Enny José Pereira Parejo Pontifícia Universidade Católica
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Enny José Pereira Parejo Pontifícia Universidade Católica
1 Enny José Pereira Parejo ESCUTA MUSICAL: uma estratégia transdisciplinar privilegiada para o Sentipensar Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Educação-Currículo. Orientador: Profª Dra. Maria Cândida Moraes. Pontifícia Universidade Católica São Paulo - 2008 2 3 Folha de Aprovação Aprovado em ___/___/_______ Banca Examinadora ___________________________________________ Ecleide Cunico Furlanetto Profa. Dra. em Educação-Currículo (UNICID) ___________________________________________ Sonia Regina Albano de Lima Profa. Dra. em Comunicação Semiótica (UNESP) ___________________________________________ Lucila Maria Pesce de Oliveira Profa. Dra. em Educação-Currículo (PUC) ___________________________________________ Ivani Catarina Arantes Fazenda Profa. Dra.em Antropologia (USP) 4 Dedicatória Dedico este trabalho à minha Mestra e orientadora Maria Cândida Moraes, por tudo o que me tem dado, tanto que as palavras sozinhas não conseguem dizer. A Luiz Carlos, meu marido; Nilo, meu filho; e a meu pai, que durante todo esse processo suportaram pacientemente tantas ausências. À minha mãe que, de algum lugar nesse imenso cosmo, deve estar vendo e vibrando, pois sempre vibrou mais que eu, e antes de mim em tudo o que me foi importante. A todos os meus alunos, de ontem e de hoje, com quem aprendo diariamente o que é necessário aprender e ensinar. 5 Agradecimentos Agradeço aos sujeitos dessa pesquisa, Matheus, Adriana, Giba, Liebe, Jaques e Rodrigo, que tão generosamente aceitaram estar comigo nessa jornada, descortinando sua intimidade e construindo um processo que para mim será inesquecível. Agradeço à Adriana Rocha Bruno pelas sábias orientações dadas, inclusive fora dos momentos previstos. À Yonne Santiago, um anjo de última hora, pela iluminação de meu trabalho com sua revisão dedicada, que vai muito além do texto. À Tatiane Clauzet, que gentilmente cedeu o uso das imagens de suas maravilhosas obras plásticas que tanto enriqueceram meu escrito. Agradeço a Deus por suas conspirações divinas e milimetricamente precisas, sem as quais teria sido muito difícil encontrar os meios para finalizar este trabalho. 6 Sintonia Estar sempre perto das invenções. Gostar das coisas impossíveis e Estar sempre aqui e agora. Fertilizar corações Adubar as razões Amar as sementes e Semear raízes caules folhas flores e frutos. Solfejar palavras e gritar canções. Lamber os dias as noites os sóis as luas Varrer calçadas e ruas Sonhar a vida e a morte Romper os laços de azar e sorte Vacinar todas as intrigas Sorrir em paz a paz Ironizar as brigas Fermentar anseios e Idolatrar as mãos amigas Cismar as mesmas encimesmações Renovar os foliões e Perfurar atrizes nos seus atos mais tácitos ou sublimes. Enfeitar as fantasias com seus crimes Enfeitiçar feitiços alucinantes Alucinar os céus mais deslumbrantes E deslumbrar os ais Dos pensamentos mais fulgurantes Vencer os invencíveis medos em todos os instantes e Amar amores... os mais significantes ... Pois que todos são... E estar sempre por perto nas horas das invenções. Yonne Santiago - 1978 7 Resumo O presente estudo tem por finalidade investigar o Sentipensar, ou seja, a maneira pela qual sentimento e pensamento bem articulados, adquirem uma dimensão passível de contemplar as necessidades de uma Educação mais abrangente, destinada a um ser humano multidimensional. A proposta de Sentipensar emerge do trinômio Sentir-Pensar-Agir e, se viabiliza na prática a partir da Aprendizagem Integrada, na qual, impacto emocional, multissensorialidade, ambientes e climas favoráveis – entre outras características – possibilitam uma aprendizagem vívida e significativa para o sujeito, capaz de ‘reencantar’ o processo educacional. Neste estudo, a Escuta Musical é apresentada como uma atividade integrativa, uma estratégia didática privilegiada para o Sentipensar, dentre outras estratégias possíveis. A pesquisa partiu do pressuposto que a Escuta Musical – por suas características intrínsecas que afetam ao ser humano de diversas formas, algumas bastante prazerosas – pode promover a reintegração das dimensões humanas e reinserir organicidade no processo educacional, por meio da articulação entre razão e sensibilidade, pensamento reflexivo e vivência. O interesse pela temática partiu de minhas experiências pessoais e da observação atenta de centenas de alunos que tiveram o mesmo tipo de experiência. O foco central é descobrir se, a estratégia de Escuta Musical efetivamente tem, e por quê, o poder de potencializar o pensamento reflexivo, como parece ser o caso. Historicamente, somos seres cindidos; desde que Descartes afirmou “penso, logo existo”, e antes dele, Platão enalteceu o mundo das idéias em oposição ao mundo dos sentidos; e antes ainda, os estóicos adotaram por ideal “a imperturbabilidade da alma por paixões” (ataraxia); o corpo foi para um lado – res extensa –, a alma para o outro – res cogitans. Estas idéias proferidas por grandes pensadores, plasmaram visões de mundo que estavam em curso, em suas respectivas épocas; e, implantaram-se firmemente em nossas concepções mais íntimas, tornando-se “o paradigma” da cultura ocidental, para os últimos trezentos anos. Opor-se a tais pensadores e à força dos processos engendrados por suas idéias, exigiu a espera de séculos e do prenúncio do séc. XX quando, a partir da Biologia, teve início o resgate da organicidade do todo; e um pouco mais tarde, com a revolução científica do início do séc. XX – Teoria Quântica 8 e Relatividade –, o pensamento sistêmico integrativo se alastrou por todas as áreas – da biológica à social, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. Este movimento, em busca da totalidade e de uma concepção unificadora de mundo, está nos convidando a assumir uma nova perspectiva: o paradigma Eco-sistêmico. O caminho iniciado nos confins inacessíveis da ciência começa, paulatinamente, a passar pela vida das pessoas comuns, pela história do cotidiano. As resistências são muitas, mas os primeiros passos foram dados. As teorias que fundamentam esta pesquisa preparam a concretização de um novo projeto: a Complexidade nos oferece a possibilidade de lidar com o paradoxo e incorporá-lo; a Transdisciplinaridade, através da lógica aberta do Terceiro Incluído, orienta a expansão do olhar sobre o mundo e sobre o indivíduo; o Sentipensar insere estas idéias no ambiente educacional. Todas juntas, nos conduzem à era da consciência planetária. Palavras-chave: Escuta Musical. Aprendizagem Integrada. Complexidade. Transdisciplinaridade. Sentipensar. 9 Abstract This study aims to investigate Sentipensar, that is, the way in which feelings and well articulated thinking acquire a dimension which is capable of contemplating the needs of a multidimensional human being’s broader education. The proposed Sentipensar comes from the trinomial Feel-Think-Act [in the Portuguese language, Sentir-Pensar-Agir]. In practice, it makes Integrated Learning possible, in which, emotional impact, multi-sensoriality, favorable climates and environments, among other features, enable a vivid and significant learning situation for the subject, capable of 're-enchanting' the educational process. In this study, Musical Listening is presented as an integrative activity, a privileged didactic strategy of Sentipensar, among other possible strategies. The search started with the assumption that Musical Listening – through its intrinsic characteristics that affect human beings in various ways, some quite pleasant - can promote the reintegration of human dimensions and reinject organicity in the educational process, through the link between reason and sensitivity, reflexive thinking and experience. Interest in this theme began with my personal experiences and careful observation of hundreds of students who had the same kind of experience. The main focus is to discover whether the strategy of Musical Listening effectively has the power to enhance reflexive thinking, as seems to be the case, and to discover why it has such power. Historically, we are separate and distinct beings; since Descartes said "I think, therefore I am", and before him, Plato praised the world of ideas as opposed to the world of the senses, and even before Plato, the Stoics adopted as their ideal the "imperturbability of the soul by desire" (ataraxia), the body going to one side - res extensa - the soul to the other - res cogitans. These ideas proffered by great thinkers developed visions of the world that were current in their respective times, and established themselves firmly in our most intimate concepts, becoming the paradigm of Western culture for the last three hundred years. Opposing such thinkers and the strength of the processes generated by their ideas required waiting for centuries, and for the harbinger of the twentieth century when, beginning with biology, the rescue of the organicity 10 of the whole began, and a little later, with the beginning of the scientific revolution of the twentieth century - Relativity and Quantum Theory integrative systemic thinking was spread to all areas - from biological to social, from the infinitely small to the infinitely large. This movement, in search of totality and a unifying concept of the world, is inviting us to take a new perspective: the Eco-systemic paradigm. The journey that started in the inaccessible frontiers of science begins, slowly, to affect the life of common people in their everyday life. There is much resistance, but the first steps have been taken. The theories underlying this research prepare the way for the implementation of a new project: Complexity gives us the opportunity to deal with paradox and incorporate it; Transdisciplinarity, through open logic of the Included Third, guides the expansion of a look at the world and at the individual. Sentipensar inserts these ideas in the educational environment. All together, it leads us to the era of planetary consciousness. Keywords: Musical Listening. Transdisciplinarity. Sentipensar. Integrated Learning. Complexity. 11 Sumário Introdução......................................................................................................................13 Mapa Conceitual (Revisão da Literatura).....................................................................20 1. O Problema de Pesquisa...........................................................................................25 1.1 A trajetória: de algumas inquietações ao problema.......................................26 1.2 Objetivos da tese............................................................................................31 1.3 Justificativa.....................................................................................................32 1.4 Enquadramento teórico...................................................................................33 1.4.1 A Teoria da Complexidade de Edgar Morin............................................34 1.4.2 O Paradigma Educacional Eco-sistêmico de Maria Cândida Moraes.....35 1.4.3 Sentipensar - teoria e prática para reencantar a Educação...................37 1.4.4 A concepção de emoções e sentimentos de Antonio Damásio...............39 1.4.5 Basarab Nicolescu e a Transdisciplinaridade.........................................40 2. Metodologia...............................................................................................................42 2.1 Abordagem da pesquisa...................................................................................43 2.2 Breve histórico da abordagem qualitativa.......................................................44 2.3 Um novo enfoque de pesquisa: A Metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico......................................................................48 2.3.1 Princípios filosóficos na metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico.............................................................51 2.3.2 Questões metodológicas na pesquisa de Desenvolvimento Eco-sistêmico.............................................................54 2.3.3 Instrumentos de coleta de dados na pesquisa de Abordagem Eco-sistêmica.......................................................................57 3. A Complexidade: um novo paradigma para reencantar a Educação............................................................................60 3.1 Um mundo fragmentário...................................................................................64 3.1.1 Mas... O que é Complexidade?.................................................................66 3.1.2 Inteligência cega: O paradigma simplificador.........................................67 3.1.3 Século XVI - uma revolução paradigmática: o paradigma tradicional mecanicista.......................................................70 3.2 Fragmentação e mecanicismo na situação escolar.........................................74 3.2.1 Análise dos problemas educacionais à luz dos operadores cognitivos da Complexidade.....................................................................76 3.3 Conclusões (sempre) provisórias: uma possível era do sujeito.....................86 12 4. Sentipensar: por uma educação que religue Razão, Emoção e Sensibilidade ...........................................................................................92 4.1 O que é Sentipensar?......................................................................................96 4.2 Educar para Sentipensar: princípios filosóficos básicos................................98 4.3 Aprendizagem integrada: estratégias e práticas do Sentipensar................103 4.3.1 Características metodológicas da aprendizagem integrada.................106 4.4 Ser humano multidimensional........................................................................110 4.4.1 Circuitos integradores...........................................................................111 4.4.2 O corpo como possibilidade de renovação da experiência humana.....113 4.5 Fundamentos neuropsicológicos do Sentipensar: interdependência entre regiões subcorticais e neocorticais na racionalidade..........................116 4.5.1 Emoções e Sentimentos........................................................................120 4.5.2 A cadeia Emoção-Sentimento................................................................122 4.6 A Escuta Musical............................................................................................126 4.6.1 Ouvir ou escutar música?......................................................................126 4.6.2 Como processamos os sons?................................................................127 4.6.3 De onde provêm a força emocional da música?....................................130 4.6.4 Benefícios neuropsicológicos da Escuta Musical..................................132 4.6.4.1 Memória emocional.....................................................................132 4.6.4.2 Música e relaxamento.................................................................135 4.6.4.3 Ação anti-estresse da música....................................................136 4.6.4.4 Arrepios musicais.......................................................................137 4.7. Música e cognição....................................................................................138 4.7.1 Efeitos de transferência.................................................................138 4.7.2 A sintaxe musical e a cognição......................................................140 4.7.3 A teoria dopaminérgica dos sentimentos positivos......................141 5. Transdisciplinaridade: Abertura do Olhar sobre o Mundo ...............................145 5.1 O espírito transdisciplinar: comentário de uma experiência........................147 5.2 A trindade transdisciplinar: Complexidade, Níveis de Realidade e o Terceiro Incluído..........................................................................................152 5.3 A Escuta Musical como estratégia transdisciplinar......................................162 6. A Pesquisa de Campo..............................................................................................164 6.1 Uma experiência de Sentipensar em sala de aula.........................................168 6.2 A disciplina Didática do Ensino Musical........................................................170 6.3 Perfil dos participantes..................................................................................173 6.4 Descrição da pesquisa....................................................................................176 6.4.1 A estratégia inicial de Escuta Musical..................................................178 6.4.2 Instrumentos de coleta de dados.........................................................181 7. Análise dos Dados...................................................................................................187 7.1 Categorias para análise dos dados................................................................188 7.1.1 Abertura do olhar...................................................................................189 7.1.2 Fluxos energéticos.................................................................................198 13 7.1.3 Dialogicidade processual.......................................................................205 7.1.4 Transcendência......................................................................................212 7.1.5 Percepção da estratégia de Escuta Musical pelos sujeitos..................217 Conclusão e Considerações Finais .............................................................................222 Epílogo.........................................................................................................................241 Referências Bibliográficas ........................................................................................243 Anexos.........................................................................................................................248 Anexo 1 - A música do grupo (Áudio)..........................................................250 Anexo 2 – Relação das músicas utilizadas na estratégia de Escuta Musical ao longo da pesquisa.......................................250 Anexo 3 – Transcrição da fita da avaliação final do curso de Didática do Ensino Musical............................................251 Anexo 4 - Respostas ao questionário semi-estruturado.............................260 Anexo 5 – Letras de músicas........................................................................263 Anexo 6 – Historinha para ouvir – Estória da Estrelinha (Áudio)................265 Anexo 7 – Carta da Transdisciplinaridade....................................................265 Anexo 8 - Partitura gráfica e Pentagrama....................................................268 14 Introdução Ampulheta do Horizonte Tatiana Clauzet 15 Cenário transdisciplinar Fim de tarde. O universo parecia conspirar para que tudo fosse perfeito: o azul profundo – do céu e do mar; uma brisa cálida, quase uma carícia – de olhos fechados, eu poderia me sentir na intimidade da cozinha, com o forno ligado preparando alguma coisa gostosa que em seguida eu comeria; a temperatura era muito agradável, uma espécie de útero materno, azul, envolvente; as crianças corriam, era o epílogo da brincadeira, a noite viria e iríamos embora, talvez por isso brincassem ainda mais intensamente. Dentro de mim havia alguma sombra indefinível, um certo não sei quê – medo, dúvida, incerteza? – que se insinuava, turvando a perfeição do momento. As crianças brincam com uma intensidade que somente elas conseguem experimentar, eu pensava, enquanto percebia que o teatro de meu corpo era diferente do grande teatro da natureza que estava em volta de mim. Num instante quase precipitado, fui até a beira da água – ela também estava quase morna, deliciosa; pude sentir seu toque de forma prazerosa, nos pés. Deitei-me. Abri e soltei braços e pernas. Fechei os olhos. No vai-e-vem suave das pequenas ondas, pude sentir aquela mornidão tomar conta do meu corpo, a sensorialidade se intensificou esvaziando a minha mente. Agora eu vivia apenas para esperar a próxima carícia. Abri os olhos. Eu estava no azul. Eu não podia ver mais nada, apenas o azul. Minha visão periférica não percebia montanhas, pedras ou pessoas. De fato não havia coisa ou objeto que eu pudesse ver. Até o limite só havia o azul; percebi que o azul do mar se fundia com o azul do céu e, pouco a pouco, algo se delineou – um contorno, redondo, ligeiramente fluorescente: as bordas da Terra!! Pude perceber que a Terra é redonda. Não, isso é muito pouco, pude sentir com meu corpo que a Terra é redonda, e muito além disso; pude me dar conta naquele momento que nada me separava da imensidão, minhas partículas estavam vagando pelo cosmo e as dele estavam entrando em mim, eu fazia parte de tudo aquilo... eu faço parte de tudo isso. Naquele dia percebi, pela primeira vez, que eu estava à beira do oceano cósmico, em contato direto e carnal com a imensidão do espaço infinito!! Ouvi alguém ou alguma coisa, o que me fez sair do grande azul. Levantei-me e, em princípio, foi como levitar; os pés mal sentiam o chão, sentia-me expandida, como se não houvesse ninguém ou nada capaz de me deter. 16 A experiência sensorial total, como a que acabo de descrever, sempre atraiu minha atenção. Possivelmente, por ser musicista e ter iniciado minha formação com uma professora marcante, com quem pude ter os mais variados tipos de experiências criativas e vivenciais. O conservatório tomou o lugar dessa pessoa extraordinária, com sua carga de tecnicismo mecanicista – além da cultura totalmente européia – que lhe é peculiar. Tecnicismo1 e Mecanicismo2 não são prerrogativas especiais da formação musical, mas permeiam nosso sistema educacional como um todo, o que faz com que o pensamento racional – e mais que isso, racionalista – seja a meta a alcançar. Isso quer dizer que os estudos assumem características de esterilidade, no que diz respeito à possibilidade de encantamento para o ser humano. A forma de estudar, as estratégias e técnicas utilizadas, não são apenas mecanicistas, mas também, em geral, reducionistas3; tomam a parte pelo todo, currículos e seres humanos se reduzem a apenas um ou a alguns de seus aspectos. A maneira de estar em uma sala de aula se torna desincorporada, afastada da experiência concreta; pois, a possibilidade da experiência concreta e significativa só passa a existir quando se considera o indivíduo multidimensional que é o aluno e a realidade multidimensional na qual nos inserimos todos. Falar da incorporação de experiências vivenciais, em uma sala de aula comum, significa falar da reconciliação de todas as dimensões humanas e do reconhecimento de um ser humano não apenas racional, mas também 1 Predomínio da técnica em detrimento da expressividade. Concepção de mundo segundo a qual o cosmos e os seres humanos são máquinas dependentes de mecanismos para seu funcionamento. Não há outra explicação possível, e nenhum sentido de finalidade. 3 O reducionismo considera os fenômenos a partir de um ou alguns de seus aspectos, tomando-os pelo todo, o que proporciona uma visão incompleta do objeto considerado. 2 17 sensível, e ainda, de estratégias didáticas que possam contemplar a todas as vertentes desse ser. Sensibilidade, emoção e corpo andam juntos; e, juntos permanecem à margem do processo educacional. A questão é intrincada; ao excluir o corpo, excluímos emoção (não nos esqueçamos que a emoção é um produto da fisiologia) e, conseqüentemente, a sensibilidade e os sentimentos (que nada mais são do que a experiência consciente de nossas emoções); tudo isso dá margem a processos educacionais desencantados, e a relações humanas autoritárias, nas quais é possível tornar-se insensível ao ser do outro. Eis o grande problema da visão ocidental: fragmentar e sempre fragmentar. A cisão cartesiana veio corroborar nossa mania fragmentadora e reafirmou a supremacia da racionalidade sobre todas as outras dimensões. O ser humano se tornou fragmentário. Sendo educadora musical e formadora de outros educadores, e tendo sido oprimida em minha sensibilidade pela fragmentação avassaladora do paradigma mecanicista, me pareceu fundamental contribuir de alguma forma efetiva para a transformação dessa realidade. Em minha trajetória, encontrei pessoas e pensamentos extraordinários que poderiam lançar luzes ao caminho. Primeiro, aquela professora de música maravilhosa, à qual me referi anteriormente, com quem pude viver a experiência de meu ser integral na tenra infância; depois a música, pois, em meio ao mecanicismo das práticas e ao autoritarismo, consegui estabelecer com ela uma relação que era só minha e que era emocionante; depois, encontrei grandes teorias de diversas áreas com as quais possivelmente passarei o resto de minha 18 vida, sentindo-me cada vez maior (e menor): a Teoria Quântica4, a Teoria dos Sistemas5, a Teoria da Autopoiese6, a Teoria da Complexidade, o Pensamento Eco-sistêmico7, a Transdisciplinaridade e a Teoria do Sentipensar. Todas essas teorias, de uma maneira ou de outra, nos acenam para a mudança de paradigma, pois trazem em seu bojo a conexão, uma concepção integradora de ser humano e a consciência de que fazemos parte de um todo muito maior. Meu desejo de transformação e o instrumental de que dispunha me fizeram chegar ao Doutorado com o tema da Escuta Musical, como uma estratégia de Sentipensar, pois a música sempre foi meu porto seguro e o sentipensamento me ofereceu a possibilidade de reunir as dimensões dicotomizadas do ser humano – sentir e pensar. Ao longo de minha trajetória, estive muitas vezes à beira de cair num extremo, o da vida sensorial pela vida sensorial, ao concentrar toda a minha energia no aspecto vibratório e sensível da música. Minha experiência pessoal, tanto quanto a de meus alunos, acenaram para uma abrangência muito maior; os relatos de transformações pessoais e profissionais, o desenvolvimento de faculdades de reflexão e sociabilidade, me fizeram ver que a música poderia contribuir muito mais do que eu havia pensado. Em meio ao caos dos pensamentos, conheci minha orientadora, o pensamento sistêmico e as idéias do Sentipensar, e percebi que esse era o caminho. 4 A teoria quântica estuda o mundo infinitamente pequeno das partículas subatômicas e suas propriedades. Será abordada com mais detalhes ao longo deste estudo. 5 A teoria dos sistemas estuda todos os seres, objetos e processos do ponto de vista da totalidade. Ter uma concepção sistêmica de alguma coisa, significa ter uma visão global, integrada. 6 Do grego: auto = próprio, poiesis = criação; a palavra autopoiese significa autocriação. A Teoria é de autoria de Humberto Maturana e Francisco Varela, e nos explica que todos os seres vivos são autocriadores, no sentido de que, na interação com o ambiente, são capazes de renovar suas estruturas continuamente, garantindo a manutenção da vida. 7 O Pensamento Eco-sistêmico, as teorias da Complexidade, da Transdisciplinaridade e do Sentipensar serão abordados com mais detalhes no Enquadramento Teórico (Capítulo 1) 19 A Escuta Musical poderia ser uma estratégia de conciliação entre razão e emoção, entre experiência sensível e cognição, entre vivência e reflexão; poderia ser um meio eficiente para promover essas conciliações em sala de aula, em qualquer sala de aula; não somente na sala de música; não somente na educação infantil ou no ensino fundamental, mas na faculdade, na pós-graduação ou em qualquer outro lugar no qual acontecesse a relação formal de ensino-aprendizagem. Logo, percebi que a Escuta Musical poderia ser uma estratégia privilegiada para o Sentipensar. E esse foi um grande e iluminado momento de minha existência. No primeiro capítulo deste escrito, abordarei a origem do problema de pesquisa, delimitarei o tema, os objetivos, a relevância pessoal e social das temáticas abordadas e o enquadramento teórico, através do qual pretendo fundamentar minhas hipóteses. No segundo capítulo, apresentarei a metodologia de pesquisa. Tratase de uma nova abordagem dentro da pesquisa qualitativa, a Metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico, cujos princípios e procedimentos se adequam perfeitamente a um mundo compreendido como processo e transformação. O terceiro capítulo trará o pano de fundo essencial para esta pesquisa – a Teoria da Complexidade – através da qual se torna possível o questionamento do paradigma mecanicista vigente e a análise de suas conseqüências para o processo educacional. O quarto capítulo apresentará o conceito de Sentipensar e seus princípios, a aprendizagem integrada como forma prática e concreta para 20 viabilizar o sentipensamento, a fundamentação neuropsicológica do Sentipensar e dos efeitos da Escuta Musical. O quinto capítulo, sobre a Transdisciplinaridade, apresenta o trinômio de sustentação da teoria: complexidade, níveis de realidade e terceiro incluído, e analisa a escuta musical sob o ponto de vista de uma lógica ternária, com aberturas consistentes para regiões íntimas da subjetividade humana. O sexto capítulo explica e descreve a dinâmica da pesquisa de campo, seu espaço concreto de realização, os instrumentos utilizados para a coleta de dados e o perfil dos participantes. A análise dos dados obtidos tem lugar no sétimo capitulo, a partir de alguns focos específicos de observação, que emergiram do arcabouço teórico utilizado, e também do processo vivenciado durante o tempo da pesquisa. 21 Mapa Conceitual Brecha microfísica (Quântica) PARADIGMA MECANICISTA PARADIGMA ECO-SISTÊMICO Brecha macrofísica (Relatividade) Fragmentação Mecanicismo Tecnicismo Reducionismo Causalidade Não-fragmentação Organicidade Expressividade Abrangência Não-linearidade Cisão Cartesiana: anulação do sujeito Ressurreição do Indivíduo COMPLEXIDADE TRANSDISCIPLINARIDADE Abertura Incorporação do paradoxo Multidimensionalidade Ética e valores EDUCAÇÃO SENTIPENSAR Sentir Criatividade Emoção Corpo ESCUTA MUSICAL Pensar Reflexão Agir Aprendizagem Integrada 22 Revisão da Literatura Não sou um ser acadêmico. Isto é certo. Nunca projetei – como tantos e tantas – minha entrada nesse mundo mais formalizado dos estudos. Quando li pela primeira vez as normas da ABNT, senti a mesma sensação descrita ao início – “um certo não sei quê – medo, dúvida, incerteza?”. O que para tantas pessoas nada mais é do que uma necessidade, uma pequena pedra a mais do caminho escolhido, para mim representava um enorme desafio. No entanto, por ter sempre amado a escrita, salvei-me na jornada. Escrevo um diário, escrevo confidências ao meu filho, escrevo enquanto espero alguma coisa. E assim, o ato de escrever me inseriu no mundo acadêmico. Sou um ser vivencial. Isto também é certo. Parece-me muito natural iniciar uma aula de didática fazendo a roda com meus alunos, de mãos dadas, colocando alguma música, contando alguma estória, ou sugerindo uma parada – alguns momentos de esvaziamento mental. Por isso, desejei escrever um trabalho que pudesse ser acadêmico, até certo ponto, mas que jamais perdesse o contato com meus alunos, ou com qualquer pessoa comum que desejasse entrar no assunto. Não desejei escrever apenas para meus pares da academia; e, essa é também a razão para escrever de forma quase redundante, com muitas explicações, muitas notas de rodapé, muitas idas e vindas. Uma coisa é certa: por alguma razão, o mundo acadêmico se apossou de mim, talvez por necessitar demais dessa “coisa dionisíaca” que posso oferecer; e, talvez ainda, por eu necessitar demais de sua sistemática apolínea. 23 O tema de minha pesquisa é imenso, macroconceitual8, reúne o Sentipensar e a Transdisciplinaridade. Seria perfeitamente possível escrever uma tese inteira tendo por base única, a Teoria do Sentipensar, ou a Teoria da Transdisciplinaridade. Tudo é grandioso: o tema, as teorias e suas implicações; foi difícil fazer um recorte nessa imensa teia, mas eu preferi assim, e preferi porque sei que esse trabalho será utilizado por muitos que pouco conhecem de tudo isso, mas que querem muito conhecer; e também, para apresentar mais uma idéia pouco acadêmica: eu diria que, para um educador, é melhor voltar ao humanismo, é melhor tentar saber um pouco de tudo o que existe, pelo menos até que se possa escolher um ponto focal. Meu tema de pesquisa parte da necessidade de conceber o aluno, o processo educacional e a realidade a partir de uma perspectiva multidimensional. Todas as teorias que estão em jogo neste trabalho me oferecem essa possibilidade, porém parece-me que, nenhuma de forma mais completa que a da Complexidade; essa teoria oferece uma base filosófica muito consistente, para que se possa unir conceitos aparentemente opostos, mas complementares, como é o caso de ‘sentir e pensar’ (nesse sentido, considero-a também como base de fundamentação do Sentipensar); nos oferece solução de continuidade entre a vida biológica, a vida social e a vida planetária, e – muito importante – nos ensina a ver o mundo de forma nãofragmentária. Ao incorporar toda a transformação que adveio das brechas microfísica (Teoria Quântica) e macrofísica (Teoria da Relatividade), como nos ensina Morin em diversas de suas obras. A Complexidade pode constituir uma base filosófica sólida que fundamenta qualquer fenômeno que 8 Um macroconceito associa conceitos atômicos e simples - algumas vezes antagônicos - e os articula de forma coerente, levando à compreensão de idéias ainda mais abrangentes. 24 ocorra em nosso mundo e que aspire, de alguma forma, ser compreendido como totalidade integrada. A meu ver, Sentipensar está para o processo educacional assim como a Complexidade está para a vida, unindo opostos, abrindo fronteiras para um mundo mais integrado, consciente e adequado para a vida. No Sentipensar, reunimos todas as facetas cindidas do aluno, do professor e do processo educacional: contemplamos o ser sensível, criativo, e também o ser cognitivo; consideramos o indivíduo e sua subjetividade, mas também o ser relacional; abordamos conteúdos inovadores e, coerentemente, estratégias de aprendizagem integrada multissensoriais e impactantes; tratamos do conhecimento, mas também dos ambientes, espaços e climas que favorecem sua construção. E a Transdisciplinaridade? O que dizer sobre ela? Ela poderia nem estar nesta tese (seria mais ou menos como ser criança e dispensar a sobremesa). A Transdisciplinaridade é uma licença poética? Sim, eu a considero dessa forma, neste contexto. Porém, é através dela que o encantamento se efetiva, pois, através de sua lógica aberta, todas as peculiaridades mais íntimas da subjetividade se reafirmam; através dela, se torna possível a grande viagem por mares interiores, por dimensões até bem pouco tempo negadas; através dela, acessamos o ser interior mais profundo, a autodescoberta, e também aprendemos o respeito às alteridades. A Transdisciplinaridade é o espaço privilegiado do indivíduo, e eu não desejei privar meu leitor desse espaço. Além dessas teorias que foram aqui exploradas a partir de uma perspectiva filosófica, faltava-me ‘alguma ciência mais dura’, pensei eu (certamente, todos esses séculos de paradigma mecanicista continuam a 25 atuar sobre mim de alguma forma); encontraremos então, em especial no Capítulo 4, a descrição de uma série de estudos neurológicos atuais, que me auxiliaram na fundamentação dos processos de emoção, sentimento, cognição musical e efeitos da escuta musical. O desejo de oferecer um ‘cardápio variado’, e de me tornar acessível a um público maior, fez com que eu inserisse enquadramentos teóricos nos Capítulos 3, 4 e 5, e não somente num único capítulo de revisão da literatura. Esse mesmo desejo, sem dúvida, fará com que muitos considerem meu trabalho pouco científico. Enfim, são as escolhas da vida; eu fiz a minha. 26 1. O Problema de Pesquisa Lua Subindo no Sertão Tatiana Clauzet 27 1.1 A trajetória: de algumas inquietações ao problema Desde a infância me dedico aos estudos musicais. Graduei-me e atuo profissionalmente há vinte e cinco anos. Minha área específica de interesse é a formação e atualização de professores de música, professores de educação infantil e demais profissionais interessados na utilização da música como recurso para o desenvolvimento da criança. Durante os últimos dezoito anos – período que abrange minha atividade como formadora de professores de música e educação infantil, na Espanha e no Brasil – tive como preocupação básica a necessidade de levar os professores à consciência da importância da música como fenômeno essencialmente sensível, ou seja, música como som, freqüência vibratória e, portanto, como fenômeno sensorial, fisiológico e emocional, antes de ser um fenômeno de linguagem. Essa tomada de consciência me pareceu fundamental como forma de oposição a um sistema de ensino/aprendizagem musical extremamente racionalista, mecanicista e reducionista, baseado quase que exclusivamente no tecnicismo da prática instrumental, na decodificação e codificação da linguagem, e na comunicação verbal. Realizei estudos especializados em pedagogia musical no Brasil e na Europa (Espanha, França e Áustria). Na Espanha, tive a oportunidade de participar de um projeto nacional de formação de professores de música que visava a integração do país à comunidade européia, no período que vai de 1987 a 1992; não havia música no currículo escolar e havia urgência em incluí-la. Minha atuação no projeto, coordenado pela Junta de Andalucia, no sul do país, foi inesperada, tive então que me adequar a essa nova necessidade. 28 Uma das primeiras percepções que o contato com os professores espanhóis me proporcionou foi a de que o processo de formação musical era, na verdade, bem pouco musical, centrado na teoria, na leitura de partituras e negligenciando o principal para uma arte dos sons: a possibilidade de ouvir e sentir música. Foi um período profundamente enriquecedor, a partir da relação dialética que mantive com variados grupos de professores: ensinei, é certo, mas aprendi muito mais. Pude resgatar algo que se tornaria para mim a pesquisa de uma vida: o poder sensorial da música. Os cursos na Espanha tornaram-se espaços privilegiados de relação humana, criatividade e vivências da emoção. No Brasil, a partir de 1993, pude constatar problemas parecidos na relação entre os professores e a música, apesar da realidade sociocultural ser bem diferente nos dois países. Percebi que a relação entre as pessoas e a música é profundamente afetada pelo paradigma educacional antigo, ao qual me referi anteriormente, no qual fomos todos formados; no caso da música, este paradigma privilegia o tecnicismo em detrimento da expressividade e da formação humana; faz-se então necessário questionálo. A busca de um novo paradigma educacional, que permitisse ter uma visão mais global do aluno e dos processos de ensino/aprendizagem, tornou-se para mim um ponto crucial. Na cultura ocidental, o racionalismo e o mecanicismo têm dominado nossas mentalidades, nossas formas de ação e interação humana, tornandoas muitas vezes estéreis, desprovidas de beleza, significado, expressão e sentido de humanidade; de tal maneira que, H. J. Koellreutter9 sempre se 9 Eminente compositor e pedagogo musical alemão, falecido em setembro de 2005, responsável pela introdução, no Brasil, das correntes musicais vanguardistas do séc. XX, e pela formação de uma geração de compositores brasileiros. Atuou no Brasil a partir de 1937. 29 referia em seus cursos ao Positivismo10 e ao Mecanicismo como os “inimigos número um” da educação musical. Em meu trabalho de Mestrado explorei, sobretudo este tema; a necessidade da música como arte sensível e sensibilizante, destinada a seres humanos, interpretados como totalidades integradas de corpo, mente e espírito, que pudessem ser, ao mesmo tempo, racionais e intuitivos, lógicos e sentimentais, intelectuais e sensíveis. Minha proposta apresentouse, na verdade, como possibilidade de um novo paradigma existencial, ou seja, como concepção sistêmica de seres humanos e processos educacionais. Naturalmente, a abrangência dessas questões, as entrevistas realizadas junto a vários participantes de meus cursos, tanto quanto os novos referenciais teóricos a que tive acesso, me fizeram rapidamente perceber que eu não estava falando apenas de educação musical, mas sim, de uma proposta de formação sensibilizatória que poderia vir a tornar-se um instrumento metodológico para o desenvolvimento humano, uma ferramenta educacional a serviço de alunos e profissionais de qualquer área de atuação. Partindo então, de uma situação na qual era urgente conscientizar pessoas sobre a importância do sentir, cheguei a uma outra situação que me foi colocada pelos próprios entrevistados, que me vem sendo trazida no dia a dia por alunos e professores, e que eu, de forma clara, já havia percebido em minha experiência pessoal: parece existir uma articulação intrínseca, uma filiação inalienável, entre sentir e pensar. 10 Corrente filosófica que interpreta a ciência como único conhecimento possível e válido. Qualquer outro tipo de conhecimento, como por exemplo o metafísico, não tem valor. O Positivismo foi uma das doutrinas de sustentação do progresso industrial e teve bastante influência no Brasil. Seu principal expoente é Augusto Compte. 30 Ao mesmo tempo, ao longo desses anos, passei por um processo de mudança que considero uma evolução: se antes só me ocupava do sentir, da intuição e do sentido humano e integrativo da minha ação e da ação dos professores, nos últimos anos, em especial, percebi que era também necessário refletir sobre tudo isso e levar os professores a refletirem comigo. Havia neles uma tendência a querer obter sempre receitas didáticas prontas para aplicação no próprio trabalho, enquanto em mim vivia o desejo de que se emancipassem, de que se tornassem mais criativos, menos dependentes daquelas atividades propostas. Em conseqüência desses anseios, passei a ter outras preocupações. Se até há pouco tempo, me colocava insistentemente a questão “como fazer com que os professores sintam alguma coisa através da música?”, hoje tenho uma outra questão que se agrega a essa: “como fazer com que os professores pensem sobre sua prática?” E, mais que isso, “como fazer com que tomem gosto pela prática reflexiva e, decisivamente, se apropriem dela?” Além de procedimentos conhecidos e tradicionais da prática reflexiva, tais como, ler, escrever, relatar, debater, partilhar idéias – que estou passando a adotar cada vez mais –, posso perceber que o próprio ato de sentir (entendido como uma tomada de consciência de emoções que leva a sentimentos de bem-estar, alegria, completude, entre muitos outros relatados pelos entrevistados), constitui-se num canal poderoso de abertura à reflexão. O sentir parece potencializar, enriquecer e aprofundar o pensar; em avaliações orais ou escritas, participantes dos meus cursos corroboram essas percepções, o que me motiva ainda mais a continuar pesquisando o assunto. Os professores referiram-se a essa questão de forma instigante, com expressões do tipo “abrir a cabeça para novas experiências”, “ter bagagem para poder pensar”, “considerar o indivíduo em toda a sua 31 ‘inteireza’”, “desenvolver o uso da intuição, da razão, da sensação e do sentimento”; reportaram a tomada de consciência sobre temas essenciais à educação: o desafio de colocar novas metas, a responsabilidade de transmitir conteúdos, sem deixar de estabelecer pontes com a riqueza que o aluno traz; e ainda, manifestaram percepção da dinâmica relacional que envolve todo esse processo, da questão do necessário autoconhecimento do professor, e do descortinar de um movimento interior consubstanciado em aspectos cognitivos, sensoriais, emocionais e afetivos. Através da fala dos professores pode-se perceber, ainda que de forma não-intencional, que as atividades sensibilizatórias provocaram inquietude, vontade de refletir, abertura para a transformação, e mudanças efetivas. Passei a sentir a necessidade de compreender o conteúdo real e íntimo dessas falas dos professores, no intuito de aprimorar meu trabalho como formadora e a qualidade da formação que ministro, assim como procurar contribuir para o avanço desse conhecimento no Brasil. A busca por referenciais teóricos apropriados para empreender uma reflexão de tal natureza, levou-me de encontro ao conceito de “Sentipensar” elaborado por Saturnino de La Torre11, em 1996, e que começa a ser divulgado no Brasil através do grupo de pesquisadores coordenado por Maria Cândida Moraes12, do qual faço parte. Este novo conceito nos resume de forma clara as aspirações de um novo paradigma 11 Saturnino de la Torre é um eminente educador e catedrático em Criatividade, da Universidade de Barcelona, reconhecido internacionalmente. Mantém ativo intercâmbio de idéias e projetos com o Brasil, em colaboração com Maria Cândida Moraes, através da PUC de São Paulo e de outras instituições. 12 Maria Cândida Moraes é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e da Universidade Católica de Brasília. Eminente pesquisadora brasileira, dedica-se ao estudo de teorias importantes para a perspectiva de humanização do mundo acadêmico, dentre elas, a Teoria da Complexidade, a Teoria da Autopoiese e a Teoria da Transdisciplinaridade. Tenho o privilégio de têla como orientadora de meu trabalho de doutorado. 32 para a educação: “trabalhar conjuntamente pensamento e sentimento”, fundir e integrar diferentes “formas de perceber a realidade, a partir da reflexão e do impacto emocional, fazer convergir num mesmo ato de conhecimento a ação de sentir e pensar.” (TORRE, 2000, p. 546). A trajetória descrita me fez chegar ao Doutorado com o seguinte tema de pesquisa: ESCUTA MUSICAL: Uma Estratégia Transdisciplinar Privilegiada para o Sentipensar. Diante das situações e problemáticas consideradas acima, uma pergunta emerge para concretizar meu problema de pesquisa: Quais as relações existentes entre o sentir – desencadeado pela atividade integrativa de escuta musical – e o refinamento da capacidade reflexiva? Prossegui em busca da resposta a essa questão, realizando a pesquisa de campo (Capítulo 6) com seis alunos da disciplina de Didática do Ensino Musical, por mim ministrada no curso de Licenciatura em Música da Faculdade de Música Carlos Gomes. Todos os sujeitos escolhidos para a pesquisa exercem atividade profissional na área musical, como músicos ou professores de música. Cursaram dois semestres da disciplina Didática do Ensino Musical, I e II, respectivamente, no 2º semestre de 2005 e 1º semestre de 2006. 1.2 Objetivos da tese No presente estudo, me proponho a pesquisar o Sentipensar como estratégia metodológica para a formação humana, partindo da suposição que, pela via do equilíbrio entre emoção e razão – alcançado especificamente 33 através da escuta musical como caminho para o sentipensamento – se pode promover a transformação do indivíduo, e o enriquecimento da prática educacional. Esse objetivo principal, se apóia em objetivos-satélites que lhe dão sustentação e consistência; são eles: questionar o paradigma educacional vigente e suas bases de apoio – racionalismo, mecanicismo, reducionismo e fragmentação; revalorizar o ser humano e a experiência humana sensível, em sala de aula; questionar a lógica rígida, que subjaz aos processos educacionais através Transdisciplinaridade dos e princípios reencantar a da Complexidade educação, e da valorizando as características criativas, artísticas, intuitivas e subjetivas, tanto quanto as reflexivas e formais. 1.3 Justificativa As reflexões aqui propostas inserem-se num momento de mudanças profundas em todos os âmbitos da experiência humana e social, o qual pode ser caracterizado como de mudança de paradigmas. O novo milênio iniciouse, sob o signo da esperança de uma nova era, mais propícia à realização das mais profundas aspirações humanas; porém vivemos, por outro lado, o sombrio; um mar de intolerâncias, violência, desigualdades, plasmados em conflitos e guerras sem sentido. O progresso econômico e tecnológico não trouxe ao mundo o bem-estar prometido no séc. XIX, e ao analisar estas questões, vê-se na base da degradação da vida, a própria degradação do ser humano, configurada numa eterna luta pelo poder, na insensibilidade, na perda dos valores essenciais, na destruição do meio ambiente e na exploração de uns por outros. 34 A educação pode ser um dos espaços privilegiados para a viabilização de mudanças possíveis na sociedade, desde que se torne uma educação diferenciada; que prepare crianças, desde tenra idade, bem como futuros profissionais, para viverem seus mútuos compromissos; uma educação que contemple o ser humano por inteiro, brindando-lhe com conhecimentos específicos da cultura, mas também com a possibilidade de um olhar sensível e perscrutador para a realidade; uma educação que ensine técnicas, mas também a apreciação da beleza; que possa unir arte e tecnologia, razão e sensibilidade; uma educação que não abandone o sentido ético da vida. Enfim, uma educação para o Sentipensar. 1.4 Enquadramento teórico A natureza complexa do ser humano, da qual decorre sua multidimensionalidade, implica na conscientização da interdependência existente entre emoção, sentimento e racionalidade, assim como na concepção da unidade funcional existente entre corpo, cérebro e mente. Para a educação, isso significa assumir o aluno como uma totalidade indivisível, e a aprendizagem como articulação e manifestação dessas diversas dimensões. Eminentes cientistas e pesquisadores, nas últimas décadas, têm se dedicado a compreender essa relação dinâmica e integrativa existente entre o sentir e o pensar, e têm demonstrado a impossibilidade de dicotomizar esses processos. pedagógicas, A partir neurobiológicas, de perspectivas antropológicas, diversas entre – outras filosóficas, – surgem diferentes teorias que nos apresentam uma visão mais global de mundo na qual razão, emoção e sensibilidade aparecem intrinsecamente relacionadas. 35 A partir dessas teorias, será possível estabelecer bases sólidas para a tomada de consciência da importância de se ter sentidos aguçados e corpos preparados, tanto quanto mentes brilhantes, em processos educacionais e de formação de professores. 1.4.1 A Teoria da Complexidade de Edgar Morin A Teoria da Complexidade é a primeira construção teórica que pode fundamentar uma pesquisa que tem por finalidade discutir o resgate da multidimensionalidade para o ser humano, para a realidade e para processos educacionais. “Complexus é o que é tecido junto”, segundo Morin. A Complexidade nos oferece o antídoto para a fragmentação e para a disjunção, às quais estamos tão habituados, tornando possível conceber o ser humano em sua inteireza. Pela via da Complexidade, compreendemos que toda obra é sempre obra aberta, ao inesperado, ao novo, às emergências, e abraçamos como meta educacional, as interações dinâmicas que permeiam o processo de construção do conhecimento. Estas são relações vivas, que se estabelecem entre professor e aluno, entre alunos, e entre estes e o ambiente; caracterizam-se pelo fluxo e pelas trocas constantes de energia e informação. Suas estratégias são contextualizadas e jamais negligenciam o aspecto relacional. A Teoria da Complexidade, ao admitir a multidimensão da realidade e dos objetos de estudo sobre os quais se debruça, incorpora necessariamente essa dinâmica organizacional, articulando as partes de um sistema num todo coerente. Essa dinâmica, mais uma vez, reforça o caráter 36 autônomo de qualquer sistema – entendendo-se por sistema um evento, um aluno, um processo, uma comunidade – implicando sempre no movimento orgânico entre partes constituintes e o todo; essa autonomia é relativa e torna-se estritamente dependente das trocas efetuadas com o meio. O ambiente é nutridor e possibilitador das unidades autônomas, regula tanto a dependência quanto a autonomia. O pensamento complexo abre portais para novas lógicas possíveis na interpretação do mundo em que vivemos, assim, opostos antagônicos podem ser reunidos numa unidade complementar; essa comunhão se faz através dos princípios integradores da Complexidade. Se a própria realidade pode ser múltipla, a Complexidade nos convida à aceitação plena do diálogo que torna possível a coexistência desses opostos, assim como à aceitação da diversidade. Em última análise, esse pensamento nos aproxima das atitudes de respeito, do comportamento ético e da incorporação de valores caros para nossa cultura, tão caros quanto esquecidos. Por essa razão é que figuram entre os saberes para uma educação do futuro, propostos por Edgar Morin, o “ensinar a compreensão” e “ensinar a ética do gênero humano” (MORIN, 2002). 1.4.2 O paradigma educacional eco-sistêmico de Maria Cândida Moraes O pensamento eco-sistêmico vem sendo cuidadosamente elaborado por Maria Cândida Moraes, ao longo das últimas décadas, como resultado de sua busca incessante por um novo paradigma educacional que possa reencantar a educação. O termo eco-sistêmico resulta da junção de dois macroconceitos: por um lado, sistêmico, indicando a relação dinâmica e 37 recursiva13 existente entre as partes e a totalidade de um sistema, assim como todos os processos resultantes de sua organização; por outro, ecológico, sinalizando para o mundo de conexões, no qual se inserem as ações educacionais. Na gênese do pensamento de Maria Cândida, encontram-se o pensamento sistêmico e, posteriormente, as idéias de Edgar Morin, de Humberto Maturana e Francisco Varela, suas bases epistemológicas fundamentais. Um conjunto de princípios e teorias articula-se no pensamento da autora – Princípio da Incerteza14, Princípio da Complementaridade15, Teoria das Dissipativas16, Estruturas Teoria da Autopoiese, Teoria da Transdisciplinaridade e, naturalmente, Teoria da Complexidade – legandonos uma construção teórica inestimável para refletir sobre a problemática educacional, assim como para transmutar o paradigma vigente. A dinâmica dos processos, o fluxo, e uma encantadora organicidade, entram para epistemológicos o discurso educacional fundamentais do através dos pensamento pressupostos eco-sistêmico: 13 Um processo recursivo, segundo Morin (2005, p. 231), é aquele no qual “os estados ou efeitos finais produzem os estados ou causas iniciais (...) processo pelo qual uma organização ativa produz os elementos e efeitos que são necessários à sua própria geração ou existência”. 14 O Princípio da Incerteza consiste num enunciado da Mecânica Quântica, formulado inicialmente em 1927 por Werner Heisenberg. Constituindo mais um dos paradoxos da Física Quântica, esse princípio constata a impossibilidade de medir com precisão e ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de um elétron, gerando grande incerteza quanto a seu comportamento. 15 O Princípio da Complementaridade, enunciado por Niels Bohr em 1928, assevera que a natureza da matéria e da energia é dual – ondulatória e corpuscular. Estas naturezas não são contraditórias, mas sim, complementares; daí, o nome do princípio. A percepção de onda ou corpúsculo, pelo observador, depende do tipo de experiência realizada, por isso a ciência contemporânea assume a estreita imbricação existente entre o pesquisador e o objeto pesquisado. 16 A Teoria das Estruturas Dissipativas, de autoria de Ilya Prigogine, explica como os processos químicos estão sujeitos a um jogo de interações não-lineares, nos quais, os fluxos de matéria estão sujeitos a flutuações, a assumir diferentes direções e organizar-se em diferentes configurações dinâmicas, oferecendo belas metáforas para as incertezas nos processos humanos. 38 intersubjetividade, interatividade, complexidade, emergência, auto- organização, autonomia, mudança, incerteza, causalidade circular, inter e transdisciplinaridade, temas analisados com maior detalhamento nos capítulos subseqüentes. As propostas do pensamento Eco-sistêmico são de grande relevância para a evolução da educação; sua incorporação sofre resistências, mas é significativa no que tange às reais possibilidades de mudança, conscientização e ampliação de visão de mundo, conforme se pode depreender da colocação de Moraes (2004, p. 154): Um pensamento ecológico-sistêmico é, portanto, um pensamento relacional, dialógico, interligado, indicando que tudo que existe co-existe e que nada existe fora de suas conexões e relações. É um pensamento que se estende além da ecologia natural, englobando a cultura, a sociedade, a mente e o individuo. Finalizando este breve recorte, a autora nos lembra ainda que todas as nossas ações são ações ecologizadas, ou seja, situam-se numa teia de conexões, têm o poder de afetar os ambientes e pessoas que nos cercam, da mesma maneira como somos por eles afetados. No viver cotidiano, geramos campos vibracionais de interação. Compreender a Educação sob esse olhar torna-se um ato de poesia. 1.4.3 Sentipensar – teoria e prática para reencantar a Educação A teoria do Sentipensar, formulada por Maria Cândida Moraes e Saturnino de La Torre, é um poderoso recurso para reencantar a Educação que se coloca como questão fundamental neste estudo. Através da 39 conjugação de pensamento e sentimento, abre-se um espaço de existência possível para dimensões tradicionalmente negligenciadas no processo educacional: emoção, subjetividade, expressão artística, criatividade, corporalidade, sentido metafórico incorporado à vida, entre muitas outras. O pensamento dos autores se desenvolve basicamente em duas vertentes: primeiro, explicar como as emoções podem colocar em marcha ações, motivações e impulsos que afetam os processos de aprendizagem; em seguida, desenvolver recursos metodológicos ou estratégias para a educação emocional, que podem envolver diferentes linguagens artísticas, e até mesmo cenas do cotidiano como, por exemplo, contemplar a beleza do mar e refletir sobre a vida. Uma das obras mais interessantes de Torre, intitulada Diálogos con el mar17, apresenta suas reflexões poéticas, relacionando metaforicamente as situações e eventos naturais observados com o dinamismo da vida interior. Torre (2000, p. 546) explica o valor da dimensão emocional nos processos educacionais, reforçando ainda mais a visão de um ser humano integral, defendida também pelas teorias já apresentadas: (...) a dimensão emocional do ser humano, que há tãosomente duas décadas estava proscrita em muitas instituições educativas, emerge com valor próprio junto à experiência e à razão. Porque nos demos conta que ao analisar os feitos humanos a partir da vida ou a partir da educação, é preciso recorrer à vertente emocional caso queiramos obter uma explicação compreensiva dos mesmos.18 Neste estudo, a escuta musical se apresenta como uma estratégia de Sentipensar, um recurso a mais para a educação emocional, com capacidade 17 18 Diálogos con el mar. Barcelona: Editorial Laertes, 2004. Tradução da autora. 40 de colocar em jogo todas as dimensões humanas, criando a partir do impacto emocional as condições para uma manifestação completa do indivíduo, inclusive de sua racionalidade. Os princípios e propostas do Sentipensar têm importância capital na elaboração deste trabalho; a vivência de emoções em sala de aula promove o encontro do ser consigo mesmo, preparando-o para atuar por inteiro, e reintegrando dimensões fragmentadas por uma vida de vivências educacionais mecanicistas, positivistas e reducionistas. 1.4.4 A concepção de emoções e sentimentos de Antonio Damásio Antonio Damásio é um neurobiólogo de destacada importância no cenário contemporâneo. Um dos focos mais importantes de seus estudos refere-se à ligação intrínseca existente entre razão e emoção. Muito embora ao longo da história sempre tenha havido pensadores que admitiram a relevância do assunto, nunca houve tanto quanto na atualidade, condições para o estudo da neurobiologia humana e de como os fenômenos neurológicos se interligam aos psicológicos e à própria vida social. O desenvolvimento neurológico do ser humano se confunde com a própria história da evolução. No início, contávamos com as estruturas límbicas e com as emoções primárias do cérebro primitivo, habilitadas a assegurar a sobrevivência; ao longo do tempo, desenvolvemos a afetividade e nos tornamos conscientes dessas emoções; em período relativamente recente da história humana, desenvolvemos as estruturas corticais superiores. Estas se tornaram o apanágio da racionalidade. Subitamente, a história evolutiva humana parece ter caído no esquecimento; movidos pelas 41 convicções de um paradigma disjuntor, cartesiano, negligenciamos as limitações que uma disfunção emocional pode imprimir à racionalidade; cindimos emoção e razão. A Contribuição de Damásio para este estudo é constatar a base emocional da racionalidade; por essa razão, suas idéias tornam-se também muito importante para a compreensão do Sentipensar. Do ponto de vista neurológico, além do pensamento de Damásio, outras pesquisas sobre plasticidade cerebral e cognição musical virão subsidiar a fundamentação do Sentipensar, em especial, as conduzidas por Robert Zatorre, Tobias Esch e suas respectivas equipes, Jaak Panksepp e David Servan- Schreiber, entre outros. 1.4.5 Basarab Nicolescu e a Transdisciplinaridade As reflexões sobre o mundo contemporâneo propostas pela teoria transdisciplinar, terminam de emoldurar o quadro epistemológico que me fundamenta. Elaborando explicações possíveis para um mundo atribulado, ameaçado de destruição tanto no plano material quanto espiritual, a Transdisciplinaridade contribui aqui, uma vez mais, para a crítica do que Nicolescu chamou “razão triunfante”: as conquistas mais brilhantes da humanidade se ofuscam por uma incapacidade crônica de verticalização do homem. Segundo o autor, esse processo se dá quando a consciência humana se eleva atravessando e integrando níveis de percepção da realidade, em direção a uma “verticalidade consciente e cósmica”, que permite ao ser humano acessar uma realidade muito mais abrangente (NICOLESCU, 2005, p. 65). 42 A lógica transdisciplinar é muito adequada para as situações complexas com as quais nos deparamos, na vida em geral e na educação, pois o ser humano é concebido na totalidade de suas dimensões visíveis e invisíveis; interessa tanto o que está por fora, quanto o que está por dentro; seus mitos, crenças, imagens representações; a realidade – também multidimensional e multireferencial – admite múltiplos enfoques e a existência do inexplicável. O pensamento transdisciplinar se sustenta em três pilares: a Complexidade, a lógica do Terceiro Incluído (T) e a existência de diferentes Níveis de Realidade, que permitem conciliar opostos, aparentemente, inconciliáveis. O que não pode ser compreendido em determinado nível de realidade torna-se compreensível a partir de um nível mais elevado, no qual opostos contraditórios se integram. Se tomarmos como exemplo, o conceito de Sentipensar, e o considerarmos a partir de uma perspectiva tradicional, sentir e pensar surgem inconciliáveis; se o considerarmos a partir de um outro nível de realidade, ao qual acedemos pela verticalização da consciência, sua união torna-se possível e passam a constituir uma unidade complexa. A dinâmica transdisciplinar é abordada com mais detalhes em outra parte desse escrito; interessa naturalmente a este trabalho, por incorporar a subjetividade e unir o que se encontra artificialmente separado. Fundamentando minhas percepções em aspectos diversos das teorias já explanadas, e aguçando o sensível olhar-pensante, como diria Martins (1996, p. 20), é que pretendo encontrar os caminhos para dar resposta ao problema de pesquisa. 43 2. Metodologia Janela Oriental Tatiana Clauzet 44 2.1 Abordagem da pesquisa Partir em busca do novo é sempre um ato de coragem; o novo tem sido rejeitado de início, em todas as instâncias; na dúvida, nos tornamos misoneístas, aferrados às velhas referências que trazem com elas a segurança. No entanto, vive-se num mundo de certezas abaladas e de trânsito constante entre a ordem e a desordem, entre a estabilidade e o caos. As teorias expostas desde o início incorporam essa instabilidade, abrem espaço para a relação orgânica, dialógica e recursiva, que pode permitir a coexistência desses opostos. A complexidade desses opostos se manifesta na natureza, primeiramente; e, no ser humano, que também é natureza, por mais que se esqueça disso; a complexidade se manifesta a cada vez que se lida com a natureza e com o humano. Entendo a Educação como uma relação entre seres humanos, portanto, revestida de complexidade. A complexidade está naturalmente nesta pesquisa, por envolver o humano e por enfocar processos educacionais numa concepção ampla. Tanto a aprendizagem como o ensino são processos de natureza complexa. A cada vez que se enfoca um objeto de estudo de forma contextualizada nos inserimos numa complexidade crescente. Por questão de coerência – problemas complexos exigem metodologias complexas de pesquisa – é que se tornou necessário criar uma nova forma de fazer pesquisa, a metodologia de desenvolvimento Eco- 45 sistêmico. Segundo Moraes19: “é preciso examinar a congruência paradigmática existente entre as teorias que fundamentam a pesquisa, o método selecionado e os respectivos procedimentos estratégicos planejados”. Os pioneiros da pesquisa qualitativa, a partir da virada do séc. XX, foram também aqueles que, pela primeira vez, deram voz aos sujeitos pesquisados. A abordagem fenomenológica de pesquisa deu um passo além, atribuindo importância aos atos de consciência dos sujeitos pesquisados, a seu universo interior e aos significados por eles atribuídos aos fenômenos vividos e, ainda, considerando a maneira pela qual a consciência de cada indivíduo lhe permite captar e perceber a realidade; esses foram grandes passos em direção a uma metodologia de pesquisa para as ciências humanas. A metodologia de desenvolvimento Eco-sistêmico transcende tais conquistas, assumindo a total subjetividade do ser humano com tudo o que comporta de incerto, de oculto, de interno, de externo e de maravilhoso. O ser humano transcendente torna-se agora o objeto de pesquisa, o ser humano transcendente é o observador pesquisador; ambos se encontram na intersubjetividade e se inserem na complexidade do mundo. 2.2 Breve histórico da abordagem qualitativa Segundo Sandin (2003), a pesquisa qualitativa nasceu no início do séc. XX, desenvolvendo-se ao longo do mesmo, na Grã-Bretanha e na França, e 19 ‘Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa educacional’, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela PAPIRUS, 2008. 46 ainda, através das escolas americanas de Sociologia e Antropologia das Universidades de Chicago e, posteriormente, Columbia, Harvard e Berkeley. Na gênese dessa abordagem de pesquisa – séc. XIX – encontra-se a necessidade de equacionar as condições de vida das populações urbanas, em especial, o impacto de imigrações maciças, situação de pobreza, entre outros problemas das grandes cidades. No mesmo período, cientistas, missionários e viajantes, num movimento característico da época, lançaram-se ao mundo interessados nas formas de vida não-ocidentais. A partir desse interesse antropológico surgiu a etnografia. A palavra, segundo Sandin, origina-se de ethnoi, que para os gregos significava estrangeiros. Na pesquisa etnográfica, o pesquisador se insere no ambiente a ser pesquisado, na tentativa de compreender a cultura e o cotidiano dos grupos pesquisados. A Escola de Chicago, fundada em 1892 por Albion W. Small, teve papel importante nessa evolução durante as décadas de 1920 a 1930, aplicando estratégias de pesquisa de campo a minorias sociais – gangues, imigrantes trabalhadores, gângsteres, entre outros. Pela primeira vez, essas populações passaram a ganhar voz, configurando um verdadeiro avanço metodológico. A partir dos anos 50, começou a consolidar-se o campo da Antropologia educativa, em especial, a partir dos trabalhos de pesquisadores da Universidade de Columbia. Estes defendiam a inclusão da disciplina nas políticas públicas de pesquisa. Outra conquista do período, do ponto de vista metodológico, foi a adoção da entrevista, como uma estratégia fundamental da pesquisa qualitativa. 47 Os anos 60, tidos como os “anos de ouro” da pesquisa qualitativa, assistiram significativos avanços metodológicos. A participação de pesquisadores da Educação nesse período era ainda tímida; o positivismo, e os métodos quantitativos e estatísticos dominavam o campo da pesquisa educacional. No entanto, como explica Sandin (2003, p. 81), “numerosos educadores começaram a questionar os métodos de investigação tradicionais, que se baseavam exclusivamente na medição, e apareceram monografias descritivas da vida escolar”. Apesar de resistências, começou a crescer o interesse por parte de instituições governamentais em investimentos para estudos etnográficos acerca da escolarização de diversos grupos sociais. Data também desse período, talvez a mais valiosa das aquisições – o questionamento da hegemonia de grupos sociais: (...) os métodos qualitativos supuseram uma ruptura com o que havia sido denominado “hierarquia de credibilidade”, a idéia de que a opinião e visão das pessoas que detêm o poder são mais valiosas. Frente a essa idéia, a perspectiva qualitativa defende e reconhece a visão dos mais pobres, dos excluídos, enfatizando a compreensão das perspectivas de todos os participantes. (SANDIN, 2003, p. 81) A partir dos anos 80, os pesquisadores já dispunham de uma ampla variedade de métodos e estratégias de pesquisa. O séc. XX viu nascer e se desenvolver diversos enfoques de pesquisa, dentre eles, o interacionismo simbólico, a etnometodologia, a fenomenologia e o enfoque crítico marxista; diversificaram-se também os métodos de coleta e análise de dados qualitativos; e, com o advento da informática a pesquisa qualitativa mudaria para sempre. Na gênese do desenvolvimento educacional da pesquisa qualitativa encontra-se a necessidade de avaliar os resultados dos programas 48 educacionais implementados pelo governo americano ao longo dos anos 60 e 70. Na mesma época, começaram a surgir publicações sobre pesquisa qualitativa, revistas, e os primeiros encontros reunindo pesquisadores qualitativos. Em grande medida, os debates metodológicos dos anos 80 permanecem atuais para nossa época: dados quantitativos versus dados qualitativos, científico versus intuitivo, postura empirista versus interação humana. Como ressalta Chizzotti: O termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível e, após este tirocínio, o autor interpreta e traduz em um texto, zelosamente escrito, com perspicácia e competência científicas, os significados patentes ou ocultos do seu objeto de pesquisa.20 Um avanço notável, agregado pela abordagem qualitativa, é justamente a admissão de uma realidade fluente, sujeita às emergências e à abertura da possibilidade de aproximação entre sujeito e objeto pesquisado, em função da interpenetração existente entre ambos, o que permite a troca e a compreensão. Na pesquisa qualitativa, vivências subjetivas começam a ser valorizadas; as concepções, valores e visões de mundo dos atores encontram forma de estar presentes. 20 ‘Pesquisa qualitativa’, de autoria de Antonio Chizzotti, a ser editado (2003). 49 2.3 Um novo enfoque de pesquisa: A Metodologia de Desenvolvimento Ecosistêmico Um dos aspectos mais importantes em qualquer pesquisa é justamente a tomada de decisão sobre a metodologia a ser adotada em relação ao tipo de objeto de estudo e ao contexto. Esta coerência acima evocada como uma congruência paradigmática requer, segundo Moraes21, análises a partir das “implicações de natureza ontológica, epistemológica e metodológica, que explicam o funcionamento da realidade e do que é cognoscível”, ou seja, é necessário tomar consciência das concepções que se tem, acerca da natureza da realidade, do conhecimento e dos métodos utilizados. Questões metodológicas são tratadas com grande ênfase nos ambientes acadêmicos, as questões de natureza ontológica e epistemológica são normalmente negligenciadas. A questão ontológica implica em como se interpreta a natureza da realidade; a questão epistemológica refere-se àquilo que se entende por conhecimento, as duas questões são naturalmente imbricadas. Toda escolha implica num momento de decisão; a escolha de uma metodologia é um desses momentos. A postura filosófica do pesquisador torna-se então fundamental; sua atitude diante da vida e sua concepção de mundo, fatores determinantes. A questão paradigmática não deve ser esquecida, nesse contexto. Assumimos paradigmas de ação na vida cotidiana, tem-se normas sobre como fazer cada coisa, conjuntos de regras obedecidas às vezes cegamente, como diria Morin (2002, p. 26) “o paradigma é inconsciente, mas irriga o 21 “Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa educacional”, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela PAPIRUS, 2008. 50 pensamento consciente, controla-o e, neste sentido, é também supraconsciente”. Existem três enfoques que se tornaram tradicionais na pesquisa em Educação, constituindo-se em paradigma de pesquisa: a perspectiva empírico-analítica de base racionalista e positivista, identificada com o paradigma clássico ou tradicional; a perspectiva humanístico-interpretativa, de base fenomenológica e a perspectiva crítica baseada na tradição filosófica da teoria crítica. (SANDIN, 2003, p. 32). Pode ser bem ilustrativo considerar um exemplo, de como a visão que se tem do mundo interfere nas escolhas do pesquisador. Na perspectiva tradicional, a dimensão ontológica da realidade é ser estática, mensurável, objetiva, passível de fragmentação por observações e deduções lógicas; o conhecimento sobre ela só poderia ser linear, purificado de incertezas, determinado e, em muitos aspectos, mecanicista. A coerência paradigmática, nessa situação, exigiria um pesquisador neutro, um sujeito desprovido de nuances internas, assim como também exigiria meios de coleta de dados quantitativos, matematicamente rígidos, submetidos a análises muitas vezes reducionistas. Moraes (2004, p. 20), refletindo sobre essa questão, corroborou a contribuição das três perspectivas citadas acima, para a pesquisa educacional, mas consciente da necessidade de um novo paradigma para uma Educação renovada - em acordo com as exigências de uma realidade multidimensional, na qual sujeito-pesquisador e objeto de pesquisa passam a relacionar-se organicamente -, propôs um novo enfoque de pesquisa, o paradigma complexo ou eco-sistêmico: 51 No pensamento Eco-sistêmico, pelo contrário, a realidade é dinâmica mutável e multidimensional, ao mesmo tempo, contínua e descontínua, estável e instável. Uma realidade incerta e de natureza complexa. Esta linha de pensamento, que tem a complexidade como um dos fundamentos principais, ressalta a multidimensionalidade da realidade, dos processos, dos sujeitos, bem como a causalidade circular de natureza recursiva ou retroativa, a ordem em sua relação com a desordem, reconhecendo a presença do indeterminismo, da incerteza, do acaso e das emergências nos mais diversos níveis. Uma realidade, portanto, constituída de processos globais, integradores e não-lineares.22 22 “Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa educacional”, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela Papirus, 2008. 52 2.3.1 Princípios filosóficos na Metodologia de Desenvolvimento Ecosistêmico Uma pesquisa baseada na Metodologia de Desenvolvimento Ecosistêmico envolve uma multiplicidade de pressupostos filosóficos, que devem ser levados em conta; ressalto, a seguir, aqueles que me pareceram ser absolutamente imprescindíveis: A complexidade do real e de todos os processos em educação ― objetos de pesquisa, sejam pessoas, situações ou grupos, estarão sempre situados organicamente num ambiente e sujeitos a interações, interferências e interdependências, que passam a ser constitutivas da relação. A realidade é multidimensional, os sujeitos são multidimensionais, não há como estudá-los sem os inserir na teia da qual fazem parte. Por essa razão, inspirada em Morin, Moraes ensina que “toda ação é sempre ação ecologizada”23, o que significa que toda ação promove mudanças, alterações no ambiente, e que a pesquisa está sujeita a probabilidades, incertezas e conseqüências, nem sempre previsíveis. As próprias disciplinas tornam-se multidimensionais, quando se tem sobre elas um olhar que expande; a visão complexa reconhece o lugar das disciplinas, porém, em função de seus pressupostos, destaca a importância da interdisciplinaridade e a necessidade de ir além, através da Transdisciplinaridade. Visão transdisciplinar ― a Transdisciplinaridade originou-se da percepção que, existimos num mundo, no qual, diferentes dimensões ou níveis de 23 “Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida Moraes, a ser editado em 2008. 53 realidade coexistem, a começar pela coexistência da dimensão quântica inerente a toda a matéria, e pelo mundo macrocósmico, cenário de nossas vidas. Mais do que nunca a compreensão, do ser humano e da realidade multidimensionais, torna-se agora urgente. A Transdisciplinaridade impõe a abertura do olhar sobre o mundo, a expansão da consciência utilizando uma lógica que incorpore o aparentemente contraditório, a lógica ternária, sobre a qual se falará mais adiante. O ser humano em sua subjetividade, por “medida de segurança”, sempre esteve afastado da ciência; a complexidade humana colocava conseqüentemente, “neutro”, para em na evitar cheque pesquisa. o O contradições determinismo na ciência e, sujeito-pesquisador deveria ser e a falta de objetividade. A Transdisciplinaridade coloca o sujeito transcendente no centro do processo. Incorporação orgânica da subjetividade – felizmente, a objetividade não está mais associada à ausência de humanidade. A ciência elucidou a interdependência entre sujeito e objeto de estudo, e o quanto ambos exercem mútuas interferências; a objetividade só pode ser “objetividade entre parênteses”, como propõe Maturana (2002). Como pode existir realidade independente do sujeito que a observa? O sujeito está de volta à ciência com corpo, mente e transcendência, além de que, nossa mente é uma “mente encarnada” como ensinam Varela e seus colaboradores (2003). A pesquisa, neste momento, reconhece “o pleno emprego das forças subjetivas”, acrescenta Barbier (2002, p. 86). Nossas construções racionais, mais do que nunca, dependem de acordos intersubjetivos. Caráter processual – a pesquisa, na atualidade, vai perdendo o caráter determinista e incorporando cada vez mais a característica de processo auto-organizador, no qual, caminhar torna-se tão significativo quanto 54 chegar. As idas e vindas são interpretadas com naturalidade; encontra-se espaço para aprender com a experiência e o erro. Os agentes e componentes materiais da pesquisa encontram-se em interação, sujeitos à retroalimentação e à recursão24: resultados parciais são incorporados durante a pesquisa, transformando-a numa espiral evolutiva; a causalidade deixa de ser linear, transformando-se em causalidade circular. Processos caracterizam-se pela mudança no transcorrer do tempo, dessa maneira dão lugar a emergências, ou seja, a novas ocorrências. As emergências não devem ser compreendidas como “desvios de rota”, mas sim, como “novidades qualitativas”25, pois vivificam o processo de pesquisar, tornando-o orgânico, aberto, flexível, passível de incorporar novas descobertas que, cada vez mais, exigem um olhar atento do observador. Ética e valores – nunca antes foi tão necessário repensar as questões éticas e os valores que regem nossa cultura, pois agora é a própria sustentabilidade da vida que se encontra ameaçada. A biosfera está em perigo, pois não se soube tomar decisões pensando até a sétima geração a partir de nós, não se aprendeu a “escutar o abrir das folhas na primavera, o ruído das asas de um inseto”26; nem a preservar as relações humanas e o diálogo intercultural. A questão do respeito se impõe, e como não poderia deixar de ser, também na pesquisa científica: a preocupação com os sujeitos envolvidos deve ser a tônica, evitando todas as formas de manipulação, comunicando claramente intenções e resultados, assim como pautando todas as ações por decisões democráticas e não-autoritárias, baseadas no diálogo. 24 Segundo Morin, um processo recursivo é aquele no qual “os estados ou efeitos finais produzem os estados iniciais ou as causas iniciais”, gerando uma dinâmica circular. 25 “Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida Moraes, a ser editado em 2008. 26 Carta do Chefe Seattle. Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/chefe_seattle.htm. 55 2.3.2 Questões metodológicas na pesquisa de desenvolvimento Eco-sistêmico Na perspectiva tradicional positivista de pesquisa, o processo de pesquisar caracterizava-se por grande determinação; métodos, estratégias e cronograma deveriam estar rigorosamente previstos antes do início da pesquisa, não admitindo, portanto, a eclosão de emergências. Tal exigência, a priori, me faz pensar nos planejamentos escolares, realizados antes do ano letivo e antes de qualquer contato entre professores e alunos, feitos para um aluno abstrato e para uma turma ainda virtual; o planejamento deveria ser construído no iniciar das aulas, com a total participação dos sujeitos envolvidos, ou pelo menos, a partir desse contato, pois o planejamento não deveria preceder a existência de uma situação real; assim como “o método não precede a experiência, o método emerge durante a experiência e se apresenta ao final, talvez para uma nova viagem”. (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 20) Como explica Moraes27: Esta opção metodológica é conseqüência da percepção de que existe uma relação recursiva entre teoria e método, entre método e estratégia onde o método é gerado pela teoria que, ao mesmo tempo, regenera a própria teoria, bem como as estratégias derivadas da metodologia regeneram o próprio método que lhe deu origem. Assim, a partir do método de pesquisa é que se planejam as estratégias de ação capazes de responder às incertezas cognitivo/emocionais e históricas que se apresentam. Outra questão metodológica fundamental se evidencia a partir da frase de Maturana “tudo o que é dito, é dito por alguém” (MATURANA; VARELA, 2002, p. 32). A frase não nos permite esquecer, uma vez mais, que por trás da pesquisa existem subjetividades ― do pesquisador, dos sujeitos 27 “Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida Moraes, a ser editado em 2008. 56 envolvidos na pesquisa ― e que tudo o que se possa dizer sobre um fato ou situação tem sempre caráter interpretativo, é sempre a visão de um sujeito determinado, com um determinado conjunto de referências, sobre um fato da realidade que exige explicação. Construímos idéias, interpretações, roteiros para pensar sobre fatos em qualquer pesquisa, no entanto, não se pode esquecer que tais construções não constituem uma representação fiel da realidade, mas sim, uma interpretação possível, aquilo que se consegue perceber dela: ”o mapa não é o território”28, diria Korzybski, a realidade é sempre mais do que aquilo que se pode dizer sobre ela. Na pesquisa qualitativa com enfoque Eco-sistêmico, as hipóteses verificáveis são substituídas pela “pergunta de pesquisa”, mais aberta, admitindo o caráter processual em questão e, sobretudo, livre do determinismo gerado pela rigidez das etapas a seguir na confirmação de uma hipótese. Perguntas de pesquisa são mais adequadas à complexidade dos fenômenos humanos que se deseja conhecer. Em vista da grande abertura de olhar e flexibilidade metodológica propostos pela abordagem Eco-sistêmica de pesquisa, resta esclarecer de que maneira esta se submete aos critérios de rigor científico exigidos em qualquer pesquisa. Ao longo da trajetória científica e intelectual ocidental, a subjetividade sempre esteve associada à falta de rigor; a proposta Eco-sistêmica, como discutido anteriormente, revaloriza esse sujeito e tudo o que lhe caracteriza. O critério objetividade é substituído pelo de interação entre todos os participantes e componentes da pesquisa, articulados de forma coerente e 28 Frase de Alfred Habdank Skarbek Korzybski (1879-1950) filósofo e cientista polonês que desenvolveu uma teoria geral sobre a semântica. 57 intersubjetiva. A interdependência e coerência dessas partes garantem a consistência do todo; alterar uma parte significa alterar o todo e, conseqüentemente, invalidar todo o procedimento. Na perspectiva Eco-sistêmica, tampouco se fala de generalização ou transferibilidade, termos que se originam de um pensar absoluto, regido por leis absolutas e que ignoram a especificidade intrínseca a cada objeto pesquisado, seja indivíduo, grupo ou situação. A generalização coisifica o resultado da pesquisa, tornando-o neutro e transferível a qualquer ambiente, o que se sabe não ser mais possível. Os conceitos de polinização e fertilização do conhecimento substituem a possibilidade de generalização; cada pesquisa será sempre única, mas poderá partir de sementes, do pólen deixado por pesquisas anteriores como explicam Torre e Moraes29: “a polinização nos permite não só ir mais além do dado obtido sem renunciar ao contexto em que se gerou, mas também ser germe e origem de novas propostas”. Finalmente, e provisoriamente, visto que muito ainda haverá de ser dito sobre os critérios de rigor na pesquisa de abordagem Eco-sistêmica, parece importante ressaltar seu caráter ético, que oferece mais uma garantia de validade. A ética está presente na própria escolha do tema de pesquisa, na escolha do método e das estratégias e, sobretudo, nas relações sociais envolvidas, o que significa construir um diálogo democrático, franco e aberto com os sujeitos, com as instituições, e comprometer-se na divulgação e partilha de resultados. 29 Projeto “Escenarios y redes de aprendizaje integrado para una enseñanza de calidad” (ERAIEC) elaborado por Maria Cândida Moraes e Saturnino de La Torre, e promovido pela Red Internacional de Ecologia de los Saberes, em 2007. 58 2.3.3 Instrumentos de coleta de dados na pesquisa de abordagem Ecosistêmica A questão da coleta de dados numa pesquisa de abordagem Ecosistêmica segue a impulsão geral dos princípios filosóficos discutidos: tornam-se flexíveis na aplicação a fim de incorporar as exigências de uma visão complexa e transdisciplinar, para tanto, sujeitam-se às mesmas normas de processos orgânicos com suas interações, retroações, recursividades. Durante minha pesquisa, apenas para citar um exemplo claro, pude experienciar tal processo, pois a estratégia de Escuta Musical produzia, a cada aula, efeitos sentidos pelos sujeitos da pesquisa ― meus alunos. Estes, à continuação, agregavam a suas experiências anteriores, cada vez mais, referências vivenciadas em situação de escuta e de interação com o grupo, de tal maneira que é possível dizer que, a cada aula o grupo se transformava; e, conseqüentemente, transformavam-se os destinos da pesquisa e as decisões a tomar, assim como surgiam variações nas estratégias de coleta de dados, configurando um processo vivo de pesquisar, que apenas corrobora a fala de Moraes30: “dados não são coletados, mas sim, construídos”. Princípios éticos e valores não podem ser esquecidos quando se tem a intersubjetividade como um dos pressupostos epistemológicos. Na presente pesquisa, me inseri como observador ativamente participante no processo; tornei-me um elemento do grupo, entrando em interação e troca intersubjetiva com ele, revelando minhas intenções e partilhando decisões. Naturalmente, como em toda pesquisa, houve momentos em que não seria totalmente indicado que os alunos soubessem exatamente o que eu estaria 30 “Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida Moraes, a ser editado em 2008. 59 observando, mas passada a experiência, essa intencionalidade era comunicada, estabelecendo com eles um pacto de consentimento, informado no uso dos dados obtidos. A Metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico cria novos instrumentos de coleta de dados; não descarta os eficientes instrumentos já existentes, a exemplo da observação participante, da entrevista semiestruturada, da história de vida, do estudo de caso, entre outros, porém, os submete aos novos operadores cognitivos, constituídos pelos princípios da Complexidade que funcionam como instrumentos para um pensar complexo. Ela provoca uma expansão no que concerne à sua aplicabilidade num contexto complexo e transdisciplinar, como explicam Torre e Moraes31: “Não pretendemos gerar recursos únicos, mas sim, tomar alguns dos já existentes dotando-lhes de um olhar amplo, interativo, intersubjetivo e crítico”. Dentre os novos instrumentos de coleta de dados propostos pela Metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico, podem ser citados os que seguem: Testemunhos, Declarações de impacto, Depoimento ou declaração sentida, Depoimento coletivo; inspirados da proposta de Sentipensar, que possibilita a união de sentimentos, pensamentos e ações, ou seja, a incorporação do ser sensível e das emoções dos sujeitos. Idéias de inspiração artística também podem gerar instrumentos eficientes, a exemplo da Estratégia de encenação e das Dinâmicas criativas aparentadas do psicodrama. 31 Fala dos autores em projeto elaborado para a Rede Internacional de Ecologia dos Saberes, Barcelona, 2007. 60 A presente pesquisa se utilizou de uma dessas estratégias artísticas como instrumento de coleta de dados, que será descrita em detalhes no Capítulo 6. 61 3. A Complexidade: um novo paradigma para reencantar a educação A Complexidade não elimina a simplicidade (...) integra nela tudo o que põe ordem, clareza, distinção, precisão no conhecimento; (...) o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real(...) E. Morin Saber Cuidar Tatiana Clauzet 62 O cenário Eu era a aluna naquele ambiente ao mesmo tempo tão sonhado e hostil. Sonhado, pois, desde sempre eu havia sido criada para admirar aquele mundo europeu, a França, “o berço da cultura”; hostil, pois eu não havia dimensionado o quanto seria difícil navegar naquele mar de diferenças, ora encaradas como exóticas, ora encaradas como excludentes. Eu estava no Conservatoire National de Région de Musique de Lyon. O fascínio era grande ao ver aquele mundo tão bem preparado e instituído para estudar música em comparação ao nosso Brasil, onde há que ser bandeirante, explorador, desbravador dos sete mares, e ainda mais, há vinte anos. E o que dizer das bibliotecas e lojas nas quais era possível encontrar tudo o que se quisesse e tão acessível... Por outro lado, quem vive em São Paulo pode viver em qualquer lugar, quem é brasileiro está preparado para o mundo (são meus adágios preferidos), pois aqui nada nos é dado, e tudo deve ser duramente construído, o que tornava a experiência do conservatório e das bibliotecas francesas ainda mais fascinantes. Mas havia algo que, sem dúvida alguma, somente um brasileiro poderia ter: criatividade a toda prova; e mais que isso: poder de criação. A estrutura do conservatório era rígida, com sistemas de emulação e premiação, com professores ultracompetentes e rígidos, havia uns poucos ao lado de quem era possível respirar – não posso ser tão injusta. Ali também estavam presentes as diferenças culturais, havia cidadãos de segunda classe, aqueles considerados “muito velhos” para estar ali; eu estava inserida neste grupo, e estrangeiros, de uma maneira geral. Por duas vezes, pelo menos, senti que minha competência foi colocada em cheque: na primeira vez, quando numa aula se precisou de alguém que tocasse um acompanhamento ao piano, à primeira vista, ninguém se habilitou a fazê-lo; eu me ofereci, mas o professor hesitou, e pude ler em seu rosto que ele não acreditava que eu seria capaz; uma outra vez, falávamos de compositores contemporâneos e citei um compositor italiano que ele aparentemente não conhecia, senti também uma ponta de escárnio, “eu deveria estar enganada”, “ele nunca ouvira falar daquele compositor...” 63 Havia um professor especial, o incômodo que ele me causava passou a ser algo subliminar em minha vida, ele era tão sábio e competente quanto frio; e um ano depois de conhecê-lo, passou a habitar meus sonhos e depois minhas sessões de terapia. Ele maravilhava a todos com todo o conhecimento que tinha, e sua capacidade de tocar quase qualquer obra do repertório ocidental em qualquer tonalidade, e suas leituras de Bachelard, entre muitos outros talentos. Ele costumava dizer-nos que se começássemos a estudar assiduamente naquele momento quando morrêssemos teríamos apenas uma pequena parte do conhecimento necessário, etc. etc.. Sua disciplina era Análise musical – período clássico. Estávamos analisando todos os segundos movimentos de sonatas de Beethoven. Um dia, uma dessas sonatas ficou como tarefa e ele colocou como dever de casa o desafio de descobrir a forma musical daquele movimento. Lancei-me à tarefa com entusiasmo, como sempre fazia, escutei inúmeras vezes e a forma continuava ambígua, poderia ser uma forma lied, mas por alguma razão, achei também que poderia ser uma forma sonata sem desenvolvimento e isso seria bem pouco usual e eu nem sabia se existia... A dúvida cresceu e decidi levá-la para a sala de aula. A aula começou naquele lugar que tinha mais ou menos a estrutura física de um tribunal. Ele perguntou com uma ponta de ansiedade quem tinha feito a tarefa. Respondi logo que eu tinha feito e como sabia que deveria tentar ser o mais objetiva possível, eu disse que poderia ser uma forma lied, mas também uma forma sonata sem desenvolvimento. O tempo fechou. O professor ficou muito incomodado e disse agressivamente, “e se fosse a prova? você responderia que tanto pode ser uma coisa como outra? Como ficaríamos? Que nota eu poderia lhe dar, zero ou dez?” Na época, eu não dispunha de arsenal argumentativo, apenas me calei, e a aula transcorreu normalmente durante duas horas com muitas citações de Bachelard e outros filósofos, com muitas intervenções ao Piano, exemplos e explanações competentes, e... ao final, depois de muitas idas e vindas, ele enunciou com ênfase que a forma era sonata sem desenvolvimento. Compreendi que eu não poderia ter tido o direito de antecipar-me, eu não poderia ter tido sucesso na tarefa, pois isso não estava previsto, e ainda mais eu, uma sul-americana... 64 Comentário sobre a experiência A experiência relatada acima é uma experiência típica do cenário educacional tradicional que todos de minha geração conheceram tão bem: não-dialógica, opressora, magistocentrista, um tipo de experiência que nega o outro e a subjetividade do outro e, com isso, tudo que pode haver de incerto na maravilhosa construção que é o humano. O professor não havia compreendido ainda, apesar de sua erudição, o quanto a partir de agora nossas vidas estariam regidas por incerteza, o quanto existe a aprender na ambigüidade e, até mesmo no erro; não havia aprendido a conciliar opostos, apenas aparentemente contraditórios. Zero ou dez poderia ser a nota, não havia intermediação, nada de caminho do meio, nada de discutir e chegar juntos à conclusão, a resposta deveria vir de um só, e esse indivíduo era ele. O professor vivia plenamente na dimensão cartesiana, como aliás é bem natural na França, mas poderia não ser, pois de lá também vieram os grandes, alguns dos mais importantes pensadores de todos os tempos, de uma visão integradora da vida: Lupasco, Morin, Random, entre outros. No entanto, aquele professor ainda tinha algo a aprender, pelo menos mais uma coisa: como conceber a vida de forma não-fragmentária. 65 3.1 Um mundo fragmentário Tal como noutros períodos de transição, difíceis de entender e de percorrer, é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade. Boaventura Sousa Santos As concepções sobre a Educação têm que mudar com urgência, e a questão da fragmentação de processos e do ser humano pareceu-me ser um ponto focal dos mais importantes para essa discussão. Colocar a fragmentação no centro da questão realça todas as formas possíveis de integração, pois vive-se num universo educacional cindido, tanto no nível macro, quanto no nível micro, como bem explica Moraes (1999, p. 85): A cosmovisão quântica implica, em nível macro, uma concepção de totalidade da realidade a ser transformada, a formulação de conceitos e modelos interligados, e o desenvolvimento de organizações sociais correspondentes, que se comuniquem e cooperem entre si. Pressupõe um movimento dialético entre as diferentes esferas do poder público, entre as diversas instâncias setoriais, para que demandas comuns e específicas sejam, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada. No nível individual, essa cosmovisão importa um novo diálogo criativo entre a “mente” e o “corpo”, entre interior e exterior, sujeito e objeto, hemisfério cerebral direito e esquerdo, consciente e inconsciente, indivíduo e seu contexto, ser humano e natureza. Até que ponto a educação, os ambientes de aprendizagem, as propostas curriculares e as práticas educacionais vêm facilitando esses diálogos? O diálogo do indivíduo consigo mesmo, com a sociedade e a natureza? 66 Por outro lado, em esferas mais restritas e diretamente ligadas à sala de aula, como é o caso, por exemplo, do ambiente pedagógico e administrativo das escolas, os níveis de fragmentação permanecem; o ser humano e suas necessidades foram esquecidos no processo. Não é totalmente surpreendente que se tenha chegado a isso diante de nossa descendência intelectual; refiro-me ao pensamento cartesiano e a todas as idéias que ajudaram a forjar o paradigma mecanicista sob o qual temos vivido nos últimos quatro séculos. A Educação pode ligar mundos, o macro e o micro, o externo e o interno, o individual e o coletivo, razão e emoção, e tudo isso ocorre simultaneamente enquanto se vive a vida e a escola. Ao confrontar estes extremos e sua possibilidade de ocorrência simultânea, percebe-se num mundo de complexidade, um mundo paradoxal, impreciso, aberto, no qual os opostos convivem, se complementam, dialogam, interagem. O ser humano é complexo em sua multidimensionalidade; a Educação é complexa em sua multidimensionalidade. A unidimensionalidade falseia a compreensão da realidade, trata-se de “um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e apreender a complexidade do real”, como diz Morin (2003, p. 14). O movimento filosófico e científico que se constrói na atualidade, aponta para uma realidade extremamente mais complexa, multifacetada, para um ser humano cheio de mistério. Todas as formas de redução falharam, o paradigma disjuntor, como diria Morin, não dá mais conta de explicar esse mundo de complexidade no qual estamos imbricados. 67 3.1.1 Mas... O que é Complexidade? A Teoria da Complexidade oferece uma nova perspectiva de compreensão e análise do mundo. A palavra vem sendo utilizada desde fins dos anos 60; dentre uma plêiade de pensadores a ela dedicados destaca-se Edgar Morin, que a define como complexus, ‘o que é tecido em conjunto’. Na concepção cotidiana, a palavra complexidade remete ao que é difícil, à complicação, este é seu sentido coloquial. A complexidade se nos apresenta como uma realidade ampla, difícil de abraçar, um “fenômeno quantitativo: extrema quantidade de interações e interferências entre um número muito grande de unidades” (MORIN, 2003, pg. 51). Porém, complexidade não é complicação: o ser humano não é complicado, a realidade não é complicada; ambos são fenômenos complexos e isso quer dizer que fazem parte de um ambiente complexo de conexões e que devem ser considerados a partir de uma multiplicidade de pontos de vista. O pensamento disjuntor racionalista não se habituou à análise contextualizada, coloca-se agora a necessidade urgente de reaprender a pensar de forma integrativa, reinserindo seres e fenômenos em seu ambiente. Trata-se de uma concepção sistêmica; parte do pressuposto de que esses fenômenos são complexos, articulam em si grande número de aspectos integrados numa dinâmica relacional e organizacional interna, que depende de uma interação com o meio. O pensamento complexo ensina que somos seres relacionais, indivíduos em interação com a sociedade – embora internamente constituídos por uma outra dinâmica - e ainda, que tecemos juntos a teia da vida. 68 3.1.2 Inteligência Cega: O paradigma simplificador (...) o simples não existe: só há o simplificado(...) Gaston Bachelard Tudo o que se pensa e se faz, é decidido pelo paradigma que nos rege, não se escolhe um paradigma. Este, pode ser compreendido como o conjunto de idéias que se forma sobre determinado assunto ou situação, sejam estas conscientes ou inconscientes. Desde o útero materno vivenciamos os paradigmas de nossos pais, as idéias e experiências que estes consideram boas e adequadas. Valores e crenças nos são ensinados pelas pessoas que mais amamos: pais, parentes, professores e, por isso é tão difícil questionar e perceber o próprio comportamento. Uma mudança de paradigma exige mexer no âmago do ser, questionar; exige estar sempre munido da palavra “por que?”. Segundo Koellreutter, a palavra por que é uma universidade, pois através dela e simplesmente dela, se torna possível chegar à compreensão de qualquer coisa que se deseje, e caso se una ao questionamento um olhar agudo e perspicaz, não haverá dificuldade no mundo que fique sem resposta. Foi assim que, prodigiosamente, se ergueu todo o império da civilização, na esteira de uns pioneiros, às vezes, tidos como loucos, que sempre se perguntaram de antemão: por que? e partiram em busca da resposta. O senso comum ― aquele conjunto de idéias intuitivas que se tem sobre como fazer alguma coisa ―, em geral, espontâneo e acrítico, é que torna tão difícil promover a mudança na escola. (LUCKESI, 2000, p. 95) 69 Além disso, se está também sob o domínio da Inteligência Cega, como diria Morin, a inteligência que fragmenta, disseca para compreender, esquecendo-se de voltar ao todo, que toma a parte pelo todo. Em última análise, é um tipo de inteligência que retira do ser humano o que há de mais humano: sua complexidade, sua multidimensionalidade, adotando formas reducionistas para atender a esse ser. A Inteligência Cega é “um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de apreender a complexidade do real”. O simples não existe, as menores coisas estão inseridas em teias complexas de relacionamento. Em música, sempre se nutre algum preconceito em relação às peças simplificadas para Piano, por exemplo. Na simplificação, a obra conserva algo de sua essência, a melodia talvez, que emocionalmente cativa ao ouvinte. Este, se interessa apenas por ter acesso à parte da música que lhe cativou, negligenciando o ambiente do arranjo criado pelo autor. No entanto, a sutileza concebida pelo autor, em termos de um acompanhamento diáfano, com harmonias bem encadeadas e surpreendentes, se esvai, dando lugar a uma espécie de vaidade do ouvinte, que se empenha em ouvir aquilo que entende ser a obra musical; o simples, por outro lado, nada perde e tudo agrega, basta pensar nas pequenas peças do ‘Microcosmo’, de Bela Bartok, ou naquelas de J. S. Bach, compostas para o livro de Anna Madalena, muito simples, acessíveis a qualquer iniciante; preservando, porém, sua essência, sua integridade; nelas, o autor continua presente, na íntegra. O Pensamento Complexo recusa todas as formas de simplificação e recupera, para seres e fenômenos, a complexidade do real. Este se parece muito mais com uma teia, a teia da vida, como diria Capra (1996). Na teia, 70 todas as partes se interligam. Tornam-se interdependentes, e alterar parte dela promove sua total mudança. A escola trabalha com concepções disjuntivas: separa as dimensões do aluno, separa o professor do aluno, negando a dialogicidade que anima este relacionamento; isola conteúdos de seu contexto histórico e da trama estrutural que poderia via a clarificá-los, desintegra o processo de ensinoaprendizagem. Na visão educacional magistocentrista, vigente por tanto tempo e ainda resistente em nossa época, se tem a garantia de que existe o ensino, mas nem sempre se pode garantir que exista a aprendizagem, pois esta deveria se dar na troca efetuada entre os atores, e entre estes e o ambiente que os envolve. Paulo Freire, o grande apóstolo do diálogo, coloca a prática dialógica no cerne de qualquer processo em Educação. A nova cegueira fragmentadora e alienante coloca em risco o próprio destino da humanidade; o uso inadequado da razão, a substituição dos valores qualitativos pelos quantitativos, a valorização desenfreada do consumo e do dinheiro, a mercadologização de tudo e de todos, podem destruir as possibilidades antes que se concretizem: Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o séc. XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear faz-nos temer que o séc. XXI termine antes de começar. (SANTOS SOUSA, 2003, pg. 14) 71 3.1.3 Século XVI: uma revolução paradigmática: o paradigma tradicional mecanicista Na filogênese do pensamento ocidental, aprende-se a mutilar o todo, seccioná-lo em pequenas e, pretensamente, mais compreensíveis partes; essa é a essência do método científico. O pensamento que sustenta nossa ação é o do Paradigma cartesiano, mecanicista, chamado por Morin “paradigma simplificador”. Descartes plasmou a transformação do pensamento, em curso nos sécs. XVI e XVII. Suas idéias simbolizaram e materializaram uma ruptura com a concepção medieval do mundo ― configurada pelo pensamento aristotélico e pela doutrina escolástica32. Esta revolução paradigmática engendrou uma nova concepção de mundo: “Os protagonistas do novo paradigma conduziram uma luta apaixonada contra todas as formas de dogmatismo e de autoridade” (SANTOS, 2003, p. 15). Uma nova ordem científica estava se consolidando e lançando as bases de uma nova forma de ideologia ― o cientificismo. Esta afetaria profundamente a humanidade, e iria imperar soberana pelos séculos seguintes. Descartes é tido como um dos pensadores mais importantes e influentes da história ocidental; sua prioridade era construir um “método” para a busca da verdade, partindo do zero e descartando todas as doutrinas que lhe haviam sido ensinadas: “Meu desígnio se limita a tratar de reformar meus próprios pensamentos e edificar sobre um terreno inteiramente meu, e 32 O problema-chave da filosofia escolástica é harmonizar as esferas da fé e da razão. Seus maiores representantes foram Sto. Agostinho (final do séc. IV) e São Tomás de Aquino (séc. XIII). Separados no tempo e no espaço por quase um milênio, dão a justa medida do poder da Igreja durante todo o período medieval, o que justifica plenamente a oposição que passa a sofrer, a partir do séc. XVI. 72 se vos apresento aqui o modelo, tendo me satisfeito bastante minha obra, a ninguém aconselho por isso que a imite”. Para tanto, decide “descartar como absolutamente falso” tudo aquilo que lhe oferecesse a menor dúvida (DESCARTES, 1984, pg. 13). Assim, descarta os sentidos que enganam, descarta demonstrações racionais “porque há homens que se equivocam ao raciocinar”, desconfia de seus próprios pensamentos, pois “estes podem apresentar-se também como sonhos sem nada de realidade”, mas chega a uma verdade que considera inquebrantável: para poder duvidar de todas as coisas, era necessário que ele próprio – o que pensa – existisse com certeza. Daí então a célebre frase: “Penso, logo existo”. Ao estabelecer o pensar como critério único de existência, promoveu uma cisão indelével no ser humano. Por um lado, ficou o sujeito pensante (ego cogitans), o ser reflexivo; por outro lado, a vida material, o corpo, os objetos do mundo (res extensa). Ao interpretar a matéria como alguma coisa totalmente separada da alma, o mundo como uma coleção de objetos, e o corpo humano como um conglomerado de funções independentes, o terreno estava fertilizado para o florescimento de uma visão mecanicista de mundo; o corpo humano e o cosmos transformaram-se em máquinas. Isaac Newton foi um dos principais arquitetos da visão de mundo mecanicista. Em 1666, formulou a Lei da Gravitação Universal, e, em 1687, as Leis do Movimento33, uma verdadeira revolução científica, a partir da qual veio a consagração e quase 33 Essas leis foram apresentadas em seu livro intitulado Philosophiae Naturalis Principia Mathematica e consistem nos seguintes enunciados: Primeira Lei ou princípio da inércia: Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças imprimidas sobre ele. Segunda Lei ou princípio fundamental da mecânica: A mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida, e é produzida na direção da linha reta na qual aquela força é imprimida. Terceira Lei ou lei de ação e reação: A toda ação há sempre oposta uma reação igual, ou, as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas a partes opostas. 73 sacralização de sua teoria, tida como uma explicação absoluta para o funcionamento do mundo por pelo menos 250 anos, até ser contestada pela Teoria da Relatividade e pelas surpreendentes descobertas da Teoria Quântica, no séc. XX. Como ilustra Capra (1983, p. 25): Essa visão mecanicista do mundo foi sustentada por Isaac Newton, que elaborou sua mecânica a partir de tais fundamentos, tornando-a o alicerce da Física clássica. Da segunda metade do séc. XVII até o fim do séc. XIX, o modelo mecanicista newtoniano do universo dominou todo o pensamento científico. Esse modelo caminhava paralelamente com a imagem de um Deus Monárquico que, das alturas governava o mundo, impondo-lhe a lei divina. As leis fundamentais da natureza, objeto da pesquisa científica, eram então encaradas como as leis de Deus, ou seja, invariáveis e eternas, às quais o mundo se achava submetido. A visão mecanicista de mundo depende de um determinismo absoluto; a máquina do mundo, posta a funcionar por iniciativa divina, era completamente previsível; conhecendo-se as causas iniciais, se poderia prever todo o comportamento dos corpos e fenômenos. A causalidade linear, intimamente associada ao pensamento determinista, viria a desmoronar; toda e qualquer forma de determinismo causal viria a ser abalada a partir de meados do séc. XIX, com descobertas impactantes no campo da Biologia, da Termodinâmica, da Física, da Cosmologia, estendendo-se também às ciências humanas. O mundo não seria mais o mesmo, nem as concepções sobre ele; uma nova revolução paradigmática estava se armando. 74 Tais doutrinas fertilizaram o terreno para uma concepção materialista da vida e do ser humano. O Iluminismo34 e o Positivismo da segunda metade do séc. XVIII são os últimos alicerces de uma visão de mundo centrada na racionalidade, na objetividade e na exclusão de qualquer possibilidade metafísica. 34 Movimento filosófico da segunda metade do séc. XVIII – século das luzes, na França ― que propunha a razão e a ciência como formas para a explicação de todos os campos da experiência humana. 75 3.2 Fragmentação e mecanicismo na situação escolar Voltando ao cenário inicial deste Capítulo, lá estava eu, no Conservatório de Lyon, no olho do furacão; forças antagônicas lutavam entre si: o sonho e minhas projeções interiores, por um lado, versus o ambiente marcadamente determinista que encontrei, um ambiente que em muito me desiludia; não era aquilo que eu esperaria encontrar. A escola também é assim; como professores, desejamos que seja um espaço de ensino, de silêncio, concentração; não é nada disso, porém, o que esperam os alunos. Estes vêem na escola mais um espaço de convivência, mais um espaço para viver a vida. Eu era ‘diferente’ no Conservatório; muito mais velha do que deveria ser, segundo o paradigma vigente, apesar de ter apenas vinte e oito anos; pouco para mim, muito para eles. A diferença era muitas vezes exótica, mas na maior parte do tempo excludente; sempre havia um momento para eu ser lembrada que era diferente... e assim é, também, em qualquer sala de aula: “seres exóticos” são rapidamente enquadrados, ainda quando pouco se sabe sobre eles. Aquele ambiente padecia de muitos contrastes que não dialogavam, muitas oposições que não se encontravam; por um lado, o professor em sua racionalidade técnica cartesiana, por outro lado, alunos sem voz; por um lado, aqueles que foram premiados, por outro, aqueles que estavam errados, a priori; por um lado, excesso de autoconfiança, por outro, desconfiança total do conhecimento do outro; por um lado, a dúvida e o erro construindo um caminho de conhecimento, por outro lado, a exigência do acerto, e em presença dele, sua negação, em nome do ego exacerbado. 76 Era um ambiente problemático. Os ambientes escolares sempre se tornam problemáticos quando o outro lado não tem voz, quando a redução e a disjunção impedem que os opostos aparentes se integrem numa lógica ternária35 e inclusiva; e, quando erros não são interpretados como emergências resultantes da riqueza do processo. Mais uma vez, trata-se da fragmentação que separa: fragmentação de processos, fragmentação de disciplinas, fragmentação da visão de mundo e, sobretudo, fragmentação do ser humano que existe no aluno. A esse processo incessante de fragmentação de tudo e de todos, herança das origens culturais e do paradigma racionalista disjuntivo que nos tem sido transmitido, Morin denominou Inteligência Cega, como discutido anteriormente. Na Educação, além de tudo, suporta-se um processo neoliberal feroz. Escolas transformam-se em empresas, o conhecimento se torna uma mercadoria, pais e alunos consumidores. Professores são desautorizados em sua função de educar, pois no paradigma mercadológico em que se assenta boa parte das escolas, os esforços concentram-se em incrementar a mercadoria, e não exatamente na transformação interior que a Educação pode e deve promover. A Inteligência Cega e mutiladora continua coordenando as concepções sobre o aluno e sobre o processo de educar. Por tudo isso, a Complexidade me pareceu uma teoria tão adequada para discutir os problemas educacionais e, o Sentipensar uma necessidade tão urgente. Os princípios 35 A lógica ternária é a lógica da Transdisciplinaridade; nela, os opostos se integram através de um terceiro termo, o Terceiro Incluído, como exemplifica a própria temática desta tese: sentir, pensar, conduz ao sentipensamento. É a lógica adequada para a análise de fenômenos complexos, pois permite transcender e ir além do aparente. 77 da Complexidade, também denominados por Morin ‘operadores cognitivos’, oferecem um excelente pano de fundo filosófico para a transformação da Educação, em teoria e prática. 2.1 Análise dos problemas educacionais à luz dos operadores cognitivos da complexidade A inteligência cega destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos os objetos daquilo que os envolve. Não pode conceber o elo inseparável entre o observador e a coisa observada. Edgar Morin Operadores cognitivos são princípios básicos que nos ajudam a conhecer e interpretar os fatos e processos da realidade, ou seja, nos permitem operacionalizar o trânsito das idéias, relacionando aspectos, circunstâncias e sujeitos compreender. Segundo envolvidos Moraes (1997, nas p. situações 13), “são que se deseja princípios-guia constitutivos de um pensar complexo”. Concepções reducionistas e fragmentárias têm sido adotadas sobre o aluno, sobre o currículo e sobre o processo educacional como um todo. O saber do aluno, via de regra, não é incorporado; a dimensão privilegiada é a da racionalidade. O mesmo se pode dizer do currículo, tradicionalmente tratado como uma organização estática, uma reunião de conteúdos extremamente hegemônica, fragmentária, reducionista, disjuntiva, linear, fechada ao fluxo de informações. Numa concepção abrangente de Educação, o currículo torna-se um tecido complexo, multidimensional e aberto ao novo. 78 Todas essas “perdas” foram abundantemente exemplificadas pela situação narrada na abertura deste Capítulo. A seguir, algumas considerações sobre o processo educacional a partir dos operadores cognitivos da Complexidade. O Princípio Sistêmico-organizacional Através deste Princípio, chega-se a compreender os atores e componentes do processo educacional ― educador, educando, conhecimento, relação professor-aluno, relação sujeitos/meio, conteúdo, material didático, procedimentos de ensino, currículo, avaliação – como sistemas orgânicos em estreita relação, entre si, e com o ambiente. Os sistemas vivos são abertos em suas trocas de energia e informação com o meio, porém fechados em sua forma de operar. Assim como os sujeitos necessitam fechar-se em sua individualidade utilizando seus recursos cognitivos para que se realize o processo de ensino/aprendizagem, necessitam igualmente abrir-se para a influência do meio; a autonomia de cada um é estritamente dependente do fluxo de informações que circula e não pode construir-se no isolamento. Isso implica numa dinâmica relacional. “A inteligência cega destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos os objetos daquilo que os envolve”, ensina Morin (2003, p. 18). Destrói, portanto, a possibilidade de concepção do aluno, dos processos educacionais, e do currículo como conjuntos integrados, totalidades; isolaos do contexto promovendo a fragmentação. Separa o aluno do conhecimento e da possibilidade de refleti-lo; separa o professor do aluno, 79 inviabilizando as relações qualitativas entre ambos. Esse foi o acontecimento notável de minha experiência no Conservatório de Lyon, o isolamento e a fragmentação, passaram a afetar a qualidade do relacionamento humano e, portanto, a produtividade do processo de aprendizagem. A falta de troca, ou seja, o bloqueio do fluxo gerou desassossego e menos eficiência. Princípio Retroativo A organização interna de um ser vivo ou de um processo depende de circuitos retroativos; estes, rompem a causalidade linear e instituem a causalidade circular, se retroalimentam circularmente produzindo organização, “o circuito retroage sobre o circuito, renova a sua força e a sua forma, agindo sobre os elementos/acontecimentos que, caso contrário, tornar-se-iam logo particulares e divergentes”, explica Morin (2005, p. 228). O organismo humano é resultado de um processo de múltiplas retroações organizadoras, fechadas em si, produzindo sua auto-regulação, a exemplo da circulação do sangue, do ar, a circulação de alimentos, os hormônios, entre milhares de outros circuitos. Da mesma maneira retroorganizadora e circular, se dá o processo educacional; os hábitos de ler e escrever, por exemplo, a cada vez que postos em prática, reorganizam aquisições anteriores que são então reforçadas. O mesmo se dá nas relações humanas; o fluxo energético da troca acontece no circuito orgânico das relações, circularmente: simpatia gera simpatia, diálogo gera diálogo, opressão gera opressão, violência gera violência, sempre que realimentados no fluxo retroativo. Por isso, dizia Jung, (1963) que a aprendizagem depende de um “vetor emocional” que se 80 estabelece entre professor e aluno; talvez se pudesse falar de um circuito emocional que opera circularmente, gerando motivação e alegria de aprender, ou quando não existe, levando ao desânimo e à tristeza. Princípio Recursivo E de circuito em circuito, chegaremos ao circuito recursivo ao mesmo tempo o mais fechado e o mais aberto: a consciência do homem. Edgar Morin “A dinâmica engendrada a partir deste princípio, vai além da pura retroatividade auto-reguladora, pois gera uma dinâmica de natureza autopoiética, ou seja, auto-produtora de sua organização, auto-produtora daquilo que a produz. Maria Cândida Moraes Um processo recursivo é aquele no qual “os estados ou efeitos finais produzem os estados iniciais ou as causas iniciais” (MORIN, 2005, p. 231). Ao final de minha dissertação de Mestrado, lembro-me de haver pensado e escrito: ‘todo final é um recomeço, todo final é um novo portal que se abre a realizações’. Eu me sentia profundamente transformada, o fluxo e a energia do crescimento haviam perpassado meu ser, eu estava ali inteira, e pronta para realimentar novo processo. O resultado de minha transformação é que me permitiria continuar. A Educação poderia ser definida como um “multiprocesso retroativo” fechado em si mesmo e aberto ao fluxo de informações proveniente do meio. Tais processos, representados por minicircuitos retroativos – aprender a ler, compreender o significado denotativo e conotativo das palavras, relacionar conceitos, partilhar informações, entre muitos outros – se influenciam, “se geram, e, se regeneram”, como diria Morin (2005, p. 81 231), atuando na transformação profunda do educando; o circuito global resultante da interação de todos esses circuitos mais específicos é o significado da recursão; um educando renovado emerge e, sobre essa estrutura cognitiva global é que se erguerão novas descobertas. A recursividade é característica da vida e de todos os processos vivos; através dela ocorre a renovação constante, a dialógica interativa entre a ordem e a desordem, e as múltiplas aprendizagens que advêm da possibilidade de unir opostos contraditórios que se tornam complementares. Princípio Hologramático A relação antropossocial é complexa, porque o todo está na parte que está no todo. Edgar Morin O Princípio Hologramático evidencia a tensão entre o todo e as partes, e ao mesmo tempo a transcende; vai além do holismo, pois o todo nada pode agregar sem a dinâmica interna gerada a partir do relacionamento entre as partes, que geram o todo; vai além do reducionismo, pois é no todo que a parte encontra plena razão de ser. Esse princípio é biológico ― cada célula do corpo contém a informação da quase totalidade do que somos – e, é social – contemos em nós todos os produtos da sociedade que integramos; valores, crenças, mitos e o conjunto de tudo isso: nosso substrato cultural. Produzimos a sociedade e somos produzidos por ela. Produzimos a escola e somos produzidos por ela. A incorporação desse princípio impede 82 qualquer forma de absolutismo: o professor é também uma das partes desse grande todo social, carrega em essência a mesma cultura do aluno. Dessa maneira, todas as produções escolares, o material didático, os conteúdos, o currículo, estão impregnados de dupla autoria: indivíduo/sociedade. Uma questão deve se colocar sempre: a quem pertencem estas idéias? Ou ainda, quem são todos esses outros que vivem em mim? Princípio Dialógico (...) tudo o que produz ordem e organização produz também irreversivelmente desordem. Edgar Morin O Princípio Dialógico também poderia ser chamado Princípio da Integração; é o que permite associar termos antagônicos, mas complementares. De uma forma geral, idéias antagônicas se excluem dentro de uma lógica formal clássica; a primeira forma de inclusão seria justamente a do pensar integrador; por isso Morin (2002) propõe, como um de seus sete saberes, ensinar a compreender os princípios do conhecimento pertinente; é o conhecimento que se opõe ao pensamento disjuntor e descobre as ligações e interdependências existentes nos fatos, relacionamentos e processos. Um exemplo muito iluminador é a dialógica existente entre ordem e desordem, que esteve presente na própria gênese do Universo, na organização e constituição de qualquer ser vivo e, naturalmente, na construção do conhecimento. Morin explica o diálogo entre ordem e 83 desordem e como ambas são mutuamente geradoras através do circuito tetralógico: desordens interações ordem organização A turbulência inicial, resultante da “catástrofe térmica original”, desencadeou as interações entre partículas que, ao longo de milhões de anos, ao se tornarem recorrentes, puderam gerar as primeiras moléculas e os princípios da vida. Os processos educacionais não dependem de uma catástrofe inicial geradora, porém, incorporam a dinâmica dialógica entre ordem e desordem. A cada vez que se escreve um texto, que se reorganiza um currículo ou material didático, subitamente nos inserimos no caos da presença de todos os elementos misturados, e num tipo de desordem que, com a reflexão, se reorganiza e volta a ser ordem. Esse movimento dialógico representa o inacabamento, a abertura de todos os processos e, naturalmente, o inacabamento do ser humano em constante construção e reconstrução. Em Educação, o Princípio Dialógico ensina a aceitar e conciliar opiniões divergentes, aceitar as diferenças, e a lançar sobre o conhecimento e sobre nossos semelhantes um olhar aberto, expansivo e integrador. Numa concepção dialógica de Educação, a frase de meu professor francês não poderia ter lugar: “e se fosse a prova? Você responderia que tanto pode ser uma coisa como outra? Como ficaríamos? Que nota eu poderia lhe dar, zero ou dez?” 84 Princípio da Auto-Eco-Organização Por importância trás desse capital princípio para a vida encontra-se e, um naturalmente, macroconceito para o de processo educacional. Organização implica em circuitos retroativos circulares e na coordenação destes no processo de recursão; a organização de seres viventes e seus processos se tornam realidade a partir da recursividade. Auto é tudo o que se refere ao si, a como os seres se organizam, reorganizam e se transformam, no processo de auto-organização, o que quer dizer que os organismos são produtores de si mesmos, seres autocriadores; a palavra eco, por sua vez, indica justamente essa inserção no ambiente, de forma ecológica e nutridora. A relação com o meio depende de fluxos nutrientes, seja no plano biológico ou no plano sociológico; depende-se do meio para obter energia e informação. Como seres vivos, temos uma base de constituição físicoquímica e estamos sujeitos às leis da Termodinâmica. O processo educacional tende a tornar-se entrópico36, desordenado, pela degradação da energia; isso é uma peculiaridade de todos os sistemas vivos e não-vivos – máquinas, por exemplo ― que se utilizam de algum tipo de energia. As trocas 36 Esse trecho escrito por Morin (2005, p. 53), aclara o conceito de entropia: O segundo princípio da Termodinâmica, formulado por Clausius, em 1850, estabelece a idéia de degradação de energia, e introduz a idéia de entropia: enquanto todas as formas de energia podem se transformar integralmente uma na outra, a energia que toma a forma calorífica não pode se reconverter inteiramente, perdendo então uma parte de sua aptidão para efetuar um trabalho. Ora, toda transformação, todo trabalho libera calor, contribuindo para esta degradação. Essa diminuição irreversível da aptidão de se transformar e de efetuar um trabalho, própria do calor, foi denominada por Clausius de entropia. 85 constantes efetuadas com o meio circundante é que devolvem os sistemas à ordem, através de uma afluência constante de energia. O alimento não deve ser provido somente ao corpo físico; o conhecimento alimenta o espírito – é um tipo de energia ―, por isso em Educação é tão importante permitir que ocorram os fluxos, primeiramente, nas trocas entre as pessoas, que devem ser reais e qualitativas; para que isso ocorra é necessária a abertura, novamente o olhar que expande e o pensamento que integra. É necessário interpretar os componentes do processo educacional com grande flexibilidade, sujeitos aos fluxos, às trocas e à mudança, características de todos os processos vivos. Princípio da reintrodução do sujeito cognoscente A objetividade , instituída como critério supremo de verdade, teve uma conseqüência inevitável: a transformação do sujeito em objeto. A morte do homem, que anuncia tantas outras mortes, é o preço a pagar por um conhecimento objetivo. Basarab Nicolescu O mundo paradoxal e surpreendente da Física Quântica e da Relatividade, reintroduziu o sujeito com total vigor. Este passou a afetar a realidade observada, passou-se a viver a Era da Dialogia sujeito-objeto. A Ciência sempre primou por um distanciamento entre pesquisador e coisa pesquisada, estabelecendo como critério a neutralidade. A partir da descoberta da imbricação existente entre sujeito e objeto, nos fenômenos quânticos e na Teoria da Relatividade, a própria ciência passou a admitir o espaço da subjetividade. 86 A Educação, mais que qualquer outra área, tem que primar pela formação do humano, por promover a transformação do pensamento e, coerentemente, saber lidar com a diversidade de tipos humanos, garantindo seu espaço subjetivo de manifestação e de interpretação da realidade. A educação terá que partir, cada vez mais, de um sujeito que conhece e transforma a realidade a seu modo. As transformações requeridas para a prática pedagógica têm sido exaustivamente discutidas na atualidade, deixando, porém, à margem, um aspecto essencial: a formação do ser interior. Ao tomar como exemplo a formação do professor, dentre todos os fatores citados como obstáculos à sua mudança, encontra-se a mesma falha, referente a seu desenvolvimento pessoal, emocional, criativo, relacional e filosófico. Esta dimensão não está ausente do discurso educacional, mas sim, encontra-se ausente das práticas formativas; é necessário repensar a formação inicial e contínua do professor, para que se contemple essa faceta de forma séria e duradoura, tanto quanto é necessário repensar a formação do educando. 87 3. Conclusões (sempre) provisórias: uma possível era do sujeito. Pensamos situar-nos hoje num ponto crucial dessa aventura, no ponto de partida de uma nova racionalidade que não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância. Ilya Prigogine A ordem cósmica só poderia inventar um observador abstrato. Somente a desordem poderia revelar a seus próprios olhos o observador concreto. Efetivamente, enquanto a ordem é justamente o que elimina a incerteza, apaga o espírito humano (pois toda certeza subjetiva se toma por realidade objetiva), a desordem é justamente o que faz surgir a incerteza no observador, e a incerteza tende a fazer com que o incerto se interrogue, (...)assim, diante de toda desordem coloca-se inevitavelmente a questão: isso é aparência ou realidade? Não é a forma provisória da nossa ignorância? Não é a forma irracionalizável de uma complexidade fora do alcance de nosso entendimento? Edgar MORIN Talvez não seja exagerado afirmar que estamos na Era do sujeito; a história dirá. Possivelmente, a grande idéia a se reter, das discussões anteriores, é a de um mundo regido pela Complexidade, um mundo incerto, impreciso, sujeito ao caos e à deriva filosófica, um mundo para ser reconstruído em novas bases que incorporem o humano. “Hoje, a tentação é mais a de um recuo, que se traduz por um ceticismo geral quanto ao significado de nossos conhecimentos. Assim, a filosofia pós-moderna defende a ‘desconstrução’ ”, nos diria Prigogine. (1996, p. 22). Valores 88 necessitam ser resgatados e a fé no futuro reconstruída; essa é uma missão para a Educação: reencantar o ser humano. A ciência moderna propôs uma epistemologia que visava à elaboração de leis absolutas, as chamadas “leis da natureza”. O cânone positivista de Comte ― ver para prever, para prover ― pressupunha um mundo estático, não sujeito à mudança e ao fluxo, um mundo neutro, sem nuances de humanidade, um mundo perfeito para o demônio de Laplace37 que, do alto de seu ponto de vista absoluto e único, poderia prever todo o devir da natureza e da humanidade. A própria ciência, tendo excluído o sujeito por necessidade de “objetividade”, volta a incorporá-lo, na tentativa de transcender seu paradoxo. O sujeito voltou com força total e “imiscuiu-se” em todos os assuntos, desde a perplexidade gerada no mundo subatômico, até a Teoria da Relatividade. Como explica Covolan: (...) a Física Quântica apresentou uma dificuldade essencial: a necessidade de se atribuir um papel fundamental para a figura do observador (...). Isso decorre do fato da Teoria Quântica ser de caráter não-determinístico, ou seja, trata-se de uma teoria para a qual a fixação do estado inicial de um sistema quântico (...) não é suficiente para determinar com certeza qual será o resultado de uma medida efetuada posteriormente sobre esse mesmo sistema. (...) quem define o que estará sendo medido e tomará ciência de qual resultado se obtém com uma determinada medida é o observador. (...) Contudo, não é tanto esse problema de caráter epistemológico que se quer focalizar aqui, mas sim, a possibilidade de que certos efeitos quânticos 37 O Demônio de Laplace é um experimento mental concebido pelo físico Pierre Simon Laplace. Tal personagem estaria apto, de posse de todas as variáveis que determinam o estado do Universo num instante determinado, a prever o seu estado num instante futuro. Tal conceito só pode sustentar-se num Universo regido por determinações mecânicas absolutas. 89 possam fazer parte do funcionamento do cérebro e estejam envolvidos na manifestação da consciência.38 O primado da racionalidade, que foi criticado ao longo de todo esse escrito, estabeleceu alguns pares de opostos antagônicos que são, em verdade, complementares, sujeito/objeto é um deles. O cientificismo pregava a necessidade da neutralidade do sujeito-observador em relação ao fenômeno observado, um sujeito que não fosse mais que um coletor de experiências, que não se envolvesse ou interferisse na evolução do fato observado, nada de sua psique ou de seu corpo deveria misturar-se ao fato científico. Nessa ótica, ao se conceber a Educação como uma ciência, compreende-se como esta pode afastar-se tão radicalmente de seu foco real; possivelmente, a busca de tornar-se científica é que desviou a Pedagogia de sua trajetória, e transformou a experiência de sala de aula em algo inerte para os alunos, uma experiência não-motivante, desprovida de encantamento. Isso é o que ocorre para o ser humano quando não pode existir integralmente. Da mesma forma, plasmou-se a separação entre subjetividade e objetividade. A subjetividade, ou seja, tudo aquilo que é inerente ao interior do ser humano, suas concepções, suas visões singulares do mundo, regidas por experiências pessoais ― sensações, emoções, sentimentos – tornaramse marginais na concepção moderna de ciência, e confinaram-se aos campos da introspecção: Filosofia, Psicologia, Artes, ciências humanas, de forma geral. Não foram poucas as tentativas de tornar mais científicas, essas disciplinas. As Artes ficaram com o pouco que restou da subjetividade humana, as Artes podem ser subjetivas, podem ser irracionais, não 38 COVOLAN, Roberto J. M. Consciência Quântica ou Consciência Crítica? Disponível em: www.comciencia.br/reportagens/fisica/fisica02.htm. 90 necessitam necessariamente seguir padrões de coerência tidos como científicos; por isso mesmo, no senso comum, as Artes são tão marginais quanto admiráveis, e os artistas – loucos – têm direito a pensar e sentir tudo o que quiserem. O mundo nem sempre é o que parece ser, o mundo é como aparece, é como pode ser discernido na experiência de um sujeito determinado. Não existe um mundo dado à priori, não trabalhamos com representações de objetos, fenômenos e eventos externos, mas sim, os reconstruímos a cada vez que se apresentam à nossa percepção. Não existe uma objetividade pura, uma “objetividade-sem-parênteses”, diria Maturana, através da qual é possível conceber o mundo como algo separado de nós. Só existe a “objetividade-entre-parênteses”, através da qual nos tornamos unos com o mundo, e este se contamina do olhar subjetivo. Nas palavras de Maturana: (...) colocando a objetividade-entre-parênteses, me dou conta de que não posso pretender que eu tenha a capacidade de fazer referência a uma realidade independente de mim. (MATURANA, 2002, p. 45) A ameaça persiste: ruptura e fragmentação podem induzir ao erro e à cegueira: “Assim, o saber que liga um espírito a um objeto é reconduzido seja ao objeto físico (empirismo), seja ao espírito humano (idealismo), seja à realidade social (sociologismo). Assim, a relação sujeito/objeto é dissociada, a ciência se apodera do objeto, a filosofia do sujeito”. (MORIN, 2005, p. 31) Percebe-se com clareza que sujeito e objeto não poderão seguir dissociados, existe muito mais organicidade nesse relacionamento do que poderiam admitir os pressupostos da ciência clássica. 91 Ao longo da formação escolar, tivemos que conviver com as disciplinas exatas, as disciplinas biológicas e as disciplinas humanas; a falta de um olhar complexo sobre esse currículo impediu de ver o quanto de humano e biológico pode existir no exato e vice-versa, jamais se saberá como teria sido o desenvolvimento da ciência sem essa cisão, como teriam sido os cientistas, se formados numa concepção filosófica mais abrangente. Foi uma perda ou um ganho de tempo? Não sabemos, com certeza; mas sim, é certo, pode existir uma filosofia mais abrangente para a ciência, e aqueles que a fazem não podem perder de vista o alcance do efeito de suas descobertas; esse é um compromisso ético. Creio não ser necessário ressaltar que o pensamento cientificista legou progressos e conquistas imprescindíveis, nos expandimos além das fronteiras da terra, foram descobertas curas para doenças, tecnologias, e fantásticos meios de comunicação e transporte foram desenvolvidos, e o mundo se tornou uma aldeia global. No entanto, passados quase quatro séculos, ao fazer um balanço, percebe-se primeiramente que tais descobertas e desenvolvimentos foram partilhados com a humanidade numa escala mínima, e o progresso não garantiu bem-estar a todos. Algo se perdeu no meio do caminho. O objetivo final de todo conhecimento nunca poderá se afastar de um compromisso com o bem-estar de todos e com a preservação de nosso lar: a Terra. A separação entre nós e o mundo é responsável por boa parte das agruras vividas, e das perdas sofridas, incita ao comportamento predatório e destruidor; auto-destruidor, pois ao destruir aquilo de que fazemos parte, produzimos a própria destruição, e admitimos que outros também o façam. É essa abominável separação que nos faz agora perseguir o sentido ético da 92 vida, na busca eterna da resposta para as questões que não querem calar: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? O sujeito está de volta e parece ter vindo para ficar, com todas as suas incertezas, mitologias, sonhos, desejos, medos, subjetividades, razão, loucura; um sujeito noosférico39, errático e perfeito, sábio e louco – sapiens demens, diria Morin –, que há de reencantar a vida e a Educação. 39 A noosfera, segundo Morin é “a esfera das coisas do espírito”; na Transdisciplinaridade, representa um nível de realidade possível. A noosfera é um espaço do ser interior, profundo ancestral, sistematicamente negado pela ciência, no paradigma mecanicista. 93 4.Sentipensar - por uma educação que religue razão, emoção e sensibilidade Não podemos continuar educando com procedimentos de ontem alunos que já vivem no amanhã. Sentipensar é educar para a vida, para os valores, para uma convivência e bem estar sustentáveis, mediante impactos criativos. S. de la Torre e M.C. Moraes Tecendo o Horizonte Tatiana Clauzet 94 Cenário para Sentipensar Em trabalho realizado para a PUC de São Paulo, em 2002, para uma das disciplinas de mestrado, entrevistei diversas alunas que cursavam o último ano de Pedagogia e já exerciam atividade profissional. Havia duas perguntas básicas: qual o pior aspecto da formação recebida até ali, e qual o melhor aspecto; a transcrição de trecho da entrevista, apresentada a seguir, ilustra, magistralmente, a necessidade do Sentipensar em sala de aula. Falando sobre um dos melhores professores do curso: (...) ele sabia explicar, ele pedia a nossa opinião, assim, ele não chegava na sala e apresentava o tema, só ele falando; não era só expositivo, ele ia perguntando o que a gente sabia, alguma aluna ia completando... aí ele fazia um resumão e explicava tudo. Falando sobre a melhor disciplina: Aluna - (...) uma matéria que eu estou tendo agora no terceiro ano que eu adorei é Introdução à Psicopedagogia, muito bom, muito bom, a professora trabalhou na auto-estima, tanto a auto-estima individual como a coletiva... Eu - a de vocês? Aluna - a nossa... Eu - Como ela fez isso? Aluna - Ela começou com trabalhos assim... em grupos... no início do ano, tudo o que ela fazia ela pedia para a gente redigir. (...) então ela fez a dinâmica do nome... e a partir disso ela começou a tentar... a tentar... a descobrir, né? A partir do nome, se a pessoa aceitava o nome, porque que ela não aceitava, se ela queria mudar o nome, e como que foi a infância dela e o nome, a adolescência dela e o nome, depois de adulto e o nome... ela trabalhou muito bem, muito gostoso. (...) aí a sala começou a se desenvolver melhor, tanto é que as aulas dela são as mais produtivas: todo mundo participa, ninguém reclama... Eu - por causa dessas dinâmicas... Aluna - por causa das dinâmicas, (...) você se sentia à vontade nas aulas. E a minha sala tinha muito problema de convivência, (...) eu acho que eram vários líderes para um grupo só. Então, tinha muito choque, todo mundo queria mandar, todo mundo queria falar na mesma hora, então nós tivemos várias brigas. E, com o desenrolar 95 dessa dinâmica ela começou a perceber – ninguém falava – ela começou a sentir que havia muito conflito no grupo, então ela começou a trabalhar a auto-estima coletiva do grupo. Melhorou bastante. Então... foi muito bom. Eu - Você acha que deveria existir matérias assim todos os anos? Aluna - Todos os anos! (entusiasticamente), tanto é que nós fizemos uma proposta e enviamos para a coordenação (propondo) desde o primeiro ano. Eu - Como é o nome da matéria? Aluna - Introdução à Psicopedagogia. Eu - Então o foco foi voltado para vocês... Aluna - Foi, acabou sendo, no I semestre foi. Aí o que ela colocou para não ficar assim tão fora de uma Psicopedagogia voltada para o aluno: que o que estava acontecendo com a gente podia estar acontecendo numa sala de aula, então foi uma maneira de trabalho que ela passou para gente estar trabalhando, desde o individual até o problema coletivo. Eu - Vocês puderam perceber que o professor tem que se trabalhar, não só ficar aprendendo para fazer com o aluno... Aluna - É... e agora a gente está trabalhando no II semestre identidade e autonomia. Ela apresentou um filme que chama “A Onda”. Fala sobre o nazismo e da importância do professor... porque nesse filme o professor, ele... faz uma experiência com os alunos (os alunos são muito rebeldes); ele começa a aula mostrando o campo de concentração, né? e os alunos ficam assim horrorizados: “como a sociedade deixava acontecer a matança?” Aí o que aconteceu: ele (o professor do filme) entrou na outra aula falando sobre disciplina, e ele fez uma experiência com os alunos, então ele começou a ter maneiras, assim antipáticas, como era a do nazista, então começou a falar que os alunos tinham que sentar retos na cadeira... que quando falasse com o professor tinha que levantar... Ele fez isso como experiência. Só que os alunos levaram isso muito a sério, ele apresentou de uma maneira séria, então os alunos achavam que eles deviam ser daquela maneira, só que eles não fizeram a ligação com o nazismo, né? e aí foi se desenrolando o filme e acabaram criando uma associação que era a onda; então, era assim, quem não estivesse engajado dentro dessa comunidade eles agrediam, então virou um ciclo, né? (...) e dois alunos começaram a perceber que tudo aquilo era um erro, que era um absurdo aquilo que estava acontecendo, e todos os alunos começaram a andar igual, tinham o mesmo comportamento faziam as mesmas coisas, e eles tinham um lema. Muito interessante... e aí no final de tudo, o professor desfez isso, e os alunos que estavam fissurados, fanáticos por esse movimento, eles realmente perceberam o quanto o ser humano é frágil - o pior é que o salão inteiro chorou - porque eles perceberam que qualquer pessoa, 96 qualquer coisa, podia estar induzindo eles, se eles não tivessem uma postura... A aluna ressaltou aspectos absolutamente cruciais para as questões que vimos discutindo, por exemplo, o melhor professor era um professor dialógico; a melhor disciplina, a que se voltava diretamente para o problema dos alunos e da relação entre eles; e que, além disso, utilizava estratégias insólitas: escrever sobre a experiência pessoal vivida na aula; dinâmica reflexiva sobre os nomes dos alunos; trabalho da auto-estima do grupo; comparação da situação deles em aula com a de seus próprios alunos; análise de situação escolar no filme “A Onda” e análise da situação psicodramática criada pelo professor do filme. Além disso, é importante ressaltar que tais situações ocorreram nas disciplinas de Psicopedagogia e História da Educação, o que demonstra a necessidade de que as disciplinas assumam novos enfoques, mais humanos e criativos. Todos estes procedimentos são exemplos do que Moraes e Torre apontam como estratégias para o desenvolvimento da inteligência emocional (2004), assim como a estratégia que utilizo em minhas aulas envolvendo a Escuta Musical. Estas e outras estratégias e disciplinas deveriam fazer parte do currículo de formação de professores de forma constante e duradoura, não como evento especial ou isolado, assim como poderiam fazer parte do currículo escolar, num tipo de educação que chamarei de Educação para o Sentipensar. 97 4.1 O que é Sentipensar? Sentipensar é um poético neologismo, criado por Saturnino de La Torre, em 1997. A expressão traduz a preocupação de seu autor em unir na experiência educativa esses mundos tão próximos, interdependentes e, ao mesmo tempo, separados por um verdadeiro abismo: o pensamento e o sentimento. Nas palavras de Saturnino: Sentipensar é o processo mediante o qual colocamos para trabalhar conjuntamente, o pensamento e o sentimento. É a fusão de duas formas de interpretar a realidade, a partir da reflexão e do impacto emocional, até convergir num mesmo ato de conhecimento a ação de sentir e pensar. (MORAES e TORRE, 2004, p. 54) O sentipensamento nos permite integrar dualidades interpretadas como realidades excludentes que, na verdade, são complementares. Possibilita que se questione e se transcenda polaridades, reinterpretandoas de forma integrada e complementar, tão necessárias à evolução de nossos discursos e ações sobre Educação. A palavra “ação” reveste-se de importância capital, pois Sentipensar não é apenas a união de sensibilidade e razão, mas sim, também deve comportar a garantia de que tais concepções cheguem efetivamente ao ato, em sala de aula; assim, Sentipensar, como macroconceito, articula os conceitos de pensar, sentir e agir; isso quer dizer que, ao conjunto de princípios filosóficos que enuncia, deve corresponder um conjunto de princípios metodológicos, coerentemente selecionados e viabilizáveis na prática. A ação do professor deve manter a coerência em relação às idéias que veicula. 98 Sentipensar não é um conceito que brotou ao acaso na imaginação de seu autor; fundamenta-se na própria dinâmica de funcionamento cerebral. Segundo Schreiber (2004, p. 18) temos dois cérebros, o emocional e o cognitivo, “um verdadeiro cérebro dentro do cérebro”. O primeiro, responde pelo bem-estar psicológico e pela regulação da homeostase40, e é essencialmente ligado ao corpo; o segundo – neocórtex –, é “o centro da linguagem e do pensamento”. O equilíbrio entre esses dois cérebros representa o equilíbrio entre razão e emoção; cada um deles contribui de maneira diferente para a vida e para o comportamento; o funcionamento integrado desses dois cérebros está na base dos objetivos de Sentipensar. Schreiber explica, com base nas pesquisas de Damásio, que as emoções “devem estar moderadas pela análise racional que o cérebro cognitivo fornece. Senão, decisões impetuosas tomadas no calor da ação podem pôr em perigo o complexo equilíbrio de nossas relações com os outros” (SCHREIBER, 2004, p. 23); por outro lado, o cérebro cognitivo é um componente essencial de nossa humanidade, o qual se responsabiliza pelo controle das funções cognitivas superiores, pela elaboração de projetos futuros, e pelo comportamento moral. É principalmente essa idéia do ímpeto emocional, em descontrole, que tem servido de argumento contrário às emoções ao longo da história. É necessário equilibrar e integrar as ações de “nossos cérebros”, essa é a proposta do Sentipensar que confere fluência ao processo educacional: A inteligência emocional é mais bem expressa quando os dois sistemas – os cérebros cortical e límbico – cooperam constantemente. Nesse estado, nossos pensamentos, decisões 40 Segundo Damásio (2004), homeostase é um conjunto de processos fisiológicos de regulação da vida, dos quais fazem parte o metabolismo, os reflexos básicos, as respostas imunitárias, os comportamentos que expressam dor e prazer, pulsões, motivações e, ainda, as emoções, entre outros. 99 e movimentos se fundem e fluem naturalmente, sem que precisemos prestar atenção neles. (SCHREIBER, 2004, p. 41) Sentipensar é uma grande idéia para um futuro que já começou. Através da incorporação de seus princípios promove-se não somente a reintegração de um pensar sobre o mundo, mas acima de tudo, desencadeamos um processo de repensar o papel do humano na Educação. O ser humano em formação é um ser complexo, um emaranhado de dimensões, um ser multidimensional que se apresenta como um desafio novo, a cada aula. A Educação deve preparar-se para vislumbrar a diversidade de aspectos formativos da personalidade: racionalidade, sensibilidade, sociabilidade e ética. 4.2 Educar para Sentipensar: Princípios filosóficos básicos Sentipensar é, portanto, o encontro intensamente consciente entre sentimento e razão. É como uma espiral em desenvolvimento permanente que tem sua razão de ser na fusão de duas energias, a exemplo do óvulo e do espermatozóide, de maneira que avançam unidos, formando um todo complexo, interativo, presentes em cada ato humano. S. de la Torre e M.C. Moraes Educar para a Complexidade e para a Era planetária Sentipensar é uma proposta filosófica e metodológica coerente com o paradigma da complexidade; propõe uma visão holística, da realidade e do processo educacional, plasmada na integração de seus três eixos constitutivos complementares: sentir, pensar, agir. A partir da visão 100 complexa ou ecossistêmica, Sentipensar permite conciliar opostos, compreender antagonismos, contextualizar fatos e problemas, numa rede muito mais ampla de interconexões. Como explica Moraes (2004, p. 41): Esta é uma condição para o desenvolvimento de um maior sentimento de cidadania planetária, uma cidadania autosustentável, como a única maneira possível de se construir um futuro viável para todos, um futuro rico em possibilidades criadoras para toda a sociedade, em especial, para as gerações vindouras. Educar o ser humano multidimensional No Sentipensar, o ser humano multidimensional é reintegrado, e algumas de suas esferas de existência, tradicionalmente dicotomizadas ― o âmbito afetivo-emocional e o âmbito cognitivo ―, podem voltar a reunir-se. Grandes pesquisadores da atualidade ― Maturana, Damásio e Morin, entre muitos outros ― corroboram o valor do solo emocional como base fértil para nossas ações racionais e para a tomada de decisões. “A dimensão emocional do ser humano, que há duas décadas apenas estava proscrita em muitas instituições educativas, emerge com valor próprio junto à experiência e à razão”, explica Torre (2000, p. 546). Incluir emoção e sentimento significa também reincluir o corpo, esse eterno negligenciado. A dimensão emocional é indispensável à vida e, naturalmente, à vida da sala de aula, como ensina Torre no texto a seguir: A inteligência emocional, e não a capacidade abstrata de raciocinar, é realmente a que determina o êxito nas relações humanas e muitas vezes também profissional. É a inteligência emocional a que determina atos e decisões importantes da 101 vida. É a inteligência emocional a que mais contribui para um clima construtivo nas organizações. É a inteligência emocional que permite tirar proveito social das aprendizagens. É a inteligência emocional a que governa os atos da vida diária. É a inteligência emocional a que está na base de muitas atuações criativas. É a inteligência emocional a que mais nos aproxima da felicidade. Porque esta tem a ver com a própria consciência e harmonia consigo e com os outros, tem a ver com o equilíbrio entre expectativas e realizações.41 (TORRE; TEJADA, 2006, p. 3) Educar para a ética, para valores humanos e para o amor Sentipensar é uma proposta significativamente humana e socializante, primando pela valorização de aspectos da individualidade, tanto quanto pela possibilidade de desenvolver o sentido ético nas relações humanas e educacionais. A compreensão e aceitação do outro, nos reintroduz na possibilidade de uma vida com valores humanos preciosos, baseados na cooperação, na compreensão, na interação, na convivência e no amor: “educar na biologia do amor”, como diria Moraes (2003). Isto significa respeitar o outro e aceitá-lo em plenitude. Para tanto, é necessário acoplarse ao outro, entrar em sintonia, e juntos acoplarem-se ao ambiente que acolhe a todos. A Inteligência cega, e o ego, nos haviam afastado da possibilidade de compreender e amar ao outro, em plenitude; ela só é possível numa relação íntegra, entre seres humanos também íntegros que preservam o espaço de manifestação de sua multidimensionalidade. Somente com emoção e sentimento é possível compreender o verdadeiro sentido da alteridade, abandonar o ego e toda forma de subjugação. Somente seres humanos 41 Tradução da autora. 102 integrais estão preparados para o religare, o que implica em respeitar e ligar-se a si mesmo, ao outro e à natureza, ou seja, compreender o verdadeiro e abrangente sentimento de pertinência: “uma maior consciência ecológica traz consigo um sentimento de pertencimento mútuo que nos une à terra e ao cosmo”, ensina Moraes (2004, p. 41). Educar para a mudança Vive-se uma era de grande evolução tecnológica, uma mudança de paradigma que, possivelmente, no futuro venha a ser conhecida como Era da Informação. No entanto, não se pode esquecer que o ser humano é quem está no centro do processo, de forma aparentemente paradoxal; quanto mais o desenvolvimento científico e tecnológico se torna acessível a nós, mais se necessita das qualidades intrínsecas ao ser humano; valores pessoais e éticos que sensibilizem e responsabilizem o indivíduo no uso das novas tecnologias e conquistas científicas do nosso tempo, “tecnologia e humanismo, não são, portanto, dois conceitos contrapostos, mas sim, complementares no mais intrínseco do ser humano: em sua dimensão emocional”. (TORRE; TEJADA, 2006, p. 7). Por isso mesmo, uma das metas importantes do Sentipensar é promover mudanças atitudinais, que coloquem de manifesto reais transformações interiores. A mudança não ocorre apenas devido a fatores ambientais externos ao indivíduo, mas sim, também a partir do próprio indivíduo que, interagindo com o meio, promove mudanças em sua própria estrutura, se acopla ao meio transformando-o ― como explicam Maturana (2001) e Moraes (2003) ―, concebe a cognoscente, mudança por um como “uma lado, e a correlação”, envolvendo o sujeito realidade conhecer, por outro. a 103 Compreender a mudança é um ato de autocriação que envolve desenvolvimento e transformação da consciência humana (TORRE, 2005, p. 57). Educar para compreender a diversidade humana A Educação pode e deve valorizar a diversidade humana através do enriquecimento de estratégias metodológicas que permitam ao aluno, ao mesmo tempo, manifestar-se e autoconhecer-se. A base de aceitação do outro está em aceitar a si próprio. Educar para Sentipensar promove a abertura e integração do interno e do externo no ser humano; não somente promove a reintegração de todas as suas dimensões, mas possibilita a abertura de um portal interior para o autoconhecimento, e de um portal exterior, para a vida compartilhada e para a consciência planetária. Educar para a Transdisciplinaridade Na Educação para o Sentipensar, todas as formas de perceber, compreender e vivenciar o mundo são admitidas e bem-vindas, todos os saberes são incorporados. O ser humano, finalmente liberto das cadeias epistemológicas, aprende a transcender a si mesmo e à realidade que o cerca. O Sentipensar estabelece o reencontro entre as zonas interiores proibidas e sua manifestação concreta nas experiências educacionais e vivenciais, abre o diálogo entre razão e intuição, entre o sagrado e o científico, readmite o “inferno da subjetividade” de Basarab (2005), a esfera noológica de Morin (2002), reconhece o “mito oculto sob a etiqueta da ciência ou da razão” e nos permite mergulhar, sem reservas, na zona de não-resistência da Transdisciplinaridade; portanto, as estratégias de 104 Sentipensar são também transdisciplinares, libertando-nos de uma lógica insípida e resgatando nossa natureza complexa. Por tudo o que foi dito, e por tudo o mais que poderia ser dito sobre Sentipensar – pois, como seres inconclusos jamais conseguiremos abranger o todo em qualquer aspecto –, é que sua filosofia se propõe a resgatar, para a Educação e para todos os seus atores, o sentido do reencantamento, a idéia de prazer, alegria, bem-estar e vida na escola, um espaço mental e concreto, onde a sala de aula se torna um espaço de convivência, as relações entre professor e aluno se tornam compreensivas, e o sonho de uma sociedade mais justa e sustentável se mostra um pouco mais próximo. 4.3 Aprendizagem integrada: estratégias e práticas do Sentipensar A estratégia ou recurso metodológico é como a alavanca que torna possível o movimento ou mudança desejada.(...) Com estratégias facilitamos a ação ou pelo menos a tentativa inicial de levar em consideração o emocional em nossas aulas, do nível infantil ao universitário. Porque é aqui onde mais se deverá incidir para contrabalançar o efeito racionalizador de algumas tecnologias e conhecimentos científicos. Saturnino de la Torre Educar, no paradigma da Complexidade, exige coerência entre princípios filosóficos, métodos e estratégia didática, equilíbrio entre teoria e prática e, sobretudo, exige determinação e persistência para alcançar os objetivos traçados. A locomotiva desse processo é a Aprendizagem Integrada, definida por Moraes (2004, p. 82) da seguinte forma: 105 Processo mediante o qual vamos construindo novos significados das coisas e do mundo ao nosso redor, ao mesmo tempo em que melhoramos estruturas e habilidades cognitivas, desenvolvemos novas competências, modificamos nossas atitudes e valores, projetando tais mudanças na vida, nas relações sociais e laborais. E isto baseado em estímulos multissensoriais ou processos intuitivos que nos impactam e nos fazem pensar, sentir e agir. As tensões fragmentárias que nos cercam não deixam de lado os acontecimentos e decisões escolares; a escola, como ambiente de relacionamento humano e de formação de seres humanos vive, como todos os setores da sociedade, problemas complexos decorrentes da tensão entre, por um lado, a fragmentação crescente e níveis sofisticados de especialização, e por outro, a necessidade de formar o ser humano de forma integrada e multidimensional. A tensão da especialização manifesta-se no currículo, nas práticas e, principalmente, na mentalidade dos docentes: A educação inicial e a formação posterior têm sua razão de ser enquanto buscam um desenvolvimento pessoal equilibrado; isto é, em conhecimentos, atitudes, hábitos, crenças e habilidades tanto pessoais quanto sociais. O desenvolvimento emocional e da própria imagem pode ser mais importante do que o êxito acadêmico.42 (TORRE, 2005, p. 18) A Aprendizagem Integrada fundamenta-se, epistemologicamente, no paradigma integrador da Complexidade; neurologicamente, na plasticidade cerebral, afetada pelas diversas interações com o meio, estudada mais adiante; psicopedagogicamente, na “criação de situações de aprendizagem, nas quais estejam presentes os diferentes sentidos e processos mentais, e nas quais se compartilhem significados” (TORRE, 2005, p. 23) e tem seus fundamentos socioafetivos na qualidade dos relacionamentos estabelecidos 42 Tradução da autora. 106 em sala de aula e, de forma muito especial, no papel humano do educador, conforme explica Torre: Daí o relevante papel socioafetivo do educador, tanto mais importante quanto menor seja a idade do sujeito. Os aspectos relacionais e as motivações são mais importantes que os instrutivos, pois, a influência aumenta com os laços socioafetivos, e diminui quando estas relações geram conflito, tensão e distanciamento.43 (TORRE, 2005, p. 24) As expressões utilizadas por Torre (2005), para caracterizar a Aprendizagem Integrada, dão uma perspectiva muito clara de sua total adequação a um sistema educacional orientado pelo paradigma ecossistêmico: ela é interdisciplinar, holística, planetária, estratégica, relevante, vinculada à vida, experiencial, multissensorial, que incorpora os erros, (...) gratificante e motivadora, autopoiética e criativa, implicativa, compartilhada. Tais características transcendem a questão escolar ou acadêmica transformando esta proposta numa “universidade para a vida”. 43 Tradução da autora. 107 4.3.1. Características metodológicas da aprendizagem integrada Sentipensar: Exato. Por isto se diz que, quando o amor e a criatividade trabalham juntos, é fácil esperar uma marca indelével, uma obra-mestra, um ambiente feliz. Sentir: Quem põe o coração naquilo que faz, consegue recursos aonde os incapazes se dão por vencidos. Pensar: Agora sei que, embora lhe tirem tudo, sempre ficará o mais importante. Sentipensar: Assim é, meus amigos, dentro de nós está tudo o que fora nos falta. Sentir e pensar são os meus dois olhos, meus dois ouvidos, minhas duas mãos, o meu Eu completo. Somos uma unidade, você e eu.44 O trecho citado, criativamente, concebido por Saturnino de La Torre para ilustrar o embate entre Sentir e Pensar, constitui um recurso didático poderoso que, num momento da aula ou de uma apresentação, pode suscitar reflexões interessantes, e a mobilização de variados recursos humanos imaginativos, reflexivos, criativos; e, indo mais além, recursos que afetam o estado de consciência dos alunos, preparando-os para o trabalho intelectual, e potencializando suas habilidades cognitivas. A Aprendizagem Integrada proporciona as técnicas e estratégias para Sentipensar, dentre elas: relato imaginário, cinema formativo, música comentada, espetáculos artísticos, dramatizações, diálogos analógicos, textos poéticos ou literários, experiências compartilhadas, ambientes virtuais de aprendizagem, situações ocasionais da vida, excursões, utilização de humor, entre outras possibilidades. Aqui, talvez seja o momento de enfocar, com maior clareza, algumas das características metodológicas da Aprendizagem Integrada: 44 Trecho final do diálogo imaginário entre Sentir, Pensar e Sentipensar, transformados em protagonistas nesta criativa estratégia didática de Saturnino de la Torre. 108 As estratégias de Aprendizagem Integrada são multissensoriais. Freqüentemente, envolvem uma multiplicidade de estímulos: visuais, táteis, sonoros, motores, entre outros, que têm o efeito de potencializar a ação do cérebro através da sinestesia45 que se estabelece entre os sentidos. A palavra, dessa maneira pode, enfim, ceder algum espaço para outras linguagens. Quanto mais essas linguagens colaborem entre si, maior reforço terá a aprendizagem. As estratégias de Aprendizagem Integrada baseiam-se no impacto emocional. O impacto emocional envolve a pessoa como um todo, e caracteriza as estratégias didáticas em coerência com a filosofia de Sentipensar. Segundo Moraes e Torre (2002, p. 70), “o impacto é uma estratégia que induz eficazmente o Sentipensar, pois, graças ao efeito surpresa, provoca-se na pessoa uma reação emotivo-cognitiva persistente que facilita a reflexão e a mudança”. Assim, relatos imaginários, belas imagens, uma parábola, uma música, subitamente lançam o sujeito num plano diferente de consciência, via emoções e sentimentos. Nas palavras de Torre (2005, p. 20): (...) as estratégias que favorecem a Aprendizagem Integrada são aquelas que estimulam os diferentes sentidos, a imaginação, a intuição, a colaboração, o impacto emocional, a aplicabilidade. (...) Estratégias como o cinema formativo, a música comentada, os espetáculos artísticos, (...) são variantes metodológicas de grande valor formativo... Cada formador ou guia pode imaginar, a partir destes exemplos, de que modo pode facilitar esse tipo de aprendizagem mais profunda e persistente no tempo.46 45 Sinestesia é a sensação secundária, despertada por outra, vinda por outro sentido; um exemplo poderia ser “ver a luz de uma poesia”, não se trata de um sentido metafórico, mas de uma transposição que pode realmente ocorrer. 46 Tradução da autora. 109 Através do estudo de Damásio e Maturana, aprende-se que, no subsolo da razão subjaz a emoção. As experiências que causam impacto emocional podem agir como moduladores do estilo cognitivo; a pesquisa neuropsicológica fundamenta tal afirmação. Mais adiante essa questão será analisada com detalhes. As estratégias de Aprendizagem Integrada requerem ambientes, climas, e situações especificas. Bastante relacionado ao impacto emocional e à escolha da estratégia de Sentipensar, está a questão do ambiente favorável, que tanto pode ser externo (uma sala agradável, bonita, com iluminação adequada) ― “há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço”, diria Paulo Freire ―, quanto interno, como por exemplo, aquele ambiente gerado ao experimentar o sentimento e ambientes de pertencer ao grupo e ser ouvido dialogicamente. Climas agradáveis favorecem “a expressão das diferentes dimensões do ser humano”. (MORAES; TORRE, 2002, p. 50). Tudo isso me leva a formular aqui, a mesma questão dos autores: Até que ponto as circunstâncias criadas pelos filmes, imagens, sons, cores, ambientes virtuais ou ambientes lúdicos promovem interações que favorecem a mudança de estado emocional, gerando campos energéticos e vibratórios que podem estimular a ocorrência de ações/reflexões mais significativas? Contextos e situações prazerosas “modelam o operar da inteligência”, criam “um novo espaço de ação/reflexão fundado nas emoções” (MORAES, 110 2004, p. 64), levando o indivíduo a experimentar estados de bem-estar e harmonia que o fazem desejar o crescimento, a transformação e a transcendência, rumo a níveis de consciência mais elevados. A Aprendizagem Integrada utiliza procedimentos indutivos que levam à aprendizagem inferencial. Espera-se que o processo de Aprendizagem Integrada possa desenvolver a capacidade crítica dos alunos, aguçando a capacidade reflexiva e dedutiva, de variadas e criativas formas, habilitando-os dessa maneira à resolução de situações-problema e a equacionar temas diversos de estudo. Como explica Moraes (2004, p. 70), isso significa “partir do concreto, vivencial, particular, para elevar-se progressivamente em direção ao conceitual e teórico”. A Aprendizagem Integrada possibilita e estimula a criatividade. Diversos aspectos colaboram e contribuem para que isso ocorra, dentre eles, as situações de bem-estar vivenciadas, a conexão que se estabelece entre a escola e as situações da vida cotidiana, a junção de diversos tipos de estímulos sensoriais e situações imaginativas em estratégias inovadoras, o caráter dinâmico das relações que se estabelecem entre os atores. Sentipensar significa acionar todas as dimensões do ser humano, implica numa “cooperação global de todo o organismo” (TORRE, 2005, p. 21), que envolve aspectos neurofisiológicos – emoção, sensações de bem-estar e diferentes estilos cognitivos – aspectos psicossociais, e aspectos transcendentes. 111 A experiência de sentir -se íntegro e pertencente ao ambiente, gera um estado prazeroso de fluxo, no qual tudo parece fácil e favorável à criatividade; são “momentos brancos”, ou nas palavras de Moraes e Torre (2005, p. 71), “instantes de ânimo alto, de fluxo, nos quais tudo parece contribuir para nossos objetivos”. 4.4 O ser humano multidimensional A mudança de paradigma nos conduz à reintegração das dimensões humanas, do processo educacional e da inserção deles, no todo maior, o hólos. As bases teóricas deste estudo permitem vislumbrar a multidimensionalidade do ser humano a partir de perspectivas diversas: a Teoria da Complexidade incorpora a dinâmica processual interna do ser humano, tanto no que concerne à sua constituição biológica como no que concerne à articulação desta esfera com a esfera antropossociológica; através da conciliação de opostos, possibilita a concepção do ser humano como totalidade integrada; a Teoria transdisciplinar adentra o ser de modo profundo, através dos níveis de realidade e da zona de não-resistência (estudada no Capítulo 5); admite facetas humanas questionadas desde sempre, a exemplo da intuição; o Sentipensar, a partir de uma base neuropsicológica, integra o ser humano emocional e cognitivo, e propõe estratégias concretas para lidar com o fato. O ser humano, em sua multidimensionalidade, é um exemplo perfeito de sistema complexo, estende sua influência a toda parte, do micro ao macrocosmo. Por outro lado, é um sistema fechado em sua individualidade, único, diferenciado, e sua originalidade jamais será destruída por participar do todo social. 112 Talvez, pela primeira vez na história do pensamento Ocidental, se esteja reunindo todas as condições para valorizar o ser humano como unidade multidimensional; o que antes se espalhava por vastos territórios, da filosofia, da ciência, da antropologia, da religião, entre muitos outros, encontra-se agora respaldado tanto em teorias científicas quanto na sabedoria popular, para constituir-se em todo coerente. 4.4.1 Circuitos integradores O humano é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária. Edgar Morin Morin propõe, para a análise do ser humano multidimensional, três circuitos integradores: o circuito Cérebro-mente-cultura, o circuito Razãoafeto-pulsão e o circuito Indivíduo-sociedade-espécie (MORIN, 2002, p. 52). Estes circuitos integradores evidenciam a multidimensionalidade do ser humano e a diversidade de aspectos que podem ser considerados em sua análise, fazendo-a partir das origens primeiras da espécie; passando por seu desenvolvimento afetivo - base das relações humanas; evoluindo das construções mais primitivas do cérebro límbico às mais elaboradas do neocórtex; do ser animal, ocupado da sobrevivência, ao ser complexo, vivendo em sociedade e tendo suas relações com seus semelhantes mediadas pela cultura. Em suma, esses circuitos integradores possibilitam a rearticulação das esferas biológica e antropossociológica da experiência humana, oferecem solução de continuidade entre elas. 113 O primeiro circuito Cérebro-mente-cultura ilustra a relação de interdependência existente entre a produção de uma consciência individual e sua inserção no social mediada pela cultura: Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente (mind), isto é, capacidade de consciência e pensamento sem cultura. A mente humana é uma criação que emerge e se afirma na relação cérebro-cultura. Com o surgimento da mente, ela intervém no funcionamento cerebral e retroage sobre ele. (MORIN, 2002, p. 52) O circuito Razão-afeto-pulsão foca a evolução do homem, e como a humanidade surgiu da animalidade, no momento em que evolucionariamente aprendemos a sobreviver na convivência afetiva; e ainda, como as funções superiores do cérebro evoluíram das estruturas mais primitivas do cérebro reptílico: O cérebro humano contém: a) paleocéfalo, herdeiro do cérebro reptiliano, fonte de agressividade, do cio, das pulsões primárias, b) mesocéfalo, herdeiro do cérebro dos antigos mamíferos, no qual o hipocampo parece ligado ao desenvolvimento da afetividade e da memória a longo prazo, c) o córtex, que, já bem desenvolvido nos mamíferos, chegando a envolver todas as estruturas do encéfalo e a formar os dois hemisférios cerebrais, hipertrofia-se nos humanos no neocórtex, que é a sede das aptidões analíticas, lógicas, estratégicas, que a cultura permite atualizar completamente. Assim emerge outra face da complexidade humana que integra a animalidade (mamífero e réptil na humanidade, e a humanidade na animalidade). (MORIN, 2002, p. 53) O terceiro circuito Indivíduo-sociedade-espécie ressalta o sentido de pertencimento para o indivíduo e a relação recursiva existente entre os componentes da “tríade constitutiva do conceito de homem” (MORIN, 2005, p. 26): 114 Indivíduo sociedade espécie Morin afirma, verdadeiramente com humano grande significa ênfase: o “todo desenvolvimento desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana” (MORIN, 2002, p. 54). A negação do aspecto trinitário da espécie humana – indivíduo/sociedade/espécie – representa mais uma base para as cisões que assolam nossa cultura. O Sentipensar se reafirma como proposta filosófica adequada para conduzir a mudança na Educação, pois não existem hierarquias no indivíduo; vivenciamos nossas dimensões de forma emaranhada, e somente deixamos de fazê-lo quando constrangidos por alguma restrição imposta. Nesse caso, conhecemos o resultado: uma educação fragmentária e destituída de humanidade. 4.4.2 O Corpo como possibilidade de renovação da experiência humana (...) uma aula com emoção, com relaxamento, onde o corpo é integrado no ser, não está só um intelecto aqui, não tem só um monte de cabeças pensando... Um dos sujeitos da pesquisa Muito se tem falado sobre o corpo, sobre a inteligência emocional, sobre a sensorialidade; lamentavelmente, no entanto, os corpos continuam fora do processo, e com eles, a possibilidade de sentir. Essa é minha tese 115 pessoal mais cara: os corpos foram descartados da experiência humana para garantir a isenção do pensamento, para consolidar a superioridade da razão, mantendo em quarentena aquelas indesejáveis e contaminadoras emoções. A história da negação do corpo é quase a mesma história da negação das emoções. Estas histórias exigiriam outro estudo completo, uma outra tese, no entanto, devem pelo menos ser tangenciadas – enquanto espero o momento oportuno para estudá-la ― pois, não há como conceber um ser humano multidimensional desincorporado. Durante muitos séculos perdurou, e ainda perdura, “a dúvida” com relação à emoção, evidenciando-se o medo da perda da racionalidade ou de sua simples perturbação. Para o corpo, no entanto, sempre houve “a certeza” de que deveria permanecer à parte, isolado, estigmatizado, fosse para negar a existência da emoção, fosse para negar ao ser humano o sentimento de integridade. Em seu tratado das paixões humanas, Descartes propôs a nãoexistência de qualquer relacionamento entre as “paixões da alma” e as “paixões do corpo”: (...) conheci então que eu era uma substância cuja essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não tem necessidade de lugar algum nem depende de nenhuma coisa material, de modo que este eu, quer dizer, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e inclusive que é mais fácil de conhecer do que ele e que, ainda que não existisse, a alma não deixaria de ser como é. (DESCARTES, 1984, p. 27) A experiência humana total e multidimensional não pode prescindir da inclusão do corpo no processo; através dele, emoções e sentimentos retomam seu lugar na educação e na vida. A grande dificuldade é que, 116 reconsiderar o papel do corpo exige uma mudança de paradigma; e, transcender a cisão tão radical que Descartes ajudou a consolidar. O pensamento de Antonio Damásio, estudado a seguir, oferece uma bela porta de entrada para a consideração de um ser humano sem hiato entre corpo e alma; em sua discussão sobre o “erro de Descartes”, Damásio explica que “antes do aparecimento da humanidade, os seres já eram seres” e que, para nós, “no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento” (DAMÁSIO, 2000, p. 279). Assim como a Complexidade articula vida biológica e antropossocial, Damásio articula vida orgânica, alma e espírito, justificando-se por oferecer a estes últimos “origem tão humilde”: (...) a mente verdadeiramente incorporada que concebo não renuncia aos seus níveis mais refinados de funcionamento, aqueles que constituem sua alma e seu espírito. Do meu ponto de vista o que se passa é que a alma e o espírito, em toda sua dignidade e dimensão humana são os estados complexos e únicos de um organismo. (...) É claro que essa não é uma tarefa fácil: tirar o espírito do seu pedestal em algum lugar não localizável e colocá-lo num lugar bem mais exato, preservando ao mesmo tempo sua dignidade e sua importância; reconhecer sua origem humilde e sua vulnerabilidade e ainda assim continuar a recorrer à sua orientação e conselho. Uma tarefa indispensável e difícil, sem dúvida, mas sem a qual talvez seja melhor que o erro de Descartes fique por corrigir. (DAMÁSIO, 2000, p. 282) (Grifo da autora) O esforço em direção ao ser humano integral começa exatamente neste ponto: readmitindo a existência ativa do corpo, através do qual se estabelece a interface com o mundo, e se tornam acessíveis emoções, sentimentos e pensamentos. 117 4.5 Fundamentos neuropsicológicos do Sentipensar: interdependência entre regiões neocorticais47 e subcorticais48 na racionalidade Ao longo da história da cultura Ocidental, as emoções têm sido vistas com desconfiança. Muito embora não caiba no âmbito deste trabalho uma análise completa de tal evolução, pareceu-me essencial comentar pelo menos uma destas visões, a dos Estóicos (300 a.C.). Estes propunham que os animais eram inexoravelmente guiados pelo instinto e os homens pela razão; a maneira como as emoções podiam “mover” o ser humano, perturbando sua racionalidade os incomodava; negaram-lhes, portanto, significado, e adotaram por ideal, de forma radical, a ataraxia (imperturbabilidade da alma por paixões) e a apatia (indiferença a todas as emoções através do exercício da virtude); nesta concepção, a perfeita racionalidade do mundo identifica-se com a ausência total de elementos perturbadores, como pode ser o desvio da vontade por uma emoção. A doutrina estóica exerceu grande influência no pensamento Ocidental e muitos de seus fundamentos são ainda evocados em doutrinas modernas e contemporâneas. As teorias sobre a emoção que se sucederam ao longo da história colocaram em evidencia uma tensão: atribuir significado à vida emocional ou não atribuir (ABBAGNANO, 1998, p. 323). Teve-se que esperar a segunda metade do séc. XX para que importantes pesquisadores, de diversas áreas, resgatassem para as emoções o lugar que lhes compete na psique humana, nas ações da vida cotidiana, e em especial, na Educação. Antonio Damásio reavivou o debate 47 São as regiões evolutivamente mais modernas do córtex cerebral – neocórtex-, responsáveis por funções cognitivas superiores tais como a percepção, a linguagem, o pensamento consciente, entre muitas outras. 48 São as regiões mais primitivas do córtex, responsáveis pelas funções de regulação homeostática, emoções, entre outras. Localizam-se na parte interna do cérebro, enquanto o neocórtex o recobre externamente. 118 em torno da estreita interdependência existente entre razão e emoção; em seu livro, O Erro de Descartes, discute, analisa e clarifica uma série de casos patológicos e situações normais nas quais se evidencia o fato. Damásio retomou o estudo do caso Phineas Gage, que após sofrer um terrível acidente de trabalho em 1848, com graves lesões no lobo frontal, passou por fantástica transformação da personalidade. Após o acidente, Gage não teve qualquer seqüela na fala, na linguagem, ou mesmo nos órgãos dos sentidos, no entanto, as transformações em seu caráter foram de tal monta que aos poucos tornou-se um marginal social, foi demitido de seu emprego e abandonado pela família. Parietal Frontal Occipi -tal Temporal Na ilustração, observa-se o hemisfério esquerdo do córtex cerebral, e os quatro lobos cerebrais: frontal, parietal, temporal e occipital. O lobo frontal relaciona-se ao planejamento de ações futuras e controle do movimento, desempenha funções também no processamento da música; o lobo parietal relaciona-se à sensação somática; o lobo occipital com a visão; o lobo temporal, com a audição, e através de suas estruturas profundas – hipocampo e amígdala - com a emoção, a memória e a aprendizagem. Ilustração baseada no livro Princípios da Neurociência de KANDEL, Eric R.; SCHWARTZ, James H.; JESSELL, 2003. perior) 119 Damásio reabriria o caso, quase cento e quarenta anos depois, queria descobrir que regiões do cérebro haviam sido lesadas para compreender exatamente o que havia ocorrido. As pesquisas de Damásio revelaram que Gage havia sofrido lesões no córtex pré-frontal ventromedial, o que comprometeu sua “capacidade de planejar o futuro, de se conduzir de acordo com as regras sociais que tinha previamente aprendido e de decidir sobre o curso de ações que poderiam vir a ser mais vantajosas para sua sobrevivência”. (DAMÁSIO, 2000, p. 55). Córtex pré frontal (em azul) Estas ilustrações mostram regiões do córtex, de acordo com os tipos de corte que se pode efetuar, e os nomes utilizados para indicá-las. Ventromedial quer dizer inferior e na região mediana (interna). ) Dorsal (superior) Lateral Rostral Ventral (inferior) Ventral (inferior) Caudal medial lateral 120 O mais revelador, no entanto, foi constatar que as estruturas corticais superiores, responsáveis pela racionalidade, se construíram a partir das regiões mais primitivas do cérebro humano, envolvidas na regulação homeostática do organismo e no processamento das emoções primárias, como explica Damásio, neste trecho (2000, p. 157): A aparelhagem da racionalidade, tradicionalmente considerada neocortical, não parece funcionar sem a aparelhagem da regulação biológica, considerada subcortical. Parece que a natureza criou o instrumento da racionalidade não apenas por cima do instrumento de regulação biológica, mas também a partir dele e com ele. Os comportamentos que se encontram para além dos impulsos e dos instintos utilizam, em meu entender, tanto o andar superior como o inferior: o neocórtex é recrutado juntamente com o mais antigo cerne cerebral, e a racionalidade resulta de suas atividades combinadas. A ilustração a seguir, mostra o sistema límbico, na região subcortical, profundamente implicado no processamento de emoções. Constitui-se do lobo límbico (em azul) que circunda o corpo caloso (estrutura que interliga os dois hemisférios cerebrais). São estruturas integrantes do sistema límbico o giro do cíngulo, o giro parahipocampal, o hipocampo, a amígdala, o hipotálamo e o tálamo: Giro do Cíngulo Corpo caloso Giro parahipocampal Amígdala Hipocampo 121 4.5.1 Emoções e Sentimentos Se imaginarmos uma emoção forte e depois tentarmos abstrair da consciência que temos dela todos os sentimentos dos seus sintomas corporais, veremos que nada resta, nenhum “substrato mental” com que constituir a emoção, e que tudo o que fica é um estado frio e neutro de percepção intelectual. William James Emoções e sentimentos captam nossa atenção de forma irresistível na discussão que ora se encaminha, como parte integrante da racionalidade; emergindo de estruturas cerebrais muito antigas, do cérebro límbico, participam ativamente do processo de regulação biológica do organismo, a homeostase, e fundam as bases das estruturas corticais superiores a que chamamos neocórtex. A palavra homeostase refere-se a um conjunto de processos de regulação da vida, dos quais fazem parte o metabolismo, os reflexos básicos, as respostas imunitárias, os comportamentos que expressam dor e prazer, pulsões, motivações e, para culminar, emoções e sentimentos (DAMÁSIO, 2004), sem os quais a vida não pode existir. Emoção, etimologicamente, significa “movimento para fora” (DAMÁSIO, 2000, p. 168); o ponto de referência é o corpo, e a emoção, aquilo que só pode ocorrer a partir de uma vivência do corpo, resultando em sua regulação ótima para a vida. As emoções fazem parte de nossa evolução biológica e são “um meio natural de avaliar o ambiente que nos rodeia e reagir de forma adaptativa”. (DAMÁSIO, 2004, p. 62). Damásio classifica as emoções em três categorias interdependentes. São elas: emoções de fundo, emoções primárias e emoções sociais. 122 As emoções de fundo falam de um estado basal do corpo, muitas vezes inconsciente. Sua percepção no próprio organismo se dá de forma difusa, nem sempre fácil de qualificar, ou implica na leitura de manifestações sutis no comportamento de outra pessoa: uma tristeza subjacente, ou alegria que contagia, que se espelha em cada gesto, nas expressões faciais, no tônus geral da pessoa e são qualificadas como percepções intuitivas. Resultam do conjunto de processos regulatórios do organismo, e como informa Damásio “nosso bem-estar ou mal-estar resulta dessa calda imensa de interações regulatórias” (DAMÁSIO, 2004, p. 52). As emoções primárias são aquelas que dão a tonalidade a nossas vidas, cotidianamente ― medo, raiva e tristeza, por exemplo. As emoções sociais incluem a compaixão, a simpatia, a gratidão, o orgulho, entre várias outras, e, como o nome indica, se engendram nas relações sociais. Pode-se dizer que os diferentes tipos de emoção representam uma elaboração, um refinamento de sua constituição, que parte da vida biológica e se estende à vida mental: as emoções sociais incorporam elementos mais simples das emoções primárias que, por sua vez, incorporam processos diversos da regulação biológica; isso fez com que Damásio utilizasse, para explicá-las, a metáfora da boneca russa (DAMÁSIO, 2004, p. 53). Algumas emoções são inatas, encontram-se prontas para entrar em ação automaticamente, no momento do nascimento, por isso foram denominadas emoções inatas ou pré-organizadas; outras, por sua vez, dependem de aprendizagem, de uma interação mínima com o ambiente; a reação do indivíduo a esse tipo de emoções depende da associação de um certo estímulo ou situação à uma resposta emocional, adquirida na experiência individual. 123 Aos poucos, vai se percebendo que a fronteira entre emoções e sentimentos é tênue, são processos interdependentes que em nossa escala de tempo podem parecer simultâneos. Damásio define a emoção como “uma coleção de mudanças no estado do corpo (...) sob o controle de um sistema cerebral dedicado (...) o qual responde ao conteúdo dos pensamentos relativos a uma determinada entidade ou acontecimento”. (DAMÁSIO, 2000, p. 168). Para definir o sentimento de forma muito simples, se poderia afirmar que eles representam a tomada de consciência das emoções. 4.5.2 A cadeia emoção-sentimento (...) sentir os estados emocionais, o que equivale a dizer que se tem consciência das emoções, oferece-nos flexibilidade de resposta, com base na história específica de nossas interações com o meio ambiente. Embora sejam precisos mecanismos inatos para por a bola do conhecimento em jogo, os sentimentos oferecem-nos algo extra. Os sentimentos são a expressão mental de todos os outros níveis da regulação homeostática. Antonio Damásio A partir de um estímulo emocional competente (EEC) que pode ser um evento real ou apenas sua recordação, respostas químicas e neurais são ativadas, produzindo uma mudança no estado do corpo e nas estruturas cerebrais que têm por função mapear o estado do corpo e produzir as imagens mentais encadeadas ou pensamentos correspondentes à emoção vivenciada. Todo esse processo tem por resultado levar o organismo à reação que tanto pode ser uma reação de defesa, em uma situação de perigo, como a ativação de estados regulatórios requeridos para o bemestar. 124 A resposta do corpo ocorre tão logo se detecta o EEC, seja de forma automática e inconsciente, nas emoções inatas, ou, de forma consciente e deliberada, quando as emoções envolvem respostas adquiridas. Nosso organismo está evolutivamente preparado para reagir a um estímulo, ainda quando este não se apresentou plenamente à consciência. Antes da consciência, sinais começam a ser enviados a uma das regiões desencadeadoras de emoção (amígdala, cíngulo ou córtex préfrontal ventromedial), e em seguida, num processo extremamente rápido, às regiões executoras da emoção (prosencéfalo basal, hipotálamo, tronco cerebral); a partir disso, podemos começar a sentir incômodo ou bem-estar, ou qualquer outro tipo de reação subliminar. As respostas encetadas pelo corpo nesse momento são múltiplas e prodigiosas, colocando em marcha um complexo processo homeostático como ilustra Damásio no trecho a seguir (DAMÁSIO, 2000, p. 166): As disposições nessas últimas regiões respondem: a) ativando os núcleos do sistema nervoso autônomo49 e enviando os sinais do corpo através dos nervos periféricos, (...) as vísceras são colocadas no estado mais tipicamente associado ao tipo de situação desencadeadora; b) enviando sinais ao sistema motor, de modo que a musculatura esquelética complete o quadro externo de uma emoção por meio de expressões faciais e posturas corporais; c) ativando os sistemas endócrino e peptídico, cujas ações químicas resultam em mudanças no estado do corpo e do cérebro; (...) d) ativando, com padrões especiais, os núcleos neurotransmissores50 (...) no tronco cerebral e prosencéfalo basal, os quais liberam então as 49 O sistema nervoso autônomo se constitui de dois ramos: o ramo simpático que libera adrenalina e noradrenalina, regulando as reações de “luta ou fuga”; e, o ramo parassimpático, que libera a Acetilcolina promovendo relaxamento e calma. A ação dessas substâncias se inicia a partir do cérebro emocional. 50 Neurotransmissores são substâncias químicas liberadas pelos neurônios que modulam a atividade cerebral e o comportamento. Adrenalina e Noradrenalina, por exemplo, preparam o corpo para a luta; a Acetilcolina tranqüiliza e faz o coração bater mais lentamente. 125 mensagens químicas em diversas regiões do telencéfalo (gânglios basais e córtex cerebral). Essas respostas inconscientes do corpo são um dos principais argumentos que advogam pela emoção como processo prévio ao sentimento, e que define o sentimento como uma tomada de consciência da emoção vivida. Nas palavras de Damásio (2004, p. 37): (...) temos emoções primeiro e sentimentos depois porque na evolução biológica as emoções vieram primeiro e os sentimentos depois. As emoções foram construídas a partir de reações simples que promovem a sobrevida de um organismo e que foram facilmente adotadas pela evolução. Começa-se, então, a perceber a atividade do corpo; imagens mentais são geradas, referentes à qualidade da emoção experimentada; toma-se consciência das sensações; nesse momento, é possível afirmar algo a respeito delas, nomeá-las, é o momento em que a emoção se transforma em sentimento. As imagens mentais, que acompanham as emoções, emergem dos mapas corporais que representam toda essa prodigiosa coordenação neurofisiológica acima descrita. Na seqüência, pode-se visualizar os processos que conduzem da emoção ao sentimento: 126 EEC Regiões cerebrais envolvidas: Córtices iniciais Avaliação do EEC 51 Integração do estímulo em Córtices de associação de alta ordem Desencadeamento da emoção 52 (representações autônomas ), 53 Sistema límbico: amígdala, cíngulo, córtex pré-frontal Execução da emoção Prosencéfalo basal Tronco cerebral Hipotálamo Ativação de estado do corpo Sistema somatossensorial: respostas internas musculares, viscerais, químicas e eletroquímicas Percepção do funcionamento do corpo Imagens mentais Mapas cerebrais do corpo Emergem dos mapas corporais de forma ainda não elucidada Sentimento Percepção consciente do estado do corpo e dos pensamentos Reação 51 Conjunto de áreas cerebrais referentes ao processamento inicial de informação proveniente de um dos sentidos . 52 São padrões potenciais (off line) de atividade neuronal, interconectando diferentes conjuntos de neurônios que participam de determinado estímulo sensorial quando ativados. 53 São áreas associativas do cérebro que servem para associar a entrada de informação sensória à resposta motora e efetuar os processos mentais que intervêm entre a entrada da informação sensória e a saída de informação motora. 127 4.6 A Escuta Musical Todas essas reações homeostáticas e a emergência do sentir de uma emoção interessam sobremaneira a este estudo, pois, são profundamente afetadas pelo processo de Escuta Musical. Parâmetros fisiológicos, sob o controle do sistema nervoso autônomo – pressão sanguínea, fluxo sanguíneo nas estruturas cerebrais, liberação de hormônios, ritmo respiratório, entre outros –, se vêem sensivelmente modificados sob o efeito da Escuta Musical. O estimulo musical e as modificações induzidas no estado do corpo mantém sua constância no tempo, dialogam, se influenciam mutuamente ao longo do processo de escuta de forma recursiva, começam a preparar os estados de bem-estar, ou mesmo mal-estar, que modularão a qualidade dos pensamentos e afetarão os estilos cognitivos. Seria praticamente impossível realizar uma descrição completa desse emaranhado complexo de processos dinâmicos que têm lugar nesse momento. Através das falas dos sujeitos se verá que estes não permaneceram alheios a essa revolução dinâmica, que teve como palco seus corpos e mentes. 4.6.1 Ouvir ou escutar musica? Ouvir e escutar não são sinônimos, pois implicam em posturas muito diferentes em relação ao fenômeno sonoro. Ouvir é um de nossos sentidos fisiológicos, e o ato de ouvir decorre de se ter um aparato auditivo em bom funcionamento; escutar é diferente, exige uma atitude engajada por parte do ouvinte, que envolve o desejo de apropriar-se do fenômeno ouvido. Nas palavras de Tomatis (1975, p. 122): 128 Ouvir é se deixar aproximar pelo som (...) é se deixar passivamente invadir por ele. É se abandonar sem defesa, sem que haja, portanto, uma real percepção. É, por exemplo, permitir ao discurso do outro nos atingir sem uma verdadeira participação de nossa parte. (...) Escutar é um engajamento total do corpo a fim de que o ser que existe no interior desse corpo possa beneficiar-se daquilo que deseja perceber. A percepção em relação à sensação induz a necessidade de uma manifestação voluntária. Existe uma passagem ao ato que não é outra coisa senão a participação do sujeito chegando ao oferecimento de seu ouvido, de seu corpo e de seu sistema nervoso à mensagem musical ou verbal que ele deseja integrar. É a escuta como atitude engajada, imbuída de intencionalidade, o que interessa para esta pesquisa; a escuta como entrega, vivência e sensorialidade; quando as vibrações sonoras, material e concretamente, nos atingem, nos tocam e sensibilizam, dando vazão a emoções e sentimentos. A esse tipo de escuta venho chamando Escuta Musical Sensível. 4.6.2 Como processamos os sons? Os estímulos auditivos chegam a nós através da orelha externa; as ondas sonoras fazem vibrar o tímpano, as vibrações são transmitidas à orelha média através dos três ossículos – bigorna, martelo e estribo. A vibração do estribo estimula mecanicamente a cóclea – órgão auditivo responsável pela análise das freqüências do som, localizado na orelha interna – as células ciliadas são excitadas e se movem com a chegada da onda sonora; é quando tem início o processamento auditivo. Através de um processo altamente complexo – a transdução – a energia mecânica que ativa as células ciliadas é transduzida em potenciais elétricos que então são transportados pelas fibras nervosas para o tronco 129 cerebral (via nervo coclear). No tronco cerebral, mais exatamente no tálamo, a música é, pela primeira vez, analisada e filtrada; as características de freqüência e direção dos sons são examinadas. O tálamo é um elo essencial de comunicação entre o estímulo sensorial e seu processamento cerebral; “guardião da consciência”, decide sobre o próximo destino da música no cérebro (ESCH et al., 2005, p. 10); esse efeito de comporta que o tálamo exerce é importante para a avaliação da informação musical e para a proteção do organismo de alguma sobrecarga sonora que possa danificar o sistema. Via tálamo, a informação chega a áreas corticais primárias (córtex auditivo), onde outras características do som são analisadas em separado – timbre, duração, intensidade, por exemplos. A informação, até então processada em áreas unimodais do cérebro, é então integrada em áreas de associação ou córtices de alta ordem. Essas áreas, além de integrarem a informação multimodal, preparam o indivíduo para a ação, ou seja, para reagir ao estímulo musical recebido. (KANDEL et al., 2003, p. 590). Observe-se a ilustração: Córtex auditivo Bigorna Estribo Tronco encefálico Martelo Nervo coclear Pavilhão da orelha Tímpano Cóclea Ilustração baseada no livro Princípios da Neurociência de KANDEL, Eric R.; SCHWARTZ, James H.; JESSELL, 2003. 130 No processamento musical sempre se admitiu a lateralidade específica do funcionamento cerebral, uma espécie de divisão do trabalho. Assim, de maneira geral, o hemisfério direito trabalha na estrutura geral da música, processando a informação de forma holística, o que envolve a expressividade e outras características mais imprecisas e globais da música, ao passo que o hemisfério esquerdo conduz a análises mais sutis, precisas, de caráter estrutural. Numa pesquisa realizada por Altenmüller (2003, p. 346), o autor procurou saber se a maneira de ouvir música teria influência sobre os diferentes locais de processamento musical. Os sujeitos tinham de 13 a 15 anos, e foram divididos em três grupos. No primeiro (grupo declarativo), todos os sujeitos tinham formação musical suficiente para empreender uma análise estrutural da música, e passaram por um pré-teste, no qual puderam familiarizar-se com as estratégias que seriam utilizadas no teste, de forma teórica; os indivíduos do segundo grupo (grupo procedimental), também com formação musical, passaram por um pré-teste prático, no qual puderam tocar e improvisar utilizando as estratégias que seriam propostas no teste; e, um terceiro grupo foi constituído por indivíduos sem formação musical. O primeiro grupo teve ativação significativa do lobo temporal frontal esquerdo, refletindo provavelmente um tipo de processamento cognitivo verbal e analítico; o segundo grupo revelou incremento da atividade do lobo frontal direito, e bilateralmente dos lobos parietais e occipitais, o que reflete uma forma mais global de processar, incluindo associações visuo-espaciais, com certeza decorrentes da vivência prática anterior. O resultado dessa pesquisa comprovou que, o tipo de contato ou treinamento musical recebido, afeta a plasticidade cerebral. Redes 131 neuronais, amplamente difundidas nos dois hemisférios cerebrais, desenvolvidas de forma específica para cada pessoa, podem estar subjacentes ao processamento musical. Nas palavras de Altenmüller (2003, p. 351), “os substratos cerebrais do processamento musical refletem a ‘biografia’ auditiva aprendida, a experiência pessoal acumulada ao longo do tempo”. 4.6.3 De onde provêm a força emocional da música? Talvez música, e toda arte de alguma forma, leve a transcender a mera percepção precisamente por acessar nossa neurobiologia mais primitiva.54 Robert Zatorre Provavelmente a música faça parte de nossas vidas desde tempos imemoriais, perpassando vivências afetivas e sociais ao longo da evolução. Segundo Panksepp e Bernatzky (2002, p. 140), nosso amor pela música pode ser decorrência de uma “habilidade ancestral” para receber e transmitir sons com mensagens emocionais; a relação afetiva mãe-filhote talvez tenha realizado uma transição importante, quando as mães começaram a se comunicar com seus filhos de formas arrebatadoras. O nome que esse idioma especial recebe atualmente é “mamanhês”, ou seja, aquele idioma específico entre mãe e bebê, caracterizado pelo uso intrinsecamente afetivo de entonações melódicas em freqüência mais elevada que a habitual e ritmo entrecortado, o que permite ao bebê ter tempo para ensaiar algum tipo de resposta (LAZNIK; PARLATO-OLIVEIRA, 2006, p. 62). 54 Tradução da autora 132 Além desse aspecto, emocional e humano, a música pode também ter tido origem na relação do homem com o meio ambiente: “o mecanismo de processamento de tons (freqüência do som) não teria se desenvolvido para a música per se, mas poderia ser parte de um sistema geral para utilizar sons naturais do ambiente”55 (ZATORRE, 2005, p. 313). A música esteve presente ainda, na gênese da vida social, talvez também na origem da comunicação verbal (HURON, 2003, p. 66). Segundo Panksepp e Bernatzky (2002, p. 145), a música foi um elemento agregador, ritualístico: (...) a música funciona como um ímã para as atividades sociais humanas. Essa não é uma observação trivial, pois pode clarificar uma das maiores funções adaptativas da música na evolução humana, a habilidade da música para promover interações sociais é um aspecto evidente de seu uso em todas as sociedades. A partir de cinco meses no útero materno, e imediatamente ao nascer, os bebês já são detentores de uma competência musical prodigiosa: percebem freqüências, tempo e timbre de forma refinada, muito mais do que a necessária para se fazer música; agrupam elementos estruturais da música por suas características intrínsecas (percepção gestáltica); reconhecem e reagem a transposições de tonalidade e andamento; têm excelente memória melódica e conseguem reconhecer melodias convencionais ou pouco convencionais, superando, nesse aspecto, a performance dos adultos, que retêm apenas melodias convencionais de sua experiência (TREHUB, 2003, p. 3). Zatorre faz notar que “o sistema nervoso dos bebês parece ser equipado com uma capacidade para classificar os diferentes sons musicais 55 Tradução da autora. 133 que atingem seus ouvidos com vistas a construir uma gramática, ou um sistema de regras.”56 (ZATORRE, 2005, p. 314). Possuímos habilidades muito antigas para perceber e processar música. (ESCH, 2005; HURON, 2003; PANKSEPP, BERNATZKY, 2002; ZATORRE, 2005). Todas as evidências apresentadas até aqui permitem deduzir que o processamento musical não é uma aquisição recente, mas sim, antiga, o suficiente para ter participado dos estágios primordiais do desenvolvimento humano evolutivo. 4.6.4 Benefícios neuropsicológicos da Escuta Musical Claramente, a música dá voz a nossos sentimentos, e provê uma maneira altamente ética e única para estudar as emoções do cérebro/mente humanos.57 Jaak Panksepp 4.6.4.1 Memória emocional A escuta musical atua no nível neuropsicológico do ser humano. Ouvir música é fonte de emoções (PANKSEPP, 2002; ZATORRE, 2005). Tão logo as vibrações sonoras são processadas no córtex auditivo, uma série de reações fisiológicas tem início, ativando o sistema límbico, responsável pelo processamento de emoções; e, resgatando memórias emocionais que ficam associadas à música ― sejam elas prazerosas ou indesejáveis. Segundo Schreiber (2004, p. 93), a memória tem uma propriedade especial ― chamada 56 57 Tradução da autora. Tradução da autora 134 “propriedade de conteúdo acessível” ― que permite a ela ser acionada a partir de qualquer de seus elementos constituintes: (...) o odor de perfume de uma ex-namorada pode ser suficiente para que toda a memória dessa pessoa volte: imagens, pensamentos e palavras. E mais, ao contrário dos computadores que precisam de equivalentes exatos, a recuperação da memória no sistema nervoso procede por analogia; portanto, qualquer coisa que possa, mesmo que vagamente, nos lembrar de algo que saibamos pode trazer de volta a memória. As observações de Schreiber referiam-se ao resgate de eventos traumáticos na experiência de seus pacientes, porém é possível inferir, por analogia, que o cérebro conserve essa propriedade para outros tipos de evento; assim, quando se ouve música significativa, memórias emocionais podem ser reativadas, induzindo reações corporais e mentais diversas. As informações provenientes do córtex auditivo interagem com diversas regiões cerebrais, em especial, com o lobo frontal, para formação da memória e avaliação do estímulo emocional (ZATORRE, 2005, p. 312). Como se viu, memórias musicais emocionais podem ser geradas a partir de interações sociais primordiais. Segundo Panksepp e Bernatzky (2002, p. 137): (...) uma passagem obrigatória para o processamento auditivo, o colículo inferior, é onde a voz materna deve deixar suas primeiras marcas afetivas: essa região (...) é ricamente dotada de receptores opióides que devem modular o apego que desenvolvemos por certos sons (por exemplo, as vozes daqueles que amamos) e, portanto, por uma linha paralela de raciocínio, a certos tipos de música. 135 Circuitos cerebrais muito antigos – motivação e recompensa –, intimamente ligados a essas memórias, são estimulados quando se ouve música que nos agrada; tal despertar emocional é acompanhado por marcadores somáticos (sensações secundárias do corpo, desencadeadas a partir da emoção sentida), a partir da escuta, esses circuitos são mentalmente reforçados com sentimentos positivos ligados à música, induzindo sentimentos de completude e bem-estar. A ativação do sistema de recompensa maximiza o prazer gerado pela música, não somente por sua própria atividade, mas também por promover, simultaneamente, alterações que diminuem a atividade em estruturas cerebrais associadas a emoções negativas, a exemplo da amígdala e do hipocampo, que passam a receber impulsos sinápticos58 inibitórios (BLOOD; ZATORRE, 2005, p. 11.823). Na ativação do circuito cerebral de motivação e recompensa se registra aumento da atividade cerebral no córtex pré-frontal e orbitofrontal, giro cingulado, amígdala, hipocampo e núcleo accumbens, as mesmas estruturas que serão estimuladas na resposta de relaxamento (ESCH et al., 2005, p. 9). Em musicoterapia, em especial na chamada musicoterapia receptiva, os pacientes ouvem músicas emocionalmente significativas que trazem associações e memórias; estas podem ser então trabalhadas de forma emocionalmente segura ou tão simplesmente prazerosa (ESCH et al., 2005, p. 10). 58 Sinapse é o ponto no qual dois neurônios – célula nervosa – se comunicam através da transmissão de sinais eletroquímicos. A célula que transmite o sinal é chamada pré-sináptica, a que o recebe, pós-sináptica. É através de trilhões de sinapses organizadas em circuitos que se realiza todo o processamento cerebral. 136 4.6.4.2 Música e relaxamento A Escuta Musical é indutora de relaxamento e, por essa via, promove alterações nas funções homeostáticas do organismo, desencadeando uma cascata de reações fisiológicas sob controle do sistema nervoso autônomo. Tais alterações são decorrentes de um metabolismo reduzido e de um decréscimo geral na atividade cerebral: o consumo de oxigênio diminui, o que altera os padrões respiratórios e o batimento cardíaco; a pressão sanguínea se reduz com a estimulação da vasodilatação periférica, o que faz decrescer o ritmo cardíaco, gerando uma agradável sensação de bem-estar. A resposta de relaxamento envolve, de maneira complexa, diversas estruturas subcorticais do sistema límbico: – ínsula, cíngulo, amígdala e hipotálamo –, como explica Esch (2005, p. 12):, “uma associação de música e emoção, neurotransmissores e produção do hormônio do stress, respostas autonômicas, comportamento e estados de humor, se torna óbvia”. O relaxamento também leva a uma diminuição geral da atividade cerebral, facilmente detectável no eletroencefalograma: o estado de relaxamento caracteriza-se por ondas Alfa (freqüência de 8 a 13 Hz) e pela sincronização das ondas cerebrais; daí provém a expressão popular “entrar em Alfa”; ao entrar em meditação profunda, a freqüência das ondas cai ainda mais – ondas Teta. Esse tipo de onda, presente num indivíduo normal e desperto, representaria algum tipo de disfunção cerebral, no entanto, o estado meditativo é diferente, pois é um estado ativo (KANDEL et al., 2003, p. 916). 137 4.6.4.3 Ação anti-estresse da música Pesquisas comprovam que a música tem uma atuação decisiva na redução dos níveis do hormônio do estresse no organismo (ESCH, 2003; TREHUB, 2003) e na elevação da concentração de endorfina59 e endocanabinóides60 no sangue, o que facilita o relaxamento. Em presença de um estímulo estressante, a amígdala é ativada e envia uma mensagem ao hipotálamo, o hormônio ACTH (adrenocorticotrófico) é liberado pela hipósife e libera o cortisol no sangue. O cortisol inibe algumas funções, a exemplo da secreção de insulina; a glicose liberada pelo fígado fica disponível para consumo muscular; o cortisol age também no cérebro favorecendo o comportamento agressivo para a defesa, ou simplesmente para reagir a inúmeros pequenos ataques cotidianos, como pode ser, um desentendimento no trabalho. O estresse faz parte da vida e tem uma ação positiva, no entanto, quando se instala de forma permanente, se torna prejudicial afetando a memória, a capacidade de concentração, o sistema imunológico, as funções de reprodução, além de favorecer o surgimento da diabete tipo 2 e da depressão. A Escuta Musical tem o poder de estancar a reação de estresse no organismo; a partir dela, como se viu, as estruturas límbicas interagem com o córtex auditivo, nesse caso, em especial a amígdala, responsável pela reação de medo; o hipotálamo deixa de ser ativado e de ativar a hipófise; na falta do ACTH a liberação de cortisol é interrompida; os efeitos calmantes 59 A endorfina é um neurotransmissor que entre diversas outras propriedades também atua na resposta de relaxamento. 60 Endocanabinóides são também substâncias produzidas no cérebro que atuam como moduladoras nos processos metabólicos e de secreção hormonal. 138 começam então a se fazer sentir. Músicas com andamento lento, tempo regular, e que respeitem as normas da tonalidade são as mais indicadas para essa finalidade; o repertório escolhido deve considerar tais aspectos (KHALFA, 2005, p. 72). 4.6.4.4 Arrepios musicais Os arrepios musicais, que se experimenta diante de músicas aprazíveis, são mais uma forma de manifestação das emoções. Em pesquisa realizada por Blood e Zatorre (2001, p. 11.819), o fluxo sanguíneo de regiões cerebrais foi medido através da TEP (tomografia por emissão de pósitrons); os autores partiram da hipótese da estimulação do sistema motivação-recompensa, estar relacionada à ocorrência dos arrepios. Os sujeitos da pesquisa tinham formação musical, escolheram músicas do repertório clássico que normalmente lhes causavam agradáveis sensações de arrepio, e se encontravam numa das seguintes condições: 1. Ouvindo a música por eles selecionada, 2. Ouvindo uma música controle, 3. Silêncio, e 4. Ouvindo ruídos amplificados e equalizados; a escuta de cada condição durava 60 segundos e se repetiu por três vezes, em ordem aleatória. Os sujeitos qualificaram suas reações emocionais numa escala que ia de desprazeroso a prazeroso (-5 a +5); diversas outras medidas foram efetuadas: batimento cardíaco, eletromiograma61, ritmo respiratório, resposta eletrodérmica e temperatura da pele. As experiências de arrepio foram relatadas pelos sujeitos em 77% dos scanners quando soava a música por eles escolhida, correspondentes a 61 O eletromiograma é um exame no qual são registrados os impulsos elétricos provenientes dos músculos, o que ajuda a determinar se eles estão normais. 139 alterações na atividade autônoma: elevação no batimento cardíaco e respiratório e no eletromiograma. Não foram relatados arrepios nas condições de escuta da música-controle, de ruído ou silêncio. Na escala utilizada, a avaliação de prazer ou desprazer dos sujeitos foi mais elevada do que a própria intensidade dos arrepios, sugerindo que estes se manifestam após a potencialização de certo estado emocional. O aumento do fluxo sanguíneo cerebral afetou justamente o circuito cerebral de recompensa, ilustrando mais uma vez a profusão de interconexões que as emoções promovem no cérebro humano. 4.7 Música e cognição 4.7.1 Efeitos de transferência As pesquisas comprovam que o relaxamento e situações de bemestar podem melhorar a concentração, a capacidade de memória, e, conseqüentemente, o desempenho cognitivo. (ASHBY et al., 1999; ESCH, 2003; ZATORRE, 2005). Seria por essa razão que o senso comum passou a admitir que a música nos torna mais inteligentes? O efeito Mozart alimentou essa hipótese durante a última década. O efeito Mozart62 é um efeito de transferência ― transfer effect ―, baseado na similaridade de processos envolvidos na situação original e na 62 O primeiro estudo data de 1993, F. Rauscher, G. Shaw e K. Ky. Os pesquisadores se perguntavam se uma breve exposição a certos tipos de música poderia incrementar habilidades cognitivas. Trinta e seis estudantes de 2º grau foram divididos em três grupos, os quais passaram dez minutos numa das seguintes condições: a) ouvindo a Sonata para Dois Pianos em Ré maior, de Mozart, K 448; b) ouvindo uma gravação com instruções de relaxamento; e c) em silêncio. Imediatamente após, os grupos foram testados em raciocínio espacio-temporal, utilizando uma das baterias do teste Stanford-Binet: depois de observar uma folha de papel dobrada várias vezes e submetida a vários cortes com uma tesoura, os estudantes deveriam predizer quais seriam os padrões formados no papel desdobrado. A pontuação 140 situação facilitada, como por exemplo, ocorre com a habilidade para andar de bicicleta, aproveitada também para a prática do skate ou do esqui. (WEINBERGER, 1999, p. 1). No caso do efeito Mozart, a transferência se dá do domínio das estruturas musicais elaboradas para o domínio das habilidades espacio-temporais. Os pesquisadores não conseguiram repetir o experimento com sucesso e passaram a questionar sua validade, a partir de perspectivas diversas: qualquer música de estrutura comparável à música de Mozart poderia suscitar o efeito, pois música é um estímulo muito mais poderoso para o cérebro do que as condições de controle (instruções de relaxamento, silêncio ou música minimalista); diante de música de igual interesse e com o mesmo grau de complexidade, o efeito simplesmente desapareceu, como observado em diversos estudos (CHABRIS, 1999; THOMPSON, 2001; WEINBERGER, 2000); as preferências musicais dos sujeitos, como se viu, modelam seus parâmetros de reação, interferem na performance cognitiva; assim, o efeito Mozart poderia ser nada mais do que o efeito positivo do humor induzido pela música, na performance cognitiva (BLOOD, ZATORRE, 2001; PANKSEPP, BERNATSKY, 2002; THOMPSON, 2001) Esses dados tornam-se importantes para esta pesquisa, pois através das discussões anteriores, viu-se que a música tem a capacidade de induzir tais estados positivos. Inúmeros outros efeitos musicais de transferência têm sido observados, um exemplo seria a facilitação da aprendizagem da leitura, em decorrência da habilidade musical para discriminar diferentes alturas, compreender e emitir novos sons (SPYCHIGER, 1998). Comprova-se, portanto, que a música contribui para o desenvolvimento de diversas do grupo que ouviu Mozart foi significativamente superior ao dos outros dois grupos, no entanto, o efeito era muito breve, não mais que dez a quinze minutos. 141 funções cognitivas, ainda que por breves períodos de tempo. O grande desafio para a pesquisa neuropsicológica, neste momento, é elucidar como a plasticidade cerebral se altera a partir de efeitos permanentes que um contato duradouro com a música possa desencadear. A pesquisa nesse campo apenas se inicia, mas certamente poderá contribuir para consolidar a presença da música no currículo escolar básico. 4.7.2 A sintaxe musical e a cognição A sintaxe musical ― maneira como os elementos da estrutura musical estão organizados e encadeados (acordes, escalas, tonalidades, entre muitos outros) ― não nos deixa indiferentes. Provavelmente, a percepção desses elementos estruturais se inicie num nível profundo e inconsciente, pois a música tem nos acompanhado desde tempos remotos quando não se necessitava conhecer e racionalizar sobre a sua estrutura. Como explicam Panksepp e Bernatzky (2002, p. 134): (...) há certos aspectos físicos ou mentais da chamada ‘vida interior’, que têm propriedades similares àquelas da música, padrões de movimento e repouso, de tensão e relaxamento, de concordância e discordância, preparação, resolução, ‘excitação’ etc.63 Quando se estuda música, toma-se consciência desses padrões. Envolvemo-nos com a sintaxe musical, sendo ou não músicos, consciente ou inconscientemente. Segundo Sloboda (1985, p. 16): As provas sugerem que pessoas não treinadas (em música) têm um conhecimento implícito daquilo que os músicos podem falar explicitamente. Nesse sentido, existe semelhança entre a 63 Tradução da autora. 142 música e a linguagem. Mesmo que tenham um conhecimento consciente muito limitado, indivíduos comuns falam sua língua natural, baseados nas mesmas regras gramaticais das quais se servem lingüistas profissionais64. Desde o início, com as primeiras canções de ninar, percebemos intuitivamente o encadeamento das estruturas musicais, observando as reações das pessoas, construímos representações mentais sobre a música, que permanecem latentes e se manifestam sempre que evocadas em situações concretas. Aprende-se música na vida cotidiana, no processo de crescer e conviver na família e nos grupos sociais freqüentados. 4.7.3 A Teoria dopaminérgica dos sentimentos positivos As pesquisas têm comprovado, de modo convincente, que os sentimentos positivos experimentados pelas pessoas podem afetar sistematicamente o processamento cognitivo. Sentimentos positivos podem ajudar a melhorar nossa performance na solução criativa de problemas, no incremento da memória e na escolha de estratégias para tarefas que implicam na tomada de decisões (ASHBY et al., 1999, p. 529). Nas pesquisas descritas por Ashby, os sentimentos positivos foram induzidos de formas simples: antecipação de uma pequena recompensa em dinheiro, assistir a um filme de comédia, ler cartoons divertidos, ou experimentar a sensação de obter sucesso numa tarefa difícil. A natureza simples dessas estratégias indica que os efeitos podem ser prontamente acessados por coisas simples que se experimenta diariamente. Possivelmente, na estratégia de Sentipensar, a música atue como uma 64 Tradução da autora. 143 dessas estratégias indutoras de sentimentos benéficos, com o poder de promover mudanças no estado cognitivo; tais sentimentos foram amplamente relatados pelos sujeitos da pesquisa. A cada vez que o circuito cerebral para recompensa é ativado pela escuta de música que nos agrada, ocorre a liberação de dopamina em áreas frontais do cérebro (córtex pré-frontal e giro anterior do cíngulo), a exemplo do que ocorre também para estímulos biológicos relativos ao sexo e à alimentação, ou artificialmente ativados por drogas (BLOOD; ZATORRE, 2001, p. 11.823). A teoria dopaminérgica dos sentimentos positivos ― elaborada por Ashby, Turken e Isen ― partiu da seguinte hipótese: “algumas alterações no processamento cognitivo que foram observadas na condição de sentimentos positivos são devidas ao incremento dos níveis de dopamina no cérebro associados aos sentimentos positivos” (ASHBY et al., 1999, p. 529). Tratase de uma primeira descrição do mecanismo neuropsicológico subjacente à influência dos sentimentos positivos na cognição. No artigo intitulado A neuropsychological theory of positive affect and its influence on cognition (ASHBY et al., 1999), amplamente documentado em pesquisas já realizadas nessa área, Ashby e seus colegas descreveram e comentaram resultados de mais de vinte cinco experimentos, realizados com diferentes sujeitos em contextos variados (escolas, organizações, contextos de consumo, situações de negócios, entre muitas outras), servindo-se de diferentes métodos para a indução de sentimentos positivos e diversas medidas de flexibilidade cognitiva; os autores relataram a 144 observação de alterações comportamentais e de estilo cognitivo, associadas à elevação dos níveis de dopamina, como veremos a seguir: Os sentimentos positivos levam à flexibilidade e facilitam a solução criativa de problemas através de uma ampla variedade de situações. (...) A pesquisa sugere que os sentimentos positivos aumentam a habilidade de uma pessoa para organizar idéias de múltiplas formas e para acessar perspectivas cognitivas alternativas. (...) sentimentos positivos têm conseqüências previsíveis em diferentes tipos de tarefa. (...) em associação de palavras (as pessoas com afetos positivos ranquearam melhor, tendo mais associações do que o grupo controle). (...) incrementaram a fluência verbal bastante mais em relação ao grupo controle, em situação neutra. (...) pessoas na condição de sentimento positivo são hábeis para classificar de formas mais flexíveis e são mais hábeis para ver meios pelos quais membros não típicos de certas categorias possam a ser aceitos ou vistos como membros dessas categorias. (...) Esse efeito foi observado para categorias de itens naturais, para produtos e na classificação de grupos sociais humanos (habilitando um grupo socialmente diferente a ser integrado e percebido como tomando parte de uma situação). (...) na condição de sentimento positivo, pessoas foram observadas percebendo o interesse em resolver uma tarefa interessante, mas não uma tarefa medíocre, mais do que o grupo controle. (...) a riqueza de uma tarefa é estritamente relacionada à sua complexidade, variedade, diversidade e interesse. (...) sentimentos positivos têm sido mostrados como fatores de melhoria na performance de tarefas diversas que são tipicamente utilizadas como indicadores de criatividade e inovação na solução de problemas. (...) cada resposta (à experiência descrita de arranjo criativo) pode ser vista como envolvendo flexibilidade cognitiva, ou a habilidade de colocar 145 idéias juntas em novas e úteis formas – uma definição clássica de criatividade.65 A descrição detalhada dos fenômenos constatados por essa série de experimentos científicos teve lugar nesse escrito, pois se, a partir da análise dos dados se confirme a indução de sentimentos positivos através da música, essa teoria será uma base importante de fundamentação das relações existentes entre sentir e pensar, e da utilização de uma estratégia de Escuta Musical para promover o incremento do pensamento reflexivo. 65 Citações traduzidas por esta autora. 146 5. Transdisciplinaridade: abertura do olhar sobre o mundo Como pode uma concha vazia ser habitada por fantasmas infinitos, como um homem oco torna-se o Deus de um povo? A cisão entre o espaço interior e o espaço exterior de um ser humano pode trazer um esclarecimento interessante a este gênero de processo. Quando o espaço interno se reduz a nada, o espaço externo pode tornar-se monstruoso. Basarab Nicolescu Do alto do infinito Tatiana Clauzet 147 Cenário Transdisciplinar Estávamos na PUC de São Paulo, era um seminário sobre a Complexidade e a Transdisciplinaridade na educação. Eu deveria participar de uma mesa de debates que depois de assistir a um vídeo sobre o processo criativo em Pablo Picasso, procuraria elucidar para o público presente os princípios da Transdisciplinaridade. A mesa se compunha de palestrantes brasileiros e espanhóis. Eu não havia tido tempo suficiente para preparar minha fala, o que incluiria naturalmente assistir ao vídeo antecipadamente, no entanto, não me preocupei excessivamente com isso, pois, para mim é um comportamento habitual tecer meus comentários mentais e teorias ao assistir qualquer filme ou apresentação artística. Porém, não pude deixar de pensar que a situação era um tanto inédita para o ambiente acadêmico. A mesa teve início na tarde do primeiro dia do simpósio. Decidi a priori concentrar minha atenção na parte de áudio, pois sendo a música minha área de especialização, com certeza haveria algo a agregar sobre isso. De fato, o áudio era muito interessante a começar pelo som do pincel atômico com o qual Picasso traçava suas figuras. Havia uma deliciosa sincronia entre som e imagem, e aquele som sobre o silencio tornou-se encantatório. Na seqüência, havia uma música clássica, possivelmente anos 20, de caráter fragmentário, os elementos pareciam misturar-se algumas vezes ao acaso, numa espécie de arte combinatória, uma espécie de caleidoscópio de som, o mesmo estava acontecendo com as imagens que se construíam e desconstruíam o tempo todo. Som e imagem estavam sincronizados do ponto de vista material e concreto, mas também a partir dos sentidos que se podia atribuir a toda essa dinâmica. Iniciei minha fala recordando idéias do mestre Koellreutter: “não existe nada mais programado do que uma improvisação”. Sim era necessário dize-lo, pois, em especial aos olhos de meus colegas de mesa, tudo poderia parecer uma grande improvisação; tão pouco havia algum mal nisso, pois, a improvisação é tão fundamentada e referenciada quanto a composição, para improvisar é necessário um cabedal de competências e grande quantidade de referências provenientes da linguagem que se utiliza, seja ela sonora, visual, corporal, verbal ou qualquer outra. Essa liberdade e aparente falta de planejamento foi o primeiro elemento de abertura que incorporamos naquela tarde. As falas 148 tornaram-se poéticas, todos os palestrantes falaram algo sobre o ato de improvisar e sobre as diferentes linguagens artísticas, sobre eles próprios, sobre a subjetividade de cada interpretação, e a busca do sentido por parte de cada um, e esse foi um segundo elemento de abertura. O público se sentiu livre para interagir e as perguntas foram muito interessantes. O diálogo franco se estabeleceu, entre o conhecimento acadêmico e a sabedoria das pessoas, um terceiro elemento de abertura. O tempo passou com incrível rapidez. O olhar das pessoas era tranqüilo e por parte de várias delas havia encantamento. Pude sentir ar de liberdade. O clima foi se tornando mágico, estávamos todos conectados, pertencíamos todos àquele ambiente. Havia algo mais entre as pessoas, algo que não se vê. Havia uma energia compartilhada e unificadora que religou a todos. No dia seguinte ainda acordei com aquela sensação e possivelmente eu a carregue sempre, me sentia energizada, me sentia feliz e em fluxo, sentia que o mundo era pequeno para mim e que eu poderia dar conta de fazer tudo o que tinha a fazer e além do mais, sentia que isso era prazeroso. No dia seguinte, aquela mesa foi evocada em vários momentos, sempre de forma prazerosa e aberta, tivemos o depoimento de duas graduandas que se sentiam incluídas naquele mundo primeiramente tão resistente dos mestres e doutores. Havíamos vivido juntos uma linda experiência de partilha. O espírito transdisciplinar havia estado conosco. 5.1 O espírito transdisciplinar: comentário da experiência A experiência que acabo de descrever, vivida intensamente por cada um dos indivíduos presentes, foi uma experiência do coletivo unificado no campo energético que se formou. Vivemos tempos difíceis, carentes de uma reforma total do pensamento, e de uma transmutação paradigmática profunda, comparável a 149 uma revolução. Estes tempos pós-modernos caracterizam-se pela incerteza e pela convivência de opostos; pela descrença na razão, no progresso e nos grandes ideais que alimentaram a modernidade. A situação filosófica da pósmodernidade mergulhou-nos num mar de desesperança, no qual parece inútil nadar. Estamos precisamente no ponto de bifurcação, ou se sucumbe junto às grandes narrativas modernas, ou se fortalece um discurso inovador que, poderia apresentar-se como fonte de renovação para as possibilidades da humanidade. A esperança já esteve presente em outra parte deste escrito, quando discuti o conceito de Sentipensar, e agora retorna pelas mãos da Transdisciplinaridade; ela é muito necessária e, como educadores, é preciso que nos tornemos seus arautos, anunciando entusiasticamente sua chegada. Os saberes, o acúmulo de conhecimentos pela humanidade, não têm garantido uma vida mais feliz. Estamos à beira de um ataque de nervos, afastados do ser interior; é como se não houvesse mais autoconhecimento possível. A ‘mãe terra’ também pede socorro. Como poderia ser diferente? Como cuidar do ambiente, se somos incapazes de nos cuidar? A Carta da Transdisciplinaridade (vide Anexo 7) e seus signatários, falam de uma “tecnociência triunfante”; e, em contraste, de uma nova forma de obscurantismo: “o ser interior cada vez mais empobrecido”; como teríamos chegado a isso? O que é possível ainda fazer? O espírito transdisciplinar alia-se a nós numa incessante luta por um mundo sustentável e relações humanas mais felizes. Mas o que seria o espírito transdisciplinar? A análise do cenário transdisciplinar, que abre esta seção, permite vislumbrar algumas respostas. 150 O espírito transdisciplinar manifestou-se na construção atenta, sutil e improvisada das ações daquela tarde e, de forma bem especial, para mim; sentei-me à mesa com a disposição de elaborar o conhecimento a partir dos dados que me fossem apresentados; isso implicava abertura em todos os sentidos: das percepções, das capacidades analíticas, abertura também da escuta, tanto dos dados concretos apresentados no áudio, como da fala dos outros participantes e do público, a partir das quais eu faria minha própria construção. O espírito transdisciplinar se manifestou na exposição dos sujeitos, promovendo a “ressurreição do indivíduo”, como diria Basarab (2005, p. 11); olhares e opiniões se entrecruzaram e se esclareceram mutuamente. Na subjetividade das interpretações, reorganizadas através de uma troca intersubjetiva, a busca do sentido pode ter lugar transformando-se gradualmente, a cada traço de Picasso, a cada alternância de imagem. Por um momento, durante aquela mesa, desejei ter a panorâmica dos sentidos atribuídos por todas as pessoas àquela dinâmica, o que comporia uma espécie de polifonia mental a várias vozes. A subjetividade do “outro” nunca me pareceu mais inacessível; a sensação, por instantes, foi de impotência; então, pensei, pensei, e me coloquei a questão fatídica: será que nunca será realmente possível saber “como o outro pensa e sente?” Conclui que o sentido da alteridade é precisamente isso: o esforço de compreensão de como o outro sente e pensa, e encontrei consolo. O diálogo esteve presente, assim como a disponibilidade para a escuta. Diálogos entre aparentes opostos: o mundo acadêmico e a sabedoria das pessoas, a fala do especialista e a fala do leigo, o pressuposto disciplinar e a integração interdisciplinar, a arte e a ciência, a escuta do 151 outro e a escuta de si; são diferentes formas de diálogo configurando, mais uma vez, o cenário transdisciplinar. A atitude transdisciplinar implica numa escuta sensível, aquele que ouve deve “saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro, para compreender do interior as atitudes e os comportamentos, o sistema de idéias, de valores, de símbolos e de mitos” (BARBIER, 2002, p. 94); a escuta sensível é, então, o portal de comunicação que se abre entre as subjetividades. Através da escuta sensível possibilita-se a aceitação do outro, e sua compreensão “fundamentada no respeito absoluto às alteridades unidas pela vida comum numa só e mesma Terra”, diz a Carta em seu Artigo 13; por isso mesmo, a transdisciplinaridade é transcultural, não privilegia o foco numa cultura ou em outra, mas sim, naquilo que está entre as culturas e que pode uni-las. Toda forma de hegemonia não é compatível com a visão transdisciplinar. Da fala das duas graduandas que quiseram dar seus depoimentos no contexto da experiência que se está analisando, depreendia-se a alegria da aceitação, a liberdade de expressão e, sobretudo, o sentido de pertencer a um ambiente. Esse é o espírito transdisciplinar que se almeja para a sala de aula. Todos os fatores discutidos aqui, até o momento, tiveram alguma parcela de responsabilidade na magia e encantamento experimentados durante aquela tarde, no entanto, o grande orquestrador, a meu ver, só pode ter sido o espírito artístico; este vive em cada um de nós, algumas vezes sufocado, impedido, às vezes espezinhado, porém, quando se manifesta, liberta e promove a catarse humana. A arte esteve presente naquela tarde, no fantástico processo criativo de Picasso, na articulação criativa entre 152 áudio e imagem, no diálogo criativo que se estabeleceu entre as diferentes disciplinas representadas à mesa, na participação criativa do público, naquela sensação de improviso e indeterminação que terminou por libertar a todos. A arte, tantas vezes negligenciada, finalmente encontrou seu lugar: A visão transdisciplinar é completamente aberta, pois, ela ultrapassa o domínio das ciências exatas pelo seu diálogo e sua reconciliação, não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior.66 Encerrados os debates, no dia seguinte – e eu diria, ainda hoje –, restaram os influxos da maravilhosa experiência com o vídeo de Picasso. Experimentou-se uma sensação de religação e de aceitação que gerou alegria, prazer e muita vontade de continuar por essa via. Havia algo mais no ar, algo mais que a simples noção de missão cumprida, mais forte do que simplesmente ter conseguido falar algo de significativo; havíamos criado, juntos, um campo energético, um campo vibracional. A natureza humana talvez nunca venha a ser completamente conhecida; sabemos – porque sentimos – que somos mais do que a visão reducionista concorda em nos conceder: Em nosso aspecto mais elementar, não somos uma reação química, mas sim, uma carga energética. Os seres humanos e todos os seres vivos são uma configuração energética dentro de um campo de energia conectado com todas as demais coisas do mundo. Este campo de energia pulsante é o motor central de nosso ser e de nossa consciência, o alfa e o ômega de nossa existência. (MCTAGGART, 2006, p. 18) 66 Carta da Transdisciplinaridade – Artigo 5. 153 O tempo passou rápido naquela tarde, pois o tempo não é uma linha que corre do passado para o futuro, mas sim, uma forma de sentir, uma forma de perceber, uma dimensão. 5.2 A trindade transdisciplinar: complexidade, níveis de realidade e o terceiro incluÍdo Uma matéria mais fina penetra uma matéria mais grosseira. As duas coexistem, cooperam numa unidade que vai da partícula quântica ao cosmo. Nicolescu Basarab O pensamento transdisciplinar é precisamente uma primeira abertura, uma ação concreta sobre a nossa realidade, para nela inserir a visão de um real global e não mais causal, revelado pela nova física quântica, um real ’holistico’ no qual todos os aspectos da realidade podem ser considerados e respeitados, sejam eles científicos, materiais, afetivos ou espirituais. Michel Random Entrei na temática da Transdisciplinaridade pelas portas do sentir e do agir. Possivelmente, através do comentário construído na abertura desse Capítulo, seja possível deduzir o significado da Transdisciplinaridade; no entanto, o que responder a meu aluno – incipiente e insipiente – quando coloca a questão: mas afinal, o que é Transdisciplinaridade? Tenho que responder concretamente e de forma compreensível; respondo então que a Transdisciplinaridade é uma tentativa ainda mais profunda do que as anteriores de unir as disciplinas, englobando não apenas o diálogo entre elas, mas também todas as transformações que o ser 154 humano tem que abrigar em seu interior para viver verdadeiramente este espírito integrador. A palavra surgiu em 1970, com Piaget, no I Seminário Internacional sobre pluri e interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice. O prefixo “trans” exprime a idéia de ir além e através das disciplinas, o que significa penetrar nas entrelinhas e nos significados ocultos; “‘trans’ exprime a abertura, a ultrapassagem (...) dá-se o mesmo em ‘transgredir’: ir além das proibições para ‘transformar’ o real” (RANDOM, 2000, p. 26). Dessa maneira, a transdisciplinaridade procura transgredir os limites entre as disciplinas, assim como os limites interiores que nos impomos ao assumir uma visão transformadora de mundo. A transdisciplinaridade se ergue sobre três pilares: a complexidade do mundo, da natureza, do humano e de tudo o que existe; a lógica do terceiro incluído, apresentado mais adiante, implica na abertura mental para conciliar opostos, integrando-os numa nova forma de percepção; e, os níveis de realidade, que pressupõem a existência de uma realidade multidimensional e a transformação de nossos níveis de percepção. Nesse sentido, a transdisciplinaridade é mais um dos desenvolvimentos existenciais, gerado a partir das descobertas quânticas: dois mundos diferentes coexistindo no mesmo tempo e lugar, o mundo macro de nossa realidade concreta e o mundo micro em eterno movimento na forma de energia e matéria que nos constitui; esses dois níveis de realidade nos dizem respeito diretamente. E por que não outros mundos, outras dimensões? Possivelmente, existam outros mundos que transitam entre o macro e o micro, entre o visível e o invisível, mundos que a transdisciplinaridade interpreta e assume 155 como diferentes níveis de realidade, e assim, realidade macro, realidade quântica, realidade virtual, e ainda, realidades interiores plasmadas nos diferentes sentidos que os indivíduos atribuem à vida, nos diferentes conjuntos de valores que alimentam as culturas, ou seja, nos diferentes níveis de percepção que se constrói sobre a realidade. Muito se tem dito sobre a ‘realidade’. Para Basarab (2005, p. 30), Realidade é “aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas”67, ou seja, a realidade é o território e não o mapa, e tem muito de indescritível. A física quântica revelou uma realidade misteriosa, interconectada, na qual os eventos e indivíduos surgem interligados. Tal constatação se iniciou na percepção de que as partículas subatômicas que, em algum momento tenham interagido, permanecem conectadas, ainda que separadas por longas distâncias; elas permanecem ligadas por uma espécie de força invisível que, nos primeiros tempos, Einstein ironizou chamando de 'ação fantasma à distância'; essa é uma propriedade das partículas e, em conseqüência, de toda a matéria, e a isso se denominou princípio da não-separabilidade68. Se existe uma conexão não-local entre as partículas, com certeza nossos corpos estão sujeitos a ela; isso quer dizer que existe também uma conexão entre as pessoas, uma ligação ainda por explicar, e que tem sido alvo de estudos, mas também de especulações. Tudo isso tem implicações mais sérias, pois o cérebro também é parte do corpo; fenômenos de consciência podem também estar sujeitos às regras da não-separabilidade, 67 É a esse conceito que Basarab se refere quando utiliza Realidade com letra maiúscula. Sobre esse tema é interessante conhecer os experimentos de Alain Aspect que comprovaram a não-separabilidade na Física, e também as Teorias das variáveis ocultas, uma delas é a de David Bohm, que procura encontrar outros princípios, ainda não conhecidos, que possam explicar o efeito da não-localidade. 68 156 e isso poderia explicar muitos fenômenos de comunicação transpessoal. Essas idéias estão animando a vida da ciência na atualidade e gerando diversas teorias explicativas. Esse tipo de conexão é não-local, ou seja, não está sujeita às leis da causalidade linear (a toda causa corresponde um efeito); aparentemente, não existe uma causa que possa explicar o efeito que duas partículas continuam exercendo uma sobre a outra, mesmo depois de separadas, assim como ainda busca-se uma explicação causal para fenômenos como a telepatia, a intuição, a premonição, a ligação forte existente entre irmãos gêmeos, entre vários outros. Tudo isso quer dizer que a realidade é muito maior e mais complexa do que nossos mapas, e que há ainda muito por compreender. Culturas milenares, tanto quanto culturas primitivas que ainda existem entre nós, incorporaram a conexão cósmica em suas religiões, crenças e rituais de religação entre o homem e a natureza; seria o ‘fazer parte’ de algo global e, de uma forma de comunicação especial e mágica, denominada “visão”; nossa cultura, racionalista, avessa às coisas do espírito, abriu uma pequena brecha para tudo isso através da parapsicologia que, sempre lutando para alcançar credibilidade, dedicou-se a tentar explicar o inexplicável. A partir da revolução paradigmática da ciência, tais fenômenos começaram a demonstrar cada vez mais evidências concretas, mas os cientistas resistiam, como relata Random, a propósito das discussões sobre o princípio da não-separabilidade que tiveram lugar durante o Colóquio de Veneza em 1986: (...) a maioria dos cientistas (...) limitava-se a constatar os fatos sem extrair deles outras conseqüências filosóficas. No 157 entanto, se a filosofia não podia, a partir disso, levar uma nova visão do mundo, para que serviria a ciência? Para descobrir um novo real envolto em proibições? Eu percebia entre esses cientistas o medo de formular uma hipótese, por menor que fosse, capaz de levar à mínima abertura do imaginário. (RANDOM, 2000, p. 11) Teorias científicas atuais explicam de forma cabal como estamos todos inseridos num campo energético que nos conecta com tudo o que existe; esse campo vem sendo chamado, por Erwin Laszlo, campo akásico, palavra derivada de akasha, do sânscrito, e que significa, na filosofia hindu, radiação ou resplendor (LASZLO, 2004, p. xi); Teresa Versyp, o chama de campo de ponto zero ou vazio quântico, uma espécie de mar de energia e informação resultante do jogo das flutuações quânticas, da criação e destruição constante de partículas e anti-partículas que preenchem esse vazio com “uma fonte de energia sem limite e sem contaminação, a energia do ponto zero, chamada ZPE (zero point energy)” (VERSYP, 2006, p. 1). Neste ponto, a ciência abre um portal de comunicação com as tradições milenares; a radiação e o movimento vibratório incessante das partículas de luz (quanta), materializam a dança eterna de Shiva, da tradição do hinduísmo. Essas teorias nos incitam a resgatar o antigo adágio ”há mais coisas entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã filosofia”. Daí a pertinência dos níveis de realidade propostos pela transdisciplinaridade e a necessidade de se fazer evoluir nossos níveis de percepção. Basarab define os níveis de realidade da seguinte forma (2005, p. 31): (...) um conjunto de sistemas invariantes sob a ação de um número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas submetidas às leis quânticas, as quais estão radicalmente 158 separadas das leis do mundo macrofísico. Isto quer dizer que dois níveis de realidade são diferentes se, passando de um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (...). Dois níveis de realidade, portanto, submetidos a diferentes conjuntos de leis, tornam-se incomunicáveis, separados na visão tradicional por uma lógica clássica. Esta lógica baseia-se em três axiomas: O axioma da identidade: A é A; o axioma da não-contradição: A não é não-A e o axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (de “terceiro incluído”) que é ao mesmo tempo A e não-A (BASARAB, 2005, p. 35). Ao tomar como exemplo a performance instrumental, ao longo de vários séculos, prejudicada e reduzida por uma visão tecnicista, teria-se o seguinte: Técnica Sensibilidade (A) (não-A) Nesta concepção, os dois termos tornam-se opostos excludentes, pois a lógica tradicional binária não permite sua existência simultânea. Essa coexistência caracterizaria o terceiro termo incluído, inviável e, portanto, excluído. Em música, durante muito tempo predominou essa visão – e em muitos setores predomina ainda hoje –; uma visão tecnicista e mecânica, tornando a performance instrumental intelectualizada, e tecnicamente impecável; com o passar do tempo, e com a exigência de níveis de excelência, se requer algo mais que técnica, se requer o espírito artístico, é onde se sente a necessidade de “aulas de interpretação”. O objetivo dessas 159 aulas é reintegrar sensibilidade e técnica, razão e emoção, algo que nunca deveria ter sido separado, desde os níveis elementares. Os opostos inconciliáveis, podem conciliar-se através de um terceiro estado T, de Terceiro Incluído. No exemplo acima, esse terceiro termo apareceria como a resultante altamente desejável: arte da performance, em elevado grau. Arte da performance Técnica Sensibilidade (A) (não-A) Na Transdisciplinaridade, os diferentes níveis de realidade se organizam verticalmente e se comunicam, a partir da noção integradora de Terceiro Incluído. Este é resultante de uma lógica ternária, na qual pode existir A, não-A e sua união; a comunicabilidade entre os dois ocorre justamente num nível acima de realidade, com a abertura do olhar e a verticalidade, transdisciplinares. Tomando agora como exemplo, o Sentipensar, vê-se que este resulta da integração entre sentir e pensar, que podem unir-se num nível acima de realidade; Sentipensar torna-se, então, o Terceiro Incluído: Sentipensar nível de percepção 2 nível de percepção 1 Sentir (A) nível de realidade 2 Pensar nível de realidade 1 (não-A) 160 A lógica do Terceiro Incluído nos permite viver no mundo de contradições, descortinado pela revolução científica do séc. XX; permite encontrar explicação para paradoxos aparentemente inexplicáveis, e unir pares de contraditórios excludentes, a exemplo destes, ressaltados por Basarab (2005, p. 33): “onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não-separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo, etc...” A cada vez que se está diante de um conceito integrado pela lógica do Terceiro Incluído, novos opostos se anunciam. Estes encontrarão sua síntese num próximo nível de realidade; esta estrutura caracteriza uma abertura, uma realidade sempre no processo de vir a ser, dependente também da evolução de nossos níveis de percepção da realidade. Possivelmente, o vir a ser, o inacabamento, sejam características constitutivas de tudo o que existe: o universo é aberto e está em constante expansão, não se conhece seu início nem seu final; o ser humano é inacabado, “onde há vida, há inacabamento”, diria Paulo Freire (1998, p. 55); o processo de conhecer é aberto, implica em transformação e mudança interior e exterior; a realidade é inacabada e, se encontrar unidade, será uma unidade aberta, como bem esclarece Basarab neste trecho (2005, p. 58): A lógica do Terceiro Incluído pode descrever a coerência entre os níveis de realidade pelo processo interativo, compreendendo as seguintes etapas: 1. um par de contraditórios (A, não-A) situado num certo nível de realidade é unificado por um estado T situado num nível de realidade imediatamente vizinho; 2. por sua vez, este estado T está ligado a um par de contraditórios (A’, não-A’), situado em seu 161 próprio nível; 3. o par de contraditórios (A’, não-A’) está, por sua vez, unido por um estado T’ situado num nível diferente de Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o ternário (A’, não A’, T). O processo interativo continua infinitamente até o esgotamento de todos os níveis de Realidade conhecidos ou concebíveis. Assim, ampliando esse exemplo sobre o Sentipensar, é possível chegar à compreensão dessa unidade: (A) (Terceiro incluído) (não-A) nível de percepção 4 nível de realidade 4 Ser integral nível de percepção 3 nível de percepção 2 Corpo Sentipensar nível de percepção 1 Sentir Regulação biológica Sentimento nível de realidade 3 Mente Pensar nível de realidade 2 nível de realidade 1 Percepção da regulação biológica A lógica aberta do Terceiro Incluído implica, então, numa unidade aberta, que integra os diferentes níveis de Realidade, com implicações importantes para o conhecimento: não existe coisa estática, não há conhecimento completo nem teoria completa capaz de dar explicação, em si mesma, para qualquer fenômeno observado. A evolução da ciência é um exemplo claro dessa unidade aberta, na qual as teorias se opõem, se complementam, por vezes se anulam, construindo os mapas do mundo aceitos como válidos. 162 O pensamento trans pode ser considerado como um antídoto para o pensamento dual e disjuntor, pois essa unidade aberta se prolonga para o que Basarab chamou uma zona de não-resistência, uma região (da psique? da consciência coletiva?) até então descartada pelo pensamento ocidental e por sua forma clássica de fazer ciência. Trata-se de um lugar de entrega que incorpora o inexplicável, o aparentemente contraditório, uma região onde fluímos e somos admitidos como seres plenamente subjetivos: “ao fluxo de informação que atravessa de maneira coerente os diferentes níveis de Realidade corresponde um fluxo de consciência atravessando de maneira coerente os diferentes níveis de percepção” (BASARAB, 2005, p. 64). O pensamento transdisciplinar não poderia estar ausente de um trabalho que discute o Sentipensar e a Escuta Musical como uma de suas estratégias, pois a arte freqüentemente nos leva para regiões de nãoresistência, regiões de não-racionalidade, impossíveis de descrever com palavras. Este é o momento para a frase lapidar de Basarab (2005, p. 62): “A zona de não-resistência corresponde ao sagrado, isto é, àquilo que não se submete a nenhuma racionalização”. 163 5.3 A Escuta Musical como estratégia transdisciplinar Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de dissolvê-lo no meio de estruturas formais, sejam quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar. Carta da Transdisciplinaridade – Art. 1 O que é isso que nos acomete depois de um relaxamento? Para que regiões insondáveis nos leva a Escuta Musical? Como colocar tudo isso nos escaninhos de uma razão mecânica? A Escuta Musical alimenta o saber interior. Ao desenvolver um conjunto de atitudes a ela inerentes – relaxamento, concentração, atenção, entrega, fruição de emoções – produz uma vivência interior muito rica, reúne as dimensões humanas separadas, integra corpo e mente, numa coordenação perfeita para o Sentipensar. Seus efeitos beneficiam o ser humano de muitas formas, da emoção à espiritualidade, como visto no Capítulo anterior. Não por acaso, inúmeras pessoas a tem descrito como uma possibilidade de autodescoberta, de renovação do contato com o ser interior, de transcendência. Trata-se de um portal aberto para o autoconhecimento. A Escuta Musical une as pessoas de forma sensível, leva à compreensão da via de comunicação entre os extremos de uma dualidade, à aceitação dos valores e formas de sentir do outro. Na forma como foi conduzida nesta pesquisa, algo se evidenciou: o fato de se realizar a escuta no grupo, e de experienciar tais vivências interiores no coletivo, estabelecia uma conexão energética, uma forma de comunicação sensível, que unia o grupo de forma cada vez mais íntima. Alguns sujeitos relataram o bem-estar advindo de ser ouvido, ser aceito por um grupo, e de fazer parte de uma 164 sintonia fina. Todo esse discurso estaria nos levando a hipertrofiar as propriedades da escuta? Estou certa que não, pois, é no interior do seu humano onde se iniciam todas as possibilidades. A Escuta Musical nos leva para regiões insondáveis, às bordas do universo interior. No Capítulo 6, que descreve a pesquisa de campo, a “volta” da Escuta Musical, por mim denominada “despertar”, torna evidente essa passagem por regiões insondáveis; é possível perceber essa passagem nas expressões dos alunos e na morosidade com que o “ritmo normal” é retomado. Por tudo isso, e por muito mais que isso, por tudo o que não sei se perceberei um dia, a Escuta Musical é naturalmente transdisciplinar, tanto quanto a experiência humana: rica, complexa e indescritível. A Escuta Musical abre um canal direto para essas regiões desconhecidas onde reina a magia, a beleza e o contágio emocional. Qual o caminho para a experiência humana direta? Varela o encontrou na meditação da atenção-consciência (VARELA et al., 2003, p. 34); eu o encontro no Sentipensar, em especial, através da Escuta Musical, mas não só, pois esse caminho estará sempre aberto a cada vez que se incorpore, em sala de aula, o espaço do ser humano sensível. 165 6. A Pesquisa de Campo A Arvore sonhadora (sem janela) Tatiana Clauzet 166 Cenário transdisciplinar Estávamos na Faculdade de Música Carlos Gomes, numa manhã de 3ª feira, era a última aula de um curso memorável de Didática do Ensino Musical. Ao longo de dois semestres, o grupo havia se constituído de forma afetiva, orgânica, e as emoções estavam então à flor da pele. Tínhamos que avaliar o curso nesse dia. Eu queria muito saber como os alunos tinham vivido a experiência de escuta musical e relaxamento, antes de cada aula desse curso, mas não desejava perguntar diretamente, necessitava apreender deles, de alguma maneira se a experiência havia sido significativa ou não, por isso mesmo, a aula estava sendo gravada. Pensei em fazer uma avaliação diferente, algo que fosse marcante, que abrisse espaço para o não verbal e o artístico, tantas vezes relegados, mesmo numa escola de música. Decidi partir de uma pergunta metafórica “Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria?” Houve alguma estranheza e hesitação no início, mas logo os alunos começaram a se expressar a respeito, de formas cada vez mais profundas, poéticas e naturalmente metafóricas. As falas seriam realmente marcantes e as emergências do processo abundantes: “(...)seria uma surpresa a cada compasso...ela poderia ser paradoxal, não linear” “(...) é uma partitura livre, porém um pouco calculada, referenciada, interessante, acho que é isso, acho que foi uma música perfeita.” “eu penso numa forma, eu penso na Suíte,(...) eu não achei que foi caótico, foram pequenos lances encadeados, todos no mesmo tom, alguns movimentos mais acelerados, outros mais lentos, mas eu acho que a tônica do semestre se manteve, assim, teve uma coloração meio única do grupo, que eu acho que é bacana, dá um caráter de unidade. “São várias músicas, e eu colocaria um paralelo (...) com banda de baile, porque você é obrigado a tocar tudo, interpretar da sua forma, são vários tipos de ritmo, vários tipos de música, mas um fundamento só: terminar satisfatoriamente, terminar com sucesso”. 167 “Vou dar uma de metido, posso tocar uma música?” O aluno se sentou ao Piano e começou a tocar “Começar de novo” de Ivan Lins (V. anexo 5), foi um momento de intensa emoção para o grupo, todos choraram e ao final, começaram a cantar juntos as últimas frases da música. Essa foi a primeira emergência do processo avaliatório, algo inesperado que se tornou essencial. Ao final dos depoimentos, também escolhi a minha música: uma colagem, uma riqueza enorme de informações, de cruzamentos, de individualidades, identidades se misturando, épocas diferentes se juntando, a diversidade e a possibilidade de tudo isso estar junto. Para mim seria essa colagem inspirada por tudo que há de mais humano. Como é possível educar sem tocar na dimensão humana? Isso é o que me preocupa na formação de professores: como é possível pretender mudar a cabeça alheia sem mudar a própria cabeça? Eu não tinha certeza de que a partir desses depoimentos eu iria conseguir a síntese que estava pretendendo, apesar de sua riqueza, talvez seria ainda necessário utilizar mais algum instrumento que pudesse sintetizar melhor os dados? O que era certo é que aquele tempo excepcional de convivência estava chegando ao fim.. Movida pela idéia de meu aluno que se sentara ao piano e tocara, um pensamento me ocorreu forte e repentinamente: “E se fizéssemos aqui e agora, todos juntos, uma música que simbolizasse o curso?” A idéia cresceu rápido, e saiu: “E se fizéssemos essa música? Vamos abrir o armário de instrumentos?”, disse aos alunos. Essa foi a segunda emergência do processo, pois, até então, eu não havia pensado nesse tipo de avaliação. Seguiu-se um murmúrio geral, cada um escolhendo seu instrumento. O Piano foi escolhido, mas também vozes, instrumentos de plaquetas -xilofones e metalofones- e diversas percussões. De início, estava difícil “entrar na música” pois todos queriam discutir como ela deveria ser, qual seria seu início, de onde partiria, qual seria sua forma, entre muitas outras questões; outros insistiam para tocar, “a gente tem que sentir o som, prá gente sentir o som, a gente tem que fazer silêncio...” disse um aluno; eu coloquei que toda música partia de uma idéia, Schafer69 havia partido de uma paisagem em Snowforms, outros compositores partiam de textos ou de fórmulas 69 Murray Schafer, importante educador musical e compositor canadense da atualidade. 168 matemáticas, um aluno então respondeu que já tínhamos a idéia: “a gente já tem já, é a aula, e agora vai rolar, som-diversão...” Decidi então colocar uma diretriz: “é o seguinte, vamos tirar o verbal da jogada, ninguém mais fala, abram as percepções para ver e ouvir o que acontecerá com o som, e antes de começar, façam silêncio, de olhos fechados, alguém quebrará esse silêncio tocando alguma coisa, a partir daí, a música se construirá, mas esperem, não tenham medo de curtir um pouco esse silêncio, fechem os olhos...” Seguiu-se menos de um minuto de silêncio, a música começou rarefeita e pontilhista, predominando percussões; aos poucos, outros instrumentos e vozes foram se agregando. A música aconteceu durante aproximadamente vinte minutos com momentos de agregação e desagregação sonora, ilustrando pontos de bifurcação, conduzindo a resultados inesperados; momentos poéticos, momentos sensuais, momentos diáfanos, sutileza e violência. Ao final, alguém gritou “quebra tudo” e outros entraram no mesmo refrão, a música cresceu, tornou-se criativamente selvagem e caótica, terminando com um sentimento de grande euforia gerado no grupo. (Ouça anexo 1) Comentário sobre a experiência A experiência de improvisação musical descrita acima passaria a ter a pregnância de uma forma gestáltica que se impõe à percepção; não estava inicialmente prevista, emergiu quase que por acaso e tornou-se figura, sobre um fundo pleno e borbulhante de atividade; chamou para si a síntese do que poderia ser toda essa pesquisa: houve ação e reflexão, razão e sensibilidade: Sentipensamento. Na não-verbalidade dos sons manifestou-se a riqueza da vida interior, a experiência do fluxo energético conectou as pessoas, de maneira a fazer-se sentir fisicamente; fazia calor ao final e era difícil sair, difícil abandonar aquele magnetismo; a ligação persiste até hoje, quase um ano e meio depois de terminada a disciplina; ao encontrar um daqueles alunos, 169 existe algo mais, uma espécie de cumplicidade. Estaremos ligados para sempre pelas lembranças, pela energia do campo. Fizemos arte – e isso não deveria ser surpreendente numa escola de arte – fazer arte, porém, transcende o que normalmente as escolas conseguem ensinar, fazer arte é uma religião, no sentido do religare70 ― aquilo que nos reúne por dentro e nos reúne ao mundo. As subjetividades estavam lá, se reconstruindo na intersubjetividade; a emoção estava lá, o irracional, o sentir, a arte. Era o caos 71, um caos de onde se deseja, por instantes, nunca sair. 6.1 Uma experiência de Sentipensar em sala de aula Ao introduzir este escrito, no primeiro Capítulo, pude descrever a trajetória que, ao longo de dezoito anos de formação de professores, me conduziu da valorização da música como fenômeno sensorial, vibratório, sensível, e de práticas essencialmente sensibilizatórias, à tomada de consciência do poder estratégico da música no incremento do pensar e das habilidades reflexivas. Descobri, pela vivência intuitiva e pela observação de meus alunos-professores, que havia interesse real em focalizar a formação de um ponto de vista sistêmico, complexo, reintegrando atividades de natureza sensível e prática, àquelas de natureza teórica e reflexiva, tanto quanto reintegrando o ser humano em suas diversas dimensões. 70 Religare vem do latim "re-ligare", que significa "ligar com", “ligar novamente”, restabelecer a ligação perdida com o mundo que nos cerca ou com o nosso interior. www.religare.org.br. 71 O estado primordial, primitivo do mundo é o Caos. Era, segundo os poetas, uma matéria que existia desde tempos imemoriais, sob uma forma vaga, indefinível, indescritível, na qual se confundiam os princípios de todos os seres particulares. Caos era ao mesmo tempo uma divindade, por assim dizer rudimentar; capaz, porém, de fecundar. www.mundodosfilosofos.com.br/caos.htm. 170 A partir da experiência geradora vivida em Málaga, com os professores espanhóis, também relatada no primeiro Capítulo, pude perceber a urgência em resgatar o reencantamento, não-somente para a educação musical infantil ou para a formação de professores de música, mas para a Educação, de uma maneira geral. O reencantamento é necessário e urgente, desde o trato com bebês até a formação dos futuros profissionais. As fórmulas de encantamento deveriam ser onipresentes, em todos os níveis educacionais, do berçário à maturidade, pois trazem consigo o prazer do bem-estar e toda a magia das coisas belas. Decidi observar o Sentipensar em ação numa disciplina teórica que ministrava na Faculdade de Música Carlos Gomes. Tradicionalmente, as disciplinas teóricas tendem a se concentrar em pressupostos teóricos e formas de ação, muito distanciados da prática efetiva, dependendo de como a disciplina é conduzida; torna-se um espaço conservador de discussão, no qual os alunos, via de regra, não conseguem experienciar outras estratégias de aprendizagem; podem aborrecer-se ou cair numa enfadonha rotina de leituras. Além disso, o ambiente acadêmico – e isso me parece muito mais grave – parece ignorar que seus acolhidos são também seres humanos; toda e qualquer forma de encontro do ser humano consigo mesmo é alijada do processo; refiro-me a práticas que levem para a sala de aula a possibilidade de relaxar, de utilizar outras linguagens expressivas e até mesmo a meditação, como meio de preparação de um dia de trabalho. Uma disciplina em ambiente acadêmico me pareceu ser o ambiente ideal para uma pesquisa sobre o Sentipensar. 171 6.2 A Disciplina Didática do Ensino Musical Ao longo do segundo semestre de 2005 e primeiro semestre de 2006, a experiência foi colocada em prática na Faculdade de Música Carlos Gomes, dando início à fase de pesquisa de campo em meu trabalho. Tratava-se da disciplina de Didática do Ensino Musical, integrante da grade curricular do curso de Licenciatura Plena em Música. Todos os alunos matriculados exerciam, já, algum tipo de atividade profissional no campo da música, como músicos, regentes ou professores de música. Em geral, os alunos matriculados em cursos de música sofrem de uma grande alienação quanto ao alcance de seus estudos72 e mesmo com relação ao alcance de suas ações educativas e formativas; além do mais, a formação no Ensino Médio não vislumbra de forma satisfatória questões relativas ao possível trabalho futuro como professores. O resultado disso é que, com freqüência, recebemos no curso de Licenciatura alunos com pouco contato com as idéias do discurso educacional e com os pensadores da Educação, configurando uma situação difícil. Por essa razão, pareceu-me imprescindível trabalhar, no primeiro semestre, alguns conceitos da Filosofia da Educação; a questão dos valores que permeiam a prática educacional e a reflexão sobre a própria prática, tendo como foco uma situação específica, vivida como aluno ou como professor; e, no segundo semestre, partir para a análise comparativa de algumas metodologias de ensino musical, surgidas no séc. XX, vivenciando diversos de seus 72 Além do processo acelerado de superficialidade intelectual que parece acometer aos jovens, em nossa época, no caso específico da música, a legislação contribuiu para impulsionar tal processo de alienação, desarticulando o Ensino Médio de música (atual curso técnico) ministrado em Conservatórios. Esse curso, antigamente exigido de forma tácita, para a entrada no curso superior de música, deixou de sê-lo, com apoio legal, tornou-se equiparável ao antigo curso colegial, nos anos 80; muitos alunos, desobrigados de passar pelos conservatórios, numa rápida análise, decidiram-se a aprender música na própria faculdade. Não é necessário dizer que o nível das faculdades de música está em queda livre. 172 procedimentos em aulas práticas. A estruturação curricular dos semestres resultou aproximadamente no que segue: I Semestre Princípios de filosofia da educação; Conceitos de filosofia e didática; O processo do filosofar: Inventário, crítica e reconstrução de valores; Instrumentos metodológicos: observação, registro, reflexão, planejamento, avaliação; O senso comum na educação e a dificuldade de mudança; Concepções de educação: redenção, reprodução, transformação; Paulo Freire, a dialogicidade; a negação da pedagogia bancária; Introdução à visão eco-sistêmica do aluno e dos processos de aprendizagem: emoção, razão, intuição, cognição, corporeidade; Pedagogia de projetos – uma possibilidade de lidar com a fragmentação do tempo escolar; Reflexão sobre a própria prática a partir de uma experiência específica; TCC gestado ao longo do semestre: “Quais os valores que orientam minha prática pedagógica?” II Semestre Metodologias do ensino musical: tradicionais, contemporâneas, brasileiras; Visão geral das metodologias e de seus princípios metodológicos; Estudos comparativos de procedimentos didáticos em algumas metodologias, musicais do século XX: Murray Schafer, H.J. Koellreutter, George Self e Carl Orff; Vivências práticas de alguns procedimentos didáticos dessas metodologias; Reflexão final do curso: “Quais métodos e procedimentos didáticos utilizo em minha prática? Por que?” Ao longo dos dois semestres foram utilizadas as seguintes estratégias didáticas: Depoimento dos alunos sobre as relações anteriores com a didática, como aluno e como professor; Descrição oral e escrita de experiências didáticas escolhidas; Leituras, eventualmente, fichamentos e quadros sinópticos; 173 Relato escrito detalhado da experiência didática escolhida para reflexão; Inventário de valores da experiência, realizado coletivamente, a partir da leitura, em sala de aula, da descrição da experiência; Questões para refletir e escrever, a exemplo de: “Quais seriam as características de um ensino de qualidade na perspectiva da formação de seres humanos integrais?” “Como o senso comum se manifesta na minha prática?” “Como posso tornar minha prática mais democrática?” Construção da monografia ao longo de todo o semestre com a participação crítica do grupo; Escolha de um foco de observação de interesse pessoal e profissional para observação e análise de metodologias do ensino musical (na Didática II); Constituição de um portfólio (na Didática II) incorporando impressões pessoais, reportagens e tudo o mais que se relacionasse ao foco de observação escolhido; Assistência e análise de filmes: “Cosmos – I Episódio” – ilustrando a geração do conhecimento a partir da observação e do pensar; “Sociedade dos poetas mortos” – observando os efeitos danosos de uma pedagogia tradicional acrítica em ação; “Discovering paradigms” – definição de paradigmas, discussão sobre pressupostos necessários para a mudança. Outras características da disciplina Na Faculdade de Música Carlos Gomes, as turmas costumam ser pequenas, no máximo doze alunos; o número reduzido de participantes permite construir um ambiente intimista no qual é possível haver contato e atenção individuais para cada aluno e entre os mesmos. Essa situação abre a perspectiva de um trabalho real de grupo, no qual todos os trabalhos podem ser compartilhados e, inclusive, construídos, tendo a participação do grupo em todo o processo. Outra decorrência disso é que os alunos podem ter maior participação na escolha de conteúdos curriculares, e de fato, essa consulta é feita ao grupo; torna-se possível 174 atender a necessidades específicas dos alunos, não todas, naturalmente, existindo, porém, uma abertura para isso. Por todas essas razões e, sobretudo, pela qualidade das vivências e do relacionamento humano que se estabelece, o vínculo afetivo torna-se forte, facilitando o fluxo da aula e manifestações de criatividade. 6.3 Perfil dos participantes O grupo de sujeitos dessa pesquisa é bem especial, em relação à média dos grupos de alunos da faculdade; dentre os seis sujeitos escolhidos, quatro têm mais de trinta anos, e estão interessados no processo de reflexão sobre a própria prática. A escolha de um grupo de pessoas com mais maturidade facilitou a condução da pesquisa, pois se requeria uma capacidade de lidar com questões sensíveis e de autopercepção. Matheus Barrichello Sigali PROFISSÃO: Professor de Música EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Trabalhos com bandas de baile, aulas particulares LOCAL DE TRABALHO: aulas particulares IDADE: 24 anos PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Ser músico-terapeuta e ministrar palestras para executivos em diversos setores do mercado de trabalho, mostrando como a música pode ser benéfica para o desenvolvimento profissional e humano de cada integrante de uma determinada empresa. 175 Liebe Silva Lima PROFISSÃO: Funcionária do SESC-SP EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Licenciada em Música pela Faculdade de Música Carlos Gomes, exerceu atividades de oficineira no Museu de Arte e Cultura Popular da Universidade Federal de Mato Grosso, foi proponente do Projeto "Recicle e Faça Arte" financiado pela Secretária de Cultura do Estado de Mato Grosso e realizado na rede de escola pública e Casa Cuiabana em Cuiabá, participou da elaboração de Cartilhas do Programa de Formação de Professores Indígenas para o Magistério, junto à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso. Atualmente é funcionária efetiva do SESC , desenvolve atividades administrativas no Centro de Música da Unidade do SESC Vila Mariana em São Paulo. LOCAL DE TRABALHO: SESC Vila Mariana IDADE: 36 PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Usar o conhecimento musical adquirido no curso de Licenciatura Plena em Música a serviço das pessoas, tanto no âmbito da educação como também através de performances musicais. Jaques da Silva PROFISSÃO: Músico EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Regente de coro, tecladista-pianista e professor de música. LOCAL DE TRABALHO: Colégio Nossa Senhora Aparecida (CONSA) em Moema IDADE: 38 PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Estou desenvolvendo um projeto de ensino de música através de teclados eletrônicos em aulas coletivas que permita um aprendizado sério do instrumento e não um fazde-conta que transformou esse tipo de instrumento mais num brinquedo (sem desmerecer a importância do brincar...). A proposta associa técnicas específicas de dedilhado usadas por organista a técnicas de piano aplicáveis aos teclados sensitivos. Minha paixão é transformar poemas em canções - se pudesse viveria disso. 176 José Gilberto Pires Estebez PROFISSÃO: Músico EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Trabalho como instrumentista em vários estabelecimentos com música ao vivo na cidade de São Paulo. Sou correpetidor de algumas cantoras como Alaíde Costa, Claudette Soares, Patrícia Marx entre outras. Atuo na área educacional como professor de piano popular no CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical dirigida pelo Zimbo Trio) e ministro aulas particulares. LOCAL DE TRABALHO: Escola de música CLAM IDADE: 42 PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Eu pretendo aplicar meus conhecimentos acadêmicos na minha vida profissional. Gravei recentemente um CD com a cantora Claudette Soares atuando como instrumentista, arranjador e orquestrador, este último aplicando os conhecimentos fornecidos pela faculdade. Meus objetivos seriam continuar meus estudos de composição, orquestração e tentar fazer um mestrado e doutorado nos EUA no curso de música. Quem sabe possuir uma própria big band de jazz. Rodrigo Alexandre Sperandio PROFISSÃO: Músico EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Atuação como músico em turnês nos anos de 2000 a 2006 nos EUA, fazendo bailes de carnaval e chorinho; em estúdios de gravação particulares em São Paulo (capital e interior), Rio de Janeiro e Minas Gerais; free lance como músico intérprete e contratado para várias bandas e artistas amadores e profissionais. Atuação como professor na Escola de música Solar das Artes em Rio Claro e aulas particulares em São Paulo e Rio Claro. IDADE: 32 anos PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Continuar exercendo o que faço atualmente. 177 Adriana Agostini Mello PROFISSÃO: Professora EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Atuação como instrumentista e cantora em grupo vocal, banda e orquestra. Professora de música. LOCAL DE TRABALHO: Escola Waldorf Francisco de Assis IDADE: 26 anos PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Desenvolver minha musicalidade e capacidade de reflexão acerca da música. Enquanto professora, contribuir para este processo nos meus alunos de maneira interessante e prazerosa. 6.4 Descrição da pesquisa A parte de campo da pesquisa consistiu em utilizar a primeira parte de cada aula de didática, para congregar o grupo, realizar um breve relaxamento e uma Escuta Musical Sensível73, na finalidade de reintegrar as dimensões sensoriais, afetivas e intelectuais, preparando o trabalho reflexivo subseqüente da aula. A utilização de uma estratégia de Escuta Musical no curso de Didática do ensino musical, tão diretamente implicado na ação profissional futura dos alunos, decorre de uma constatação: é necessário humanizar o processo de ensinar/aprender. Humanizar tal processo significa, primeiramente, compreender o processo educacional como uma relação entre seres humanos, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, diria o grande mestre Paulo Freire (1998, p. 25). Ensinar/aprender não é apenas um ato de relacionamento humano, é uma 73 Entendo por escuta musical sensível um tipo de escuta intencional, na qual o indivíduo tem por intenção entregar-se e ser tocado pela vibração sonora, vivendo a experiência direta do sensível que desperta emoções e o imaginário. 178 troca que se reveste de intensa beleza, a beleza da descoberta e da construção do conhecimento na partilha, “podemos tratar das idéias, dos fatos, e dos problemas, com rigor, mas sempre num estilo leve, próximo ao dos dançarinos, um estilo amistoso”, diria ainda o grande mestre (FREIRE, 1997, p. 13). Então, para educar é necessário ser sensível e aberto, e despender tempo na construção transdisciplinares de do ser humano sensível. As estratégias Sentipensar levam para a sala de aula essa possibilidade, pois antes de serem alunos, os participantes são reconhecidos como seres humanos sensíveis que se relacionam. Não é possível ensinar, nem aprender fora da beleza e da sensibilidade. Por outro lado, a estratégia de Escuta Musical é uma possibilidade privilegiada de unir discurso e ação, teoria e prática, os três pilares do Sentipensar confirmam essa possibilidade: sentir, pensar, agir. A realização dessa estratégia inicial de aula se deu ao longo de dois semestres, perfazendo um total aproximado de 32 aulas, com a participação do grupo de alunos de Didática que se manteve o mesmo, ao longo desse período. Eu seria um dos participantes do grupo utilizando-me de uma estratégia básica de coleta de dados: a observação participante, e a tomada sistemática de notas após as aulas. Durante a aula, eu não adotaria, em tempo algum, a postura do pesquisador, mas sim, participaria do grupo com organicidade. Fazia parte do conteúdo do curso discutir o conceito de Sentipensar, em especial no primeiro semestre, quando se estudasse a visão Eco- 179 sistêmica do aluno e dos processos educacionais. Os alunos estavam, portanto, informados sobre o porquê de nossas praticas sensibilizatórias ao inicio da aula; e, poucas aulas depois, vieram a saber que tais experiências seriam objeto de estudo em minha pesquisa de doutorado, nos colocamos de acordo sobre isso. 6.4.1 A estratégia inicial de Escuta Musical A cada aula se utilizou para iniciar uma estratégia de Escuta Musical, com duração aproximada de quinze a vinte minutos, constituída pelos seguintes momentos: 1. Reunião do grupo ― de pé, em círculo, de mãos dadas, olhos fechados, luzes apagadas; 2. Concentração ― por breves momentos, no ritmo respiratório, e na postura corporal; 3. Alongamento e espreguiçamento ― intuitivo de cada participante, de acordo com a percepção daquilo que o corpo necessita para entrar em ação; 4. Relaxamento – estando sentados nas cadeiras, em círculo, postura ereta, mas relaxada, de olhos fechados, tinha início um relaxamento de aproximadamente 5 a 7 minutos, conduzido por mim, utilizando uma das seguintes estratégias: a. Relaxamento progressivo do corpo, no qual eu conduzia a ação citando as partes a serem relaxadas; b. Visualização de partes do corpo e órgãos internos, sincronizando ao ritmo respiratório; a atividade poderia ser conduzida por mim, ou, cada aluno poderia realizar mentalmente seu próprio processo. 5. Escuta Musical Sensível – ainda sentados, durante alguns minutos, três a sete aproximadamente, os alunos dedicavam-se à escuta musical, com a intencionalidade de tornarem-se sensíveis e receptivos à vibração sonora. 6. Despertar – início da programação curricular normal do dia. O nome dessa etapa deve-se à observação do estado dos alunos após a 180 escuta, aparentando total relaxamento, como se houvessem estado em algum outro lugar, possivelmente, nas profundezas do ser de cada um. Sobre a escolha e utilização das músicas Preferências musicais, individuais e subjetivas têm forte impacto emocional, desencadeando efeitos fisiológicos diversos. Segundo Zatorre (2005, p. 315), “fatores culturais e sociais têm claramente papéis importantes na modulação de nossas respostas emocionais à música”74. Freqüentemente, negamos o gosto musical que não corresponda ao nosso, o exemplo típico é o que ocorre entre adolescentes e seus pais. Num estudo realizado com adolescentes, citado por Esch (2005, p. 11), ao ouvir música de sua preferência, os sujeitos tinham o hemisfério esquerdo ativado (região frontal e temporal); por outro lado, ao ouvir música da qual não gostavam, ativam-se as mesmas áreas do hemisfério oposto. A região frontal anterior esquerda e o giro cingulado (sistema límbico) são ativados com a escuta de música prazerosa. Quando a música não causa prazer ou traz desconforto, são regiões do hemisfério direito que se ativam, em especial, a amígdala, responsável pelo processamento do medo e da ansiedade. O aspecto mais difícil nessa escolha foi, para mim, justamente o fato de estar diante de um grupo de pessoas – os sujeitos ― e de saber que as preferências musicais variam bastante de pessoa para pessoa, como explicam Panksepp e Bernatzky (2002, p. 151): “as preferências são altamente individualizadas e idiossincráticas, e a escolha de itens pode 74 Tradução da autora. 181 necessitar ser talhada da melhor forma para cada indivíduo”75. No caso, a escolha foi minha, parti de minhas preferências que naturalmente já haviam sido partilhadas com outras pessoas que, como eu, também se sentiam tocadas por essas músicas. Tive que deduzir que as sensações dos sujeitos não se afastariam tanto das minhas próprias; além do mais, eu era um elemento participante do grupo. Essas deduções vieram a se confirmar na prática, pois, muitas vezes, os alunos solicitaram cópia das músicas utilizadas por considerarem-nas belas, tocantes e adequadas para a finalidade. As músicas escolhidas (vide Anexo 2) obedeciam aos seguintes critérios: - Qualidade estética; - Caráter encantatório ou plano – a maior parte das músicas utilizadas tem esse caráter, decorrente das seguintes propriedades musicais: andamento de moderado a lento, suavidade (em alguns casos, substituída ou complementada pela diafaneidade), ausência de contrastes, uniformidade do timbre, maior liberdade no uso do parâmetro tempo; em todos os casos, a beleza das linhas melódicas, ou uma qualidade temporal especial, torna-se crucial na avaliação emocional da música; - Duração entre três a sete minutos. Durante os quatro primeiros momentos descritos acima (reunião, concentração, alongamento e relaxamento), uma música de fundo estava sempre soando. Em seguida, no quinto momento – Escuta Musical Sensível – parte da mesma música ou outra música era escolhida para esse trabalho de 75 Tradução da autora 182 escuta intencional, focalizada no caráter sensorial da música e em como esse caráter nos afeta. 6.4.2 Instrumentos de coleta de dados utilizados Observação participante Inseri-me no grupo de alunos de Didática, da Faculdade Carlos Gomes, como professora e como participante ativa de todas as atividades. Tal procedimento é habitual em aulas de música e iniciação musical infantil: o professor participa ativamente da ação, em muitos momentos. Nas aulas de Didática, e em especial no segundo semestre, havia uma parte substancial de prática, pois para fazer a panorâmica das metodologias de ensino musical havíamos escolhido as seguintes categorias de observação: Contextualização histórica, Pressupostos e princípios filosóficos, Procedimentos didáticos utilizados. Dessa forma, alternavam-se aulas teóricas expositivas, algumas vezes com transparências, ou discussão em cima de algum texto do referido pedagogo; nas aulas seguintes, vivenciavase um ou alguns dos procedimentos propostos pela metodologia. Esses momentos foram muito ricos para a produção musical e sintonia do grupo. Teria sido ideal gravar tudo isso, porém, a profusão de dados seria inadministrável; por essa razão, optei por participar totalmente do processo, numa forma de imersão, e realizar as observações e reflexões escritas, logo em seguida, no mesmo dia. No entanto, a riqueza das vivências era tão grande que o papel não poderia dar conta de tudo isso, de tal maneira que a memória ― o que ficava de sensações e sentimentos dentro de mim, em relação à experiência, eram ainda mais determinantes. 183 Rodas de conversa A cada atividade terminada, se abria a roda de conversa e cada um podia expor o que havia sentido, como havia vivenciado a experiência, trocar com os colegas vários tipos de informações e memórias sensoriais; eram momentos muito ricos, com exposição das impressões e sentimentos de cada um, e também das dúvidas e de algumas críticas; nesses momentos, eu aproveitava para estabelecer as pontes com os pressupostos teóricos estudados. Essas rodas de conversa contribuíram decisivamente para a sintonia do grupo. Dinâmicas, atividades práticas e modelos de improvisação. Muitas dessas atividades, criativas e expressivas, exigem algumas vezes elevado grau de exposição por parte do aluno, seja para improvisar, para colocar-se criativamente, tomar uma iniciativa, entre outras situações de exposição. A vivência dessas dinâmicas foram momentos marcantes, possibilitaram tomadas de consciência, transformações e me proporcionaram uma forma de perceber a maneira pela qual o Sentipensar estava se encaminhando com esse grupo; algumas delas serão comentadas na análise dos dados. Um rio nunca é o mesmo rio, e não é possível apertar a mesma mão duas vezes; eu diria também que não foi possível reencontrar o mesmo grupo a cada aula acontecida nesse Curso; o processo de transformação interior vivenciado pelos alunos foi intenso, tanto quanto a revisão de idéias e o direcionamento para uma renovação total de paradigma na forma de lidar com a Educação. A espiral tornou-se mais complexa a cada volta, caracterizando um processo aberto de pesquisa. 184 Depoimento oral por parte dos sujeitos A riqueza do processo vivenciado pelos sujeitos da pesquisa, ao longo desses dois semestres de trabalho, foi tão grande que passei a ter um problema: como eu ria lidar com os dados e que categorias de observação seriam escolhidas? Esse foi o momento para mais uma emergência; decidi utilizar algum outro instrumento de coleta de dados, não previsto inicialmente, que possibilitasse agregar um pouco as percepções dos sujeitos e as minhas também, e ainda, que facilitasse uma forma de obter dados comparáveis. O momento de avaliação final do curso pareceu-me ideal, teríamos uma conversa para avaliar o curso, baseada numa pergunta, sobre a qual cada aluno deveria discorrer. Passei um tempo pensando que pergunta seria essa, pois eu desejava, na verdade, mais do que avaliar o curso: perceber se a estratégia inicial de Escuta Musical havia sido significativa para eles e por quê. Reservei as duas últimas aulas do curso para realizar esta estratégia, caso não se conseguisse em uma única aula. Acabei optando por uma metáfora; através de uma pergunta simbólica eu acreditava que poderia ter acesso à informação que eu queria; partimos da questão já mencionada anteriormente: “Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria?” Como se verá na análise das respostas, a estratégia de Escuta Musical foi evocada várias vezes, de forma espontânea, sem que qualquer referência de minha parte tivesse sido feita, o que torna essas percepções dos alunos ainda mais valiosas para minhas finalidades (vide Anexo 3). Na gravação dessa conversa, há uma primeira parte, na qual os alunos se expressam livremente, tentando associar as práticas de sala de aula a alguma música, e elaborando explicações sobre o porquê das escolhas. A síntese do que foi esse 185 encontro do grupo encontra-se na abertura deste Capítulo na parte intitulada Cenário Transdisciplinar. Uma improvisação: a música do grupo Durante essa avaliação, várias emergências tiveram lugar; a primeira, como relatado anteriormente, quando um aluno, em vez de citar uma música decidiu tocá-la; a segunda, quando eu mesma tive a idéia de fazer acontecer a música do grupo; essa música, embora em linguagem de sons, plasma todos os princípios educacionais que se veio estudando, e constitui-se no mais belo registro de dados dessa pesquisa, muito embora em linguagem não-referencial; além disso, essa improvisação consolida e torna memorável a sintonia, a dialogicidade, a forma de comunicação fina que se estabeleceu entre todos. A gravação desse belo momento encontra-se inclusa nessa tese, no Anexo 1. Essa percepção não é apenas minha, como ilustra o depoimento da aluna, um dos sujeitos da pesquisa: Neste momento, vi a teoria inserida na prática, pois muito do que estudamos em sala se refletiu nesta composição. Conceitos, idéias dos pedagogos e o próprio conhecimento construído pelo grupo. Os instrumentos convencionais e nãoconvencionais foram bem explorados, além de terem sido utilizados de forma criativa, personalizada, com liberdade. Também diria que praticamos algo pré-figurativo, onde a improvisação partiu de uma idéia e foi se constituindo de forma aberta, livre. A música foi surgindo naquele momento presente e a partir das idéias de cada elemento que iam sendo lançadas e complementadas se formou uma grande teia, algo único dentro da diversidade que cada colega trazia. Fizemos uma improvisação coletiva realmente interessante. 186 Questionário semi-estruturado Agora eu tinha em mãos um material mais precioso ainda, e um pouco mais focalizado, do que havia sido o conjunto de nossas práticas ao longo de dois semestres. No entanto, nem todos os alunos haviam se expressado sobre a questão da estratégia inicial de escuta de forma clara, mesmo depois de eu ter feito uma pergunta direta sobre isso, durante aquele último encontro; no momento em que coloquei a questão, o grupo já estava se preparando para a festa de encerramento, alguns já estavam dispersivos ou cansados, como era natural depois de viver experiência tão intensa; além do mais, o número de alunos me pareceu um pouco elevado para realizar a tabulação dos dados, por isso, depois de vários meses, no transcorrer da pesquisa, optei por realizar um questionário semi-estruturado, perguntando dessa vez exatamente o que eu queria saber. Seis alunos disponibilizaramse a responder e tornaram-se efetivamente os sujeitos da pesquisa. Esses alunos foram os únicos presentes a todas as estratégias utilizadas. A seguir, apresento o questionário proposto aos alunos: Título provisório da pesquisa: ESCUTA MUSICAL: uma estratégia transdisciplinar privilegiada para o Sentipensar Trata-se de uma pesquisa centrada no conceito de Sentipensar, termo cunhado por Saturnino de la Torre (catedrático em criatividade da Universidade de Barcelona). O Sentipensar é a conjugação de pensamento e sentimento no processo educacional. Acredito que a escuta musical seja uma boa estratégia para potencializar essa fusão. Vocês me dirão. O pano de fundo filosófico é oferecido pelas teorias da Complexidade e da Transdisciplinaridade. Por favor, preencha os dados abaixo: NOME: PROFISSÃO: EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL (sintético): 187 LOCAL DE TRABALHO: IDADE: PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Por favor, responda, por escrito, às questões abaixo: 1. Transcorridos vários meses do final da disciplina Didática do Ensino Musical, ministrada na Faculdade de Música Carlos Gomes, que lembrança marcante você conserva dessa experiência? 2. Normalmente, as aulas se iniciavam com uma estratégia especial, envolvendo a Escuta Musical. Você sente que essa abertura da aula pudesse ter influência sobre as atividades subseqüentes? Que tipo de influência? 3. Você deve se lembrar que ao final do curso, fizemos uma avaliação do mesmo a partir da seguinte questão: Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria? A resposta resultou numa bela improvisação musical do grupo. Caso tiver vontade de deixar algum tipo de registro escrito sobre a experiência vivida no curso, utilize o espaço que segue abaixo. Muito obrigada por sua participação. As respostas dos alunos (Vide anexo 4) corroboraram amplamente minhas percepções intuitivas iniciais que acabaram gerando o interesse em realizar tal pesquisa sobre a Escuta Musical como uma estratégia de Sentipensar. A conjugação de sentimento e pensamento será evocada e confirmada pelas falas dos alunos como se verá na análise dos dados. As respostas para a ultima pergunta do questionário, que propunha uma forma de expressão livre, expôs todas as características transdisciplinares da estratégia, desnudando as subjetividades, abrindo novos horizontes e, mais que tudo, fazendo aflorar indescritível beleza. 188 7. Análise dos dados Detalhe da árvore sonhadora Tatiana Clauzet 189 7.1 Categorias para análise dos dados Compreender o Sentipensar tendo como pano de fundo a Complexidade, a Transdisciplinaridade, e dados atuais da pesquisa científica sobre cognição musical, me coloca, sem dúvida alguma, um enorme desafio: fazer um recorte da realidade, contextualizando eventos e situações num todo maior, sem, no entanto, reduzi-la ou falseá-la. Naturalmente, a dificuldade se encontra tanto no recorte quanto na escolha de focos de observação que possam levar a respostas sobre a pergunta de pesquisa. Uma multiplicidade de aspectos pode ser considerada, e vir a constituir-se em categoria de análise dos dados, pois, parte-se de uma realidade multidimensional atuada por seres humanos multidimensionais. A tarefa é grandiosa e exige humildade; por mais profunda que possa ser a reflexão, não será mais do que aquilo que consigo perceber a partir de minha estrutura cognitiva. O mesmo ocorre na definição dos instrumentos de coleta de dados, como visto anteriormente, dados não são apenas coletados, mas sim, se constroem na relação intersubjetiva, que passa a existir entre as pessoas e se alteram na própria recursividade do processo. Além de tudo isso, uma pesquisa de desenvolvimento Eco-sistêmico não pode prescindir da subjetividade que caracteriza a complexidade humana: sentimento, emoção, intuição, sensibilidade, escuta sensível e todos esses processos existindo de forma encarnada, integrados na corporeidade. Os dados que serão analisados de forma atenta, a seguir, foram obtidos em três tipos de situação: ao longo de uma vivência de forte impacto emocional ― a avaliação final do curso de Didática ― descrita ao início do 190 Capítulo 6, que resultou numa improvisação musical coletiva; através de respostas individuais dos sujeitos a um questionário com três questões, sendo uma delas diretamente sobre o problema de pesquisa, com base em diversas situações vividas durante o tempo da pesquisa, e por mim documentadas. Partindo dos pressupostos dessas grandes teorias, mas também de minhas observações pessoais durante as práticas desenvolvidas e, de forma significativa, das discussões com minha orientadora, é que pude me decidir, dentre outras possibilidades, pelas seguintes categorias de análise: Abertura do olhar; Fluxos energéticos; Dialogicidade processual; Transcendência e Percepção da estratégia de Escuta Musical por parte dos sujeitos. Para manter acesa a chama da memória e o rigor na busca da resposta ao problema de pesquisa, antes de empreender a análise dos dados parece-me oportuno repetir, uma vez mais, a pergunta geradora: Quais as relações existentes entre o sentir – desencadeado pela atividade integrativa de Escuta Musical – e o refinamento da capacidade reflexiva? 7.2 Abertura do olhar Verdadeiro emblema da atitude transdisciplinar possibilitando a mudança e a transformação, esta categoria tem importância nada negligenciável, a ponto de Basarab haver afirmado o que segue: “se tivesse de resumir em duas palavras o que a Transdisciplinaridade é para mim, colocaria como epígrafe as palavras ‘atitude’ e ‘visão’” (RANDOM, 2000, p. 191 94). A mudança de olhar sobre o mundo é também uma prerrogativa para o Sentipensar, pois, como Maria Cândida explica: (...) este “implica uma compreensão de formação entendida como transformação, mudança interior, incorporação e desenvolvimento de competências, habilidades, atitudes, valores e crenças (...) implica processos e interações entre o mundo interior do sujeito e os estímulos exteriores, mediados pela ação docente”76 (informação verbalizada) A partir disso é que me pareceu fundamental perceber se a abertura para a mudança se fez também presente nos sentimentos dos sujeitos dessa pesquisa. Todos eles relataram haver passado por transformações profundas, a partir do que vivenciaram durante o tempo da pesquisa, relacionadas a seu desenvolvimento pessoal, profissional, às relações interpessoais e à construção do conhecimento, entre outras, caracterizando uma verdadeira mudança de paradigmas. As falas dos sujeitos anunciam a abertura do olhar: Espero que a música e o ensino musical sigam esse caminho e que todos nós possamos quebrar e criar novos paradigmas. QUEBRAR TUDO é CONSTRUIR TUDO. (Giba) (o grifo é do sujeito) (...) você plantou em cada um de nós alguma coisa, e eu acho interessante é que cada um de nós está saindo daqui com uma visão diferente, cada um com o seu pensamento, com a sua forma de ver. (Matheus) (...) fez com que eu enxergasse de outra forma, já foi plantado na minha cabeça que a visão que eu preciso ter em termos da educação ou em termos de música já é outra. (Rodrigo) 76 Fala de Maria Cândida Moraes em reunião de orientação. 192 Ao longo desse escrito, considerou-se uma série de possibilidades de transformação da visão de mundo. Primeiramente, a Complexidade que, ao conciliar opostos e considerar a trama de eventos na qual nos inserimos, resgata uma visão do todo; em segundo lugar, a proposta do Sentipensar, que propõe a concepção de um ser humano multidimensional; e, a Transdisciplinaridade que, mais do que teoria ou princípio, incita a transformar atitudes e olhares e a perceber o sentido de estar aqui e agora. A grande contribuição da Transdisciplinaridade para a vida e para o processo educacional é a lógica do Terceiro Incluído, uma “lógica da contradição”, na qual se torna possível uma “complementaridade contraditória” (LUPASCO, 1941, p. viii), e a conciliação de opostos aparentemente inconciliáveis, através de um terceiro termo T (de Terceiro Incluído). Essa lógica não elimina a necessidade da lógica tradicional binária, “apenas limita sua área de validade” (BASARAB, 2005, p. 40); na vida cotidiana, continuam valendo as normas do que pode e não pode ser; é justamente a expansão do olhar, a possibilidade de abertura o que mais interessa. Para praticar o sentipensamento é necessário integrar e, para tanto, questionar a Inteligência Cega, que impede a conciliação de opostos complementares e fragmenta processos, disciplinas, visão de mundo e, sobretudo, o ser humano que existe no aluno. Abertura ao conhecimento processo profissional: descoberta e construção do Todos os sujeitos, em algum momento, referiram-se a descobertas pessoais, motivação e entusiasmo gerados pelo processo de construção de conhecimento e ampliação de paradigmas. Três sujeitos citaram como 193 aspecto mais marcante ― na pergunta 1 do questionário ― a possibilidade de conhecer novos educadores: Conhecer os educadores musicais e vivenciar seus métodos de ensino. (Giba) (...) conhecer educadores e pedagogos musicais que não conhecia antes... (Rodrigo) Achei importante a professora ter apresentado pensadores importantes para a Educação, mesmo fora da área musical. (Adriana) O fluxo de mudanças importantes, que começou a operar-se na prática dos alunos, foi realmente decisivo, promovendo alterações substanciais em diversos aspectos da prática profissional, como por exemplo, na busca do aprimoramento, na pesquisa de novas estratégias, no fortalecimento da segurança, entre outros, como se depreende das falas que se seguem: Durante uma aula de exploração de sons do entorno da escola, uma experiência me marcou de forma especial. O prédio ao lado da Faculdade forma um grande paredão de reverberação. Durante a aula, passou um helicóptero sobre a escola e alguns de nós foram pegos pela ilusão de serem dois helicópteros, por causa da reverberação do prédio. Essa experiência me intrigou e me levou a estudar as técnicas de microfonação e gravação estéreo (...) (Jaques) (...) meus próprios alunos sentiram muita diferença, fez com que eu desenvolvesse métodos. (Rodrigo) (...) o que eu tiro da minha prática é que eu comecei a fazer de novo esses registros (...) meus livros são cada vez mais rabiscados. (Adriana) (...) pudemos conhecer (...) propostas de nossos colegas, como desenvolver uma aula, (...) projetos, e também (...) o 194 fato deste curso ter nos proporcionado a chance de nos avaliar também como profissionais. (Matheus) (...) eu comecei a dar aula agora pra criança, e eu comecei a caminhar, isso foi subsidiando mais ainda o meu jeito de dar aula, me ajudou a ter segurança nesse caminho. (Adriana) A improvisação foi uma experiência muito importante no meu dia a dia (...) Lecionando, aprendi a ouvir mais meus alunos (...) Produzindo, deixei um pouco de lado os solos que eu escrevia antes para os músicos interpretarem, atualmente, escrevo a cifra e peço para o músico contratado colocar sua expressão (...) eu acabei, usando tudo que eu aprendi aqui, (...) fez a gente olhar de outra forma (...) (Rodrigo) (...) uma coisa que eu gravei, eu falei que pra mim cantar com criança é muito complicado, aí você (eu) falou: porque você vai gastar tempo fazendo uma coisa que você não faz tão bem se você pode fazer aquilo que você faz tão bem? (Jaques) (...) íamos para a aula com vontade de estudar e não por que ficaríamos sem nota. (Adriana) No segundo dia de aula com esse grupo, um evento simples que relato a seguir, proporcionou um insight maravilhoso para que os alunos iniciassem os questionamentos sobre suas práticas: Solicitei a cada aluno que escolhesse um instrumento qualquer; foram escolhidos, basicamente, pequenos instrumentos de percussão e xilofones77. Estávamos sentados em roda, solicitei a cada aluno que improvisasse um pequeno solo78 em seu instrumento. Todos eles tinham um paradigma sobre como os solos devem ser, em geral, muito elaborados como no Jazz; o primeiro aluno iniciou sua produção, em seguida, cada um dos outros; produziam qualquer som com o instrumento, sem qualquer envolvimento 77 Instrumento de plaquetas de madeira, tocados com duas baquetas e semelhantes a pequenas marimbas. 78 O conceito de solo instrumental em pedagogia musical é muito elástico; não é tão parecido com o que ocorre na improvisação em jazz, ou na música popular, por exemplo. Os solos que ocorrem em contexto educacional são, antes de tudo, formas de exploração sonora do referido instrumento ou fonte sonora; podemos falar, por exemplo, de um solo de pandeiro, ou de um solo de caixa de fósforos; nessa situação o aluno tem que realmente utilizar todos os seus recursos criativos para criar algo interessante e que faça sentido para ele e para os demais. 195 criativo ou emocional, e depois olhavam para mim com uma cara de “tudo bem é isso aí, já fiz... e daí?”, e assim foi, com quase todos os alunos. Ao chegar a minha vez, eu também tinha um xilofone; comecei a improvisar, elaborando uns efeitos, tocando também a madeira lateral do instrumento, e ainda escapando do instrumento e “tocando a mesa”, ou tocando o suporte de metal de uma estante de partitura, e tudo isso ia se ligando às possibilidades sonoras do xilofone; resultou num solo bem inusitado e interessante. Ao terminar, olhei para eles com a mesma expressão com a qual eles tinham me olhado. Os alunos começaram a ter percepções interessantes: ”há muito mais o que fazer com um instrumento”, “suas possibilidades podem ser muito expandidas quando utilizados de forma não-convencional”, “nenhum deles tinha pensado em fazer isso”, “a criatividade tinha sido muito limitada”, e o melhor: perceberam que todas essas carências se manifestavam também quando eles davam aula. Mais interessante que tudo isso foi constatar que é possível mudar, é possível questionar o que se entende por “dar aula de música” e por “solo instrumental”. Essa aula prática promoveu uma verdadeira quebra de paradigma; não foi intencional, e isso exemplifica o quanto esse processo foi rico em emergências. Em outra dinâmica do mesmo tipo, colocamo-nos no centro da reflexão sobre a construção coletiva de conhecimento: Nesse dia, nossa vivência de Escuta Musical Sensível não versou sobre uma música, mas sim, sobre a escuta do próprio ambiente, realizamos as etapas iniciais (Reunião, Concentração, Alongamento, Relaxamento), em seguida, nos sentamos e durante aproximadamente quatro minutos escutamos, de olhos fechados, aos sons do ambiente. Essa escuta revelou-se tão musical quanto a própria escuta de música; trata-se de uma outra perspectiva na qual é possível atribuir status de música a tudo o que ocorre na sonosfera79 (FREGTMAN, 1989). Em seguida, os alunos, um por vez, deveriam dirigir-se 79 Nas palavras do autor da expressão: “Estamos imersos numa “sonosfera”. Esta, por si mesma, acha-se implicada pela atmosfera terrestre, na qual o meio condutor (ar-água) e a vibração sonora expansiva coincidem em suas origens e limites. Onde há ar há som. Onde há água há som. Onde há vida há som.” 196 ao centro da sala (onde havia um pequeno monte de folhas de papel sulfite), pegar uma folha e voltar a seus lugares, no mais absoluto silêncio. Todos nós ficaríamos atentos para ouvir qualquer som que fosse produzido. A obrigatoriedade de produzir silêncio absoluto modulou todos os gestos e movimentos, tornando-os muito mais cuidadosos, planejados e lentos; na seqüência, comentamos essa primeira parte da aula; a alteração da dimensão temporal foi, aliás, o que mais chamou a atenção nesse comentário. Os alunos foram então convidados a explorar os sons que a folha poderia produzir, durante alguns minutos, e essa sonoridade foi extremamente contrastante com o silencio anterior, tanto quanto todas as atitudes requeridas. Os sons foram mostrados ao grupo e reproduzidos por todos, a partir disso, escolhemos um repertório de sons de papel com os quais fizemos uma música, elaborada em processo coletivo, todos podendo opinar sobre a forma de encadear os sons e de modular suas propriedades. Novos insights tiveram lugar, afinal “o que é música?”, “Ruído também é música? O que falta para o ruído ser música?”, “Porque é tão difícil produzir um silêncio absoluto?”, “Por que todas essas questões ficam fora de uma educação musical tradicional?”. Estas e outras questões foram amplamente discutidas com base nos educadores que estávamos estudando, Murray Schafer, George Self e H. J. Koellreutter, e nas percepções dos alunos que não paravam de se multiplicar e enriquecer cada vez mais. Pesquisa e liberdade no processo criativo: a incorporação do novo Os instrumentos convencionais e não convencionais foram bem explorados além de terem sido utilizados de forma criativa, personalizada, com liberdade. (Adriana) (...) praticamos algo pré figurativo, onde a improvisação partiu de uma idéia e foi se constituindo de forma aberta, livre (Adriana) As aulas de improvisação com os instrumentos pedagógicos, podendo expressar os próprios sentimentos, e aprendendo a explorar os sons dos mesmos. (Rodrigo) 197 Em outra aula prática, realizamos um modelo de improvisação cujo objetivo didático é ensinar crianças e principiantes na linguagem musical, que os sons se escrevem da esquerda para a direita no pentagrama80 e que, na representação gráfica, quando as notas são escritas embaixo, no pentagrama, representam sons graves; quando escritas acima, sons agudos. A discussão que se seguiu a esse modelo foi o mais belo exemplo de como a prática musical pode ilustrar e tornar claros, conceitos teóricos dos mais complexos: Iniciei tocando alguns sons ao piano que os alunos foram representando um a um, numa folha em branco, com pontinhos81. Esses pontos no plano passaram a constituir uma espécie de partitura gráfica aproximativa (vide Anexo 8), não-determinada, que pode ser executada ao piano, mas também em qualquer outro instrumento que produza diferentes alturas82, e o melhor, não é sequer necessário saber ler uma partitura tradicional para tocar a partitura gráfica; por isso mesmo os iniciantes gostam muito dessa atividade. De posse da partitura, solicitei a cada aluno que fosse ao piano e executasse a partitura, mesmo àqueles que não eram pianistas. Ao chegar ao piano, instrumento mitificado, os alunos hesitavam, faltava-lhes um pouco de “coragem” para tratar o piano como um meio de expressão através do qual é possível produzir a própria música ― um condicionamento da formação tecnicista. Movidos, porém, pela recordação de aulas anteriores, foram pouco a pouco se tornando mais criativos na exploração das possibilidades do piano. A experiência revelou-se também paradigmática e outras percepções agregaram-se às anteriores, caracterizando ainda mais a recursividade do processo: “é possível renovar as estratégias”, “os instrumentos são meios para chegar à expressão”, “não é necessário sequer ser músico ou estudante de música para encontrar sua forma de expressão”, “as 80 Pentagrama é o espaço utilizado para escrever música em partituras tradicionais, compõe-se de cinco linhas e quatro espaços, todos utilizados na escrita musical (vide Anexo 8). 81 Vide Anexo 8. 82 Alturas são as diferentes freqüências do som, que vão do grave ao agudo. A unidade de medida de freqüência é o Hertz (vibração/segundo). 198 possibilidades expressivas são sempre muito maiores do que nossa prática habitual”, entre muitas outras. Em todas as experiências relatadas acima, o espírito pré-figurativo esteve presente. Como denota a expressão, pré-figurativo é o que vem “antes da figura”, antes da forma preestabelecida, explica Koellreutter (1997, p. 54): Entendo por ensino pré-figurativo um método de delinear antecipadamente o que, provavelmente, sucederá no futuro, ou seja, figurar imaginando. Entendo por ensino pré-figurativo um método de delinear aquilo que ainda não existe, mas que há de existir, ou pode existir ou se receia que exista. O espírito pré-figurativo tem tudo a ver com “o caminho que se constrói ao caminhar” de Antonio Machado, com o “método que não precede a experiência” e que “supõe a presença inevitável da arte e da estratégia” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003); é a obra aberta, em eterna construção, está para a atividade artística assim como a complexidade está para a vida, tornando-a processual, cambiante, multifacetada. O ensino pré-figurativo, dessa maneira, prefigura e dá forma à complexidade e à transdisciplinaridade do pensar sobre a arte. A grande dificuldade ao lidar com alunos que são também professores é criar as condições para que transcendam o senso comum. Ele é que torna tão difícil promover a mudança na escola. Em sala de aula, somos o que somos, utilizamos receitas que dão mais ou menos certo; enquanto se alcança resultados tudo parece bem; é difícil parar, realizar a autocrítica e se perguntar se haveria diferentes formas, mais eficientes, de realizar a mesma ação, isso ocorre, por causa do controle “supraconsciente” de um 199 paradigma, diria Morin. Idéias de senso comum, e paradigmas são assumidos de forma acrítica, transcendem a consciência, provêm dessa região profunda de não-resistência, como diria Basarab (2005, p. 62). Pela via da vivência artística coletiva e da fruição de emoções, a transição pareceu iniciar-se com mais facilidade. A Educação tem sido tratada como um processo mecânico, no qual, juntando-se certos componentes tidos como essenciais para a Educação ― uma sala de aula, um professor, alunos, livros didáticos, uma seqüência curricular muitas vezes não refletida democraticamente, um sistema burocrático e administrativo que supervisione “o todo”, e um discurso pretensamente emancipado ― tudo passa a funcionar perfeitamente como uma máquina; por isso mesmo, é tão importante colocar algumas questões: qual o sentido de nossas ações e, como educadores, qual o sentido de nossa atuação na sociedade? Qual a medida de nossa contribuição? De que maneira estamos contribuindo para aclarar as idéias do tempo presente? Talvez a maior conquista para os sujeitos dessa pesquisa tenha sido a oportunidade de se colocar tais questões, a cada dia. 7.3 Fluxos energéticos Os fluxos de energia estiveram constantemente presentes, ao longo de todas as ações práticas nesta pesquisa, “gerados pela emoção que circula, pela empatia, pela mediação, pela vibração dos sons, pelo silêncio” (informação verbalizada)83, foram responsáveis por alguns dos momentos mais intensos vividos pelo grupo no decorrer da pesquisa; fluxos de energia 83 Fala de Maria Cândida Moraes durante reunião de orientação. 200 e informação caracterizam também diversos princípios da Complexidade, representam ao mesmo tempo a conexão, a sinergia e a possibilidade de transformação criativa, através de processos realimentadores. Por essa razão, me pareceu importante saber como os sujeitos perceberam essa conexão e como foram por ela afetados. Os fluxos energéticos foram enfaticamente percebidos por todos os elementos do grupo como uma unidade energética, construída e realimentada a cada aula. No questionário e na gravação da avaliação, cinco sujeitos manifestaram-se de forma clara sobre isso: (...) a improvisação veio para confirmar a total integração do grupo, (...) aquela sala era como uma outra dimensão, onde éramos inalcançáveis diante de uma energia intensa, tanto que ao final da aula, algumas pessoas eu lembro que comentaram sobre o calor que estava no ambiente. (Matheus) Os períodos de audição e relaxamento foram importantíssimos para sintonizar o grupo e permitiram um assentamento e focalização das energias. Era nítido que mesmo os que chegavam depois de iniciado o processo e ficavam assentados fora da roda se sentiam magnetizados pela experiência. (Jaques) A música foi surgindo (...) e a partir das idéias de cada elemento que iam sendo lançadas e complementadas se formou uma grande teia, algo único dentro da diversidade que cada colega trazia. (Adriana) (...) todos nós, alunos e professor, fizemos o som único. (Giba) A ligação sonora com vários indivíduos e a comunicação feita numa esfera onde a racionalidade ficava subjugada pelas sensações. (Jaques) 201 Um fluxo perpassando o ambiente... Da Biologia à Cosmologia, dos sistemas mecânicos às sociedades, a entropia tende sempre a crescer. A entropia representa a tendência à desordem que caracteriza a todos os seres vivos. Os organismos, por exemplo, são sistemas submetidos a essa lei; são, no entanto, sistemas abertos que trocam, o tempo inteiro, matéria, energia e informação com o meio ambiente, ou seja, fluxos de energia, que os percorrem, os realimentam e os reorganizam. Por um lado, existe um ciclo entrópico positivo levando à desorganização crescente; por outro lado, neguentropia (entropia negativa) reconduzindo o sistema à ordem, através de fluxos realimentadores; entropia e neguentropia mantêm o fluxo orgânico num equilíbrio dinâmico que caracteriza a vida, por isso os organismos necessitam alimentar-se, ingerir água e ar realimentando constantemente o processo metabólico. Esse equilíbrio dinâmico, que implica em constante transformação e movimento, sustenta o fluxo da vida. As sociedades também se alimentam de fluxos culturais e criativos, ou seja, de tudo aquilo que se produz. Relações sociais são complexas e assumem diversas formas oscilantes, recursivas; o equilíbrio social é frágil e se altera de formas imprevisíveis. Freqüentemente, as sociedades se situam à beira do caos; momentos de flutuação e instabilidade se apresentam e exigem a escolha de caminhos, a tomada de decisões; a sociedade fornece um exemplo cabal de processo em andamento com capacidade autocriadora.84 84 Este parágrafo faz alusão à Teoria das Estruturas Dissipativas, de Ilya Prigogine, que, originada na Química, se transfere aos fenômenos sociais possibilitando belas metáforas. 202 Na música, também se encontram ótimos exemplos. Todas as experiências energético: musicais os sons aqui descritas produzidos se pelos alimentavam improvisadores. de um fluxo Modelos de improvisação funcionam como estruturas de flutuação, percorridas por um fluxo energético; estão sujeitos a regras organizacionais e relacionais; os participantes devem obedecer a certas consignas e, sobretudo, ouvirem-se mutuamente; a escuta é alimentadora e retroalimentadora da prática. Momentos de caos sobrevêm ― quando todos os elementos musicais estão presentes ao mesmo tempo ―; uma escolha se impõe, um ponto de bifurcação, no qual se opta, muitas vezes intuitivamente, por um caminho; novos motivos e elementos musicais entram no fluxo gerando um novo equilíbrio. Na música produzida pelos sujeitos dessa pesquisa, diversos momentos desse tipo tiveram lugar, gerando sempre novidades absorvidas pelo fluxo de criação e saindo dele da mesma forma como entraram. Pelo menos um dos sujeitos referiu-se à manifestação concreta da energia durante a avaliação do curso, em forma de calor: (...) aquela sala era como uma outra dimensão, onde éramos inalcançáveis diante de uma energia intensa, tanto que, ao final da aula, algumas pessoas eu lembro que comentaram sobre o calor que estava no ambiente. (Matheus) “Toda transformação, todo trabalho libera calor” (MORIN, 2005, p. 53), e isso é precisamente o que se vivenciou na avaliação do curso: intenso trabalho criativo. Na ausência de trabalho, “sobrevém o equilíbrio térmico, decorrente da falta de energia, também chamado por Morin “morte térmica”, e o frio. Desde tempos primeiros, a energia do calor é uma necessidade 203 vital - calor físico e calor simbólico - como explicam Panksepp e Bernatzky (2002, p. 143): (...) quando estamos perdidos, nos sentimos frios, não simplesmente fisicamente, mas também talvez neurosimbolicamente como conseqüência do abandono social. (...) Esse pode ser um dos caminhos naturais para se promover reuniões; a experiência da separação pode evocar desconforto termoregulatório o qual pode ser aliviado pelo “calor” social de voltar a estar junto.85 Ao final da improvisação, naquele dia inesquecível, alguém gritou “quebra tudo” e outros entraram no mesmo refrão, a música cresceu, tornou-se criativamente caótica, um crescendo energético tomou conta do grupo, a temperatura subiu e o som terminou deixando no grupo uma transbordante sensação de euforia. A experiência do fluxo Uma dessas situações transcendentes, para a qual as estratégias do Sentipensar abrem caminho, é aquela que melhor se manifesta quando se vivencia um momento branco. Trata-se de um momento especial do ser, no qual se experimenta o fluxo criativo, a sensação de sentir-se uno e em harmonia com o cosmo. Torre e Moraes o definem como “uma síntese integradora do global e do particular, o instante atemporal, a confluência do emocional e do cognitivo” (MORAES; TORRE, 2004, p. 55). Csikszentmihalyi (1992, p. 67) o denomina experiência máxima: (...) trata-se de situações, nas quais a atenção pode ser livremente investida para alcançar as metas pessoais, porque não existe desordem a ser corrigida, nem ameaça contra a qual 85 Tradução da autora. 204 o self precise defender-se. Chamamos a esse estado experiência do fluir porque é um termo usado por muitas das pessoas que entrevistamos para descrever como se sentem quando em sua melhor forma; “Era como flutuar”; “Eu fluía junto com a coisa”. É o oposto da entropia psíquica – na verdade, algumas vezes é chamada de neguentropia ― e aqueles que a alcançam desenvolvem um self mais confiante e mais forte, porque uma quantidade maior de sua energia psíquica foi investida com sucesso em metas que eles próprios decidiram atingir. Muitas vezes as preocupações da vida diária seqüestram os pensamentos e introduzem desordem na psique ― os fenômenos de consciência também estão sujeitos aos fluxos entrópicos ―; ao se colocar, de alguma forma, ordem na consciência, vivencia-se a experiência de estar “no comando de nossa energia psíquica”, sente-se o fluir (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 91). É raro se tornar “inalcançável”, “magnetizado”, “focalizado” e produzir “o som único”, como disseram os sujeitos, isso ocorre quando episódios de entropia que interferem no curso livre da energia psíquica são afastados, ou seja, na experiência de fluir, quando, temporariamente, nos libertamos do self. Entrar em outro plano de consciência, perder a noção do tempo, tais sensações eram vivenciadas após os momentos de escuta e de produção sonora conectiva. A conexão que permanece no tempo Todos os sujeitos da pesquisa referiram-se à conexão que a partir daquele ano passaria a nos ligar de forma íntima e irreversível, cinco deles de forma direta, a exemplo das falas que seguem: (...) terminar simbolicamente porque nunca vai terminar, (...) vai estar sempre ao nosso redor, (...) vou estar sempre envolvido com 205 isso, mesmo não estando presente nas aulas, não tendo mais as aulas. (Rodrigo) Essa forma de comunicação direta com vários ao mesmo tempo (praticamente contrapontística) é irreprodutível pela linguagem verbal. (Jaques) (...) outra música que eu acho faz parte do curso é “Canção da América”. (Matheus) Durante a avaliação final do curso, Matheus escolheu para tocar duas músicas: “Brincar de viver”, de Guilherme Arantes, e “Canção da América”, de Milton Nascimento (vide Anexo 5); as duas canções falam do valor da amizade, da permanência, e da conexão: “Como sou feliz, eu quero ver feliz quem andar comigo”, “Amigo é coisa pra se guardar, no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam não”. Eu também pude sentir que estaríamos, de alguma forma, conectados para sempre. A Física Quântica permite explicar esse sentimento de forma concreta, e mais que isso, poética: “as coisas que estiveram alguma vez em contato continuarão estando em contato ao longo do espaço e do tempo” (MCTAGGART, 2006, p. 20). Como demonstrado no princípio da não-separabilidade, partículas subatômicas que tenham interagido alguma vez permanecerão conectadas para sempre, mesmo separadas por longas distâncias ― é a memória da natureza. A realidade subatômica revela que a matéria só pode ser compreendida como uma teia de interconexões; esse mundo constitui um outro plano de realidade no qual não existem objetos sólidos. Caso pudéssemos nos reduzir às dimensões de uma partícula subatômica, não veríamos objeto sólido algum, seriam mais e mais partículas, às quais estaríamos ligados. Na dimensão quântica não se privilegia a diferença; 206 todas as partículas são iguais e, unindo-se umas às outras, constituem a matéria. Essa é a mais bela metáfora a serviço da Educação e da vida. 7.4 Dialogicidade processual Precisamos respeitar as necessidades que nosso cérebro emocional tem de harmonia e ligação. Não há como reverter o que a evolução nos fez querer e sentir nos relacionamentos. David Servan-Schreiber Essa categoria procurará analisar o diálogo em alguns de seus aspectos essenciais: o diálogo como fonte de aprendizagem, a relação dialógica professor-aluno, e o diálogo como partilha da intimidade; serão considerados os efeitos benéficos de ser ouvido e aceito por um grupo, a catarse da expressão no coletivo, e a imensa contribuição trazida pelas trocas e aprendizagens mútuas. O diálogo como fonte de aprendizagem: a relação professor-aluno A troca e diálogo foram citados nas respostas ao questionário 14 vezes. Durante a avaliação final do curso, questões referentes ao diálogo foram citadas oito vezes e duas músicas que valorizam a amizade e a conexão entre as pessoas foram lembradas. No questionário, aparece como um dos aspectos mais marcantes, para quatro sujeitos: (...) as discussões, as idéias que eram trocadas, o quanto pudemos conhecer as propostas de nossos colegas... (Matheus) 207 O modo como a Profa. Enny conduziu o curso e sua grande humanidade em relação aos fatos do cotidiano, partilhando alegria, dúvidas e tristezas com seus educandos. (...) A liberdade de colocar minhas idéias e experiências musicais e partilhar com meus colegas de classe a vivência de cada um. (Giba) A primeira lembrança (...) os diálogos realizados em círculos, discutindo assuntos com os amigos de classe e o professor. (Rodrigo) Foi gostoso participar deste grupo e ver os colegas crescendo junto, construindo o conhecimento e com a ajuda da professora, fazendo relações da teoria com a prática. (Adriana) O diálogo é o primeiro passo na aprendizagem da escuta do outro. Não há como falar do diálogo sem pensar na dialogicidade de Paulo Freire, proposta por ele como forma de mediar a relação professor-aluno e a construção do conhecimento. Os sujeitos dessa pesquisa também evocaram o mestre ao fundamentar suas escolhas: (...) como Paulo Freire fala, “vem, deposita, é isso, tchau”, não é bem assim, então, eu acho que essa é a essência... (Rodrigo) (...) você não deu a receita do bolo, pronto: dois quilos de açúcar, não, mas a gente foi construindo (...) com essa leitura desses pedagogos, desde o Paulo Freire até os musicais (...), eu fui montando, isso foi subsidiando mais ainda o meu jeito de dar aula. (Adriana) Quando somos ouvidos aprendemos a ouvir sempre que não estejamos subjugados pelo ego ou apegados ao vício magistocentrista. Paulo Freire desistiu da carreira de advogado por “não ser capaz de violentar o ser do 208 outro”86 e por acreditar que todos têm conhecimento. A partir dessa perspectiva filosófica, abandona-se a prática da “alienação da ignorância” – crença segundo a qual a ignorância está sempre no outro (FREIRE, 1997, p. 58). A fala que segue é eloqüente nesse aspecto, e demonstra como o sujeito aprendeu a confiar no saber de seus músicos: A improvisação foi uma experiência muito importante no meu dia a dia (...) Lecionando, aprendi a ouvir mais meus alunos, suas idéias, suas interpretações, suas expressões (...) Produzindo, deixei um pouco de lado os solos que eu escrevia antes para os músicos interpretarem; atualmente, escrevo a cifra e peço para o músico contratado, colocar sua expressão e sua interpretação diante do que ele está ouvindo e sentindo... (...) eu acabei, usando tudo que eu aprendi aqui, principalmente com a professora que fez a gente olhar de outra forma, não vir e depositar, né? (Rodrigo) Do ponto de vista da Complexidade, a Educação é compreendida como um sistema dinâmico; os processos de ensinar e aprender não são exatos, nem estáticos, mas sim, incorporam a contradição e a transformação. A Educação é um desses sistemas e depende do fluxo nutriente que se estabelece entre os alunos, entre estes e o professor e, entre todos e o meio. Esse fluxo alimenta aos diversos circuitos recursivos existentes no processo educacional: ensinar, aprender, realizar tarefas individualmente e coletivamente, processar o conhecimento, trocar, entre muitos outros. A Escuta Musical ensina a ouvir, não somente música, mas também a escuta do outro ― como bem observou um dos sujeitos: “o grupo seguia a aula mais tranqüilo, centrado e receptivo à experiência de ouvir os colegas” 86 Fato relatado pela segunda esposa de Paulo Freire no segundo programa da série Paulo Freire - o andarilho da utopia. RÁDIO NEDERLAND (Holanda) e CRIAR – Assessoria de Comunicação de São Paulo. O Andarilho da Utopia. São Paulo: Estúdio Trilha Certa, 1998. 209 – ilustrando, dessa maneira, a um dos princípios da Transdisciplinaridade: “o saber compartilhado deve levar a uma compreensão compartilhada, fundamentada no respeito absoluto às alteridades unidas pela vida comum numa só e mesma Terra”87. Pela via da escuta sensível ― em suas duas acepções88 ― alcança-se a atitude aberta, essencial para viver, a lógica ternária e conciliadora, que leva à compreensão e à aceitação das alteridades, dos valores e crenças de outras “tribos”. Finalmente, ouvir e ser ouvido não são somente necessidades da psique humana, ou uma regra de conduta para o bem-viver; Schreiber (2004, p. 252) explica que “é uma necessidade que emana do cérebro”, e uma consumação altamente significativa de nossas existências: No entanto, depois de milhões de anos de evolução, nosso cérebro emocional é feito para ansiar por quatro aspectos da vida (...): um senso de conexão com o nosso corpo e estados interiores; intimidade com alguns seres humanos seletos; um papel sério em nossa comunidade; e um sentido de conexão com o mistério da vida. Distanciados desses aspectos, buscamos em vão por uma meta fora de nós, em um mundo no qual nos tornamos estrangeiros. O diálogo como partilha da intimidade O que é importante é o sentimento de estar totalmente com outra pessoa. Ser capaz de mostrar que somos fracos e vulneráveis, mas igualmente fortes e radiantes. Ser capaz de rir mas também de chorar. Sentir que nossas emoções são compreendidas. David Servan-Schreiber 87 88 Carta da Transdisciplinaridade, Art. 13. A escuta sensível de René Barbier e a escuta musical sensível, como a defino. 210 O grupo se tornou cada vez mais íntimo na partilha ampla de experiências, conhecimentos, e da emoção; o sentimento de intimidade se tornou recorrente. Algo extraordinário aconteceu: a capacidade de desbloquear sua expressão no grupo e sentir o calor de ser aceito; a eliminação de bloqueios e inibições. Todos os sujeitos experimentaram essa sensação: Esta estratégia (escuta) ajudou o grupo a se constituir enquanto tal, deixando os colegas à vontade para se colocarem e exporem seu processo de aprendizagem sem constrangimento. (Adriana) (...) estávamos completamente “nus”, digo no sentido de não nos preocuparmos com a opinião alheia...” (Matheus) (...) tive uma experiência anterior a essa, numa faculdade onde a chibata entrava nas aulas, essa experiência de ter chegado aqui e começar a aula ouvindo música, (...) foi como sair do inferno mesmo e ir pro céu mesmo, sabe? (Liebe) (...) esse tipo de trabalho (...) mexe muito, imagina então se todas as disciplinas fossem trabalhadas nesse molde... (...) (Jaques) A liberdade de colocar minhas idéias e experiências musicais e partilhar com meus colegas de classe a vivência de cada um. (Giba) As aulas de improvisação com os instrumentos pedagógicos, (permitiram) expressar os próprios sentimentos. (Rodrigo) (...) esse “quebra tudo” e a gente saiu quebrando pau mesmo (...) é uma outra percepção, você tem a liberdade total, com teu corpo, com a tua mente. (Matheus) 211 A partilha do choro Signo máximo de abertura ao outro; chorar ou somente permitir que o olhar marejado fosse perceptível, se tornou comum no grupo. Diversas vezes, a emoção não se expressou em palavras, mas em expressões, lágrimas, atitudes. É permitido que as crianças chorem ou que adultos com algum problema façam o mesmo, nesse caso, chorar é um ato solitário. Neste grupo, o choro despiu-se de seus estigmas sociais e passou a significar apenas intimidade e fluxo transbordante de emoção, um desnudarse engendrado no dia a dia da partilha pessoal. A fala de um dos sujeitos ilustra o momento marcante, no qual, através da partilha do choro, as “hierarquias” da sala de aula puderam ser transcendidas, colocando professor e alunos no mesmo patamar de experiência humana íntima: Mas uma cena assim, que eu sempre falo pra todo mundo, foi uma vez que você (eu) (...) colocou aquele CD do Paulo Freire, aí ele estava falando da ditadura e você chorou (...) acho que isso foi, isso pra mim foi f... (Giba) Schreiber ensina que o choro é uma das formas de nossa “comunicação límbica”: O choro e nossa resposta instintiva a ele criam o “circuito reflexo” dos relacionamentos entre os seres – humanos ou não humanos. Esse circuito é a base para toda comunicação vocal – o canto dos pássaros, o mugido, o miado, o grunhido, toda a poesia e as canções. A impressionante atração que a música exerce em nossos corações – sobretudo o canto da voz humana – provavelmente tem suas raízes nisso. A música age diretamente no cérebro emocional e é muito mais eficaz do que a linguagem verbal ou a matemática. (2004, pg. 180) 212 Eu poderia então dizer que nossos cérebros límbicos se conectaram através da emoção intensa. Na avaliação do curso, quando Giba tocou “Começar de novo”, de Ivan Lins, muitos choraram e, juntos, cantaram as últimas frases da música; depois novamente, quando Matheus tocou “Coração de estudante”, de Milton Nascimento. A frase de Giba resume o sentimento de todos: “A emoção da última aula ficará guardada na minha lembrança”. Em alguns momentos, a aula parecia derivar para uma terapia de grupo, o que pode parecer assustador ou inadequado, porém, nem tanto, pois todas as vezes em que se pode deixar fluir pensamentos, idéias, concepções e sentimentos, a atividade, seja ela qual for, se torna terapêutica; não é necessário habilidade especial. Como explica Esch (2005, p. 11), “na musicoterapia ativa, os pacientes improvisam com instrumentos de sua escolha e então criam uma nova forma de comunicar seus sentimentos, emoções e palavras ‘não ditas’”89; na musicoterapia receptiva, os pacientes acessam suas memórias mais íntimas, o corpo e a psique são afetados de formas diversas e profundas, como visto anteriormente. Os sujeitos puderam ter a experiência dessa catarse terapêutica em diversos momentos. Outro aspecto relevante, que dificilmente se conseguiria analisar sem a ajuda de um vídeo, é a quantidade de comunicação emocional não-verbal manifestada nos gestos, nas atitudes, nos olhos, nas expressões faciais, nas intenções do corpo, no toque, no sorriso, como Jaques ilustra perfeitamente nesta fala: 89 Tradução da autora. 213 A ligação sonora com vários indivíduos e a comunicação feita numa esfera onde a racionalidade ficava subjugada pelas sensações. Essa forma de comunicação direta (...) é irreprodutível pela linguagem verbal. 5. Transcendência E no entanto, existe um campo infinito no fundo de nós mesmos, que encontramos nos sonhos, em uma emoção intensa, em raros e misteriosos momentos de nossa vida. Um físico o chamaria talvez de “campo das variáveis veladas”, um místico, o sentimento da unidade infinita, o continuum fora do tempo, a unidade perceptível do invisível dentro do visível. Michel Random Os relatos dos sujeitos evidenciaram inúmeras experiências, situações e sentimentos de transcendência. Se, durante muito tempo, toda essa referência permaneceu confinada aos relatos místicos, à clausura dos confessionários, aos sortilégios dos magos, hoje a situação é diferente; a ciência e, em especial, a revolução quântica, veio abrir novas possibilidades, descortinar um universo muito mais complexo, liberto de concepções prosaicas, pleno de incertezas que animarão as buscas para sempre, atrás de respostas que talvez nunca serão definitivas; a porta estará sempre aberta para alguma outra impalpável dimensão. Hoje é possível utilizar as palavras energia, conexão, sintonia, sem os estigmas que durante tanto tempo as interditaram. A transcendência existe a cada vez que um limite é transposto; o dicionário da língua portuguesa a define como propriedade do que vai além, algo muito elevado, que transcende do sujeito para alguma coisa fora dele, que transcende os limites da experiência possível. 214 A transcendência em direção ao interior Os sujeitos referiram-se à transcendência de seus limites pessoais, na conquista da abertura para o outro e na superação de limites profissionais, como visto anteriormente; e agora, uma volta ao tema, através do autoconhecimento – o olhar para o interior – que permite perceber e incorporar novos valores. Os sujeitos se expressam, a seguir, sobre a transcendência através do autoconhecimento: (...) quando nos encontramos com o nosso interior, descobrimos que existe uma paz interna que não há lá fora. (Rodrigo) (...) o que me chamou a atenção (...) não temos outra aula que faça relaxamento, é você buscar você mesmo, seu interior, você não tem isso no dia a dia... (Rodrigo) Através deste curso consegui um melhor autoconhecimento e ampliar minha paisagem sonora. (Giba) Toquei naquele momento a música Começar de Novo do compositor Ivan Lins atendendo o meu falar interno (...) (Giba) (...) poderia ter tido várias técnicas de... fazer pedagogia, mas não foi assim, foi uma coisa mais profunda, (...) a gente foi construindo com essas outras coisas mais profundas... (Adriana) (...) porque a reflexão ela é como lava de vulcão, né? Eventualmente acontecem algumas erupções que deixam uns e outros desnorteados. (Jaques) (...) você pode viajar, através do teu interior, do pensamento, do que está à volta, transcender, acho que essa é a palavra certa, transcender. (Matheus) Um sentido transdisciplinar desponta intrinsecamente relacionado à transcendência de todos os limites, pessoais, profissionais, de espaço físico, 215 configurando uma verdadeira mudança de paradigma. O olhar se expande para fora e para dentro. Uma vez, Matheus escolheu para tocar ‘Coração de Estudante’, de Milton Nascimento (vide Anexo 5), sua criança interior estava lhe chamando – Seu sorriso de menino quantas vezes se escondeu – pois, o coração de estudante é o coração eternamente jovem que habita regiões profundas, em cada um de nós. Os níveis de realidade se projetam na interioridade. Existem muitos níveis em nós e muito sutis; carregamos na intimidade todos os valores, crenças e paradigmas da cultura que nos forjou e, um mundo impalpável, sobrenatural, representado por mitologias, por todas as criações do imaginário: “os humanos possuídos são capazes de morrer ou de matar por um deus, por uma idéia...” (MORIN, 2002, p. 29). A noosfera ― esfera das coisas do espírito ― possivelmente, seja a característica mais humana, e constitua um nível de realidade, uma outra dimensão, um outro mundo como diriam os sujeitos, a partir do qual o inexplicável tantas vezes encontra explicação. “A perda do senso de um self separado do mundo à sua volta é algumas vezes acompanhada de um sentimento de união com o ambiente”, ensina Csikszentmihalyi (1992, p. 98), e eu acrescentaria que é como uma “viagem” a esses mares profundos, a essas zonas de não-resistência, tão intimamente ancoradas. Ao voltar dos momentos de Escuta Musical, é como voltar de um lugar assim. 216 A sensação de transcender o espaço físico A sensação de transcender o espaço ― que parece ser o limite ― surgiu de formas diversas na experiência dos sujeitos: na experiência do fluxo, no sentimento de conexão, mesmo à distância, no sentir-se uno com o grupo e nas impressões de estar em outra dimensão. Os sujeitos se exprimiram sobre isso de forma metafórica: (...) essa experiência de ter chegado aqui e começar a aula ouvindo música, foi como sair do inferno e ir pro céu. (Liebe) (...) a escuta traz uma liberdade total, outra percepção, outro mundo, outra forma de ver (...) (Matheus) (...) aquela sala era como uma outra dimensão, onde éramos inalcançáveis diante de uma energia intensa. (Matheus) A experiência vivida tem o significado de uma porta aberta ao infinito. (Liebe) A perspectiva transdisciplinar oferece a possibilidade de interpretar a transcendência, lembrando que a realidade é mais ampla do que as concepções que se tem sobre ela e que através de uma abertura mental é possível posicionar-se em diferentes perspectivas: o inconciliável torna-se possível e integrado à experiência. A lógica transdisciplinar inclui o ser e o não-ser, facilita a compreensão de sua coexistência no mesmo espaço, em diferentes níveis de realidade. Essa nova visão tornou-se possível a partir da descoberta inalienável da existência desses diferentes níveis em nós, o micro, representado pela constituição física, pelo movimento eterno e frenético do mundo subatômico que constitui a materialidade – algumas vezes indiferenciável da espiritualidade – e o macro, incorporado pelos corpos viventes no tempo-espaço, na vida social, no mundo do cotidiano. 217 A questão dos valores Os valores permearam a pesquisa ao longo de toda sua duração: questionados, confirmados, rejeitados, descobertos, redescobertos. “Os valores são a reserva moral e espiritual reconhecida da condição humana”; encontram-se em nosso ser profundo, sinalizando para o sentido da vida, ainda que “adormecidos na mente e latentes na consciência”, ensina Martinelli (1996, p. 15). Através da estratégia de Escuta Musical, uma porta se abriu para a interioridade; os sujeitos puderam reencontrar muitos de seus valores e descobrir outros que lhes trouxeram riqueza pessoal e profissional; apenas para citar alguns exemplos: a paz, o encantamento, a dialogicidade, o respeito, o silêncio interior, o autoconhecimento, entre tantos outros. Analisar estes dados sob o ponto de vista dos valores, exigiria certamente uma nova tese. No entanto, se a questão axiológica não pode ser analisada neste escrito, deve pelo menos ser citada, pois emergiu com a força da vivência dos sujeitos. Além disso, ética e valores, constituem princípios essenciais na pesquisa de desenvolvimento Eco-sistêmico, e nas teorias filosóficas que dão sustentação para refletir este trabalho: Sentipensar, Complexidade e Transdisciplinaridade. A meta é educar para a Era planetária, como diria Morin; valores consistentes ensinam a preservar a vida ― nossas vidas ―, preservar o planeta ― nossa casa ― e, preservar as relações humanas, o que torna possível um futuro para a humanidade. 218 7.6 Percepção da estratégia de Escuta Musical pelos sujeitos Nas respostas à primeira pergunta do questionário ― sobre o aspecto mais marcante da experiência que conservavam em suas lembranças ―, dois dos sujeitos ressaltaram a estratégia inicial de Escuta Musical e, um deles, a escuta dos sons do ambiente, ou seja, 50% dos sujeitos escolheram a escuta o que é bastante significativo: A lembrança mais marcante é realmente o clima propício para se pensar em música e em educação musical, gerado a partir da escuta. (Liebe) A primeira lembrança são as músicas que ouvíamos no início das aulas... (Rodrigo) Durante uma aula de exploração de sons do entorno da escola uma experiência me marcou de forma especial... (Jaques) A segunda pergunta do questionário era uma questão direta sobre a Escuta Musical como estratégia de Sentipensar: Normalmente, as aulas se iniciavam com uma estratégia especial, envolvendo a Escuta Musical. Você sente que essa abertura da aula pudesse ter influência sobre as atividades subseqüentes? Que tipo de influência? A análise das respostas à questão 2, se tornou muito interessante, pois nas correlações estabelecidas pelos sujeitos, entre a estratégia de escuta e seus objetivos, diferentes aspectos do Sentipensar foram vislumbrados, e ainda, os sujeitos só fizeram corroborar a adequação da 219 Escuta Musical como estratégia válida na integração de emoção e racionalidade. Como vê-se na seqüência: Matheus Escuta........ concentração/entrega..... conteúdos...... aulas mais dinâmicas Acredito piamente nesta possibilidade, pois a escuta musical a que éramos submetidos era uma forma de concentração e, ao mesmo tempo, de entrega, para que pudéssemos usufruir o máximo de conteúdo possível, o que resultava em aulas mais dinâmicas e, conseqüentemente, mais proveitosas. O primeiro sujeito relacionou a atividade de escuta a aulas mais dinâmicas, decorrentes da possibilidade de concentração e entrega, para uma absorção melhor dos conteúdos; nesse caso, a Escuta Musical Sensível torna-se indutora de estados fisiológicos e mentais favoráveis ao trabalho cognitivo subseqüente. Por trás da palavra entrega existe a postura física e mental de relaxamento e abertura. Liebe Escuta...................... sensibilização.......... influência positiva no aprendizado Como eu já havia relatado na ocasião em que gravamos a finalização do curso, tive uma experiência de aprendizagem que me marcara muito e de maneira bastante negativa, então, quando experimentei uma aula que buscava a sensibilização antes de tratar dos conteúdos, pude referenciarme acerca da influência positiva que é possível exercer no aprendizado, dependendo da forma que estes conteúdos são abordados. O segundo sujeito, de forma semelhante ao primeiro, ressalta a importância da escuta em seu caráter sensorial, no entanto, enfatiza a escuta sensível, no sentido atribuído por Barbier (2002, p. 94), na qual se procura “sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para compreender do interior”. A ênfase está na possibilidade de aproximação 220 entre as pessoas, e a influência positiva no aprendizado decorre da “forma de abordar o conteúdo”, o que, por um lado, significa ser psicofisiologicamente afetado, e por outro, ser ouvido e aceito por um grupo. Esse sujeito havia relatado experiências anteriores muito negativas nas quais “a chibata entrava na sala de aula”. Jaques Escuta/relaxamento.... sintonia.. focalização.. magnetização.. grupo receptivo à experiência de ouvir os colegas Os períodos de audição e relaxamento foram importantíssimos para sintonizar o grupo e permitiram um assentamento e focalização das energias. Era nítido que mesmo os que chegavam depois de iniciado o processo e ficavam assentados fora da roda se sentiam magnetizados pela experiência. O grupo seguia a aula mais tranqüilo, centrado e receptivo à experiência de ouvir os colegas. Este sujeito ressaltou a importância da formação do grupo, nãosomente no aspecto exterior de sua constituição, mas na vertente interna de sua coesão; enfatizou os aspectos energéticos relativos à coesão do grupo e utilizou idéias fortes e significativas: sintonia, assentamento, focalização, magnetização. Como resultado dessa coesão forte ― a conexão energética discutida anteriormente ―, é que o grupo, como organismo “tranqüilo e centrado”, se abre para a experiência de escuta do outro. Esse sujeito teceu muitos comentários sobre a função terapêutica das experiências vividas em sala de aula, e, naturalmente, quando fala de ouvir o outro se trata daquela escuta sensível de Barbier. Giba Escuta.... presença da música...... concentração... clima/ambiente mais leves A escuta musical permite maior concentração para as atividades seguintes. Tem que haver MÚSICA em qualquer assunto envolvendo música. O clima e 221 o ambiente ficam mais leves e prontos para qualquer atividade musical. Falar de música sem MÚSICA transforma seres humanos em repetidores de livros e não em pessoas ativas e seres pensantes. Importante destacar: SOM – NOTAS – MÚSICAS - SERES HUMANOS (os grifos são do sujeito) Este sujeito corrobora a propriedade que a música tem de induzir estados de concentração. Porém, agrega a isso uma percepção crucial: “tem que haver MÚSICA em qualquer assunto envolvendo música”; a simples presença da música é o fator principal que torna “o clima e o ambiente mais leves”. Poderia ser uma coisa óbvia demais, a presença da música numa escola de música, mas não ;, raríssimos professores se utilizam do poder da música para induzir estados fisiológicos e mentais favoráveis, mesmo numa escola de música. Mais que isso, advogo que a Escuta Musical pode transcender o ambiente estritamente musical e tornar-se uma estratégia para o Sentipensar em qualquer área de atuação. Essa é claramente a ponte que o sujeito também estabelece: som.... notas...... músicas... seres humanos, ou seja, uma ponte para a formação humana. Sujeito 5 Escuta...... auto-encontro....... paz interna.... influência nas atitudes, idéias e comportamentos Acredito que sim. Pelo fato de o ser humano conseguir se encontrar novamente consigo mesmo, pois estamos vivendo num mundo onde precisamos sobreviver, alcançar objetivos e realizar-se, de modo geral, e quando nos encontramos com o nosso interior, descobrimos que existe uma paz interna que não há lá fora. Acredito que a escuta musical influencia nas atitudes, comportamentos e idéias do ser humano, de crianças a idosos. Este sujeito trouxe à discussão a importante questão axiológica, e foi talvez o único a citar a modulação do comportamento a partir da Escuta Musical. Os valores foram ressaltados pelo sujeito como uma conquista 222 interna, ― “conseguir se encontrar”, “influência nas idéias do ser humano” ―, mas também, como manifestação externa, nas atitudes e comportamentos, em todas as faixas etárias, constatação importante, pois, muitas vezes se pensa que não é necessário discutir esses assuntos com crianças. O sujeito fala ainda de “uma paz interna que não há lá fora”. A paz poderia ser o objetivo último de nossos esforços educacionais, quando finalmente, através de estratégias diversas, se estendesse dessa vida interior para comportamentos, atitudes e pensamentos em relação aos outros. Sujeito 6 Escuta.... sensibilização.... grupo.... desbloqueio......... exposição do próprio processo de aprendizagem Certamente. Esta foi uma maneira de sensibilizar e preparar os alunos para a aula. Esta estratégia ajudou o grupo a se constituir enquanto tal deixando os colegas à vontade para se colocarem e exporem seu processo de aprendizagem, sem constrangimento. Nesta partilha, todos contribuíram para o crescimento do grupo. Este sujeito enfatiza, de forma especial, a constituição do grupo, através de um tipo de partilha, na qual os sujeitos podem se expressar livres de bloqueios e inibições. Esse processo foi intensamente vivido pelo sujeito e, muitas vezes, manifestado: nas respostas ao questionário, e em seu depoimento registrado durante a avaliação final do curso, no qual se referiu ao crescimento pessoal e profissional, à construção do conhecimento e à importância da partilha desse conhecimento na intimidade do grupo. Foram muitos os insights, ”eu acho que fluiu e é a primeira vez que aconteceu isso esse semestre (...) foi uma coisa mais profunda, de buscar... buscar o nosso jeito”, disse ela, caracterizando, uma vez mais, o aspecto terapêutico que o processo assumiu algumas vezes. 223 Conclusão e considerações finais Do alto do infinito Tatiana Clauzet 224 Conclusões preliminares sobre a Escuta Musical A análise das respostas dos sujeitos aos instrumentos de coleta de dados corrobora que a Escuta Musical teve um papel ativo na qualidade das experiências transformadoras que vivenciaram. Como fica explícito na síntese a seguir: CONCENTRAÇÃO ENTREGA USUFRUIR DO CONTEÚDO SENSIBILIZAÇÃO ESCUTA MUSICAL SINTONIA ASSENTAMENTO FOCALIZAÇÃO MAGNETIZAÇÃO AULAS MAIS DINÂMICAS E PROVEITOSAS INFLUÊNCIA POSITIVA NO APRENDIZADO GRUPO RECEPTIVO À EXPERIÊNCIA DE OUVIR OS COLEGAS CONCENTRAÇÃO PRESENÇA DA MÚSICA CLIMA/AMBIENTE MAIS LEVES AUTO-ENCONTRO PAZ INTERNA INFLUÊNCIA NAS ATITUDES, COMPORTAMENTOS E IDÉIAS DO SER HUMANO SENSIBILIZAÇÃO PREPARAÇÃO CONSTITUIÇÃO DO GRUPO EXPOSIÇÃO DO PRÓPRIO PROCESSO, SEM CONSTRANGIMENTO Muito embora cada sujeito tenha ressaltado um aspecto diferente, como produto da estratégia de escuta, todos têm em comum a percepção de que a escuta prepara o trabalho intelectual subseqüente, por promover tranqüilidade e concentração; todos os comentários sobre a escuta foram positivos e transmitiram a idéia de bem-estar. 225 Primeira conclusão: música é uma forma de relaxamento Uma das formas através da qual a escuta leva aos resultados assinalados pelos sujeitos, é precisamente o relaxamento, o esvaziamento mental. É possível fazer tal inferência a partir do que os sujeitos relataram sobre entrega, concentração, assentamento, sensibilização e paz interna, pois o relaxamento nada mais é do que “atividade física ou mental repetitiva”90, que promove alterações fisiológicas notáveis, levando quem se engaja nessa atividade a “afastar todos os pensamentos desviantes” (ESCH et al., 2005, p. 9). Como apresentado no Capítulo 4, a música é poderosamente indutora da resposta de relaxamento, alterando o metabolismo e diversas funções homeostáticas; tem a propriedade de interromper a produção do hormônio do estresse e de modular a atividade cerebral, levando-nos a “entrar em alfa” e experimentar agradáveis sensações de bem-estar. Esta vivência de estados mentais e corporais positivos naturalmente conduz a “aulas mais dinâmicas”, e à “influência positiva no aprendizado”. Como explica Schreiber (2004, p. 67): Tendo alcançado um estado de maior equilíbrio, estamos prontos para enfrentar todas as contingências da vida. Simultaneamente temos acesso à sabedoria do cérebro emocional – sua “intuição” – e às faculdades de reflexão, raciocínio abstrato e planejamento do cérebro cognitivo. Segundo Esch, “a integração dos sistemas autonômico-emocional pode levar a uma experiência diferente do self e do corpo, um estado diferente ou alterado de consciência” (ESCH et al., 2005, p. 11). Esse 90 Tradução da autora 226 estado de fluência e bem-estar, que liga as pessoas intimamente ao que estão vivendo, e que transforma a percepção do tempo e do espaço, foi também descrito por Csikszentmihalyi (1992), anteriormente, como a experiência do fluxo. Segunda conclusão: através da música acessamos sentimentos positivos Também no Capítulo 4, demonstrou-se que a música ativa memórias emocionais através dos circuitos cerebrais de motivação e recompensa, estimulados quando ouvimos música que nos agrada. A partir disso, as sensações corporais se desencadeiam – nos arrepiamos, nos emocionamos – os sentimentos de prazer e bem-estar se reforçam com a música; são essas memórias e reações fisiológicas que conferem à música propriedades terapêuticas. Como explica Zatorre (2005, p. 314), “o efeito ansiolítico da música é conhecido agora não somente por especialistas, mas por qualquer um que escute sua peça musical favorita depois de um dia de afazeres” 91. A emocionalidade da música está profundamente arraigada em nosso organismo, como ensina Schreiber (2004, p. 57): (...) emoções negativas tais como raiva, ansiedade, tristeza e até preocupações comuns, reduzem muito a variabilidade cardíaca e semeiam o caos em nossa fisiologia. Por outro lado, emoções positivas, como alegria, gratidão e sobretudo amor, parecem promover a maior coerência. Em poucos segundos, essas emoções induzem uma onda de coerência imediatamente visível no registro da freqüência cardíaca. O relaxamento, quando praticado com constância e por um tempo adequado, pode produzir alterações fisiológicas de longa duração (ESCH et 91 Tradução da autora. 227 al., p. 11); esse é mais um argumento para que se incorpore a estratégia de Escuta Musical ao processo educacional, desde os níveis elementares. Terceira conclusão: a música é um poderoso catalisador da atividade social Viu-se que a capacidade que a música tem de nos emocionar talvez remonte aos primórdios da afetividade, dos “gritos primais de desespero” em busca do calor e conforto maternos (PANKSEPP; BERNATZKY, 2002, p. 143). Os autores explicam ainda que, (...) nossa habilidade cerebral para ressonar emocionalmente com música tem uma profunda e multidimensional história evolucionária, incluindo vertentes relativas à emergência da comunicação intersubjetiva, estratégias para a seleção de um companheiro, e a emergência de processos regulatórios para outras dinâmicas sociais, tais como aquelas vinculadas à coesão do grupo e à coordenação de atividades.92 (PANKSEPP; BERNATZKY, 2002, p. 139) Os sujeitos da pesquisa vivenciaram e manifestaram, com toda clareza, a constituição dessa coesão de grupo e, o quanto isso os impactou, do mesmo modo que nos impactara em nossas origens ancestrais. Panksepp e Bernatzky conduziram uma pesquisa com estudantes americanos, sobre a escuta de músicas consideradas tristes ou alegres por eles ; sua intenção era estudar por quanto tempo os efeitos de alteração de humor provocados pela música permaneceriam após a escuta. Através de uma série de estratégias previstas e controladas, os sujeitos permaneceriam, após a escuta, num certo estado de isolamento, o que evitaria possíveis distrações. Sintetizando, esse estudo concluiu que, 92 Tradução da autora. 228 Música feliz eleva os sentimentos de felicidade, música triste eleva os sentimentos de tristeza. Para ambas, os efeitos do humor foram significativamente mais altos imediatamente após a música; e eram ainda significantes ― mas também significativamente diminuídos ― dez minutos após. As mudanças induzidas pela música tinham declinado para níveis pouco significativos após vinte minutos.93 (PANKSEPP; BERNATZKY, 2002, p. 145) Avaliando criteriosamente, o resultado da pesquisa dos autores incentiva a utilizar a estratégia de Sentipensar com música, pois o tempo de declínio dos efeitos da música – vinte minutos aproximadamente – é mais que suficiente para gerar, em sala de aula, uma discussão criativa em torno de algum tema de interesse; e isso, certamente, ocorreu na experiência dos sujeitos da presente pesquisa. Quarta conclusão: a música tem a propriedade de alterar estilos cognitivos Ao iniciar esta pesquisa, intimamente, estava convencida de que os benefícios da Escuta Musical estariam, praticamente, todos ligados aos efeitos de transferência. É certo que a música, enquanto linguagem estruturada, pode produzir efeitos de transferência, a exemplo do efeitoMozart e alterações na cognição como visto anteriormente no Capítulo 4. Porém, além de efeitos de transferência, existem outros fatores que afetam a modulação do estilo cognitivo através da música; Panksepp e Bernatzky (2002, p. 134) chamam a atenção para a correlação existente entre certos padrões de nossa vida interior e os padrões dinâmicos da sintaxe musical – a exemplo de movimento e repouso, de tensão e relaxamento, entre outros. Zatorre (2005, p. 313) fortalece tal idéia ao conjecturar: 93 Tradução da autora. 229 (...) a habilidade para organizar um conjunto de palavras numa sentença com significado e a habilidade para organizar um conjunto de notas numa melodia bem estruturada poderiam engajar mecanismos cerebrais de forma semelhante.94 Panksepp e Bernatzky (2002, p. 140) acrescentam que a retenção de uma informação é melhor, “quando codificada no contexto dinamicamente rico das estruturas musicais, um efeito evidente mesmo em crianças com retardo mental”95; talvez por isso se utilizem tantas canções na educação escolar, nos cursinhos e na campanha eleitoral; além das possíveis correlações sintáticas; naturalmente, o apelo emocional da música fortalece ainda mais tais estratégias. No entanto, nada parece ser mais decisivo para as relações entre música e cognição do que a propriedade que a música tem de afetar o humor, induzindo sentimentos positivos e, dessa forma, promovendo a melhoria de nossa eficiência cognitiva, conforme comprovam os estudos de diversos autores analisados. Nos estudos descritos por Ashby viu-se que, a partir da vivência de sentimentos positivos, as pessoas desenvolvem habilidade para lidar com perspectivas cognitivas pouco usuais; a flexibilidade e o fluxo de pensamentos se elevam, assim como a fluência verbal, abrindo caminho para a criatividade e para a solução inovadora de problemas. Com sentimentos positivos, “o pensamento é flexível, portanto, aspectos usuais ou não usuais dos conceitos se tornam acessíveis”96. (ASHBY, 1999, p. 531) Na hipótese de Ashby, tal flexibilidade cognitiva se associa à liberação de dopamina no cérebro, o que causa a experiência de bem-estar. 94 95 96 Tradução da autora. Tradução da autora. Tradução da autora. 230 Nunca é demais reforçar que todo esse processo decorre da integração de processos corporais e mentais; quando a escuta desencadeia alterações neurofisiológicas, concomitantemente, se alteram as funções autônomicas, levando a modificações no estilo cognitivo, ou seja, mudanças na forma específica de manifestação do pensar. Segundo Damásio (DAMÁSIO, 2004, p. 92), a essência do sentimento é constituída pela percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar: (...) quando temos a experiência de um sentimento positivo, a mente representa mais do que bem-estar, a mente representa também bem-pensar. A carne funciona harmoniosamente, é o que nos diz o espírito, e a nossa capacidade de pensar está assim enriquecida. Por outro lado, sentir a tristeza não diz respeito apenas ao mal-estar. Diz respeito também a um modo ineficiente de pensar, concentrado em torno de um número limitado de idéias de perda. (DAMÁSIO, 2004, p. 96) Damásio explica ainda, que os sentimentos são percepções como quaisquer outras percepções, no entanto – constatação importante –, o objeto desencadeador de um sentimento está sempre no interior do próprio corpo, enquanto que os objetos competentes desencadeadores de percepções – como, por exemplo, na percepção auditiva – são, em geral, provenientes do ambiente. Na Escuta Musical, esse fato tem bastante importância, pois o objeto desencadeador do sentimento - o estado do corpo - pode ser constantemente modificado no processo; “ o cérebro pode atuar diretamente sobre a estrutura do objeto que está em vias de perceber” (DAMÁSIO, 2004, p. 99), caracterizando um processo circular e recursivo. Existe naturalmente uma ligação entre o estímulo externo – a 231 música – e a emergência do sentimento, porém, essa ligação é mediada pelo estado do corpo (estímulo interno) resultante da Escuta Musical. Resposta à pergunta de pesquisa Com base na análise dos dados coletados junto aos sujeitos e nas pesquisas que fundamentam tais dados, é possível concluir que, o sentimento desencadeado pela Escuta Musical, efetivamente, favorece a capacidade de reflexão. As relações entre o sentimento e o pensamento reflexivo são mediadas por diversas instâncias: pela resposta de relaxamento, pelo controle do estresse, pela fruição de emoções – que modulam a regulação homeostática e a atividade cerebral – e, pelo efeito benéfico e catártico de ser parte integral de um grupo, com conseqüências neuropsicológicas importantes; todas essas instâncias conduzem a estados altamente prazerosos de bem-estar, ou seja, sentimentos positivos diversos, que por sua vez, afetam positivamente as funções cognitivas que dão suporte a todas as operações mentais – a exemplo de memória, atenção, percepção – culminando na capacidade de pensar adequadamente. É possível concluir também, que, o efeito de incremento cognitivo observado no contexto dessa pesquisa, não se deve exclusivamente aos benefícios da Escuta Musical – ainda que esta tenha sido uma etapa essencial – mas sim, à sinergia existente entre as diversas etapas do processo inicial de aula: 1. Reunião do grupo; 2. Concentração; 3. Alongamento; 4. Relaxamento; 5. Escuta Musical Sensível; 6. Despertar. Provavelmente, se realizássemos apenas as quatro primeiras etapas, se fariam sentir efeitos no desempenho cognitivo, talvez menos intensos. Esse 232 primeiro momento da aula – iniciando em círculo, de mãos dadas e sentindo a conexão com o grupo – poderia constituir, em si, uma estratégia de Sentipensar baseada na conexão afetiva entre as pessoas, o que, por sinal, foi muito valorizado pelos sujeitos. No entanto, a partir do quinto momento, todos esses efeitos foram significativamente amplificados, com base nas propriedades específicas da música – algumas delas evolucionárias –, o que a torna uma poderosa mediadora no incremento da atividade reflexiva, como visto. Resulta que a escuta em si, não seria suficiente para garantir a validade do procedimento como uma estratégia de Sentipensar; caso fosse proposta de forma simples e desconectada, o conjunto de atitudes que acompanham a Escuta Musical é tão importante quanto ela própria . Um forte amálgama une as etapas do processo – reunião do grupo, concentração, alongamento, relaxamento, escuta musical sensível e despertar – constituindo um organismo, desintegrado. um sistema dinâmico, difícil de avaliar, quando 233 Considerações Finais A integração das dimensões do ser humano A cisão cartesiana entre corpo e alma está na base de tantas outras cisões que caracterizaram nosso processo civilizatório. O cientificismo nos ensinou que, somente as disciplinas naturais e matemáticas eram confiáveis por serem “objetivas”; as humanidades foram desprezadas, e com elas, a subjetividade humana. O que era científico foi elevado à categoria do inquestionável; o humano, descartado; a reflexão, separada da experiência sensível; o diálogo - entre filosofia, religião e ciência - encerrado; assim, as esferas objetiva e subjetiva da experiência humana ficaram, indelevelmente, desunidas: Todo conhecimento, além do científico, foi afastado para o inferno da subjetividade, tolerado no máximo como ornamento, ou rejeitado com desprezo como fantasma, ilusão, regressão, produto da imaginação. A própria palavra ‘espiritualidade’ tornou-se suspeita e seu uso foi praticamente abandonado. (BASARAB, 2005, p. 23) Uma nova visão filosófica para a Educação e, de forma mais abrangente, para a vida em sociedade, tem por pré-requisito o resgate do todo, o que significa reintegrar o ser humano em todas as suas dimensões, da fisiologia à transcendência, do corpo à alma, da emoção à razão. Cabe aqui lembrar, uma vez mais, aquilo a que Damásio denominou “o erro de Descartes”, e concordar com ele quando diz que, (...) a mente teve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria existido. De acordo com a referência de base que o corpo constantemente lhe fornece, a mente pode então 234 ocupar-se de muitas coisas, reais e imaginárias. (DAMÁSIO, 2000, p.17) Schreiber (2004, p. 33) corrobora as observações de Damásio: “o cérebro emocional está (...) mais intimamente relacionado ao corpo do que ao cérebro cognitivo”, por isso é muito mais fácil acessar as emoções pela via corporal do que pela linguagem verbal; e, eu complementaria, por isso o corpo permanece ausente da sala de aula. A dimensão emocional dá um passo decisivo na valorização do ser humano integral; abre caminho para o bem-estar pessoal, para a experiência do corpo e para estados prazerosos que tanto afetam as condições da percepção, da reflexão, da integração ao grupo, da criatividade e, logicamente, do processo de ensino/aprendizagem. O esvaziamento da experiência Como visto anteriormente, por influência de um conjunto de doutrinas do pensamento – iluminismo, determinismo, mecanicismo e positivismo, entre outras – plasmou-se uma visão de mundo desprovida de qualquer sentido metafísico. Os postulados da ciência clássica haviam excluído o sujeito do horizonte; a necessidade de objetividade, o desejo de chegar ao “dado concreto”, ao “fato científico”, a necessidade de uma pretensa neutralidade, levaram a ciência a um esvaziamento humano; esquecemos que “toda teoria é sempre uma construção do espírito humano”97 e que toda objetividade será sempre “objetividade-entre-parênteses” (MATURANA, 2002). 97 Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa educacional, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela Papirus, 2008. 235 A conseqüência do esvaziamento humano não se fez sentir apenas na ciência, mas também, em cada detalhe da vida prática; pouco a pouco, fomos perdendo o contato com o ser interior; as coisas da subjetividade passaram a ser vistas com desconfiança, a esfera noológica do ser foi excluída, juntamente ao que há de mais temível: mitos, fantasmas, sonhos (MORIN, 2005, p. 410). Na atualidade, vivendo um ápice de mal-estar social, nos perguntamos o que fazer e como nos reencontrar. Por isso pergunto, acompanhando o pensamento de Csikszentmihalyi (1992, p. 33): “Qual seria o motivo de, a despeito de termos atingido um progresso milagroso nunca antes sonhado, parecermos mais indefesos frente à vida do que nossos ancestrais menos privilegiados?”, e também respondo com ele: “embora a humanidade tenha, como coletividade, aumentado seu poder material em milhares de vezes, ela não avançou muito no sentido de aprimorar o conteúdo de sua experiência.” Muito se tem falado sobre a mente, sobre as incríveis capacidades cognitivas do cérebro, e de quão pouco as utilizamos. A ruptura existente entre corpo e mente talvez seja a responsável por isso; responsável por nosso fracasso em utilizar plenamente os recursos que nos foram dados pela natureza. Nesse sentido, alinho-me plenamente à crítica de Varela (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 34) sobre a fenomenologia, que poderia se estender ao pensamento filosófico ocidental como um todo: Husserl então deu o primeiro passo do cientista reflexivo: ele afirmou que para compreender a cognição, não podemos ver o mundo ingenuamente, mas devemos vê-lo, ao contrário, como possuindo a marca de nossa própria estrutura. Ele também deu o segundo passo, pelo menos parcialmente, percebendo que aquela estrutura (o primeiro passo) era algo que ele estava conhecendo (cognizing) com sua própria mente. Entretanto, no estilo filosófico da sua tradição ocidental, ele 236 não deu os passos posteriores (...). Ele começou com uma consciência individual solitária, assumiu a estrutura que estava buscando como sendo inteiramente mental e acessível à consciência em um ato de introspecção abstrata e filosófica, e a partir daí teve grande dificuldade em gerar o mundo consensual e intersubjetivo da experiência humana. Varela descreveu como a fenomenologia, apesar de insistir no resgate da experiência humana vivida, afastando-se da “atitude natural”98, caiu na armadilha do racionalismo, e pretendeu explicar o mundo tangível somente a partir de estruturas da consciência, afastando-se mais ainda da experiência direta. O mesmo acontece em sala de aula; nos afastamos da experiência vivida, abstraímos, teorizamos, falamos sempre muito e ensinamos nossos alunos a agir da mesma maneira. Não resta um pequeno espaço sequer de tempo ou atenção para qualquer coisa que não seja “estudar”, na concepção mais mecânica, reducionista e desincorporada que a expressão possa ter. O antídoto proposto por Varela para esse estado de coisas é a meditação atenta da tradição budista, enquanto que o antídoto que proponho é precisamente a Escuta Musical, emergindo – com o conjunto de atitudes que ela desenvolve – como poderoso instrumento para o Sentipensar. 98 A atitude natural consiste na convicção de que as coisas são como parecem ser, e que o mundo é independente da mente e da cognição do indivíduo que o percebe. 237 A reintrodução de estratégias criativas na formação (...) o maior problema epistemológico de nossa cultura: a extrema dificuldade que temos de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Humberto Mariotti Ao fazer uma análise retrospectiva de minha vida, como aluna e como professora – em especial, até antes do que considero minha mudança de paradigma –, pude perceber que o aluno é concebido na ilusão da simplicidade; não há uma visão integradora que busque retirá-lo da unidimensionalidade; o aluno é concebido como um intelecto, não como um corpo sensorial de onde brotam emoções sentimentos e subjetividade; a dimensão privilegiada é sempre a da racionalidade. Numa visão abrangente, passaríamos a ver o aluno como um tecido complexo, multidimensional e contraditório; um ser individual, por certo, mas que traz em si a marca da sociedade que o engendra; um ser, ao mesmo tempo apolíneo e dionisíaco, um ser complexo, que exemplifica em si o paradoxo do uno e do múltiplo, como diria Morin (2002, p. 55). Como podemos nos aproximar desse ser? O que a escola pode fazer por ele? Com certeza pode fazer muito, desde que se abra para um pensamento complexo e transdisciplinar, e que, por coerência metodológica, adapte seus métodos e estratégias a essa nova necessidade. A tarefa não é fácil, pois exige mexer no senso comum e transcendêlo, e se perguntar, a cada dia, se não há formas mais adequadas para se fazer o que vem sendo feito. Exige levar, para a sala de aula, tudo aquilo que ainda enfrenta tanta resistência: emoção, dialogicidade, compreensão, o 238 corpo, a criatividade, a escuta sensível (em suas duas acepções); exige mexer no espaço (interno e externo), criar beleza e, ainda, expandir-se para outros espaços que também podem tornar-se “a sala de aula”. A sala de aula tradicional, há muito se afastou desse tipo de experiência transcendente, na qual o indivíduo encontra espaço para a plena expressão e criação, onde a partir de um momento como esse, tudo pode acontecer; as relações afetivas se fortalecem, assim como a auto-estima e a autoconfiança. “É o momento ideal para se fazer coisas. É por isto que o docente deve perceber e aproveitar esses momentos, pois são os mais valiosos para se obter as aprendizagens desejadas.” (MORAES; TORRE, 2004, p. 71) É claro que estamos falando de aprendizagem integrada; um tipo de aprendizagem que, através de suas características abertas – multissensorialidade, impacto emocional, ambientes e climas especiais, caráter inferencial e criatividade – pode atender à coerência metodológica que toda essa transformação exige. O curso de Didática do ensino musical tornou-se, durante essa pesquisa, um espaço privilegiado para a aprendizagem integrada, tanto no que concerne à variedade das estratégias – tocar instrumentos, improvisar, produzir composições coletivas, assistir filmes – quanto à utilização do espaço: as aulas ocorreram, em sua maioria, na sala de aula, mas também no pátio e na entrada da escola, experiências extraclasse foram discutidas com empenho no processo de elaboração do portfólio da disciplina. A ampliação de espaços externos colaborou na ampliação de espaços internos, levando ao crescimento pessoal e profissional. Por tudo o que se discutiu até agora, é de se acreditar que os sujeitos levarão consigo as experiências vividas, 239 incorporando-as na experiência profissional, como confirma um deles, referindo-se à estratégia inicial da aula: “Eu tenho pena porque eu cheguei atrasada em muitas aulas, eu perdi essa parte inicial, que pra mim é fundamental (...), estou saindo da faculdade este semestre (...) isso foi o que mais valeu a pena de eu ter feito aqui dentro”. A presença do impacto emocional é a marca da aprendizagem integrada; esta, só pode ter lugar a partir da inclusão do corpo no processo, o que não significa exatamente incluir o movimento e a dança em sala de aula (apesar de ser uma possibilidade factível), pois, o corpo pode adentrar a sala de aula de formas sutis: o corpo está presente a cada vez que se atenta para a respiração, ou que simplesmente é ouvido; está presente quando se abre espaço para atividades “subversivas”, como o relaxamento e a meditação; o corpo está presente quando se toca outro corpo e quando somos tocados99; está presente quando permitimos seu movimento, seja através da yoga100, do alongamento, ou quando se incentiva sua utilização criativa através da expressão corporal e das danças circulares, que valorizam o ser sensível e multidimensional que existe em cada aluno e em cada professor, com inúmeros benefícios que integram fisiologia, psicologia e sociabilidade. Este me parece ser o momento oportuno para falar de uma estratégia de Sentipensar, especialmente criada para as crianças por esta autora, trata-se de Estorinhas para ouvir. Como o nome informa, são historinhas de 99 Sobre esse assunto é imprescindível conhecer o maravilhoso livro de Ashley Montagu TOCAR – o significado humano da pele, indicado na bibliografia. 100 Vale a pena conhecer o importante trabalho que vem sendo realizado pela R. Y. E. – Recherche de Yoga dans l’Education, na França, sob a coordenação de Micheline Flak, com extensões em toda a América Latina; no Brasil, através da Universidade Federal de Santa Catarina. Este movimento trabalha com a proposta de inserir exercícios simples de Yoga no espaço convencional da sala de aula, com resultados mais do que compensadores. Vide sites: http://rye.free.fr; www.ced.ufsc.br/yoga/cadernos.htm. 240 curta duração, narradas expressivamente para as crianças de maneira a possibilitar-lhes a aprendizagem da escuta, no caso a Escuta Musical; as histórias são sempre introduzidas por um momento de relaxamento e concentração que permite às crianças tomar contato com seu mundo interior e valorizar o silêncio. As historinhas fazem forte apelo ao imaginário e contêm sempre um momento para silenciar que faz parte da história; nele, a atenção é focalizada para a escuta da música sugerida. (Ouça anexo 6) As historinhas têm sido utilizadas por professores de música e da escola regular como uma estratégia didática diferenciada para introduzir o dia de aula. Os professores relataram inúmeros benefícios de sua aplicação: tranquilização e relaxamento das crianças, participação na história com dados do imaginário, melhoria das relações afetivas e aumento da produtividade em sala de aula. Todas estas estratégias – tão insólitas quanto prazerosas – deveriam fazer parte da formação escolar, não somente na educação infantil, mas em todos os níveis, e como é bastante lógico e coerente, deveriam fazer parte da formação do professor, tanto no que concerne à sua teorização quanto no que concerne à sua vivência prática. Chegando ao final dessas reflexões, creio ter argumentos para poder afirmar que a Escuta Musical é uma estratégia de aprendizagem integrada, ao lado de várias estratégias indutoras de estados emocionais positivos, a exemplo de relatos, textos poéticos, filmes, dramatizações, etc. Porém, leva uma vantagem sobre outras estratégias: seu acesso ao nosso cérebro límbico é direto, sua capacidade de emocionar não exige filtros conceituais. Panksepp e Bernatzky ilustram, nessa fala, o poder que a música tem de atingir nossas regiões mais íntimas (2002, p. 139): 241 (...) muitos aspectos dinâmicos da música provavelmente ganham acesso ao sistema emocional humano quase diretamente sem a necessidade de serem processados proposicionalmente. (...) Dessa forma, podemos apreciar porque muitos processos cerebrais/mentais (por ex., nossos sentimentos mais íntimos) difíceis de comunicar em meras palavras podem ser mais facilmente expressos em música. 242 Epílogo Uma “estorinha” que encerra este escrito e abre um portal para toda uma outra história... A árvore sonhadora Tatiana Clauzet 243 Estória da Estrelinha “Era uma vez um garotinho que adorava a noite porque o céu ficava cheio de estrelinhas brilhantes que cintilavam... O que ele mais queria era poder pegar uma delas e guardá-la dentro de uma caixinha para poder ver sua luz também durante o dia. Mas...o céu era muito alto, muito longe...e o menino não tinha uma nave espacial que o levasse...Por isso, um dia estava triste à janela e disse à sua mãe: - Mamãe, estou triste, não posso pegar uma estrela do céu e guardá-la nesta caixinha para ver sua luz também durante o dia...A mãe então respondeu: - Filho, você não pode pegar uma estrela do céu, mas pode ouvir sua voz, se ficar bem quietinho, fechar os olhos e prestar bastante atenção, ouça... O menino então se deitou, fechou os olhos, ficou bem tranqüilo e...ouviu a voz da estrelinha...” Entra a música e a história continua... 244 Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ALTENMÜLLER, Eckart O. How many music centres are in the brain? In: The cognitive neuroscience of music. Oxford: Oxford University Press, 2003. ARISTÓTELES. Organon. In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. ASHBY, Gregory F.; ISEN, Alice M.; TURKEN, And U. 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Witold Lutoslawsky – Jogos Venezianos – obra orquestral contemporânea, utlizando procedimentos composicionais de vanguarda, a exemplo de campos aleatórios. 7. Canto Gregoriano – Os tons da Igreja – canto monódico da igreja cristã. 8. Fernando Sardo – Bambuzais – música experimental brasileira que utiliza instrumentos construídos pelo próprio compositor. 9. Celtas...reminiscências – música para harpa celta de caráter intimista e repousante, executada por Cássia Doninho. 10. Flauta Shakuhachi (flauta de bambu) – música tradicional japonesa, utilizada em rituais Zen, a partir do século XIV. 11. Gagaku – Etenraku – gênero musical instrumental do Japão muito antigo (a partir de II d. C) 12. Ihu – Todos os Sons – coletânea com cantos de diversas tribos de índios brasileiros, pesquisados, agrupados e adaptados por Marlui Miranda. 13. Ihu – Kewere: rezar – obra que reúne cantos de pajés de tribos brasileiras e versos cristãos de José de Anchieta, acomodados numa forma musical específica – a missa – a partir de um projeto idealizado por Marlui Miranda. 14. Vivaldi&Pixinguinha – Concerto Grosso op. 3 nº 11, executado por uma formação instrumental típica do chorinho brasileiro, com arranjos lindos de Radamés Gnatalli. 15. New World Brasil – coletânea de música experimental brasileira reunindo trabalhos de vários artistas interessados na pesquisa de novos sons e músicas étnicas, a exemplo do Grupo Uakti. 16. Meu Neném – encantadoras cantigas de ninar executadas na Kalimba por Décio Gioieli. 17. Serge Folie – Kyrie ( 1ª parte da missa) – obra contemporânea com harmonia e ritmo inusitados para o gênero, cuja melodia de rara beleza é entoada por uma voz infantil. 252 ANEXO 3 - Transcrição da fita da avaliação final do curso de Metodologia do Ensino Musical II FACULDADE DE MÚSICA CARLOS GOMES - junho de 2006 Proposta avaliativa do curso: O grupo havia vivido um processo intenso de convivência e estudo das pedagogias musicais, ao longo de dois semestres. A gravação que segue abaixo foi uma forma de avaliação encontrada que pudesse abrir espaço também para o não verbal e o artístico que tantas vezes fica relegado a segundo plano, apesar da natureza artística do curso. A avaliação iniciou-se a partir da seguinte questão: Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria? Enny - Vamos organizar, se não, não dá tempo. Você se importa de começar de novo? Você falou que seria uma surpresa a cada compasso, que ela poderia ser paradoxal, não linear, pode continuar... Matheus – ela pode ser livre, ou baseada num contexto, independente da situação, ela pode ter expressividade, tanto num caráter forte como mais tranqüilo dependendo do que é proposto aqui, é uma visão bem simples, geral, né? É o que a aula me passa, o curso me passa. E também, a oportunidade de crescer. Enny - hahã... Liebe – e... a música que você mostrou pr’a gente, é uma do Murray Schafer, aquela partitura, eu acho que é...eu acho que seria ela, tá? Enny - hahã... Liebe - porque é uma partitura livre, porém um pouco assim calculada, referenciada, interessante, acho que é isso, acho que foi uma música perfeita. Enny - uma obra prima Liebe - preciso gravar... Jaques – eu li que ele fez olhando pela janela, uma paisagem, num dia de neve... Matheus – eu também poderia dizer que essa música não só a do Schafer, mas também uma que você colocou que foi do Koellreutter, acho que...vai bem também, pode entrar nesse baú aí de música. Enny - por que? Matheus – porque eu achei ela muito expressiva, né? Ela tinha assim aspectos, determinados momentos que ela era forte, extremamente forte, aí ela caía num vazio, tranqüilizava, era paradoxal mesmo, de um pólo ao outro. Enny - a estética relativista do impreciso e do paradoxal... Giba – eu queria tentar lembrar essa frase, como que é? Enny - é o nome da estética dele: estética relativista do impreciso e do paradoxal. Quem mais fala que música seria? Jaques – eu penso numa forma, eu penso na Suíte, porque eu acho que foram...prá começar eu não vejo, eu não achei que foi caótico, eu acho que foram pequenos lances mesmo encadeados, todos no mesmo tom, alguns movimentos mais acelerados, outros mais lentos, mas eu acho que a tônica do semestre se manteve, assim, teve uma coloração meio única do grupo, que eu acho que é bacana, dá um caráter de unidade. Enny - é, coesão, né? Giba – tinha que ser... pode ser uma música normal? Risos. 253 Enny - a sua música, a que você ligaria a esse semestre. Jaques – vem um Jazz, aí... (risos) Giba – vou dar uma de metido... Enny - qual? Giba – vou dar uma de metido, posso tocar uma música? Comentário geral, brincadeiras Jaques – Gostei da idéia... Giba – eu acho que é essa (e se senta ao piano) O Giba toca “Começar de novo” de Ivan Lins e esse é um momento de intensa emoção para o grupo, todos choram e ao final começam a cantar juntos as últimas frases da música. Matheus – matou giba ! Enny - matou, né? Matheus – passou um filme dentro da tua cabeça agora, né Enny? Enny - é passa...é que a gente também está conversando sobre o processo do Giba, né? e, se é isso mesmo, começar de novo... Giba – nossa, depois eu te conto... Orlando – a gente fica meio sem palavras, né? prá descrever um momento desse, eu acho fantástico isso... Matheus – esse momento foi de extrema sensibilidade, Giba, obrigado... Giba – vocês também, prá crescer tem que crescer junto não é individual. Enny - e quem mais vai dizer que música foi esse semestre? Segue-se um grande silêncio. Paulio – Enny esse curso é assim...um samba assim...a galera, pinta uma escola vai andando, o samba vai andando, todo mundo vai, eu fico ali, eu fico dançando, aí de repente eu vou lá, pego um tamborim, faço um som, aí volto, aí fico olhando, aí olho os caras assim tocando, aí vou lá, a música vai, pego um prato aí fica grande, ah!! aí volto, aí vou lá fazer um som, volto, danço, tomo uma... (muitos risos durante toda essa fala) Jaques – é isso aí, né? assim, eu me comprometo sem me comprometer, me envolvo sem me envolver...ótimo...( mais risos) Paulio – tem uma “harmona” também (harmonia mUsical) Matheus – harmona? Paulio – uma harmona rolando aí, tem que ter Matheus – sem harmona não dá cara... Paulio – toda 3ª feira de manhã...eu já venho assim, quando chego aqui, chiuuuu (faz um som de viagem) Rodrigo – prá mim foi vários tipos de música também, professora. Eu...eu senti que eu cresci e muito com o primeiro semestre e o segundo semestre de metodologia, foram várias aulas que fez com que eu desenvolvesse métodos, que eu enxergasse de outra forma, tanto é que até os meus próprios alunos sentiram muita diferença. Então, como eu estava num mundo, e...aquilo foi rompido, foi estourado, aí o que aconteceu, eu acabei, eh...usando tudo que eu aprendi aqui, principalmente com a professora que fez a gente olhar de outra forma, não vir e depositar, né? como Paulo Freire fala, “vem, deposita, é isso, tchau”, não é bem assim, então, eu acho que essa é a essência, entendeu? São várias músicas, e eu colocaria um paralelo que eu já fiz, que aconteceu da mesma forma, com banda de baile, porque você é obrigado a tocar tudo, você interpretar da sua forma, que são vários tipos de ritmo, vários tipos de música, mas um fundamento só: terminar satisfatoriamente, terminar com sucesso. Eu acho que o objetivo também é esse desde a forma de você começar até terminar com sucesso, só que é uma coisa que...terminar simbolicamente porque nunca vai terminar, é uma coisa que vai estar sempre ao nosso 254 redor, eu vou estar sempre envolvido com isso, mesmo não estando presente nas aulas, não tendo mais as aulas, vai fazer com que, já foi plantado na minha cabeça que a visão que eu preciso ter em termos da educação ou em termos de música já é outra, então eu colocaria essa aula de metodologia de ensino tanto a I quanto a II, peso maior prá mim. Foi muito legal, principalmente, o que me chamou a atenção que foi os relaxamentos, que não temos outra aula que faça relaxamento, é você buscar voce mesmo, seu interior, você não tem isso no dia a dia, e isso é muito valorizado... Orlando – eu senti muito isso também, professora, o dia quando começa com um momento como esse parece que tudo flui, né? prá que dê tudo certo, e isso é legal... Paulio – é mais fácil, o dia começa com batucada, chega com um tamborim fica treinando, aí galera !! quando é que vai começar?... Rodrigo – Cada um tem a sua interpretação mas tudo é lógica só, é exatamente isso é o crescente... Orlando – momentos assim de relaxamento de tensão, de emoção como a gente sentiu hoje... Rodrigo - são as dinâmicas... Orlando – pra mim assim foi, foi uma lição de vida mesmo, aprendi bastante, sinto que o tempo foi pouco porque é muita coisa pra gente estar lendo e correndo atrás, mas a gente já sabe onde procurar, isso é importante, embora não tenha dado tempo de ver tudo, se você quiser saber um pouco daquilo você sabe onde procurar, né? e isso é bem legal. Prá mim foi. Está sendo, né? um aprendizado muito bom. Eu ainda não consegui relacionar com uma música... Enny - e você Adriana? Eu perguntei se nosso curso fosse uma música que música seria, e é isso que o pessoal está respondendo...vai pensando. Paulio – a festa da Ivete... Adriana – eu tenho que pensar melhor prá saber que música, mas eu senti assim que as coisas que você fala, que você pega, se aplicam nessa aula, e isso é legal porque o discurso não é dissociado da prática; e isso que o Orlando falou de ter uma aula com emoção, uma aula com relaxamento, onde o corpo é integrado no ser, é não está só um intelecto aqui, não tem só um monte de cabeças pensando, essa é a avaliação final, que música que representa? Acho que fecha com chave de ouro. Prá mim foi muito legal desde a I também, principalmente pelo processo que eu estou vivendo, eu comecei a dar aula agora prá criança, uma coisa que prá mim é inédita, e... e eu comecei a caminhar – até escrevi um pouco disso no portfólio- com uma experiência que eu já tinha que foi dos registros que eu fazia no outro curso de enfermagem, que era de estar registrando sempre minha atividade, depois analisando o que tinha sido bom, e o que é que não tinha sido, e a partir daí, construindo um conhecimento e um pensamento em cima, então, por isso eu coloquei no meu portfólio que eu acho que a Madalena Freire, no primeiro semestre foi legal, eu já conhecia, não exatamente por ela, por um outro autor, mas eu, me colocando no lugar dos meus colegas, se eu estivesse aqui e eu fizesse esse caminho, eu estaria aonde eu estou, eu acho que foi um pouco o que o Mateus fala de não dar o peixe mas ensinar a pescar. Porque a gente poderia ter tido várias técnicas de...fazer pedagogia e de...mas não foi assim, foi uma coisa mais profunda, uma coisa que você não deu a receita do bolo, pronto: dois kilos de açúcar, não, mas a gente foi construindo com essas outras coisas mais profundas então o que eu tiro da minha prática é que eu comecei a fazer de novo esse registros, e depois, com essa leitura desse pedagogos, desde o Paulo Freire até os musicais mesmo que a gente trabalhou, eu fui montando, isso foi subsidiando mais ainda o meu jeito de dar aula. E está acontecendo de uma forma super legal, e tenho certeza que 255 essas duas, tanto a I quanto a II, me ajudaram a ter segurança nesse caminho e a estar construindo assim. Então, não sei se fui muito subjetiva, mas é isso que eu levei do curso. Enny - quem não é subjetivo, né? Adriana - e o portfólio foi... eu achei muito legal, eu não tinha tido essa experiência, eu estava lendo, até o Piaget fala que tudo o que a gente pensa deveria ser escrito, tanto que ele tem mais de cinqüenta livros, e o portfólio foi uma experiência assim , as coisas iam acontecendo, e, coisas que antes eu deixava passar, eu comecei a escrever a colocar nesse portfólio, e isso ia aumentando o conhecimento começava pequeno, daí a pouco ele estava gigante, aí no outro dia maior ainda, maior ainda, e...eu fiz um projeto de mestrado faz uns três anos, e eu tive dificuldade, porque o texto não saía, né? ele não corria, estava truncado e no porfólio não foi assim, foi muito tranqüilo, fácil, e aí eu comecei a pensar que se alguma vez eu quiser tentar o mestrado de novo, eu acho que foi um super exercício porque as coisas começaram a fluir, as experiências que...as coisas que a gente fazia na sala de aula, as pessoas que a gente estava estudando, estava lendo, agora os meus livros são cada vez mais rabiscados, eu estou sempre com o lápis em punho, eu durmo com o lápis do lado. Eu tenho pena porque eu cheguei atrasada em muitas aulas, eu perdi essa parte inicial, que pra mim também é fundamental, a primeira então eu acho que prá mim assim foi muito legal, eu estou saindo da faculdade este semestre e acho que isso foi o que mais valeu a pena de eu ter feito aqui dentro; na minha formação na UDESC por exemplo eu tive didática, mas foi completamente diferente, foi sobre os pensadores, desde o Dewey até vários pensadores da educação, foi bacana, foi legal, mas só que aqui foi uma coisa mais profunda, eu acho, e de buscar...buscar o nosso jeito, é isso que eu achei legal, porque até as últimas aulas foi sobre os blocos de conteúdo de cada um e eu fiquei pensando, nossa! eu acho que isso deveria ter mais tempo. Enny - é que isso é até uma outra disciplina, né? É a organização curricular, eu que fiquei com vontade de dar uma passeada nisso... Adriana – Eu achei que foi ótimo... Jaques – tem essa disciplina aqui? Enny - Tinha na Pós-graduação. Adriana – aí no início eu lembro que você perguntou se a gente preferiria estudar os pedagogos ou estudar a partir da nossa prática, né? e eu respondi que eu achava melhor fazer as duas coisas, mas passar pelos pedagogos, e aí depois quando você deu os blocos de conteúdos eu falei putz eu não sei se eu devia ter escolhido essa opção, né? Enny - as duas coisas são importantes... Adriana – são, mas aí no fim eu achei que ficou pouco tempo só prá essa parte Enny - eu acho que a faculdade, seja boa ou seja ruim, é um lugar que você passa só acendendo a luz e depois você vai procurar, é o portal entende? Quem acha que sai da faculdade e que fechou...fecha uma gestalt, com certeza. Mas abre um portal enorme, não é mais garantia do que quer que seja, a faculdade, é uma etapa, né? Matheus – eu acho que, eu estava pensando assim , em termos de música né? prá mim eu acho que uma faz muito sentido pra essa aula, uma é “brincar de viver”... Enny - quem me chamou? ( canto), você sabe tocar? Matheus – sei, tem umas outras duas músicas que eu acho que, eu acho, né? fazem parte do curso, que é “Canção da América” e “Coração de estudante” Paulio – são as mesmas de todo ano... Matheus – é não tem...não tem como, né? sempre vem a lembrança, o que a gente está passando hoje, o que a gente está colhendo de informação, e...tudo que você passou prá gente, você plantou em cada um de nós alguma coisa, e eu acho interessante é que cada um 256 de nós está saindo daqui com uma visão diferente, cada um com o seu pensamento, com a sua forma de ver, eu acho que mais ou menos seria por aí... Matheus se senta ao piano, toca e canta “Coração de estudante”, com a ajuda de outros colegas no canto, numa espécie de diálogo. Esse é outro momento cheio de emoção. Matheus – é isso aí... Todos aplaudem. Enny - só falta você, Flávio, dizer que música é essa, que música é essa dessa aula... Flávio – foi uma surpresa assim, eu... Enny - não precisa ser uma música que existe... Flávio – eu não sei o que pensar, assim...não assim é que essa aula prá mim foi assim, como é que fala, chocante, né? a gente vem de várias aulas que a gente vai assistindo e ela é completamente diferente, o resto é mais sério assim no sentido de...aula mesmo, isso não parece aula, parece um convívio assim, a gente vai aprendendo, eu percebo assim que no começo a classe, no começo assim, a gente é mais preso, e tudo... e depois vai soltando, tanto assim – até escrevi no portfólio – em relação à improvisação o que eu percebi, que no começo todo mundo começa mais assim preso e depois vai se soltando e vai saindo muita coisa legal, assim, a gente vai vendo, vai conversando; eu acho que ainda estou na fase assim de descobrir muita coisa, mas assim abriu minha cabeça, vai caminhando assim, o jeito que a aula rola é muito diferente de tudo que eu já tinha tido, assim, e...é legal porque a gente fica mais solto, né? aberto, e saem coisas bonitas, não tem na faculdade... não sei...mas uma música assim prá essa aula, eu não sei o que é que podia ser... Enny - eu proponho que voces façam agora essa música, vamos abrir o armário? Prá mim é uma colagem, e eu estou pensando numa específica que eu vi no...não consigo lembrar esse nome, um compositor francês que veio dar um curso na UNESP sobre a música pós 1945, e ele trouxe uma música que era uma colagem, Beethoven colado com música eletroacústica, claro que tinha critérios pra fazer isso, né? mas era uma riqueza enorme de informação, de cruzamentos, de misturas, de individualidades, identidades que se misturavam, épocas diferentes que se juntavam... Jaques – bem o século XX, né? Enny - é, uma idéia assim de riqueza muito grande, de diversidade e da possibilidade de tudo isso estar junto, prá mim seria essa colagem, e essa colagem inspirada, inspirada por tudo que há de mais humano, não é isso? Como é que a gente vai educar os outros sem tocar na dimensão humana, é isso que me preocupa na formação de professores; como é que nós vamos mexer na cabeça dos outros sem mexer com a nossa cabeça? Essa é a questão. Sirvam-se crianças ! (de instrumentos do armário), eu não vou falar nada dessa composição, mas me coloco à disposição prá participar. Segue-se um murmúrio geral, todos escolhendo seus instrumentos. Enny - a idéia é a gente fazer uma música... Giba – pode ser qualquer coisa? Pode ser colagem? Enny - pode ser qualquer coisa, pode ser colagem... Murmúrio geral – colagem..colagem... A música, ou melhor, o aquecimento para ela começa no piano e outros vão se agregando...inclusive vozes, instrumentos de plaquetas e diversas percussões. Enny - a música já começou? Paulio – já tá rolando... Enny - toda música precisa ter... precisa partir de uma idéia, o Schafer para fazer “Snowforms” partiu da observação da paisagem, e...você pode partir de uma fórmula matemática... 257 Paulio – a gente já tem já, é a aula, e agora vai rolar, som-diversão... Enny - é a última coisa que eu falo, não vou mais interferir. Matheus – acho que a gente tem que começar, assim por exemplo, uma idéia... Paulio – tem que rolar, tem que rolar, natural, natural... Matheus – a gente tem que sentir o som, prá gente sentir o som, a gente tem que fazer silêncio... Enny - é o seguinte, vamos tirar o verbal da jogada, ninguém mais fala, e abre as percepções para ver o que é que está acontecendo com o som, e antes de começar, tem que fazer um silêncio, de olho fechado, alguém vai quebrar esse silêncio tocando alguma coisas e a partir daí, a música vai se construindo. Mas espera, não tenham medo de curtir um pouco esse silêncio. Fechem os olhos... Segue-se menos de um minuto de silêncio, a música começa rarefeita e pontilhista, predominando percussões e aos poucos outros instrumentos e vozes vão se agregando.A música acontece durante aproximadamente 20 minutos com momentos de agregação e desagregação sonora, ilustrando pontos de bifurcação conduzindo a resultados inesperados; momentos poéticos, momentos sensuais, momentos diáfanos, sutileza e violência. Ao final alguém grita “quebra tudo” e outros entram no mesmo refrão, a música cresce torna-se criativamente caótica e termina com grande euforia gerada no grupo. Todos – aplausos, risos e murmúrio geral Giba – a gente acabou se empolgando acima...muito bom Enny - é música supratemática. Segue-se comentário geral sobre os detalhes práticos da improvisação. Enny - eh... vocês já falaram um pouco, mas sabe o que eu queria, que a gente voltasse na questão da estratégia inicial dessa aula, dessas escutas que a gente faz, que vocês comentassem um pouquinho o significado disso, que é que vocês sentiram fazendo isso, e que importância vocês acham que isso tem. Vocês já falaram mas eu só estou reforçando. Eu queria que vocês comentassem a estratégia inicial da aula, da escuta musical, o que é que isso traz, o que é que agrega, ou não, pode ser? Matheus – a escuta traz uma liberdade total prá você ouvir, ter a percepção de tudo o que está à tua volta e criar em cima disso, uma outra percepção, um outro mundo, uma outra forma de ver, quando Giba dá esse “quebra tudo” e a gente saiu quebrando pau mesmo, descendo o braço, acho que fica na cara assim notório a expressão do que eu quero dizer agora, né? que é uma outra percepção, você tem a liberdade total, com teu corpo, com a tua mente, você pode viajar, esse é o sentido principal, viajar através do teu interior, do teu pensamento, através do que está à tua volta mesmo, transcender, acho que essa é a palavra certa, transcender. Liebe - prá mim que tive uma experiência anterior a essa, numa faculdade onde a chibata entrava nas aulas, essa experiência de ter chegado aqui e começar a aula ouvindo música, prá mi foi assim como sair do inferno mesmo e ir pro céu mesmo, sabe? ir pro lugar onde eu procurava, eu queria música, e lá as pessoas não fazem música elas se preocupam com técnica demais, a música mesmo fica esquecida, então começar ouvindo sensibiliza muito prá todo o resto, sabe? prá todo o trabalho que se pretende fazer. É isso. Enny - a palavra é livre. Que é que vocês acharam, falem mais, cada um podia falar um pouquinho... Giba – esse lance da escuta você abre um pouco mais a tua cabeça, né? Enny - influencia o que vem depois? Existe uma concordância geral, em vários comentários que se perdem. Flávio – você deixa a mente aberta quando a gente faz aquele relaxamento ouvindo música, parece que você se desliga de lá de fora... 258 Giba – a gente não está acostumado a ouvir música dessa forma, a gente ouve no carro, ouvir música está muito abandonado, né? escutar música... Adriana – eu acho que o relaxamento nessa aula ajuda porque a gente ouve, mas despido de qualquer coisa assim, entregue, o que não acontece muitas vezes, a gente ouve música mas não se entrega totalmente, e aí prá fazer o que a gente fez aqui é preciso isso, prá fazer esse quebra tudo, você se entregar, esse tipo de coisa é essencial; eu acho que toda aula da faculdade deveria ser assim, porque é o que o Flávio falou, toda aula é aula tradicional, você pega senta e começa a escrever e a ler, e tudo isso não... é engraçado, eu pensei assim, eu vou acabar o semestre, vou sair da faculdade, e o que eu quero fazer? O que eu quero fazer é uma coisa que estou com muita saudade de fazer, eu quero fazer arte, eu pensei assim...porque é incrível, eu estou na faculdade de música e eu estou envolvida com isso, mas eu não sinto que estou fazendo arte, eu sinto que a minha cabeça está sempre pensando e tal, mas eu não estou vivendo, eu não estou assim, eu não estou no meio dessa...de realmente fazer arte, de estar me sentindo viva, estar me sentindo com essa coisa mágica que a arte traz. E aí eu pensei, eu estou precisando disso assim nesse momento, eu estou precisando disso, e aí o que a gente fez aqui, é...eu acho que fluiu e é a primeira vez que aconteceu isso esse semestre, não sei se mais alguém teve essa experiência aqui dentro da faculdade. Mas eu acho que a aula num curso de música deveria ser assim, não deveria ser aula... a maior parte pelo menos é assim, é sentar, escrever, olhar pro quadro... Enny - é o paradigma vigente, né? Adriana – e aí como que a gente vai ensinar? Vamos passar a mesma coisa que a gente está vivendo, a gente vai passar o estudo assim... Matheus – você sabe qual é a solução que eu vejo para o problema, Enny? Dá todas as aulas da faculdade... Risos. Enny - é preciso que as pessoas desejem mudar o paradigma...aí muda... Matheus – mas é fantástico, Giba – depende da gente... Enny - por isso que eu faço isso, na esperança de que vocês saiam daqui quebrando tudo... Um dos alunos pega um rádio, os outros começam a fazer brincadeiras e isso flui por um minuto ou dois. Liebe - uma coisa eu acho muito importante pra gente: é que apesar de nós não termos exatamente aquilo que nós quereríamos, que seria o ideal, eu acho que é muito importante que a gente faça com o que a gente tem, seja pouco ou muito, sabe? E que nunca vai ser ideal, nunca vai ser exatamente aquilo que a gente pensa, mas essas coisas todas servem para que a gente busque, quanto menos propício for o ambiente, mais coragem a gente precisa ter, eu acho que tem isso assim, usar o pouco que tem, não é tudo como deveria ser, mas o pouco que a gente teve foi pra mim assim ,muito, muito importante, e eu acho que vou fazer uso disso, muito assim, muito mesmo, eu me sinto muito privilegiada aqui. Jaques – eu acho que também nessa parte da gente não saber aproveitar o pouco que tem...também eu acho que uma dose cavalar de aula reflexiva causaria um efeito contrário, porque esse tipo de trabalho é um trabalho que mexe muito, imagina então se todas as disciplinas fossem trabalhadas nesse molde. Tem, disciplina que é informativa mesmo, né? uma série de informações que foram agregadas ao longo da história e que você precisa assimilar até porque prá depois você refletir a respeito, né? eu acho que a disciplina cumpre bem o papel assim, de ser uma disciplina reflexiva no meio de várias que são só informativas, e nem acho que poderiam mesmo ser todas reflexivas, porque eu acho que ia dar um nó na cabeça de muita gente, e eu acho que acabava que podia ter um efeito não 259 muito...porque a reflexão ela é muito parecida com lava de vulcão, né? eventualmente acontecem algumas erupções que deixam uns e outros desnorteados. Adriana – mas isso é preciso, é muito necessário... Jaques – voce já pensou se todas as aulas começam com essa erupção? É preciso uma estrutura psicológica absurda prá administrar isso. Adriana – mas ela se formaria já... Jaques – não acho, em algumas universidades em que existe atendimento psicológico para os alunos, eu acho que esse tipo de coisa tem fundamento, mas numa faculdade assim que não tem toda essa infra-estrutura, o que acontece? O que acontece é que a grande maioria dos alunos não suporta e sai, e você sendo pé no chão, uma faculdade dessas precisa de alunos prá sobreviver. Adriana – mas depende da forma como é conduzido, aqui, não é só reflexiva é informativa, olha quanta coisa a gente... Jaques – não, sim, mas depende não é todo professor que tem essa habilidade, é, esse é o fazer também da Enny, um professor que não tenha esse tipo de fazer, se ele entra nessas sem saber lidar com isso, porque você está lidando com...e aí você pode provocar uma catástrofe maior, querendo ou não, a Enny trabalhou uma linha quase psicoterapêutica, então você precisa de ter um feeling assim prá sacar com que estrutura você está mexendo que não é todo mundo que tem. Adriana – mas porque que não tem? Jaques – porque depende de uma formação humana... Adriana – é óbvio... mas que a gente não foi educado prá isso, porque desde O início que entrou na escola, as aulas são desse jeito como é até o final da faculdade. Jaques – não, eu não acho que toda disciplina tem que ser assim, eu não penso isso, a Enny falou uma vez uma coisa prá mim que eu gravei na minha cabeça porque eu achei bacana, a gente estava falando sobre educação de criança, e eu falei que prá mim cantar com criança é muito complicado, é difícil porque elas tem que aprender a transposição de oitava, apesar que elas aprendem, mas é difícil... aí eu lembro que você falou assim mas porque você vai gastar tempo fazendo uma coisa que você não faz tão bem se você pode fazer aquilo que você faz tão bem? É muito sofrimento você investir numa coisa que você não faz tão bem, se você pode investir bastante no que você faz bem. E isso me gravou porque eu acho que assim como a gente tem que respeitar as nossas habilidades, a gente precisa respeitar as habilidades dos nossos professores, eles são limitados, então se o professor tem essa limitação, não adianta você querer que ele, sabe? Adriana – não, do nada ele não vai partir, do zero... Jaques – mas ele não vai partir nunca, às vezes ele sofre uma limitação, eu Não posso chamar de limitação, mas, às vezes ele é bom em certas coisas mas não é bom em outras, então assim eu tenho que ter humildade de me inserir, aí sim eu acho que essa coisa de aprender a refletir mesmo que a aula não tenha essa conotação reflexiva, eu acho que é importante, mas a gente tem que ter o maior cuidado de não avaliar um professor em função da metodologia que ele traz. Adriana – não, mas se você pensa que o professor que desempenha ele teve uma escola prá chegar onde ele está certo? E essa escola é o que predomina... Jaques – não concordo, Adriana, porque fica parecendo que o professor é só fruto da formação que ele recebeu, ele é fruto de tudo que ele interagiu com a vida e tem certas 260 coisas que ele é mais hábil mesmo. Por exemplo, tem certos professores de Piano que têm uma puta habilidade de pegar um aluno com problemas de técnica e botar dedo na mão do aluno, o aluno desenvolve uma técnica fantástica, e, tem outros que desenvolvem nele uma capacidade de improvisação fantástica, então assim, eu acho que não adianta...eu considero quase impossível um professor que tenha todas as habilidades, eu pelo menos, eu olho assim, eu acho que eu tenho que catar, eu tenho que aprender a aprender do professor, eu tenho que com esse professor mesmo se ele é fraco prá caramba. Enny - e eu tenho que aprender a aprender do aluno. Eu faço isso, esse curso de didática sempre foi muito... conflitivo prá mim. Giba – mas Enny, há quanto tempo você dá aula? São coisas novas, você sempre está inovando...né? o professor a cada ano inova, mas tem gente que é mais lento mesmo. Enny - é mas no começo, eu mesma ficava refletindo, eu não tenho vontade de fazer a aula de didática como ela foi concebida prá ser, você estar discutindo programa de curso, programa de aula, estratégia de ensino, né? eu não tenho vontade, eu sempre caio prá filosofia da educação, prá outras áreas, de tal maneira que às vezes dá a impressão que realmente eu não estou fazendo nada... Giba – não... Risos. Giba – sabe uma cena que...bom é final de curso né? não é que a gente vai, nós vamos continuar falando com você, te enchendo o saco mesmo, né? vamos lá te encher o saco, pelo menos. Mas uma cena assim que eu sempre falo prá todo mundo, foi uma vez que você... no final do semestre, colocou aquele CD do Paulo Freire, aí ele estava falando da ditadura e você chorou prá cacete, acho que isso foi, isso prá mim foi f... Enny - é incrível aquele disco eu ouço mil vezes... Giba – puta aquela cena, aquilo lá quando entrou na revolução você chorou feito criança, na minha cabeça eu pensei, realmente, pode estar tudo ruim ou tudo bom, mas o elemento, prá gente é um elemento, né? (corte na gravação, infelizmente) 261 ANEXO 4 - Respostas ao questionário semi-estruturado 1. Transcorrido quase um ano do final da disciplina Metodologia do Ensino Musical ministrada na Faculdade de Música Carlos Gomes, que lembrança marcante você conserva dessa experiência? Matheus Entendo que as discussões, as idéias que eram trocadas, o quanto pudemos conhecer as propostas de nossos colegas como desenvolver uma aula, bem como seus projetos, e também o fato deste curso ter nos proporcionado a chance de nos avaliar também como profissionais. Liebe A lembrança mais marcante é realmente o clima propício para se pensar em música e em educação musical, gerado a partir da escuta. Jaques Durante uma aula de exploração de sons do entorno da escola uma experiência me marcou de forma especial. O prédio ao lado da Faculdade forma um grande paredão de reverberação. Durante a aula, passou um helicóptero sobre a escola e alguns de nós foram pegos pela ilusão de serem dois helicópteros por causa da reverberação do prédio. Essa experiência me intrigou e me levou a estudar as técnicas de microfonação e gravação stereo (2 canais de áudio) e surround (em geral 5 canais de áudio) onde a busca pela recriação do espaço sonoro é levada bastante a sério. Posteriormente, ouvi um compositor de música eletroacústica falar sobre o seu interesse na composição como o espaço e no espaço. Desde essa experiência tenho atentado para o comportamento de microfones, ambientes e sistemas de sonorização em relação aos tempos de reverberação. Giba Vou enumerá-las: 1)Conhecer os educadores musicais contemporâneos e vivenciar seus métodos de ensino. 2) O modo como a Prof. Enny conduziu o curso e sua grande humanidade em relação aos fatos do cotidiano, partilhando alegria, dúvidas e tristezas com seus educandos. 3) Através deste curso consegui um melhor auto-conhecimento e ampliar minha paisagem sonora.4) A liberdade de colocar minhas idéias e experiências musicais e partilhar com meus colegas de classe a vivência de cada um.5) A emoção da ultima aula ficará guardada na minha lembrança. Rodrigo A primeira lembrança são as músicas que ouvíamos no início das aulas; os diálogos realizados em círculos, discutindo assuntos com os amigos de classe e o professor. Depois, conhecer os principais educadores e pedagogos musicais que não conhecia antes. As aulas de improvisação com os instrumentos pedagógicos, podendo expressar os próprios sentimentos, e aprendendo a explorar os sons dos mesmos. Adriana Muitas. Lembro que íamos para a aula com vontade de estudar e não por que ficaríamos sem nota. Foi gostoso participar deste grupo e ver os colegas crescendo junto, construindo 262 o conhecimento e com a ajuda da professora, fazendo relações da teoria com a prática. Gostei da bibliografia escolhida, especialmente Paulo Freire, Koellreutter e Schafer. Achei importante a professora ter apresentado pensadores importantes para a educação, mesmo fora da área musical. 2. Normalmente, as aulas se iniciavam com uma estratégia especial, envolvendo a escuta musical. Você sente que essa abertura da aula pudesse ter influência sobre as atividades subseqüentes? Que tipo de influência? Matheus Acredito piamente nesta possibilidade, pois a escuta musical a que éramos submetidos era uma forma de concentração e, ao mesmo tempo, de entrega para que pudéssemos usufruir o máximo de conteúdo possível, o que resultava em aulas mais dinâmicas e conseqüentemente mais proveitosas. Liebe Como eu já havia relatado na ocasião em gravamos a finalização do curso, tive uma experiência de aprendizagem que me marcara muito e de maneira bastante negativa, então quando experimentei uma aula que buscava a sensibilização antes de tratar dos conteúdos, pude referenciar-me a cerca da influência positiva que é possível exercer no aprendizado, dependendo da forma que estes conteúdos são abordados. Jaques Os períodos de audição e relaxamento foram importantíssimos para sintonizar o grupo e permitiram um assentamento e focalização das energias. Era nítido que mesmo os que chegavam depois de iniciado o processo e ficavam assentados fora da roda se sentiam magnetizados pela experiência. O grupo seguia a aula mais tranqüilo, centrado e receptivo à experiência de ouvir os colegas. Giba A escuta musical permite maior concentração para as atividades seguintes. Tem que haver MUSICA em qualquer assunto envolvendo música. O clima e o ambiente ficam mais leves e prontos para qualquer atividade musical. Falar de música sem MUSICA transforma seres humanos em repetidores de livros e não em pessoas ativas e seres pensantes. Importante destacar: SOM-NOTAS-MUSICAS-SERES HUMANOS. Rodrigo Acredito que sim. Pelo fato do ser humano conseguir se encontrar novamente consigo mesmo, pois estamos vivendo num mundo onde precisamos sobreviver, alcançar objetivos e realizar-se, de modo geral, e quando nos encontramos com o nosso interior, descobrimos que existe uma paz interna que não há lá fora. Acredito que a escuta musical influencia nas atitudes, comportamentos e idéias do ser humano, de crianças a idosos. Adriana Certamente. Esta foi uma maneira de sensibilizar e preparar os alunos para a aula. Esta estratégia ajudou o grupo a se constituir enquanto tal deixando os colegas a vontade para 263 se colocarem e exporem seu processo de aprendizagem sem constrangimento. Nesta partilha, todos contribuíram para o crescimento do grupo. 3. Você deve se lembrar que ao final do curso, fizemos uma avaliação do mesmo a partir da seguinte questão: “Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria?”, a resposta resultou numa bela improvisação musical do grupo. Caso tiver vontade de deixar algum tipo de registro escrito sobre a experiência vivida no curso, utilize o espaço que segue abaixo. Muito obrigada por sua participação. Matheus O resultado daquela improvisação veio para confirmar a total integração do grupo naquele momento. Entendo que nesta atividade estávamos completamente “ nus”, digo no sentido de não nos preocuparmos com a opinião alheia, aquela sala era como uma outra dimensão, onde éramos inalcançáveis diante de uma energia intensa, tanto que ao final da aula algumas pessoas eu lembro que comentaram sobre o calor que estava no ambiente. Em suma, foi “Fantástico”. Liebe A experiência vivida naquela ocasião, tem para mim o significado de uma porta aberta ao infinito. Obrigada, Liebe Jaques Senso de momentos. Momento para silenciar, para tocar, para variar, para manter, para sobrepor, pra "subpor". A ligação sonora com vários indivíduos e a comunicação feita numa esfera onde a racionalidade ficava subjugada pelas sensações. Essa forma de comunicação direta com vários ao mesmo tempo (praticamente contrapontística) é irreprodutível pela linguagem verbal. Giba No meu caso, foi um recomeço da minha vida pessoal e profissional. Toquei naquele momento a música Começar de Novo do compositor Ivan Lins atendendo o meu falar interno e em seguida todos nós, alunos e professor, fizemos o som único, através do nosso corpo e voz. Espero que a música e o ensino musical sigam esse caminho e que todos nós possamos quebrar e criar novos paradigmas. QUEBRAR TUDO é CONSTRUIR TUDO. Obrigado Enny. Rodrigo A improvisação foi uma experiencia muito importante no meu dia a dia, tanto para lecionar como para a produção em estúdios. Lecionando, aprendi a ouvir mais meus alunos, suas idéias, suas interpretações, suas expressões, diante do instrumento que ensino, mesmo sendo às vezes, incorretas, mas com o objetivo de ouvi-lo e senti-lo tentando captar as suas formas de conduzir acompanhamentos e solos, coisa que antes não acontecia. Produzindo, deixei um pouco de lado os solos que eu escrevia antes para os músicos interpretarem, atualmente, escrevo a cifra e peço para o músico contratado, colocar sua expressão e sua interpretação diante do que ele está ouvindo e sentindo... em todas as vezes, deu certo. Agradeço, por tudo que você me ensinou, passou, mostrou, improvisou, confortou, olhou e formou. 264 Beijos... Rodrigo Sperandio Adriana Neste momento vi a teoria inserida na prática, pois muito do que estudamos em sala se refletiu nesta composição. Conceitos, idéias dos pedagogos e o próprio conhecimento construído pelo grupo. Os instrumentos convencionais e não convencionais foram bem explorados além de terem sido utilizados de forma criativa, personalizada, com liberdade. Também diria que praticamos algo pré figurativo, onde a improvisação partiu de uma idéia e foi se constituindo de forma aberta, livre. A música foi surgindo naquele momento presente e a partir das idéias de cada elemento que iam sendo lançadas e complementadas se formou uma grande teia, algo único dentro da diversidade que cada colega trazia. Fizemos uma improvisação coletiva realmente interessante. ANEXO 5 - Letras de músicas Brincar de Viver Guilherme Arantes Quem me chamou Quem vai querer voltar pro ninho Redescobrir o seu lugar Pra retornar E enfrentar o dia a dia Reaprender a sonhar Você verá que é mesmo assim Que a estória não tem fim Continua sempre Que você responde sim A sua imaginação A arte de sorrir Cada vez que o mundo diz não Você verá Que a emoção começa agora Agora é brincar de viver Não esquecer Ninguém é o centro do universo Assim é maior o prazer... Você verá... E eu desejo amar A todos que eu cruzar Pelo meu caminho Como sou feliz Eu quero ver feliz Quem andar comigo Vem... Canção da América Milton Nascimento Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração Assim falava a canção Que na América ouvi Mas quem cantava chorou Ao ver seu amigo partir Mas quem ficou No pensamento voou Com seu canto que o outro lembrou E quem voou No pensamento ficou Com a lembrança que o outro trancou Amigo é coisa pra se guardar No lado esquerdo do peito Mesmo que o tempo e a Distância digam não Mesmo esquecendo a canção O que importa é ouvir A voz que vem do coração Pois seja o que vier Venha o que vier Qualquer dia amigo eu volto Pra te encontrar Qualquer dia amigo A gente vai se encontrar 265 Começar de novo Ivan Lins e Victor Martins Coração de Estudante Milton Nascimento Começar de novo e contar comigo Vai valer a pena ter amanhecido Ter me rebelado, ter me debatido Ter me machucado, ter sobrevivido Ter virado a mesa, ter me conhecido Ter virado o barco, ter me socorrido Começar de novo e contar comigo Vai valer a pena ter amanhecido Quero falar de uma coisa, Adivinha onde ela anda? Deve estar dentro do peito Ou caminha pelo ar Sem as suas garras sempre tão seguras Sem o teu fantasma, sem tua moldura Sem suas escoras, sem o teu domínio Sem tuas esporas, sem o teu fascínio Começar de novo e contar comigo Vai valer a pena já ter te esquecido Começar de novo Pode estar aqui do lado Bem mais perto que pensamos A folha da juventude É o nome certo desse amor Já podaram seus momentos Desviaram seu destino Seu sorriso de menino Quantas vezes se escondeu Mas renova-se a esperança Nova aurora a cada dia E há que se cuidar do broto Pra que a vida nos dê flor e fruto Coração de estudante E há que se cuidar da vida E há que se cuidar do mundo Tomar conta da amizade Alegria e muito sonho Espalhados no caminho Verdes: plantas e sentimento Folhas, coração, juventude e fé 266 ANEXO 6 – Historinha para ouvir: “Estória da Estrelinha” (Áudio) Autoria; Enny Parejo Música: Antonio Ribeiro Pianista: Maria Elisa Risarto ANEXO 7 – Carta da Transdisciplinaridade Preâmbulo Considerando que a proliferação atual das disciplinas acadêmicas conduz a um crescimento exponencial do saber que torna impossível qualquer olhar global do ser humano; Considerando que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão planetária dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e ao desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie; Considerando que a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante que obedece apenas à lógica assustadora da eficácia pela eficácia; Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas conseqüências sobre o plano individual e social são incalculáveis; Considerando que o crescimento do saber, sem precedentes na história, aumenta a desigualdade entre seus detentores e os que são desprovidos dele, engendrando assim desigualdades crescentes no seio dos povos e entre as nações do planeta; Considerando simultaneamente que todos os desafios enunciados possuem sua contrapartida de esperança e que o crescimento extraordinário do saber pode conduzir a uma mutação comparável à evolução dos humanóides à espécie humana; Considerando o que precede, os participantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (Convento de Arrábida, Portugal 2 - 7 de novembro de 1994) adotaram o presente Protocolo entendido como um conjunto de princípios fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, constituindo um contrato moral que todo signatário deste Protocolo faz consigo mesmo, sem qualquer pressão jurídica e institucional. Artigo 1: Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dissolvê-lo nas estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar. 267 Artigo 2: O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da transdisciplinaridade. Artigo 3: A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa. Artigo 4: O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta por um novo olhar, sobre a relatividade definição e das noções de ““definição”e "objetividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e o absolutismo da objetividade comportando a exclusão do sujeito levam ao empobrecimento”. Artigo 5: A visão transdisciplinar está resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências exatas por seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências humanas mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual. Artigo 6: Com a relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade é multidimensional. Levando em conta as concepções do tempo e da história, a transdisciplinaridade não exclui a existência de um horizonte trans-histórico. Artigo 7: A transdisciplinaridade não constitui uma nova religião, uma nova filosofia, uma nova metafísica ou uma ciência das ciências. Artigo 8: A dignidade do ser humano é também de ordem cósmica e planetária. O surgimento do ser humano sobre a Terra é uma das etapas da história do Universo. O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de habitante da Terra, é ao mesmo tempo um ser transnacional. O reconhecimento pelo direito internacional de um pertencer duplo - a uma nação e à Terra - constitui uma das metas da pesquisa transdisciplinar. 268 Artigo 9: A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta com respeito aos mitos, às religiões e àqueles que os respeitam em um espírito transdisciplinar. Artigo 10: Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. O movimento transdisciplinar é em si transcultural. Artigo 11: Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos. Artigo 12: A elaboração de uma economia transdisciplinar é fundada sobre o postulado de que a economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso. Artigo 13: A ética transdisciplinar recusa toda atitude que recusa o diálogo e a discussão, seja qual for sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica. O saber compartilhado deverá conduzir a uma compreensão compartilhada baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos pela vida comum sobre uma única e mesma Terra. Artigo 14: Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a barreira às possíveis distorções. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às idéias e verdades contrárias às nossas. Artigo final: A presente Carta Transdisciplinar foi adotada pelos participantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, que visam apenas à autoridade de seu trabalho e de sua atividade. Segundo os processos a serem definidos de acordo com os espíritos transdisciplinares de todos os países, o Protocolo permanecerá aberto à assinatura de todo ser humano interessado em medidas progressistas de ordem nacional, internacional para aplicação de seus artigos na vida. Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994 Comitê de Redação Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu. 269 ANEXO 8 – Partitura gráfica e Pentagrama Modelo de Improvisação – DIRECIONALIDADE 1 2 3 4 5 agudo 6 7 8 = som de curta duração 9 10 11 grave (representação dos sons numa partitura gráfica, a linha pontilhada que une os sons evita confusões na hora de ler os signos) Pentagrama (representação dos mesmos sons no pentagrama) direção da leitura 13 médio 12