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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia André Luís Pinheiro Schaustz O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose Rio de Janeiro 2001 André Luís Pinheiro Schaustz O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clìnica em Psicanálise. Orientadora: Prof.a Dra. Sonia Alberti Rio de Janeiro 2001 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A A ficha catalográfica deve ser preparada pela equipe da Biblioteca e fica pronta em 48 horas úteis. Ela deverá ser inserida neste local e não deve ser contada para fins de paginação. Na versão impressa, deverá constar no verso da folha de rosto. Formatar a fonte conforme o modelo escolhido para todo o trabalho (Arial ou Times New Roman) A ficha desta máscara foi inserida através do recurso de selecionar, copiar e colar especial como documento do Word (objeto). É possível editá-la dando dois cliques em cima da ficha com o botão esquerdo do mouse. Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ________________________________ Assinatura ____________________________ Data André Luís Pinheiro Schaustz O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clìnica em Psicanálise Aprovada em 17 de outubro de 2001. Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof.ª Dra. Sonia Alberti (Orientadora) Institituto de Psicologia da UERJ _____________________________________________ Prof. Dr. Luciano Elia Instituto de Psicologia da UERJ _____________________________________________ Prof. Drª. Ana Cristina Figueiredo Instituto de Psiquiatria da UFRJ Rio de Janeiro 2001 DEDICATÓRIA Aos meus pais, Jeremias e Laurides in memorian. A meu irmão e meus sobrinhos, Luís Fernando in memorian, Rafael e Marcella. E, especialmente, à minha mulher e ao meu filho,Iara e Eduardo. AGRADECIMENTOS À Professora Sônia Alberti, pelo desejo em orientar essa pesquisa desde a primeira entrevista. Ao Professor Luciano Elia, pelas intervenções em momentos cruciais desse percurso. Aos demais professores e colegas do Mestrado, pelas boas discussões em um clima amigável. Aos integrantes do “388”, pela respeitosa acolhida em minha viagem ao Québec. Aos colegas e, principalmente, aos pacientes do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, pela confiança em meu trabalho. À Escola Letra Freudiana, particularmente ao Grupo de Trabalho em Psicose, pela interlocução privilegiada a respeito da psicose. A Ângela Cristina da Silva, pela revisão desse texto. RESUMO SCHAUSTZ, André. O lugar do delírio na direção do tratamento da psicose. 2001. 129f. Dissertação (Mestrado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Esta dissertação se propõe a circunscrever o lugar do delírio na direção de tratamento da psicose, na medida em que ele ocupa uma posição de destaque na estrutura clínica da psicose. Correlacionamos as concepções teóricas da psiquiatria clássica, de Freud, de Lacan e de Apollon a respeito do delírio. E também os respectivos desdobramentos dessas abordagens na intervenção clínica. Interrogamos, mais amiúde, a proposta de Apollon referente à desmontagem do delírio articulada à produção de um fantasma na psicose. Por fim, cotejamos dois casos clínicos sustentados por Cantin e Bergeron – ambas psicanalistas do “388”, uma instituição no Québec que trabalha a partir da proposta de Apollon –, com um caso clínico de nossa experiência no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói. Palavras-chave: Psicanálise. Psicose. Delírio. Direção do tratamento. RÉSUMÉ Cette thèse se propose de cerner la place du délire dans la direction de la cure de la psychose, dans la mesure où il occupe une position d’importance dans cette structure clinique. Nous établissons une corrélation entre les conceptions théoriques de la psychiatrie classique et celles de Freud, de Lacan et d’Apollon, en ce qui concerne le délire, ainsi que les répercussions de ces approches sur l’intervention clinique. Nous interrogeons plus particulièrement la proposition d´Apollon au sujet du démontage du délire, articulé à la production d’un fantasme dans la psychose. Finalement, nous comparons deux cas cliniques soutenus par Cantin et Bergeron – toutes deux psychanalystes du “388”, une institution québecoise qui travaille à partir de la proposition d’Apollon – à un cas clinique que nous suivons à l’hôpital psychiatrique de Jurujuba, Niterói. Mots-clés: Psychanalyse. Psychose. Délire. Direction de La cure. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................... 8 1 FREUD............................................................................................................ 13 1.1 O delírio na tradição psiquiátrica.................................................................. 13 1.2 O delírio segundo Freud................................................................................. 21 1.3 Perspectivas da produção freudiana a respeito da psicose............................ 32 2 LACAN .......................................................................................................... 40 2.1 O diálogo de Lacan com a psiquiatria a propósito do delírio ..................... 40 2.2 O diálogo de Lacan com Freud a respeito do delírio ................................... 43 2.3 Alguns aspectos da obra mais tardia de Lacan ............................................ 52 3 A QUESTÃO DO DELÍRIO NA EXPERIÊNCIA TEÓRICO-CLÍNICA DO GIFRIC ................................................................................................... 60 3.1 O Centro psicanalítico para jovens psicóticos: uma breve apresentação .... 60 3.2 O Lugar do Delírio na Produção Teórico-Clínica do GIFRIC .................... 61 3.3 A Direção de Tratamento da Psicose no “388” ........................................... 67 3.3.1 Primeiro tempo lógico: reconstrução da história subjetiva do psicótico ............ 71 3.3.2 Segundo tempo lógico: a reconstituição da imagem corporal ............................ 76 3.3.3 O terceiro tempo lógico: a produção do fantasma ............................................. 79 3.3.4 O quarto tempo lógico: o desejo no laço social ................................................ 86 4 CASOS CLÍNICOS ....................................................................................... 89 4.1 O caso Phillip ................................................................................................. 90 4.2 O caso André .................................................................................................. 101 4.3 O Caso “Serquequerser” ............................................................................... 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 122 REFERÊNCIAS ............................................................................................. 124 9 Gradiva, em que ele esboça uma distinção interessante entre delírios histérico e psicótico; e concluiremos o segundo item do primeiro capítulo apoiando-nos no texto freudiano a respeito do juiz-presidente Schreber. A concepção teórica sustentada por Freud revoluciona o saber, especialmente o psiquiátrico, que considerava até então o delírio somente como uma alteração patológica ao nível das representações. Ele subverte essa definição de Kraepelin, por exemplo, ao apregoar que o delírio é uma tentativa de cura já posterior a um momento silencioso de ruptura com a realidade. Como podemos encontrar, por exemplo, em seu texto Neurose e Psicose de 1924, em que afirma que “o delírio se apresenta como um remendo colocado no lugar donde originalmente se produziu um rasgo no vínculo do eu com o mundo exterior” (Freud, 1924a, p.157). Assim, Freud, na citação acima, está reforçando a sua original concepção a respeito da capacidade de cura que a própria atividade delirante oferece ao psicótico, como ressaltara em seu texto de 1911 sobre o presidente Schreber quando escrevera que a formação delirante, na realidade, não é patológica em si, mas uma tentativa de reconstrução. Freud também surpreende em um outro texto escrito em 1924, intitulado “A perda da realidade na neurose e na psicose”, ao acrescentar que a perda da realidade não é exclusividade da psicose, apresentando-se também na neurose, como já indica o próprio título do artigo. E propõe nesse texto que tão importante quanto a perda da realidade é a questão relativa ao substituto para esta realidade indesejada tanto na neurose como na psicose, havendo, portanto, não só uma diferença entre essas estruturas no que tange ao processo de perda da realidade, mas também quanto ao tipo de reconstrução que esta induz em ambas as clínicas, embora o manancial de significantes do qual se nutrem para se afugentarem da realidade exterior indesejada provenha do “mundo da fantasia” (Freud, 1924b). Nesse sentido, esses últimos aspectos recolhidos da trajetória de Freud, incluídos no terceiro item de nosso primeiro capítulo, abrem a perspectiva de uma articulação entre o delírio e a fantasia, como abordaremos também nos capítulos dois e três, referentes a Lacan e a Apollon, respectivamente. No segundo capítulo, enfocaremos a contribuição de Lacan a respeito da psicose, na medida em que a sua obra representa um avanço incontestável do projeto freudiano nos mais diversos temas da psicanálise. Então, no primeiro item do segundo capítulo, faremos algumas observações a propósito das contribuições da psiquiatria clássica ao ensino de Lacan no que 10 tange à psicose – especialmente Neisser, Séglas, Clérambault –, assim como as divergências presentes nesse diálogo fecundo que ele travou com a psiquiatria – principalmente, com as posições de Kraepelin e Jaspers. No segundo item do capítulo dois, retomaremos o diálogo de Lacan com a produção freudiana a respeito do delírio, detendo-nos, principalmente, em seu ensino do final da década de cinqüenta – Seminário III (As psicoses), A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose –, no qual, após um percurso não-linear, cunhou a expressão “metáfora delirante” como indicação teórico-clínica para a estabilização da psicose. Tal direção repercute até hoje, entre muitos lacanianos, como a principal direção no tratamento da psicose. Dessa forma, percorreremos brevemente as posições de alguns desses autores lacanianos – Caligaris, Silvestre, Soler, Laurent –, que corroboram a indicação inicial de Lacan em relação à construção da metáfora delirante como paradigma de cura para a psicose. No último item do segundo capítulo, esboçaremos uma leitura mais transversal da obra de Lacan para melhor enfocarmos vários aspectos trabalhados por Lacan no seu ensino mais tardio como, por exemplo, a estrutura, o sujeito, a fantasia, o enlaçamento borromeano dos três registros – real, simbólico, imaginário. Enfim, apesar de mantermos a distinção fundamental entre as três principais posições subjetivas – neurose, psicose e perversão –, valorizaremos, no entanto, nesse último item, alguns pontos em comum a respeito da questão do sujeito e da fantasia nas clínicas da neurose e da psicose, a partir da leitura que Neuza Santos realizou da obra de Lacan. Com isso, permitiremos uma interlocução mais interessante com as propostas de Apollon, abordadas no terceiro capítulo. No terceiro capítulo, o primeiro item consistirá em uma pequena apresentação do “388” – Centro psicanalítico para jovens psicóticos –, no qual, a articulação de algumas modalidades de trabalho – como as equipes de tratamento (formadas por um interveniente clínico, um psiquiatra, um assistente social e o próprio usuário), os ateliês de criação, as reuniões clínicas semanais – facilita a sustentação de uma psicanálise com o psicótico daquela instituição. Ao longo do segundo item do capítulo três, abordaremos a concepção que Apollon desenvolve a respeito do delírio, em interlocução com os membros do GIFRIC,2 a partir da experiência clínica acumulada por eles em praticamente duas décadas de existência do “388”. 2 Grupo Interdisciplinar Freudiano de Pesquisa e de Intervenções Clínicas. 11 Portanto, enfocaremos a leitura realizada por Apollon das obras de Freud e Lacan no que tange à psicose, levando-se em conta o seu estilo particular de leitura que valoriza muito o aporte antropológico. Apollon sustenta que o delírio apresenta-se na estrutura psicótica com a função de realizar uma “missão”. O psicótico, por se encontrar desprovido da amarração que o Nomedo-Pai confere ao sujeito para poder compartilhar dos mesmos mitos fundantes da ordem simbólica, impõe-se a “missão” de fundar uma “nova ordem” de representações para prosseguir em sua existência. No entanto, na hipótese de Apollon, a solução delirante, de modo geral, impede que o sujeito estabeleça laço social, em decorrência da foraclusão do Nome-do-Pai (Apollon, 1990). No último item do capítulo, problematizaremos a direção de cura alternativa que Apollon propõe à clínica da psicose. Ele sugere quatro etapas lógicas que se desdobram ao longo da análise de um psicótico para que haja o resgate do “desejo do sujeito” nas trocas que caracterizam o laço social. Nesse sentido, questionaremos a tese principal de Apollon que afirma, como o eixo principal do tratamento psicanalítico do psicótico – a desmontagem do delírio e a produção de um fantasma na psicose –, na medida em que o delírio consiste no trabalho espontâneo da psicose. Os quatro momentos lógicos do tratamento analítico sustentado com psicóticos no “388” – (re)construção da história subjetiva, reconstituição da imagem corporal, construção do fantasma e restauração do desejo no laço social –, geram alguns momentos críticos, a ponto de Apollon assinalar em sua teorização a respeito da prática clínica desenvolvida no “388” que crises psicóticas fazem parte do tratamento, como, por exemplo, a “crise de inscrição” – quando o sujeito se engaja no laço transferencial (Apollon, 1999). Então, no terceiro capítulo, interrogaremos sobre alguns aspectos das propostas de Apollon, como, por exemplo, a questão a respeito da construção do fantasma na psicose. Assinalamos previamente que a nossa dissertação não terá como ponto central a questão a respeito da construção do fantasma na psicose, na medida em que privilegiaremos, principalmente, o lugar do delírio na direção de cura da psicose. No quarto e último capítulo de nossa dissertação, apresentaremos três recortes clínicos de sujeitos psicóticos que permitirão uma melhor articulação com os tópicos teóricos – especialmente, a questão do delírio – abordados nos três capítulos anteriores do texto – Psiquiatria clássica, Freud, Lacan e Apollon. 12 Os dois primeiros casos clínicos foram acompanhados pelas psicanalistas Lucie Cantin e Danielle Bergeron no “388”, e publicados no livro Traiter la psychose. O terceiro caso clínico que trabalharemos nesse capítulo, baseia-se na escuta analítica de um psicótico que acompanhamos no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói. Portanto, faremos um cotejamento entre as duas experiências clínicas – a canadense e a brasileira –, apesar das enormes diferenças sócio-cultural e institucional que distinguem os contextos. Lucie Cantin e Danielle Bergeron, ao abordarem as direções de tratamento de Phillip e André – como, respectivamente, nomearam os sujeitos em questão –, nos apresentaram claramente o estilo de intervenção analítica que segue bem de perto os pressupostos teóricos sustentados pelo GIFRIC. Dessa forma, o real da clínica nos permitirá interrogar a respeito de alguns pontos que balizam a práxis desenvolvida no “388”. Por fim, apresentaremos o caso Serquequerser – um psicótico em surto que acompanhamos no HPJ –, que nos permitiu articular também, a partir de sua produção delirante, as contribuições de Freud, Lacan e Apollon a respeito de questões muito importantes no que tange à clínica da psicose, como, por exemplo, a relação entre o delírio e a verdade. 13 1 FREUD 1.1 O delírio na tradição psiquiátrica Ao longo da história moderna, pelo menos do Ocidente, há uma superposição entre o delirante e o louco; ocorrendo, no senso comum, praticamente uma sinonímia entre o ato delirante e a própria loucura. A tradição psiquiátrica, instaurada no final do século XVIII, tributária da inclusão da medicina no campo da ciência, não é menos confrontada por essa problemática que se impõe na construção de sua clínica, pois talvez seja o delírio o tema mais relevante e complexo para o saber psiquiátrico, sendo fonte de grande debate entre os autores especialmente das duas grandes escolas da psiquiatria clássica, a alemã e a francesa. Então, para podermos extrair a definição de delírio que a psiquiatria propõe, privilegiaremos em nossa pesquisa um breve recenseamento histórico através das duas escolas dominantes. Inicialmente, reportar-nos-emos à entidade clínica paranóia – uma construção teórica da escola alemã, cujo sintoma central é o delírio – considerada por Freud (1908) , em correspondência com Jung, “um bom tipo clínico” em contraposição à demência precoce que reputava um mau termo nosográfico. Analisaremos, também, a contribuição da escola francesa através do delírio crônico de Magnan, que culminará na psicose alucinatória crônica de Ballet. Na psiquiatria clínica alemã, há um desenrolar teórico que vai da conceituação de Verrücktheit à paranóia. Na obra de Emil Kraepelin, tem-se a síntese de praticamente todo o esforço de quase um século da escola alemã, com a proposição do conceito de paranóia da seguinte forma: “desenvolvimento insidioso sob a dependência de causas internas e segundo uma evolução contínua de um sistema delirante durável e impossível de abalar que se instaura com uma conservação completa da clareza e da ordem do pensamento, da vontade e da ação” (Kraepelin apud Cacho, 1991, p.19). Em 1818, Heinroth propõe o termo Verrücktheit, “desordem intelectual” para retomar a antiga significação de loucura, termo que o Corpus Hipocraticum designava pela palavra 14 “para-noia”, que em grego tem a seguinte acepção: para – contra, em oposição a –; e noos – espírito (Cacho, 1991). Em 1845, na obra de Griesinger, a paranóia emerge como termo e como categoria, tratando-se de uma afecção considerada primitiva, isto é, não dependendo de causas exteriores e também não dependendo de uma enfermidade anterior. Em 1861, Kalhbaum retoma esse termo num marco kantiano, no qual se distinguem as afecções que envolvem os afetos, as afecções que envolvem a vontade e, por último, aquelas que afetam o entendimento e o juízo. A paranóia, nesta tripartição, refere-se ao último tipo de afecção (Miller, 1985). Em 1862, Hoffmann utiliza o termo Verrücktheit para definir um tipo de doença mental que se desenvolve a partir de alucinações sensoriais, podendo conceber o nascimento de um sistema delirante organizado, classificado conforme a paixão dominante: melancólico, exaltado, instintivo e alucinatório (Cacho, 1991). Em 1865, Snell modifica a concepção de seu contemporâneo, Hoffmann, ao sugerir que, ao lado das formas melancólica e exaltada, haveria uma Verrücktheit primária, cujo delírio primitivo organizado, não secundário a transtornos afetivos, era composto por temas de perseguição e de grandeza (Cacho, 1991). Em 1878, Westphal sublinha um traço específico do delírio organizado e estabelece uma classificação da loucura sistemática (Verrücktheit) que, assim, se subdivide em quatro formas: 1. Hipocondríaca – queixas hipocondríacas associadas a transtornos de sensibilidade geral formam o substrato do delírio de perseguição sucessivo; 2. Crônica – o delírio de perseguição não é precedido por idéias hipocondríacas, mas, haverá, em sua evolução, a presença de idéias de grandeza; 3. Aguda – caracterizada por alucinações súbitas, idéias de perseguição, sem apresentar um caráter sistemático; 4. Original – sistematização de ideação persecutória em indivíduos herdeiros de degenerescência, desenvolvimento organo-psíquico defeituoso (Cacho, 1991). Em 1879, Krafft-Ebing separa a forma aguda da loucura sistematizada e designa pelo termo paranóia uma síndrome delirante que corresponde à Verrücktheit. Os principais sintomas da síndrome são idéias delirantes sistematizadas que organizam um verdadeiro “edifício delirante”, fruto de um funcionamento lógico mesmo que as premissas sejam falsas (Cacho, 1991). 16 Todavia, em torno da questão a respeito do mecanismo fundamental da paranóia, há um importante debate que já se inicia, em fins do século XIX, entre Kraepelin – mestre da escola de Munique – e outros autores de sua época, como, por exemplo, Clemens Neisser. Debate que atravessa também a obra de Jaspers no início do século XIX e se desdobra em Lacan tanto em sua tese de medicina, de 1932, como em seu Seminário sobre as psicoses, em 1955-56 (Sauvagnat, 1988). Em 1892, Clemens Neisser, em um artigo intitulado Discussões sobre a paranóia questiona-se sobre qual o processo que determina o delírio e, apoiado apenas em observações clínicas de casos os mais unívocos possíveis de delírio de perseguição, propõe o termo krankhafte Eigenbeziehung para localizar o mecanismo gerador da paranóia. Citemos Neisser: “esses pacientes sem o querer nem o saber, em estados sem afeto, agarram as representações que se apresentam em suas consciências como estando em relação particular com sua própria pessoa” (Neisser apud Sauvagnat, 1988, p.22). Portanto, o sujeito apreende aleatoriamente determinadas representações que irrompem em sua consciência, aprisionando-o ao relacioná-las a sua própria pessoa. A principal acepção da palavra alemã Eigenbeziehung indica uma referência a “si próprio”. Esse mecanismo é considerado por Neisser o sintoma primário da paranóia por falsificar a percepção sensorial assim como a reprodução das representações, tornando-se, por esse fato, a fonte do curso de pensamentos formalmente corretos e lógicos. Entretanto, esses pensamentos são freqüentemente sutis, mas falsos e delirantes do ponto de vista do conteúdo, representando o sistema delirante propriamente dito (Sauvagnat, 1988). Assim, o ponto de partida que caracteriza a Eigenbeziehung congregaria o sentido último de toda uma série de sintomas da paranóia como a hipocondria; o mal-estar corporal; as agitações mais ou menos desordenadas, alternadas com momentos de abatimento; e as próprias alucinações, assim como o próprio sistema delirante é considerado em si mesmo secundário e variável. Como abordaremos no capítulo seguinte, Lacan, em sua tese de medicina (1932), ao buscar também um fenômeno elementar na origem da interpretação paranóica retoma a importância do fenômeno da Eigenbeziehung descrito por alguns clínicos alemães (Neisser, Tiling, Heilbronner) e traduz esse termo por “significação pessoal” (Sauvagnat, 1988). Então, a partir dessa apropriação teórico-clínica a respeito do mecanismo fundamental da paranóia, Lacan unifica sob o termo de “significação pessoal” os quatro tipos de fenômenos 17 elementares que observa no caso Aimée: estados oniróides, incompletude, interpretação, ilusões da memória (Sauvagnat, 1988). Essa apropriação terá um alcance muito importante na obra de Lacan, tanto em seu Seminário intitulado As Psicoses – quando relaciona que na psicose alguma coisa se apresenta como uma significação que visa o sujeito – como em seu escrito De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. Lacan considera a significação enigmática como um efeito da língua fundamental de Schreber, por exemplo, ou seja, a significação é efeito da cadeia significante, sendo a certeza psicótica diretamente proporcional ao vazio enigmático que se apresenta no lugar da falta de significação, sendo esta decorrente da foraclusão do significante Nome-do-Pai. Mas Kraepelin, por sua vez, considerava relativa a importância desse fenômeno da “significação pessoal” como o mecanismo fundamental da paranóia, na medida em que preconizava um desenvolvimento insidioso para a paranóia e não um processo que subvertesse completa e bruscamente a vida psíquica do paciente. Será Jaspers quem mais fortemente se oporá à concepção kraepeliniana ao apontar, justamente, como principais critérios para construir a sua psicopatologia compreensiva das afecções mentais, os conceitos de desenvolvimento e de processo. Em 1913, Jaspers, em seu livro Psicopatologia Geral, faz uma distinção entre “idéias delirantes” (Wahn Ideen) e “idéias deliriformes” (Wahnhaften Ideen). As primeiras representam um fenômeno primário (Urphanomen) irredutível a si mesmo, para as quais não se encontram antecedentes psicológicos, ou seja, as idéias delirantes se apresentam como uma coisa última intransponível (Letzheit). Já as idéias deliriformes são psicologicamente compreensíveis devido a manifestações de estados afetivos e até mesmo a obnubilações da consciência (Leme Lopes, 1982). Primeiramente, Jaspers define o delírio como “um juízo patologicamente falseado”, reconhecido através de três critérios: extraordinária convicção que equivale a uma certeza subjetiva incomparável; impossibilidade de sua modificação pela experiência e impossibilidade de conteúdo. Posteriormente, Jaspers considerará a idéia delirante um erro global do psiquismo e não mais, exclusivamente, uma fraqueza de julgamento. Então, a idéia delirante será teorizada como o resultado de uma alteração global do psiquismo do enfermo, uma “necessidade de delírio”, na expressão de Jaspers (Leme Lopes, 1982). 18 Jaspers classificava as vivências delirantes em percepções e representações delirantes. A percepção delirante caracteriza-se por uma percepção seguida imediatamente por um significado que comporta um sentimento de estranheza, o humor delirante. A representação delirante como “novas colorações ou interpretações para as lembranças da vida pregressa ou uma súbita idéia espontânea” (Einfall), a idéia espontânea já surge portadora de um significado especial (Lemes Lopes, 1982, p.12). Embora haja na percepção delirante um estímulo externo e a representação delirante nasça da própria vida psíquica, na realidade, nas d 19 ao contrapor-se, em parte, à nosologia kraepeliniana e ao reagrupar as formas mais organizadas de delírios crônicos como “psicose alucinatória crônica”, em 1911 (1987). No entanto, nos últimos anos do século XIX, Séglas consagrou-se ao descrever uma segunda forma de “delírio crônico alucinatório sistematizado” cuja característica principal não era a apresentação de alucinações acústico-verbais no quadro clínico, mas o predomínio de alucinações que nomeou como motrizes, em que a palavra se emancipa da boca do paciente. E estas alucinações motoras estariam na base de um delírio de perseguição particular, o “delírio de possessão”, mais tarde rebatizado como “delírio de influência”, no qual o sujeito se sente habitado psiquicamente (1987). Assim, a escola francesa, na passagem do século XIX para o XX, apresenta, através da construção do conceito de “psicose alucinatória crônica”, uma resposta à nosologia de Kraepelin, que se tornara mundialmente hegemônica a partir de 1899 ao dividir o campo das psicoses em três grandes grupos: os estados agudos resolutivos (“loucura maníacodepressiva”); os delírios crônicos não-alucinatórios (“paranóia”) e a “demência precoce” (futura esquizofrenia bleuleriana), esta última consistindo no reagrupamento dos delírios crônicos alucinatórios (ex-paranóias fantásticas) com o grupo da hebefreno-catatonia. Ballet fundamenta psicopatologicamente a descrição da “psicose alucinatória crônica” apoiando-se em trabalhos como os de Cotard, aluno de Séglas, que põem em evidência observações clínicas caracterizadas por estados alucinatórios crônicos sem delírio. Observações essas que descrevem uma síndrome alucinatória primária antecedente ao delírio, este considerado uma superestrutura explicativa tardia. Assim, Ballet opta pela análise de Séglas e de seus discípulos, que priorizaram uma síndrome alucinatória na base do delírio em detrimento da concepção de Magnan, que privilegiava justamente o contrário, ou seja, a alucinação ocorreria posteriormente ao delírio persecutório (1987). Dessa forma, a escola francesa diferencia-se da escola alemã através da “psicose alucinatória crônica”, embora mantenha a “paranóia” kraepeliniana e uma “demência precoce” em uma concepção mais restrita em sua nosografia. Os franceses criticaram a extensão da desintegração psíquica que estaria na base da demência precoce, assim como o próprio critério de demenciação, aspecto bastante ressaltado por Kraepelin ao privilegiar uma evolução terminal nessas afecções mentais. Contudo, em 1913, quando Ballet finaliza a descrição da “psicose alucinatória crônica”, Bleuler já havia publicado, em 1911, a sua monografia a respeito do grupo das 20 “esquizofrenias”, começando a suplantar com esse conceito a própria “demência precoce” de Kraepelin em termos de difusão mundial. Portanto, na realidade, os franceses praticamente responderam, através da “psicose alucinatória crônica”, tanto à consagrada obra kraepeliniana como à promissora proposta de Bleuler. A partir de 1920, a obra de Gaëtan Gatian de Clérambault vai coroar, através da “síndrome do automatismo mental” e de suas intervenções junto à “psicose alucinatória crônica”, a produção clássica da psiquiatria francesa nesse debate com os autores alemães a respeito das psicoses. Clérambault ocupou uma posição muito peculiar em seu tempo, pois, ainda que contemporâneo da passagem da psiquiatria clássica para a moderna - devido à revolução freudiana, que, por intermédio de Jung, ecoou na corrente psicodinâmica de Bleuler e também à introdução da fenomenologia por Jaspers na pesquisa em psicopatologia - permaneceu arraigado à psiquiatria clássica como seu último representante. Clérambult investigou ao longo de sua obra a causa primeira da psicose, nomeada por ele como o mecanismo gerador da psicose. E, para realizar tal tarefa, apoiou-se inicialmente em estudos a respeito dos delírios coletivos, chegando a distinguir o delírio da psicose propriamente dita. A sua definição de delírio consiste em reportá-lo ao conjunto dos temas ideicos e sentimentos anexos, “um produto intelectual sobreacrescido”, longe de ser a psicose. Esta se relaciona ao “fundo material” - histológico, fisiológico - que se expressa psiquicamente através dos fenômenos elementares, tais como “emancipação do pensamento abstrato, intuições abstratas, parada do pensamento abstrato, ideorréia, esvaziamento do pensamento”, que são sucedidos pelas alucinações auditivas, psicomotoras e o próprio delírio (Clérambault, 1987, p. 79). O delírio para Clérambault apresenta-se como um “Romance”, tentativa de explicação consciente do efeito dos fenômenos elementares que em si não trilham uma ideação consciente em sua gênese, portanto, não sendo, assim, investigáveis em termos psicológicos. Desse modo, notamos que não há uma teoria homogênea a respeito do delírio em psiquiatria que produza conseqüentemente uma definição única sobre o tema. Observamos também que a psicanálise parte do edifício nosológico da psiquiatria, principalmente em relação à definição de paranóia sintetizada por Kraepelin. Entretanto, a obra de Freud subverte 21 profundamente o conceito de delírio subjacente à concepção psiquiátrica alemã, como veremos no próximo item deste capítulo. O ensino de Lacan mantém também um extenso diálogo com a psiquiatria clássica Kraepelin, Séglas, Clérambault -, entretanto, opera importantes modificações a respeito da paranóia e do delírio. Contudo, observamos que Lacan enriqueceu a sua teorização a respeito da psicose a partir, por exemplo, da proposta de “significação pessoal” (Eigenbeziehung) de Neisser, assim como da contribuição de Clérambault a respeito dos “fenômenos elementares” que irrompem na psicose, como veremos no próximo capítulo. Entretanto, não podemos deixar de ressaltar que há uma profunda diferença entre as duas disciplinas – psiquiatria e psicanálise –, na medida em que o inconsciente e o significante é que sobressaem na teoria psicanalítica, enquanto a psiquiatria se reporta à consciência e ao significado. Contudo, o rigor da observação clínica da psiquiatria clássica permitiu a preparação do terreno para uma abordagem estrutural dos fenômenos psíquicos que vem sendo desenvolvida pela psicanálise. 1.2 O delírio segundo Freud A questão da clínica da psicose perpassa toda a obra de Freud, desde sua correspondência com Fliess – no início de sua original criação – até seus últimos textos no exílio londrino. Portanto, a produção freudiana a respeito da psicose é vasta, inovadora, multifacetada, embora, inconclusa a respeito, principalmente, do processo gerador da psicose. Freud, no período anterior ao da escritura de Interpretação dos Sonhos (1900), detevese em elaborar uma “teoria da defesa” que possibilitasse uma melhor intervenção clínica assim como teórica através da definição de defesa. Esta era considerada, então, a operação necessária para se diminuir ou até mesmo eliminar qualquer modificação que pusesse em risco a economia psíquica do sujeito. Mas, a partir de 1900, o recalque é que se constitui na principal defesa, ocupando, portanto, uma posição angular no edifício psicanalítico. Em 1894, Freud, em seu artigo As Neuropsicoses de Defesa, agrupou a histeria, a neurose obsessiva e a paranóia como tendo em comum a produção de uma defesa (Abwehr) 22 por parte do eu ante uma representação inconciliável de caráter sexual, tese já esboçada no Rascunho K na correspondência com Fliess. Inicialmente, tanto a histeria como a neurose obsessiva têm em comum a modificação da representação sexual intensa em uma representação débil qualquer, na medida em que é impossível para o eu tratá-la como “non-arrivée” (não-acontecida), porque já ocorrera sua inscrição mnêmica com o afeto correspondente. Assim, na histeria, a defesa desencadeada pelo eu produz o divórcio entre a representação e a soma de excitação que a acompanha, embora esse quantum de excitação se transponha ao corporal, caracterizando o que Freud denomina “conversão histérica” (1894). Na neurose obsessiva, o afeto permanece no âmbito do psíquico por não haver o escoadouro para o componente somático, entretanto, ao se encontrar liberado da representação intolerável adere a outras representações inconciliáveis em si mesmas, mas que, a partir de então, em virtude dessa sobrecarga energética, transformam-se em representações obsessivas (1894). Em relação à paranóia, Freud propõe “uma modalidade defensiva muito mais enérgica e exitosa, na qual o eu rejeita (verwerfen) a representação insuportável junto com seu afeto e se comporta como se a representação nunca houvera comparecido” (1894, p.59). Portanto, como exemplifica Freud nesse texto, através do quadro clínico da confusão alucinatória, o sujeito que logra tal defesa é conduzido à psicose. Segundo Freud, a rejeição da representação insuportável pelo eu na psicose escapa tanto à autopercepção do enfermo quanto à análise psicológico-clínica, e como esta representação está ligada de maneira inseparável a um fragmento da realidade objetiva, este processo produz como resultante o desatamento total ou parcial da realidade (Realität). Em 1896, Freud publica um novo artigo, intitulado Novas Observações sobre as Neuropsicoses de Defesa – que, de certa forma, é um desdobramento das teses do texto supracitado – reafirmando que a paranóia é, como a histeria e as representações obsessivas, uma neuropsicose de defesa proveniente do recalque de recordações penosas. Os sintomas dessas três enfermidades são determinados em sua forma pelo conteúdo do recalcado, entretanto, essas entidades clínicas diferenciam-se pela modalidade como o recalque incide sobre a representação indesejável. Na histeria, o recalque se daria através da “conversão” à inervação somática, enquanto na neurose obsessiva, por “substituição” da representação intolerável ao longo de certas redes 23 associativas. Em relação à paranóia, Freud descreve minuciosamente nesse texto, no intuito de uma melhor distinção estrutural, um caso clínico para propor algumas nuances a respeito do modo particular como o recalque ocorre na psicose (1896). Esse caso clínico relatado por Freud é entremeado por uma riqueza de alucinações visuais e auditivas – embora não apresentasse nenhum delírio – a ponto de ele afirmar que a paciente ou lhe escondera as “formações delirantes” que serviriam para “interpretar as alucinações” ou ainda não as tinha produzido. Dessa maneira, podemos perceber um dos aspectos da concepção de Freud a respeito do delírio ao enfatizá-lo como a função de interpretar as alucinações (1896). Mas, ainda, não é nesse aspecto que a psicanálise demonstra a sua originalidade em relação à psiquiatria, na medida em que a questão a respeito da anterioridade do delírio ou da alucinação já era debatida entre os psiquiatras, como citado no item precedente desse capítulo. Freud ousa mais ao relacionar as alucinações da paciente à sua revolucionária conceituação a respeito da formação do sintoma. Ele considera vivazes as alucinações visuais por não serem outra coisa que fragmentos do conteúdo das vivências infantis recalcadas, ou seja, sintomas do retorno do recalcado. E quanto às vozes alucinadas, Freud afirma que não poderiam ser imagens ou sensações reproduzidas por via alucinatória, mas, sim, “pensamentos ditos em voz alta”, oriundos do recalque de alguns pensamentos de reprovação na ocasião de uma vivência análoga ao trauma infantil, embora sofram também o efeito da desfiguração como todo retorno do recalcado. Freud propõe também uma comparação entre a neurose obsessiva e a paranóia. Ambas, inicialmente, partem do recalque de uma vivência sexual infantil, assim como formam sintomas decorrentes de uma defesa primária e secundária. No entanto, na paranóia, os sintomas que brotam da defesa primária são os delírios de desconfiança, a antipatia, a perseguição dos outros; enquanto na obsessão, a reprovação inicial é recalcada pela formação do sintoma defensivo primário: a desconfiança de si mesmo. Assim, na neurose obsessiva é lícita a reprovação a 24 o paranóico desconfia dos outros, sendo desfalcado, por isso, de uma proteção contra as reprovações que retornam como idéias delirantes (1896). Freud observa também que, na paranóia, há produção de sintomas de defesa secundária, como na obsessão, ou seja, as idéias delirantes que chegam à consciência em virtude da solução de compromisso entre as forças recalcadoras e as recalcadas imprimem uma demanda de trabalho ao eu para adaptar-se a essas neoformações psíquicas que são os delírios. Portanto, o delírio de interpretação desemboca numa alteração do próprio eu no transcorrer da paranóia. Então, Freud, neste momento de sua trajetória, ou seja, anterior à delimitação do recalque propriamente dito, debruça-se sobre as “neuroses de defesa”, atingindo um duplo objetivo. Em primeiro lugar, estipula a defesa como se encontrando universalmente nas principais patologias analisadas, ou seja, responde à questão etiológica das psiconeuroses (histeria, neurose obsessiva e paranóia). Em segundo lugar, a partir do próprio processo defensivo, descreve as diversas manifestações clínicas, permitindo, inclusive, delimitar novos mecanismos na particularidade de cada afecção (conv 25 Norbert Hanold, o protagonista da obra de Jensen, nomeou a figura feminina representada no baixo-relevo como Gradiva (“a jovem que avança”) e entregando-se a suas fantasias, estas se ampliam a tal ponto que se constituem em um delírio, passando a influenciar inclusive as suas ações, conforme nos aponta Freud em seu texto (1907, p.13). Por isso, Hanold se lança a buscar nas cinzas petrificadas da Pompéia atual algum traço das pegadas de Gradiva, mas dentro do sublime propósito de uma “missão científica”. Nesta empreitada, o protagonista é interpelado por uma jovem alemã que também se encontrava em viagem ao sul da Itália acompanhando seu pai, um eminente professor de Zoologia da mesma cidade universitária na qual Hanold morava. Portanto, eram vizinhos na Alemanha, mas Hanold, transtornado por seu delírio, não os reconhecia. Na verdade, mais do que simples vizinhos, durante a sua infância, ele havia tido um contato muito próximo e bastante amoroso com Zoe Bertgang, mas que esquecera por completo na vida adulta por se recusar firmemente a qualquer aproximação com o amor. Nas ruínas de Pompéia, Hanold, em sua busca desesperada por algum contato com Gradiva, acaba por encontrá-la, o que se dá sempre ao meio-dia, quando esta retorna de sua eterna morada. Na realidade, Zoe é quem encarna Gradiva nos diálogos com Hanold. E, a partir dessa estratégia de Zoe, Hanold elaborou associações entre dois sonhos produzidos por ele, assim como uma articulação com o próprio delírio. Neste ponto, Freud nos indica uma direção para se abordar o delírio: “o tratamento sério de um estado patológico real dessa índole não poderia fazer outra coisa que se situar no começo no terreno do edifício delirante e então explorá-lo da maneira mais exaustiva possível” (1907, p.19). Portanto, a partir das “intervenções” de Zoe, revela-se algo do material recalcado que se encontra na própria origem do delírio de Hanold, na medida em que Gradiva era o substituto de Bertgang, sendo possível acompanhar isso até na própria significação deste sobrenome: Bert – brilho – e gang – andar. Desvelando-se assim o amor pela menina Zoe Bertgang que cativou Hanold em sua infância (1907). O baixo-relevo antigo reacende em Hanold o erotismo adormecido em suas recordações da infância, porque Zoe também possuía o mesmo andar peculiar retratado pela escultura. Devido à censura, essas recordações some 26 Então, a partir de sua leitura do texto de Jensen, Freud ressalta alguns pontos importantes a respeito de sua posição diante do delírio, da fantasia e dos sonhos. Inicialmente, Freud afirma que o delírio “pertence àquele grupo de estados patológicos que não corresponde a uma ingerência imediata sobre o corporal, senão que só se expressam mediante indícios anímicos”, ou seja, é apenas da ordem do pensamento. E relaciona também o delírio à fantasia de uma forma inequívoca ao singularizá-lo “pelo fato de que nele umas ‘fantasias’ alcançaram o governo supremo, vale dizer, ganharam crença e cobraram influxo sobre a ação” (1907, p.38). Dessa forma, Freud considera que fantasias precursoras se encontrariam subjacentes à própria formação delirante, sendo aquelas substituições de recordações recalcadas devido à censura (1907). Portanto, neste momento da obra freudiana, o delírio ganha um estatuto muito próximo a uma formação do inconsciente, como também podemos observar na conexão que estabelece – “sonho e delírio provêm da mesma fonte: o recalcado” (1907, p.52). Assim, podemos constatar, através da seguinte citação, como Freud articula as fantasias ao delírio: “o determinismo inconsciente somente poderá conseguir aquilo que ao mesmo tempo satisfaça ao determinismo científico consciente. Os sintomas do delírio – tanto fantasias como ações – são resultados de um compromisso entre as correntes anímicas, e em um compromisso se leva em conta as demandas de cada uma das partes” (1907, p.44). Contudo, a questão a respeito do delírio nesse texto de Freud se complica um pouco mais porque afirma, em uma pequena nota de rodapé, que o delírio de Hanold teria que ser designado como histérico e não paranóico, por não haver nenhum indício de paranóia (1907). Jean-Claude Maleval, em sua obra Loucuras histéricas e psicoses dissociativas, busca justamente resgatar a categoria nosográfica de loucura histérica, por também considerar o delírio histérico como uma formação do inconsciente, ou seja, como um retorno do recalcado. Levando-o a propor, inclusive, uma distinção entre o delírio histérico – efeito do retorno do recalcado – e o delírio das psicoses – efeito da foraclusão do Nome-do-Pai – já baseado na formulação de Lacan. Assim, busca perpetuar a categoria de loucura histérica que caíra em desuso nas nosografias ao longo do século XX, inclusive para a própria psicanálise (Maleval, 1996). Entretanto, mesmo havendo essa indicação de que o delírio de Hanold seja histérico, o importante são as pertinentes observações de Freud a respeito do delírio de uma maneira 27 geral. Parecendo-nos, inclusive, que vários desses aspectos serão retomados pelo GIFRIC, como veremos no terceiro capítulo. E, para encerrar essa pequena incursão por esse texto de Freud, ressaltamos a questão da crença que o sujeito deposita em seu delírio, a ponto de amá-lo como a si mesmo: “Se o enfermo crê com tanta firmeza em seu delírio, isso não se produz por um transtorno de sua capacidade de julgar nem se deve ao que há de errôneo em seu delírio. Antes o contrário, em todo delírio se esconde um granito de verdade; há nele algo que realmente merecia crença, e essa é a fonte da convicção do enfermo, que portanto está justificada nessa medida” (1907, p.67). Portanto, Freud, em sua concepção a respeito do delírio, desloca a questão da falha na capacidade de julgar que o delirante apresentaria, como nos aponta toda tradição psiquiátrica. A obra de Kraepelin, por exemplo, define o falseamento do juízo como o pilar de toda construção delirante com sua conseqüente crença inabalável. Entretanto, a posição de Freud se dirige muito mais para a questão da verdade que estaria em jogo no próprio cerne do delírio do que para a questão do juízo. Como retorno do recalcado ou do foracluído – conforme se trata de um delírio na histeria ou na paranóia, respectivamente –, o que importa é o que se torna presente no delírio, ou seja, algo da ordem da verdade para o sujeito. Em 1911, Freud persevera em seu estilo ao abordar a psicose a partir da tessitura de um texto publicado. Neste momento, explora o livro autobiográfico do magistrado alemão Daniel-Paul Schreber, Memórias de um doente dos nervos, produzindo, então, o primeiro grande texto da tradição psicanalítica a respeito da psicose: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Dementia paranoides) descrito autobiograficamente. Schreber, em seu livro, não só escreveu sobre o processo de construção de seu delírio paranóico, o que lhe proporcionou sustentar-se de certa forma no laço social, como também conquistou, a partir deste escrito, a suspensão da custódia que lhe pesava no asilo psiquiátrico, já que se encontrava internado há oito anos. E Freud, ao fazer de um livro de memórias de um psicótico um caso clínico – o caso Schreber, como é comumente designado – introduz no relato desta experiência justamente a posição do sujeito em jogo na psicose. E para tal, segundo Cabas, Freud parte de duas hipóteses – homossexualidade e projeção – para alcançar a causa da brutal experiência psicótica de desmoronamento do mundo, assim como sua reconstrução. Produzindo, talvez, a sua maior contribuição a propósito para o estudo da psicose, em particular da paranóia, incluindo aí a sua original concepção a respeito do delírio (Cabas, 1982). 28 Faremos, então, a seguir um breve percurso entremeando alguns pontos da vasta história clínica de Schreber com a abordagem de Freud a respeito do nosso tema: o lugar do delírio na direção do tratamento psicanalítico da psicose. Daniel-Paul Schreber é um advogado bem-sucedido na Alemanha da segunda metade do século XIX, galgando importantes postos na magistratura. Contudo, diante de sua derrota em uma disputa eleitoral para ocupar uma cadeira no Parlamento, apresenta pouco tempo depois um grave quadro hipocondríaco que o leva a ser internado pela primeira vez, aproximadamente por meio ano, na clínica psiquiátrica da Universidade de Leipzig, sob os cuidados do Prof. Dr. Paul Flechsig. Nesta época, contava com 42 anos, e, como houve remissão da sintomatologia, retomou o trabalho e a vida conjugal, embora o casal tenha permanecido sem filhos, apesar de grande anseio. E o que resta deste período, por parte dos Schreber, é uma profunda gratidão ao eminente médico. Dez anos depois, Schreber é novamente internado em Leipzig por ser acometido por um surto psicótico, poucos meses após a sua nomeação como juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden, ou seja, o mais alto posto que poderia ocupar na hierarquia jurídica. No intervalo entre a nomeação para o cargo e seu curtíssimo exercício, Schreber apresenta um sonho relevante no qual a sua enfermidade retorna e, principalmente, uma fantasia que lhe surge em estado hipnagógico, que se apresenta como “a representação do formosíssimo que é sem dúvida ser uma mulher submetida ao coito” (Freud, 1911, p.14). No período inicial do surto, Schreber apresenta uma severa insônia, idéias hipocondríacas, como, por exemplo, a de que seu cérebro estaria amolecendo, além de idéias de perseguição, estados de hiperestesias e hipersensibilidade à luz e a ruídos. Após breve estada na clínica do Dr. Flechsig em Leipzig, é transferido para o sanatório de Sonnenstein, passando aos cuidados do Dr. Weber. Neste local, permanecerá seus próximos oito anos em um longo e árduo trabalho psíquico para produzir uma resposta ao real que irrompe. Em Sonnenstein, há uma piora no quadro clínico de Schreber devido ao transbordamento ocasionado por fenômenos alucinatórios verbais, mas que se expressam também por sensações cenestésicas, como, por exemplo, manipulações corporais. Isso se dá de tal forma, que realiza várias tentativas de suicídio como a única saída possível para o seu sofrimento. Nesta fase, começam a brotar também as primeiras idéias persecutórias relacionadas ao Dr. Flechsig e a Deus. 29 Então, em um primeiro tempo do complexo delírio de Schreber – cujos aspectos, somente alguns serão abordados – havia uma aliança entre o médico e Deus para transformálo em uma mulher passível de toda sorte de sevícias por parte principalmente de Flechsig, ou para, simplesmente, deixá-lo de lado, abandonado à corrupção. E, para se alcançar essa mudança de homem em mulher, Schreber deveria ser emasculado, o que o indignava profundamente por julgá-la contrária à ordem do universo. Schreber, em seu processo delirante, sofreu profundas intervenções no corpo a ponto de ter vivido por muito tempo com a sensação de estar sem vários órgãos, especialmente os da caixa torácica, como também perceber os outros como verdadeiros simulacros: “homens feitos às pressas”. Chega a ver não só o comunicado no jornal a respeito de sua morte como o seu próprio funeral, porque fora vítima de um “assassinato de almas” (1911). Enfim, neste primeiro tempo do delírio, ele vivencia o extremo de uma desestruturação subjetiva, na medida em “que o lugar de Schreber é precisamente o lugar do morto”, ou seja, um lugar que representa a morte do sujeito (Cabas, 1982, p.271). Alertando-nos sobre a fragilidade de toda subjetividade humana, porque esta é sempre o resultado de uma construção. Contudo, em um segundo tempo, há uma reordenação subjetiva em Schreber devido a sua aceitação em ser transformado em mulher em prol de um resgate da bemaventurança do mundo. Assim, no segundo tempo do delírio, Schreber, através dos nervos, recebe uma mensagem divina que lhe revela o seu destino em promover a salvação dos homens. Neste delírio, o lugar de Deus é dimensionado por salas, ante-salas, além de uma hierarquização em que há um Deus superior e outro inferior, e que tem como característica particular, o fato de não compreender os homens vivos e apenas se comunicar com poucos privilegiados através de nervos superexcitados, como os de Schreber, caso em que também se encontrariam os profetas bíblicos. Freud remete-se à sentença judicial para resumir o conteúdo do sistema delirante de Schreber que se considera “chamado a redimir o mundo e devolver-lhe a bem-aventurança perdida. Porém crê que somente conseguirá após ser transformado de homem em mulher” (1911, p.17). Portanto, a fase final do delírio de Schreber assume um caráter místico, cujo conteúdo é o da transformação de seu corpo em um corpo feminino para poder procriar, com a intervenção divina, uma nova geração que salve a humanidade. 30 Freud posiciona-se diferencialmente em relação aos psiquiatras que assistiram Schreber ao afirmar que “a mudança em mulher (emasculação) foi o delírio primário, julgado no começo como um ato de grave dano e de perseguição, e que somente secundariamente entrou em relação com o papel de redentor” (1911, p.18). Enquanto para o Dr. Weber, por exemplo, o papel de redentor é que seria o principal no delírio schreberiano, a emasculação vindo a ser apenas um meio para alcançar aquele fim. Portanto, o psiquiatra correlaciona o delírio de Schreber ao mito religioso cristão – um dos vetores da própria constituição do Ocidente – diluindo com esse procedimento a particularidade do sujeito ao generalizar a construção delirante a um dado que se dispõe como universal: a encarnação do Messias. Enquanto Freud opera no sentido de escutar a singularidade do sujeito em detrimento de um dado universal a priori que generalize justamente a questão do sujeito. Então, para Freud, houve a transformação de um delírio persecutório de cunho sexual em um delírio religioso de grandeza, sendo o Dr. Flechsig, seu primeiro médico, quem originalmente ocupava a função de perseguidor, depois substituído por Deus. E Freud articula a natureza primária da fantasia de emasculação à representação já citada acima – o prazer de ser uma mulher submetida ao coito – que aflorara em Schreber entre o estado de sono e vigília, previamente ao desencadeamento do surto psicótico. Esta fantasia sustenta toda a construção delirante de Schreber como o punctum saliens até se desdobrar em sua transformação em mulher, sobrevivendo inclusive no período de seu restabelecimento. Em momentos íntimos, Schreber apresentava-se travestido de mulher diante do espelho, verificando a sua feminização oriunda da intervenção dos nervos divinos em seu corpo (1911). Freud articula a presença de uma fantasia com a produção do próprio delírio como um “ponto saliente” que perpassa todo o processo do sujeito ao se deparar com o real. Dessa forma, uma fantasia privilegiada encontra-se no bojo do próprio delírio, sustentando-o; mesmo quando um longo desbastar se opera na torrente delirante, algo dessa presença real se perpetua. Problemática que será retomada pelo GIFRIC em sua abordagem da clínica da psicose, como veremos no terceiro capítulo. No texto freudiano, há um aspecto muito intrigante a ser ressaltado que é a utilização do termo fantasia também para nomear a necessidade lógica da emasculação no processo 31 delirante de Schreber. Esse significante tão crucial na constituição do delírio schreberiano é veiculado por Freud através da expressão: “fantasia de emasculação” (1911). Mas, afinal, um delírio consiste em quê? Um desdobrar incessante de fantasias? Como em Schreber poderíamos constatar o deslizar desse movimento através da seguinte seqüência de fantasias fundamentais: a cena do coito, a emasculação, a redenção da humanidade, engendrando uma narrativa delirante que transforma o homem Schreber em mulher de Deus para gerar produtos imaculados? Em relação à etiologia da paranóia, Freud imputa como fator desencadeante do surto psicótico de Schreber a irrupção de uma moção homossexual através da emergência da citada fantasia de desejo, na qual ocupa uma posição feminina. Com o desdobrar de sua psicose, Schreber infere que o Dr. Flechsig é quem ocupa a posição masculina de sua fantasia. Freud reconhece em seu texto o desconhecimento a respeito das razões pelas quais uma fantasia homossexual passiva derivou-se em um delírio persecutório. Entretanto, introduz o complexo paterno no mecanismo da paranóia justamente ao relacionar uma transferência de moções pulsionais ao perseguidor Dr. Flechsig oriunda da série de figuras de autoridade que remonta ao pai, ao único e mais velho irmão, que se suicida, e a Deus. Mas, Freud, mesmo articulando o complexo paterno à fantasia de desejo homossexual, admite que não há nesta a especificidade necessária para dar conta da distinção entre a paranóia e as outras formas de neuroses. Para tal, pressupõe que a formação do sintoma e o próprio recalque são distintos na paranóia, quando, devido à fantasia central de desejo, o sujeito reage através da formação de um delírio persecutório. A partir da frase nuclear da fantasia de desejo homossexual: eu (um homem) o amo (a um homem), Freud constrói a gramática pulsional do delírio persecutório, da erotomania, do delírio de ciúmes e da megalomania (1911). Além disso, a reação que engendra o delírio paranóico não se restringe mais ao mecanismo de projeção, como considerava Freud em seus primeiros textos. No caso Schreber, reconsidera a sua primeira abordagem em relação à projeção ao afirmar que: “não era correto dizer que a sensação interiormente sufocada é projetada para fora; mas melhor inteligirmos que o cancelado de dentro retorna desde fora” (1911, p.66). Afirmação muito bem lida por Lacan, a ponto de lhe permitir fundamentar o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai como o mecanismo gerador específico da psicose, como veremos no segundo capítulo. 32 E Freud realmente avança a teoria psicanalítica a respeito do delírio ao considerar que o desarranjo subjetivo que ocorre na paranóia – “a catástrofe do mundo” – se deve a um processo particular de recalque que produz um desatamento da libido em relação às pessoas e coisas antes amadas. Processo mudo que somente admite sua aferição no ruidoso desdobramento subseqüente: o restabelecimento que reconduz a libido em direção aos objetos outrora abandonados através justamente do delírio (1911). Dessa forma, Freud propõe a inovadora concepção da psicanálise em relação ao delírio ao afirmar que “o que nós consideramos a produção patológica, a formação delirante, é, na realidade, o intento de restabelecimento, a reconstrução” (1911, p.65). Ou seja, o delírio propriamente dito, o trabalho de construção do delírio, Wahnbildungsarbeit, encontra-se em um segundo tempo em relação à falha particular que estrutura o paranóico: o radical desinvestimento pulsional que se processa em um dado momento da história do sujeito. Assim, a posição freudiana, ao escutar o delírio de uma outra perspectiva, diferencia-se da concepção psiquiátrica tradicional, que detecta nele apenas um índice patológico, nunca reconhecendo que, na própria dinâmica do discurso delirante, há a possibilidade de se resgatar a trilha na qual emerge o sujeito. 1.3 Perspectivas da produção freudiana a respeito da psicose A trajetória freudiana a respeito da psicose talvez possa ser lida através dos três grandes momentos que caracterizam o próprio desenrolar da invenção da psicanálise: a teoria da defesa como o ponto de partida, a primeira e a segunda tópicas. São momentos que podem ser recortados como distintos, embora mantenham uma articulação orgânica, confundindo-se com a própria construção da metapsicologia freudiana. No primeiro tempo, Freud já está determinado a delimitar o mecanismo gerador específico da psicose diferentemente do que ocorre na neurose, tarefa que, aliás, o acompanhará em todo o seu percurso sem que alcance, no entanto, o sucesso desejado. Mas lançará uma inovadora perspectiva, como já encontramos em sua primeira tese: na psicose 33 haveria uma rejeição (Verwerfung) muito mais radical da representação sexual, insuportável em contraponto ao recalque (Verdrängung) da mesma representação na neurose. No segundo tempo, que compreende a produção teórica dentro da perspectiva da primeira tópica, Freud não só articula a psicose com a sua original teoria dos sonhos – portanto, com o desejo e a fantasia – como também nos oferece a sua concepção a respeito do delírio como uma tentativa de cura que não será suplantada no restante de sua obra. O terceiro tempo é o efeito da introdução da pulsão de morte na teorização da clínica que a renova e lhe confere mais capacidade lógica para enfrentar os desafios que vão sempre surgindo no caminho da psicanálise. Então, neste terceiro e último item do capítulo dedicado a Freud, abordaremos, inicialmente, algumas formulações na transição entre a primeira e a segunda tópicas, como também questões mais específicas do período que compreende a segunda tópica. Em 1915, Freud escreve diversos textos que foram agrupados por Strachey como “artigos sobre a metapsicologia”. Dentre eles, encontramos O Inconsciente, no qual Freud aborda a esquizofrenia justamente para ampliar o alcance de seu propósito teórico deste momento por que passa sua obra. Reconhecendo, juntamente com Abraham, que nesta manifestação da psicose haveria uma antítese entre o eu e o objeto, não se encontrando nenhuma relevância a esse respeito nas neuroses de transferência: fobia, histeria e neurose obsessiva. Nas neuroses de transferência, haveria uma renúncia ao objeto “real” devido a uma frustração, acarretando com isso um retorno da energia libidinal ao objeto “fantasiado” e até mesmo ao objeto “recalcado”. Uma grande parcela do investimento objetal permanece inalterada nas neuroses, a ponto de Freud afirmar que justamente por haver essa energia ligada ao objeto que a transferência analítica é possível (Freud, 1915). Na esquizofrenia, após o “recalque”, a libido retirada do objeto “real” não é mais investida em um novo objeto, mas retorna para o próprio eu. Portanto, o investimento objetal é abandonado e, neste caso, reconfigura-se um narcisismo primitivo. Gerando uma série de conseqüências devido à incapacidade de transferência na esquizofrenia, tais como: inacessibilidade ao processo analítico, repúdio ao mundo exterior, hipercatexia do eu, e por fim, completa apatia em relação aos objetos em geral (1915). Freud observa que muito do que é expresso por um esquizofrênico está recalcado em um neurótico. Para desvendar essa peculiaridade da psicose – o famoso “inconsciente a céu 34 aberto” –, Freud apóia-se abertamente na fala do esquizofrênico por ser muitas vezes construída de forma “afetada”. Identifica a “fala dos órgãos” ou “fala hipocondríaca” como uma característica marcante entre os esquizofrênicos, deduzindo daí uma fórmula: “na esquizofrenia as palavras são submetidas ao mesmo processo que desde os pensamentos oníricos latentes cria as imagens do sonho, e que temos chamado o processo psíquico primário. São condensadas, e por deslocamento se transferem umas às outras seus investimentos completamente; o processo pode avançar até o ponto em que uma só palavra, idônea para isso por múltiplas referências, tome sobre si a subrogação de uma cadeia íntegra de pensamentos” (1915, p.196). Assim, Freud não só descreve acuradamente um fato clínico muito importante da esquizofrenia como também afina a sua primeira consideração a respeito do retraimento do investimento objetal na psicose. A representação consciente que compõe o sistema Pcs é dividida em uma representação de coisa (Sachvorstellung) e uma representação de palavra (Wortvorstellung), enquanto no sistema Ics encontram-se apenas as representações de coisa: oriundas dos restos mnêmicos. Portanto, o que diferencia os dois sistemas não é conteúdo representacional propriamente, mas a localização da representação, sendo necessária uma ligação entre uma representação de objeto inconsciente com uma representação de palavra pré-consciente para que a “coisa” se articule (1915). Dessa forma, o processo primário que caracteriza o inconsciente é transposto ao préconsciente em uma organização mais elaborada através da palavra. O recalque opera justamente impedindo a tradução das representações de coisa em representações de palavra. A representação de coisa mantém-se em estado de recalque ao haver a instauração de uma barreira entre os sistemas Ics e Pcs . Entretanto, Freud, em relação à psicose, se interroga se o processo de recalque que acabamos de citar procede da mesma forma. E sugere que a representação de palavra permanece hipercatexizada em detrimento da representação de coisa em decorrência da busca de reinvestimento do mundo, como já propusera no caso Schreber. “Esses empenhos pretendem reconquistar o objeto perdido, e muito bem pode suceder que com este propósito empreendam o caminho até o objeto passando por seu componente de palavra, devendo não obstante conformar-se depois com as palavras no lugar das coisas” (1915, p.200). Freud, ao concluir o texto, aproxima de forma inquietante o pensar filosófico que toma as coisas concretas como abstratas, ao pensamento esquizofrênico. 35 Em 1917, Freud, ao retomar a sua construção a respeito da teoria dos sonhos, utiliza em larga medida a clínica da psicose para poder esclarecer determinados pontos do tema em questão. Aqui, deter-nos-emos em um de seus comentários sobre o delírio nesse texto intitulado Complemento Metapsicológico à Doutrina dos Sonhos. Freud relaciona o delírio como um dos três caminhos possíveis ulteriores ao encontro de uma moção de desejo que se formou no Pcs como um desejo onírico (uma fantasia que cumpre um desejo), que permite a expressão de uma moção inconsciente dentro do material dos restos diurnos pré-conscientes. Os outros dois caminhos posteriores a esse momento do processo de formação do sonho seriam uma descarga motora direta e o próprio desdobrar de um sonho noturno. Portanto, o delírio seria a irrupção na vida de vigília de uma moção pulsional que parte do Pcs, cujo conteúdo é o cumprimento de um desejo inconsciente. Freud compara os dois aspectos fundamentais do trabalho de um sonho – a formação da fantasia de desejo e sua marcha regressiva até a alucinação – ao que ocorre na confusão alucinatória aguda (“amência de Meynert”) e na fase alucinatória da esquizofrenia. “O delírio alucinatório da amência é uma fantasia de desejo claramente reconhecível, que amiúde se ordena por inteiro como um cabal sonho diurno. De um modo geral poderia falar-se de uma psicose alucinatória de desejo, atribuindo-a ao sonho e à amência por igual” (Freud, 1917, p. 228). Assim, Freud mantém ao longo de sua trajetória a perspectiva de que o delírio em sua formação relaciona-se estreitamente com um desejo inconsciente através de uma fantasia que cumpriria a função de ponto de ligação. Ou seja, entre uma moção pulsional inconsciente e a sua expressão delirante propriamente dita, a fantasia estaria envolvida nesse desenrolar. E nesse desdobramento, a própria fantasia seria submetida ao processo de censura que, secundariamente, produz como resultado o delírio em sua forma acabada. Em 1920, como frisamos acima, instaura-se uma torção na obra freudiana com a escritura da pulsão de morte através da publicação do texto Além do princípio do prazer, que se desdobra três anos depois na formulação da segunda tópica. Quando a partir de uma nova tripartição da estrutura subjetiva – eu, supereu e isso – como Freud escreve em O eu e o isso, decanta-se uma releitura da clínica psicanalítica no que tange também à psicose. Em 1924, Freud produz dois textos sob a influência desta recente construção metapsicológica, entretanto, não abandona totalmente as contribuições da primeira tópica – consciente, pré-consciente e inconsciente. Assim, Neurose e Psicose e A Perda da Realidade 36 na Neurose e na Psicose são, de alguma maneira o coroamento, embora inacabado, da trajetória freudiana a respeito da psicose. Em Neurose e Psicose, Freud propõe, logo de saída, como a mais importante diferença entre a neurose e a psicose, os desenlaces do conflito, que, na neurose, ocorrem entre o “eu” e o “isso”, e na psicose, entre o “eu” e o “mundo exterior”. Nas neuroses de transferência (histeria, neurose obsessiva e fobia), o “eu” não permite o escoamento motor de uma moção pulsional do “isso” através do recalque, embora o recalcado retorne pela via do compromisso que é o sintoma. Contudo, o “eu” age sob os ditames do “supereu”, cuja origem se encontra nos influxos vocalizados pelos pais, ou seja, como herança do complexo de Édipo (Freud, 1924a). Assim, o “supereu” é produto de uma dupla herança: tanto a paterna quanto a materna, sendo não menos herdeiro do “isso” pulsional. Em um primeiro tempo, constitui-se um “supereu” mais arcaico que se refere ao primeiro Outro do sujeito – a mãe – por esta introduzir o infans na linguagem. A lei aqui é da linguagem, e ao submeter o sujeito ao capricho materno não lhe garante a entrada no discurso. Este seria o caso da psicose. Somente com a intervenção da função paterna, em um segundo tempo, através da metáfora paterna, que o sujeito submete-se à lei do discurso, concluindo assim a travessia edípica. No entanto, como a lei paterna é falha, permite a irrupção da voz do supereu que, no fantasma, impera como mandato de gozo. Enfim, não avançaremos com os desdobramentos da questão do supereu para a clínica psicanalítica, porque escaparia ao nosso tema. O importante é frisar que, nas neuroses de transferência, o “eu” leva a cabo um conflito com o “isso” a favor do “supereu” e da realidade dita exterior. Todavia, a diferença clássica entre uma realidade psíquica e uma realidade objetiva, 37 afrouxamento no limite entre as duas realidades. Ainda assim, Freud utiliza dois significantes para designar a realidade de que se trata em psicanálise: Wircklichkeit e Realität. O primeiro termo é traduzido por Lacan como operatividade, enquanto o segundo por realidade psíquica. A operatividade relaciona-se tanto à operação simbólica do significante na estrutura como também à operatividade do real, ou seja, ao resto inassimilável produzido pela própria cadeia significante, mas que, por estar fora da simbolização, retorna como causa (Souza, 1996). A realidade psíquica é fruto da transformação dos signos de percepção – Wahrnemungszeichen, isto é, o real – em uma realidade regida pelo significante, efeito da própria estrutura de linguagem. Desse modo, relacionada ao fantasma. E a realidade psíquica não estaria subordinada a uma verificação que a confrontaria a uma realidade empírica considerada mais verdadeira. Porque quem se divide é o próprio sujeito diante de uma realidade que se presentifica defasada entre o real e o significante. Assim, a realidade psíquica é justamente a construção do fantasma como resposta à divisão do sujeito (1996). Quanto à psicose, Freud reporta-se novamente em Neurose e Psicose à confusão alucinatória aguda, cuja característica principal é a não-percepção do mundo exterior. Contudo, manteremos a terminologia empregada por Freud em nossas considerações apesar das ressalvas realizadas acima em relação tanto ao supereu como à realidade. Freud recapitula, então, que o mundo exterior governa o “isso” por duas vias: percepções atuais, que são sempre renováveis; e o tesouro mnêmico das percepções anteriores que formam o “mundo interno”, componente do “eu”. E na amência de Meynert haveria tanto a recusa das novas percepções como dos traços mnêmicos armazenados, criando-se a partir de moções de desejo do “isso” um novo mundo, efeito da ruptura do “eu” com o “mundo externo” devido a uma grave frustração (Freud, 1924a). Freud compara a gênese das formações delirantes a um remendo colocado no lugar onde originariamente se produziu um rasgo no vínculo entre o “eu” e o “mundo exterior”. E reafirma que os fenômenos do processo patógeno que caracterizam esse conflito são ocultados pelo intento de cura ou reconstrução, tese a respeito do delírio já exposta na análise do presidente Schreber, embora se encontrando aqui sob a luz da segunda tópica. Poderíamos pensar que o delírio é construído justamente para ressuturar a fronteira entre o “aparelho” psíquico e o real? Isso porque a realidade dita exterior é exterior ao "aparelho” anímico, ou seja, pertencente ao registro do real. O delírio proporcionaria então uma amarração entre as três dimensões do sujeito? Uma ficção totalizante, portanto, 38 imaginária, estruturada obviamente pelos significantes que compõem o simbólico no qual o sujeito está imerso, em resposta à irrupção de um fora-sentido? Freud também ordena em Neurose e Psicose a “nosografia” psicanalítica ao considerar a neurose de transferência correspondente ao conflito entre o “eu” e o “isso”; a psicose, ao conflito entre o “eu” e o “mundo exterior”, e por distinguir, no campo das psicoses, a melancolia como o paradigma da neurose narcísica, cujo conflito ocorre entre o “eu” e o “supereu”. Freud considera a possibilidade de deformações, partições e até mesmo segmentações do “eu”, para dar conta de uma não-ruptura total do “eu” em relação às outras instâncias psíquicas na situação em que o sujeito não adoece, apesar de os conflitos que sempre se apresentam (1924a). Freud conclui o texto questionando-se a respeito de qual mecanismo ocorre afinal na psicose, análogo ao recalque, que produziria o desenlace entre o “eu” e o “mundo exterior”. E adianta, pelo menos, que estaria relacionado a um débito do investimento enviado pelo “eu” aos objetos. Em A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, Freud avança suas considerações, afirmando que a perda da realidade (Realität) transcorre em ambas as formas clínicas, com o diferencial de que, inicialmente, o “eu”, na neurose sufoca um fragmento do “isso” a favor da realidade; e na psicose, o “eu”, a serviço da vida pulsional (isso), se retira de um fragmento da realidade. Entretanto, na constituição da própria neurose, após o recalque de uma moção pulsional, ocorre uma reação contra este gerando um certo fracasso no recalcamento devido à busca de ressarcimento dos setores prejudicados do “isso”. Portanto, na neurose, há também um afrouxamento do nexo com a realidade (Freud, 1924b). A psicose também se estrutura em dois tempos lógicos, segundo Freud. No primeiro, há a perda do vínculo com a realidade, e no segundo tempo, apresenta tentativas de reparação do laço com a realidade, embora não limitando o “isso” como é o intento da neurose, mas, sim, criando uma nova realidade. Assim, em ambas estruturas clínicas, há um reinvestimento do “isso” em detrimento da realidade, diferenciando-se apenas na organização do processo – a neurose não desmente a realidade, limita-se a não querer saber nada dela, enquanto a psicose a rejeita e busca substituí-la (1924b). O fato estrutural ressaltado por Freud é a cisão do eu – Ichspaltung – presente em ambas estruturas clínicas: neurose e psicose. E mesmo visando uma completude, que é sempre ilusória, o eu constitui-se submetido ao descompasso entre a realidade e as exigências 39 pulsionais. Em Lacan, a cisão do eu é tratada como divisão do sujeito, que, cindido, divide-se entre moi e je. O moi representa a consistência imaginária do eu, e o je, a partícula do código lingüístico que apenas aponta a pessoa que enuncia “eu”, necessitando de um complemento para emitir a mensagem do sujeito. Portanto, o sujeito se divide entre uma instância imaginária que busca a completude e outra instância que denuncia sempre a falta constituinte do sujeito em psicanálise (Souza, 1996). E quanto ao material utilizado para o remodelamento da realidade – tarefa do delírio – Freud indica que são os sedimentos psíquicos que marcaram a trajetória do sujeito através de traços mnêmicos, representações, juízos. Acrescenta que as próprias alucinações que ocorrem na psicose são radicais produções perceptivas para ratificar a nova realidade construída. Entretanto, esse processo de plasmar a realidade via o delírio não transcorre sem angústia e resulta também em um certo fracasso que gera insatisfação, como o recalque na neurose. Freud, em seu esforço em delimitar os pontos de contato e de fuga entre neurose e psicose, assinala uma convergência importante ao ressaltar que a neurose também busca substituir a realidade indesejada por outra mais de acordo com o seu desejo, recorrendo, para tal, ao “mundo da fantasia”, definido por Freud como uma espécie de reservatório segregado do mundo exterior real quando da instauração do princípio de realidade. Assim, a partir deste “mundo da fantasia”, a neurose se abastece do material mnêmico de uma pré-história real mais satisfatória para instituir suas neoformações de desejo (Freud, 1924b). A psicose também recolhe material desse “mundo da fantasia” para edificar sua neorealidade, embora desloque o mundo exterior de uma forma mais radical, enquanto a neurose conserva um fragmento de realidade. Portanto, ambas estruturas clínicas relacionam-se ao campo da fantasia não só no que se refere à perda da realidade como principalmente à construção de um substituto para esta perda. Ao concluir este capítulo, constatamos que Freud mantém em aberto o enigma a respeito das relações entre o delírio e a fantasia. Enigma soterrado pela escolástica psicanalítica ao consagrá-los como excludentes – delírio e fantasia – por pertencerem a campos distintos: psicose e neurose. Esta questão, como veremos no capítulo três e quatro, será retomada pelo GIFRIC em sua proposta teórico-clínica na direção de tratamento a psicóticos. 40 2 LACAN 2.1 O diálogo de Lacan com a psiquiatria a propósito do delírio Lacan, ao iniciar sistematicamente seu ensino na década de cinqüenta do século XX, já havia acumulado uma longa experiência como psicanalista – e porque não dizer como psiquiatra, uma vez que nunca desmereceu o valor que concedia à sua formação médica. Tanto que no início da década de trinta, Lacan encontrava-se no centro do debate psiquiátrico francês através de alguns textos a respeito da psicose paranóica – como, por exemplo, O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência e Motivos do crime paranóico: o crime das irmãs Papin, e, principalmente, através da publicação de sua tese em 1932, intitulada Da Psicose Paranóica em suas relações com a Personalidade, na qual apóia-se no caso Aimée para sustentar sua proposta a respeito da paranóia de autopunição, dentre outras contribuições. Em 1953, Lacan, ao realizar “o retorno a Freud” através do comentário crítico do texto freudiano, utilizando inúmeras referências teóricas, iniciou seu primeiro Seminário já apresentando a estrutura triádica do real, simbólico e imaginário para abordar o sujeito de que se trata na experiência psicanalítica (Lacan,1979 [1953-54]). Assim, desde o princípio, a démarche lacaniana caracteriza-se por construir a tese de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, utilizando, por exemplo, as figuras de retórica: metáfora e metonímia – termos oriundos da lingüística de Jakobson – para delimitar os mecanismos de condensação e de deslocamento, propostos por Freud como processo primário inconsciente. Nasio, em relação a essa questão, reforça a concepção lacaniana de que os fenômenos de linguagem não são tributários da retórica, pelo contrário, a condensação e o deslocamento do sujeito do inconsciente é que proporcionam as figuras de retórica – metáfora e metonímia – presentes na escritura literária. A metáfora, por exemplo, “é, por ser linguagem, o estilo de um sujeito que só existe no e pelo seu representante” (Nasio,1997, p.10). Assim, o inconsciente se estrutura como cadeia significante recalcada e se presentifica no discurso do ser falante 41 através de suas ditas formações: sonho, ato falho, chiste e sintoma; delimitando-se aqui o recalque como mecanismo fundador dessa posição subjetiva que é a neurose. Quanto à clínica da psicose, Lacan, em seu Seminário de 1955-56, intitulado As Psicoses, comenta, inicialmente, que abordará a “questão” das psicoses e não o “tratamento” das psicoses, e salienta que Freud também não aborda a questão do tratamento da psicose. E concede maior ênfase à paranóia em relação à esquizofrenia tanto como Freud, porque aquela forma clínica apresenta uma situação um pouco mais privilegiada que é a de um nó, questão que se desdobrará ao longo de todo seu ensino não se restringindo apenas ao tema da paranóia como reconhece nesse Seminário (Lacan, 1988 [1955-56]). Lacan critica a concepção psiquiátrica que busca uma compreensibilidade psicogenética dos fenômenos psicóticos, como a noção caracteriológica de anomalia da personalidade, que tenta definir a paranóia. A crítica se refere especialmente à noção de “relação de compreensão” instituída pela psicopatologia de Jaspers (1988 [1955-56]). Embora a crítica lacaniana recaia acertadamente sobre o excesso de compreensibilidade que Jaspers propõe em sua análise dos fenômenos psíquicos em geral, não podemos deixar de reconhecer, como vimos no primeiro capítulo, que a respeito do delírio primário – Wahn Ideen – Jaspers postula a ocorrência, neste caso, de um limite ao método compreensivo. Aliás, o posicionamento de Jaspers, quanto a essa constatação, foi duramente criticado por vários dos seguidores da escola fenomenológica de Heidelberg, dentre eles, Kurt Schneider (Leme Lopes, 1982). Lacan retoma o ensino de Clérambault por este ter tido o cuidado de demonstrar o caráter fundamentalmente anideico – não conforme o trilhamento de uma seqüência de idéias – dos fenômenos que se apresentam na psicose. Aspecto que Lacan valoriza por estar em consonância com o próprio movimento estrutural da psicanálise, que afirma não haver psicogênese. Lacan ressalta que mais importante do que o inconsciente na psicose encontrar-se na superfície a céu aberto, ou seja, não articulado pelo sujeito, é o fato de ele aparecer no real. Ponto fundamental da clínica com psicóticos que levará Lacan articular tanto a contribuição de Freud – especialmente através do caso Schreber – como a de Clérambault – através da síndrome do automatismo metal – para ordenar a sua concepção a respeito do desencadeamento da psicose, assim como seus principais fenômenos (1988 [1955-56]). 42 A assunção do sujeito ao campo do Outro é conquistada através de uma afirmação primordial – Bejahung – na ordem simbólica, que pode faltar – como no caso da psicose. Isto é, o sujeito na psicose rejeita o acesso ao seu mundo simbólico de um elemento estrutural diferenciador que é a castração, enquanto na neurose não a rejeita, mas a recalca. E o que é rejeitado pelo sujeito no simbólico reaparece no real. Sendo esta a tese fundamental de Lacan a respeito tanto da estruturação como do próprio desencadear da psicose. E retornando à paranóia, Lacan faz uma crítica contundente à definição de Kraepelin, que a caracteriza por apresentar um desenvolvimento insidioso que produz um sistema delirante de evolução contínua, durável e impossível de ser abalado, conservando a clareza e a ordem do pensamento. Em relação aos dados da clínica, nada mais falso, afirma Lacan, por conta da evolução em acessos, fases, pontos de ruptura no próprio delírio, em decorrência de abalos que o sujeito apreende na rede significante na qual está imerso (1988 [1955-56]). Para refutar as ambigüidades da tradição psiquiátrica, Lacan toma emprestado de Clérambault o termo “fenômeno elementar” para sustentar a tese a respeito da estranheza que ocorre tanto na alucinação como no delírio em relação a qualquer dedução ideica – compreensibilidade que escapa também ao próprio psicótico (Schaustz, 2000). Entretanto, Lacan se distingue de Clérambault por discordar da hierarquização que este propõe ao situar o delírio como uma dedução intelectual consciente, construída secundariamente a partir dos fenômenos elementares. Ou seja, o delírio constituir-se-ia em um “romance” acrescido aos fenômenos elementares, considerados por Clérambault bem mais antigos que o delírio. Para Lacan, “o delírio não é deduzido, ele reproduz a sua própria força constituinte, é, ele também, um fenômeno elementar” (Lacan, 1988 [1955-56], p.28). Lacan assinala no Seminário III que, num certo momento do delírio, o que está em primeiro plano é uma significação que se impõe ao próprio sujeito, mesmo sem ele saber qual a sua motivação. No entanto, para o delirante, essa significação se torna perfeitamente compreensível, a partir de um certo momento, ganhando o estatuto do que identificamos como certeza delirante. Neste momento do percurso de Lacan, podemos reconhecer a influência do conceito de “significação pessoal” – Eigenbeziehung – proposto por Neisser como o mecanismo primário responsável pela geração do delírio. E não nos esqueçamos de que a influência de Neisser ressoa em Lacan desde a sua tese de medicina (1932), quando se apropriou da contribuição do 43 psiquiatra alemão para delimitar o que estava em jogo tanto na irrupção dos fenômenos elementares como no próprio delírio em Aimée. Lacan também ressalta que a questão “Quem fala?” deve dominar a investigação a respeito da paranóia, e retoma, para avançar esse questionamento, a contribuição de Séglas quanto às alucinações psicomotoras. Estas são descritas como uma articulação verbal que o próprio alucinado produz no momento em que está se referindo às vozes como externas durante o episódio alucinatório. Ou seja, não tendo a sua origem no exterior, a alucinação é articulada verbalmente pelo próprio sujeito mesmo sem reconhecer, aspecto ressaltado por Lacan como a pequena revolução séglasiana (1988 [1955-56]). Ao dialogar com os mestres da tradição psiquiátrica – embora, reconheça apenas Clérambault como o seu verdadeiro mestre em psiquiatria –, Lacan avança em seu projeto em cernir a estrutura de que se trata na psicose. Mesmo havendo importantes diferenças na concepção a respeito de vários aspectos ligados à psicose, a contribuição da psiquiatria considerada clássica na obra de Lacan é inquestionável. 2.2 O diálogo de Lacan com Freud a respeito do delírio Reler minuciosamente os significantes freudianos ao longo de seu percurso é uma das principais tarefas a que se propôs Lacan. No Seminário III, o relevo é dado ao caso Schreber uma retradução de Freud do fio condutor da “língua fundamental” do magistrado alemão. Neste Seminário, Lacan aborda, a partir do delírio schreberiano, noções estruturais que podem ser reconhecidas em outros casos, como a questão da verdade que ali “não está escondida, como acontece nas neuroses, mas realmente explicitada, e quase teorizada” (1988 [1955-56], p.37). Lacan subverte as categorias lingüísticas de significante e significado formalizadas por Saussure e as utiliza também para elucidar a sua concepção a respeito do delírio, definindo o significante como o material da linguagem e o significado como a significação, e neste momento de seu ensino relaciona a linguagem a esse movimento que sempre remete a uma nova significação. 44 Então, a partir desses pressupostos, Lacan distingue o delírio da linguagem comum por aquele apresentar o neologismo, no qual há uma significação que só remete a ela própria, significando alguma coisa de inefável, impedindo assim o próprio desenrolar de novas significações. Portanto, é no ponto de ruptura do encadeamento das significações que Lacan apreende o delírio como distinto da linguagem comum, em que há de certa forma uma maior articulação entre as significações (1988 [1955-56]). Em 1957, ano seguinte ao Seminário III, Lacan, em seu escrito A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, reformula suas considerações a respeito da supremacia da significação em relação ao significante, enfatizando que a cadeia de que se trata é a significante. E somente no enlaçamento dos significantes que se produz a significação como produto, “donde se pode dizer que é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse mesmo momento” (1998 [1957], p.506). Mas, no próprio Seminário III, Lacan, ao trabalhar as noções de metáfora e metonímia, define um ponto no discurso como ponto de basta, um significante organizador da cadeia significante que possibilita situar retroativamente o que se passa no discurso através deste ponto de amarração entre o significante e o significado. E relembra que a insistência de Freud em encontrar o complexo de Édipo por toda parte é decorrente de se ter aí um nó, ou seja, de que a noção de pai estaria ligada ao ponto de basta. Lacan compara esse significante “pai” a uma estrada principal que, se faltar ao ser evocado, desorganiza a estrutura de linguagem devido à perda desse ponto de convergência significativo. Portanto, no cerne de todos os fenômenos psicóticos encontra-se a impossibilidade de abordar esse significante como tal em decorrência do que Lacan nomeia forclusão do Nome-do-Pai, tradução que sugere ao termo freudiano Verwerfung (1988 [195556]). “A forclusão é o nome da fratura que os enclausurou fora de toda inscrição, fora dos traços da rota de nossos sonhos, do céu de nossos pensamentos, da casa de nossa dor ou de nossa alegria: longe de nosso heimlich” (Rabinovitch, 1998, p.8). Em 1958, Lacan retoma esses pontos a respeito da psicose ao escrever o texto intitulado De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, no qual, apoiado na topologia geral ou combinatória, segundo Eidelsztein, constrói os esquemas “R” e “I” que se apresentam como superfícies. No primeiro esquema, articula a função paterna ao 45 enodamento RSI que caracteriza a neurose, e no segundo esquema, localiza o processo delirante final de Schreber (Eidelsztein, 1992). Joël Dor propõe que o esquema R é construído em diferentes etapas lógicas para que se possa apreender a articulação dos três registros – RSI – ao Édipo freudiano. No primeiro tempo, a criança encontra-se presa à dinâmica desejante da mãe ao ocupar o lugar de falo que a esta falta. Portanto, a criança identifica-se ao objeto de desejo da mãe (falo imaginário). Compondo-se assim, através desses três elementos – mãe, criança e falo – a triangulação que organiza o espaço do registro do imaginário, célula base do esquema R (Dor, 1995). Em um segundo tempo, há a intrusão do pai no triângulo imaginário, resultando em uma reconsideração da identificação fálica por parte da criança, ao constatar o interesse da mãe pelo pai, assim como a percepção de que nunca chegará a preencher totalmente a falta da mãe. O pai ocupa então uma posição de rival fálico imaginário. Portanto, é o discurso materno que indica o pai como o objeto de desejo da mãe e não a criança. Com isso, abre-se para a criança a possibilidade de possuir o falo e não ser o falo. No segundo tempo do Édipo, o discurso materno introduz o pai como o que porta uma lei onipotente que priva a mãe. Com o avançar do processo em direção ao terceiro tempo do Édipo, a criança reconhece que o pai é o suporte, o representante da lei e não a lei em si, ou seja, a criança percebe que o pai possui o falo e não é o falo. E o pai, por possuir o falo, pode concedê-lo ou não à mãe por intermédio da doação, do dom (1995). Nesse momento, o pai é um pai potente – ele tem o falo –, não é mais o pai onipotente do segundo tempo, isto é, “... por intervir no terceiro tempo como aquele que tem o falo, e não que o é, que se pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como objeto desejado da mãe, e não mais apenas como o objeto do qual o pai pode privar” (Lacan, 1999 [1957-58], p.200). Nesse último tempo, trata-se também da saída, do declínio do Édipo, no qual a criança se identifica ao pai que intervém como aquele que tem o falo. Lacan nomeia essa identificação como Ideal do eu. Portanto, ao atravessar os labirintos da castração, a criança assume a condição de sujeito desejante. Nesse processo, deslocamentos ocorrem na construção do esquema R tanto em relação ao lugar que a criança ocupava até então, assim como ao de sua mãe, produzindose o esboço do triângulo simbólico. No lugar originário, permaneceram os vestígios de uma representação imaginária do objeto fundamental do desejo (a mãe), ou seja, a imagem especular “i” e uma representação imaginária da própria criança: eu (moi), “m”. 46 Em oposição ao vestígio imaginário, a nova posição da criança refere-se ao que pode vir a ser, regulada pela instância do Ideal do eu “I”, que por sua vez, é tributária da incidência simbólica do pai. Ou seja, a conclusão de todo esse processo de translação do imaginário ao simbólico é decorrente da intervenção da metáfora paterna que introduz o significante Nomedo-Pai no Outro do sujeito como falo simbólico (Dor, 1999). Os triângulos imaginário e simbólico são entremeados pela faixa da realidade que é delimitada pelas representações do outro imaginário através do vetor iM expresso pelo símbolo i (a) – imagem especular. E as representações imaginárias formadoras do eu, assujeitadas ao Ideal do eu, compõem o vetor mI, expresso pelo símbolo a’, correlato de a na relação imaginária do sujeito com seus objetos. Portanto, a faixa da realidade, que será renomeada posteriormente por Lacan como o real, forma um quadrângulo composto pelos vetores MimI, permitindo unir os triângulos imaginário e simbólico. Em 1966, quando publica os Escritos, Lacan acrescenta uma famosa nota de rodapé ao texto De uma questão preliminar... realizando um denso tratamento topológico ao esquema R, principalmente no que se refere ao quadrângulo da realidade. Ao partir da recente teorização a respeito do objeto pequeno a, Lacan propõe que a realidade barra o real, e como o objeto a também é real, encontra-se, portanto, barrado. E aproxima a realidade à estrutura da fantasia, que, por sua vez, sustenta o campo da realidade justamente pela extração do objeto a que dá o seu enquadramento (Lacan, 1998 [1958]). Lacan constrói o esquema I para abordar a psicose, tendo como ponto de partida a seguinte enunciação em De uma questão preliminar... : “no ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica” (1998 [1958], p.564). Com isso, produz uma distorção na configuração do esquema R tanto em relação aos triângulos simbólico e imaginário como à própria faixa da realidade. Ao construir o esquema I, Lacan baseou-se no caso Schreber de Freud para realizar uma análise estrutural da psicose por se caracterizar como a melhor via na condução do fenômeno à estrutura que se trata na posição subjetiva psicótica. Relembra também que, quando analisou os fenômenos da paranóia em sua tese, de 1932, acabou atingindo a psicanálise em seu limiar, por esta possibilitar a apreensão dos “mais radicais determinantes da relação do homem com o significante” (1998 [1958], p.543). 47 No esquema I, os dois buracos existentes correspondem a uma geometrização da falta e não a uma topologização da falta, decorrente da ausência de toda elaboração simbólica da mesma (Eidelsztein, 1992). Sendo esses dois buracos representados como P, índice zero, e Falo simbólico, também como índice zero. Portanto, a foraclusão do significante Nome-doPai no registro simbólico é condição de produção da falha na significação fálica. Porém, não exclusivamente porque a elisão do falo simbólico também é necessária para haver a falha no registro imaginário que acarreta a regressão tópica ao estádio do espelho. Segundo Eidelsztein, a distorção produzida no esquema R, desdobrando-se no esquema I, provoca as seguintes conseqüências para a psicose: – desaparecimento do sujeito sob a significação fálica, sendo substituído pela imagem narcísica (regressão tópica ao estádio do espelho); – desaparecimento da função do Outro como inconsciente, sendo substituído pelo ideal do eu; – imobilidade de M – primeiro Outro do sujeito. É o único termo do esquema I que não modifica de lugar em relação ao esquema R, devido à não incidência da castração no Outro; – ausência da borda do fantasma na estrutura psicótica gerando a infinitização das retas encontrada no esquema I – hipérbole e assíntota (1992). Portanto, a leitura rigorosa desenvolvida por Eidelsztein, utilizando elementos da matemática para trabalhar o esquema I de Lacan, conclui que tanto o fantasma como o sujeito estão excluídos da estrutura psicótica. Concepção bastante diferente da teorização do GIFRIC a respeito da psicose, que, como veremos no próximo capítulo, aposta justamente no contrário: há sujeito e fantasma na psicose. E lançamos à posição de Eidelsztein a seguinte questão: a “morte do sujeito” e a impossibilidade de se construir um fantasma na psicose são efeitos da foraclusão do Nomedo-Pai durante o surto psicótico ou se apresentam cristalizados irreversivelmente na estrutura da psicose? A foraclusão do Nome-do-Pai – impossibilidade de inscrição do Pai ao nível simbólico – apresenta-se como precondição para o desencadeamento da crise psicótica quando o sujeito, neste momento, se confronta com alguma injunção que desarranja o par imaginário a - a’, no qual encontra-se apoiado. Um elemento terceiro se interpõe ao eixo imaginário desencadeando a manifestação fenomênica da psicose. 48 O delírio seria uma resposta possível por parte do psicótico ao não fechamento do quadrângulo da realidade que se encontra aberto devido às ausências do Nome-do-Pai e do falo. Portanto, segundo Freire, “o delírio tem como função ‘costurar’, reconstruir esse campo da realidade, ligando os pontos do esquema R em sua origem: do lado do falo, o ponto i (as imagens especulares do esquema) liga-se ao eu do sujeito; do lado do Nome-do-Pai, o ponto M (significante do objeto primordial) liga-se ao I (ideal do eu)” (Freire, 1999, p.119 - 120). Em 1958, Lacan, ao esclarecer a questão preliminar de que se trata no manejo da transferência no tratamento com psicóticos – a foraclusão do Nome-do-Pai –, avança em relação à obra freudiana ao delimitar o mecanismo gerador da psicose. E sinaliza para um possível tratamento psicanalítico para o psicótico, diferentemente do que havíamos citado de sua posição no início do Seminário III, quando afirmara que abordaria, como Freud, apenas a “questão” da psicose e não o “tratamento” da psicose. Schreber, em suas alucinações, apresenta fenômenos de código e de mensagem, conforme a apropriação que Lacan realizou da lingüística. Os primeiros fenômenos apresentam-se como vozes através de neologismos que pertencem à língua fundamental – Grundsprache – significantes cuja composição é modificada na forma ou por empregos inusual e particular inseridos na “língua fundamental” do sujeito em questão (Lacan, 1998 [1958]). E Lacan sublinha que o significante é o indutor de significação, ou seja, a significação é um efeito do significante para todo ser falante. Na psicose, em decorrência da ausência do significante paterno – foraclusão do significante Nome-do-Pai –, não se produz a significação que confere uma posição sexuada do sujeito no discurso. Entretanto, a falta de uma significação fálica é ocupada por uma “significação” extremada em seu grau de certeza, como escutamos no delírio (1998 [1958]). Portanto, o psicótico, defrontando-se com a ausência do significante primordial, apresenta uma extrema dificuldade em se ancorar em um dos dois campos possíveis da sexuação humana: homem ou mulher. A posição sexual do ser falante é tributária da significação fálica, que, na psicose, encontra-se rechaçada em decorrência da rejeição do Nome-do-Pai. Ou seja, a não-inscrição do significante paterno no Outro do sujeito – ternário simbólico – corresponde a uma falha na significação do sujeito apreendida no ternário imaginário, como nos aponta o esquema R. 49 Lacan situa os fenômenos de mensagem nas frases interrompidas proferidas pelo interlocutor de Schreber, no caso Deus, que o obriga a completá-las para conferir-lhes, então, algum sentido. Essas frases são interrompidas justamente no ponto onde a posição do sujeito estaria indicada a partir da mensagem provinda do Outro. Na condição de enunciado do sujeito, a mensagem recebida do Outro apresenta-se como invertida, na medida em que o ser falante a emite como se fosse uma produção própria (1998 [1958]). Na neurose, existe a possibilidade de se fazer desses enunciados recebidos do Outro alguma enunciação que implique a diferença que caracteriza o sujeito do desejo. Na psicose, geralmente o que se constata é a impossibilidade em se realizar tal dimensão da linguagem devido à quebra da ordenação simbólica pela foraclusão do Nome-do-Pai. Em relação à “etiologia” da paranóia, Freud aponta para a irrupção de uma moção homossexual em Schreber – a idéia hipnopômpica descrita em suas Memórias – como a causa da enfermidade. Lacan, de certa forma, refuta a posição freudiana ao localizar a “homossexualidade, pretensamente determinante da psicose paranóica” como “um sintoma articulado em seu processo” e não a causa em si da paranóia (1998 [1958], p.550). Lacan, ao escrever a respeito do desencadeamento da psicose, afirma que o significante Nome-do-Pai, jamais advindo no lugar do Outro, ao ser invocado, produz a fenomenologia psicótica. Entretanto, um dos contornos possíveis aos efeitos da foraclusão, em oposição à passagem ao ato suicida ou homicida, é a constituição de uma metáfora que se faz delirante, como podemos ler no texto de Lacan: “É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante” (1998 [1958], p.584). A metáfora é uma operação que supõe a primazia do significante sobre a significação e a significação que o sujeito neurótico obtém da referência paterna é o ganho da sua filiação, já o sujeito psicótico não dispõe desta referência, ele erra num saber metonímico, embora, nessa errância, produza algum efeito metafórico ao construir uma significação através do delírio. Então, a partir desse momento do ensino de Lacan, a construção da metáfora delirante é o que se visa em um tratamento psicanalítico com psicóticos. Como acompanharemos a seguir em alguns autores de orientação lacaniana. Talvez a única exceção a essa orientação no tratamento da psicose seja o que se desenvolve no “388”, como veremos no próximo capítulo. 50 Segundo Caligaris, “quando o sujeito psicótico encontra uma injunção a referir-se a uma metáfora paterna, que não está simbolizada por ele, o que acontece é que um tal lugar organizador volta para ele, mas não volta no Simbólico, porque nesse Simbólico não há essa função, então volta no Real” (Caligaris, 1989, p.9). Portanto, um delírio é isso: “o trabalho de constituir uma metáfora paterna, então uma filiação e a sua relativa significação, lidando com uma função paterna não simbolizada, mas sim no Real” (1989, p.22). Silvestre afirma, nesse sentido, por exemplo, que o delírio advindo a partir da instauração do trabalho analítico “será utilizado pelo sujeito para produzir a significação que lhe falta – quer dizer, para construir uma metáfora substitutiva da metáfora paterna, metáfora que tenha efeito de significação. (...) Por certo fala-se habitualmente, neste caso, de metáfora delirante” (Silvestre, 1991, p.129). Soler, ao apresentar em linhas gerais o tratamento de uma psicótica sob transferência, afirma que o efeito da construção do delírio é manifestamente tranqüilizador, mas enfatiza também que a estabilização psicótica é frágil. Apesar de haver nesse caso um processo artístico sublimatório importante, mesmo assim depende fortemente da presença de um homem e da analista. Donde conclui que essa estabilização não está vinculada a um final de análise. Portanto, segundo Soler, o trabalho da psicose será sempre para o sujeito uma maneira de tratar os retornos no real – efeito da foraclusão do Nome-do-Pai – buscando formas de contornar o gozo não submetido à ordem fálica através de uma metáfora de suplência: a metáfora delirante (Soler, 1993). Laurent aponta que o que se consagrou como metáfora delirante num determinado momento da obra de Lacan carece da posterior teorização a respeito do objeto a. Ele propõe que a não-operação do pai gera um lugar vazio na estrutura psicótica, que deve se manter assim porque o desencadeamento do surto psicótico caracteriza-se pela ocupação, por “Um Pai”, desse lugar vacante (Laurent, 1989). Laurent propõe que o lugar do delírio é dado pela lógica do “todo”, embora um todo sempre parcial, em que algo falta; como, por exemplo, “A Mulher” que falta aos homens é encarnada por Schreber em seu delírio de mulher de Deus, permitindo-o sustentar-se fora do discurso. O sujeito se produz como o objeto que falta no universo do discurso, trata-se, pois, de fazer-se representar neste universo pela invenção de um significante novo para enfrentar o gozo que sempre se opõe ao funcionamento do significante na psicose (1989). 51 Apesar de a trajetória de Lacan se desdobrar a respeito da psicose como, por exemplo, no Seminário XXIII, O Sinthoma (1976), no qual aborda a escritura de James Joyce e a psicose, não observamos nenhuma mudança na posição dos lacanianos em relação ao caráter definitivo da constituição da metáfora delirante como direção da cura na psicose. A clínica da psicose nos reserva o fato de que mesmo constatando o sucesso da constituição da metáfora delirante como direção de tratamento em alguns casos clínicos – guardando-se necessariamente a particularidade de cada caso – observamos que nem sempre é possível não só a sua construção como também a própria sustentação da metáfora delirante. Schreber, mesmo sendo o exemplo princeps por ter construído a célebre metáfora delirante, cujo ponto culminante era a missão de redimir o mundo através de sua transformação em mulher de Deus, fracassou em sustentar essa metáfora por muito tempo. A estabilização se sustenta, ao que parece, por cinco anos. Carone, em introdução à edição brasileira de Memórias de um doente dos nervos, relata-nos que Schreber, após sua alta hospitalar – conquistada judicialmente com o auxílio de seus escritos publicados –, retoma durante cinco anos sua “vida civil”: retorna ao laço conjugal, assim como à advocacia privada; constrói uma casa em Dresden; adota uma adolescente como filha. Ou seja, mantém-se estabilizado graças à borda ante o real que a metáfora delirante lhe permitia (Carone, 1995). Mas, após um episódio transitório de afasia em sua esposa e a morte de sua mãe, Schreber recai em um novo e derradeiro surto psicótico, no qual há um desmantelamento da sua metáfora delirante, levando-o a uma reinternação hospitalar até o final de seus dias. Nesta última internação psiquiátrica, que perdura por quatro anos, Schreber apresenta um quadro clínico que se assemelha a um estupor melancólico. No entanto, a correlação tradicional entre o desencadeamento do terceiro surto, a doença da mulher e a morte da mãe pode ser modificada a partir de várias pesquisas realizadas na década de 50, quando pós-freudianos debruçaram-se novamente sobre o caso Schreber. Segundo Carone, Baumeyer (1955) reúne os três dossiês de internação de Schreber, que contêm preciosas informações a seu respeito como também de sua família (1995). Tais pesquisas nos permitem sugerir como hipótese para o desencadeamento desse terceiro e último surto psicótico o fato de membros das Associações Schreber convocarem Daniel Paul a ratificá-los como os legítimos representantes para prosseguirem com os ideais higienistas de seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber. O famoso médico e pedagogo, como 52 se sabe, pregava uma doutrina educacional implacavelmente rígida, experimentada orgulhosamente entre os próprios filhos, mas, com resultados bastante nefastos em sua própria família – dois filhos psicóticos e um suicida – o que não era levado em conta pelos membros das Associações Schreber. Assim, Schreber - um sujeito desprovido do Nome-do-Pai para apelar diante do real –, quando convidado a falar a partir de um lugar não simbolizado por ele – a posição que ocupava na linhagem a qual pertencia –, responde novamente com um surto psicótico. Foi o que se constatou em seu primeiro surto após a disputa por uma vaga no Parlamento, e no segundo, quando teve que ocupar a cadeira de presidente do Tribunal de Apelação da Saxônia. Então, observamos em Schreber três momentos clínicos distintos: um delírio hipocondríaco na primeira internação; a construção de um delírio paranóico a partir do surto esquizofrênico na segunda internação; e, por fim, a avassaladora desconstrução da metáfora delirante que perduraria por todo o último período de sua vida. É interessante constatarmos que o segundo momento clínico da psicose de Schreber é caracterizado por um início esquizofrênico que se desdobra em uma paranóia, como o próprio título do artigo de Freud ressalta: Pontuações psicoanalíticas sobre um caso de paranóia (Dementia paranoides) descrito autobiograficamente. E, justamente, por haver esse tipo de impasse a respeito da construção da metáfora delirante como acabamos de verificar até mesmo no caso no qual Lacan se apoiou para a elaboração deste conceito, o GIFRIC busca um novo caminho ao propor a desmontagem do delírio e a concomitante construção da fantasia como direção da cura para a psicose, como veremos no terceiro capítulo. 2.3 Alguns aspectos da obra mais tardia de Lacan A psicanálise, desde o ato fundante de Freud até a sua formalização pelo ensino de Lacan, tem a linguagem como a estrutura por excelência, que cifra e decifra uma Outra Cena – ein anderer Schauplatz –, constitutiva de todo ser falante. Caminho bastante diferente este da psicanálise em relação à psicologia e à psiquiatria, que consideram a linguagem apenas como 53 uma das funções cognitivas do ser humano, podendo ou não vir a apresentar algum tipo de transtorno psicopatológico. Então, para a psicanálise, a constituição de todo ser falante se processa em relação à linguagem, ou seja, no laço entre o sujeito e o significante. Enlaçamento que apresenta o estatuto de um axioma para a psicanálise (Milner, 1996). Portanto, há sempre um sujeito implicado na estrutura de linguagem, independentemente de sua manifestação fenomenológica, como a clínica pode nos revelar através da neurose, perversão ou psicose. Nesse sentido, a partir dos percursos de Freud e Lacan, um sujeito na psicose encontrase aí implicado e não, excluído, apesar de todas as dificuldades em teorizá-lo e principalmente em manejar a transferência psicótica na direção de tratamento. Portanto, o que difere nos três arranjos subjetivos – neurose, perversão e psicose – é a posição tomada pelo sujeito ante a diferença sexual, isto é, a castração. A constituição do sujeito apresenta precisamente duas encruzilhadas estruturais: o estádio do espelho e o complexo de Édipo. O estádio do espelho é o momento lógico de formação da imagem narcísica unificada do sujeito, quando, a partir do espelhamento com o semelhante, o infans assume uma imagem de completude corporal em contraponto à precariedade motora real na qual se encontra imerso. Entretanto, mesmo sendo um processo que se desenrola no registro imaginário, o estádio do espelho encontra-se apoiado desde sempre no simbólico: é a palavra do Outro que corta e recorta a imagem do sujeito no espelho. O estádio do espelho revela as relações do sujeito com o seu semelhante, o outro imaginário. Essas relações apresentam um caráter de dualidade e ambivalência, na medida em que amor e ódio se mesclam nesse encontro especular entre a incompletude do sujeito e a plenitude imaginária do outro. Território das paixões, o eu do sujeito encontra-se enredado por um movimento que o lança incessantemente “do amor ao ódio, da completude à falta, da submissa captura erótica ao ímpeto de destruição, da exclusão à intrusão e à dependência do outro, do aniquilamento ao júbilo” (Souza, 1999, p.31). Segundo Souza, em suas elaborações a partir dos anos sessenta, Lacan não se restringe mais a uma conceituação do imaginário apoiada apenas na ambivalência irredutível entre o amor e o ódio: hainamoration. A nova concepção de Lacan a respeito do imaginário desloca o espelho plano em benefício do nó borromeano. Portanto, Lacan vai da geometria bidimensional à topologia do nó que, por sua vez, caracteriza-se, no caso desse tipo de nó, por consistir-se em três elos equivalentes atados de uma forma tal, que, se um deles se romper, os 54 outros dois também se desatam. Os elos do nó borromeano são nomeados por Lacan como real, simbólico e imaginário (1999). “A cadeia borromeana, esse nó feito de buracos – os elos são vazios contornados por uma borda –, é a condição de possibilidade de um novo espaço não mais referido à completude da figura do espelho, mas à potência do vazio” (Souza, 1999, p.32). Portanto, a partir dos furos que compõem os elos do nó borromeano, esvazia-se a imagem aparentemente completa do outro semelhante que se encontra no primeiro imaginário. Assim, a partir do vazio da imagem, por um processo contínuo, sem rupturas, uma nova imagem simétrica e invertida vem se produzir como imagem do eu. A topologia geral, segundo Eidelsztein, estuda as propriedades de um objeto que, mesmo sofrendo deformações, não apresenta roturas (Eidelsztein, 1992). Então, Lacan utiliza a topologia para dar conta de propriedades invariantes a despeito de transformações contínuas, como podemos observar metaforicamente, no exemplo do reviramento de uma luva que, a partir de sua abertura, transforma a “luva da mão esquerda” na “luva da mão direita”. O vazio da abertura da luva é que gera a consistência da imagem. Nesse sentido, o imaginário apresenta como efeitos a consistência e a efetividade. Consistência que propicia corpo ao espaço do falante, efetividade que mantém os três elos unidos borromeanamente (Souza, 1999). O nó borromeano articula os três registros através do imaginário, que doa corpo com seus disfarces, velando tanto a aridez da combinatória significante como a radical ausência de sentido que caracteriza o real para o falante. O imaginário consiste, o simbólico insiste e o real ex-siste. Portanto, a realidade psíquica de cada sujeito se constitui a partir do modo particular de enodamento borromeano (1999). Agora, comentaremos brevemente a outra encruzilhada estrutural que se apresenta na constituição do sujeito: a travessia do complexo de Édipo – momento lógico articulado ao complexo de castração. Nesse momento, o que há de fundamental é a castração que se presentifica como o operador estruturante para qualquer experiência subjetiva. Todavia, o que difere as estruturas clínicas é a resposta dada à castração: recalque, recusa ou rejeição. Freud depreende de sua experiência clínica que o sujeito, em um primeiro tempo na infância, constrói uma teoria sexual na qual todos os seres humanos possuem o mesmo órgão genital: o pênis. Freud denominou este primeiro tempo como o da primazia do falo, não concedendo primazia propriamente aos órgãos genitais. No entanto, em um segundo tempo na 55 infância, o sujeito é confrontado com a diferença sexual anatômica, experiência desconcertante que o lança à difícil tarefa de produzir algum sentido diante dessa constatação. Assim, a castração é abordada pelo sujeito através da fantasia de que o pênis fora castrado nas mulheres, e nos homens, pode vir a sê-lo. Portanto, o que pesa sobre o sujeito que ocupa a posição masculina é a ameaça da castração, que o leva a ressignificar as ameaças recebidas até então, principalmente a respeito da interdição de seu objeto privilegiado: a mãe. No coração da triangulação edípica – desejos amorosos e hostis que a criança vivencia em relação aos pais –, a letra da Lei é clara: o incesto é proibido e, se houver desobediência, punese com a castração. Em se cumprindo a lei, declina-se o Édipo – o sujeito abandona a mãe como objeto de desejo e identifica-se com o pai –, instaurando-se o devir da sexualidade masculina. Em relação ao sujeito que ocupa a posição feminina, a constatação da diferença sexual repercute de outra maneira: impera a reivindicação de um pênis. Portanto, na posição feminina, manifesta-se a inveja do pênis como efeito do complexo de castração, conduzindo o sujeito a buscar uma via diferente da masculina nos labirintos do Édipo. Busca-se aí um ressarcimento pela falta do pênis, que pode vir através de um filho do pai. Obviamente que esta saída do Édipo será realizada com um parceiro não-interditado. A fantasia da castração é construída para dar conta da diferença sexual anatômica, tendo como premissa o primado universal do falo. Portanto, o falo é tomado pela psicanálise não como um órgão corporal – pênis ou clitóris –, mas sim como um significante que nomeia o desejo organizador da sexualidade infantil. E a castração é tomada como a Lei que ordena o desejo do falante. Dessa forma, a castração é formulada, segundo Lacan, não como uma fantasmagoria imaginária, mas como Lei (Souza, 1999). Portanto, o Édipo – como segunda encruzilhada estrutural na constituição do sujeito – é articulado à estrutura de linguagem através do significante Nome-do-Pai. O significante paterno tanto produz a interdição do incesto como barra o desejo da mãe em reintegrar o seu produto. Assim, a metáfora paterna possibilita a amarração da cadeia discursiva através do ponto de capiton que articula significante e significado. Prosseguiremos no avanço de Lacan a respeito da concepção de estrutura na psicanálise. Souza assinala que, ao escrevermos, falarmos sobre estrutura neurótica ou estrutura psicótica, por exemplo, estamos fazendo uma distinção no sentido relativamente lato a 56 respeito da estrutura em psicanálise. Rigorosamente não seguimos o que Lacan nos propôs no Seminário inédito D’un Autre à l’autre, em que afirmou que, para qualquer construção de uma organização subjetiva, “a estrutura é S (A), só isso” (Lacan, 1969). “Dizer que a estrutura é S (A) é dizer os quatro termos que a constituem: S1, S2, a, S. É que S (A) é o significante da falta de significante, o significante por excelência, condição de possibilidade da cadeia, da articulação significante. Dizer, portanto, S(A) é enunciar pelo menos dois significantes: S1 – S2. E porque esta articulação implica necessariamente uma perda, algo que escapa sempre, dizer S(A) é também dizer a. E mais, como entre o que se articula e o que escapa sempre emerge um efeito, efeito sujeito dividido entre, dizer S(A) é, por último, dizer S” (Souza, 1999, p.79). Portanto, Lacan formaliza a estrutura mínima presente na experiência psicanalítica através desse matema: S(A). Com essa fórmula enuncia um limite à cadeia simbólica – a incompletude do Outro – como discurso inconsciente. Ao condensar nesse matema da estrutura os quatro elementos que a constituem, como bem explanou Santos na citação acima, o ensino de Lacan toca nesse ponto de impossível que a linguagem impõe a todo ser falante. O próprio sujeito é efeito do trauma que a estrutura de linguagem confere ao vivente, mas é justamente por sujeitar-se à linguagem que o sujeito pode transitar no possível do humano. A questão é como o sujeito acolhe esse “convite” que a estrutura lhe faz, e a diferença reside na resposta possível de cada sujeito. Nesse sentido, ante a incompletude do Outro, o sujeito pode “escolher” uma das três vias para lidar com essa inconsistência: recalcar, recusar ou foracluir. Portanto, neurose, perversão e psicose são configurações diferentes da inserção do sujeito na estrutura, estrutura essa que, todavia, apresenta os mesmos elementos: S1, S2, a, S. O encontro entre o sujeito e o Outro como estrutura de linguagem é sempre faltante, a própria estrutura é marcada pela incompletude; portanto, desencontros assinalam a desproporção entre o sujeito e o Outro. Segundo Souza, a fantasia é o que permite mediar de certa forma o descompasso entre o sujeito e o Outro, a ponto de afirmar que “os sujeitos, neuróticos e psicóticos, respondem ao real com a fantasia” (1999, p.80). Ou seja, reporta-se à posição de Lacan que sustenta que a fantasia é a resposta do sujeito perante o S(A). Dessa maneira, a fantasia é afirmada como o recurso principal que o sujeito possui para lidar com o real da linguagem. E a diferença entre os arranjos neurótico e psicótico reside mais no estilo como cada fantasia é construída do que em considerá-la apenas um fato de estrutura exclusivo da neurose; na medida em que a questão a respeito do que o Outro quer do sujeito está para todo ser falante. 57 A fantasia neurótica responde a questão a respeito do Outro ao elevá-lo à condição de enigma. Então, a própria resposta neurótica é a colocação de uma pergunta que, por ser enigmática, não aceita resposta fácil. Dessa forma, o enigma sempre mantém aberta uma lacuna entre a pergunta e a resposta, sendo da ordem do impossível que a resposta preencha totalmente o que lhe é questionado (1999). Assim, na construção da fantasia neurótica, um vazio perpassa o intervalo entre a pergunta e a resposta, vazio que constitui o desejo como indestrutível para a neurose. Mas o neurótico quer se defender justamente dessa fissura que se apresenta tanto para o Outro – vivida pelo neurótico como desejo do Outro – quanto para o próprio sujeito. E o neurótico se defende do desejo reduzindo-o à demanda, que, por sua vez, é sempre demanda de amor. Neste momento da construção da fantasia neurótica, o amor é vivido como uma obturação do vazio constitutivo do ser falante, desfazendo, assim, a precariedade que lhe é própria. Portanto, ao oferecer-se como objeto que completa à demanda do Outro, o neurótico ilusoriamente se completa aí também. Mas como a resposta neurótica claudica, é incompleta, porque é impossível suturar tudo que tange a não-proporção entre o sujeito e o Outro, resta um saber inacessível ao próprio sujeito, que inventa essa saída ante o enigma do desejo do Outro. O saber não sabido é justamente o que é da ordem do inconsciente. Assim, “com a fantasia neurótica, o sujeito inventa o inconsciente” (1999, p.81). Em relação à psicose, Souza pinça o termo “fantasia delirante” do texto de Freud intitulado As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade para demarcar um outro tipo de posicionamento ante a questão do Outro. A fantasia delirante, então, não se estrutura, conservando um certo enigma a respeito do desejo do Outro – pressupõe de antemão uma resposta certeira que não vacila em afirmar que “o Outro quer o meu mal” (1999, p.81). A fantasia delirante pauta-se não apenas em ser uma resposta assustadora, como se constata em muitos casos, mas apresenta-se principalmente como uma certeza que não vacila, não deixa dúvida alguma para o sujeito, ou seja, é vivida como um bloco compacto que aglutina a pergunta à resposta – operação que não deixa resto. Embora, a fantasia delirante não admita falhas, brechas, incertezas, dúvidas – como a fantasia neurótica comporta –, é considerada por Souza uma fantasia porque cumpre a função maior de “oferecer ao sujeito uma significação absoluta ao desejo do Outro e, assim, obturar no sujeito sua falta-a-ser” (1999). 58 Nesse sentido, a fantasia delirante, por constituir-se marcada por um saber sem vacilação a respeito do que o Outro deseja – o mal do sujeito –, apresenta-se até mais bem sucedida do que a fantasia neurótica, que porta sempre uma certa inconsistência do próprio sujeito e do Outro. A fantasia delirante não só justifica a existência do sujeito como objeto da maldade do Outro como produz por isso a consistência tanto de si como de um Outro perseguidor. Contudo, como esclarece Souza, a fantasia delirante apresenta uma carência em sua construção. Carece do próprio furo que constitui o inconsciente, ou seja, carece de um saber não-todo, justamente por sempre se dotar de um saber sem fissura, sem lacuna. O saber da fantasia do psicótico confunde-se aqui com a verdade toda, compacta, não se desvelando como a verdade ficcional do neurótico, que se deixa apreender como meio-dizer nas pulsações do inconsciente (1999). Em Televisão, Lacan afirma que o psicótico rechaça o inconsciente (1993). Rechaça, rejeita, foraclui justamente um saber que não se fecha em si mesmo, um saber que apresenta uma precariedade porque algo sempre se perde no furo do turbilhão que constitui o seu próprio umbigo. O psicótico, com a sua fantasia delirante – que nos parece nada mais que o próprio delírio –, demonstra que não suporta a operação de linguagem que o divide como a todo ser falante. O Outro – o inconsciente, a linguagem, a máquina significante – é apreendido diferentemente pelas configurações neurótica e psicótica. A neurose, em decorrência do recalque que barra o Outro, esvazia o gozo do Outro, que então se apresenta silencioso, discreto, revelando-se apenas em momentos fugazes como uma das formações do inconsciente. Na psicose, devido à falha em barrar o Outro, este se presentifica barulhento, ensurdecedor, atormentando o sujeito através dos fenômenos elementares quando se constata que o Outro goza do sujeito. Segundo Souza, o gozo do Outro está intimamente relacionado à questão do saber: “O saber todo do lado do Outro é um dos nomes de Seu gozo” (Souza, 1999, p.85). Na psicose, tem-se o saber do lado do Outro, e nenhum, do lado do sujeito, indicando a sua precariedade. Portanto, para o psicótico, sobreviver é crucial que se defenda criando um saber que faça barreira ao gozo do Outro, ou seja, a esse saber completo provindo do Outro. Nesse sentido, o delírio pode ser definido como um saber metafórico porque, mesmo constituído por significações não vinculadas à metáfora paterna e à significação fálica – 59 portanto, excluído da norma fálica –, transforma o caos significante em uma ordem sistematizada. Dessa forma, o delírio na condição de metáfora também opera uma substituição significante e se confronta com uma temática comum também ao saber neurótico, isto é: as questões a respeito da origem, do sexo e da morte. Assim, a posição sustentada por Souza, a partir de sua leitura de Freud e Lacan, se aproxima em alguns aspectos das postulações do GIFRIC a respeito do delírio e da fantasia, como veremos nos próximos dois capítulos. 60 3 A QUESTÃO DO DELÍRIO NA EXPERIÊNCIA TEÓRICO-CLÍNICA DO GIFRIC 3.1 O Centro psicanalítico para jovens psicóticos: uma breve apresentação A obra de Jacques Lacan foi introduzida em solo canadense, mais especificamente a partir da cidade de Québec, por Willy Apollon, em 1970, após seu doutoramento em filosofia pela Universidade de Paris (Sorbonne) e formação psicanalítica realizados concomitantemente na França. Como fruto dessa transmissão da psicanálise de orientação lacaniana que se desenvolveu no Canadá ao longo da década de 70, foi constituído o Grupo Interdisciplinar Freudiano de Pesquisa e Intervenção Clínica – GIFRIC –, que, desde o princípio, voltou-se muito para o desafio sempre renovador que a clínica da psicose desperta, entre os psicanalistas, desde Sigmund Freud. Em 1982, foi criado pelo GIFRIC, em Québec, um Centro psicanalítico de tratamento para adultos jovens psicóticos denominado “388”, ou seja, uma instituição extra-hospitalar, em colaboração com o Centro Hospitalar Robert-Giffard, que intervém junto à clínica da psicose através da palavra como primeiro e principal instrumento a partir da ética da psicanálise em contraponto às práticas biologizantes tão difundidas atualmente tanto na América do Norte como em todo mundo. O eixo principal que rege o “388” está em possibilitar uma psicanálise junto aos psicóticos que procuram a instituição a partir de uma demanda espontânea ou indicada por algum profissional da área de saúde mental, sendo acolhidos somente após entrevistas junto a uma comissão de admissão. Assim, o trabalho desenvolvido no Centro é norteado pela psicanálise nas dimensões clínica, teórica e administrativa, não havendo uma primazia médica. No entanto, a psiquiatria se encontra presente e articulada ao tratamento psicanalítico dos psicóticos. E, para que haja a sustentação desse desafio de conduzir uma cura psicanalítica junto a psicóticos, foram criados alguns dispositivos no “388” para possibilitar o trabalho analítico. Em função disso, o Centro é estruturado basicamente por duas modalidades de suporte ao tratamento psicanalítico individual: equipes compostas de um interveniente clínico, um 61 psiquiatra, um trabalhador social e o próprio usuário; ateliês dirigidos por artistas ou profissionais – de determinada especialidade – inseridos na própria cidade de Québec. Então, ao sujeito que ingressa na instituição é ofertada, inicialmente, a participação em uma equipe de acompanhamento e nos ateliês até que haja uma demanda explicitada por parte do usuário a se engajar em uma cura analítica num segundo tempo. O diferencial observado no trabalho da equipe de acompanhamento, realizado em conjunto entre o usuário e os técnicos, está no papel do interveniente clínico, que se disponibiliza a acompanhar o usuário tanto no dia-a-dia do “388” como no espaço comunitário quando necessário, com exceção das atividades nos ateliês de arte. Nos ateliês de criação, o caráter de intervenção clínica não está presente, mas sim a oportunidade de uma prática estética nos seguintes campos: escultura, pintura, escritura, música, teatro, a produção de um jornal, culinária, passeios pela cidade, esporte (badmington) e o ateliê de viagem no qual os usuários vendem os alimentos produzidos na cozinha para angariar fundos para a realização de viagens pelo país e mesmo pelo exterior. 3.2 O Lugar do Delírio na Produção Teórico-Clínica do GIFRIC Os principais autores que integram o GIFRIC – Apollon, Bergeron e Cantin –, em decorrência de todas as iniciativas realizadas no “388” que permitem a sustentação de uma clínica psicanalítica da psicose há praticamente 20 anos, decantaram em suas publicações uma certa ousadia em teorizar a direção de tratamento aos psicóticos, embora se mantendo “fiéis” tanto à obra de Freud como à de Lacan. Entretanto, a fidelidade a Lacan apresenta-se de uma maneira peculiar em Apollon, que, mesmo tendo o ensino de Lacan como o eixo de sua prática e de suas pesquisas, paradoxalmente faz uma crítica ao ensino lacaniano como verificamos na seguinte afirmação: “não encontramos nesses ensinamentos, trabalhos e pesquisas nenhuma linha diretriz nem uma orientação eficaz para a clínica das psicoses que respondessem à situação pela qual somos confrontados” (Apollon, 1999, p.80). Apollon sustenta um caminho próprio quando considera as neurociências o novo interlocutor ao qual somos hoje confrontados no debate a respeito da pesquisa, da clínica e do 62 financiamento junto aos gestores públicos (1999). Isso marca uma diferença em relação aos interlocutores de Lacan que lotavam seu anfiteatro durante seus Seminários, pois, se apoiando em diversos saberes como a filosofia, lingüística, antropologia, psiquiatria, literatura, matemática, topologia, etc., buscava testemunhas tanto entre sua audiência quanto alhures para tecer da forma mais radical possível a originalidade do passo freudiano. Mas a afirmação de Apollon nos faz refletir e interrogar a respeito da proposta do GIFRIC em manter-se apoiado nos conceitos fundamentais desenvolvidos por Freud e Lacan, mesmo que reivindicando para si um avanço teórico-clínico, tributário da experiência no “388”, no que se refere à direção de tratamento propriamente dita junto à psicose. E é justamente este “avanço” em relação ao legado de Freud e Lacan que constitui um dos pontos centrais desta pesquisa, priorizando-se o lugar que o delírio ocupa em toda a concepção clínica da psicose desenvolvida pelo GIFRIC. A crítica, já mencionada, que Apollon faz ao lacanismo oficial recai também sobre a postura intelectualizante dos discípulos de Lacan em relação ao que seria uma psicose, isto é, uma compreensão teórica que, mesmo trazendo algum progresso discursivo, não toca na questão decisiva quanto ao tratamento da psicose. “Os melhores discursos teóricos sobre a psicose, tanto quanto os fragmentos clínicos que pretendem esclarecê-la, nunca fizeram mais que mostrar a inteligência do clínico, senão o saber pretenso do psicanalista” (1999, p.17). Segundo Apollon, levar a sério a palavra do psicótico é sair da postura clínica da psiquiatria, que não reconhece nesta palavra a presença de um sujeito nem mesmo a possibilidade do advento de uma enunciação subjetiva como efeito de uma escuta analítica. Ponto fundamental a se sustentar sempre que nos encontramos na função de analistas diante de qualquer ser falante, ainda mais o psicótico (1999). Mas, o problema é que Apollon posiciona-se como se essa escuta da palavra do psicótico fosse um privilégio exclusivo do trabalho deles, desvalorizando um pouco a contribuição de Lacan ante a psicose ao considerá-lo ainda como o secretário do alienado numa menção indireta ao Lacan do caso Aimée. Como se toda a produção lacaniana tivesse se estagnado no momento de sua tese de medicina (1932), quando Lacan nem se dedicava ao ofício de psicanalista. Entretanto, mesmo afirmando que “Lacan não nos deixou uma problemática clínica para o tratamento das psicoses, e ainda menos uma estratégia para guiar sob transferência a experiência psicótica até produzir um saber que faça suplência ao delírio” (1999, p.21), 63 Apollon reconhece que os seus próprios avanços se dão no campo aberto pelo ensino e prática de Jacques Lacan, como já foi dito acima. No entanto, ele se apóia nos resultados clínicos obtidos no “388” para sustentar um caminho próprio. A produção de um saber que faça suplência ao delírio é o aspecto fundamental a ser investigado em nossa pesquisa em relação à prática clínica desenvolvida pelo GIFRIC. Mas a direção conferida à cura psicanalítica no “388” não prescinde, muito pelo contrário, é tributária também de todo o avanço que representa a obra de Lacan a respeito da psicose. A começar pela própria questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, a que Lacan se ateve no final dos anos 50, quando delimitou a foraclusão do Nome-do-Pai como o passo definitivo na distinção estrutural entre neurose e psicose, na medida em que o recalque concernente ao campo das neuroses já havia sido muito bem definido por Freud. A partir dessa preciosa contribuição de Lacan, abre-se uma maior possibilidade de tratar a psicose pela psicanálise. A ponto de o próprio Apollon partir dessa pedra angular para definir a psicose como residindo “essencialmente na perda do laço social causado pela foraclusão dos Nomes-do-Pai” (1999, p.225). Assim, em um tempo primeiro, fundamental na constituição do sujeito – o da entrada no universo simbólico através das primeiras marcas significantes herdadas da rede que habitamos – ocorre um tipo de falha quando se trata da psicose. Os primeiros significantes identificadores e constituintes do sujeito são rejeitados, indicando-se nisso o mecanismo da Verwerfung freudiana, traduzido por Lacan como foraclusão (1999). A rejeição desses significantes primordiais da cena inconsciente do sujeito implica, principalmente a partir do desencadeamento do surto psicótico, não uma perda da realidade, como ainda se escuta fora dos meios lacanianos, mas uma perda do laço social. Levando-se em conta que o laço social é definido por Apollon como “a capacidade do sujeito em negociar a satisfação e a coexistência com o outro na língua da sociedade que, por seus valores e suas leis define as regras em jogo nessa negociação” (1999, p.225). Leitura de Apollon a respeito do laço social que cruza as abordagens antropológica e psicanalítica de sua formação intelectual. A psicose solicita outras soluções, diferentes daquelas encontradas para a neurose; e, a partir do legado freudiano que sustenta a questão do pai como o determinante estrutural na instauração do psiquismo humano, Apollon delimita as relações entre paternidade e psicose para abordar o delírio e o lugar que este ocupa na direção de tratamento. Nessa trajetória, 64 Apollon afirma que Lacan desloca o acento que Freud concede ao Édipo na problemática da psicose, não o atrelando às soluções encontradas para abordar a psicose, o que amplia o seu campo de investigação clínica. Como podemos acompanhar na seguinte citação: “esse deslocamento se opera da questão do Édipo como mito da castração e da impossível satisfação do desejo, em direção ao ‘mal-estar na civilização’, a questão da morte do pai como mito fundador da articulação do sujeito humano, à ordem infundada do simbólico” (1999, p.130). E Apollon enfatiza que essa passagem que a leitura lacaniana proporciona nos permite fazer uma distinção entre os dois mitos construídos por Freud: o do Édipo e o do Pai-Morto. O primeiro referindo-se ao mito individual da castração, habitualmente relacionado à neurose; o segundo, apresentado, principalmente, em Totem e tabu e Moisés e o monoteísmo, relacionado à morte do pai como a possibilidade de instauração da própria ordem simbólica humana (1999). O mito do Pai-Morto que funda a própria ordem simbólica é essencial para a possibilidade de constituição da metáfora paterna para cada sujeito falante em particular, na medida em que introduz a questão fundamental da autoridade. A produção mítica do pai encontra-se na busca da origem, do fundamento da própria ordem simbólica, dotando-se o pai, portanto, de uma autoridade para selar uma origem fundadora. O mito do pai surge no lugar em que não há nada, não havia nada, sendo por isso “o Símbolo por excelência”, uma produção ex-nihilo. Assim, o pai significa o fundamento, a origem, autorizando-se a portar uma verdade, numa tentativa de suplantar justamente o que havia antes da instauração do mito. Isto é, o “Infundado” do simbólico como designa Apollon para nomear o hors-sens na qual encontra-se a impossibilidade real de saber sobre a origem (1999). “O Pai é assim a figura do começo simbólico que o mito produz no lugar da ausência de Fundamento ou de Verdade em última instância” (1999, p.134). Portanto, o Pai é gerador de sentido. Significante privilegiado que vetoriza na maior parte das vezes as manifestações da cadeia discursiva do ser falante. Essa busca pelo fundamento primeiro também pode ser observada, por exemplo, nos fenômenos religiosos ao longo das histórias e na própria metafísica iniciada pelos gregos. Apollon depreende do texto freudiano Totem e tabu a construção de um mito fundador da ordem simbólica e do real, decorrente da abordagem da questão do pai pela psicanálise. E, na instauração do simbólico, haveria dois tempos. Em um primeiro tempo imaginário, o pai da 65 horda, todo poderoso e gozador de todas as mulheres, fruto da lei do mais forte, encontrar-seia no reino do gozo absoluto. E é justamente essa satisfação total e imediata em que se constituirá o impossível após a sua morte pelos filhos. Convém lembrarmos que Apollon considera que esse pai da horda é o Outro imaginário ao qual o psicótico é muitas vezes submetido da forma mais cruel (1999). Em um segundo tempo, a morte engendra o símbolo. O parricídio promove a lei de que nenhum dos filhos usufruirá desse lugar de gozo sem limite; um vazio, portanto, se produz no lugar do Pai-morto. O significante funda-se diretamente sobre esse vazio, esse furo, ausência do pai como fundamento último da ordem simbólica. Com isso, produz-se, a partir desse impossível, um real, o que impossibilita um gozo que seria total. É o advento do simbólico que torna real uma impossibilidade, ou seja, um real instituído pela própria produção do simbólico e, não, fruto de estruturas físicas de uma realidade sensível. Com a promoção da Lei, o gozo é mediatizado e parcial, restando no que Freud definiu como o inconsciente, das Ding, essa “Coisa” inapreensível pela malha significante. Apollon pluraliza o Nome-do-Pai – talvez, fruto da leitura do ensino mais tardio de Lacan – considerando os Nomes-do-Pai como os significantes “guardiões” do real, e este é efeito da própria construção do psiquismo humano. O que confere sentido à existência humana é produto de um discurso mítico que, por sua vez, repousa sempre sobre o “Infundado” do simbólico. Então, os Nomes-do-Pai, por invocarem a credibilidade da palavra e da boa fé, garantiriam arbitrariamente um sentido (1999). E é dessa forma que os Nomes-do-Pai estão implicados na metáfora paterna, veiculando um sentido na estrutura da neurose, justamente o que fracassa quando se trata da psicose, devido à foraclusão dos Nomes-do-Pai, como poderemos acompanhar nos casos clínicos do próximo capítulo. Constatamos na clínica que a foraclusão da metáfora paterna gera um desarranjo simbólico no psicótico, sendo o delírio uma tentativa de reparação dessa falta da metáfora paterna. Portanto, Apollon parte da enunciação freudiana de que a tentativa de cura espontânea da psicose já é a construção do delírio, é o que aponta ao escrever que “a psicose coloca imediatamente o sujeito ao trabalho da produção de uma solução que diagnosticamos delirante” (1990, p.78). Mas o analista, sustentado por seu desejo, confrontaria eticamente o 66 psicótico a buscar uma solução diferente do delírio ante os fenômenos elementares desencadeados pelo surto psicótico. Então, perante os fenômenos de automatismo mental, tão bem descritos por Clérambault no resgate realizado por Lacan, o psicótico constrói o delírio. Assim, segundo Apollon, o analista não trabalharia na produção de uma metáfora delirante como se preconiza tradicionalmente entre os lacanianos, mas a direção de tratamento visaria uma desconstrução da solução delirante. A tese central de Apollon quanto ao tratamento psicanalítico da psicose baseia-se “no esforço de penetrar o trabalho do delírio para desembaraçar a fantasia que o sustenta, modificar esse trabalho e acompanhá-lo até o ponto onde deixa seu espaço próprio ao sujeito do desejo, na busca de um novo laço social” (1990, p.79). Podemos observar, então, nessa tese, uma proposta bastante ambiciosa de Apollon, ao preconizar a desmontagem do delírio, ao desembaraçar a fantasia que o sustenta. Entretanto, os esclarecimentos teóricos a respeito dessa afirmação não são amplamente desenvolvidos em suas publicações, como veremos ao longo desse capítulo. Retornando à questão do delírio como nos propõe Apollon, observa-se que, no lugar do buraco deixado pela foraclusão da metáfora paterna, um Outro arcaico irrompe na psicose. E a postura desse Outro ante o psicótico é de imposição de gozo. O Outro do psicótico empresta corpo à lógica do delírio que identifica aí o imperativo de gozo numa busca de produzir consistência ao discurso que tenta reparar as falhas da rede simbólica. O psicótico necessita reparar a falta de fundamento que compromete a ordem simbólica; para tal, o delírio o lança na empreitada de fundação de uma nova ordem, de um novo sentido, através de uma “missão”. Portanto, segundo Apollon, o delírio estrutura-se ao redor de uma “missão” em que o psicótico encontra-se como objeto de um Outro. Essa missão singulariza o psicótico na medida em que se identifica com a eleição proveniente do Outro. Assim, a missão que o delírio concede ao psicótico cria uma barreira aos fenômenos psíquicos ou vocais intrusivos na cadeia discursiva, possibilitando uma ordem ao caos do universo psicótico (1999). Apollon delimita três tempos na construção do delírio para orientar a posição do analista no tratamento. Esses três tempos relacionam-se essencialmente à função princeps da linguagem, a metafórica, na constituição do sujeito habitado pela palavra. Portanto, o que está em jogo no tratamento da psicose é a tentativa de (re)constituir um sujeito enunciador, na 67 medida em que o psicótico encontra-se geralmente privado da dimensão metafórica, permanecendo muitas vezes preso apenas ao deslizamento metonímico da linguagem (1999). No primeiro tempo, o delírio organiza-se como uma maneira de interromper a irrupção alucinatória de significantes destrutivos vindos do Outro e que esvaziam e veiculam a morte do sujeito. Como a função metafórica da linguagem está comprometida no psicótico – o que o dificulta a se representar e se metaforizar para um outro a partir de uma posição subjetiva própria –, instaura-se um lugar vazio onde seu ser é capturado por um Outro devorador. Então, ou o psicótico sucumbe a esse sacrifício ou busca construir uma nova linguagem que escape a esse aniquilamento, residindo aí talvez a “esperança” que orienta toda a construção delirante. No segundo tempo, o delírio tem como tarefa reorganizar a linguagem para neutralizar as ingerências desse Outro não castrado. E, nesta empresa, os neologismos vêm em socorro para tomar o lugar desse “inaudível” que o Outro profere. Os neologismos, como novas formas semânticas ou combinações sintáticas, fazem-se presentes no discurso delirante em forma de aparições lingüísticas destacadas de seu conjunto, quando se esperaria algum tipo de enunciado metafórico. Mas essa forma de pagamento ao Outro, através de manifestações neológicas, não é suficiente. Nesse caso, segundo Apollon, objetos ocupam o lugar dos neologismos sempre onde a metáfora paterna faz falta. Finalmente, no terceiro tempo, como já mencionado acima, um objeto particular ocupa esse lugar vazio deixado pelo significante. Algum objeto como um “órgão interno”, na terminologia de Apollon, é investido pelas palavras do Outro, que apontam a morte do sujeito. Então, o psicótico se identificaria com esse objeto, podendo representar-se, inclusive, como já morto, numa tentativa de fundar seu ser a partir desse objeto impossível. Talvez numa busca de colocar em ação a morte do pai, que não se deu para o psicótico, para elevá-lo à categoria de significante. Essa é a forma como o delírio se orienta para construir uma alternativa à falha estrutural presente na simbolização primeira do psicótico (1999). 3.3 A Direção de Tratamento da Psicose no “388” O GIFRIC sustenta que, para que a psicanálise possa se lançar ao tratamento da psicose com melhores resultados, é necessário fazer algumas mudanças teóricas e técnicas 68 dentro do seu próprio campo, sem perder o rigor da invenção de Freud. Com isso, pretende-se a contraposição aos enormes preconceitos do atual ensino oficial relativo às neurociências, que não reconhece qualquer possibilidade de tratamento psicanalítico da psicose. Apollon postula quatro vias pelas quais os psicóticos podem transitar no laço social: – a prática artística que promete um espaço ao desejo do sujeito; – a religião ou a ciência, situados no campo do saber, numa tentativa de fundar um laço social, não importando que esse saber seja revelado ou tecnologicamente adquirido; – a psicanálise, cuja ética requer o retorno do sujeito do desejo ao campo do saber e ao laço social; – e, por fim, a escritura, na qual o psicótico se implica em cada uma das vias precedentes, sustentando a escolha do seu delírio (1990, p.78). Dentre essas vias de possível retomada do laço social pelo psicótico, obviamente o “388” é o lugar onde o sujeito se endereça à psicanálise para reestruturar-se através de um longo percurso. Em relação à atividade artística propriamente dita, esta participa ou não como efeito de uma cura analítica no “388”. O fundamental é que Apollon aposta basicamente na constituição de um sujeito do desejo como resultante de uma psicanálise, ou seja, a restituição do desejo pelo sujeito. Aspecto intrigante, que necessitará melhor enquadramento por nossa pesquisa, na medida em que tradicionalmente entre os lacanianos não se afirme que haja um sujeito do desejo na estrutura psicótica, mas, ao contrário, o psicótico estaria fadado a ocupar o lugar de objeto de gozo de um Outro, enquanto a possibilidade do desejo se referiria apenas à estrutura neurótica. Assim, mesmo mantendo-se uma distinção estrutural entre neurose e psicose – recalque e foraclusão – Apollon pressupõe a presença das mesmas categorias tanto para uma como para a outra estrutura subjetiva. Como notamos em relação ao desejo, a fantasia, o sintoma (o delírio é considerado por ele um sintoma psicótico). Entretanto, a diferença está no arranjo dessas categorias teóricas que são depreendidas da experiência clínica em cada posição subjetiva. O tratamento analítico, segundo Apollon, regularia em última instância o trabalho da psicose, que é o delírio, pressupondo, para tal, quatro momentos lógicos em que o sujeito psicótico, eticamente implicado em seus dizeres, o remanejaria, na medida em que o 69 remanejamento mesmo do delírio é o que constitui o cerne do tratamento desenvolvido pelo GIFRIC. O remanejamento do delírio produz uma fantasia fundamental que melhor posiciona o psicótico ante o “Infundado” do simbólico, que, por sua vez, encontra-se presente para todo ser falante, independentemente da estrutura clínica. De acordo com Apollon, poderíamos pensar que o que varia entre as três grandes estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – é a resposta que cada uma delas fornece à questão fundamental do ser falante: qual o fundamento último que justifica a “ex-sistência” humana? É interessante observar que, praticamente em nenhuma passagem dos textos do GIFRIC, se menciona o termo “metáfora delirante” desenvolvido por Lacan em seu texto De uma questão preliminar. Talvez pelo fato de o grupo canadense considerar que a metáfora delirante em si já faça parte do processo de estabilização espontânea da psicose, não pertencendo, portanto, a uma cura analítica propriamente dita, que se dispõe a produzir uma mudança na posição subjetiva do psicótico diante do delírio. Apollon diferencia em sua teorização o que é da ordem de um tratamento e o que pertence à cura analítica. O tratamento corresponde à psicoterapia que visa “apenas” à estabilização pela via do próprio delírio (metáfora delirante), enquanto a cura analítica proporciona um remanejamento do delírio (1999). Seria, então, a metáfora delirante um sinônimo de delírio para Apollon? Talvez possamos responder que sim porque a omissão sistemática do termo “metáfora delirante” nos textos do GIFRIC e a exclusiva consideração a respeito do delírio representem para eles que ambos os termos se equivalem. O próprio delírio, inclusive, é considerado como um sintoma da estrutura psicótica. Aspecto delicado de se sustentar quando se levam em conta as teorizações de Freud e de Lacan a respeito do sintoma e do fenômeno elementar. E não podemos desconsiderar que o delírio apreendido como um sintoma é o procedimento da psiquiatria. Consideramos que há uma diferença entre delírio e metáfora delirante. O delírio, mesmo representando uma tentativa espontânea de cura, se caracterizaria mais por fragmentos não ordenados decorrentes do deslizamento da cascata significante do que uma produção de significação metafórica, mesmo que delirante, mas que interromperia a cascata significante desencadeada pelo surto, estabilizando, assim, o sujeito, como nos define Lacan a propósito da metáfora delirante. 70 Reconhecemos que é muitas vezes problemático calcar o tratamento exclusivamente nessa significação delirante que a metáfora delirante construída pelo psicótico fornece. Todavia, a construção dessa metáfora exige um enorme trabalho do psicótico quer seja espontâneo ou sob transferência. Surgem, portanto, questões: é possível a todos os psicóticos construírem uma metáfora delirante? E, se bem constituída, esta metáfora não facilitaria um certo laço no social, dependendo da particularidade da situação? O tratamento proposto pelo GIFRIC alcança um remanejamento tão positivo assim do delírio? Apollon sugere quatro tempos lógicos para que haja o remanejamento do delírio na cura analítica proposta aos psicóticos do “388”: – tempo da reconstrução de uma história subjetiva; – tempo da reconstrução da imagem corporal; – tempo do objeto interno; – tempo de uma ética do laço social (1990). Analisaremos detalhadamente cada um desses tempos, não sem antes os resumir. No primeiro tempo lógico do tratamento, haveria a produção de um limite, este teria por função suprir a falha do significante paterno em relação a um gozo mortífero que, por não estar barrado, invade o espaço subjetivo. É o tempo da (re)construção de uma história subjetiva assentada na palavra do psicótico. O segundo tempo lógico do tratamento implica a reconstrução da imagem corporal, na medida em que o sujeito psicótico habita seu corpo como um escrito do Outro que se desdobra como o pivô de sua relação com o outro e com a sua própria gestão do espaço e do tempo. O terceiro tempo – talvez a proposta mais enigmática de Apollon – é o tempo do objeto interno, nó de gozo louco, ao redor do qual o desejo do sujeito é tomado pelo gozo do Outro, mas que é considerado também o momento da saída dos fenômenos psicóticos. E, por último, o quarto tempo lógico, que se caracteriza pela exploração dos fundamentos estéticos de uma ética do laço social quando o sujeito já se encontra em posse de um saber para constituir um laço social (1990). 71 3.3.1 Primeiro tempo lógico: reconstrução da história subjetiva do psicótico Inicialmente, para que haja a produção de uma posição subjetiva, é de fundamental importância que o psicótico tome para si a responsabilidade do seu tratamento, engajando-se aí tanto o seu desejo na cura quanto o desejo do analista em sustentar essa cura. E, para que o trabalho analítico possa ser abordável na clínica da psicose, é necessário, primeiro, que se produza uma brecha na certeza delirante, possibilitando, assim, um mínimo de laço transferencial. Então, é a partir dessa brecha que o psicanalista deve manter aberta que se instaura uma demanda de tratamento. O trabalho analítico parte do próprio delírio quando este já está implicado, inclusive, na demanda de tratamento que o paciente formula, como podemos acompanhar em alguns exemplos dados por Apollon: um paciente procura o “388” “para ser sacerdote”; um outro, “para recomeçar uma nova civilização”; e mais um, ainda, para “desembaraçá-lo dos pensamentos parasitários” (1990, p.82). Assim, o sujeito é tomado em sua palavra justamente no ponto em que esta é parasitada pela voz do Outro. Apollon também faz uma distinção entre o fenômeno e a estrutura da psicose. Os fenômenos da psicose – a doença – englobam as particularidades de cada um, como o sofrimento, o delírio e os perigos físicos que o sujeito pode vir a ter. Enquanto a estrutura da psicose relaciona-se ao rapport singular do sujeito psicótico com o Outro. Relação essa caracterizada como pulsão de morte que ele experimenta como um gozo desse Outro: uma perseguição ou uma possessão (1990). Embora Apollon proponha uma grande modificação na fenomenologia da psicose em decorrência do tratamento, mantém-se lacaniano ao afirmar que a estrutura não se modifica, ao contrário, é a partir dela e do fantasma posto em cena no trauma que o sujeito poderá reorganizar a sua presença no mundo e seus laços com o outro. Portanto, a teorização de Apollon pressupõe a presença da fantasia na estrutura psicótica a ponto de articular a desmontagem do delírio à construção do fantasma. Ao se escutar a palavra delirante como ponto de partida do tratamento analítico, permite-se que a estrutura e a significação singular do delírio sejam desdobradas para o próprio sujeito psicótico. A maioria dos tratamentos a psicóticos se propõe a estabilizar o delírio para que um certo alívio do sofrimento seja possível, no entanto, para Apollon “o 72 delírio é precisamente a resposta do sujeito psicótico à descompensação psicótica a às vozes que a determinam” (1990, p.84). Nesse sentido, o sujeito, ao ser convocado a tomar uma posição em seu nome próprio, é conduzido ao limite do que lhe faz sentido, necessitando, então, construir uma barreira ante as vozes, ao gozo do Outro, que o invade até a possessão de seu espaço subjetivo. E, para evitar esse momento de profunda vacilação que o sujeito vivencia, procura-se abafar o delírio através, por exemplo, da medicação, que, no entanto, não suprime as vozes, impedindo com isso a única oportunidade que o sujeito psicótico tem para elaborar e integrar essas vozes nisso que lhe parece ser o universo de sentido, ou seja, o delírio. Como pontuamos no item anterior desse capítulo, segundo Apollon, o delírio se estrutura em torno de uma “missão” na qual o psicótico é o objeto por parte de um Outro, na medida em que o delírio permite ao sujeito psicótico elaborar uma identificação a partir da eleição de um Outro. Através desse processo, o psicótico ordena os fenômenos psíquicos e vocais que fazem intrusão na sua consciência, dando um sentido a seu universo subjetivo. Assim, é na ordem da linguagem e do sentido que o delírio do psicótico procura organizar-se ao redor da certeza onde se funda sua psicose (1999). Segundo Apollon, o neurótico, às vezes, pode delirar para reparar um erro subjetivo, um sofrimento pessoal, um mal que lhe foi feito, ou seja, aspectos relacionados à castração. Enquanto para o psicótico, mais do que a perda mesma que a linguagem impõe a todo ser falante, é a própria falha da linguagem em representar o real, fundando a ordem do sentido, que lhe aparece como um mal absoluto. Em relação a essa falha estrutural da própria linguagem, o neurótico responde escolhendo o pai, ou seja, uma autoridade que garante a lei, já para o psicótico essa escolha pelo pai está de partida foracluída, conduzindo-o, portanto, à tentativa de construir um fundamento privado através do delírio (1990). O tratamento analítico colocará em causa a certeza delirante do sujeito psicótico sob transferência ao levar a sério a sua palavra. De fato, é através da palavra delirante mesmo que o analista escuta os significantes a partir dos quais pode interpelar o delírio até reconstituir os fragmentos da história subjetiva do psicótico. Desse modo, esses fragmentos são colocados em oposição aos aspectos do delírio, produzindo-se assim novas referências à identificação do sujeito, podendo-se com isso modificar os suportes de sua psicose. Contudo, essa demanda pela palavra do psicótico remete a construções anteriores de suplência em relação à falha da linguagem, desencadeando-se como resposta uma 73 descompensação psicótica. Mas essa crise não terá as mesmas características de uma crise acompanhada apenas por medicação dentro de um panorama hospitalar, por exemplo. Nesse caso, a diferença se encontra na presença do desejo do analista e da equipe de intervenientes clínicos. Nesta primeira fase do tratamento, Apollon constata a ocorrência de três crises psicóticas, nas quais a posição de sujeito é mantida graças ao trabalho do analista e da equipe de intervenientes ao longo do labirinto em que o sujeito se encontra para modificar radicalmente a sua relação com os fenômenos da psicose. Proporcionando-se com isso a criação de novos laços sociais. As três crises que ocorrem neste primeiro tempo do tratamento são consideradas lógicas, mesmo que inúmeras crises psicóticas possam acontecer nesta etapa da cura. O importante para Apollon é detectar as passagens lógicas que caracterizam cada uma das três para se evitar inclusive uma leitura cronológica a respeito desses momentos. Porque isso reduziria enormemente o alcance inovador da proposta de Apollon, na medida em que, tradicionalmente, procura-se evitar qualquer tipo de crise no transcurso dos tratamentos aos psicóticos, tanto o psiquiátrico como até mesmo o psicanalítico. Assim, na direção de tratamento traçada por Apollon, a ocorrência de crises é esperada como resultado do convite oferecido aos psicóticos para que tomem a palavra. Como podemos reconhecer na própria nomeação concedida à primeira delas: “crise de inscrição” no “388” (1990). Entre o momento de entrada do psicótico nas atividades do Centro e o surgimento da primeira crise, pode transcorrer um bom espaço de tempo. Na maioria das vezes, ele ainda não se encontra em análise porque a demanda de análise geralmente se efetua em um segundo tempo em relação à participação do psicótico nos ateliês de criação e na equipe de acompanhamento. Mas, somente a partir dessa crise que o sujeito se inscreve verdadeiramente no “388”, porque até então não se conhece realmente a posição do sujeito perante a sua psicose. Ou seja, os significantes privilegiados que compõem a “missão” delirante do psicótico se encontram velados. A primeira crise é um ponto de partida decisivo tanto para um engajamento definitivo do sujeito em seu tratamento como para que a equipe de intervenientes possa recolher desde os sinais precursores até a perda do laço social, a desorganização têmporo-espacial, os 74 fenômenos de intrusão na estrutura de linguagem do sujeito. Enfim, durante a crise, é composto um vasto dossiê sobre as etapas e a evolução da crise. A presença da equipe ao lado do sujeito, em um acompanhamento contínuo e particularizado, evitando-se situações de perigo tanto para ele como para o outro, permite aos poucos a saída da crise. Como também a identificação dos significantes maiores que regem o sujeito, as vozes às quais encontra-se subjugado, os tipos de injunções superegóicas que ele crê estar obrigado a responder. Enfim, toda a gama fenomenológica decorrente da posição do psicótico ante o gozo do Outro. Nas semanas seguintes, o sujeito é convidado a falar sobre o que lhe ocorreu durante a crise, numa tentativa de analisá-la, buscando produzir alguma ordem para o que foi vivido. Os intervenientes não falam no lugar do sujeito sobre o que este vivenciou, mas utilizam alguns pontos apreendidos durante a crise para ajudarem o psicótico a corrigir a percepção da própria crise, permitindo-se com isso uma certa limitação nas interpretações delirantes. Ou seja, um certo saber sobre a crise é empreendido para se conter a perda do lugar do sujeito gerada pelas manifestações da psicose (1990). A segunda crise se caracteriza por um maior estreitamento na relação entre o psicótico e a equipe que o acompanha, assim como pelo reconhecimento dos elementos que estão em jogo em seu arranjo subjetivo. E para tal, o objetivo mais imediato é manter o psicótico em posição de sujeito em face dessa nova crise. Durante a segunda crise, os significantes privilegiados da história subjetiva do psicótico são orientados ainda mais para limitar as interpretações delirantes. Atendo-se mais aos fragmentos de sua história do que às injunções do supereu e das vozes que comandam as passagens ao ato. Assim, a (re)construção de uma história subjetiva a partir desses significantes até então esparsos para o sujeito permite uma distinção entre o discurso delirante que o incita a desempenhar uma “missão” e a produção de uma narrativa histórica por meio da qual se protege dessa invasão do Outro. Portanto, uma certa distância começa a ser traçada entre o delírio e o sujeito, decorrente de uma nova interrogação – escritura – no fechado campo de linguagem do psicótico. Possibilitando, por exemplo, discutir com a equipe a respeito das injunções que o atravessam e obter uma assistência para gerar melhor sua vida, mesmo durante os momentos críticos. 75 Entretanto, não há o abandono das certezas delirantes por parte do psicótico, mas o início de uma torção em relação ao uso e à mestria que essas certezas concedem ao sujeito. Apollon salienta que isso representa uma primeira aproximação sobre o que está em jogo no tratamento da psicose pela psicanálise: “constranger o trabalho e a criatividade próprios à psicose na produção de um limite” (1990, p.90). Mas o gozo do Outro começa a ser limitado não apenas pelo significante, mas pela borda que uma escritura produz através da letra. Embora, não tratemos, nessa pesquisa, a respeito da distinção entre letra e significante. Após a segunda crise, o psicótico detém um certo saber sobre a fenomenologia de sua psicose, continuando, no entanto, a conferir um valor de verdade as suas certezas delirantes. Mas esse saber que começa a ser construído sobre si e sua psicose, assim como a gestão de sua crise, possibilita pela primeira vez a distinção entre as montagens delirantes do restante de sua subjetividade. A terceira crise psicótica apresenta-se em um momento em que o psicótico já pode gerir seus horários de atividades tanto no Centro como em seu dia-a-dia, por exemplo, em seu trabalho ou em seus estudos, dependendo do caso. Esta é a primeira crise que o sujeito controla sozinho, embora tenha o apoio dos intervenientes, do psiquiatra e do seu analista. Em algumas vezes, somente o analista toma conhecimento da crise; em outras situações, o psiquiatra fornece um apoio maior através de medicação específica. Entretanto, entre a maioria dos usuários do “388”, os intervenientes reconhecem a crise através da lentidão no ritmo do psicótico, da dificuldade em respeitar os horários de suas atividades, da desorganização em sua moradia, com a alimentação, o sono, etc. Nesta ocasião, os elementos delirantes retornam, mas o que está em profunda mudança é a posição do sujeito diante das manifestações da psicose. Trata-se de passar “de uma posição passiva em relação à escritura que trabalha seu ser a uma posição de criatividade e de produção, em que o psicótico recupera uma parte dessa escritura para produzir um “objeto interno” em suplência à foraclusão do Nome-do-Pai, e daí rearticular o significante para fazer sentido” (1990, p.91-92). Um gozo Outro se escreve no ser do sujeito psicótico através dos fenômenos de linguagem, como as alucinações e os delírios nos indicam na clínica. Mas, segundo Apollon, uma fração desse gozo pode ser subtraída se houver uma outra tomada de posição subjetiva por parte do psicótico. 76 A questão fica por conta do estatuto desse “objeto interno” teorizado por Apollon. Seria um novo significante produzido em decorrência da subtração de gozo do Outro? O psicótico, por não se balizar no Nome-do-Pai, produziria uma suplência à foraclusão ao delimitar esse “objeto interno”? Mas se for um novo significante, efeito do reposicionamento do sujeito, perante a psicose, por que, então, o nomear de “objeto interno”? Então, a partir dessa terceira crise, ou o sujeito se engaja ainda mais no trabalho de análise, que proporciona uma reconstrução em sua vida ao criar novos laços sociais ou, em alguns casos, há uma desistência no processo de remanejamento do delírio. 3.3.2 Segundo tempo lógico: a reconstituição da imagem corporal Apollon propõe a reconstituição da imagem corporal como o segundo tempo lógico na direção de tratamento à psicose, na medida em que o psicótico, tomado pelas vozes e injunções do supereu, apresenta uma relação particular com o corpo. Este é atravessado por um Outro que exerce um controle, possuindo seu próprio espaço-tempo. Na medida em que o significante paterno que delimita a amarração imaginária do corpo claudica, encontra-se um corpo perseguido, vigiado, possuído por um Outro real, muitas vezes obsceno (1990). O corpo, para a psicanálise, é uma escrita traçada a partir do sujeito do inconsciente, que porta a marca da história deste sujeito. Pulsional por excelência, o corpo é uma construção em que o corte do significante, o recobrimento da imagem e o furo do real se enodam para dar suporte ao sujeito do inconsciente. Portanto, o corpo da psicanálise não é o dos órgãos nem o da carne (1990). Enquanto o organismo ocupa um lugar Outro. O organismo parece ser um dos nomes da alteridade radical que “co-habitamos”, impossível de se apreender pelo sujeito, “real cru”, como propõe Rabinovitch (1998) para diferenciar do real pulsional já marcado pelo significante. No entanto, o organismo, para ser nomeado como tal, necessita da própria estrutura de linguagem que mortifica, desnaturaliza a coisa. Por isso, não escapamos da lógica do significante, embora, mesmo ao nos aproximarmos de seus limites, possamos pressupor um para-além do significante. 77 Assim, o corpo da psicanálise é uma longa construção correlativa à própria estruturação da linguagem, nunca um dado a priori para o ser falante. E a clínica da psicose nos aponta muito radicalmente em alguns exemplos o quanto a desestruturação da linguagem é acompanhada por uma desestruturação da representação do corpo. Então, a realidade, o corpo e o sujeito passam a ser habitados, povoados, atravessados pelo inaudito de um Outro não castrado (Schaustz, 2000). Apollon busca articular nessa segunda etapa do tratamento a reconstrução de uma história subjetiva com a reconstituição da imagem corporal, para que haja uma mudança na relação do psicótico com seu corpo. Assim, o psicótico, ao começar a sair do campo fenomenológico, em que o delírio domina toda sua subjetividade, tende a buscar uma reapropriação de seu corpo no campo particular da sexualidade, como espaço de investimento do desejo. Segundo Apollon, uma inquietação a respeito dos efeitos da psicose no corpo passa a ocorrer com os psicóticos nesta etapa do tratamento. Assim como um questionamento sobre a posição que ocupam ou possam vir a desempenhar como homens ou mulheres no espaço comunitário. Entretanto, nesse momento, o exercício de uma vida sexual propriamente dita ainda não acontece para a maioria dos usuários do “388”. Apollon aposta que o início do remanejamento do delírio através da reconstituição de uma história subjetiva mais ou menos fictícia, a partir dos fragmentos da história do próprio sujeito, limita de alguma forma os efeitos da psicose sobre o corpo. O psicótico, ao ser interpelado pelo analista através dos elementos do seu delírio – principalmente, a partir dos significantes colhidos do discurso do sujeito durante as crises – possibilita a reconstrução de uma história subjetiva na primeira etapa da cura analítica (1990). No segundo tempo lógico, é mantida pela análise a exigência de limitar o gozo e transformá-lo em outra coisa por parte do sujeito. Trata-se, então, de produzir uma articulação da pulsão em produções que engajem o sujeito no laço social através de manobras da transferência. Lembremos que, para Apollon, a fenomenologia da psicose se estrutura na perda do laço social como negociação da satisfação e coexistência com o outro. Desse modo, intensificam-se os dispositivos estruturados no “388” que possibilitam um melhor engajamento do psicótico no laço social. O interveniente, por exemplo, interroga o psicótico no sentido da sustentação de seu desejo na retomada e gestão de algum projeto, como os estudos; o trabalho, quando houver; ou mesmo a busca de um novo trabalho ou o 78 aprendizado de algum ofício – assim como a reinserção do psicótico em seu espaço domiciliar. Um acompanhamento médico de clínica psiquiátrica também se faz necessário para assegurar a saúde psíquica do psicótico, garantindo o repouso, o sono, a alimentação para que o sujeito suporte o trabalho analítico dessa fase. Mas, neste momento, a prática estética nos ateliês de criação é muito importante por possibilitar um espaço particular que permite ao psicótico, afetado pelo gozo do Outro no corpo, produzir um objeto. Nesse sentido, a prática estética conduz o sujeito a lidar com o real de outra forma ao investir o seu desejo em outra coisa que não somente em sua psicose. Apollon considera a estética como “um espaço aberto no significante ao real do sujeito e aos aspectos do seu desejo, quando a referência da linguagem às coisas encontra-se abandonada”, compreendendo-se então a necessidade de uma prática estética no “388” (1990, p.96). Não cabendo considerar essa experiência como arte-terapia ou uma prática artística necessariamente, porque somente um pequeno número de usuários apresenta talento suficiente em transformar essa prática estética em uma prática artística. O objeto resultante dessa prática enoda os três registros do sujeito: no imaginário, produz uma significação que articula a experiência real do corpo fragmentado às regras simbólicas que geram a construção de um objeto estético. Ao mobilizar o desejo do sujeito em uma produção criativa que permite reescrever o gozo do Outro que trabalha o corpo do psicótico. Resulta daí, um certo recuo do Outro perseguidor, uma limitação do delírio e uma transformação de seus objetos, permitindo-se, conseqüentemente, a formação de uma fantasia que venha estruturar o imaginário do sujeito. A prática estética gera um sentido frente o vazio ao qual o psicótico é confrontado quando sai dos estados de crise do primeiro tempo do tratamento. Assim, a aposta ética do analista conduz o psicótico ao espaço estético onde o significante delirante é golpeado, permitindo-se um esboço de metáfora, relançando o sujeito a reinvestir a libido nos objetos na medida em que participa do laço social. Contudo, mesmo sendo considerada a restauração do laço social pelo psicótico o eixo principal na direção de tratamento, não se exclui a persistência real de um “núcleo do delírio em que se situa a estrutura do trauma que sustenta a psicose” (1990, p.95). A própria retomada do laço social se funda a partir desta estrutura traumática que particulariza a psicose. Nesse sentido, o texto de Apollon concede uma relevância ao significante trauma do discurso 79 freudiano, obviamente não como trauma sexual empírico, mas como o real traumático desencadeado pela sexuação inerente à constituição de todo ser falante. Assim, o que ocorre com a psicose, durante o tratamento no “388”, é uma reestruturação da relação do sujeito com gozo do Outro. Apollon preconiza que o “núcleo delirante” toma a forma de “objeto interno”, objeto esse que vem demonstrar a insistência da estrutura psicótica para além do fenômeno psicótico (1990). Ou seja, não há mudança de estrutura, mas, sim, mudança subjetiva ante a própria estrutura, na medida em que a manifestação da estrutura de linguagem pode se modificar, mas não ser suprimida totalmente, porque aí se aloja o próprio sujeito, quer seja psicótico, neurótico ou perverso. Enfim, o trabalho conjunto dos psiquiatras, dos intervenientes clínicos e dos ateliês produz uma modificação importante na relação do sujeito com o corpo. O psiquiatra minimiza, através da medicação, os efeitos da psicose no ritmo do sono, na nutrição, etc. Uma melhor gestão do espaço e do tempo é trabalhada pelos intervenientes nas atividades do dia-adia e a prática estética mobiliza o desejo do sujeito a uma criatividade artística. Com isso, inicia-se, juntamente com a análise, a reapropriação de um lugar de desejo e de satisfação com o outro até então inéditos para o sujeito. 3.3.3 O terceiro tempo lógico: a produção do fantasma A produção do fantasma, considerada a terceira fase lógica do tratamento, é denominada por Apollon como a externalização do objeto. O “objeto interno” é apreendido, então, como uma fonte de elementos significantes para uma fantasmatização na estrutura psicótica, em que o desejo apresenta uma modalidade particular. A mobilização do desejo na prática dos ateliês de criação, no momento em que o sujeito se reapropria de seu corpo, “é um tempo de passagem da sintomatização (escritura do gozo do Outro) à fantasmatização (estruturação do trauma e subjetivação do sentido no objeto interno)” (1990, p.98). O delírio é lido por Apollon como um sintoma psicótico, um escrito do gozo do Outro que habita o sujeito. Leitura que nos intriga por localizar na psicose um sujeito sintomático, dividido, portanto, e por não privilegiar o delírio como um fenômeno elementar, como nos ensina Lacan. 80 A questão é como pensar a constituição de um sujeito psicótico dividido pelo recalque originário, obviamente uma proposição contrária ao avanço que o próprio conceito de foraclusão engendra. Ou seria possível pensar que, ao longo do tratamento desenvolvido pelo GIFRIC, uma certa barra em relação ao gozo do Outro é construída em ambos os campos: o do sujeito e o do Outro? Apollon propõe, em decorrência do remanejamento do delírio através das intervenções realizadas no “388”, a passagem do sintoma (delírio) à construção de um fantasma fundamental na psicose. Proposta bastante complexa, que requer que discorramos de forma sucinta a respeito da fantasia fundamental em nossa dissertação, embora saibamos de antemão que não esgotaremos essa questão no âmbito dessa pesquisa, principalmente ao articulá-la à psicose. A clínica inventada por Freud, ao escutar inicialmente as histéricas, é um trabalho que, segundo Vidal, possibilita aproximações e afastamentos entre as formações do inconsciente e a estrutura do fantasma a ser produzida em análise. Portanto, o fantasma é fundamental no campo psicanalítico, não sendo um dado a priori, mas algo a ser construído no transcurso de uma análise (Vidal, 1991). O ponto que articula uma formação do inconsciente e o fantasma é o sintoma – sintoma como divisão do sujeito e em estreita relação com um gozo silencioso. O sintoma tem uma articulação com o fantasma, uma vez que ele representa um gozo. Esse gozo implica uma posição de punição do sujeito ante o Outro que é a encarnação, no sintoma, da estrutura do fantasma fundamental do sujeito: ser batido pelo pai –, como Freud decanta ao longo de seu percurso clínico no texto Bate-se em uma criança. O ponto de afastamento entre as formações do inconsciente e o fantasma diz respeito à própria diferença entre o inconsciente – lugar do Outro, cadeia significante – e o isso – lugar do silêncio da pulsão e da dimensão real do gozo. O sujeito fala em análise causado por algo que é disjunto do inconsciente, embora se constitua como sujeito do inconsciente. E o fantasma se separa das formações do inconsciente por ser um ponto onde não há mais nada a dizer (1991). Segundo Vidal, o fantasma é, pois, sempre uma construção a posteriori em que os restos das cenas primárias encontram um suporte. Um real primeiro, excluído do significante, é matéria do fantasma. Processa-se, então, uma passagem do acontecimento traumático real ao 81 real indizível do trauma. E a teoria analítica recorre à construção do mito do fantasma para dizer em metáfora a respeito desse real impossível (1991). A construção tem a função de estabelecer um texto ali onde há algo impossível de ser dito. Texto construído a partir das coisas vistas e ouvidas, porém não compreendidas pelo sujeito. Portanto, a necessidade da construção se desprende da impossibilidade que o recalque primário instaura: algo que nunca teve acesso à consciência, à palavra. Por esta impossibilidade radical, a verdade é condenada à estrutura de ficção (1991). Segundo Forbes, uma análise implica a travessia do fantasma, embora os fantasmas não estejam ali no inconsciente à espera de interpretação. Na cura, é produzida a frase que articula o fantasma. O fantasma é, justamente, resposta à não relação sexual. É a articulação lógica de que não há proporção sexual (Forbes, 1984). Uma vez estabelecida a primazia do fantasma na direção da cura, é necessário relançar a discussão que rege a estática do fantasma por um lado e a dinâmica do sintoma pelo outro. E abordar a clínica do sintoma é falar de uma clínica do supereu. Um supereu que, ao impor o mandato do gozo, se opõe à lei do desejo (1984). A vertente do sintoma é a que é operada na associação livre, na articulação do S1 com S2. Sabemos que um sintoma se altera em uma análise pela mobilização das cadeias significantes e, por essa vertente, que é a do significante, a análise torna-se interminável, pois falta o significante último que daria a significação absoluta e final (1984). A vertente do fantasma, pelo contrário, mostra que há algo estático em uma análise – diferentemente da vertente do sintoma, que articula o sujeito à cadeia dos significantes. Aqui, a fórmula de Lacan S<>a põe juntos dois elementos de natureza diferente: o sujeito sintomal, intersticial, efeito da ordem significante, e o a da ordem do objeto (1984). De um lado do algoritmo, está o sujeito do inconsciente – atravessado pelo significante –, mas também, numa acentuação própria ao fantasma, vacilante e confrontado com seu próprio desaparecimento. Um “não-eu” se perfila em seu horizonte mais ou menos próximo. Do outro lado do algoritmo, o sujeito, mais-além de seu desaparecimento, se sustenta em um objeto, o a (1984). No algoritmo, o que liga o sujeito e o objeto, a “punção”, indica todas as relações possíveis, menos a igualdade. O estabelecimento dessa relação (do sujeito do inconsciente e do objeto a) aparece como o mínimo constitutivo do fantasma. 82 O fantasma fundamental é o lugar onde o sujeito consiste como objeto do Outro. Nesse sentido, o “momento” do fantasma é aquele do eclipse do sujeito e de sua passagem para o objeto. Trata-se igualmente, para o sujeito, de “um ser ou não ser” o objeto quanto de um “têlo e não o ter”. Assim, o fantasma é fundamental, ou seja, um fundamento, a saber: um axioma (1984). Cosentino realiza uma leitura da clínica que aborda a estrutura do fantasma nas três posições subjetivas. Tornando-se interessante cotejar um pouco a sua abordagem com a do GIFRIC. “A direção da cura não implica até onde, senão desde onde se conduz uma psicanálise. Situado isto, pensamos que o fantasma é um dos lugares que permite uma diferenciação das estruturas que, enquanto tais, são irredutíveis umas às outras. Neurose, Perversão, Psicose. (...) Para a neurose, no sintoma, o supereu fala do fantasma. Para a perversão, no sintoma, fala o fantasma do supereu. Para a psicose, a alucinação fala no delírio, do fantasma impossível, como verdade histórica. A castração é alucinatória” (Cosentino, 1984, p.95). Na neurose, o recalque fracassa, sendo o sintoma a presentificação desse fracasso como retorno do recalcado. A partir daí, o sintoma fala do fantasma ou, mais precisamente, o supereu como mandato imperativo de gozo vocifera o fantasma no sintoma (1984). Quanto à psicose, Cosentino também atribui um tratamento possível, assim como o GIFRIC, levando-se em conta a determinação do fantasma nesta estrutura, ou seja, um “passo a mais” do que foi a instauração da foraclusão do Nome-do-Pai como uma preliminar a toda abordagem possível da psicose realizada por Lacan, em 1958. E, talvez, não tivesse ocorrido esse “passo a mais” realizado tanto pelo GIFRIC como por Cosentino, por exemplo, sem o próprio avanço do ensino de Lacan, como veremos a seguir. Cosentino realiza uma leitura do matema da fantasia proposto por Lacan (S<>a), substituindo o S por um sujeito do delírio articulado a um supereu no real, sendo a alucinação uma encarnação do objeto a enquanto uma “voz”. Portanto, a psicanálise reconhece nesse “objeto” a materialidade real da alucinação, diferindo-se da psiquiatria, que sempre considerou a alucinação como uma “percepção sem objeto” (1984). A alucinação é uma voz imperativa – eis aí talvez a dimensão real do supereu que Cosentino articula ao “sujeito do delírio” – contudo, totalmente cortada do simbólico. Essa exclusão do simbólico proporciona uma grande diferença em relação à clínica da neurose, que, por não o ter, pode em um final de análise alcançar uma dimensão ética do supereu, ao elaborar a dimensão imperativa do supereu do início do tratamento (Fernández, 1997). 83 No entanto, na psicose, a alucinação encontra-se como uma frase-objeto, frase-voz, causa gozante do delírio que tenta cerzi-la ao produzir um texto. Assim, a alucinação é a ordem insensata que se constitui em objeto no real, situando um dos termos do fantasma na psicose. Poderíamos, então, reconhecê-la como a verdade histórica não simbolizada, a perda da realidade psíquica, o núcleo do delírio? Por outro lado, segundo Cosentino, o delírio é um tempo de pressa, um apressamento da estrutura como resposta à foraclusão. Escutar o delírio será então estabelecer um tempo de suspensão na certeza. Certeza delirante decorrente de um modo particular de o psicótico entrar na linguagem: “o paranóico não pergunta quem é, isto é, pelo seu ser, senão pergunta por que não lhe crêem, se ele, identificado no lugar da verdade, a diz” (Cosentino, 1984, p.234). Portanto, a análise com o psicótico não pode prescindir de produzir uma fissura na certeza delirante como ponto de partida de uma mudança subjetiva. Segundo Apollon, na neurose, o fantasma que oferece um objeto ao desejo está regulado pela subjetivação do gozo como gozo fálico, enquanto na psicose, o objeto que alimenta o fantasma vem como sustentação de um sentido retirado do delírio. O núcleo do delírio toma a forma de um “objeto interno” que marca, inclusive, o fim do período precedente. Portanto, o delírio se concentra, se localiza nesse “objeto interno”, permitindo, assim, que o sujeito disponha do resto de seu espaço subjetivo. O gozo se encontra, então, limitado, localizado e ao mesmo tempo dividido, deixando para o sujeito um resto no universo psíquico (Apollon, 1990). Então, haveria uma parte “sã” no psiquismo do psicótico, livre dos efeitos foraclusivos de sua constituição? Apollon apresenta como exemplos de “objeto interno” os seguintes fragmentos de casos clínicos: um paciente cujo núcleo delirante se centra na perda de um órgão interno; em um outro, trata-se de uma microcâmera, instalada pelo dentista, sob o seu dente; e, ainda, um paciente que relata a presença de uma agulha em sua cabeça. Todos exemplos de um enxugamento da fenomenologia do delírio a ponto deste se concentrar apenas nesse “nó de gozo louco” (1990). Quando da delimitação do delírio através da construção de uma posição subjetiva e da reconstituição da imagem corporal, o “objeto interno” é a testemunha do que não se desfaz na estrutura do trauma para além da fenomenologia da psicose. Assim, uma parte importante da estrutura da psicose, que é a relação do sujeito ao gozo do Outro que escapava ao início do 84 tratamento, será abordada nas terceira e quarta fases visando à gestão dessa parte perdida do ser. E, segundo Apollon, nestes momentos ocorrerá a entrada da fantasmatização na clínica da psicose, ao mobilizar esse real do delírio na produção de um espaço para a “externalização do objeto interno” (1990). Esse termo “externalização do objeto interno” foi escolhido devido a uma observação clínica encontrada nesse momento do tratamento, quando a psicose no espaço simbólico do desejo e do laço social expulsa esse objeto interno já produzido pela fantasmatização. Por exemplo, o paciente, anteriormente citado a respeito da “agulha”, iniciou um modo de articulação social que incluía seu pai – com o qual não falava há anos – em uma atividade esportiva semanal cujo nome – jogar “quilhas” em um mastro de madeira – apresenta um fragmento do significante decantado de seu delírio: aguilles e quilles (1990). Inicialmente, o objeto interno é vivido como aquele que destrói o sujeito do interior, estrutura mínima de possessão do Outro, mas esse real delirante é transformado simbolicamente através da fantasmatização que a ética psicanalítica pode obter do sujeito psicótico. No entanto, o próprio texto de Apollon se esquiva em aprofundar a descrição do processo de fantasmatização na psicose como podemos acompanhar na seguinte afirmação dele: “evidentemente a questão clínica da maneira como se opera essa fantasmatização é uma questão psicanalítica fundamental. Ela articula o sujeito a isso que ele pode retirar de vida e de sentido do gozo do Outro. Não trataremos disso aqui, está fora de nosso propósito” (1999, p. 229). Entretanto, Apollon, em nota de rodapé, se refere a uma futura publicação do GIFRIC, em preparação, que abordará de forma mais detida os aspectos lógicos da cura psicanalítica com psicóticos (1999). No momento atual, Apollon sugere que a produção de um fantasma na psicose resultaria na retirada de um sentido do delírio, permitindo ao sujeito produzir algum sentido em relação ao gozo do Outro. A fantasmatização, como retomada da estrutura do trauma, vem dar forma e conteúdo imaginários à pulsão proveniente do gozo do Outro, ou seja, à pulsão de morte. Cabe ressaltar que Apollon identifica o gozo do Outro à pulsão de morte freudiana. Assim, graças à ética psicanalítica, esse processo de fantasmatização na psicose produz três aspectos fundamentais para um contorno ao gozo do Outro: limitar, dividir e transformar em manifestações de desejo o retorno do gozo na pulsão. 85 Mas será que Apollon não reduz a questão do fantasma apenas à sua dimensão imaginária? Quando o fantasma é apresentado em termos de roteiro “forma e conteúdo”? Não estaria, assim, seguindo uma maneira freudiana “clássica” como na definição de fantasia por Laplanche e Pontalis no Vocabulário de Psicanálise: “um roteiro imaginário em que o sujeito está presente, e que figura, de maneira mais ou menos deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente?” (Laplanche e Pontalis, 1991, p.169) Contudo, na elaboração inicial de Lacan, o fantasma também se revela a partir de uma dimensão imaginária como podemos destacá-lo na estrutura do esquema L: o objeto e o eu marcados para sempre pela alienação e a rivalidade. O fantasma corresponderia ao eixo a-a’, eu-outro do esquema L, eixo que se interpõe e obstaculiza a mensagem proveniente do Outro. Mas no esquema R, Lacan não se restringe à dimensão imaginária do fantasma, mas o localiza sustentando o campo da realidade, que, por sua vez, é delimitado pelo simbólico e pelo imaginário. Em nota de rodapé ao esquema R, Lacan especifica o estatuto real do objeto a ao desvelar a borda topológica que sustenta o campo da realidade. O fantasma vela e desvela o real da castração quando o objeto se faz limitado pelo imaginário e pelo simbólico em relação à falta no Outro, mantendo a ilusão da proporção sexual. Então, para Lacan, o fantasma não se reduz a sua versão imaginária, na medida em que o Outro está castrado e é disto que não se quer nada saber. Então, nos parece que Apollon não toma o fantasma em sua dimensão real. Apollon, não só reconhece a produção de um fantasma na psicose – retirada de um sentido do delírio –, como também propõe, surpreendentemente, o seu ultrapassamento por considerá-lo frágil. No momento, então, do ultrapassamento do fantasma, o sujeito está susceptível a um “acidente psíquico”: “fenômeno particular em que o sujeito vive um desmoronamento global aparentemente do novo universo que começa apenas a se criar” (1990, p.101). É como se fosse uma “quarta crise” – rápida, embora profundamente violenta – que decorre da tentativa de enquadrar o vazio vivido pelo sujeito ao se separar desse Outro que o coloca no lugar de “abjeto” (1990). O psicótico permanece extremamente lúcido e embora vivencie um grande sofrimento psíquico, seu cotidiano profissional ou estudantil é preservado. O sujeito se depara com a seguinte questão: “Não tenho mais a psicose... Então o que faço de minha vida?” (1990, p. 101) 86 Apollon compara esse momento crítico vivido pelo psicótico quando sai do círculo infernal da psicose ao episódio depressivo que pode ocorrer no final de uma análise de um neurótico. Entretanto, não se trata, ainda, de um final de análise propriamente para o psicótico, há ainda um caminho a se percorrer que é designado como a instauração do desejo no laço social: o quarto momento lógico do tratamento. 3.3.4 O quarto tempo lógico: o desejo no laço social Segundo Apollon, ao psicótico que chegou a ponto de fantasmatizar o objeto resta uma satisfação oculta que permanece no gozo silencioso do fantasma. E a retirada do sujeito dessa posição de gozo – que, inclusive, o dificulta a estabelecer laço social – não mais por causa do delírio, é a última questão a ser enfrentada pelo tratamento no “388”. Pois o objetivo final do tratamento na psicose requer do sujeito do desejo a criação de um novo laço social (1990). Assim, o quarto momento do tratamento visa a que o sujeito se articule ao outro na busca de uma certa satisfação sob uma Lei comum. E, ao abordar o desejo no laço social, Apollon faz uma distinção entre o laço social e a sociabilidade. “A sociabilidade refere-se aos diferentes modos de relações e de articulações dos sujeitos em uma dada sociedade que por suas crenças, seus mitos (científicos, ideológicos ou religiosos) e seus rituais (políticos, culturais ou simplesmente profissionais) funda as leis que regulam essas relações” (1990, p. 103). Produzindo-se assim o estamento em que se localiza a organização do “bem comum” compartilhado pelos membros de uma dada sociedade. Segundo Apollon, a sociabilidade encontra-se na base do laço social na medida em que este legitima os discursos que nela são reconhecidos. Como resultante desse processo de enlaçamento social, tem-se a construção do próprio fundamento da “realidade” para a maioria dos membros da sociedade. Justamente esse fundamento que organiza os laços sociais é que está perdido para o psicótico. E o delírio, ao contestar essa “realidade”, na busca de corrigir suas falhas, cria uma “neorealidade” mais satisfatória, dentro da perspectiva do psicótico, para todos os membros da sociedade (1990). A psicanálise é um discurso que problematiza e resiste ao posicionamento sempre recorrente da cultura dominante que, de forma totalizadora, exige de seus membros um 87 assujeitamento aos seus ideais e imperativos. Portanto, o discurso analítico ao operar através da lógica do não-todo, interroga inclusive os significantes fundadores de nossa cultura quando revestidos de um caráter unitário: Deus, Pai, Ciência, Capital, Revolução, etc. (1990) Contudo, para Apollon, a psicanálise não se apresenta como uma simples contestadora dos valores sociais, mas reconhece a fragilidade dos fundamentos sociais na medida em que o próprio significante Nome-do-Pai, ao suportar a Lei, aí também falha de certa forma em todas as estruturas subjetivas. Portanto, não se trata de alçar a psicanálise ao lugar de uma ideologia, ou um novo mito, buscando reparar as falhas na sociabilidade, porque isso seria uma empresa delirante também. O fundamental é o desejo do sujeito como essencial à consistência mesma da Lei. Ou seja, a postura ética do sujeito ante o real que está em jogo (1990). Assim, é a partir de sua posição na estrutura em relação à pulsão de morte (como gozo do Outro) que o sujeito deve se articular socialmente ao negociar a sua própria satisfação. “A psicanálise exige um novo laço social, que mobiliza inicialmente a criatividade do sujeito a produzir sua articulação ao Outro (outro e/ou a linguagem) numa relação ao gozo, e não em conformidade à crença comum” (1990, p.104). O delírio não faz laço na sociabilidade comum porque submete o sujeito como objeto do gozo do Outro. O psicótico sacrifica seu ser em proveito de um Outro todo-poderoso (perseguidor) ao qual imputa a responsabilidade última por seu sofrimento. Diferentemente do neurótico, o psicótico não tem a mestria da metáfora a ponto de sustentar sua própria palavra em relação ao Outro. Sua gestão da metáfora é delirante, na medida em que o sujeito psicótico não suporta o seguinte ponto de partida: remeter-se à boa fé da palavra mesmo que esta não possa conferir toda garantia (1990). Mas o Outro com o qual o psicótico se relaciona é exclusivamente um Outro imaginário? Ou a dimensão real do Outro – que exclui todo e qualquer sentido – não estaria também presente no caso da psicose de uma maneira muito crua? Retomando a questão a respeito da (re)instauração do desejo na psicose, o analista, na direção de tratamento, “exige uma palavra verdadeira que sustenta o desejo do sujeito além do fantasma como fonte de sua criatividade” (1990, p.106). Mas o que seria essa superação do fantasma na psicose? Segundo Apollon, o tratamento do psicótico chega a termo quando o paciente consegue criar um espaço estético para “fundar o risco de viver e/ou morrer a partir de seu próprio desejo, numa sociedade onde as relações sociais são fundadas sobre crenças comuns” 88 (1990, p.107). O trabalho no “388” requisitaria do psicótico, segundo seus autores, uma ética nova que não é fundada sobre nenhuma verdade última, nenhum mito nem ideologia coletiva, mas sobre um desejo assumido quanto a suas conseqüências pessoais e sociais. O quarto tempo é considerado por Apollon o momento mais difícil na cura do psicótico, porque o sujeito deve sustentar o espaço onde o vazio é enquadrado, assumindo o desejo mesmo de criar seu próprio espaço de vida em uma sociedade sem um projeto definido (1990). E para tal, o sujeito encontra-se apoiado em um saber, conquistado no tratamento, a respeito da falta de fundamento das crenças sociais; de outra parte, o sujeito passa a ter a capacidade de criar novos laços sociais a partir da letra de seu desejo reconquistado (1990). Assim, um final de análise para a psicose é proposto pelo GIFRIC – aposta enorme calcada no desejo do analista – quando um certo saber a respeito da falta no simbólico é produzido em análise. Entretanto, é uma confrontação com a falha de estrutura da própria linguagem, mas que não gera mais o horror nem a inércia no psicótico, levando-o sim a produzir algo com isso no seu exercício particular com outros sujeitos no laço social. 89 4 CASOS CLÍNICOS O quarto e último capítulo dessa dissertação de Mestrado apóia-se em dois casos clínicos publicados por Lucie Cantin e Danielle Bergeron na seção “Problemática Clínica” do livro Traiter la psychose em que abordam mais de perto a clínica desenvolvida no “388”, a partir da teorização proposta principalmente por Willy Apollon. Nesse capítulo, apresentamos também um caso de nossa experiência clínica acompanhado no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói. Embora reconheçamos uma diferença muito grande em termos de organização social, institucional e teórico-clínica existente entre a experiência canadense e a nossa aqui no Brasil, aventuramo-nos a cotejar alguns aspectos da clínica com psicóticos, a partir desses três casos clínicos, com o intuito de melhor problematizar a questão que perpassa a nossa pesquisa a respeito do lugar do delírio na direção de cura da psicose. Aproveitamos esse momento do texto para mencionar uma viagem que fizemos à cidade de Québec em outubro de 2000, quando não só acompanhamos o dia-a-dia do “388” como também mantivemos uma curta, mas, proveitosa, interlocução com os autores acima referidos, assim como com outros técnicos, coordenadores de ateliês e usuários do “388”. Durante três semanas que lá estivemos, apesar de uma certa dificuldade com a língua francesa, foi possível constatarmos a seriedade – e ao mesmo tempo uma leveza incomum – com que o árduo trabalho com psicóticos é realizado no “388”. Tivemos em nossa viagem a oportunidade de participar das reuniões clínicas semanais, das entrevistas psiquiátricas, dos encontros com as equipes de intervenientes. Freqüentamos também alguns ateliês com os próprios usuários e os artistas locais, sendo esta última uma vivência muito especial. Foi enriquecedor conhecer um lugar estruturado para receber o psicótico como sujeito, no qual o exercício diário com e entre os usuários se desenrola em um ambiente com muita tranqüilidade, fruto talvez, não só da análise pessoal dos participantes, mas da própria base teórica na qual se apóia o savoir-faire do GIFRIC no “388” em relação à psicose. 90 4.1 O caso Phillip Cantin, ao escrever o texto intitulado Le psychotique, malade au père no livro acima citado, baseia-se em um caso clínico para delinear as suas considerações a respeito da psicose e de seu estilo na condução da clínica psicanalítica orientada para os psicóticos que buscam o “388”. Inicialmente, Cantin refuta a idéia consagrada em muitos meios do campo da saúde mental de que a psicanálise não é apropriada para tratar a psicose, restringindo-se apenas à clínica da neurose. Ela reconhece que a psicose desencadeia um mal-estar no social por estampar cruamente, em muitos casos pelo menos, a despossessão egóica infligida ao sujeito que a vivencia, justamente em uma sociedade que tanto elogia a ilusão narcísica do personagem social. Esse mal-estar chega a provocar um medo entre os profissionais da área da saúde mental em relação à psicose, a ponto de a corrente dominante atual – “biológica” –, preconizar que a psicose se restringe apenas a um “acidente da natureza” ao nível molecular (Cantin, 1990). Obviamente, a psicanálise desde a sua criação por Freud, percorre um outro caminho ao constatar que o sonho, o lapso de linguagem, o sintoma, o delírio, a alucinação são as produções mais profundamente humanas por apontarem radicalmente algo da verdade do sujeito. Assim, Freud busca um sentido para essas experiências ao desvelar o que definiu como inconsciente. Portanto, tais produtos relacionam-se aos percalços sempre presentes de uma forma ou de outra no golpe que faz do vivente um sujeito ao ser inscrito no campo da linguagem. Com efeito, a criança já existe no discurso parental mesmo antes de seu nascimento. Então, o discurso do Outro – constituído pela rede significante que cerca o sujeito – é o próprio inconsciente, marcando a vida e a carne do infans desde a sua entrada no mundo. O neurótico, devido ao recalque, pode-se mostrar, até certo ponto, surdo a esse discurso que o atravessa através das formações do inconsciente. O psicótico já não pode compartilhar da surdez neurótica porque o seu discurso é radicalmente capturado por isso que nele fala sozinho através das palavras impostas, das alucinações, do delírio. No percurso freudiano, o delírio, mesmo aparentemente apresentando-se como um interminável sem sentido, é apreendido por Freud como uma invenção de sentido por parte do 91 psicótico para poder sair de uma situação de impasse. No caso da psicose, podemos pensar que o impasse relaciona-se ao aspecto sempre parasitário da palavra, que nessa posição subjetiva se autonomiza a céu aberto, enquanto na neurose esse fato de estrutura para todo ser falante não ocorre tão manifestamente, porque o neurótico dispõe da ilusão que o eu lhe confere ao acreditar que é ele quem fala. Cantin inicia o relato do caso de Phillip, como denomina seu paciente, aproximando os ditos do paciente ao legado de Freud e Lacan que concede à função do significante o condicionamento da paternidade do sujeito: “É por causa do meu pai que estou doente. Sou um acidente da natureza. (...) Não compreendo o que vim fazer nesse mundo porque ele nunca me significou nada a esse respeito.” E prossegue: “Cada vez que me chega um problema, me sinto quase obrigado a remontar a Adão e Eva e às origens do planeta para resolvê-lo. (...) Nesses momentos, tenho a impressão de ser uma espécie de fantasma. Como se tivesse um câncer em meu espírito” (1990, p.13). Phillip tem 23 anos quando chega ao “388”, é solteiro e mora com a sua mãe, vive da seguridade social há três anos após o primeiro surto psicótico, quando abandonou a faculdade de Direito. Foi hospitalizado por cinco vezes com o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Realizou várias tentativas de suicídio. Um mês após a sua chegada ao “388”, Phillip faz uma demanda de análise. A primeira intervenção da analista é demandá-lo a contar o que lhe ocorreu durante os seus episódios psicóticos. É, portanto, um estilo bastante ativo de acolhimento por parte do analista que, desde o princípio, instiga o sujeito a se posicionar diante do real de sua estrutura. “Há três anos, eu fazia parte de um grupo de teatro amador na universidade. Ensaiávamos uma peça que deveríamos representar um mês mais tarde. Fazia parte de um projeto de intercâmbio cultural com possibilidade de representá-la na Inglaterra. Então, não conseguia mais dormir. De repente, estava muito inquieto por ter que tomar um avião, a gente não fica mais com os dois pés na terra e não conhece o piloto. Eu via uns signos do bem e do mal. Uma noite, fui andar pelas ruas e procurar as estátuas e os monumentos históricos. Andei por toda noite. De manhã, fui procurar meu pai, não era o meu verdadeiro pai que eu procurava, mas Um pai. Refugiei-me em uma igreja, depois ao sair da igreja, fiz uma oração e desmaiei. Levaram-me até o hospital” (1990, p.114). Alguns meses depois, Phillip apresentaria um segundo episódio psicótico quando dirigia uma peça de teatro infantil intitulada “É o tempo da União”. Nessa ocasião, achava que todo o espetáculo repousava sobre ele, até um dia que lhe ocorreu: 92 “eu estava no posto de piloto de uma nave espacial enviada por extraterrestres que me escolheram para cumprir uma missão. Então, deixei o teatro e fui andar pelas ruas, até me pegar rodeando o edifício do jornal Le Soleil pensando que era o edifício da Bolsa e que era o centro vital, o lugar onde tudo se decidia e de onde emanavam as ondas negativas” (1990, p.114-115). Cantin reconhece que Phillip, pela primeira vez, teve a oportunidade de relatar o que vivera como catastrófico, buscando em sua errância desesperada um sentido que o orientasse. E em seus repetidos relatos a respeito de sua psicose, acrescenta, às vezes, novos elementos, mas os principais significantes da sua narrativa sempre retornam, proporcionando, então, à analista, o material significante suficiente para “sustentar a construção da história que empreende em sua cura” (1990, p.115). Nesse primeiro tempo do tratamento, o sujeito, em resposta ao desejo do analista, tenta dizer o que era posto em cena no real da crise psicótica. Dessa forma, graças ao convite da analista em colocar em palavras o que se passara na crise, torna-se possível a entrada do psicótico no campo da representação, em que uma primeira história se organiza a partir de fragmentos esparsos liberados durante a crise psicótica: pedaços de lembranças, as vozes, o delírio (1990). A própria elaboração do delírio por Phillip conduz ao crucial de que se trata para a psicose: a questão do pai. Ele busca “Um pai” e não o confunde com o homem que se figura como seu pai em sua vida. Phillip busca desesperadamente algo que possa substituir o que Lacan designou como o Nome-do-Pai, significante privilegiado que condiciona a filiação simbólica do sujeito, engendrando por isso um lugar para o sujeito na cadeia simbólica como desejante e que, na psicose, se encontra foracluído. O psicótico não obtém a resposta demandada pela procura do significante paterno justamente porque este se encontra foracluído desde sempre na psicose. Por isso, Phillip, ao longo das sessões, lembra-se de alguns fatos que ratificam a sua percepção de que fora sempre “uma criança sem pai”. “Quando era criança, tinha medo da noite. Um dia, coloquei os meus brinquedos sobre a escrivaninha e durante a noite, meus brinquedos caíram sozinhos do móvel. Pensei que alguém os derrubara. Fiquei aterrorizado. Chamei o meu pai mas ninguém veio” (1990, p.117). Em outra sessão, Phillip recorda um outro fato ocorrido em sua infância durante uma exposição em Montreal. A sua tia e seu irmão mais velho seguravam as suas mãos, de repente, eles o largaram, quando então foi atropelado por um carro. Cantin considera essas lembranças 93 de Phillip como fenômenos elementares que apontam o buraco ocasionado pela foraclusão do Nome-do-Pai, na medida em que não associa essas lembranças a nada em sua história, apresentando-se como um fora de sentido inassimilável para o sujeito. Cantin demarca o primeiro tempo da cura de Phillip através dos seguintes processos: a narração dos episódios psicóticos; o início da elaboração de uma história do sujeito e, por último, a produção de um sonho em análise: “sonhei que meu pai é qualquer um” (1990, p.119). Quanto ao sonho, a analista demanda ao paciente que associe a partir de algum elemento do sonho ou de algum fato ocorrido nos últimos dias. Então, Phillip lhe conta que dois dias antes vira seu pai sendo levado ferido a um carro de polícia após um tumulto em frente a um hotel. E acrescenta também que uma garota lhe comunicara que estava grávida e que ele era o pai da criança que estava esperando, entretanto, lhe avisa que só ela pode decidir se terá a criança ou não. Esses fatos se sucedem no mesmo período em que Phillip começa a trabalhar em um curta-metragem cujo tema versa sobre querubins que querem perseguir a história e o passado do Bom Deus. Então, devido à confluência desses fatores que se desenrolam em sua vida, Phillip apresenta um novo episódio psicótico. Desta vez não é internado em um hospital porque já avisara a seus familiares que em caso de alguma recaída o levassem ao “388”, local onde pôde continuar endereçar as suas questões ao permanecer por um tempo como residente temporário. Cantin afirma que essa crise psicótica de Phillip decorre da entrada do sujeito em análise, ou seja, é o tempo de instauração da transferência analítica. A crise psicótica é lida pelo GIFRIC como uma resposta do sujeito ante o desejo do analista, representando um momento fecundo de abertura que permite um acesso à verdade do sujeito. Portanto, a crise psicótica encena de uma maneira muito particular como o sujeito encontra-se comandado pelo Outro através das imposições, das alucinações, e também permite reconhecer a resposta que o sujeito produz através do delírio, da passagem ao ato, para minimizar os estragos da intrusão do Outro. Uma crítica muito freqüente ao trabalho desenvolvido no “388” recai basicamente sobre a desestabilização desencadeada pelo convite para que o psicótico fale em análise. Cantin refuta essa reprovação à psicanálise que visa tratar psicóticos, porque verifica que os elementos significantes liberados durante a crise permitem um acesso privilegiado a fragmentos da história do sujeito que, de outra forma, não seria possível alcançar. 94 Significantes, que quando elaborados posteriormente em análise, permitirão ao psicótico aceder a um lugar de sujeito e não permanecer apenas como objeto dessas crises (1990). Segundo Cantin, a crise psicótica é considerada como uma produção do inconsciente, assim como o sonho ou o sintoma, fornecendo os significantes privilegiados que marcam a posição do sujeito na estrutura parental. Contudo, a partir da crise, o psicótico tem a oportunidade de dizer alguma coisa, tentar representar em palavras justamente isso que submerge nos momentos críticos, buscando reconstituir uma história subjetiva. Nesse sentido, Cantin recorreu às seguintes manobras após a crise de Phillip: contoulhe alguns aspectos que se passaram durante a sua crise, retomando o que o sujeito dissera, ou seja, a partir dos próprios significantes do sujeito, assim como indicou também algum material que o sujeito deveria trabalhar em análise (1990). Portanto, mesmo que o sujeito não possa dizer muito a respeito da crise, a analista o reconduz a alguma lembrança já contada em outra ocasião, como também assinala um elemento em comum entre um sonho e o delírio, com o intuito de que o sujeito possa inscrever a crise em uma cadeia associativa. Enfim, a analista facilita uma certa ordenação da história do sujeito a partir de pedaços de cadeias significantes, permitindo que o sujeito construa algo no lugar deixado vazio pela foraclusão. Acreditamos que através desse tipo de intervenção da analista possamos reconhecer a principal modalidade de técnica analítica desenvolvida no “388” nos momentos que se sucedem à crise psicótica. A analista exerce uma função ativa na cura do psicótico, como já assinalamos acima, embora nos pareça realmente necessário que se trabalhe assim em alguns momentos da clínica com psicóticos. Entretanto, para que esse tipo de intervenção analítica possa conduzir bem o tratamento, conta-se com muita análise pessoal, muita experiência clínica e um referencial teórico bastante claro de quem dirige a cura. Retornemos ao caso clínico. Cantin nos revela que Phillip, no momento em que precede a sua última crise psicótica – a crise que marca a sua inscrição no trabalho analítico –, associa que se recusa a assinar um contrato com o Sr. X a propósito de sua participação no curta-metragem. Ele justifica que estaria inscrito na “União” e que isso lhe era impossível porque “o único contrato que um homem pode assinar é com uma mulher” (1990, p.120). A questão a respeito de um contrato de casamento entre um homem e uma mulher já havia sido mencionada por Phillip no início de seu tratamento. Naquela ocasião, afirmara que um tal contrato não se consumara entre os seus pais, levando-o a dividir a sua família em dois 95 clãs compostos por três pessoas mais velhas e por três pessoas mais jovens; no entanto, não se localizava em nenhum deles. Phillip já havia afirmado também que era ambidestro e bilíngüe porque a sua mãe era francesa e seu pai era escocês, assumindo para si a missão de unir as duas partes da família. Ele relata também que, quando tinha seis anos, seu pai falira a empresa que havia herdado, obrigando a família a emigrar para o Canadá. E, a partir dessa data, sua mãe “passou a portar os culotes, a trabalhar e tudo controlar” (1990, p.122). Nesse momento, a analista intervém: “a ter os cordões da bolsa”, aludindo ao primeiro surto do sujeito, quando, devido à “falência” paterna, ele dava voltas em torno da Bolsa de Valores buscando desativar as ondas negativas que dali emanavam. A analista utiliza uma expressão idiomática para interpretar o sujeito, possibilitando a ligação entre alguns significantes desconectados até então. Dessa forma, lembranças, fatos ocorridos em sua vida, fragmentos do delírio são religados; como, por exemplo, o poder de controle da mãe na família, a trapaça que a mãe realizou para adquirir uma bolsa de estudos para Phillip, o elemento real vivido nas crises (girar em torno da Bolsa de Valores), etc. Sem contar que a própria expressão idiomática, por estar inscrita no simbólico, obedecendo, portanto, a uma lei, aponta para o sujeito um lugar outro que pode recorrer para dizer, prescindindo do corpo ou da passagem ao ato para se colocar (1990). Cantin afirma que, após a sua intervenção, segue-se um tempo em que Phillip fala da inexistência de seu pai na família, considerado pelo discurso materno um “homem acabado e doente” (1990, p.123). Nesse período, relata um sonho no qual desenterra um túmulo que apresenta um monumento vazio, assim como a presença de alguns índios. Apesar de a dificuldade de Phillip fazer a associação a partir do sonho, a analista relembra que ele havia dito anteriormente que tinha “sangue índio” proveniente da linhagem paterna, retomando do discurso do sujeito a possibilidade de inscrevê-lo em uma filiação mítica. Após um breve período de férias, Phillip produz um sonho que Cantin utiliza para delimitar o primeiro tempo da cura, ao mesmo tempo em que inaugura o próximo momento. Inicialmente, Phillip recorda uma ocasião em que viu a sua mãe lendo uma carta do seu pai quando este se encontrava em viagem, e pela primeira vez, observa um sentimento amoroso de sua mãe em relação a seu pai. Em seguida a esta lembrança, ele relata um sonho no qual os seus pais estavam na casa da analista, esta por sua vez, dirige-se ao seu pai e lhe permite falar. 96 Portanto, a primeira etapa da cura, caracteriza-se por resgatar a palavra do psicótico. Nesse sentido, Cantin afirma que se deve terminantemente evitar enquadrá-lo em critérios preconcebidos a respeito de um “paciente ideal”, que possa usufruir de uma psicanálise. O fundamental é interpelar o psicótico como sujeito, além das manifestações de sua psicose, na medida em que ele também se endereça ao analista como sujeito em alguns momentos (1990). Na segunda etapa da cura, Phillip não responde mais ao desejo do analista através de uma crise psicótica, mas através da produção de sonhos e de alguns sintomas. Neste momento da cura, Cantin reconhece um “enquistamento da pulsão de morte por meio de um sintoma, enquistamento do gozo do Outro no qual o psicótico é tomado como objeto” (1990, p.124125). Portanto, a analista escuta Phillip alcançar uma posição de sujeito, porque, até então, ocupava o lugar de objeto do Outro. Durante essa mudança, pela primeira vez, ao retomar um trabalho, ele pôde concluí-lo. Neste trabalho, cria uma história fantástica em que uma criança inventa um pai. Cantin retoma três sonhos de Phillip: “Eu vou porque há um outro Phillip atrás de mim”; “Eu estou em um outro universo, ou melhor, é o mesmo, mas o vejo de uma maneira diferente”; “Eu trabalho para um espetáculo, mas, desta vez, trabalho nos acessórios”. Apesar dessa produção inconsciente, Phillip tem medo de uma recaída e relata que escutara as seguintes vozes: “você é um vagabundo, você é nada, você é repugnante” (1990, p.125). A analista pergunta novamente o que lhe ocorrera nos últimos dias. Ele responde que encontrou a sua mãe bêbada em casa, assim como a jovem que esperava um filho dele, embora tivesse percebido que ela não estava mais grávida. Dessa maneira, Phillip não só relacionou de alguma forma esses últimos fatos com as vozes, como também falou muito a respeito de suas crises anteriores, produzindo com isso um certo sentido ao que estava vivendo, sem que ganhasse um caráter de verdade absoluta. Então, o que lhe ocorria sob a forma de um delírio nos momentos críticos passou a apresentar-se através de sonhos ou sintomas. Em vez de encarnar uma crise, submetendo-se ao real que retorna de fora e o persegue, ele pôde produzir uma palavra na medida em que um espaço para a representação começou a ser construído. E segundo Cantin, o próprio sonho é uma resposta ao desejo do analista, ou seja, uma “outra cena” regida pelo significante que passa a ocupar o espaço subjetivo de Phillip (1990). Phillip relata mais um sonho no qual estava em uma cabana comprada pelo “388”, perto de um riacho. Pensa que Jean-Pierre Ferland se inspirou ali para compor a sua canção 97 que se chama Maria Clara. Phillip menciona que o sonho não estava muito claro para ele. Cantin em sua escuta leva em conta que o significante “claro” pertence ao patronímico da mãe de Phillip e lhe pergunta então se ele conhece a canção. Phillip responde que é uma canção de amor. E a analista cantarola um trecho da letra: “Ela me levou até um riacho. Ela me disse, eu gostaria de ser mãe. Faça como se deve. Faça como é preciso” (1990, p.126). Cantin aponta, através desse tipo de intervenção, que uma mulher pede a um homem que seja pai de seu filho, mas ao nível simbólico foi justamente o que falhou na constelação parental de Phillip, levando-o a errar em busca de um pai. E Cantin aponta também que o sonho coloca uma representação significante no lugar do evento real que precipitou a sua última crise: quando uma moça o designou como o pai do bebê que estava esperando (1990). Segundo Pommier, não basta uma mulher desejar um homem por procurar aí o falo, ou seja, restringi-lo à função falófora, cessando de demandar o falo à criança, para que esse homem seja considerado pai pela criança. “É preciso ainda que essa última passe este homem pela engrenagem edipiana segundo os arcanos da morte do pai. Sua função de nominação será assim acompanhada, o nome sendo tudo isso que resta do pai após essa operação” (Pommier, 1993, p.11). Phillip continua produzindo sonhos para contornar de uma outra maneira o que a sua missão delirante o incumbia, ou seja: ser “ambidestro”, ser “a língua que toca o palato” para poder soldar a família, ser o que une o pai e a mãe como um casal. Assim, tenta reaproximar os pais para que possa nascer simbolicamente, isto é, ter um pai. Um dos sonhos desse período de seu tratamento relata que ele não tem passaporte; em outro sonho, fala uma outra língua – russo. E associa que, quando está em surto, fala uma língua que não conhece, algo fala nele, mas lhe é estranho. Cantin reconhece nessa associação de Phillip que um “alhures” como Freud designou o inconsciente, começa a ser tecido, algo lhe fala, mas está nele, prescindindo da crise psicótica que admite apenas um “de fora” como causa de suas vivências (Cantin, 1990). Então, o real começa a ser enquadrado a partir das construções sustentadas pela analista, ou seja, o retorno do real – o trabalho da pulsão de morte, segundo Cantin –, começa a ser trilhado por outras vias. Nesse momento da cura, Phillip produz um sintoma – furúnculos no rosto – a ponto de o dificultar a falar em algumas ocasiões. É um período que transcorre com muita depressão. Ele associa que esse problema de pele é freqüente na família 98 do seu pai, passando a falar de um tio paterno preferido, que compara a um pai (furoncle / oncle). A questão a respeito da filiação de Phillip em relação a seu pai também retorna porque no discurso da mãe este se ausentara de casa por um ano antes do nascimento do filho devido a uma internação hospitalar em decorrência de um grave acidente automobilístico. Phillip sempre acreditou que era a prova viva de que o pai não ficou estéril como os médicos afirmaram na época do acidente. Portanto, o insabido a respeito de sua filiação que até então era veiculado somente pelo delírio começa a se circunscrever no corpo. Cantin, a propósito dessa etapa do tratamento de Phillip, cita uma intervenção de Apollon em um seminário não publicado de março de 1986: “A interpretação na cura do psicótico visa a obter o sintoma em um primeiro tempo, ou seja, que concentre e enode o gozo do Outro sobre um objeto constituído nos significantes do Outro. O sintoma (...) conjuga o significante do Outro ao real de um gozo em que o sujeito padece. Essa produção do sintoma oferece ao analista um ponto de trabalho no qual pode ser requisitada a produção da cadeia aí onde estava o gozo do Outro” (1990, p.128-129). Portanto, o sintoma no corpo de Phillip se oferece como uma via pela qual o real faz seu retorno. Nesse sentido, Cantin afirma que o que era produzido pelo delírio e os fragmentos da história de Phillip – “ser ambidestro”; “falar duas línguas”; “dever fazer o laço entre os dois clãs da família”; “dever unir a família”; “não estar na União”; “desarmar a Bolsa” – retorna como sintoma no corpo através dos furúnculos. Phillip escuta de seu médico que o seu problema de acne é proveniente de uma taxa de colesterol elevada, determinada hereditariamente. Nesse caso, tal herança provém da família da mãe. Assim, o furúnculo une em seu corpo as famílias do pai e da mãe ao suprir a falha da aliança parental. Phillip, em sua tentativa de enodar o casal parental – “je noue” –, passa também a apresentar um problema no joelho (genou), ou seja, em uma articulação. E ele menciona, a partir de seu problema articular, que sua mãe também apresenta bursite. Quando, então, a analista intervém: “le site de la Bourse”, elevando esse pedaço do corpo ao estatuto de significante justamente por focalizar aí falha na articulação entre os pais de Phillip em desejálo como sujeito. Entretanto, Cantin reconhece que o sintoma corporal mantém o sujeito ainda preso a uma alienação mortífera, na medida em que a analista considera esse sintoma uma produção do inconsciente da mãe, na qual Phillip encontra-se capturado. Portanto, interrogamo-nos se esses significantes ditos pelo paciente – je noue, genou, boursite –, ao 99 serem enodados a partir da intervenção da analista – le site de la bourse –, permitem realmente uma significação para o sujeito ou permanecem restritos ao saber da analista (1990). Citamos acima que na segunda etapa de seu tratamento, Phillip havia não só conseguido, mas concluído um trabalho, tratando-se de uma participação como cenógrafo em um espetáculo teatral. Cantin observa que a cenografia se decompõe em um dispositivo cênico e em uma grafia, isto é, o desenho, um traçado como forma de escritura. Phillip utiliza então uma maquete, um dispositivo no qual se grafa o texto, prescindindo de uma escritura no corpo, como Cantin define o sintoma físico. Portanto, “uma outra cena” é produzida em vez da crise psicótica, do delírio, da lesão corporal. Phillip compõe uma história na qual um garoto de 10 anos que se chama Sully cria o seu pai, e, nesta história, a mãe é posta de lado. Cantin reconhece que o nome do personagem é uma inversão dos fonemas do nome da analista. Com esse “conto”, como Phillip o designa, a ausência de um mito a respeito do pai é suprida temporariamente. Após a conclusão desse trabalho, interessa-se por escultura. E abandona o tratamento por não saber até onde este pode levá-lo (1990). Após seis meses de abandono do tratamento, Phillip busca novamente o “388” por apresentar um novo episódio psicótico em decorrência de um retorno ao mesmo meio que vivia antes de seu primeiro surto. Tinha passado cinco anos e meio sem nenhuma crise psicótica. Cantin considera que essa crise marca o final de um tempo, porque Phillip decide definitivamente não retornar ao teatro, ao cinema, assim como buscar aqueles velhos amigos. Phillip, após um hiato de quatro anos, volta a demandar uma cura analítica no “388”. Nesse período, não apresentou nenhum episódio psicótico, mas se entregou ao uso de drogas para conter a angústia que o avassalava, destruindo todas as suas possibilidades de laço social. Reconhece sua capacidade em trabalhar com teatro, cinema, como o fez antes de abandonar o “388”, mas admite que não é isso que deseja, seu interesse volta-se para a escultura, apesar do voto contrário de sua família que ridiculariza seu talento. “Quero retomar a cura para chegar a produzir alguma coisa minha e que me permita viver” (1990, p.133). Cantin afirma que Phillip circunscreve em seu corpo – através do sintoma de acne e colesterol – a “coisa” que até então capturava todo seu ser como objeto nos momentos das crises psicóticas. Nessa mesma linha, a droga é uma tentativa de conter a pulsão de morte. Contudo, não responsabiliza mais os extraterrestres por lhe infligirem um mal, mas sim a 100 própria droga que buscou como solução para suas dificuldades. Como a droga é uma solução inviável, por não lhe permitir viver nem criar no laço social, ele busca então a arte. Cantin propõe, como terceiro e último tempo do tratamento de Phillip, a produção de um objeto no lugar do sintoma, isto é, “qualquer coisa que seja externa e destacada de seu corpo” (1990, p.134); coisa que permita o retorno do real não mais com o mesmo efeito destrutivo sobre o corpo, a vida, e o próprio sujeito. Até então, Phillip produzia vozes, delírios, sintomas corporais, fenômeno toxicômano, buscando suprir a falha em produzir uma significação para a sua existência. Cantin retoma mais uma vez uma indicação de Apollon em um dos seus seminários, no qual afirma que o objeto produzido nessa etapa do tratamento apresenta as seguintes características: composto por um material que não tenha sentido em si, mas, ao ser trabalhado, delimita um corpo; seja tomado como um objeto do desejo, deslocando assim um pedaço do corpo a ser consumido pela “coisa”. Apollon prossegue afirmando também que o gozo que está em jogo na “coisa” se satisfaz no próprio objeto. Dessa forma, Phillip passa a produzir objetos de arte, desejando que eles também sejam expostos publicamente: “A arte abre um campo para a metáfora, um lugar onde se escuta isso que não se pode dizer, onde pode ser aprendido o inapreensível ou tornar-se visível o imperceptível” (1990, p.135). A arte proporciona que o pulsional dirigido para o corpo até então seja transformado em obra, vindo a metaforizar de alguma forma “o vazio de sentido” que perpassa a vida do psicótico. Cantin conclui o caso clínico de Phillip observando que na terceira etapa da cura não encontramos mais a reconstrução de uma história nem mesmo a produção de uma ficção que gere algum sentido a partir da falha significante, mas uma “estética do agir”. Ela indica que a função do analista é manter um lugar por onde o real possa se deslocar para um objeto artístico produzido pelo sujeito, prescindindo com isso de utilizar o corpo ou a vida como ocorre freqüentemente no sintoma ou na crise psicótica. Assim, o sujeito constrói uma existência que, mesmo sem recorrer ao pai compartilhado pelo mito edipiano, produz uma escritura e uma possibilidade de expressar a pulsão de morte em uma estética que se articula no laço social (1990). Então, através das principais vertentes do caso clínico de Phillip – a reconstrução da história do sujeito, a constituição de um sintoma corporal e a produção do objeto artístico que rearticula o sujeito no laço social –, percebemos como se desenrolou o processo analítico 101 sustentado por Lucie Cantin no “388”. Entretanto, permanecemos com a interrogação a respeito de uma melhor correlação entre essas etapas do tratamento de Phillip e a produção do fantasma na psicose, como acompanhamos na teorização de Apollon no capítulo precedente. 4.2 O caso André Danielle Bergeron, em seu texto Enjeux de la cure du psychotique, publicado também no livro Traiter la psychose, nos apresenta um caso clínico acompanhado por ela no “388”. O seu texto articula a descrição do caso clínico com as suas considerações a respeito da psicose dentro do estilo desenvolvido pelo GIFRIC. Portanto, não abordaremos todos os aspectos ressaltados por ela, na medida em que vários pontos já foram trabalhados no capítulo três e no item anterior do atual capítulo. Focalizaremos apenas os posicionamentos que acrescentam algo à concepção clínica do GIFRIC. O caso clínico em questão baseia-se na análise de André, como Bergeron nomeia o paciente, que lhe chega com a seguinte interrogação: “Eu me pergunto por que se vive. Se eu não tivesse tido a minha depressão, penso que teria encontrado a resposta a esta questão. Eu perguntara ao meu tio doente como, por que se vivia, e ele morreu no dia seguinte” (Bergeron, 1990, p.139). O paciente acredita que esta pergunta precipitara a morte do tio, mas, mesmo assim, insiste em respondê-la, porque, segundo Bergeron, questionar o sentido da vida é uma questão de vida ou morte para o psicótico. A invenção do delírio é a resposta privilegiada que o psicótico dispõe para explicar a vida. No caso de André, a sua busca pelo sentido derradeiro da existência o conduz às religiões, à parapsicologia, aos avanços tecnológicos, à física nuclear. Ele supõe também que “forças atravessam o seu corpo; seres maléficos dirigem seus comportamentos; que ele seria o único a regular os conflitos entre as grandes potências; uns objetos teriam sido colocados nele na ocasião de intervenções cirúrgicas” (1990, p.140). Bergeron nota que o psicótico não justifica a sua vida como o neurótico, porque não compartilha das mesmas leis e mitos fundantes da sócio-cultura que compõem a ordem simbólica na qual também está imerso. A dor de existir do psicótico não se refere ao sofrimento provocado pela “fantasmatização da falta de um objeto” como ocorre com o 102 neurótico, que acredita que, se encontrar o objeto, a sua falta-a-ser estará abolida. O psicótico, segundo Bergeron, apresenta uma “consciência aguda”, que nenhum objeto poderá preencher a falta de base do simbólico, mesmo que se construam todas as divindades para que o homem aceite melhor o seu destino (1990). O psicótico não transita satisfatoriamente no laço social devido a uma falha na função paterna que se encontra em jogo na constituição do sujeito, tendo como efeito a foraclusão do Nome-do-Pai, fato de estrutura já suficientemente desenvolvido em passagens anteriores de nossa dissertação. Entretanto, gostaríamos de ressaltar que Bergeron, ao considerar o lugar que o psicótico ocupa na constelação familiar, retoma também a teorização que correlaciona o psicótico ao objeto que satisfaz a demanda do primeiro Outro – imaginariamente identificado à mãe –, mas, além disso, faz menção a um Outro real na psicose que até então não havia sido apontado por Apollon ou Cantin. Segundo Bergeron, o psicótico se oferece em sacrifício ao Outro em sua dimensão imaginária, abdicando de uma posição de sujeito por crer que deve ser o objeto que tampona a falta do Outro – momento em que tanto o corpo como o próprio delírio expressam justamente a captura do sujeito pelo gozo do Outro. O real desse gozo não permite que o sujeito se enode metaforicamente às leis e às regras da ordem simbólica. Esse gozo permanece como energia não ligada na estrutura psíquica, na falta do significante paterno para ligá-la, constituindo assim o Outro real que persegue o sujeito (1990). E Bergeron acrescenta que se o enodamento dessa energia ao simbólico puder se fazer, “no vazio deixado pela impossível adequação do real ao simbólico”, o psicótico “chegaria a ocupar uma posição imaginária de sujeito” (1990, p.144). Portanto, a autora reconhece que o Outro para o psicótico não se restringe à dimensão imaginária, mas presentifica-se persecutoriamente como Outro real através dos fenômenos elementares. Afirma também que se o gozo se deixar enlaçar pelo significante de alguma maneira na psicose, ou seja, um enlaçamento entre o real e o simbólico, encontramos uma posição imaginária de sujeito. Mas qual será o estatuto dessa posição imaginária de sujeito? Afirmação intrigante que nos faz pensar que Bergeron a utilizou para dar conta de um provável enodamento borromeano: Real do gozo, Simbólico do significante e Imaginário do sujeito. Mas será que ela está propondo que o “imaginário do sujeito” se refere à significação que ocorre no imaginário como efeito de alguma metáfora, mesmo que delirante? O sujeito é efeito da articulação entre dois significantes – um significante representa um sujeito para 103 outro significante –, mas ele em si não é simbólico. Ou haveria um sujeito simbólico, um sujeito imaginário e um sujeito real também? Por fim, será que a assunção a uma posição de sujeito na psicose através do tratamento analítico ocorre pela via imaginária, egóica? Ou será que esse “imaginário” estaria mais referido à noção de “semblante”? As questões ficam em suspenso. Bergeron sugere que a análise se constitui em um espaço onde o sujeito pode escapar da captura do Outro – imaginário e real –, porque as próprias regras que regulam a sessão analítica não são estipuladas pelo outro em decorrência de uma relação de força nem o espaço da análise é invadido pelo gozo do Outro: “Na cura do psicótico, esse buraco criado pela disp 104 Rabinovitch trabalha também na perspectiva de que, em um primeiro tempo, o retorno do foracluído faz endereço no psicótico. Em um segundo tempo, há uma elaboração desse “percebido” – como “vindo de fora” – através do delírio. Entretanto, o que ela propõe é que o analista ocupe o intervalo entre o retorno do foracluído e a significação delirante, ou seja, “o dispositivo do tratamento consiste em reproduzir o momento do desencadeamento da psicose” (Rabinovitch, 1998, p.23). Nessa perspectiva, ante a fragmentação do tecido psíquico desencadeada pela foraclusão, a transferência deve responder. O analista deve se fazer de endereço do que vem de fora e “completar o tecido esburacado.” Segundo Rabinovitch, o analista “é esse outro qualquer” (ocuparia, então, o lugar do outro imaginário?) para responder “a essa figura de um Outro nem suposto, nem buscado, nem desejado, mas conhecido como o que goza do sujeito” (1998, p.24). Portanto, algum tipo de crise também pode ser deflagrada pela proposta clínica de Rabinovitch, ao sugerir que o analista intervenha reproduzindo justamente o momento do desencadeamento da psicose para que algo possa ser nomeado de outra forma que delirante. Bergeron parte do delírio como a via mestra pela qual a análise com o psicótico pode ser possível. É a partir da matéria significante do delírio que se constrói uma história mais relativa, contudo, sem a pretensão de compor uma narrativa bem organizada em torno de fatos vividos na realidade. A ficção construída em análise recolhe os significantes dispersos que atravessam o discurso do sujeito. E essa nova ficção, por sua vez, permite ao psicótico utilizála em sua relação com o outro, quando, até então, o delírio colocava o psicótico fora das trocas sociais (Bergeron, 1990). André, o paciente apresentado por Bergeron em seu texto, oscila entre períodos em que prevalece o pensamento de se suicidar porque não vale a pena viver em um mundo repleto de bombas atômicas que a qualquer momento podem destruir tudo e, em outros períodos, tenta dar conta da origem do mundo através de uma construção delirante. Assim, no início do tratamento, a analista solicita que André escreva a respeito de sua teoria que busca um sentido para a vida. Então, André escreveu para a analista: “A vida começou por uma esfera e um vazio. Havia uma grande pressão sobre a esfera a explodindo. Dessa forma, nasceu o primeiro átomo (um nêutron, um elétron e um próton). A vida também começou com duas forças que se juntaram como o próton e o elétron, foi uma explosão e fizeram o nêutron, e o elétron que gravitava. O nêutron é o sol. O próton gira sobre 105 si mesmo, então é a terra, e o elétron é a atmosfera. Entre o próton e o elétron há uma força de atração ou uma força centrífuga em relação ao nêutron (o sol). Mas quando se segue os símbolos químicos, constata-se que o hidrogênio não tem nenhum elétron enquanto que o hélio tem dois. A vida começou entre o negativo e o positivo, duas forças contrárias” (1990, p.150-151). André relatou também para a analista que se sentia manipulado por forças que não só se batiam contra ele como também se apresentavam sob a forma de vozes. Bergeron observa que todo o empenho de André em forjar uma origem para a vida, ou seja, para a questão a respeito do pai, encontrava-se atrelada ao fato de que sempre ouviu o seu pai xingar a sua mãe de puta, portanto, “quem é o meu pai se a minha mãe é uma puta?” (1990, p.151) Bergeron reconhece na teoria delirante de André, um primeiro grupamento significante – próton/terra; elétron/atmosfera; nêutron/sol –, que tenta criar uma ordem de representação, embora, o considere delirante porque não há deslizamento entre os significantes, todas as três duplas estão coaguladas pela força de atração que as mantém na mesma relação entre si. Segundo Bergeron, não há a possibilidade de um quarto termo que marcaria um vazio entre os elementos significantes, permitindo com isso uma circulação entre eles. Assim, o próprio delírio aponta a falta do quarto termo na estrutura – o Nome-do-Pai – para “enodar no simbólico, o imaginário do sujeito ao real do gozo” (1990, p.152). A partir do percurso do paciente em análise, que instaurou a primeira bateria significante, a analista tenta produzir uma abertura no sentido fechado do delírio ao interrogar o sujeito relacionando o próton/terra à mãe, o elétron/atmosfera ao filho e o nêutron/sol ao pai, que, por sua vez, reúne os outros dois. No entanto, nesse novo trio significante introduzido pela analista – pai, mãe e filho –, arbitrário em si mesmo e sem valor de verdade, o pai reforça a atração entre mãe e filho, não ocupando o lugar de separador. Assim, nessa intervenção da analista, o pai não destaca a mãe e o filho, ou seja, não introduz o significante que suporta o vazio deixado pela hiância entre os dois (1990). Neste caso, a direção de cura proposta por Bergeron recai justamente em produzir um separador que livre o paciente da “compacidade alienante do delírio”, permitindo que se porte como sujeito e não mais como objeto alienado ao gozo do Outro. Nesse caminho, o paciente associa que tem medo de novas recaídas, assim como não conseguir realizar nenhum projeto profissional porque seu pai também fracassou em sua carreira. Assim, a analista relaciona para o paciente o fracasso profissional do pai ao fracasso do sujeito em conduzir mudanças em sua vida. 106 107 André, que chegou ao “388” com um diagnóstico de deficiente mental, começou a partir da análise, a participar dos jogos de quilles com seu pai, com quem não se relacionava há anos, como também se interessou por badmington, disputando até torneios regionais. Bergeron ressalva que badmington em Québec leva a designação de jouer au moineau, nome de um pássaro muito veloz, aproximando dessa maneira moineau/oiseau à série que André sonhou poisson/chien/oiseau. O paciente também ingressou na universidade para cursar Ciências, onde poderá, em um quadro aceito socialmente, dar outros sentidos à sua vida. “Assim, a cura analítica do psicótico tenta lhe oferecer balizas imaginárias em que hipóteses vão ser possíveis, em que ficções serão propostas para relançar a ação do significante e desbloquear o impasse do delírio” (1990, p.158). Nesse sentido, o psicótico é surpreendido com a desmontagem de suas certezas delirantes ao ser confrontado a dar conta da falha do Outro – mas dentro de um suporte em que uma mudança gradual possa ocorrer e a angústia ser amenizada –, que até então produzia as desorganizações psíquicas e as passagens ao ato. 4.3 O Caso “Serquequerser” Neste último item do capítulo, cotejaremos as propostas de Freud, Lacan e Apollon a partir de fragmentos de um caso clínico de um psicótico de 30 anos que acompanhamos, diariamente, há cinco anos, ao longo de três meses de internação no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói. Sabemos que a nossa situação clínico-institucional difere em muito da prática desenvolvida pelo GIFRIC no “388”, no entanto, acreditamos, também, dela poder tirar conseqüências, observando, por exemplo, que relações existem entre o delírio e a verdade do sujeito. Aproveitamos também para ressaltar alguns aspectos divergentes entre as experiências do GIFRIC e do HPJ. Freud, em seu texto sobre Schreber escreve: “... fica para o futuro decidir se a teoria contém mais delírio do que eu quisera, ou o delírio, mais verdade do que as pessoas estão, por enquanto, preparadas para acreditar” (Freud, 1911, p.72). Com esse desafio nos lega essa peculiar articulação: delírio, teoria e verdade. 108 Lacan, também se refere a esta última articulação ao se reportar ao caso Schreber no Seminário III: “(...) nós nos vemos na posição de discernir pela primeira vez as noções estruturais cuja extrapolação é possível em todos os casos (...) Encontramos também no próprio texto do delírio uma verdade que lá não está escondida, como acontece nas neuroses, mas realmente explicitada, e quase teorizada. O delírio a fornece, não se pode mesmo dizer a partir de quando se tem a chave dele, mas desde o momento em que o tomemos por aquilo que ele é, um duplo legível, do que aborda a investigação teórica” (Lacan,1988 [1955-56], p.37-38). O paciente em questão, manifestamente psicótico desde a adolescência, após um grave desentendimento com sua mãe, passa dois dias na rua, acompanhado apenas por sua cachorra. Quando retorna à sua casa, encontra a porta trancada porque a sua mãe, muito receosa de sua agressividade, não lhe permite a entrada. Então, acometido por mais um episódio de ira, arromba a porta. Nesse momento, a polícia é convocada e o leva até o HPJ, onde é internado. Portanto, o paciente não procura espontaneamente um tratamento, o que caracteriza uma situação bastante diferente da prática no “388”, que exige uma demanda clara de tratamento por parte do psicótico. Mas, como poderemos acompanhar a seguir, algum trabalho subjetivo é realizado. Na primeira entrevista, ao ser perguntado pelo seu nome, o paciente responde: “Serquequerser”. “O que isso significa?”, pergunto-lhe. “Conhecimento universal, todo conhecimento do corpo e do espírito, corpo são e mente sã”, responde. E continua: “quero sair daqui no próximo quarto dia útil do mês, eu quero que o Sr. entre em contato com aquela mulher porque eu não quero voltar para aquela casa”, se referindo à mãe. No atendimento seguinte, relata: “Eu vou até a Polícia Federal, vou ser o agente especial Serquequerser, vou fazer uma prova escrita, discriminada, sem documentos, sem identidade, sem família, sem descendentes. Quero passar na prova para ser o agente Serquequerser. Sou o senhor mestre Serquequerser do Deus Altíssimo. Eu li na Bíblia que existem muitos senhores, muitos mestres, muitos deuses, mas só um é o Deus Altíssimo.” Qual verdade no texto do próprio delírio que nos testemunha o psicótico? Seria “tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real?” (Lacan, 1988 [1955-56], p.21) Tratando-se, desse modo, de “rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível” (1988 [1955-56], p.174). 109 Outros fragmentos desse tempo: “...sou sozinho, só tenho o Deus Altíssimo, o meu corpo é do Deus Altíssimo, por isso cuido dele da melhor forma possível: só como frutas, legumes e verduras cruas. A partir do quarto dia útil do próximo mês, eu vou seguir o meu caminho guiado por Deus Altíssimo. Eu não tenho nome, eu vim do nada, quero ser a eternidade. Preciso ir até o juiz para ele me aprovar, soldado comandante agente especial da Polícia Federal Serquequerser.” A lógica do delírio demonstra todo o esforço do psicótico em construir “um remendo” para a falha ocorrida no processo de filiação simbólica e, conseqüentemente, na nomeação do sujeito, assim como na própria constituição do corpo como erógeno; mesmo que o “remendo” produzido – como Freud denominou o delírio –, se nutra sempre de alguns elementos significantes provindos do real. Nesse caso, o que vemos? Um delírio que permitiu ao sujeito se filiar a um Outro sagrado – “Deus Altíssimo” –, na busca de superar a ausência radical de laço social em que se encontra. Em decorrência disso, escutamos tão repetidamente em seu discurso: “sou sozinho, só tenho o Deus Altíssimo”. O delírio também possibilitou uma nomeação ex-nihilo para o sujeito, na medida em que, inicialmente, se refere a si mesmo como não tendo nome, vindo do nada. Mas, curiosamente, a lógica do delírio não prescindiu da aprovação de um outro em posição de suporte da lei – “um juiz” – para designar o sujeito como: “soldado comandante agente especial da Polícia Federal Serquequerser.” O paciente prossegue: “As mulheres gostam de mim, mas eu não as procuro, elas me procuram para namorar, mas eu não quero, sou Serquequerser, mantenho o meu corpo puro. Sou formado em Engenharia Naval, Direito, Psicologia, Matemática e Português. Eu sou um novo ser, uma nova criatura que nasceu 05.09.74, graças à glória do Deus Altíssimo (...) Serquequerser, tudo junto, não se escreve separado, (...) ser grande, esse é o meu destino. Eu tenho uma missão até o final de 1995, eu recebi uma mensagem de Deus para eu ser agente especial da Polícia Federal. Sou muito inteligente, aportuguesado, eu já passei por coisas inimagináveis, hoje, eu não tenho pressão, nem nervos. Eu renego o meu nome, Carlos Antônio de Azevedo Colin3, eu me chamo Serquequerser.” Nesse fragmento do delírio do paciente, podemos escutar precisamente a questão da “missão do psicótico” como Apollon considera em sua teorização. O sujeito nos relata que tem uma “missão” porque “recebeu uma mensagem de Deus para ser agente especial da 3 Nome fictício. 110 Polícia Federal Serquequerser”. Em uma das sessões, nos confidenciou que recebeu tal mensagem (missão) através de uma voz que escutou – “Serquequerser” –, logo que chegou ao hospital no dia de sua internação. Parece-nos, portanto, que há uma estreita relação entre a alucinação como fenômeno psicótico primário e o “núcleo” do delírio portador da mensagem do Outro que redunda em uma “missão”, missão essa amalgamada à própria nomeação do sujeito, em holófrase, que do real surge: “Serquequerser, tudo junto, não se escreve separado”. Em uma entrevista na presença de sua mãe, o sujeito nos disse: “Eu gostaria de falar que essa mulher renegou o pai dela que era um lorde, almirante da Marinha Mercante e da Marinha de Guerra em Minas Gerais, era do almirantalado, mas só porque ele fumava cachimbo e bebia uma bela tequila, ela o renegou. Ela era uma cinderela, depois virou uma serviçal e ficou ao Deus dará. E aí, só porque o homem usava colarinho, achava que ele era doutor, mas era um analfabeto. Eu renego o meu pai e a minha mãe e o meu nome, Carlos Antônio de Azevedo Colin. Eu renego o pai da minha mãe, o pai do pai da minha mãe, o pai do meu pai, o meu pai, o pai do pai do meu pai. Eu sou Serquequerser. Eu vou continuar para a minha perícia e para a minha aposentadoria sendo Carlos Antônio de Azevedo Colin porque preciso de dinheiro para habitar e comer, mas minha nova identidade é Serquequerser. Eu preciso sair daqui e voltar ao C.A., à 1a série, e me alfabetizar com minha nova identidade, Serquequerser, e fazer até o último grau, voltar no tempo de 30 para 3 anos, porque ao voltar a ser criança, o Deus Altíssimo me disse que vou viver centenas de anos. O homem que se diz meu pai dormia com ela, eu via ele levando a filha dele para o quarto e fechando a porta. Ele conseguia emprego para milhares de pessoas porque tinha uma pica muito grande... Eu tenho uma mente forte, tenho todo poder, eu hipnotizo as pessoas. Eu quero passar o Natal fora daqui... não vou mais para a Polícia Federal, vou remanejar, reconstruir minha identidade porque quem não tem pai nem mãe é... está me fugindo a palavra, o que é? Funabem... O que é? O que é? É, sou Funabem, mas não vou ficar na rua, vou ser racional...” Nesse trecho do delírio do paciente, podemos acompanhar todo o drama do psicótico em relação à questão paterna de uma forma tão cristalina, que nos permitimos retomar as indicações de Freud e Lacan, que referem que o delírio explicita radicalmente não só a verdade do sujeito, mas da própria psicanálise, como supracitado: “um duplo legível do que aborda a investigação teórica”. Escutamos também na psicose a desarticulação dos três elos do nó borromeano que sustentam o sujeito da psicanálise – real, simbólico e imaginário. No caso clínico em questão, 111 o paciente se nomeia como Carlos Antônio de Azevedo Colin, quando precisa, por exemplo, se nomear junto ao médico perito para continuar recebendo o dinheiro do benefício previdenciário. Nesse sentido, o sujeito, ao se identificar com o nome que o registra na dimensão simbólica, não abre mão de se manter no laço social para participar de alguma forma na troca social. Entretanto, a nomeação calcada na dimensão simbólica do laço social desenrola-se paralelamente à nomeação que o sujeito sustenta ante o analista – “Serquequerser” –, a sua “verdadeira” identidade, demonstrando claramente a sua perda de laço social. Portanto, nesse momento, encontramos muito mais uma nomeação como efeito da presença real de um fenômeno elementar – ou seja, uma “voz” que irrompe quando chega ao hospital –, caracterizando com isso a desarticulação do elo do real do nó borromeano, porque este se encontra todo desatado para o sujeito na psicose. Constatamos também a disjunção do elo imaginário do sujeito através do indício de uma “regressão tópica do imaginário” quando relata que precisa voltar aos 3 anos de idade para refazer a sua identidade. Dessa maneira, na psicose, nos parece que os ditos do sujeito não apontam para uma divisão subjetiva como na neurose, pelo contrário, apontam muito mais para uma disjunção entre os três registros do nó borromeano. Prossegue o paciente: “Eu fui ao futuro, ao presente, estou no passado de 1995. Eu sou uma reta sem margem, só tempo. (...) Sou casto, não me prostituo com mulheres, só amo o Senhor Deus Altíssimo. As mulheres são impuras, indignadas, elas não se castram a si próprias.” O paciente, ao conjugar seu ser a uma reta – “sou uma reta sem margem” –, nos remete novamente ao Seminário III As psicoses, de Lacan, que aborda o significante Nome-do-Pai através da seguinte metáfora: “a estrada principal é um sítio em torno do qual não só se aglomerou todas as espécies de habitações, de estâncias, mas que também se polariza, enquanto significante, as significações” (Lacan, 1988 [1955-56], p. 328). Mas o que se passa quando não se tem a estrada principal, não se tem o Nome-do-Pai? Quando se é “uma reta sem margem”? Margem pensada aqui como borda, limite, como define a Matemática, segundo o dicionário Aurélio, “elemento L em cuja vizinhança de dimensão arbitrária ... estão contidos todos os elementos de uma seqüência infinita ..., a partir de um n0” (Ferreira, 1975, p.845). Na estrutura psicótica, justamente a referência do Nome-do-Pai como um limite é que se encontra excluída, implicando, portanto, um desenodamento discursivo 112 tanto em sua versão espacial quanto temporal. O desatamento da dimensão espacial do discurso pode ser constatado através da própria metáfora do sujeito referida acima: “sou uma reta sem margem”. E em relação à desarticulação da dimensão temporal do discurso do sujeito psicótico em questão, evidenciamos que a seta do tempo que ordena passado, presente, futuro – produto também da significação fálica comum, de certa forma, aos neuróticos – não se encontra da mesma maneira na psicose, esta, por se apresentar de certa forma fora do laço social, conduz a outros ordenamentos temporais como, por exemplo, a eternização do tempo ligada ao ser: “eu sou ..., só tempo”; “vou viver centenas de anos”; assim como “eu fui ao futuro, ao presente, estou no passado de 1995”; “voltar no tempo de 30 para 3 anos.” Em outra sessão, nos diz: “... quando era internado, ficava num quarto no subterrâneo, ficava num buraco. Até um dia que eu caí no chão e um grupo dos melhores especialistas em Medicina me pegou e me fizeram uma circuncisão no meu pênis, eu fiquei com um pênis de menino e agora sou admirado, mas não tocado, fui escolhido pelo Deus Altíssimo como o Deus da beleza, o Deus da saúde e o Deus da sabedoria. Eu passei por várias transformações, quando fui circuncidado, gritei muito de dor, eles me seguraram e isso não é fantasia, nem...nem é um fato real. Freud morreu dizendo que não sabia nada, só o Deus Altíssimo que tem toda a sabedoria, todo conhecimento. Naquela época, eu lia a Bíblia porque eu não tinha todo o conhecimento ainda, realmente as outras pessoas não sabem de nada, eu li Freud, Lacan, Jung e Jung, 4 até Platão, posso ser um psicanalista. Eu já passei por provas duríssimas, mas, hoje, sou o escolhido, eu, resoluto, não quero ter, quero ser. Este mundo vai acabar, mas só eu ficarei pra sempre, porque Deus disse que um se salvará, mas as pessoas copulam e o mundo proliferará, proliferará.” O discurso delirante do sujeito não abdica de se referir à “castração” como escutamos no trecho acima, tanto em relação à “castração” das mulheres como a dele próprio. Inicialmente, o delírio faz uma menção ao fato de que as mulheres não se castram a si mesmas. Poderíamos pensar que ele está fazendo alusão à não castração da mãe – primeiro Outro do sujeito – como ocorre na psicose? Porque nos parece verdadeiro que a mulher que sustenta a função materna na constituição de um sujeito necessita ser “castrada” pelo pai, ou seja, a função paterna opera intervindo como um elemento terceiro tanto em relação à mãe como em relação à criança. E no caso, o sujeito qualifica as mulheres de “impuras, 4 Inicialmente, o paciente pronunciava corretamente o sobrenome suíço-alemão de Jung ao substituir o j por i: “iung”, mas em seguida pronunciava o j, ou seja, como se escreve: “jung”. 113 indignadas”, justamente por não se castrarem, permitindo-nos constatar, então, que nesse delírio há um saber que de alguma forma aponta para a necessidade fundamental da castração do Outro na constituição do sujeito. Poderíamos também nos perguntar a respeito da relação entre a não-castração das mulheres – como o discurso delirante do paciente aporta – e a questão da existência da Mulher. Lacan, ao enunciar que “A Mulher não existe”, remete à questão de que dentro da lógica da sexuação do ser falante só existe um sexo – o masculino, na medida em que o significante “falo” permite a constituição de um conjunto fechado compreendido pelos seres fálicos; entretanto, para que isso se sustente logicamente é necessária uma exceção à regra, ou seja, que ao menos um elemento do conjunto não se encontre submetido à castração. O “sexo” feminino não se inscreve na linguagem, proporcionando com isso, um conjunto aberto, indeterminado, no qual se localizam os seres femininos. O conjunto é aberto porque não há exceção à regra para fundar o universal de todas as mulheres como temos no conjunto que compõe os homens. Assim, o sujeito que se posiciona como homem encontra-se todo submetido à castração, à norma fálica, edípica, com exceção de um “homem” – o Pai da horda primeva, segundo o mito freudiano –, o que possibilita justamente a consistência de um agrupamento universal; enquanto o sujeito que se posiciona como mulher, na partilha dos sexos, também está referido à castração simbólica, mas não o está totalmente, a mulher é não-toda em relação à norma fálica. O homem está preso ao gozo que o significante proporciona – gozo fálico –, enquanto a mulher, por não ser toda, não estar totalmente submetida ao significante, isto é, ao gozo fálico, apresenta um gozo suplementar ao fálico. E Lacan aproxima o gozo feminino ao gozo místico, por situá-lo também do lado do não-todo submetido à regra fálica – ou seja, um gozo fora do significante, como tão bem ilustra Teresa d’Ávila. No Seminário XX, Lacan formula que “A mulher” não existe porque só se pode escrever “A Mulher”, barrando-se o artigo definido “A”, na medida em que este artigo sem a barra da castração confere um caráter universal a um determinado conjunto – o que não ocorre entre as mulheres, elas não formam um conjunto fechado. As mulheres só podem ser tomadas uma a uma, no particular de cada uma, porque em “essência” – A mulher – é não toda (Lacan, 1982 [1972-73]). Portanto, para o neurótico, “A Mulher” ex-siste, ou seja, só pode existir fora do simbólico. Entretanto, o psicótico, por se constituir levando-se em conta a não-castração da 114 mulher, em uma tentativa de abolir a diferença sexual, tenta fazer existir “A Mulher”, completa, fálica, sem barra. O delírio do paciente também explicita uma cena traumática na qual o sujeito é circuncidado, castrado, mas que resulta em “um pênis de criança”, ou seja, não operante como falo, apresentando-se apenas para ser “admirado, mas não tocado”. Aspecto que, inclusive, o conduz a ser “o escolhido pelo Deus Altíssimo” e coroado megalomanamente como o Deus da beleza, da saúde e da sabedoria. E o interessante também é que o sujeito ressalta que a cena da circuncisão não é uma fantasia nem um fato real como realidade “objetiva”. A circuncisão se processou em uma dimensão do real, portanto, não articulada a uma ordenação na cadeia simbólica. A “castração” para o sujeito psicótico se localiza fora da cadeia significante como retorno do foracluído, cristalizando-o na posição de ser o falo e não ter o falo, como o sujeito nos afirmou resolutamente: “não quero ter, quero ser”. E qual a relação entre este sujeito e o Outro como “Deus Altíssimo”? Lacan, em De uma questão Preliminar, escreve que “o Nome-do-Pai reduplica no lugar do Outro o significante ele mesmo do ternário simbólico, enquanto ele constitui a lei do significante” (Lacan, 1995 [1958], p.559). Reduplicação esta que instaura, portanto, dois lugares – M, Mãe, como o Outro primordial, lugar do tesouro dos significantes – e – P, Pai, lugar da lei significante. Na psicose, como já salientado várias vezes, o significante Nome-doPai é rejeitado, produzindo todo o acidente na história do sujeito quando solicitado. E o que se presentifica no buraco deixado pela falta do Pai como Lei que ordena a cadeia significante são os fenômenos elementares. Desse modo, na psicose, o lugar do Outro é presentificado diretamente através dos fenômenos elementares, que ocupam, portanto, o lugar da simbolização primordial como o primeiro Outro materno. Outro este não barrado pelo significante da castração, que impõe ao sujeito um gozo, além de deter todo saber, não havendo possibilidade na psicose para vacilação, dúvida diante de um saber absoluto, mas apenas certeza, a certeza delirante proveniente desta relação com um Outro sem falta. O paciente continua: “Eu estou em condições de conduzir a minha vida, mas não dentre a família. Quero sair pelo mundo, pelas ruas sem ser importunado, sem matar o pai.” “O quê?”, pergunto-lhe. “Matar, matar, matar ... não está vindo a palavra, gostaria que o Sr. não me importunasse quando eu estivesse falando.” 115 “Eu gostaria de dizer para o Sr. que o meu nome é Carlos Antônio de Azevedo, porque Colin existem milhares por aí, mas todos registrados, e só sei que sou o primogênito de Enarzina... Ela é minha única família. De um e de dois se chega lá, de um e de dois se chega lá. Deus Altíssimo proverá. Já li Freud, Lacan, Jung e Jung, Sócrates e Platão. Todos morreram sem saber nada. De um e de dois se chega lá, de um e de dois se chega lá. O enigma concernente aos familiares eu resolvi, por isso não tenho mais porque falar... Fui escolhido pelo Deus Altíssimo como superior a Jesus Cristo, ele se casou e teve filhos.” Mais uma vez, o texto delirante do paciente aponta para elementos cruciais na constituição do sujeito. Neste último fragmento do delírio, escutamos um ponto fundamental que não pôde ser elaborado simbolicamente pelo sujeito, ou seja, o parricídio – “quero sair pelo mundo... sem matar o pai” –, retornando, portanto, pela via do delírio. E quando o sujeito foi interpelado pelo analista para melhor enunciar essa questão, o que encontramos foi a repetição do verbo “matar”, embora, sem o complemento verbal, isto é, o significante “pai” que foi expulso da própria cadeia associativa do psicótico. Em seguida a essa associação, ou melhor, à falha na associação referente ao pai, o paciente não só especificou a retirada do sobrenome do pai de seu nome próprio, não sendo, portanto, registrado pelo pai como os “milhares” de “Colin” que existem pelo mundo – como também especificou o lugar que ocupa junto à mãe – “sou o primogênito de Enarzina ... Ela é minha única família”. E repete várias vezes a fórmula que o enreda no duplo especular: “de um e de dois se chega lá” – a ponto de ser eleito pelo Deus Altíssimo, como superior a Jesus Cristo! “Ele se casou e teve filhos.” Podemos pensar o desdobramento desse caso clínico em três tempos: no primeiro, ocorre a irrupção de uma voz alucinada – “Serquequerser”; no segundo, a multifacetada construção delirante; e, no terceiro, um certo remanejamento do delírio que permitiu algum enlaçamento social. Mas, antes de delimitarmos os três tempos do tratamento do paciente, é importante também que frisemos um pouco a respeito do lugar que o analista ocupa no desenrolar desse processo. A partir das indicações de Freud e Lacan, Alberti demarca muito claramente alguns pontos a propósito da posição que o analista ocupa na direção de tratamento de adolescentes esquizofrênicos. Então, poderíamos estender essas orientações para o sujeito que abordamos em nosso caso clínico, na medida em que ele também apresentou o desencadeamento de sua psicose na adolescência e por tratar-se ainda de um adulto jovem. 116 O primeiro ponto abordado por Alberti consiste em que, para o psicótico, “o analista sabe do real” (Alberti, 1999, p.127). O psicótico não supõe, como o neurótico, um saber ao analista, este “presentifica o próprio saber do real” (1999, p.127). Portanto, não há idealização nem identificação em relação ao analista na psicose, pelo contrário, “o sujeito esquizofrênico escancara a verdade que os neuróticos tanto fazem para velar: não há intersubjetividade na relação psicanalítica” (1999, p.127). O segundo aspecto ressaltado por Alberti, refere-se ao fato de que, para o psicótico, o analista não difere dos outros com os quais o sujeito se relaciona, “o verdadeiramente diferente é ele próprio, sujeito a e de experiências que os outros não têm” (1999, p.127). Entretanto, o terceiro ponto indicado por Alberti, considera que o analista, mesmo sendo semelhante aos outros, ao exercer a sua função, “intervém sobre o próprio gozo do sujeito” (1999, p.127). O paciente que apresentamos, em nosso caso clínico, era muito implicado com o trabalho realizado: quando chegávamos na enfermaria, ele nos aguardava; depois, entrava no consultório, sentava-se e falava sucintamente um trecho de seu delírio; poucas intervenções eram feitas e, na maioria das vezes, o corte da sessão era dado por ele ao esgotar o que queria dizer naquele dia. Dessa maneira, a partir das indicações acima, podemos reconhecer que realmente não havia relação intersubjetiva e, conseqüentemente, os efeitos imaginários daí advindos. O que estava em jogo na análise, era a oportunidade do sujeito decantar de alguma maneira o gozo que se excedia demasiadamente, como nos afirmara: “já passei por coisas inimagináveis, hoje, não tenho pressão, nem nervos.” Então, em relação ao primeiro tempo do tratamento, constatamos que a não-inscrição simbólica do Pai no Outro do sujeito afeta-o na cadeia geracional, retornando alucinatoriamente no real através da enigmática autonomeação: “Serquequerser”. Nomeação que permite uma pluralidade de interpretações a partir da própria teoria psicanalítica, assim como do Deus, por exemplo, da tradição judaico-cristã. Portanto, no primeiro tempo, inicia-se o engendramento do delírio que situa o sujeito em uma ordem dual, embora como objeto no gozo do Outro, na medida em que a possibilidade do terceiro elemento comparecer está foracluída. No segundo tempo, a construção delirante renomeia o sujeito como “Carlos Antônio de Azevedo” porque “Colin existem milhares por aí”, tempo em que o discurso nos oferece exemplarmente o significante do qual se trata na foraclusão, ou seja, o Nome-do-Pai. Embora 117 não haja necessariamente uma correspondência entre o significante Nome-do-Pai e o sobrenome do pai. E retomando o caso como um terceiro e último tempo: “Depois que nós chegamos a um denominador comum, eu gostaria que o Sr. tirasse aquelas cifras de remédios, eu sei que o que penso se transforma em realidade, que Amplictil é vitamina A, que Haldol é vitamina C, que tudo o que penso o Deus Altíssimo transforma, mas sempre fica uma toxina que não deixa os funcionamentos do meu corpo não acontecerem direito. Chegamos a uma harmonia, a uma união, gostaria que o Sr. retirasse a cifra de medicação por causa da singular simpatia que há entre o Sr. e eu, o Sr. é igual a mim, porque o Sr. é formado e eu sou formado também.” “Mas eu não sou igual a você, existem diferenças”, intervém o analista. “Eu gostaria que o Sr. reduzisse as cifras dos remédios porque há uma sintonia cada vez maior entre a gente. Ao longo desse percurso e decurso dessa trajetória que estou aqui, estou melhor e no próximo quarto dia útil de março vou sair. Deus Altíssimo em quem penso o tempo todo, ele é por quem o sentimento de que só um se salvará.” No final de seu período de internação, nos disse: “Entre mãe e filho há sintonia, reciprocidade, nós nos perdoamos. E, então, hoje encerram as duas cifras de clorpromazina?” “O que significa cifra?”, pergunto-lhe. “Ah, são controvérsias, cifris de money e cifris de inexatidão, uma harmonia, uma comunhão entre o Sr. e eu, um diálogo”, responde. Nesse momento da escuta do sujeito, recolhemos o significante “cifra” que insiste em seu discurso, o que nos leva ainda a uma breve menção da questão da “cifra” em psicanálise. Freud inventa a psicanálise ao decifrar um saber – o inconsciente, até então cifrado para o falante –, e como toda operação de decifração, produz como efeito um sentido. E ele descobre que o sentido da estrutura é sexual. Embora não haja um signo com o qual se possa escrever a relação sexual. Dessa maneira, segundo Vidal, “na cifra do saber inconsciente está o gozo sexual que impossibilita que a relação sexual se escreva. No gozo se trata pois, de algo diferente ao sentido” (Vidal, 1993, p.44). O saber inconsciente é o ciframento do gozo sexual. A cifra, por sua vez, remete ao real do número, na medida em que “no enraizamento do sujeito ao significante encontra-se o número” (1993, p.41). O filósofo Badiou nos interpela afirmando que sabemos para que servem os números – “eles normatizam o Tudo” –, mas o que são, nós o ignoramos (Badiou, 1993, p.11). E sustenta que, por não sabermos o que são os números, não sabemos o que somos. Restando-nos, então, a árdua tarefa de subtrairmos, da “idéia” de número, um sujeito. 118 Contudo, não podemos nos esquecer que a psicanálise parte do seguinte axioma: há sujeito. Segundo Elia, “o sujeito com que opera a psicanálise – o sujeito do inconsciente – é precisamente um sujeito sem qualidades” (Elia, 2000, p.22), quer sejam, “sensoriais, perceptuais, anímicas, enfim, numa palavra, empíricas” (2000, p.21). Ou seja, retomando o ensino de Lacan, Elia sugere que o sujeito da psicanálise é coextensivo ao sujeito da ciência, que por sua vez, foi instaurado pelo passo cartesiano. Então, a psicanálise sempre supõe um sujeito no saber inconsciente – cifrado, nãosabido –, porque, antes de qualquer possível deciframento, o inconsciente representa uma escritura. Segundo Vidal, “o inconsciente é uma escritura efetuada pelo recalque originário, a operação que representa o sujeito por um significante para outro sem com isso revelar ao sentido a cifra do desejo” (Vidal, 1993, p.41). A palavra cifra, antes de significar o signo numeral, como empregamos hoje em dia, transporta em sua história etimológica o vazio – e, é correlativa à introdução do zero no Ocidente pelos árabes no séc. V. Os árabes traduziram a palavra hindu synia pela palavra sifr para designar o vazio, que depois foi latinizada como zephirum (séc. XIII), até alcançar o vocábulo zero (1993). Assim, a operação de ciframento que caracteriza o trabalho do inconsciente está intimamente relacionada a um lugar vazio do qual o sujeito da psicanálise emerge. No entanto, como podemos pensar essa operação de ciframento na psicose? Pois, o recalcamento originário – instaurador do “zero como verdade da falta” –, não se processa na psicose, o que encontramos aí é a foraclusão (1993). Todavia, a clínica nos testemunha que quando se desenrola um percurso analítico – quer se trate de uma neurose ou de uma psicose – algum ciframento de gozo, algum esvaziamento desse “a mais” que caracteriza o gozo, se opera na estrutura do sujeito. Retornando à última sessão do paciente – que não se deu no quarto dia útil do mês! Porque esse ponto do delírio também se enxugou no percurso do tratamento –, escutamos: “Depois de tanto tempo de dissertação sobre a minha vida, hoje, volto para casa, e a propósito, o Sr. não vai tirar mais uma cifra de clorpromazina, hoje?” “Não, não vou tirar nenhuma cifra”, digo-lhe. “É, vou estudar Gramática; primeiro, estudo Gramática, Português, depois, secundariamente, Matemática, preciso sempre me aportuguesar, vou estudar Gramática porque Gramática é fundamental, a gente tem que estudar Gramática todo dia pra não esquecer.” 119 A psicose, por não produzir o recalque originário devido à foraclusão de um significante primordial em detrimento de uma afirmação primeira, acarreta efeitos na constituição do sujeito. No terceiro tempo do tratamento, sobressai, então, devido à elisão do significante “falo”, o duplo imaginário que sustenta a psicose num convite a uma união sem barreiras, reunião essa com o outro imaginário como nos testemunha as seguintes referências: “entre mãe e filho há sintonia, reciprocidade”, “chegamos a uma harmonia, a uma união”, “o Sr. é igual a mim”, etc. A psicose ao rechaçar a impossibilidade da proporção sexual numa tentativa de anular a diferença, devido à precária condição do sujeito de se confrontar com a sua incompletude, assim como com a incompletude do Outro, obtura o furo do Outro num retorno a uma mítica completude primordial, como se esboça no discurso do paciente através da demanda de retirada das “cifras”: “por causa da singular simpatia que há entre o Sr. e eu”. Nesse terceiro tempo do tratamento, a estrutura psicótica, mesmo não apresentando a divisão subjetiva como se encontra na neurose, introduz uma pequena fissura nesse discurso tão esférico. Haja vista que o sujeito define “cifra” como “controvérsias” – “cifris de money e cifris 120 possível da psicose, a partir das seguintes experiências: alguns aspectos do caso Aimée revalorizados posteriormente; a sua experiência clínica privada; o seu rigoroso empreendimento em escutar psicóticos nas “apresentações de doentes” ao longo de toda a sua carreira; além das inúmeras linhas teóricas que caracteriza a sua obra. Portanto, esses fatores articulados permitiram que o ensino de Lacan avançasse em relação à clínica da psicose, estendendo, inclusive, alguns aspectos desses avanços para outros pontos da teoria psicanalítica. A experiência clínica sustentada pelo GIFRIC no “388” permitiu principalmente a Apollon, produzir uma teorização própria a respeito das etapas de um tratamento psicanalítico de psicóticos. Nesse sentido, apesar das críticas que pudemos levantar quanto à sua abordagem teórica, Apollon busca um caminho singular para orientar a cura analítica com psicóticos ao cruzar vários elementos das obras de Freud e Lacan, como, por exemplo, a construção de um fantasma na psicose. Os casos clínicos relatados por Bergeron e Cantin nos reportam ao estilo trilhado pelo GIFRIC. Em relação à nossa experiência clínica, mesmo diferindo em muito do contexto canadense, pudemos também perceber que, ao privilegiarmos os principais significantes do delírio, alguma construção pôde se esboçar malgrado o estreito “raio de ação” que tínhamos para intervir junto ao paciente. A posição dual – aliás, fato de estrutura na psicose – na qual o sujeito se encontra desde sempre, pouco se modificou ao longo do período de internação, tendo prevalecido mesmo depois no atendimento de ambulatório, onde o acompanhamos ainda por um ano. Então, constatamos que houve uma superação do surto, produzida pelo tratamento, ao estabilizar o sujeito, a ponto de certa forma permitir um resgate do laço social – tanto em termos familiares, como através de um projeto em seguir uma carreira no serviço público. No entanto, uma mudança subjetiva tão radical na psicose, como aquela em que aposta o GIFRIC, obviamente não foi atingida, apesar de o sujeito não estar mais acossado pelo imperativo delirante – “Serquequerser” – verificado no princípio do tratamento. Reconhecemos que a posição do sujeito, ao final de sua internação, ainda era muito precária, como constatamos, por exemplo, através do retorno da cumplicidade especular com a sua mãe, ao nos dizer, pouco antes de sua alta hospitalar, que “entre mãe e filho há sintonia, reciprocidade”. Contudo, alguma “toxina”, alguma “cifra”, atrapalha essa completude imaginária. 121 Assim, mesmo havendo uma modificação na produção delirante do sujeito, não tivemos elementos clínicos para avaliar a questão da construção de um fantasma na psicose – 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao finalizar a nossa dissertação, gostaríamos de lançar algumas questões. Em nossa viagem ao Québec, ouvimos dos integrantes do GIFRIC, que, ao longo da análise com o psicótico, a produção de sonhos pelo sujeito é fundamental, no sentido freudiano de “via régia ao inconsciente”. Eles sustentam que o saber oriundo da “Outra cena” é sempre utilizado na cura do psicótico para se contrapor ao saber do delírio. Ou seja, o saber inconsciente até então disperso, fragmentado, a céu aberto, é posto em funcionamento para que o delírio seja remanejado, desmontado, permitindo com isso um (re)enlaçamento social. Nesse sentido, poderíamos pensar que o fundamental da experiência do GIFRIC é a “instauração” do inconsciente na psicose? Por apostarem que a análise conduziria o psicótico em direção à falha no saber irredutível a toda estrutura de linguagem – S(A) –, prescindindo, então, do saber total que o delírio desesperadamente almeja? Produzindo-se, assim, o sujeito do desejo na psicose? Ainda gostaríamos de ressaltar três aspectos em relação à direção da cura na psicose. Um primeiro aspecto refere-se à posição de Apollon que sustenta que a atividade delirante estaria intimamente relacionada a uma “missão”, no sentido de produzir um saber para dar conta do real desencadeado pela foraclusão do Nome-do-Pai. Ou seja, o delírio se constituiria em uma tentativa de restauração de uma ordenação subjetiva, mesmo que mantenha o sujeito fora do laço social. Depreendemos da concepção de Apollon ressonâncias tanto das posições de Freud – o delírio como “tentativa de cura” –, como de Lacan – a construção da “metáfora delirante”. O segundo aspecto diz respeito à delimitação do discurso delirante do psicótico – a partir dos próprios significantes produzidos pelo delírio do sujeito –, permitindo um novo posicionamento do sujeito ante o seu delírio; na medida em que a intervenção analítica propiciaria uma reordenação da economia de gozo do psicótico, proporcionando alguma modalidade de laço social. O terceiro aspecto que gostaríamos de destacar refere-se à teorização de Apollon que pressupõe a produção de um fantasma na psicose em decorrência da desmontagem do delírio. A proposta dele não tem como intuito localizar o delírio no lugar da fantasia – como ocorre na neurose, isto é, ocupando a faixa da realidade, como podemos ler, por exemplo, no esquema R 123 de Lacan. Entretanto, Apollon não deixa de relacionar o delírio à fantasia, assim como Freud, ao sugerir que em todo delírio há uma fantasia que o sustenta. A proposta de Apollon é mais ousada, ele não só preconiza uma construção fantasmática na psicose, mas o próprio ultrapassamento desse fantasma no desdobrar do percurso analítico do sujeito. Esse aspecto da teorização de Apollon deixa várias questões em aberto porque a própria fundamentação apresentada por ele, até o momento, não consegue dar conta desta hipótese, como pudemos analisar no terceiro capítulo. Então, perguntamos: o próprio remanejar do delírio ao longo da escuta analítica não corresponderia, em linhas gerais, a uma travessia do fantasma? Ao se enxugar a “floresta delirante”, não se estaria construindo um “fantasma” com o qual o sujeito lidaria com o real que o causa de uma outra maneira? Verificar-se-ia, assim, algum tipo particular de mudança na posição subjetiva do psicótico? Nesse momento, encerramos a nossa dissertação, mas não encerramos as questões. A clínica psicanalítica da psicose, assim como toda clínica, não admite o fechamento das interrogações que fazem o próprio saber avançar. As indagações abordadas por nossa pesquisa exigir-nos-ão, em um futuro próximo, maiores desdobramentos no âmbito da universidade. 124 REFERÊNCIAS ALBERTI, S. – O surto esquizofrênico na adolescência in Autismo e Esquizofrenia na Clínica da Esquize (org. Sônia Alberti), Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 1999. APARICIO, S. – La forclusion, préhistoire d’un concept in Ornicar? Revue du Champ Freudien no 28, Paris, Navarin Editeur, 1984. APOLLON, W.; BERGERON, D.; CANTIN, L. – Traiter la Psychose, Québec, GIFRIC, 1990. APOLLON, W. – Psychoses: l’offre de l’analyste, Québec, GIFRIC, 1999. BADIOU, A. – É preciso pensar o número in 1, 2, 3, 4 - Número, Transferência, Fantasma, Direção da Cura, Revista Letra Freudiana n° 14, Rio de Janeiro, Editora Espaço e Tempo, 1993. 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