vivível. Passamos a viver, então, em um mundo codificado, construído a partir de símbolos ordenados, e nele se represam as informações adquiridas. A comunicação compõe a cultura, constituída pelos instrumentos e seu exercício de poder sobre a vida cotidiana, cultura esta que “longe de libertar o homem da determinação pelas forças da natureza, se constitui em condição determinadora. Portanto, em segunda natureza”. (FLUSSER, 2011, p. 161) Flusser (2007) descreve duas formas fundamentais de comunicação, que não se excluem, são interdependentes, mas que são distintas em diversos aspectos. Ele explica que, para produzir informação, os homens trocam diferentes informações disponíveis, na esperança de sintetizar uma nova informação – a este processo, chama de comunicação dialógica. Na segunda forma, as informações existentes são compartilhadas, para que possam resistir ao efeito entrópico da natureza – a comunicação discursiva. Sobre a relação entre estas duas formas, explica que o discursivo não pode viver sem o dialógico. Para que haja um diálogo é necessário que tenha havido, antes, a apreensão de discursos. Para que haja um discurso, o emissor tem que dispor de informações produzidas no diálogo anterior. A grande dificuldade, entretanto, pondera o autor, é a produção de diálogos efetivos. Ocorre uma onipresença dos discursos dominantes, o que torna os diálogos impossíveis e desnecessários. O que caracteriza o homem é a incomunicabilidade, pois, ao contrário do que parece, nem tudo é comunicação efetiva. A comunicação, segundo Flusser (2007), só alcançaria o seu objetivo quando houvesse um equilíbrio entre discurso e diálogo. Quando há um predomínio dos discursos, o que ocorre, segundo o teórico, é a solidão entre os homens, apesar do permanente contato com as fontes de informação. Quando, por outro lado, ocorre um predomínio dos diálogos provincianos, a mesma solidão assoma àqueles homens, que se sentirão extirpados da história. 270—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 270 5/20/14 4:31 PM Sobre pontes e abismos Baitello Júnior (2012) descreve a comunicação como tentativa de alcançar o outro, superando abismos profundos, com a utilização de mídias, ou seja, de pontes: Por que nos preocupamos tanto com os meios, com esse meio de campo entre o um e o outro? Porque há aí um abismo. E abismos são vazios gigantescos e assustadores. Como temos horror ao vazio, tentamos preenchê-lo com tudo o que temos à mão: com os gestos, com a voz, com os rastros (olfativos, visuais, auditivos ou táteis). Com as imagens arcaicas, com escritas de todos os tipos, com as imagens produzidas por máquinas e até mesmo com as próprias imagens de imagens. Mas preencher o abismo é um trabalho insano e inglório, como enxugar gelo ou esvaziar um rio. Há apenas lampejos de um fugaz preenchimento, pontos fugazes que nos levam até o outro, transpondo por breves relances o vazio do abismo. Para conseguir esses lampejos e tais relances é que experimentamos todos os meios, todo tipo de midia. A essa atividade damos o nome de comunicação, criação de pontes para atravessar o abismo que separa o eu do outro. A essas pontes, como elas se colocam no meio de campo, damos o nome de midia, ou meios, ou media. (BAITELLO JÚNIOR, 2012) Como contribuição fundamental para as ciências, a da comunicação, em particular, e as humanas, em geral, Flusser aponta para a possibilidade de uma metodologia fenomenológica, ou de um método também nômade, flexível, por meio do qual se revela que é necessário que continuemos a nos espantar. Se buscamos o que se encontra escondido “no fundo” dos acontecimentos, das pessoas e dos textos, caímos na histeria da interpretação de tudo, duvidando do fenômeno para, como Descartes, acabar com todas as dúvidas. Ao contrário, a filosofia precisa antes de mais nada proteger a dúvida e preservar o enigma, mantendo- A comunicação como artifício— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 271 271 5/20/14 4:31 PM nos na superfície do mistério, portanto, mantendo-nos em condições de nos maravilharmos e de nos espantarmos. (BERNARDO, 2011, p. 18) O conceito de comunicação, indissociável do conceito de cultura, pressupõe a percepção de um mundo codificado, de um universo midiático em uma escalada crescente para a abstração. Tal complexidade obriga à formulação contínua de questões, para que se possa escapar da condição de serviçais de tecnologias que não se conhece, de realidades que não se observam e não se questionam, nas quais o mote será reproduzir e não criar. É, pois, a constatação de um abismo. Pode-se dizer, inspirado em Flusser: remover neblinas, saber do tamanho do abismo e, ainda assim, arriscar-se nas pontes e caminhar, para experimentar o lampejo da comunicação. Esta parece ser uma atitude digna. R e f e r ê n c ia s BAITELLO JÚNIOR, Norval. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens. São Leopoldo: Unisinos, 2012. BERNARDO, Gustavo. O naturalmente? In: FLUSSER, Vilém. Natural: mente. São Paulo: Annablume, 2011. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. FLUSSER, Vilém. Natural: mente. São Paulo: Annablume, 2011. MENEZES, José Eugenio de O. Comunicação, espaço e tempo: Vilém Flusser e os processos de vinculação. Comunicação, Mídia e Consumo, n. 6, p. 165-182, 2009. 272—Míriam Cristina Carlos Silva teoria-meios-comunicacao_v1.indb 272 5/20/14 4:31 PM As teorias do cinema e a atualização dos gêneros Cr istiane Freitas Introdução Esse texto tem por objetivo compreender as teorias realistas e sua atualidade através, especificamente, da reconfiguração da imagem biográfica que invadiu em seus diferentes formatos as telas do cinema, da televisão e da web nos últimos tempos. Assim, pensar sobre o realismo nos coloca diante de uma teoria dos estudos de cinema, mas também de escola, movimentos e estratégia estética e, na atualidade, encontra a sua força no filme biográfico e nos seus desdobramentos como o filme histórico e o filme político.1 1Essa especificidade em relação aos filmes biográficos diz respeito à pesquisa realizada pela autora com fomento de bolsa produtividade do CNPq intitulada Os filmes biográficos sobre a ditadura militar brasileira: o realismo como estratégia estética. teoria-meios-comunicacao_v1.indb 273 273 5/20/14 4:31 PM Nesse sentido, o realismo está presente de forma recorrente na produção cinematográfica mundial e brasileira, pois capta as emoções através do personagem que vivenciou uma história, que contém como toda história de vida seus percalços, ajudando, assim a exorcizar as situações traumáticas e reconstruindo esses acontecimentos no presente. Essa estratégia pode ser entendida como um instrumento relevante para a compreensão da comunicação na atualidade e que remete ao presente transformando, reinterpretando o passado, interagindo, assim, entre o vivido e o transmitido. Daí, por exemplo, a frequência com que assistimos hoje no país, nas diferentes mídias, histórias de superação de limites socioculturais e afetivos como o filme Gonzaga de pai para filho (Breno Silveira, 2012) realizado para o cinema e televisão ou Lula, o filho do Brasil (Fábio Barreto, 2009). Assim, as diferentes telas que possibilitam assistirmos a filmes, na atualidade, estão invadidas por imagens que tem como estratégia o uso do realismo e muitas vezes, o relacionando a algum tipo de conflito histórico importante. Podemos citar no que nos interessa aqui a cinematografia brasileira que comparece com filmes biográficos sobre a ditadura militar brasileira. Essa ideia nos ajuda a entender o aumento indiscriminado da produção de filmes sobre essa temática na última década, devido também a várias datas históricas relembradas, como os 40 anos do maio de 68 e do Golpe Militar; a efetivação de algumas medidas que contribuem para que o acontecimento histórico não seja esquecido, como indenização às vítimas ou familiares que lutaram no período; e, algumas discussões importantes, que colaboram de forma crucial, para a construção da história, como a abertura dos arquivos políticos e a formação da Comissão da Verdade. Dentre essa produção de imagens destaca-se o filme biográfico, entendido aqui como o filme que apresenta somente um personagem que vivenciou determinado acontecimento histórico. Assim, o realismo que encontra força nas biografias e no filme político permite analisar os significados estéticos e o contexto sociocultural e histórico dessas escolhas. o r e a l i s m o e a c r ia ç ã o Por realismo entendemos ser a construção de um mundo imaginário, produzindo um efeito de real. A banalização do fenômeno do realismo, nas artes e 274—Cristiane Freitas teoria-meios-comunicacao_v1.indb 274 5/20/14 4:31 PM nas mídias, deve-se a sua vinculação, no século XX, às artes narrativas e do espetáculo. Em revanche, algumas correntes realistas do século passado vão tentar recuperar certa capacidade de idealização2 para dizer algo sobre o real. O cinema, em sua essência, é uma técnica de reprodução das aparências, tendo sido configurada de acordo com os princípios do realismo. Basicamente, todo o cinema narrativo, com exceção dos movimentos experimentais e de alguns gêneros muito próximos do irrealismo, como o filme fantástico e o burlesco, sustentaram-se na ideia de que o realismo tem por objetivo descrever as relações entre os homens. Assim, a partir dos anos 1950, várias teorias relacionadas aos estudos de cinema priorizaram o realismo em suas teses. Iniciadas por André Bazin e Siegfried Kracauer, essas teses se alastraram a partir dos anos 1960, baseandose na ideia de que o cinema representa a realidade e, ao mesmo tempo, mostra a sua ontologia, colocando o cinema em um contexto de investigação científica em diferentes áreas do conhecimento, como filosofia, história, passando pela linguística e a comunicação. Ambos são entusiastas do uso recorrente do realismo como estratégia estética e críticos contundentes dos que defendiam “a arte pela arte”, para usar um termo de André Bazin (1993). Para Bazin e Kracauer, o realismo é uma evolução da linguagem cinematográfica e um aprimoramento do estilo, reconhecendo, ao contrário de alguns críticos, que opõem formalismo ao realismo, a valoração da utilização da técnica para o resultado final. Como afirma Kracauer (2010, p. 77), “tudo depende do justo equilíbrio entre tendências realista e formalista, e o equilíbrio acontece quando a última não se sobrepõe a primeira, colocando-se, em última instância, sob a sua direção”. Enquanto que para Bazin, o cinema como arte somente foi possível por causa da realidade, e a técnica está a serviço de neutralizar ou não a eficiência desta arte. Ou seja, para ambos os autores, a realidade se sobrepõe à técnica, mas não prescinde dela. Se para Bazin, grosso modo, o cinema se aproxima do mundo como seu prolongamento, destacando a sua capacidade em participar da vida existente, para Kracauer, ao contrário, o cinema registra os aspectos já vistos para re- 2A definição de realismo aparece na filosofia para designar uma crença em uma realidade das ideias e também está relacionado ao sentido de idealismo dado por Platão. Esse sentido possibilita efervescentes discussões teóricas até os dias de hoje. As teorias do cinema e a atualização dos gêneros— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 275 275 5/20/14 4:31 PM velar aquilo que não é compreensível de imediato. Se para Bazin o cinema é uma “revelação” e, portanto, evidencia as aparências, para Kracauer, o cinema é apreendido como um suporte, onde o mundo é reproduzido e documentado, auxiliando o pesquisador. Esses autores partem do pressuposto de que um mesmo acontecimento histórico é passível de diferentes representações, e cada uma dessas formas de representação abandona ou salva qualidades que faz com que o acontecimento seja reconhecido, na tela, e introduz, com objetivos didáticos ou estéticos, as abstrações mais ou menos corrosivas que subsistem do original. Nesse sentido, o diretor tem sempre que reconquistar a realidade. Kracauer ainda avança, com as suas ideias em relação à Bazin, ao enfocar que o cinema realista é um sintoma da realidade vivida, servindo como documento para construção e atualização da história. Datam também dessa época os filmes que reforçam e renovam a teoria realista como o movimento do neorrealismo italiano e o filme testemunho sobre catástrofes históricas, entendido aqui como um gênero que faz parte da grande família do documentário e mantém uma relação direta com filmes históricos e, por vezes, com filmes biográficos. A estrutura desses filmes se sustenta em relatar a história de pessoas que vivenciaram, diretamente, determinado acontecimento histórico. Pensar sobre esses gêneros e analisar esses filmes nos levam à afirmação, já preconizada de forma diferenciada por Bazin e Kracauer, de que o cinema se inspira no registro da similitude e da narrativa. Segundo Alain Badiou (2005, p. 82), “a função da similitude no real deve-se ao fato de que não existe real suficiente que não levante suspeita. O fascínio pelo real é também o fascínio pela desconfiança.” Para o autor, as categorias subjetivas da política revolucionária como, por exemplo, a virtude e a lealdade, são marcadas pela desconfiança dessas categorias em relação ao real: se elas são, de fato, verossímeis e participam da aparência. O real pode ser entendido, então, pelo fascínio pelo autêntico ou por aquilo que não pode ser destruído.3 3 Pensamos aqui especificamente nos filmes biográficos que dependem dessa desconfiança e desse fascínio do real para alcançar o espectador. 276—Cristiane Freitas teoria-meios-comunicacao_v1.indb 276 5/20/14 4:31 PM A teoria realista não se sustenta somente na semelhança, pois requer algo da ordem da criação. Isto é, a semelhança associada a algo da esfera do não humano pode levar a um conhecimento e a uma reflexão em proveito do humano, que não diz respeito somente à ordem mecânica, mas à criação que passa pela metáfora e pela analogia. Nesse sentido, a analogia e a metáfora nos ajudam a identificar o relativismo que comporta o pensamento sobre o real nesse cinema que imprime, no espectador, diferentes modos de compreensão do mundo social em função da similaridade que essa compreensão apresenta com as imagens fílmicas. Para Bazin, o real, no cinema, está diretamente vinculado ao imaginário e a uma determinada forma de representação. Para ele, a necessidade humana de construir sistemas de representação parte de uma “necessidade fundamental” de promover uma continuidade entre o que é mostrado e aquele que mostra e encontrou diferentes meios de realizá-la através dos séculos. Desde o seu nascimento, no cinema, nunca houve a necessidade de promover confusão entre representante e representado, mas, ao contrário, construir relações imaginárias específicas que se diferenciam daquelas que evidenciam o real. O cinema daria para a humanidade, então, a resposta ideal e potente para restituir o desejo humano de se ver reproduzido em imagens em movimento, devido à sua capacidade de produzir registros do mundo em suas diferentes dimensões. Estas diferentes formas de representação passam pela ideia de crença, e o cinema a reforça em todas as instâncias no decorrer da sua história. O cinema, arte por excelência do século passado, e que, por sua natureza, poderia ser considerado como uma arte mimética mecânica demonstrou, ao contrário, ao longo da sua história, que a sua técnica permite uma construção e uma reinvenção do realismo, contribuindo para o avanço sobre a sua teoria. A at ua l i d a d e d o f i l m e b i o g r á f i c o O filme biográfico é um dos gêneros que, por sua importância e proliferação na atualidade, nos ajuda a compreender essa construção do realismo. A narrativa biográfica não pode ser reduzida ao fato de mero conhecimento do acontecimento ou representante de uma causa, pode ser transformada em As teorias do cinema e a atualização dos gêneros— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 277 277 5/20/14 4:31 PM criação pelo questionamento do impensável que pode ser controlado pelo pensamento. É nesse sentido que o filme biográfico como testemunho, parte integrante da teoria do realismo e de suas formas de representação, começou a ser pensado após a abertura dos campos de concentração, devido às imagens realizadas por americanos, soviéticos e nazistas, bem como pela descoberta de notas feitas pelos prisioneiros e pelos arquivos de imagens criados posteriormente e reconstituídos até hoje, como forma de recuperar e certificar dados da história. Podemos citar vários exemplos desses arquivos contemporâneos, como o texto em que o diretor de cinema, Samuel Fuller, relata, detalhadamente, o método de filmagem que empregou ao participar como soldado da liberação do campo de Falkenau, assim como o documentário Falkenau: vision de l’impossible, de Emil Weiss, realizado em 1988, que conta a história, vivida por Fuller, que também assina o roteiro do filme; e a exposição fotográfica Mémoires des camps, que ocorreu em Paris, em 2001, revelou várias imagens que haviam circulado, até então, atribuídas a determinados lugares; todavia, com a exposição, certificou-se que ocorreram em outros locais, assim como, na mesma exposição à certificação de imagens que haviam sido creditadas aos nazistas, foi agora atribuída aos soviéticos. A criação dessas imagens tem sua importância na construção da história e da memória, mas as estratégias estéticas para alcançar esses objetivos é que são questionadas e que imprimem a sua valoração. Claude Lanzmann (1985), que, com o inquestionável Shoah, criou um dos mais importantes arquivos construído de maneira inclassificável, defende a ideia de que os arquivos visuais precisam possibilitar a imaginação e o poder de evocar o acontecimento. Por outro lado, Didi-Huberman (2003) defende, em seu livro Images, malgré tout, a importância incondicional da construção de arquivo de imagens. O autor afirma que as imagens não bastam por elas mesmas; para que elas possam significar, precisam ser contextualizadas de forma crítica, como, por exemplo, ressaltar o objetivo da realização, o porquê e como, é o que foi feito, por exemplo, na exposição Mémoires des camps citada acima. Ou seja, para o primeiro, o testemunho retém o privilégio de fazer a história, porém, para o segundo, esse poder está na imagem. 278—Cristiane Freitas teoria-meios-comunicacao_v1.indb 278 5/20/14 4:31 PM No entanto, temos um consenso em torno da importância do filme biográfico e, consequentemente, da formação de arquivo visual para (re) construção e reorganização da memória, mas a diferença situa-se em como fazê-lo. Esse gênero e suas variações é hoje um dos formatos mais difundidos e utilizados para a exibição de acontecimentos históricos, pois capta as emoções, mediada pela produção da imagem como ouvinte entre o personagem que vivenciou o acontecimento e o espectador. Esse processo criativo ajuda a compreender as dificuldades e atualiza o acontecimento no presente. A at ua l i d a d e d o f i l m e p o l í t i c o O filme político é uma variação possível e frequente do filme biográfico e nos interessa aqui como uma forma de criação e atualização das teorias realistas, especificamente, no que se refere ao filme brasileiro sobre a ditadura militar. Para entendermos o que é filme político partimos da ideia de Walter Benjamin (1991), para quem, na era da reprodução, surge uma nova função do cinema que é política, ou seja, o filme vale pela exposição e não pelo culto. Podemos dizer, também, que filme político é o gênero que aborda como tema principal a maneira como é governado um Estado e o exercício do poder, a sua conquista e a denúncia dos seus excessos. Apresenta em seu cerne a ideia de busca sobre um aspecto do real que foi ocultado, tendo a sua força sustentada por um trabalho de investigação que não é feito pelas instituições oficiais, propondo, assim, uma reconstrução da história e mesmo uma intervenção do real. Por vezes, os filmes políticos são reduzidos a gêneros como filmes de propaganda ou filmes de militante.4 O trabalho técnico-artístico, então, torna-se visível nos filmes políticos e históricos não pela representação que consiste a roteirizar os personagens de ficção, mas como meio de produção de sentido e afetos. É assim que foram legitimados vários movimentos de vanguarda, entre eles o Cinema Novo, 4No final dos anos 70, o filme militante passou a ser designado também como “filme de intervenção”. Essa mudança deve-se a afirmação em manter a vontade de agir sobre a sociedade, porém abandonando o dogmatismo característico dos anos 60. A ideia era que o “filme de intervenção” pudesse dialogar com outros filmes que não faziam parte do sistema político, mas a partir de determinadas estruturas socioculturais pudessem propor transformações. As teorias do cinema e a atualização dos gêneros— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 279 279 5/20/14 4:31 PM ancorados na recusa violenta a ideia que separa a arte e a vida, permitindo a integração das dimensões políticas e ideológicas. Tal constatação nos leva a afirmar que o filme político não precisa contar uma história mesmo que tenha elementos narrativos; não necessita obedecer às regras da coerência e da verossimilhança; e, o seu fim pode ser aberto, pois o que importa é a busca por um processo sobre o real. Ou seja, nesse gênero fílmico, o que conta em termos estéticos é a análise dessa busca, possibilitando ao espectador usufruir dos seus meios para efetuar a compreensão do real. Os cineastas que valorizam explicitamente o acontecimento histórico marcado pela revolta ou insurreição, geralmente, defendem uma causa. Nesse sentido, podemos citar, entre os realizadores brasileiros, Lúcia Murat e Silvio Tendler, ex-militantes que tem a temática sobre a ditadura militar e a ideia do político diretamente relacionadas a suas filmografias. O que nos parece evidente, hoje, é que a “ação revolucionária” dos cineastas se exerce em outro lugar e, principalmente, de outra maneira. Isto significa que a maioria dos cineastas contemporâneos, identifica o acontecimento histórico pela dramatização da reconstituição do fato, ou seja, os realizadores não analisam ou questionam os problemas impostos pelo passado ou sua relação com o presente, não fazem uma reconstrução pela via do imaginário que permite compreender a história e a tornar inteligível. No entanto, o cinema tem a liberdade de narrar praticamente o que quiser em nome da criatividade artística podendo ser legitimado ou não pelos teóricos, pela crítica e/ou pelo público. O que é isso companheiro? (Bruno Barreto, 1994) é um exemplo de ficção controverso e polêmico dessa ideia, devido ao tratamento espetacular e novelesco dado à narrativa, o filme foi prestigiado pelo público e atacado pela crítica e pelos militantes que inspiraram personagens da trama. Ou ainda, em relação ao documentário podemos citar o recente Marighella, de Isa Grinspum Ferraz (2012), que fez um filme homenagem ao tio guerrilheiro e não obteve praticamente público algum. Dessa forma, podemos nos indagar se esses filmes ainda são políticos. Segundo Laurent Dubreuil (2011, p. 32), em artigo no Cahiers du Cinéma, os filmes políticos contemporâneos podem ser definidos como tendo por estratégia estética “o realismo cidadão ou cívico”. Em oposição ao realismo socialista que se dirigia à classe trabalhadora/oprimida e justificava a sua 280—Cristiane Freitas teoria-meios-comunicacao_v1.indb 280 5/20/14 4:31 PM autoridade em função da verdade; o realismo cívico, menos dogmático, é endereçado aos cidadãos tentando neutralizar toda a forma de poder que não seja “correta”. Nesse sentido, o conteúdo político não deve se submeter à construção da narrativa, a composição das imagens e aos diálogos. Esse último tem, regularmente, a informação como principal função. Em sua maioria, os filmes biográficos recentes, trazem à tona o passado que não passa e que continua a ter um papel fundamental no agenciamento coercitivo na sociedade brasileira atual. Esses filmes despolitizam a sua temática de maneira implícita e a (re)politizam de outra forma através do uso da seguinte ideia recorrente: a ocultação do regime ditatorial de maneira indispensável à ação fílmica. Por exemplo, em grande parte dos filmes atuais encontramos cartões explicativos e voz em off com dados históricos pontuais, como ano e identificação do local onde se passa a cena ou trama, mas sem a problematização do conflito histórico. A (re)politização tem por meta promover o reconhecimento e a denúncia pela repetição, como, por exemplo nos filmes sobre a ditadura militar brasileira a recorrência às cenas de tortura, mostrando ou relatando algumas técnicas utilizadas pelos militares, como o pau-de-arara, a cadeira do dragão e os afogamentos. Mas alguns filmes atualizam o realismo, como Diário de uma busca (Flávia Castro, 2011) em que a cineasta relata a experiência do seu pai, Celso Gay de Castro, militante político dos anos 60, exilado e morto em Porto Alegre em circunstâncias não esclarecidas. O fascínio de Flávia Castro pelo personagem/pai comprova a importância da realização de filmes biográficos como forma de entendimento de acontecimentos traumáticos, além disso, a reconstituição histórica é marcada pelos lugares em que o pai viveu e a ideia do filme em resgatar a fragilidade afetiva e a força ideológica do militante demonstra a atualidade do político. Essa ideia é uma das estratégias utilizadas, hoje, para mostrar nas telas a (re)politização. A construção da memória não permite mais a continuação da luta, mas apresentar-se ao presente a partir de uma versão do passado baseada em uma demanda tácita de reparação. Essa demanda pode ser exemplificada pelo documentário Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009), imigrante escandinavo que se tonou empresário bem-sucedido no Brasil. Boilesen é nome As teorias do cinema e a atualização dos gêneros— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 281 281 5/20/14 4:31 PM de rua em São Paulo, mesmo tendo participado ativamente do financiamento à tortura no país. É nesse sentido que Diário de uma busca e Cidadão Boilesen podem ser considerados filmes políticos, pois estabelecem uma relação estreita entre estética e manifestação política: a dialética é inseparável do realismo que se libera da representação contínua da realidade para dar a essa mesma realidade todas as visibilidades possíveis através de uma câmera que deixa revelar as “impurezas”, e os seus personagens não são vitimizados. Em outros filmes são apresentados diálogos convencionais, construções narrativas lineares, montagem banal. Essas estratégias estéticas tem uma missão: construir uma política que mantém a força em um realismo em que a representação não se diferencia. Essa forma é a do pragmatismo informativo e não deixa espaço para a criação artística. A (re)politização não acontece somente nos filmes mas também nas ruas. O militante, em uma organização revolucionária nos anos 1960, geralmente, não era um meio de transmissão de ordens e conselhos vindos de cima, mas um indivíduo consciente que se apropriava das análises e das orientações da sua organização ou poderia até participar da sua elaboração. Hoje, a política mudou e esse “personagem” também, estamos distantes do militante profissional atrelado aos aparelhos ideológicos, como os comunistas, anticolonialistas, feministas, sindicalistas e outros que mantinham presença nas ruas, nas universidades e nas mídias. O militantismo reaparece marcado pela irreverência que oxigena de alguma forma a política tradicional, como no Fórum Social Mundial no início dos anos 2000; na mobilização tecnológica das redes sociais no movimento conhecido como Primavera Árabe em 2011; e, na sua forma mais radical desempenhada pelos jovens islamistas kamikazes. O filme político mudou, principalmente, em relação aos aspectos formais (passou a ser mais convencional), ao discurso (passou a ser menos dogmático) e ao modo de produção (passou a ser mais democrático). O cinema político, originalmente, tinha por objetivo contribuir para transformação do homem e da sociedade através da imagem cinematográfica como pregava os movimentos de vanguarda nos anos 1960, entre eles, o Cinema Novo. No entanto, o cinema não pode transformar o que quer que seja se ele mesmo não se transforma e isso ocorre de forma diferenciada de 282—Cristiane Freitas teoria-meios-comunicacao_v1.indb 282 5/20/14 4:31 PM acordo com os seus objetivos que podem ser externos (oriundos da sociedade) e internos (o cinema que se encarrega de fazer as transformações). É inútil pretender a mutação da sociedade sem reformular o cinema. Essa mudança do homem e da sociedade passa também pela transformação do espectador ao filme que diz respeito ao gênero político. O espectador não aceita somente o filme como uma forma de divertimento e evasão das relações sociais, mas como meio de confrontar as suas condições reais de existência com o objetivo de alterá-las. Hoje, o que o cinema apresenta é a diluição do político e uma dificuldade enorme de olharmos para nossa história. Essa dificuldade se justifica pela maneira como a história se desenvolveu e a solução para o seu entendimento presente nos filmes atuais. O cinema contemporâneo não se sustenta na revolução, é, em sua maioria, informativo, pragmático, linear, convencional, mas filmes lúdicos e fragmentados começam a surgir, como Diário de uma busca, engajado em uma crítica política, mostra a interrupção de uma ordem. Assim, o cinema pode fazer obras exemplares com a narrativa histórica e a concepção realista: construir a emoção através da renovação do olhar, construir um pensamento pela metamorfose de um combate político. O cinema do “realismo cidadão” não faz a história, ele serve às convenções e a uma sociedade com ausência de futuro. Não existe, portanto, uma nostalgia do gênero cinematográfico político, no sentido de que aquilo que era feito no passado era melhor, mas a necessidade da lembrança para reconstruir a memória sustentada pela ideia de (re)politização. A l g u n s a p o n ta m e n t o s s o b r e c i n e m a c o m o c r ia ç ã o d a r e a l i d a d e O filme biográfico e político é parte tanto da política, da memória e da história atrelado à discussão sobre o realismo e nos remete, então, a ontologia da imagem cinematográfica. Para compreender a questão, precisamos partir da definição de imagem que, frequentemente, segundo Alain Badiou, é entendida a partir da psicologia da percepção em que “a imagem é uma relação de conhecimento à realidade”. (BADIOU, 2010, p. 357) Partindo desse ponto de vista, é As teorias do cinema e a atualização dos gêneros— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 283 283 5/20/14 4:31 PM assim que se estabelece a relação do espectador com o filme: a imagem que ele constrói a partir da imagem que está na tela. Contudo, em última instância as imagens não são o filme em si; elas são a relação que fazemos do filme, ou seja, a associação entre imagens. Ao se opor a essa relação, e, no entanto, a esse ponto de vista, Gilles Deleuze pensa o cinema como conceito, transformando a imagem em realidade e não como algo da ordem da consciência. É assim que o autor agrupa imagem e movimento, criando o conceito chave da sua obra monumental sobre cinema “Imagem-Movimento” (1983), com a seguinte definição: “o cinema não é uma imagem em que se agrega o movimento, ele nos dá imediatamente uma imagem movimento. O cinema nos dá um corte, mas um corte móvel e não um corte imóvel + o movimento abstrato”. (DELEUZE, 1983, p. 11) O cinema não é, então, a representação do movimento, mas uma criação. Nesse sentido, ele é feito de imagens, mas a imagem não é uma representação. Como escreve Badiou: “a imagem é com o que o cinema pensa, porque o pensamento é sempre uma criação”. (BADIOU, 2010, p. 358) Nesse sentido, o cinema é a realidade e não uma representação, pois ele se constitui em uma forma de pensamento em movimento onde há criação e abstração. Pode ser exemplificado naquilo que Deleuze definiu como “imagem-afeição” que explicita o afeto presente na imagem tanto nos personagens quanto nas coisas e corrobora as ideias de Kracauer e Bazin, apresentadas anteriormente, sobre o realismo no cinema. Podemos nos perguntar, então, como e quais os limites da representação impostos pelo realismo? As diferentes mídias e suas técnicas, cada vez mais entranhadas no cotidiano, possibilitam que o acontecimento histórico torne-se um simulacro; o efeito de real acaba invadido de imagens extremas, que, por vezes, viram míticas (como a cena de corpos enfileirados e olhares perdidos dos prisioneiros dos campos de concentração), substituindo, assim, o impacto pela indiferença. Além disso, esse debate é reforçado pela exposição indiscriminada de imagens visuais de grandes catástrofes ligadas à ideia da sua irrepresentabilidade,5 além de contribuir para a sua banalização e para 5 Podemos citar o cineasta Claude Lanzmann, o filósofo Jean-François Lyotard e o psicanalista Gérard Wajcman, entre outros, como pensadores de diferentes áreas que contribuem para o debate sobre as teorias realistas e defendem a ideia de irrepresentação das catástrofes históricas. 284—Cristiane Freitas teoria-meios-comunicacao_v1.indb 284 5/20/14 4:31 PM a inconsistência de um rigor histórico. Assim, toda a ideia de veracidade, que sempre permeou o realismo, perde a importância para as questões atreladas à representação. Tal proposição é marcada pelo uso de estratégias estéticas que se apropriam de uma determinada técnica que deve ser repetida indefinidamente para permitir ao espectador assimilá-las, rapidamente, criando, assim, um código de comunicação apreendido por todos. É dessa maneira, que, segundo Jean-François Lyotard, “se multiplicam os efeitos da realidade ou os fantasmas do realismo”. (LYOTARD, 1988, p. 14) Ainda segundo ele, os que recusam o questionamento das regras estabelecem uma comunicação com o público e um desejo intrínseco de mostrar a realidade, utilizando-se de objeto e situações capazes de satisfazer ao espectador, mesmo que o tema, a princípio, seja o mesmo: o mal. Este é o realismo didático e desprendido de abstrações. Nesse sentido, as diferentes mídias que formam os arquivos de imagem visual têm paradoxalmente, como afirma Lyotard, “o poder de (ir)realizar os objetos cotidianos, os papéis da vida social e as instituições”. (LYOTARD, 1988, p. 14) A essas representações, também ditas realistas, restam somente lembrar a realidade. Nos anos 1960, a efervescência em torno do político e das artes, devido aos acontecimentos históricos, fez com que autores como Jean-Luc Godard e Jacques Rivette, somente para citar alguns, questionassem o poder do cineasta e a essência do filme político, defendendo a proibição do uso de estetização excessiva nesse gênero fílmico. O sentido dessa interdição se sustenta na ideia de que o filme político precisa evoluir para além do ponto de vista que se desenvolve na esfera representativa, ou seja, o cineasta recusa a dramatização, pois essa não mostra os “fatos” da vida somente propõe a sequencialidade desses fatos através da ficção. Assim, a transcrição do acontecimento histórico não é justificada pela obediência às regras de um gênero fílmico ou às necessidades de uma progressão dramática, mas a escolhas que selecionam situações e personagens que não acontecem ao acaso. Toda criação do realizador consiste em se informar da melhor maneira possível para alimentar o drama da sua ideologia e a do espectador. Segundo Marc Ferro (1989, p. 33), em Cinema e História, a preocupação do cineasta com a exatidão de detalhes, eu cito “tem um papel As teorias do cinema e a atualização dos gêneros— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 285 285 5/20/14 4:31 PM de tapa-sexo cuja função é tornar opaca a ideologia latente do filme, a perversão de fundo que o faz se submeter a um passado que poderia ser apresentado de outra maneira”. Podemos constatar, então, que as teorias realistas contribuem para a construção de uma estratégia estética valorativa que se distancia da representação da realidade e se aproxima da sugestão, do tensionamento de regras técnicas e da criação de um pensamento sobre o real. E os filmes biográficos são uma ferramenta que permite usufruir dessa possibilidade em todas as suas instâncias. R e f e r ê n c ia s BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma. Paris: Cerf, 1993. BADIOU, Alain. Cinéma. Paris: Nova, 2010. ______. Petit Manuel d’inesthétique. Paris: Seuil, 1998. BENJAMIN, Walter. Écrits français. Paris: Gallimard, 1991. DELEUZE, Gilles. L’image-mouvement. Paris: Minuit, 1983. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images, malgré tout. Paris: Minuit, 2003. DUBREUIL, Laurent. Le réalisme citoyen. Cahiers du cinéma, n. 665, mar. 2011. FERRO, Marc. Révoltes, révolutions, cinéma. Paris: Centre Pompidou, 1989. FULLER, Samuel. Le camp de concentration de Falkenau. Cahiers du cinema, Paris, n. 656, 2010. 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Neste trabalho, em particular, trazemos um levantamento inicial de 190 artigos, coletados em sete periódicos nacionais da área de comunicação. teoria-meios-comunicacao_v1.indb 287 287 5/20/14 4:31 PM A proposta de estudar a produção científica sobre internet nasceu da percepção de que cada vez mais a área de comunicação tem participado e provavelmente até liderado, no âmbito das ciências sociais, o debate sobre o tema. Como evidência, temos os grupos de trabalho criados no âmbito dos eventos da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação (Compós) e da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom); a fundação, no ano de 2006, da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber); e o lançamento de periódicos científicos inteiramente dedicados ao debate da internet e cibercultura, como: a revista Cibercultura, a 404notFound e as outras tantas que destinaram dossiês especiais sobre o tema. Neste sentido, acreditamos que há no campo dos estudos de internet a produção de um material científico considerável que vale a pena ser analisado na perspectiva de nos auxiliar na compreensão da formação desses estudos, seu cenário atual e apontar possibilidades futuras. Portanto, nos debruçamos na análise da produção científica de sete periódicos brasileiros da área de comunicação, que no ano de 2011 eram as únicas que gozavam da avaliação Qualis B1: Famecos, Galáxia, Contracampo, Intercom, E-compós, Matrizes e Comunicação, Mídia e Consumo, que nos trouxeram a amostra inicial de 190 artigos científicos. Produção científica e estudos de internet Os estudos de internet se tornaram mais comuns a partir da década de 1990. Autores como Posthill (2010) e Wellman (2004) propõem divisões para compreendermos a história destes estudos. Via de regra, estes pesquisadores apontam para uma, duas ou três fases da pesquisa divididas nas décadas de 90, anos 2000 e, mais recente, no final desta década. Essas fases, em ambos os autores, nos revelam o amadurecimento teórico e metodológico dos estudos da área. Para além da dicotomia que polarizou o início do debate, utópico x distópicos, real x virtual, online x offline, hoje se aprimoram as abordagens metodológicas e o debate epistemológico, que auxiliou na construção mais clara do que é essa área de estudos. 288—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 288 5/20/14 4:31 PM O recorte temporal da nossa análise considerou, sem dúvida, o regaste histórico destes autores. Neste sentido, a década de 1990 marcaria a primeira fase, no qual a produção científica refletia, como citamos anteriormente, a novidade e a ampliação do fenômeno. Entretanto, considerando o contexto brasileiro, marcamos o início das nossas buscas para o ano de 1998, que, segundo Wellman (2004), é o marco que dá início a segunda fase, caracterizada pela popularização do acesso à rede, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Considerando que a internet no Brasil começou a se popularizar aproximadamente entre os anos de 1995 e 1997, definimos o ano de 1998 como um momento em que possivelmente a comunidade acadêmica brasileira já começava a debater o tema. Entretanto, nas sete revistas analisadas não encontramos nenhum artigo publicado no ano de 1998. É somente a partir de 1999 que se começa a tímida produção sobre a rede mundial de computadores. Adriana Amaral e Sandra Montardo (2010, 2011), que também se dedicaram ao exame da produção científica sobre os estudos de internet, definiram como recorte temporal de análise o lapso entre os anos de 2000 a 2010, que, segundo Posthill (2010), seria a segunda era dos estudos da internet. Para as autoras, o cenário brasileiro de pesquisa pode ser dividida em duas fases. Na primeira metade dos anos 2000, [..] começam a surgir estudos mais temáticos com enfoques comparativos com outras mídias (impresso, audiovisual etc.) e análise estrutural de ferramentas online. Há também, uma intensa preocupação com as noções de espaço (ciberespaço e seus impactos na sociedade contemporânea), enfoques entre a relação entre o imaginário da cibercultura e o da pós-modernidade. (AMARAL; MONTARDO, 2010, p. 63) Já a segunda fase desta década, segundo as autoras, foi caracterizada por recortes e amostras mais bem definidas. Nesta fase, elas também apontam uma questão interessante: as questões metodológicas, negligenciadas no início da pesquisa, passaram a ser consideradas com mais atenção. À guisa de conclusão as estudiosas consideram que as preocupações metodológicas no Brasil e nos Estados Unidos tomaram rumos diferente: O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 289 289 5/20/14 4:31 PM De maneira geral, percebe-se que, no Brasil, há a predominância de estudos teóricos sobre a área de interesse considerada, sendo que os estudos empíricos, apesar de terem crescido entre 2006 e 2010, ainda são inferiores numericamente que os puramente teóricos. Nos Estados Unidos, porém, observa-se o contrário: por lá, a pesquisa na área começa com o enfoque empírico e termina com um aumento de produção teórica. (AMARAL; MONTARDO, 2010) Este resultado vai ao encontro dos primeiros resultados que encontramos na pesquisa mais ampla que estamos realizando. Ao analisar os artigos publicados sobre o jornalismo online, por exemplo, lançamos a pergunta sobre quais foram os procedimentos metodológicos utilizados. Chegou-se a conclusão que as investigações empíricas são em número menor que as puramente teóricas e que a abordagem majoritariamente privilegiada é a qualitativa. É somente nos anos 2010 e 2011 que encontramos mais pesquisas quali-quanti ou estritamente quantitativas. (SOUSA, 2012) Um aspecto interessante é que a análise da produção científica na área de comunicação, de modo geral, tem sido abraçada por alguns autores, como: Romancini (2006, 2011), Araújo (2005, 2006), Kunsch (1997, 2003), Primo e colaboradores (2008) e outros. Com relação aos estudos de internet, têm-se menos pesquisadores, mas com contribuições muito interessantes e resultados capazes de já promover comparações entre os achados, como evidência temos as supracitadas autoras Amaral e Montardo (2010, 2011) e o livro Métodos de pesquisa em internet (FRAGOSO, RECUERO, AMARAL, 2011), uma obra muito importante para compreender esse campo de estudos. Finalmente, é importante observar que analisar a produção científica é um sinal de amadurecimento da área. É preciso ler os pares e intensificar o diálogo com eles para que uma área do conhecimento amadureça: [...] uma forma de unir o rigor científico com resultados relevantes dentro de um domínio de estudo é adquirir o hábito de repassar nossas bibliografias de um modo mais sistemático e rigoroso, ser capazes de reconhecer nossos avanços, assim como de criticar nossos métodos ou resultados. (MELLADO, 2010, p. 126, tradução nossa) 290—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 290 5/20/14 4:31 PM Aspectos metodológicos Para discutir os procedimentos metodológicos dividimos este tópico em dois: a especificidade da amostra e os procedimentos de coleta e análise de dados. Especificidade da amostra Seguramente, uma das primeiras questões que se pode colocar sobre esta pesquisa é relativa à especificidade da amostra. Por que os periódicos? Porque não as teses, os artigos publicados em congressos ou os dossiês temáticos das revistas especificamente voltados para os estudos de internet? As possibilidades são muitas e, certamente, continuam a nos seduzir. A ideia de analisar os artigos publicados nas sete revistas trata-se de um levantamento inicial/geral, que delineia um cenário amplo e nos dá condições de tomar outras decisões, como ampliar a amostra ou partir para outras naturezas de produção científica. Neste sentido, escolhemos os sete periódicos científicos melhores avaliados pelo Sistema Qualis, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no ano de 2011, são eles: Contracampo, E-compós, Famecos, Galáxia, Intercom, Matrizes e Comunicação, Mídia e Consumo. Tratase de revistas respeitadas na área da comunicação que aceitam somente publicação de autores que são doutores, doutorandos, mestres e mestrandos. Dois destes periódicos pertencem às duas maiores associações de pesquisadores em comunicação do país: Intercom e Compós. E os outros cinco estão ligados a programas de pós-graduação respeitados e que existem há muito tempo: Contracampo, Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense; Matrizes, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo; Galáxia, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Famecos, Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; e Comunicação, Mídia e Consumo, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM/SP). O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 291 291 5/20/14 4:31 PM É interessante observar que essas cinco revistas pertencem a programas de pós-graduação que estão no Sul e Sudeste do Brasil. Na verdade, três delas estão em São Paulo, uma no Rio de Janeiro e outra no Rio Grande do Sul. A produção qualificada e respeitada destes periódicos e sua boa avaliação, pela Capes, nos faz acreditar na capacidade de influência deles, o qual pode levar autores que pretendem se inserir estrategicamente no cenário nacional do debate sobre comunicação a publicarem nestes espaços. Com relação ao recorte temporal, como dissemos anteriormente, escolhemos o ano de 1998 como o primeiro para analisar desde o princípio essa segunda fase de estudos de internet, proposta por Wellman (2004), e o início da pesquisa no Brasil. Como colocamos, neste ano não encontramos publicação sobre o tema. O final da nossa busca foi o ano de 2011 na tentativa de abarcar o máximo possível de publicações e compreender a dinâmica e o cenário desses estudos. Dentro deste recorte, é possível fazer uma subdivisão, conforme havia sido anunciado anteriormente por Amaral e Montardo (2010). Isto porque do ponto de vista da quantidade de artigos temos, claramente, um marco: o ano de 2005. De 1998 a 2004 o volume de publicações era baixo e razoavelmente estável. No entanto, a partir de 2005 a quantidade de artigos sobre internet aumenta vertiginosamente: Gráfico 1 - Quantidade de artigos publicados por ano Fonte: Elaboração própria. 292—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 292 5/20/14 4:31 PM Como podemos perceber no gráfico acima, somente no ano de 2005 houve mais publicações do que em todo o período de 1998 a 2004. Certamente, tem-se aí um achado importante para nossa pesquisa. Mesmo considerando as limitações da nossa amostra, é possível que os estudos de internet tenham ganhado mais força no Brasil, na área de comunicação, a partir da segunda metade dos anos 2000. Se considerarmos a fundação da ABCiber como um marco, o que aconteceu em 2006, isto pode explicar o aumento do número de pesquisadores e publicações que deu condições deste surgimento e também o alto volume de artigos publicações em 2007, ano em que, nos periódicos analisados, houve a maior quantidade de trabalhos. Essas considerações são hipóteses acerca da produção dos estudos de internet. Nada obstante, esclarecemos que para efeito da análise realizada para produção deste artigo, em alguns momentos, utilizaremos esses dois recortes de tempo no sentido de compará-los. Procedimentos de coleta e análise de dados Para realizar este estudo nos utilizamos dos procedimentos bibliométricos, que são comumente utilizados na análise da produção científica. Estes procedimentos, resultado do cruzamento de áreas como a matemática e a estatística, ficaram especialmente conhecidos por permitirem as análises das citações contidas nas produções científicas: dentro da bibliometria, particularmente, a análise de citações permite a identificação e descrição de uma série de padrões na produção do conhecimento científico. Com os dados retirados das citações pode-se descobrir: autores mais citados, autores mais produtivos, elite de pesquisa, frente de pesquisa, fator de impacto dos autores, procedência geográfica e/ou institucional dos autores mais influentes em um determinado campo de pesquisa; tipo de documento mais utilizado, idade média da literatura utilizada, obsolescência da literatura, procedência geográfica e/ou institucional da bibliografia utilizada; periódicos mais citados, “core” de periódicos que compõem um campo. (ARAÚJO, 2006b) O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 293 293 5/20/14 4:31 PM Para além das citações, os procedimentos bibliométricos nos permitem compreender melhor o cenário atual e as perspectivas de uma área de estudos e seu capital científico, ou seja, as redes de cooperação formadas e o fluxo de influências entre os pesquisadores. Para analisar o cenário de produção científica de uma determinada área há um conjunto de indicadores bibliométricos que podemos lançar mão, tais como: produção, ligação e citação. (GRÁCIO; OLIVEIRA, 2011) Para efeito deste trabalho, utilizaremos os indicadores de produção e de ligação. Os indicadores básicos de produção são constituídos pela contagem do número de publicações do pesquisador, grupo de pesquisadores, instituição ou país e objetivam refletir seu impacto junto à comunidade científica a qual pertencem, dando visibilidade àqueles mais produtivos, bem como às temáticas mais destacadas de uma área do conhecimento. (GRÁCIO; OLIVEIRA, 2011, p. 252) Com os indicadores de produção buscamos compreender quem são os autores da área da comunicação que se dedicam aos estudos de internet, os autores mais produtivos e quais as regiões brasileiras e os estados da federação aos quais pertencem. Além disso, nos interessou conhecer o gênero dos pesquisadores e as instituições as quais são provenientes. Esses achados nos permitem compreender melhor a história destes estudos, a sua composição e a média de produtividade. O outro conjunto de indicadores que nos interessou foi o de ligação, visto que consideramos a autoria compartilhada como um sinal de amadurecimento do campo. Como os autores se ligam? Como eles compõem grupos de pesquisa e redes de colaboração? A colaboração científica entre autores ou instituições supõe uma consorciação de hipóteses e objetivos centrais de um projeto, o estabelecimento de uma divisão de trabalho, a interação entre os investigadores, o compartilhamento de informações e a coordenação destas diferentes relações do investimento conjunto. (GRÁCIO; OLIVEIRA, 2011, p. 252) Portanto, para compreender este quesito levantamos a quantidade de artigos realizados em coautoria ou autoria múltipla e os de assinatura individual. Fizemos esta análise, inclusive, na produção dos pesquisadores com maior média de publicação, isto porque, entre outras razões, há pesquisa- 294—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 294 5/20/14 4:31 PM dores que acreditam: [...] que autores mais produtivos tendem a ser mais colaborativos”. (MAIA; CAREGNATO, 2008, p. 24) P e r f i l : p r o d u t i v i d a d e , au t o r ia e d i s t r i b u i ç ã o geográfica e institucional Para analisar a amostra de 190 artigos publicados nos últimos 13 anos, nos principais periódicos científicos brasileiros, e traçar um perfil inicial dos estudos de internet no Brasil, elegemos três aspectos importantes de análise: produtividade, autoria e distribuição geográfica e institucional. Para tornar mais claro os achados encontrados, vamos apresentar separadamente cada um desses aspectos. Mais uma vez é importante destacar que para efeito de compreender melhor o cenário e as tendências dos estudos de internet, apresentaremos alguns dados separados pelos recortes de tempo: 1998 a 2004 e de 2005 a 2011. Produtividade A produtividade se refere ao total de artigos publicados sobre internet e a média de publicação por autor nos periódicos selecionados. Seguramente, para uma análise mais rica destes resultados, seria interessante comparar com outros trabalhos que tiveram objetivos semelhantes. No entanto, no que concerne à produtividade e ao perfil da investigação, de modo geral, não encontramos muitos interlocutores. Aqui apresentaremos as médias de publicação e a variação por ano. Em primeiro lugar, vamos analisar a média de publicação dos autores. No período total analisado, 1998 a 2011, observou-se que 125 autores foram responsáveis pela publicação dos 190 artigos da nossa amostra. Como é possível observar na Tabela 1, a maioria dos autores publicou somente um artigo. Encontramos oito frequências de publicações que representam médias homogêneas até chegarmos às maiores médias. Isto quer dizer, os autores que publicaram entre 9 e 3 artigos, no período total de análise, somam menos de 10%. A distribuição entre as frequências dos autores que publicaram mais de O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 295 295 5/20/14 4:31 PM um trabalho é muito semelhante. O cenário só se modifica quando observamos as médias de publicação de 2 e 1 artigos. Efetivamente, a proporção de autores que publicou somente um artigo nestas revistas nos últimos 13 anos é de quase 80%. Ou seja, a média de produtividade é muito baixa, o que pode ser explicado pela grande transitoriedade dos autores no interesse pelo tema internet, o qual pode denunciar uma falta de investigação sistemática na área. Tabela 1 - Frequência de publicação (%) dos autores Frequência de publicação de artigos Número de autores (%) 9 1 0,8 8 2 1,6 6 1 0,8 5 1 0,8 4 2 1,6 3 7 5,6 2 14 11,2 1 97 77,6 Total 125 100 Fonte: Elaboração própria.1 Autoria A proposta de compreender a autoria é fundamental para a análise da produção científica. Neste item, vamos focar nossa atenção em quatro aspectos: o número de autores, dos 190 artigos analisados; o gênero deles; os pesquisadores com maior índice de produtividade, que provavelmente se destacam como influentes na pesquisa pela sua inserção mais estratégica e continuidade dos estudos sobre o tema; e a questão das coautorias. 1 Para efeito de construção desta tabela, levou-se em conta somente o primeiro autor de cada artigo. 296—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 296 5/20/14 4:31 PM Na mostra, como já observado, foram encontrados 125 autores2, destes quase 52% são mulheres e 48% homens, o qual revela que, no âmbito pesquisado, há uma considerável presença feminina. A presença das mulheres foi crescendo com o passar dos anos. Na primeira fase da pesquisa, 1998 a 2004, a presença de mulheres como primeira autora era menor que 35%. É somente na segunda fase, 2005 a 2011, que essa proporção se inverteu. Outro aspecto importante de considerar no que concerne à autoria são os autores mais produtivos. Como vimos na Tabela 1, a média de publicação é de um artigo por autor. Não obstante, como esta mesma tabela acusa, há autores que publicaram um volume maior de artigos. Escolhemos o recorte de 13 anos, justamente para que, com o lapso de tempo maior, diminuísse a nossa margem de erro de autores mais produtivos. Elegemos como mais produtivos os autores que publicaram 3 ou mais artigos. Gráfico 2 - Proporção de homens e mulheres na produção científica sobre internet Fonte: Elaboração própria.3 2 Para efeito desta análise, consideramos apenas o primeiro autor. 3 Para efeito de construção desta tabela, levou-se em conta somente o primeiro autor de cada artigo. O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 297 297 5/20/14 4:31 PM Quadro 1 - Autores com maior produtividade Autor Nº de artigos Eugênio Trivinho 9 Alex Primo 8 Erick Felinto 8 Raquel da C. Recuero 6 André Lemos 5 Adriana Amaral 4 Francisco Paulo Jamil 4 Claudia Irene de Quadros 3 Fernanda Bruno 3 Francisco Rüdiger 3 Gisela G. S. Castro 3 Sandra P. Montardo 3 Simone Maria Andrade Pereira de Sá 3 Suely Fragoso 3 Total 65 Fonte: Elaboração própria.4 O autor com maior produtividade, no âmbito da nossa pesquisa, foi Eugênio Trivinho, que publicou 9 artigos. Dos 14 autores destacados pela maior produtividade, o maior grupo é o que publicou 3 artigos, que representa metade da amostra. No grupo dos autores mais produtivos, é também possível perceber que a proporção por gênero, verificada na amostra total, se mantém: há um pouco mais de mulheres do que homens. Entretanto, as três maiores médias de publicação pertencem aos homens. A importância de se conhecer/nomear os autores mais produtivos reside no fato de que eles foram responsáveis por mais de um terço da produção científica analisada em nossa amostra. Ou seja, dos 190 artigos, assinados por 125 primeiros autores, eles foram responsáveis por 65. Isto implica dizer que 11% dos autores assinaram mais de um terço das publicações. Certamente, 4 Para efeito de construção desta tabela, levou-se em conta somente o primeiro autor de cada artigo. 298—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 298 5/20/14 4:31 PM eles assumem uma posição de liderança e, provavelmente, de forte influência entre o grupo dos pesquisadores da área. E, ao contrário da maioria dos autores, que talvez tenham uma atuação mais pontual no que se refere aos estudos de internet, eles, pelo volume e qualidade da sua produção, têm uma adesão maior ao tema. Assim colocado, considerando que um dos objetivos desta pesquisa é conhecer melhor a história e composição dos estudos de internet, mesmo considerando as limitações da amostra, certamente, este grupo de pesquisadores mais produtivos tem um papel importante na construção desta história. A coautoria é uma pista importante para compreender como os pesquisadores de uma determinada área se organizam e realizam parcerias em suas pesquisas. A avaliação das coautorias pode nos indicar a questão da formação de redes e grupos de investigação. A autoria compartilhada é um indicador importante da colaboração científica. (MAIA; CAREGNATO, 2008) Gráfico 3 - Produção em coautoria (%) Coautorias 26,84% Único autor 73,16% Fonte: Elaboração própria. Nesse sentido, consideramos como muito importante a produção em parceria, na medida em que isso revela, como colocamos antes, o trabalho continuado de um grupo que realiza uma ação estratégia para tornar público os resultados das investigações, divisão de trabalho, negociações e interação. O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 299 299 5/20/14 4:31 PM Considerando isso, o cenário dos estudos de internet revela que ainda carece de amadurecimento. Diante do cenário de baixa produção em autoria múltipla, como evidenciado no Gráfico 3, é oportuno lançarmos a pergunta: diante da possibilidade de trabalhar em parceria, que o próprio meio oferece, por que os estudiosos da área se valem pouco disto? Nada obstante, o cenário da nossa mostra não difere da constatação das autoras Maria de Fátima Maia e Sônia Caregnato, que afirmam que nas ciências sociais a incidência de coautorias é mais baixa do que em outras áreas: Os resultados desses estudos revelam que as colaborações entre autores têm aumentado em todas as disciplinas. Entretanto, o grau de colaboração difere entre elas; ou seja, nas ciências naturais, por exemplo, não só o número de artigos em coautoria como o número de autores por artigos é maior do que nas ciências sociais. (MAIA; CAREGNATO, 2010, p. 20) Outro indicador importante da autoria compartilhada é o da natureza da pesquisa. Conforme as autoras Maria de Fátima Maia e Sônia Elisa Caregnato (2008), os estudos de coautoria revelam que a incidência dela é maior em trabalhos experimentais e menor em teóricos. Compreende-se que a complexidade, diversidade e multiplicidades das tarefas exige o trabalho em grupo nas pesquisas empíricas. Certamente, os trabalhos teóricos não são menos complexos, porém podem representar a empresa de um único investigador. Um exemplo interessante, que pode significar melhor o nosso achado da baixa produção em coautoria, diz respeito a uma pesquisa que Maia e Caregnato (2010) realizaram no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Epidemologia, da Universidade Federal de Pelotas. No período de 1991 a 2002, foram publicados 237 artigos, destes, 220 (93%) eram de autoria compartilhada; e somente 17 artigos (7%) foram de autoria individual. A baixa produção em coautoria, ou autoria múltipla, do nosso quadro geral é também acompanhada pelos supracitados autores mais produtivos. Mais de 70% dos artigos publicados por esse grupo foi de assinatura individual. Embora o número de publicações em autoria compartilhada seja pequeno, mais de 80% dos autores mais produtivos publicaram, pelo menos uma vez, em parceria. 300—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 300 5/20/14 4:31 PM Distribuição geográfica e institucional No item anterior, que aborda os procedimentos metodológicos, já se havia constatado uma concentração geográfica das revistas no Sul e Sudeste do Brasil. Agora vamos analisar outros três aspectos para observar a qualidade de distribuição da produção científica brasileira: região geográfica dos autores mais produtivos; o tipo das universidades, se pública ou privada; e instituição propriamente dita de cada um deles. A maior parte dos pesquisadores com o maior número de artigos publicados na nossa amostra está na região sul, como podemos ver na imagem abaixo. Há duas regiões que não foram representadas: Gráfico 4 – Distribuição geográfica dos autores mais produtivos por região brasileira (%) Fonte: Elaboração própria. Como é possível perceber no gráfico acima, 50% dos autores mais produtivos, da produção científica analisada, está na região Sul, mais de 35% está na Sudeste. As regiões Norte e Centro-Oeste não têm representantes entre os mais produtivos. Isto, certamente, revela uma grande concentração geográfica dos estudos de internet no Sul e Sudeste do Brasil, fato que já havia sido, de alguma forma, anunciado pela concentração geográfica das revistas. O perfil dos estudos de internet na pesquisa em comunicação brasileira— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 301 301 5/20/14 4:31 PM Outro dado interessante é observar em quais estados da federação estão os pesquisadores mais produtivos (apresentados no Quadro 1). Os representantes da região Sul estão praticamente todos no Rio Grande do Sul, excetuando uma pesquisadora do Paraná. Os da região Sudeste estão divididos entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. E na região Nordeste tem-se um pesquisador da Bahia, André Lemos, e um do Ceará, Francisco Paulo Jamil. Com relação ao tipo de universidade, se pública ou privada, verificou-se que a divisão foi equitativa entre os pesquisadores mais produtivos. Logo, metade atua em universidades públicas e a outra metade em privadas. Finalmente, vale a pena destacar as instituições de origem dos pesquisadores mais produtivos, no âmbito do nosso levantamento. Há dois autores na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um em cada uma das universidades a seguir: Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Universidade Católica de Pelotas; Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Universidade do Tuiuti do Paraná; Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Universidade Federal da Bahia; Universidade Federal do Ceará; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal Fluminense; Universidade Feevale. C o n s i d e r a ç õ e s f i n ai s A proposta desta pesquisa foi compreender melhor a história e o desenvolvimento dos estudos de internet na área da comunicação no Brasil. Acreditamos que analisar a produção científica é uma tarefa fundamental para qualquer área do saber. É preciso ler os pares para qualificar o diálogo e compreender o cenário atual e os caminhos que as pesquisas tomam. Embora essa ação ainda seja tímida na área da comunicação no Brasil, percebemos que há cada vez mais pesquisadores interessados no debate da nossa produção científica, que se tornaram nossos valorosos interlocutores. Sem dúvida, a pesquisa em comunicação ainda é muito jovem, especialmente no cenário brasileiro, mas enfatizamos que há um material 302—Janara Sousa teoria-meios-comunicacao_v1.indb 302 5/20/14 4:31 PM bibliográfico suficiente e qualificado que carece de análise, compreensão e debate. Nesta linha de pensamento, é de assustar o quanto os estudos de internet são recentes, data de menos de 15 anos atrás, mas o volume de informações e de publicações, talvez impacto do próprio meio, é também de assustar. Acreditamos que analisar essa produção é uma oportunidade especial, já que estamos vivenciando a formação destes estudos e fazendo a história deles. A nossa amostra de análise, fruto de uma coleta nas sete revistas melhores avaliadas da área de comunicação, no período de 1998 a 2011, nos trouxe 190 artigos e 125 primeiros autores. É interessante observar que de 1998 a 2004 o número de publicações era muito baixo, até que em 2005 houve um vigoroso aumento, indício de um fortalecimento destes estudos. Os resultados da publicação apresentam disparidades regionais que vão desde a origem das pesquisas à origem das instituições aos quais os autores estão vinculados. As regiões Sul e Sudeste concentram sozinhas a maior parte da produção científica dos estudos de internet e a maior parte dos autores, inclusive os mais produtivos. Finalmente, vale destacar um fato importante: quase 80% dos autores publicaram somente um artigo. Este achado, aliado aos outros desta investigação, nos faz inferir que os estudos de internet no país ainda são pouco sistemáticos, embora possuam uma elite produtiva de pesquisa. 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Pesquisador do CNPq. Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM; Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Coautor, dentre outros, de Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências (2001, 12ª edição 2012). Cristiane Freitas Gutfreind Doutora em Sociologia pela Université René Descartes e professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Membro da comissão coordenadora do PPGCom, editora da Revista Famecos e pesquisadora do CNPq. Coautora de Cinema em choque. Diálogos e rupturas (2013). Entre seus interesses se destacam os seguintes temas: teorias do cinema, imaginário, relações do público com a técnica. Éric George Professor da Escola dos Meios, Faculdade de Comunicação e diretor do Programa de Doutorado em Comunicação da Universidade do Quebec em teoria-meios-comunicacao_v1.indb 307 307 5/20/14 4:31 PM Montreal (UQAM). Pesquisador do GRICIS-UQAM. Pesquisador Associado, Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord. Coeditor da Revue Tic&Société. Seus interesses são a economia-política e o pensamento crítico em comunicação e entre suas publicações se encontra a coedição de Où [en] Est la Critique en Communication? (2013). Gaëtan Tremblay Pesquisador do GRICIS da Universidade do Quebec em Montreal. Um dos nomes de referência da pesquisa em comunicação canadense, com vasta publicação, dirigiu vinte livros coletivos e quase duas centenas de artigos e capítulos sobre as comunicações, as indústrias mediáticas, a formação a distância e a sociedade da informação. Um de seus últimos lançamentos é Renewing the Knowledge Societies Vision for Peace and Sustainable Development (2014, Unesco). Giovandro Marcus Ferreira Professor e ex-diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Coordena o Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Midia e o Centro de Estudo em Comunicação, Democracia e Cidadania. Pesquisador do CNPq. Janara Sousa Professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Entre seus interesses de pesquisa estão a metodologia, as tecnologias da comunicação e entre suas publicações se encontram Teoria do meio: contribuições limites e desafios (2009) e a coedição de 100 anos de McLuhan (2102). Kim Sawchuk { [email protected] Professora da Concordia University. Editora do Canadian Journal of Communication e coeditora do Wi: Journal of Mobile Media. Coautora de Sampling the Wireless Spectrum: the politics, poetics and practices of mobile media 308—sobre os autores teoria-meios-comunicacao_v1.indb 308 5/20/14 4:31 PM (2010). Seus interesses de pesquisa são: metodologia, gênero, análise do discurso, comunicação móvel, estudos culturais. Luiz Claudio Martino Professor titular da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Pesquisador do CNPq. Pesquisador convidado no GRICIS, da Universidade do Quebec em Montreal. Seus interesses são a epistemologia, a tecnologia e a história da comunicação. Entre suas publicações estão vários artigos, co-organização de livros, entre eles Teorias da comunicação: poucas ou muitas? (2007). Milton N. Campos Professor do Departamento de Comunicação da Unviersidade de Montreal. Seus domínios de interesse são a ética discursiva, comunidades e redes sociais, tecnologia digitais e intervenções políticas. Entre suas publicações se encontra Navegar é preciso. Comunicar é impreciso (Edusp, 2014). Míriam Cristina Carlos Silva Professora titular do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, na linha de pesquisa Análise de Processos e Produtos Midiáticos. É roteirista e documentarista. Realiza pesquisa sobre a importância do narrador nas narrativas midiáticas. Entre suas publicações temos Apresentação: Olhares, saberes e Partidas: a pesquisa em movimento. Osvando José de Morais Mestre em Literatura Brasileira e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Professor e pesquisador acadêmico em Teorias da Comunicação e da Cultura. Diretor editorial Intercom. Entre suas publicações encontram-se várias coedições, Comunicações e problemas Luiz Beltrão (2013, 4v.) e Quem tem medo de pesquisa empírica? (2011). sobre os autores— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 309 309 5/20/14 4:31 PM Oumar Kane Professor da Escola dos Meios, Faculdade de Comunicação e pesquisador do GRICIS da Universidade do Quebec em Montreal. Interesses: teorias e epistemologia da comunicação, economia política, comunicação ambiental, saúde, comunicação internacional e estudos pós-coloniais. Entre suas várias publicações encontram-se as coedições de Mobilisation et médiation de l’objet technique dans la production de soi (2012) e Identités diasporiques et communication (2013). Owen Chapman Professor da Concordia University e codiretor do Laboratório de Mobile Media. Seu trabalho com arte envolve música, projecção de vídeo, microfones de contato e velhos instrumentos eletrônicos. Seus temas de pesquisa incluem metodologias de pesquisa-criação e a intersecção de arte áudio, perfomances e sons eletrônicos. Entre os vários artigos publicados encontra-se Research-Creation: Intervention, Analysis and ‘Family Resemblances’. (Canadian Journal of Communication, 37, 2012). Paulo B. C. Schettino Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Cineasta, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor do livro Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro (São Paulo: Ateliê Editorial/2007). Realizador do documentário Ora (direis) ouvir estrelas! (2008). Thierr y Bardini Professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Montreal. É autor de vários artigos e livros sobre a inovação, a sociologia da tecnologia e hipermídia. Entre eles se encontram Junkware (2011) e Bootstrapping: Douglas Engelbart, Coevolution, and the Origin of Personal Computing (2000). 310—sobre os autores teoria-meios-comunicacao_v1.indb 310 5/20/14 4:31 PM William J. Buxton Professor da Concordia University e diretor do Programa de Doutoramento Conjunto em Comunicação (Concordia, Universidade de Montreal e UQÀM). Seus temas de interesse são a história da comunicação e a Escola de Toronto de Comunicação. Entre suas várias publicações se encontram Harold Innis in the New Century: Reflections and Refractions (1999). sobre os autores— teoria-meios-comunicacao_v1.indb 311 311 5/20/14 4:31 PM Colofão Formato 170 x 240 mm Tipologia Calluna e ScalaSansPro Papel Impressão Capa e Acabamento Tiragem teoria-meios-comunicacao_v1.indb 312 Alcalino 75 g/m2 (Miolo) Cartão Supremo 300 g/m2 (Capa) Edufba Cian Gráfica 400 exemplares 5/20/14 4:31 PM