Edição Março/Abril 2013
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Edição Março/Abril 2013
ISSN 0047-2077 Março/Abril 2013 Volume 101 Número 2 Osteoartrite Fisiologia e tratamento medicamentoso Doença de Crohn estenosante Abordagem contemporânea do choque cardiogênico Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfanatos Constipação intestinal Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Examinando o corpo com os olhos da alma Editor: José Maria de Sousa e Melo In memoriam editorial issn 0047-2077 A Gerente Geral: Daila B. Melo Gerência Executiva: Lícia M.a S. Andrade Assistente: Thereza C. P. Jouan Medicina atual, com suas grandes aquisições nas áreas terapêutica e diagnóstica, trouxe maior e melhor capacitação ao ato médico. Porém, aumentaram nossas responsabilidades e nossa necessidade de conhecimento e atualização. Redação Editor Científico: Dr. José Galvão-Alves Redator-Chefe: Dr. Almir L. da Fonseca Coordenação Editorial: Sheila Guedes Revisores:Joel Vasconcellos Sueli B. dos Santos Contato Médico: Jorge de Moura Bastos Assistente: Julliana P. Rodrigues Tráfego e Logística: Manassés S. Pinto A decisão sobre qual o melhor método de imagem, quais os exames necessários e em que ordem devem ser solicitados obriga-nos a um conhecimento amplo da clínica e das especialidades. Em que momento indicar uma ultrassonografia e não uma tomografia computadorizada? Quando solicitar esofagografia e não endoscopia? São situações frequentes, e que não dependem apenas da disponibilidade e da complexidade do método, mas também de discernir o que se pede, para bem interpretar o que se recebe. Programação Visual Edson de Oliveira Vilar Editoração Eletrônica Valter Batista dos Santos Sonia R. Vianna e Silva Publicidade Executivo de Contas (RJ): Silvio F. Faria Assistente: Carolina S. de Jesus Gerente (SP): Rodrigo Faccas Executivos de Contas: Anna Maria Caldeira Cauê Bonici Maria do Carmo Russo Assistente: Sirlei T.S. de Lima Jornal Brasileiro de Medicina é uma revista médico-científica bimestralmente enviada a mais de 25.000 médicos com clínica ativa em todo o território nacional. JBM NÃO ACEITA EM HIPÓTESE ALGUMA MATÉRIA PAGA EM SEU ESPAÇO EDITORIAL. Editora de Publicações Científicas Ltda. Rio de Janeiro: Av. das Américas, 1.155 — Salas 1401 a 1404 — Barra da Tijuca — Tels.: 2492-1856 e 24932694 — Fax: 2492-1279 — CEP 22631-000 — Inscrição: 81.413.177 — CNPJ 33.897.679/0001-12 — E-mail: [email protected] — Site: www.epuc.com.br São Paulo: Rua Dr. Diogo de Faria, 495 — Vila Clementino — Tel./Fax: 5549-2982 — CEP 04037-001 — Inscrição 108.704.425.112 — CNPJ 33.897.679/0002-01 — E-mail: [email protected] Número avulso: R$ 30,00 Registrado na Base de Dados Lilacs, organizada pela Bireme (ex-Index Medicus Latino Americano) Periodicidade: Bimestral Impressão: Gráfica Trena Distribuição: Door to Door e Diremadi Representante no México: Intersistemas S.A. de C.V. - México JBM reserva-se todos os direitos, inclusive os de tradução, em todos os países signatários da Convenção Pan-Americana e da Convenção Internacional sobre Direitos Autorais. Os trabalhos publicados terão seus direitos autorais resguardados pela EPUC que, em qualquer situação, agirá como detentora dos mesmos. Constitui um dos maiores problemas da Medicina contemporânea a iatrogenia que está embutida na terapêutica, mas também na solicitação excessiva e desnecessária de exames. Inúmeros pacientes têm um número imensurável de médicos, que receitam de acordo com seus conhecimentos da especialidade. Falta-lhes a visão global e, assim, provocam interações medicamentosas indesejáveis, bem como toxicidades inesperadas. Ao tratar-se do Homem, há que se ter uma visão unitária, há que examinar o corpo com os olhos da alma. Há que se debruçar humildemente sobre os livros para interpretar cada doente e sua doença, há que dedicar-se à troca de conhecimento e à interação com outros colegas. Os métodos terapêuticos e de diagnóstico melhoram, porém não podemos permitir que os médicos piorem. Deve-se adotar nas escolas médicas o ensino da Antropologia, Sociologia, Filosofia e estimular a escrita e a leitura. Estas nos permitem melhor compreender o homem, a sociedade, seus direitos e seus limites. É fundamental que o médico se preocupe com o bem-estar social, que esteja preparado para os patifes lamurientos, bem como para os intelectuais introspectivos. Mas, há que se valorizar, acima de tudo, o Mestre, o artesão, capaz de lapidar jovens inseguros e nestes cultivar o humanismo, a solidariedade e o respeito ao próximo. As universidades incentivam e valorizam, sobremaneira, a pesquisa, mas terão de enaltecer aqueles que, no “anonimato”, ensinam aos nossos estudantes a arte da semiologia. É preciso que cuidemos “das crianças”, para que tenhamos “adultos” capazes e felizes. Publicações do Grupo: Dr. José Galvão-Alves JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 3 sumário Conselho Científico 3 7 13 19 Examinando o corpo com os olhos da alma editorial Presidente artigos Membros Honorários Dr. José Galvão Alves Doença de Crohn estenosante Fratura femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfanato — Mito ou verdade? Dr. Fernando Oswaldo Dias Rangel Brasília Columbano Junqueira Neto Estados hiper e hipoglicêmicos agudos — Conduta atual 38 Bahia Zilton A. Andrade Luis Guilherme Lyra Abordagem contemporânea do choque cardiogênico 41 25 Membros Titulares Drs. Vincenzo Giordano, Marco Martins Lages, Egídio Santana, Felipe Serrão de Souza, Rodrigo Pires e Albuquerque e Ney Pecegueiro do Amaral Constipação intestinal 12 Amaury Coutinho (PE) Affonso Berardinelli Tarantino (RJ) Clementino Fraga Filho (RJ) Mário Barreto Corrêa Lima (RJ) Renato Dani (MG) Prof. Sender J. Miszputen 31 47 José Galvão-Alves Dr. José Galvão Alves Espírito Santo Carlos Sandoval Goiás Celmo Celeno Porto Profs. Gilberto Perez Cardoso, Cyro Teixeira da Silva Junior e Renato Bergallo Bezerra Cardoso Minas Gerais Julio Chebli Osteoartrite — Fisiopatologia e tratamento medicamentoso Paraná Miguel Riella Sergio Bizinelli Dr. Fábio Freire José Panorama internacional seções Pernambuco José Roberto de Almeida Dra. Andréa F. Mendes Rio de Janeiro Aderbal Sabrá Azor José de Lima Evandro Tinoco Fábio Cuiabano Gilberto Perez Cardoso Jorge Alberto Costa e Silva José Manoel Jansen Marta C. Galvão Mauro Geller Henrique Sergio Moraes Coelho Glaciomar Machado Diagnóstico laboratorial Gastroenterites infecciosas Dr. Helio Magarinos Torres Filho Imagem em medicina interna Coordenação: Dra. Marta Carvalho Galvão Adenocracinoma brônquico com atelectasia Dras. Marta Carvalho Galvão, Lívia lopes Pinheiro e Maria Luíza Rodrigues Laguardia São Paulo 53 54 58 4 Atualidades médicas Capital Adib Jatene Flair José Carrilho José Eduardo Souza José Osmar Medina Pestana Nestor Schor Sender Miszputen Dra. Andréa F. Mendes Relato de caso Mesenterite Drs. José Galvão-Alves, Marta Carvalho Galvão e Daniella Cavalcante Noticiário Botucatu Oswaldo Melo da Rocha JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Doença de Crohn estenosante Sender J. Miszputen Professor associado de Gastroenterologia da Escola Paulista de Medicina. Presidente do Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil (GEDIIB). Vice-presidente da Sociedade de Gastroenterologia de São Paulo. Honorário Nacional da Academia Nacional de Medicina. Resumo Summary As estenoses são uma das mais graves complicações da doença de Crohn (DC), por pressuporem indicação de ressecção cirúrgica de segmentos intestinais e, como consequên cia, um novo desenho anatômico do canal alimentar, na maioria das vezes com perda do seu estado fisiológico, objetivo insistentemente perseguido pelo tratamento medicamentoso desse processo inflamatório. Surgem tanto primariamente em áreas doentes do intestino delgado ou cólon quanto em anastomoses de cirurgias prévias. Stenosis are one of the most serious complications of Crohn’s disease (CD), because they presuppose indication of surgical resection of bowel segments and, as a consequence, a new anatomical drawing of the alimentary canal, most often with loss of their physiological state, goal insistently pursued by drug treatment of this inflammatory process. Primarily arise both in diseased areas of the small intestine or colon anastomoses as in previous surgeries. Introdução poderiam também predizer a benignidade do curso clínico da inflamação, ou, por outro lado, uma expectativa desfavorável, tornando desnecessário um tratamento mais agressivo, com seus riscos, para doentes com previsão de melhor evolução (5, 31, 34, 47), bem como antecipar o emprego de medicamentos mais potentes naqueles com doença progressiva e complicada. De toda forma, alguns estudos concluem que a prescrição precoce de medicamentos imunomoduladores tem o potencial de alterar o curso dessa doença (10, 12). Ainda que possam surgir em qualquer momento da evolução, mesmo nos casos que iniciam a doença pela apresentação inflamatória, as estenoses ocorrem preferencialmente em fases mais tardias, o mesmo acontecendo com as fístulas. No momento do diagnóstico, 19% a 38% dos doentes já apresentam uma das duas complicações, número que se amplia para 56% a 65% após 10 anos de evolução, atingindo o índice de 88% aos 20 anos de inflamação (32). Cerca de 20% a 30% dos doentes com estenose desenvolverão, secundariamente, fístulas internas (32), e a experiência demonstra que o tratamento da inflamação nem sempre previne sua evolução para uma cicatriz fibrosa, que acaba se tornando a mais frequente das indicações de cirurgias de ressecção na DC (11). Seria assim desejável reconhecer quais parâmetros (clínicos e/ou sorológicos e/ou genéticos) discriminariam a população de risco, no sentido de tentar mudar a história natural da doença, naturalmente heterogênea, e, através de estratégias terapêuticas adequadas, evitar, se possível, a necessidade de cirurgias (8). Estes “marcadores” JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 gastroenterologia Doença de Crohn estenosante Unitermos: Estenose; doença de Crohn; ressecção cirúrgica. Keywords: Stenosis; Crohn’s disease; surgical resection. Preditores da fibroestenose intestinal Genéticos O uso de marcadores genéticos na previsão do risco de complicação da fibroestenose na doença de Crohn teria, teoricamente, muita relevância, pois os genes envolvidos se encontram presentes antes mesmo do início da doença, mantêm-se estáveis e não são afetados pelo curso do processo inflamatório (38), diferentemente do que ocorre com os marcadores clínicos e sorológicos. Se, de um lado, é aceito que a suscetibilidade para o 7 Doença de Crohn estenosante Pontos-chave: > Marcadores genéticos podem criar instrumento relevante para a previsão evolutiva da doença; > Corticoterapia na primeira crise de atividade e lesões do trato digestivo superior são indicativos de 90% de risco de evolução desfavorável; > O tratamento operatório nos primeiros anos de evolução está associado com tabagismo e corticoterapia precoce. 8 aparecimento desta doença seja determinada por um grande número de genes (18), além do NOD2/CARD15 descrito inicialmente, de outro, não foi possível, até o momento, estabelecer uma correlação entre o fenótipo estenosante e um padrão genético definido, até porque uma parcela significativa de doentes não terá complicações durante toda a evolução do processo inflamatório. Supõe-se que distúrbios da imunidade inata, representados por mutações do gene NOD2 (9), e da imunidade adquirida, através dos anticorpos contra antígenos microbianos luminais, atuem de forma sinérgica aumentando, direta ou indiretamente, a probabilidade de desenvolvimento de lesões fibroestenóticas (3, 24, 27, 30). A literatura especializada associa algumas variantes desse gene com a localização ileal da inflamação, tendência para o comportamento estenótico e maior índice de cirurgias abdominais, em razão desta complicação, além de reduzido intervalo livre de doença no pós-operatório (1, 15, 22, 35). Mas ainda há controvérsias se estenoses e maior fre quência de cirurgias têm mesmo relação com aquelas variantes genéticas ou se decorrem da preferência ileal da doença, estando, por isso, mais sujeitas à retração cicatricial, com consequente indicação de correção cirúrgica. É possível que os marcadores genéticos não sejam mesmo capazes de predizer plenamente o comportamento e as possíveis complicações da DC, cabendo papel mais importante aos fatores ambientais envolvidos na sua patogênese. Mas podem, em associação com as características clínicas e microbiológicas de cada doente, criar um instrumento relevante para a previsão evolutiva dessa doença (6). Clínicos Os marcadores clínicos resultam de estudos retrospectivos de doentes em acompanhamento prolongado: início em idade abaixo de 40 anos (26), presença de complicação perianal no diagnóstico da doença (29, 49, 51), necessidade de corticoterapia na primeira crise de atividade e lesões comprometendo segmentos do trato digestivo superior são parâmetros indicativos de 90% de risco de evolução desfavorável (4). O mesmo ocorre com a localização no íleo terminal e ileocólica da inflamação, quanto à provável necessidade de cirurgia (39, 49). O tratamento operatório nos primeiros anos de evolução está associado com tabagismo e corticoterapia precoce (41). Dentre os fatores fortemente preditivos de recorrência da DC no pós-operatório, o tabagismo ocupa um lugar de destaque. Como há tendência de a recidiva ter um comportamento semelhante ao modelo que indicou o tratamento cirúrgico, os fumantes apresentam risco aproximadamente dobrado de repetição da doença, complicação e mesmo nova cirurgia, quando comparados aos que não fumam — na dependência, inclusive, do número de cigarros consumidos/dia (52). Essa mesma proporção é descrita na recorrência da estenose pós-dilatação endoscópica (21). Sorológicos A positividade dos anticorpos anti-Saccharomyces cerevisiae (ASCA), anti-porina C da membrana da Escherichia coli (OmpC), da proteína anti-Pseudomonas fluorescens (I2) e antiflagelina (CBir1) associa-se com início da doença em idade mais jovem, fibroestenose e formato penetrante, assim como necessidade de cirurgia mais imediata no intestino delgado (48). A frequência de complicações aumenta com a reatividade contra o maior número desses antígenos (14). Os novos marcadores sorológicos antiglicanos, laminaribioside (ALCA), chitobioside (ACCA) e mannobioside (AMCA), quando positivos, assim como os citados anteriormente, são preditores da complicação estenótica da doença (37, 44). No estudo de Ferrante et al. (17) confirmou-se que 76% dos indivíduos com doença de Crohn apresentavam pelo menos um desses marcadores, e a magnitude das respostas, através dos anticorpos, contra esses antígenos esteve associada com o comportamento mais complicado da inflamação e de cirurgias a ela relacionadas. Em relação aos componentes da matriz extracelular, as duas principais moléculas envolvidas na fibrogênese intestinal são o colágeno I e o colágeno II (36), mas tanto a laminina quanto o colágeno IV não se mostraram associados ao fenótipo fibroestenosante da DC (28). Sobre os níveis plasmáticos de fibronectina, demonstrou-se que se apresentam reduzidos nesta inflamação, porém os doentes com as taxas mais altas foram os que se complicaram com a forma estenótica da doença (2), mostrando seu potencial significado na JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Doença de Crohn estenosante patogênese da evolução das ulcerações para a cicatriz fibrosa. Aspectos clínicos Um dos grandes desafios clínicos nos quadros suboclusivos é a diferenciação entre a atividade inflamatória (acompanhada de edema de fase aguda e consequente diminuição da passagem da área estenótica — portanto reversível, pelo menos temporariamente, com tratamento medicamentoso) e a fibrose estabelecida (com retração cicatricial, de solução em geral operatória, seja através de procedimentos de dilatação, também de efeito transitório, ou, definitivamente, pela ressecção do segmento obstruído). Ambas as situações se superpõem quanto aos sintomas, mas alguns aspectos podem ajudar na sua distinção em bom número de casos: queixas recentes de descompensação (febre, diarreia), alterações nas provas de atividade inflamatória (proteína C-reativa [PC-R], calprotectina) e resposta imediata ao tratamento com corticosteroides ou imunomoduladores de ação rápida são parâmetros para se aceitar a presença da inflamação como componente da suboclusão. Quando esta complicação se apresenta sem outras manifestações clínicas ou sinais laboratoriais sugestivos de processo inflamatório ativo e sem melhora com o tratamento mais agressivo, há forte argumento para se considerar apenas a fibroestenose como justificativa do quadro de obstrução. Na prática, efetivamente, as duas condições coexistem, ou seja, a inflamação aguda só dificulta o trânsito do segmento doente se seu lúmen já tiver algum grau de redução do diâmetro, originada em retrações cicatriciais prévias das suas paredes. Novas técnicas de imagem, envolvendo o estudo detalhado do intestino delgado, trouxeram grande contribuição para se distinguir as complicações que acompanham a evolução do processo inflamatório da DC, especialmente as que decorrem das lesões penetrantes e das estenosantes. As enterografias, por ressonância magnética (ERM) e por tomografia computadorizada (ETC), representaram importante avanço na avaliação morfológica dessa doença de qualquer localização, especialmente a relacionada ao intestino delgado (45), com resultados superiores quando comparadas com a raJBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 diologia convencional do trânsito intestinal, que identifica o estreitamento, porém sem diferenciar se por edema inflamatório ou fibrose. Obviamente é um procedimento que se recomenda para os casos em que os trechos doentes não estejam ao alcance da endoscopia ou quando ela está contraindicada, como, por exemplo, na cápsula endoscópica nas estenoses. Ressalte-se ainda que a endoscopia somente avalia a mucosa superficialmente, e não a inflamação transmural. A mesma eficácia das imagens é obtida nas lesões penetrantes da região pelviperineal. Nos casos de estenoses, vários sinais radiográficos observados na enterotomografia ajudam a definir seu caráter inflamatório ou fibrótico, tornando mais fácil a decisão sobre a conduta terapêutica. Na presença de inflamação são identificados: realce da mucosa, reconhecido pela densidade do seu brilho; aumento da vascularização mesentérica, através do ingurgitamento dos vasos do segmento doente; espessamento da parede intestinal; presença de fluido extraluminal; espessamento mesentérico; gás extraluminal; aumento linfonodal; proliferação da gordura mesentérica; e presença de fezes no intestino delgado (23). Este trabalho encontrou também uma correlação dos achados de imagem com marcadores da inflamação, PC-R e hemossedimentação, como ocorre em outras doenças com anormalidades vasculares. Igualmente comprovou-se a correlação entre a medida quantitativa da atenuação da parede intestinal pela ETC e a análise histológica da inflamação (7). A enterorressonância tem vantagem sobre a enterotomografia, por não envolver radiação ionizante e oferecer imagens em múltiplos planos, assim como recursos para sua alta resolução, através da distensão das alças por algum contraste ministrado por via oral (19). A acurácia diagnóstica de ambos os métodos é comparável (25), ainda que a imagem da ERM não seja de tão boa qualidade quanto a observada na tomografia e apresente maior variabilidade de interpretação entre inter observadores (46, 53). Mas sem a agressão de radiações, seu emprego nos doentes que serão submetidos provavelmente a repetidos procedimentos de imagem, desde jovens, quando habitualmente o processo inflamatório se inicia (13), é opção segura para o As enterografias, por ressonância magnética (ERM) e por tomografia computadorizada (ETC), representaram importante avanço na avaliação morfológica dessa doença de qualquer localização, especialmente a relacionada ao intestino delgado, com resultados superiores quando comparadas com a radiologia convencional do trânsito intestinal, que identifica o estreitamento, porém sem diferenciar se por edema inflamatório ou fibrose. 9 Doença de Crohn estenosante acompanhamento da evolução da doença, até mesmo por permitir a análise dos resultados referentes à eficácia dos tratamentos medicamentosos (42). Tratamento O tratamento da doença de Crohn estenótica requer uma análise, de acordo com o momento clínico em que se complica com quadros obstrutivos, em razão de particularidades da sua abordagem terapêutica, seja na fase aguda da suboclusão e quando da sua cronicidade. Pontos-chave: > O tratamento da doença de Crohn estenótica requer uma análise, de acordo com o momento clínico em que se complica com quadros obstrutivos; > Com o paciente hospitalizado, sugere-se iniciar corticoterapia parenteral, hidrocortisona em dose entre 300mg e 400mg/dia ou metilprednisolona 80mg/dia; > A melhora é esperada num período de 36 a 48 horas. 10 Suboclusão aguda Na dependência da localização anatômica da estenose, quadros de vômitos podem criar estados de desidratação, exigindo reposição de volume e eletrólitos. A sondagem nasogástrica é a conduta recomendada, não só para proteção contra aspiração traqueal de material refluído como também para descompressão da área estenosada, por vezes a medida mais importante para sua reversão. A manutenção do estado volêmico e das funções vitais confere tempo para identificação da causa obstrutiva, inflamatória ou fibrótica (sinais clínicos de doença ativa, laboratório e imagem). Com o paciente hospitalizado, concomitantemente aos procedimentos diagnósticos referidos, sugere-se iniciar corticoterapia parenteral, hidrocortisona em dose entre 300mg e 400mg/dia ou metilprednisolona 80mg/dia, por via venosa e fracionada. A melhora é esperada num período de 36 a 48 horas. Nessa hipótese, a terapia deverá ser mantida até plena recuperação do trânsito, com a passagem do anti-inflamatório para a via oral, assim como o reinício da alimentação, em consistências progressivas. Antimicrobianos podem ser necessários, apoiados nos aspectos clínicos da complicação (febre, alteração hematológica) ou como prevenção da translocação bacteriana, possibilidade real em indivíduos com algum grau de imunossupressão. Se esse esquema não produzir a desobstrução, devem ser tentados imunomoduladores de ação rápida e de utilização parenteral, como ciclosporina (4mg/kg/dia, EV) ou, preferencialmente, anti-TNF (EV ou SC) (33), segundo as doses clássicas recomendadas para indução de seu efeito sobre o processo imunoinflamatório. Não há evidências na literatura demonstrando que a rápida cicatrização das lesões provocadas pelos biológicos nesta circunstância da inflamação aguda se associe com piora da suboclusão ou da área da estenose. Como referido, a intenção maior do tratamento medicamentoso tem como base a abordagem terapêutica de um provável componente agudo (edema) na área estenosada. Em estudo retrospectivo, Samimi et al. (40) avaliaram a evolução de 53 doentes com fístulas, estenoses ou ambas as complicações. Ainda que mais de 50% de todo o grupo tenha se beneficiado com o tratamento medicamentoso, 50% dos casos de fibroestenose acabaram em cirurgia num intervalo de um ano, concluindo os autores pela pequena durabilidade da resposta inicial e que, por esse motivo, a indicação de cirurgia deve ser intervenção de primeira linha. Os diferentes percentuais por eles referidos talvez estivessem relacionados com subgrupos fenotípicos respondedores iniciais ao tratamento medicamentoso, como ocorre em outras situações da doença. Nesta pesquisa a recorrência da complicação ocorreu, preferencialmente, nos casos de localização ileocólica. Talvez a única expectativa na condução desses doentes com a tentativa clínica seja a de evitar, pelo menos em parte deles, a cirurgia de ressecção numa fase mais aguda da inflamação. Por outro lado é preciso reconhecer, na prática, que um número não desprezível deles consegue manter-se sem sintomas da obstrução por longo tempo e com o intestino anatomicamente íntegro. Suboclusão crônica Nos doentes com lesões estenóticas, cronicamente subocluídos, pode-se optar pela dilatação da área estreitada, utilizando-se balão hidrostático, desde que ela seja abordável pela endoscopia. O benefício clínico e a relativa segurança do procedimento conferem à dilatação uma opção válida para o tratamento conservador destes casos (16, 20). Ainda assim deve-se dar preferência às estenoses de mais fácil acessibilidade, no sentido de que o operador tenha melhor visão das manobras que irá executar. Não há dúvida de que, com boa experiência, o endoscopista será capaz de realizar a dilatação, também em áreas distantes da borda anal e mesmo no intestino JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Doença de Crohn estenosante delgado, através da enteroscopia de duplo balão, desde que o segmento a ser dilatado não seja, na extensão, superior a 10cm. Complicação perfurativa, secundária à tentativa de dilatação do segmento pré-estenótico, relativamente incomum, deve ser monitorada por radiografias simples, seriadas, do abdome. Mesmo que decorrido longo tempo sem sintomas a ela relacionados, a estenose poderá se refazer, indicando-se novas dilatações, com a mesma segurança (43). A injeção intramural de corticosteroide (triancinolona) nos quatro quadrantes da área recém-dilatada poderá retardar seu reaparecimento. Um número não desprezível de casos permanecerá assintomático com uma única dilatação ou uma segunda manipulação, após período prolongado. Esse método de tratamento reduz significativamente o encaminhamento de doentes com estenoses para cirurgia de ressecção. Há também diferentes formas de tratamento cirúrgico das estenoses da DC, tanto do intestino delgado quanto do cólon, variando a conduta de acordo com seu número, localização, extensão e cirurgias prévias (50). No delgado, lesão única deverá ser ressecada, na menor extensão possível. A mesma proposta se aplica aos casos de estenoses múltiplas, desde que anatomicamente próximas, dentro da proposta de ressecção de pequeno segmento. A estratégia conservadora se propõe utilizar plásticas enterais, nas estenoses mais curtas, abertura no sentido longitudinal e sutura transversal, evitando remover a área estreitada, técnica a ser igualmente aplicada sobre outras lesões semelhantes, eventualmente insuspeitas, quando não acometem segmentos distantes ou longos (maiores que Referências 11.ABREU, M.T.; TAYLOR, K.D. et al. — Mutations in NOD2 are associated with fibrostenosing disease in patients with Crohn’s disease. Gastroenterology, 123(3): 679-88, 2002. 12.ALLAN, A.; WYKE, J. et al. — Plasma fibronectin in Crohn’s disease. Gut, 30(5): 627-33, 1989. 13.ALVAREZ-LOBOS, M.; AROSTEGUI, J.I. et al. — Crohn’s disease patients carrying Nod2/CARD15 gene variants have an increased and early need for first surgery due to stricturing disease and higher rate of surgical recurrence. Ann. Surg., 242(5): 693-700, 2005. 14.BEAUGERIE, L.; SEKSIK, P. et al. — Predictors of Crohn’s disease. Gastroenterology, 130(3): 650-6, 2006. 15.BEAUGERIE, L.; BROUSSE, N. et al. — Lymphoproliferative disorders in patients receiving thiopurines for inflammatory bowel disease: A prospective observational cohort study. Lancet, 374(9701): 1617-25, 2009. 16.BEAUGERIE, L. & SOKOL, H. — Clinical, serological and genetic predictors of inflammatory bowel disease course. World J. Gastroenterol., 18(29): 3806-13, 2012. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 10cm), que exigem outro modelo de plastia. Impedimentos para a execução das enteroplastias vêm a ser o comprimento do trecho estenosado, a presença associada de fístulas internas e a dilatação do segmento pré-estenótico. A presença de processo inflamatório na área ressecada não é contraindicação para sua execução. As ressecções devem se estender por um mínimo de área possível, mesmo em se tratando da primeira intervenção, no sentido de manter a função intestinal o mais próximo do normal, pois são doentes com risco aumentado de futuras novas enterectomias ou colectomias, seja na área da anastomose ou de segmentos previamente sadios. As estenoses do cólon devem também ser ressecadas, mantendo-se a mesma proposição de remoção da menor área possível, em caso de insucesso com manobras de dilatação endoscópica. Retiradas segmentares são passíveis de boa evolução ou, pelo menos, retardam a indicação de cirurgias ampliadas. As oclusões completas enterais ou cólicas são de tratamento cirúrgico. Conclusão Pelo exposto, as decisões sobre as condutas diagnósticas e terapêuticas na complicação estenótica da doença de Crohn merecem análise individualizada. As particularidades de cada doente, o perfil genético e epidemiológico, condições ambientais, o momento da evolução e a resposta aos tratamentos prévios, medicamentoso e/ou cirúrgico, têm papel marcante nos resultados, de difícil previsão, o que sugere ao médico o não estabelecimento de regras iguais para uma doença de comportamento reconhecidamente heterogêneo. 17.BODILY, K.D.; FLETCHER, J.G. et al. — Crohn’s disease: Mural attenuation and thickness at contrast-enhanced CT enterography-correlation with endoscopic and histologic findings of inflammation. Radiology, 238(2): 505-16, 2006. 18.CERQUEIRA, R.M. & LAGO, P.M. — Clinical factors predictive of Crohn’s disease complications and surgery. Eur. J. Gastroenterol. Hepatol., 25(2): 129-34, 2013. 19.CLEYNEN, I.; GONZÁLEZ, J.R. et al. — Genetic factors conferring an increased susceptibility to develop Crohn’s disease also influence disease phenotype: Results from the IBDchip European Project. Gut, 2012 (resumo). 10.COLOMBEL, J.F.; SANDBORN, W.J. et al. — Infliximab, azathioprine or combination therapy for Crohn’s disease. N. Engl. J. Med., 362: 1383-95, 2010. Endereço para correspondência: Sender J. Miszputen Av. Angélica, 916/6o andar conj. 607 01228-000 São Paulo-SP Obs.: As 43 referências restantes que compõem este artigo se encontram na Redação à disposição dos interessados. 11 panorama internacional Doença do refluxo gastroesofágico em adultos Am. J. Gastroenterol. A doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) é afecção crônica, decorrente do fluxo retrógrado de parte do conteúdo gastroduodenal para o esôfago e/ou órgãos adjacentes. Tende a afetar significativamente a qualidade de vida, podendo acarretar espectro variável de sintomas esofagianos — pirose, regurgitação ácida ou alimentar — e/ou extraesofagianos — tosse crônica, asma recorrente, rouquidão. O adequado diagnóstico e o tratamento da DRGE são fundamentais, visando à resolução sintomática e à prevenção de complicações, como estenose péptica e esôfago de Barrett, importante fator de risco de adenocarcinoma de esôfago. O periódico The American Journal of Gastroenterology traz, na edição de março de 2013, o artigo “Guidelines for the Diagnosis and Management of Gastroesophageal Reflux Disease”, no qual Katz e colaboradores traçam diretrizes para a conduta na DRGE. O diagnóstico da DRGE pode ser estabelecido com base em dados clínicos — manifestações esofagianas típicas. Nesses pacientes, na ausência de sinais de alarme, pode-se iniciar terapia empírica com inibidores de bomba protônica (IBPs). Naqueles com dor torácica atípica é necessário detalhada investigação cardiológica, antes que se possa atribuir tal sintoma à DRGE. Na presença de sinais de alarme ou quando houver suspeita de doença complicada, o exame complementar a ser solicitado é a endoscopia digestiva alta (EDA), método que não precisa ser repetido rotineiramente ao longo do tratamento, exceto quando surgirem novos sintomas ou naqueles com Barrett. A pHmetria é o método de escolha para a forma não erosiva; permite correlacionar o refluxo com os sintomas referidos e faz parte da avaliação daqueles refratários aos IBPs. A manometria esofagiana deve ser solicitada para fins de avaliação pré-operatória e, assim como a esofagografia, 12 não se presta ao diagnóstico específico da DRGE. Os autores não recomendam pesquisar ou tratar a infecção pelo H. pylori no contexto da DRGE. Em relação ao tratamento, a principal recomendação é utilizar os IBPs por oito semanas; usualmente prescritos para uso uma vez ao dia, é possível administrar uma segunda dose à noite aos respondedores parciais. A terapia de manutenção (IBP na dose mínima eficaz, de acordo com a demanda ou intermitente) fica reservada para os pacientes cujos sintomas recorrem depois da retirada do IBP e para aqueles com complicações, como o esôfago de Barrett. É importante destacar que não se demonstrou diferença em eficácia quando se compararam os diferentes tipos de IBPs. Os autores lembram ainda da terapia cirúrgica, opção quando há necessidade de tratamento de manutenção por longo prazo, em pacientes cuidadosamente selecionados. Endocardite infecciosa NEJM Paciente do sexo masculino, 55 anos de idade, com diagnóstico prévio de insuficiência mitral, busca atendimento médico referindo fraqueza muscular em membro superior direito e dislalia. Relata episódios recentes de febre intermitente e perda ponderal, além de procedimento odontológico periodôntico um mês antes. Ao exame físico do aparelho cardiovascular não foram evidenciadas outras anormalidades, além do sopro da regurgitação mitral. Ecocardiograma transtorácico evidenciou vegetação móvel de 12mm em válvula mitral, com regurgitação leve. A ressonância magnética cerebral demonstrou lesões isquêmicas recentes. Como deve ser o manejo desse paciente? Visando responder a essa questão, Hoen e Duval redigiram o artigo “Infective Endocarditis”, publicado na edição de 11 de abril de 2013 do periódico The New England Journal of Medicine (N. Engl. J. Med., Profa. Dra. Andréa F. Mendes 368: 1425-33, 2013). Nele, os autores fazem uma revisão sobre a endocardite infecciosa (EI), infecção endocárdica que acomete indivíduos com material protético cardíaco, portadores de valvulopatias ou EI prévia — apesar da possibilidade de ocorrer em pacientes sem diagnóstico prévio de cardiopatia. O ecocardiograma é o método de escolha para confirmar a EI, permitindo estimar a gravidade, tendo em vista que vegetações grandes e móveis, especialmente quando em válvula mitral, se associam a maior risco de fenômenos embólicos. A escolha do antibiótico tem como base a realização de até três hemoculturas (estafilococos e estreptococos são identificados em 80% dos casos) e a duração do tratamento — que deve ser multidisciplinar, envolvendo especialistas em Cardiologia, Cirurgia Cardíaca e Infectologia — varia de duas (casos não complicados, em válvula nativa) a seis semanas (válvula protética, EI por enterococo). Casos de difícil controle, falência cardíaca e risco de eventos tromboembólicos são indicações para tratamento cirúrgico precoce. As manifestações encefálicas representam a complicação extracardíaca mais comum, e também de maior gravidade. A profilaxia da EI é recomendada para os pacientes com válvula protética, história prévia de EI ou cardiopatia congênita cianótica, que serão submetidos a procedimento dentário invasivo. Para o paciente do caso descrito, os autores indicam antibioticoterapia empírica (aminopenicilina com inibidor betalactâmico, associada à gentamicina), enquanto se aguarda o resultado da hemocultura. Destacam que a ocorrência recente de embolia cerebral e o achado ecocardiográfico de vegetação grande e móvel constituem indicação para cirurgia valvar mitral urgente. Doença do refluxo gastroesofágico em Pediatria Pediatrics A American Academy of Pediatrics também se manifestou recentemente sobre o manejo da DRGE na infância. O principal ponto destacado por Lightdale e colaboradores, no artigo “Gastroesophageal Reflux: Management Guidance for the Pediatrician” (Pediatrics, 131(5): e1684-e1695), é a diferenciação entre a DRGE propriamente dita — que pode evoluir com complicações e, portanto, exige investigação complementar e tratamento farmacológico apropriado — e o refluxo fisiológico não complicado, em especial em bebês. Nesse último, a terapia conservadora (modificações dos hábitos de vida) costuma ser suficiente. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfonatos ortopedia Mitos e verdades Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bifosfonatos Mitos e verdades Vincenzo Giordano Coordenador do Programa de Residência Médica em Ortopedia e Traumatologia e de Especialização em Cirurgia do Trauma Ortopédico do Serviço de Ortopedia e Traumatologia Prof. Nova Monteiro, Hospital Municipal Miguel Couto (SOT Prof. Nova Monteiro-HMMC). Membro titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT). Marco Martins Lages — Egídio Santana — Felipe Serrão de Souza Especialistas em Cirurgia do Trauma Ortopédico pelo SOT Prof. Nova Monteiro-HMMC. Membros titulares da SBOT. Rodrigo Pires e Albuquerque Professor adjunto do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro titular da SBOT. Ney Pecegueiro do Amaral Chefe do SOT Prof. Nova Monteiro-HMMC. Membro titular da SBOT. Resumo Summary As fraturas atípicas do fêmur são raras, mas sua crescente descrição na literatura e sua provável associação com os bifosfonatos trouxeram à tona uma série de aspectos ainda nebulosos no tocante ao uso contínuo dessas drogas. O protocolo mais sugerido atualmente, embora ainda não totalmente estabelecido, orienta a retirada da medicação após três a cinco anos de uso contínuo dos bifosfonatos, retornando cerca de três anos depois, quando houver necessidade. Atypical femur fractures are rare but a growing concern, as they are more common in patients who use long-term bisphosphonates. This brought to light a number of issues still unknown regarding the continued use of these drugs. Nowadays the most suggested protocol, although not yet fully established, considers not more than three to five years of bisphosphonate treatment for osteoporotic patients, returning about three years later, when the need arises. Introdução autores observaram que os bifosfonatos orais, utilizados em curto prazo, reduzem o risco de fraturas vertebrais, embora em longo prazo possam causar osteonecrose da mandíbula, câncer de esôfago e fibrilação atrial, e aumentar o risco de fraturas atípicas e adinamismo ósseo. Apesar dessa aparente dualidade, a relação entre riscos e benefícios dos bifosfonatos orais existentes no mercado continua a ser favorável a seu uso, mas questões como A ocorrência de fraturas atípicas do fêmur torna-se cada vez mais frequente na literatura médica específica, representando uma nova entidade de doença encontrada nos usuários de longo prazo dos bifosfonatos orais. Recentemente, Salari e Abdollahi avaliaram os benefícios e os riscos dessas drogas, especialmente quando sua utilização no tratamento da osteoporose em adultos mais velhos dura mais de três anos. Esses JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Unitermos: Fratura atípica; bifosfonato; fêmur; região subtrocantérica; diáfise do fêmur; osteoporose. Keywords: Atypical; bisphosphonate; femur; subtrochanteric; femur shaft; osteoporosis. 13 Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfonatos Mitos e verdades a correta indicação e o tempo de utilização estão sendo revistas, com o intuito premente de reduzir os efeitos adversos desses fármacos. Somente a compreensão exata da fisiopatologia da doença osteoporótica propriamente dita e das reações celular e ultraestrutural no osso poderá trazer luz aos pesquisadores, tornando mais segura a prescrição de drogas antirreabsortivas do esqueleto. Finalmente, a identificação do paciente em risco de fratura atípica femoral, por meio do conhecimento de seus pródromos, sintomas e opções de manejo, deve estar firme na lembrança de todos os profissionais que lidam com o paciente idoso osteoporótico. Os objetivos dos autores são: 1. discutir a fisiopatologia da doença osteoporótica; 2. recordar o mecanismo de ação dos bifosfonatos orais; e 3. rever as características, a epidemiologia e a suposta fisiopatologia das fraturas atípicas do fêmur, mostrando as estratégias para seu manejo. Fisiopatologia da doença osteoporótica Pontos-chave: > Osteoporose é a doença metabólica mais comum do osso, ocorrendo em mais de 200 milhões de indivíduos no mundo; > Caracteriza-se por redução da massa óssea e deterioração da microarquitetura do tecido esquelético; > É uma doença silente, sendo o paciente normalmente assintomático até que ocorra uma fratura. 14 A osteoporose é a doença metabólica mais comum do osso, ocorrendo em mais de 200 milhões de indivíduos no mundo. Caracteriza-se por redução da massa óssea e deterioração da microarquitetura do tecido esquelético, levando a aumento da fragilidade óssea e, consequentemente, a maior risco de fratura (1). É uma doença silente, sendo o paciente normalmente assintomático até que ocorra uma fratura. Estima-se que ocorram anualmente nos EUA mais de 1,5 milhão de fraturas relacionadas à osteoporose, principalmente na coluna vertebral e nas extremidades superior do fêmur e inferior dos ossos do antebraço, gerando gastos orçamentários elevados e maiores taxas de morbidade e mortalidade (2). O sexo feminino é o mais afetado, embora os homens se encontrem em risco similar ao das mulheres após a oitava década da vida (osteoporose senil). Aos 80 anos de idade, 20% das mulheres sofrerão fratura da extremidade superior do fêmur; na década seguinte, 50%. As mulheres com idade superior a 85 anos têm oito vezes mais possibilidade de sofrer fratura nesta região do que aquelas entre 65 e 74 anos (2). Apesar de sua etiologia não ser completamente compreendida, a patogênese da doença osteoporótica está fortemente relacionada à menopausa e caracteriza-se por aumento substancial na remodelação do esqueleto, levando à perda de massa óssea, à deterioração grave da microarquitetura óssea e à redução da qualidade do osso, três pontos determinantes na gênese da fratura osteoporótica (3). Atualmente está muito bem esclarecido que o risco de fratura é inversamente proporcional aos níveis de estrogênio em mulheres na pós-menopausa (4). Com a perda de estrogênio ocorre aumento na remodelação tanto no osso cortical quanto no trabecular. O estrogênio age através de dois receptores, o α (ERα) e o β (ERβ). O primeiro parece ser o mediador primário das ações desse hormônio sobre o esqueleto (5). Em nível celular, atua diretamente sobre a formação óssea, mediada por osteoblastos e osteócitos, aumentando a resposta a forças mecânicas iniciadas por estas próprias células. Além disso, estimula o sistema osteoprotegerina (OPG) e inibe a produção do receptor ativador do ligante fator nuclear-kB (RANKL) nas células do estroma e nos osteoblastos, protegendo o esqueleto da reabsorção óssea excessiva. Finalmente, exerce efeito direto sobre os osteoclastos, evitando sua diferenciação e acelerando sua apoptose, devido ao aumento da produção do fator de transformação β (TGF-β). Na doença osteoporótica são encontrados inúmeros fatores de estímulo à reabsorção óssea, aumentando a expressão do RANKL nos osteoblastos e nos linfócitos T e, em alguns casos, diminuindo a expressão do OPG (6). A consequente diminuição da razão RANKL/OPG e a interação RANKL/RANK são eventos fundamentais para a diferenciação e a manutenção da atividade osteoclástica, ocorrendo perda brutal da arquitetura trabecular. Aliada a essa inversão da função celular, diversos autores mostram uma redução da população celular no esqueleto do idoso, mais especificamente do número de osteócitos nas lacunas do osso cortical (7-9). Utilizando amostras de cabeça do fêmur, Power et al. observaram aumento do fenômeno de apoptose nos osteócitos de pacientes com fratura do colo do fêmur (10). O surgimento JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfonatos Mitos e verdades de microfraturas, resultante da inversão do turnover ósseo e do acúmulo de microdano, leva a mais apoptose dos osteócitos nas proximidades das regiões lesadas e, de forma cíclica, essas células, ao morrerem, emitem moléculas sinalizadoras, como RANKL e outras citocinas, propagando o dano ósseo e gerando macrofraturas (11). Mecanismo de ação dos bifosfonatos orais Atualmente, as drogas utilizadas no tratamento da osteoporose podem ser divididas em três categorias: as que inibem a reabsorção óssea (antirreabsortivas ou anticatabólicas), as que estimulam a formação óssea (anabólicas) e as que combinam os dois mecanismos de ação (agentes de dupla ação — dual-acting bone agents [DABAs]) (12). A primeira droga aprovada para o tratamento da osteoporose nos EUA foi o alendronato, em 1995, e sua introdução no meio médico foi um verdadeiro divisor de águas no manejo da osteoporose (12). Os primeiros estudos sobre esse fármaco mostraram redução do risco de fratura em cerca de 50% das vítimas de traumas de baixa energia (13, 14). Posteriormente, mais três bifosfonatos foram aprovados para a osteoporose: o risedronato, o ibandronato e o ácido zoledrônico, todos com potenciais similares de redução de fraturas vertebrais e do quadril, quando administrados em doses adequadas (15-17). Os bifosfonatos são análogos químicos estáveis do pirofosfato inorgânico e inibidores extremamente potentes da atividade osteoclástica. Existem duas classes de bifosfonatos: os nitrogenados (do qual fazem parte as drogas acima mencionadas) e os não nitrogenados. Os nitrogenados têm um mecanismo de ação similar entre eles, o que envolve a inibição seletiva da enzima farnesil difosfato sintase na via do mevalonato da biossíntese do colesterol. Isto resulta na redução da síntese de lipídios isoprenoides e em um bloqueio da prenilação das proteínas ligantes da guanosina trifosfato, o que interfere na ligação com os osteoclastos. Há redução da mobilidade e da função dessas células, com consequentes indução à apoptose osteoclástica e redução da reabsorção óssea. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 No entanto, a perda da atividade osteo clástica mediada pelos bifosfonatos, claramente benigna na interrupção da doença osteoporótica, altera definitivamente o equilíbrio celular entre as células de formação e de reabsorção óssea, suprimindo o processo de remodelação. Embora a formação óssea pelos osteoblastos previamente existentes continue, essa não vai além de preencher locais de remodelação criados anteriormente pelos osteoclastos. Esse biofeedback negativo gerado pela inibição osteoclastogênica produz um efeito antirremodelante no esqueleto, o que deve ter relação direta com as fraturas atípicas atualmente vistas nos pacientes com longo tempo de uso contínuo dos bifosfonatos. Fraturas atípicas do fêmur A perda da atividade osteoclástica mediada pelos bifosfonatos, claramente benigna na interrupção da doença osteoporótica, altera definitivamente o equilíbrio celular entre as células de formação e de reabsorção óssea, suprimindo o processo de remodelação. Embora a formação óssea pelos osteoblastos previamente existentes continue, essa não vai além de preencher locais de remodelação criados anteriormente pelos osteoclastos. Caracterização Um aspecto importante e observado em todos os pacientes com esse tipo de lesão é o uso prolongado de algum dos bifosfonatos nitrogenados existentes no mercado. Não há história marcada de trauma local e os achados clínicos pré-lesionais são tênues, se não ausentes. É fundamental, entretanto, que todo paciente que refira dor ou desconforto na coxa seja radiografado, para a detecção de possível fratura atípica do fêmur. Como os primeiros casos relatados ocorreram em usuários de alendronato, inicialmente pensava-se que somente essa droga estaria envolvida na gênese da fratura atípica do fêmur. Por esse motivo, durante um período essa lesão foi denominada “fratura do alendronato” (19). Posteriormente, outros estudos e relatos mostraram fraturas atípicas femorais com outros bifosfonatos orais e, mais recentemente, com o ácido zoledrônico, droga administrada por via intravenosa (20). Radiograficamente, os achados são similares aos de uma fratura por estresse que se completa, incluindo espessamento da cortical lateral do fêmur, discreto esporão na cortical medial na área da fratura e pequeno ou mínimo desvio entre os fragmentos ósseos fraturados. Ocorrem geralmente na região subtrocantérica ou no terço proximal da diáfise do fêmur, apresentando traço simples, transverso ou oblíquo curto (21). Exames complementares por imagem, 15 Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfonatos Mitos e verdades Pontos-chave: > Os achados são similares aos de uma fratura por estresse que se completa; > Ocorrem geralmente na região subtrocantérica ou no terço proximal da diáfise do fêmur, apresentando traço simples, transverso ou oblíquo curto; > Exames complementares são úteis na detecção da fratura no paciente que refere dor na coxa e apresenta radiografias simples típicas de hiperostose cortical. 16 como a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM), são úteis para a detecção da fratura no paciente que refere dor na coxa e apresenta radiografias simples típicas de hiperostose cortical, mas sem a presença de uma linha de fratura. Depois que a fratura se torna evidente à radiologia simples, tanto a TC quanto a RM perdem importância. A cintilografia óssea (CTO), durante muito tempo o padrão ouro na identificação precoce das fraturas por estresse, hoje praticamente não é mais usada, após o advento da RM. Apesar disso, em ocasiões em que a RM não esteja disponível ou diante de alguma contraindicação de seu uso a CTO deve ser solicitada. Devido à presença da doença osteoporótica mesmo estando o paciente em tratamento com algum bifosfonato, existe uma grande confusão na diferenciação entre fratura atípica do fêmur e fratura por insuficiência (ou osteoporótica) do fêmur. No entanto, na maioria das vezes, essas fraturas diferem das osteoporóticas do fêmur em alguns aspectos cruciais, como o mecanismo de lesão e a localização e configuração do traço de fratura. Pensando numa forma de simplificar essa diferenciação, a Sociedade Americana para a Pesquisa Óssea e Mineral (American Society for Bone and Mineral Research — ASBMR) estabeleceu critérios maiores e menores para o diagnóstico das fraturas atípicas do fêmur (22). Na Tabela 1 podem-se encontrar esses critérios, conforme a descrição pelo grupo de estudo da ASBMR. Todos os critérios maiores devem estar presentes para se caracterizar uma fratura atípica do fêmur, embora os autores não tenham incluído como critério maior o uso prolongado de algum bifosfonato (22). Unnanuntana et al. posteriormente propuseram achados clínicos e radiográficos para distinguir entre as fraturas atípicas e osteoporóticas do fêmur (21). Esses achados estão relacionados na Tabela 2. Epidemiologia Até o momento foram publicados mais de 25 relatos de casos e séries relacionados à fratura atípica do fêmur, assim como alguns estudos controlados e vários estudos maiores, usando registros nacionais e dados de estudo de fase III (21). Com base em re- visão de radiografias e juntando as fraturas atípicas do fêmur completas e incompletas, estima-se que a incidência varie de 0,9 a 78 fraturas por 100 mil pessoas/ano. O grupo de estudo da ASBMR relata uma incidência de dois casos por 100 mil/ano após dois anos de uso de bifosfonatos, aumentando para 78 por 100 mil casos/ano depois de oito anos de uso (22). A maior incidência dessas fraturas tem sido observada em pacientes acima dos 65 anos de idade e com mais de cinco anos de uso de algum bifosfonato. Outros estudos mostraram o mesmo problema: que o risco de fraturas atípicas é maior entre usuários de bifosfonatos, aumentando conforme o seu uso se estende (23, 24). Apesar de sua baixa prevalência, é importante considerar a presença de fratura atípica do fêmur incompleta no paciente que se queixa de dor persistente na coxa, que piora com o apoio do pé ao solo. Além disso, embora não seja a recomendação atual, o que torna a indicação potencialmente questionável, pode-se pensar em radiografar as coxas de todos os pacientes com mais de três a cinco anos de uso contínuo de bifosfonatos, mesmo que assintomáticos. Allison et al. estudaram as radiografias e, quando necessário, a RM da coxa de 110 pacientes assintomáticos, com idades entre 47 e 94 anos, tendo observado uma frequência de fraturas incompletas em 1,82% desta população (25). Finalmente, é fundamental o rastreamento estrito do paciente, uma vez que 28% a 44,2% deles apresentam envolvimento bilateral (26). Fisiopatologia Até o momento não parece haver uma causa plenamente aceita para as fraturas atípicas do fêmur, mas supõe-se que a base para todas as alterações estruturais esteja relacionada à supressão intensa da remodelação óssea causada pelas drogas antirreabsortivas. Embora o aumento da remodelação óssea característico da doença osteoporótica predisponha à fragilidade óssea, a excessiva supressão da remodelação também pode elevar o risco de fratura. Dessa forma, a relação causa-efeito entre o uso de bifosfonatos e as fraturas atípicas do fêmur passa a JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfonatos Mitos e verdades encontrar justificativa nos mecanismos patológicos que envolvem os mesmos “vilões” vistos na osteoporose sem tratamento, quais sejam, o acúmulo de microlesões, a diminuição da variação espacial na distribuição da densidade mineral óssea e a diminuição da heterogeneidade do osso. Além dos fatores intrínsecos, mediados pela inibição prolongada do remodelamento ósseo, outros podem estar implicados na gênese das fraturas atípicas do fêmur. Dentre os ditos fatores de risco extrínsecos, talvez o mais aceito atualmente seja a ação de cargas mecânicas assimétricas no fêmur. Anatomicamente, o fêmur apresenta uma angulação anterior e lateral, com raio longo de aproximadamente 10º. A observação de uma linha de fratura inicial na cortical ântero-lateral desse osso reforça essa consideração, principalmente porque as fraturas ditas atípicas têm sido relatadas especificamente na região subtrocantérica, local onde ocorrem as maiores cargas de tensão, e na diáfise femoral. Opções de manejo O manejo do paciente com fratura atípica do fêmur inclui a fixação da fratura e o início do tratamento médico. É condição sine qua non parar o uso de bifosfonatos. A menos que haja qualquer contraindicação, como a existência de prótese de quadril ou arqueamento excessivo (geralmente em varo), o uso de dispositivos intramedulares rígidos e bloqueados é o padrão ouro de fixação da fratura do fêmur. O cirurgião ortopedista deve conhecer muito bem os implantes existentes, de modo a definir o melhor para cada situação. O estímulo da fresagem do canal medular é benéfico em qualquer fratura da diáfise do fêmur, mas essa deve ser feita com bastante técnica e cautela, pela inexistência, em muitos casos, de um canal medular de diâmetro adequado. O uso de placas longas, preferencialmente de bloqueio da cabeça do parafuso e buscando o princípio de estabilidade relativa, é uma opção aos implantes intramedulares. Deve-se considerar a administração de um agente anabólico, como a teriparatida (hormônio paratireoide recombinante), e a suplementação com cálcio e vitamina D. Recentemente, Gomberg et al. relataram JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Tabela 1: Critérios maiores e menores para o diagnóstico das fraturas atípicas do fêmur (*) Critérios maiores Critérios menores Sem história marcada de trauma local ou trauma de baixa energia(†) Espessamento do periósteo junto à cortical lateral Fratura localizada em qualquer região distal ao trocanter menor e proximal à área supracondiliana Espessamento generalizado das corticais do fêmur Configuração transversa ou oblíqua curta Sintomas prodrômicos Fratura simples, não fragmentada Associação com sintomas ou fratura bilateral Esporão medial nas fraturas completas e envolvimento somente da cortical lateral nas incompletas Evidência de retarde de consolidação Presença de comorbidades ou uso de algum(ns) medicamento(s)(‡) Todos os critérios maiores, acompanhados ou não por algum dos critérios menores, são necessários para diagnosticar as fraturas atípicas do fêmur. (†) Trauma de baixa energia é definido como uma queda de uma altura de pé ou menos ao solo. (‡) Exemplos de comorbidades e medicamentos são, respectivamente: artrite reumatoide, raquitismo, osteomalácia e osteodistrofia renal; e bisfosfonatos, glicocorticoides e inibidores da bomba de prótons. (*) Fonte: Shane, E. et al. & American Society for Bone and Mineral Research. — J. Bone Miner. Res., 2010. um caso em que a associação de teriparatida com cálcio e vitamina D melhorou o metabolismo ósseo e a microarquitetura nos pacientes que utilizaram alendronato por 13 anos (27). No tratamento da doença osteoporótica, as doses preconizadas diárias são de 1.000 a 1.200mg de cálcio e de 800 unidades internacionais (UI) de vitamina D, o que parece insuficiente no manejo da fratura atípica do fêmur. A prescrição “aleatória” de doses mais elevadas de cálcio e vitamina D deve ser evitada, sendo necessário o aconselhamento de um endocrinologista para o ajuste correto das mesmas. Deve-se realizar investigação laboratorial ampla, incluindo os marcadores da função osteometabólica — como paratormônio, hormônio estimulante da tireoide, fosfatase alcalina, cálcio, fosfato e vitamina D — no sangue e algum fragmento do colágeno do tipo I (hidroxiprolina, piridinolina, NTx) na urina. Além disso, é fundamental identificar todas as doenças metabólicas ósseas subjacentes. 17 Fraturas femorais atípicas por uso prolongado de bisfosfonatos Mitos e verdades Tabela 2 – Achados clínicos e radiográficos comuns nas fraturas atípica e osteoporótica do fêmur Achados clínicos e radiográficos comuns Característica Fratura atípica Fratura osteoporótica Associação com trauma Sem trauma ou de baixa energia Baixa energia Pródromos Dor na coxa Nenhum Localização (região) Subtrocantérica ou diáfise femoral Colo do fêmur ou intertrocantérica Configuração da fratura Transversa ou oblíqua curta Obliqua longa ou espiral Fragmentação Nenhuma Possível Morfologia da cortical Relativamente espessada Fina Outros sinais Reação perióstica localizada Retarde de consolidação Osteopenia generalizada Canal medular alargado Fonte: Unnanuntana, A. et al. — J. Bone Joint Surg. Am., 2013. Após a cirurgia e o início das medidas terapêuticas adjuvantes é importante rastrear o paciente de modo estrito, uma vez que há previsão de lesão contralateral. Clinicamente, a presença de dor na coxa contralateral deve alertar o médico para a necessidade de investigação em busca de nova fratura atípica Referências Endereço para correspondência: Vincenzo Giordano Rua Aristides Espínola 11/301, Leblon 22440-050 Rio de Janeiro, RJ 18 1. BONO, C.M. & EINHORN, T.A. — Overview of osteoporosis: Pathophysiology and determinants of bone strength. Eur. Spine J., 12(Suppl. 2): S90-6, 2003. 2. LIN, J.T. & LANE, J.M. — Osteoporosis. A review. Clin. Orthop. Rel. Res., 425: 126-34, 2004. 3. RECKER, R. et al. — Bone remodeling increases substantially in the years after menopause and remains increased in older osteoporosis patients. J. Bone Miner. Res., 19(10): 1628-33, 2004. 4. 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Opções de tratamento para o retardo de consolidação incluem revisão da osteossíntese, reforço da osteossíntese (augmentation) e o uso de terapias farmacológicas sistêmicas e locais. Conclusão A fratura atípica do fêmur representa um novo padrão de lesão no paciente com doença osteoporótica em uso prolongado de bifosfonatos. Dor incipiente na coxa pode representar o único sintoma, denotando possivelmente a existência de um traço incompleto de fratura. O manejo da fratura atípica do fêmur inclui a sua fixação e o início do tratamento médico. A prescrição de alguma droga anabólica, como a teriparatida, é uma alternativa interessante tanto para o manejo da fratura atípica do fêmur quanto para a continuidade do tratamento da doença osteoporótica. O rastreamento estrito do paciente é fundamental para o sucesso do tratamento. 7. BURR, D.B. — Bone quality: Understanding what matters. J. Musculoskel. Neuron. Interact., 4: 184-6, 2004. 8. BURR, D.B. — Bone material properties and mineral matrix contributions to fracture risk or age in women and men. J. Musculoskel. Neuron. Interact., 2: 201-4, 2002. 9. GIORDANO, V.; GIORDANO, M. & KNACKFUSS, I. — Fatores de crescimento e diferenciação ósseos. Efeitos sobre o processo de consolidação de fratura: presente e futuro. Rev. Bras. Med., 57: 1018-29, 2000. 10. POWER, J. et al. — Osteocyte lacunar occupancy in the femoral neck cortex: An association with cortical remodeling in hip fracture cases and controls. Calcif. Tissue Int., 69: 13-9, 2001. . Obs.: As 17 referências restantes que compõem este artigo se encontram na Redação à disposição dos interessados. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Abordagem contemporânea do choque cardiogênico cardiologia Abordagem contemporânea do choque cardiogênico Fernando Oswaldo Dias Rangel Doutor em Cardiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Fellow” do American College of Cardiology. Coordenador da Rotina da Unidade Coronariana do Hospital Pró-cardíaco, RJ. Médico do Instituto Nacional de Cardiologia. Resumo Summary As doenças cardiovasculares são responsáveis por 34% de todas as causas de morte no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, foram registrados 500 mil casos de infarto agudo do miocárdio em 1998, com 56 mil óbitos (1). A incidência de choque cardiogênico não sofreu alterações significativas nas últimas três décadas. Ocorre em 5% a 15% dos pacientes com IAM e constitui a principal causa de morte na fase de tratamento hospitalar dos pacientes com infarto agudo do miocárdio. Cardiovascular diseases are responsible for 34% of all causes of deaths in Brazil. According to Department of Health, five hundred thousand of acute myocardial infarction cases in 1998 were registered, resulting in fifty-six thousand deaths related to the disease. The incidence of cardiogenic shock has not meaningful changing in the last three decades. It happens in 5% to 15% with IAM and it’s the main cause of deaths with acute myocardial infarction in hospitalar treatment stage. No estudo GUSTO-1, a incidência de choque cardiogênico foi de 7,2%, porém a complicação representou a principal causa de morte 30 dias após o infarto (2, 3). O choque é uma complicação precoce na fase hospitalar da evolução do infarto agudo com supradesnível do segmento ST (IAMCSST), com intervalo médio de cinco horas pós-infarto no principal ensaio clínico randômico, o Shock Trial, e de seis horas no Shock Trial Registry (4, 5). A mortalidade associada ao choque cardiogênico foi de aproximadamente 80%-90% nos últimos 40 anos. Porém, houve significativa redução da letalidade pela síndrome, para aproximadamente 50%, devido aos recentes esforços terapêuticos, sobretudo os relacionados às estratégias de revascularização aguda dos pacientes com choque. O Shock Trial demonstrou redução na mortalidade, em seis meses, dos pacientes com choque cardiogênico relacionado ao IAM (de 63,1% para 50,3%) quando se comparou, respectivamente, a estratégia de estabilização clínica inicial com aquela de revascularização precoce. A revascularização foi realizada através da angioplastia coronariana percutânea em 64% dos pacientes e em 36% por intermédio de cirurgia de revascularização do miocárdio (2-5). A mortalidade precoce dos pacientes com choque cardiogênico ainda é expressivamente elevada, havendo necessidade de se expandir o conhecimento nesta área, com melhoria das estratégias de tratamento e das terapias adjuvantes. Contudo, dados mais recentes demonstram que a abordagem terapêutica agressiva pode resultar em plena recuperação. As taxas de sobrevida em três e seis anos foram de 41,4% e 32,8%, respectivamente, entre os alocados na estratégia de revascularização precoce, o que se assemelha às taxas obtidas em vários tipos de câncer (6). No GUSTO I (Global Utilization of Streptokinase and t-PA for Occluded Coronary Arteries) a sobrevida foi de 55% em 11 anos entre os pacientes com choque cardiogênico que superaram o primeiro mês do evento (7). JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Unitermos: Doenças cardiovasculares; choque cardiogênico; infarto agudo do miocárdio. Keywords: Cardiovascular diseases; cardiogenic strock; acute myocardial infarction. 19 Abordagem contemporânea do choque cardiogênico Etiologia e diagnóstico As causas do choque circulatório podem ser didaticamente classificadas em três grandes grupos: hipovolêmico, distributivo (vasoplégico) e cardiogênico. Nas etiologias hipovolêmica e distributiva ocorre inadequado retorno do sangue venoso ao coração, enquanto que a cardiogênica tem como pressuposto inicial a falência da função contrátil do coração. O choque cardiogênico pode decorrer das seguintes condições: 1. Falência de bomba (infarto do miocárdio — miopático e complicações mecânicas) e outras condições: cardiomiopatia dilatada, miocardite, depressão miocárdica pós-circulação extracorpórea. 2. Distúrbios do enchimento diastólico (cardiomiopatias hipertrófica e restritivas). 3. Taquicardias e bradicardias. 4. Obstruções ao fluxo sanguíneo devido a valvopatias, à embolia pulmonar maciça e ao tamponamento cardíaco. Pontos-chave: > As causas do choque circulatório podem ser didaticamente classificadas em três grandes grupos: hipovolêmico, distributivo (vasoplégico) e cardiogênico; > Nas etiologias hipovolêmica e distributiva ocorre inadequado retorno do sangue venoso ao coração; > A etiologia cardiogênica tem como pressuposto a falência da função contrátil do coração. 20 O diagnóstico de choque cardiogênico requer a presença de hipotensão arterial (pressão arterial sistólica < 90mmHg ou queda de 30% em relação à pressão sistólica basal) ou necessidade de drogas vasopressóricas ou de balão de contrapulsação aórtica, persistente por pelo menos 30 minutos, necessariamente em associação com sinais de má perfusão tissular sistêmica (alteração do estado mental, oligúria com diurese < 30ml/hora, extremidades frias e cianóticas, acidose metabólica). A pressão de pulso se encontra reduzida e a pressão venosa central, elevada. Edema pulmonar e galope de terceira bulha são sinais de acometimento do ventrículo esquerdo. O eletrocardiograma, o ecocardiograma, a coronariografia e a angiotomografia (suspeição de embolia pulmonar) são realizados em caráter de emergência, para o esclarecimento diagnóstico e orientação da terapêutica específica. Alguns pacientes, entretanto, podem manter valores normais de pressão sistólica na fase incipiente da síndrome do choque, em consequência da liberação excessiva de catecolaminas. Salienta-se que nestas situações o emprego de fármacos sedativos com frequência irá precipitar a hipotensão, fenômeno que deve ser previsto pela equipe médica assistente. Os achados laboratoriais mais sugestivos de choque são acidose metabólica (bicarbonato < 20mEq/l, pH < 7,3, BE < 0) e aumento do lactato sérico. Observase também acidose metabólica associada à alcalose respiratória, hipoxemia, leucocitose ou leucopenia, trombocitopenia, aumento de escórias nitrogenadas, aumento das transaminases, das bilirrubinas, das enzimas pancreáticas, redução dos níveis de albumina e alterações nos parâmetros da coagulação (prolongamento do tempo de protrombina ativada e do tempo de tromboplastina parcial, redução dos níveis de fibrinogênio e aumento dos produtos de degradação da fibrina). Estes distúrbios laboratoriais atestam a natureza sistêmica e o acometimento orgânico múltiplo da síndrome do choque circulatório (23-25). O rastreamento microbiológico se impõe na suspeita clínica de infecção, com a coleta de sangue, urina, secreções respiratórias protegidas e de outros materiais, de acordo com a avaliação da situação específica. O cateter de Swan-Ganz pode ser útil na identificação dos estágios precoces do choque, nas decisões terapêuticas, na titulação dos fármacos vasoativos e inotrópicos, na avaliação da resposta à infusão de volume e na adequação da contrapulsação intra-aórtica e de dispositivos de assistência ventricular. A monitoração com o cateter na artéria pulmonar é indicada nos pacientes com choque cardiogênico associado a infarto do miocárdio, quer seja miopático ou relacionado à lesão estrutural do coração; no entanto, não existem provas de que a monitoração invasiva melhore o prognóstico destes pacientes (23-26). A II Diretriz de Insuficiência Cardíaca Aguda da Sociedade Brasileira de Cardiologia recomenda monitoração invasiva da pressão arterial e da artéria pulmonar, com avaliações contínuas das pressões arteriais sistêmica e pulmonares, do índice cardíaco e da saturação venosa mista, o que facilita o manejo dos pacientes, incluindo a titulação dos fármacos vasoativos e a reposição de fluidos (27). Os parâmetros hemodinâmicos que caracterizam o choque cardiogênico podem ser resumidos a: 1. Pressão sistólica < 90mmHg ou redução da pressão arterial média de pelo menos 30mmHg. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Abordagem contemporânea do choque cardiogênico 2. Índice cardíaco < 1,8l/min/m2, sem suporte farmacológico e/ou mecânico, ou < 2,2l/ min/m2 com suporte hemodinâmico. 3. Pressões de enchimento do ventrículo esquerdo elevadas: pressão de oclusão da artéria pulmonar (ou pressão diastólica final do ventrículo esquerdo) > 18mmHg ou pressão diastólica final do ventrículo direito > 10 a 15mmHg. A Doppler-ecocardiografia também pode ser bastante útil na avaliação hemodinâmica, com as medidas das pressões de enchimento do coração e do débito cardíaco, além da determinação da fração de ejeção ventricular, dos aspectos contráteis globais e segmentares e do diagnóstico das complicações mecânicas do infarto do miocárdio. Abordagem do paciente com choque Medidas gerais de suporte A maioria dos pacientes com choque cardiogênico tem indicação de intubação orotraqueal e de ventilação mecânica, que devem ser instituídas prontamente, antes de ocorrer hipoxemia grave. A adequação da fração inspiratória de oxigênio e dos níveis de pressão positiva expiratória final é de fundamental importância para se obter um conteúdo arterial de oxigênio satisfatório. Salienta-se a relevância de tais medidas de assistência ventilatória, uma vez que a lesão pulmonar (pulmonary injury) e a síndrome de angústia respiratória do adulto podem ocorrer precocemente na síndrome do choque circulatório, como decorrência da intensa liberação dos mediadores inflamatórios sistêmicos. É preciso que o médico reconheça de imediato os sinais clínicos de insuficiência respiratória, antes da obtenção da gasometria arterial, tais como aumento da frequência e do esforço respiratórios, dificuldade em falar, respiração abdominal paradoxal, uso da musculatura acessória da respiração, diaforese e cianose. Deve-se também prever o desenvolvimento da disfunção respiratória na presença de acidose metabólica grave e choque, já que a compensação respiratória não será obtida devido à fadiga muscular, à redução do sensório e aos fármacos sedativos. A ventilação mecânica tem o benefício de reduzir a demanda de oxigênio pela musculatura respiratória, JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 com melhora na distribuição de oxigênio aos tecidos hipoperfundidos. Conclui-se que a indicação da ventilação mecânica invasiva é feita com base nas informações clínicas obtidas à beira do leito e na ausência de testes laboratoriais diagnósticos, antes do encaminhamento do paciente para procedimentos de reperfusão miocárdica (10, 23, 24, 25). Se houver suspeita de hipovolemia, deve-se realizar infusão rápida de volume, cuja composição dependerá da natureza do choque. No choque hemorrágico será realizada reposição rápida de hemoderivados (concentrados de hemácias, plaquetas, plasma, albumina); no choque hipovolêmico, a infusão de bolus de cristaloides (em incrementos de 1 litro); no choque distributivo são necessárias grandes alíquotas de fluidos (6 a 10 litros de cristaloides, ou quantidades menores de coloides, albumina ou amilopectina), para reduzir o edema tecidual que acompanha o distúrbio de permeabilidade capilar, porém não está definida na literatura vantagem desta estratégia. A maioria dos pacientes com choque cardiogênico tem indicação de intubação orotraqueal e de ventilação mecânica, que devem ser instituídas prontamente, antes de ocorrer hipoxemia grave. A adequação da fração inspiratória de oxigênio e dos níveis de pressão positiva expiratória final é de fundamental importância para se obter um conteúdo arterial de oxigênio satisfatório. Terapia inotrópica e vasoconstritora A adequação do débito cardíaco e, consequentemente, do transporte de oxigênio é mais relevante que o valor da pressão arterial sistêmica para restabelecer a perfusão tissular periférica. Porém, níveis de pressão abaixo dos limites da autorregulação levam à redução do fluxo sistêmico. Os agentes inotrópicos positivos mais utilizados na prática clínica atuam elevando as concentrações intracelulares de cálcio livre através de dois mecanismos: aumento das concentrações de adenosina monofosfato cíclico (AMPc), induzido pela estimulação beta-adrenérgica (dobutamina e dopamina); e redução do catabolismo do AMPc pela inibição da fosfodiesterase (anrinona e milrinona). Entretanto, estes fármacos podem provocar efeitos indesejáveis (em decorrência da sobrecarga de cálcio citosólico), como aumento do consumo de oxigênio miocárdico, agravamento do processo isquêmico e até mesmo necrose miocárdica, cardiotoxicidade e indução de arritmias cardíacas. O suporte farmacológico inotrópico geralmente é iniciado com agonistas beta-adrenérgicos, principalmente a dobutamina. Os inotrópicos têm papel destacado no tratamento, uma vez que a disfunção contrátil aguda é o evento fisiopatológico inicial. 21 Abordagem contemporânea do choque cardiogênico TABELA 1: Efeitos hemodinâmicos dos agentes inotrópicos e vasopressores (30) Fármaco DC PCP PA FC Arritmia Início de ação Duração do efeito Diurese Dopamina < 3mG/kg/min 0 0 00 0 Curta 3-7mG/kg/min + 0 ++ ++ Rápido 7-15mG/kg/min ++ 0 ++++ +++ ++ +/– 0 Dobutamina +++– – + ++ Rápido Curta 0 Milrinona ++– –+ ++ Rápido Curta 0 Levosimendan +++– Rápido Prolongado ++ Epinefrina ++ 0/+ ++++++ ++++ Rápido Curta 0 Norepinefrina ++ 0/+ +++++ +++ Rápido Curta 0 Isoproterenol +++ 0/+ 0/–+++ +++ Rápido Curta 0 – 0 0 DC = débito cardíaco; PCP = pressão capilar pulmonar; PA = pressão arterial; FC = frequência cardíaca; 0 = sem ação direta, embora, indiretamente, possa influenciar; Curta = perda de ação rápida após interrupção da infusão. Pontos-chave: > O uso de vasoconstritores junto à dobutamina frequentemente é necessário; > Os fármacos inotrópicos e vasoconstritores, portanto, devem ser utilizados nas menores doses eficazes; > Alguns estudos demonstram vantagens da norepinefrina e da dopamina, quando comparadas à epinefrina. 22 O uso de vasoconstritores (como norepinefrina ou dopamina) junto à dobutamina frequentemente é necessário, para manutenção das perfusões coronariana e sistêmica até o implante do balão de contrapulsação, e na maioria das vezes após o mesmo. Os fármacos inotrópicos e vasoconstritores, portanto, devem ser utilizados nas menores doses eficazes, para minimizar os efeitos tóxicos diretos. Na realidade, não há evidências definitivas para se recomendar o uso de uma ou outra catecolamina. No entanto, alguns estudos demonstram vantagens da norepinefrina e da dopamina, quando comparadas à epinefrina, que causa mais taquicardia que as duas primeiras, além de má perfusão esplâncnica e hiperlactatemia. A fenilefrina, amina de ação vasoconstritora exclusiva (agonista seletiva dos receptores α1-adrenérgicos), utilizada amiúde nos centros cirúrgicos para tratamento da hipotensão arterial, associada à anestesia, tem início e término de ação rápidos. Caracteriza-se por ser o agente com menor potencial de aumentar a frequência cardíaca, podendo ser útil nos casos de refratariedade a outros vasopressores associada à taquicardia, porém tem como limitante a redução do volume sistólico. A dopamina aumenta a pressão arterial média e o débito cardíaco, através do incremento do volume sistólico e da frequência cardíaca. A norepinefrina, por sua vez, aumenta a pressão através de sua ação vasoconstritora, com efeitos menores na frequência cardíaca e no inotropismo, em relação à dopamina. Os dois fármacos podem ser administrados no choque séptico, destacando-se que a primeira pode ser mais eficaz em reverter a hipotensão grave associada à resposta inflamatória sistêmica e que a dopamina pode reduzir a resposta do eixo hipotálamo-hipofisário, causar depressão imunológica, agravar o efeito shunt pulmonar, por aumentar o fluxo em áreas não ventiladas, e reduzir a resposta ventilatória à hipercapnia (28-31). A vasopressina — hormônio antidiurético — é liberada pela hipófise e age nos receptores V2 dos túbulos coletores renais com reabsorção de água. A segurança e a eficácia da vasopressina como agente pressórico no choque cardiogênico não foram definidas. Tanto a vasoconstrição como a vasodilatação coronarianas já foram demonstradas em modelos experimentais do fármaco. Em concentrações elevadas, a vasopressina restabelece o tônus vascular nos estados de choque vasoplégico, de etiologia séptica ou cardiogênica, agindo sobre os receptores V1 na musculatura lisa vascular e na modulação de canais de potássio e do metabolismo do óxido nítrico. Um estudo retrospectivo e de pequena amostra demonstrou que, em pacientes com choque cardiogênico associado ao IAM e hipotensão arterial refratária à dopamina, a adição de vasopressina aumentou significativamente a JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Abordagem contemporânea do choque cardiogênico pressão arterial média (PAM) e não afetou os valores do índice cardíaco, nem da pressão de oclusão da artéria pulmonar. A adição de norepinefrina aumentou a PAM, mas também a pressão de oclusão da artéria pulmonar, o índice cardíaco e o poder cardíaco (28, 30). Em estudo randomizado e prospectivo, em pacientes com choque vasoplégico avançado (pós-cardiotomia e séptico), a associação de vasopressina aumentou o débito urinário e a perfusão tissular, avaliada pela tonometria gástrica, e reduziu a frequência de taquiarritmias, quando comparada à norepinefrina (32). O ensaio clínico randômico e controlado VASST comparou a utilização de norepinefrina isoladamente com a associação norepinefrina/vasopressina, em pacientes com choque séptico. Não houve diferença no prognóstico. Doses altas de vasopressina foram relacionadas à isquemia cardíaca, esplâncnica e periférica (digital), devendo ser empregadas apenas no contexto de refratariedade aos demais vasoconstritores (33). A terlipressina apresenta efeitos farmacodinâmicos semelhantes aos da vasopressina, porém com duração mais prolongada (ver Tabela 2) (34). Os sensibilizadores do cálcio constituem um novo grupo de agentes inotrópicos positivos, que inclui o levosimendan, pimobendan, simendan e o sulmazol. O levosimendan, o único aprovado para uso clínico, é um derivado dinitril-piridazinona. Exerce efeito na contratilidade através do aumento da sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio, por intermédio da ligação do cátion ao domínio N-terminal da troponina C no músculo cardíaco. O fármaco também possui efeitos vasodilatadores nas artérias coronárias e nas artérias sistêmicas, através da abertura de canais de potássio e do bloqueio da liberação da endotelina-1. Estas ações resultam em redução das resistências arterial sistêmica e pulmonar, aumento do débito cardíaco, aumento da distensibilidade ventricular e em discreto efeito lusitrópico positivo, sem incremento no consumo de oxigênio miocárdico, e menor potencial arritmogênico. A redução das pressões atrial esquerda e capilar pulmonar concorre para a melhora da função diastólica do ventrículo esquerdo em pacientes com baixo débito cardíaco, como nos casos de pós-cirurgia cardíaca, miocardiopatia periparto Os sensibilizadores do cálcio constituem um novo grupo de agentes inotrópicos positivos, que inclui o levosimendan, pimobendan, simendan e o sulmazol. O levosimendan, o único aprovado para uso clínico, é um derivado dinitril-piridazinona. Exerce efeito na contratilidade através do aumento da sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio, por intermédio da ligação do cátion ao domínio N-terminal da troponina C no músculo cardíaco. TABELA 2: Doses dos fármacos inotrópicos e vasoconstritores frequentemente utilizados na prática clínica Bolus Taxa de perfusão Dobutamina Não 2 a 20mg/kg/min (b+) Dopamina Não < 3mg/kg/min: efeito renal (b+) 3-5mg/kg/min: inotrópico (b+) > 5mg/kg/min: (b+), vasopressor (a+) Milrinona25-75mg/kg durante 10-20min 0,375-0,75mg/kg/min Enoximona0,25-0,75mg/kg 1,25-7,5mg/kg/min Levosimendan12-24mg/kga durante 10min 0,1mg/kg/min, que pode ser reduzida para 0,05 ou aumentada para 0,2mg/kg/min NorepinefrinaSem bolus0,2-1,0mg/kg/min Epinefrina JBM Bolus: 1mg pode ser administrado via IV em reanimação, podendo ser repetida após 3-5min; a via endotraqueal não é benéfica MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 0,05-0,5mg/kg/min 23 Abordagem contemporânea do choque cardiogênico Endereço para correspondência: Fernando Oswaldo Dias Rangel Rua Assunção, 2/Bl. 8/ Apt. 401 — Botafogo 22251-030 Rio de Janeiro-RJ 24 e no choque cardiogênico. A meia-vida é de 80 horas, o que pode explicar o prolongado efeito hemodinâmico após a infusão de 24 horas. O levosimendan foi aprovado pela Sociedade Europeia de Cardiologia para tratamento, em curto prazo, de pacientes adultos com insuficiência cardíaca sintomática, com sinais de baixo débito, secundária a grave disfunção sistólica, na ausência de hipotensão arterial (recomendação classe IIa, com nível B de evidência) (34). Está contraindicado nos pacientes com obstrução mecânica grave ao enchimento ventricular ou ao trato de saída do ventrículo esquerdo, naqueles com hipotensão (pressão sistólica < 85mmHg ou taquicardia acentuada), nos distúrbios hepáticos e renais graves e no choque cardiogênico (27, 34). Não há dados de estudos randômicos indicando a utilização do fármaco nos pacientes com choque cardiogênico. Referências 6. HOCHMAN, J.S.; SLEEPER, L.A. et al. — Early revascularization and long-term survival in cardiogenic shock complicating acute myocardial infarction. JAMA, 295: 2511-5, 2006. 7. SINGH, M.; WHITE, J. et al. — Long-term outcome and its predictors among patients with ST-elevation myocardial infarction complicated by cardiogênico shock: Insights from the GUSTO-1 trial. J. Am. Coll. Cardiol., 50: 1752-8, 2007. 8. HOCHMAN, J.S. — Cardiogenic shock complicating acute myocardial infarction: Expanding the paradigm. Circulation, 107: 2998-3002, 2003. 9. REYNOLDS, H.R. & HOCHMAN, J.S. — Cardiogenic shock. Current concepts and improving outcomes. Circulation, 1117: 686-97, 2008. 10.TOPALIAN, S.; GINSBERG, F. & PARRILLO, J.E. — Cardiogenic shock. Crit. Care Med., 38(Suppl.): S66-S74, 2008. 11.MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA EXECUTIVA. DATASUS. Informações de saúde, morbidade e informações epidemiológicas. Disponível em: http://www.datasus.gov.br. Acesso em dezembro de 2002. 12.HASDAI, D.; HOLMES, D.R. et al., for the GUSTO-1 Investigators — Cardiogenic shock complicating acute myocardial infarction: Predictors of death. Am. H. Journal, 138: 21-31, 1999. 13.HOLMES, D.R.; BATES, E.R. et al. — Contemporary reperfusion therapy for cardiogenic shock: The GUSTO-I Trial experience. J. Am. Coll. Cardiol., 26: 668-74, 1995. 14.HOCHMAN, J.S.; SLEEPER, L.A. et al. — Early revascularization in acute myocardial infarction complicated by cardiogenic shock. N. Engl. J. Med., 341: 625-34, 1999. 15.MENON, V.; WHITE, H. et al., for the Shock Investigators — The clinical profile of patients with suspected cardiogenic shock due to predominant left ventricular failure: A report from the SHOCK Trial Registry. J. Am. Coll. Cardiol., 36(Suppl. 1): 1071-6, 2000. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Diagnóstico laboratorial Helio Magarinos Torres Filho Patologista clínico, diretor médico do Laboratório Richet (RJ). Gastroenterites infecciosas febre entérica. As síndromes estão diretamente relacionadas às etiologias, resposta inflamatória e topografia da infecção (Tabela 1). Introdução As gastroenterites infecciosas afetam grande parte da população mundial. A OMS estima que ocorram cerca de 2 bilhões de casos a cada ano, sendo a principal causa de morbidade e mortalidade de origem infecciosa e a maior causa de mortalidade em crianças menores de cinco anos. A grande maioria das diarreias de origem infecciosa é tratável; entretanto, em muitos casos, o isolamento do agente etiológico não é feito de forma adequada. Mesmo quando são realizados os exames adequados, cerca de 30% dos casos podem permanecer sem etiologia definida. Diversos motivos podem influenciar na dificuldade em se isolar o agente etiológico, sendo a diversidade desses agentes a principal causa. A origem das gastroenterites infecciosas pode ser parasitária, bacteriana ou viral. As diarreias podem ser classificadas em três síndromes: inflamatória, com presença de disenteria; não inflamatória; e doença com repercussão sistêmica, Diagnóstico laboratorial Gastroenterites bacterianas Os principais agentes bacterianos relacionados com gastroenterites incluem os gêneros Salmonella, Shigella, Escherichia, Staphylococcus, Aeromonas, Plesiomonas, Yersinia e Campylobacter. O teste globalmente mais utilizado para a pesquisa de agentes bacterianos em fezes é a coprocultura. Apesar de se tratar de um teste bastante sensível, a coprocultura apresenta diversas limitações, incluindo a ocasião e a forma de colheita da amostra. As fezes devem ser colhidas na fase aguda (diarreicas), em frascos estéreis ou em swabs com meio de transporte conservante específico (Carry-Blair). De preferência, devem ser encaminhadas ao laboratório até duas horas após a colheita e conservadas em temperatura ambiente. Caso seja possível a utilização de meio de transporte conservante (Carry-Blair), a amostra poderá permanecer estável por até 48 horas se conservada sob refrigeração (2-8ºC). O uso prévio de antibióticos ou antidiarreicos também pode interferir no teste. Na maioria dos laboratórios clínicos são utilizados meios de cultivo seletivos para os seis primeiros agentes, deixando os últimos dois (Yersinia e Campylobacter) apenas para pesquisas específicas, solicitadas de forma especial ao laboratório. Este procedimento pode trazer grande limitação à sensibilidade da coprocultura, devido à grande incidência de Campylobacter associada a processos gastroentéricos. diagnóstico laboratorial Gastroenterites infecciosas Diarreias causadas pelo Campylobacter A campilobacteriose é uma zoonose de distribuição mundial, sendo apontada como uma das principais causas de diarreias causadas por bactérias. A transmissão ocorre através do contato com animais e da ingestão de produtos animais mal cozidos ou manipulados de forma inadequada. Estima-se que o Campylobacter esteja envolvido em até 20% dos casos de diarreia, sendo as espécies mais comuns o C. jejuni e o C. coli. Este percentual corresponde a aproximadamente o dobro do observado nas infecções causadas por Salmo nella, a segunda maior causa de TABELA 1: Classificação de diarreias conforme síndrome e etiologia diarreias bacterianas. Apesar disso, a grande maioria dos laboratórios Síndrome Bactéria Vírus Parasitos Comentários clínicos não inclui a pesquisa de Cam Diarreia inflamatória, Shigella spp., E. disenteria coli EIEC, EHEC, Entamoeba Cólon, leucócitos pylobacter no painel de coprocultu Salmonella enteritidis, Nenhum histolytica fecais geralmente ras, devido à necessidade de meios Campylobacter jejuni, presentes Vibrio parahaemolyticus, seletivos e condições de incubação Clostridium difficile especiais. Outra dificuldade é a idenDiarreia não E. coli ETEC, EAEC, Norovírus, Giardia lamblia, Delgado proximal, tificação do germe, já que ela não é inflamatória Vibrio cholerae, rotavírus, Cryptosporidium leucócitos Clostridium perfringens, adenovírus parvum, Isospora belli, fecais geralmente possível através dos equipamentos Bacillus cereus, entérico, Cyclospora cayetensis, ausentes Staphylococcus aureus astrovírus, etc. microsporidia automatizados, necessitando de Diarreia com doença Salmonella typhi, Delgado distal, métodos bioquímicos extremamente sistêmica, febre Salmonella spp., Nenhum Nenhum leucócitos trabalhosos, ou imunológicos, ou, entérica Yersinia enterocolitica, mononucleares fecais Campylobacter spp. podem estar presentes ainda, de identificação através da Adaptado de Koneman’s — Color atlas and textbook of diagnostic microbiology. 6. ed., 2006. análise proteica (MALDI-TOF). JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 25 Gastroenterites infecciosas Diagnóstico laboratorial Além dos efeitos no trato gastrointestinal, as campilobacterioses podem também estar envolvidas em infecções extraintestinais, que incluem bacteremia, hepatite, colecistite, pancreatite, aborto e sepse neonatal, nefrite, prostatite, infecção do trato urinário, peritonite, miocardite e infecções focais, incluindo meningite, artrite séptica e formação de abscessos. O C. jejuni também pode estar associado ao desenvolvimento da síndrome de Guillain-Barré (SGB). Cerca de 20% a 40% dos casos de SGB estão associados às infecções prévias (uma a três semanas) por C. jejuni. Diarreias causadas por Clostridium difficile Em 1935, Hall e O’Toole isolaram pela primeira vez um bacilo Gram-positivo, anaeróbio, produtor de citotoxina, o qual denominaram Bacillus difficile — o nome foi dado em função da dificuldade para o isolamento. Mas foi somente em 1977 que Bartlett et al. identificaram o C. difficile como o agente causador da colite pseudomembranosa causada por antibióticos. O C. difficile é uma bactéria formadora de esporos que coloniza de forma assintomática o intestino, prevalecendo nos extremos de idades (crianças e adultos). A doença se dá através das toxinas que são produzidas a partir da maior proliferação do germe, devido ao desequilíbrio da flora intestinal, principalmente após a utilização de antibióticos. A sintomatologia varia desde diarreia leve, que corresponde a três a quatro episódios de fezes pastosas ao dia, passando por casos mais graves, como a colite pseudomembranosa, que causa desidratação e extremo desconforto, até os casos mais extremos e raros, conhecidos como megacólon tóxico, nos quais o processo inflamatório intestinal é tão agudo que causa paralisação do peristaltismo intestinal, com necessidade de intervenção cirúrgica. A transmissão do C. difficile ocorre através da disseminação de esporos e atinge principalmente pacientes hospitalizados. Nos EUA ocorrem 13 casos para cada mil pacientes hospitalizados e 26 7 mil casos a cada dia, correspondendo a 0,5% a 1% de todas as complicações em pacientes hospitalizados — levando à morte mais de 300 pacientes por dia. A partir do início do século XXI foi observado grande aumento da incidência de doença causada pelo C. difficile, estimando-se que a quantidade de casos tenha crescido mais de cinco vezes, incluindo também casos fatais. Em amostras coletadas durante surtos que ocorreram entre 2000 e 2003 em diversas cidades americanas e também canadenses, foi identificada uma cepa que havia sido caracterizada, por um método denominado enzima de restrição de nucleases, em 1985, como BI. Atualmente sua denominação é BI/NAP1/027, referente ao método North American Pulsed Field 1 e Ribotipo 027. Com o passar do tempo, o perfil da infecção pelo C. difficile mudou. Em um estudo conduzido no estado americano da Carolina do Norte observou-se que apenas 42% dos casos eram pacientes hospitalizados ou em contato com algum tipo de assistência à saúde, enquanto que em 32% dos casos, a infecção foi adquirida na comunidade, afetando pessoas sem nenhum tipo de fator de risco relacionado à assistência à saúde. Os jovens e as gestantes agora fazem parte do grupo de risco. Três são os fatores responsáveis pela maior virulência da cepa NAP1/027: aumento da produção de toxinas A e B, resistência a fluoquinolonas e produção de toxina binária. A produção de toxinas A e B corresponde ao maior fator de virulência do C. difficile e as cepas não produtoras de toxina não são patogênicas. As toxinas A e B são transcritas a partir de um lócus de patogenicidade que compreende cinco genes: gene tcdA (toxina A), gene tcdB (toxina B) e três genes reguladores, entre os quais o tcdC, que codifica a regulação negativa da transcrição de toxinas. As cepas NAP1/027 apresentam tcdC, e isto é a causa do aumento da produção de toxinas A e B. Outro fator de virulência observado nas cepas NAP1/027 é a produção de uma terceira toxina, chamada toxina binária, não relacionada ao lócus produtor de toxinas A e B. A toxina binária parece agir sinergicamente com as toxinas A e B, aumentando o grau de toxicidade. O diagnóstico laboratorial se dá através da pesquisa das toxinas produzidas pelo C. difficile em amostras de fezes, já que o seu isolamento em culturas, além de pouco aplicável, também pode detectar germes não produtores de toxinas. Apesar de ser um teste de fácil realização, a pesquisa de toxinas não apresenta bom grau de sensibilidade, atingindo apenas cerca de 60% dos casos, sendo necessária a repetição em pelo menos três amostras para se descartar a infecção. Há cerca de três anos foi lançado um novo método, utilizando biologia molecular, chamado GeneXpert C. difficile. O teste detecta o DNA do C. difficile e também a presença dos lócus responsáveis pela produção das toxinas A (tcdA) e B (tcdB), além da mutação que inibe a tcdC, e produção de toxina binária. Ou seja, além de detectar a presença do C. difficile, o teste também indica se pode se tratar da cepa mais virulenta NAP1/027 e/ou produtora de toxina binária. Diversos estudos demonstram sua superioridade em relação ao teste tradicional, que pesquisa apenas a toxina, sendo cerca de 40% mais sensível, em uma única amostra. O teste, que é de fácil realização e não necessita de instalações ou mão de obra especializada, produz resultados em cerca de uma hora, podendo, portanto, ser realizado em laboratórios intra-hospitalares. Estudos realizados em hospitais americanos demonstram que as infecções por C. difficile prolongam o tempo de internação em cerca de cinco a sete dias, adicionando maior risco de morbidade e mortalidade ao paciente, além da elevação dos custos. Portanto, quando existe a possibilidade de utilização de um teste que pode fornecer resultados rápidos e precisos, mesmo que tenha um custo superior ao teste tradicional (que apresenta sensibilidade variável e necessita de mais de uma amostra para confirmação), a relação custo-efetividade é rapidamente atingida. Podemos ainda acrescentar que os surtos nosocomiais causados pelo JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Gastroenterites infecciosas Diagnóstico laboratorial C. difficile atingem também números elevados, já que sua erradicação demanda grande esforço, devido ao alto grau de transmissibilidade e à necessidade de utilização de protocolos de desinfecção especiais, por causa da resiliência dos esporos ao calor e à dessecação, que os tornam ainda viáveis em ambientes hospitalares por semanas e até anos, além da sua resistência à maioria dos produtos desinfetantes, incluindo álcool gel (Tabela 2). com especificidade de 98%-100%. Outra vantagem do método consiste em permitir a identificação apenas de E. histolytica e não de E. dispar (não patogênica), que não é possível apenas ao exame microscópico (parasitológico). Ocorrem cerca de 50 mil casos de infecções por E. histolytica em todo o mundo, sendo responsável por cerca de 100 mil mortes por ano em todo o mundo, segundo a OMS. A Giardia lamblia, que foi observada pela primeira vez por Leeuwenhock nas zoonose, transmitida através de diversos animais, sendo mais comum em bezerros, podendo causar, além dos sintomas gastrointestinais, infecção respiratória, biliar, hepatite e pancreatite. Em 1993 foi registrado um famoso surto de C. par vum na cidade americana de Milwaukee, transmitido através do sistema público de águas, que custou ao governo americano cerca de 6 bilhões de dólares. O diagnóstico laboratorial de infecções causadas pelo C. parvum é baseado na observação direta, através da utilização da coloração de Ziehl-Neelsen modificada, que, apesar TABELA 2: Modelo de resultado obtido do teste Cepheid GeneXpert C. difficile de simples e de baixo custo, depende da Resultado fase da infecção e também da experiênC. difficile DNA Positivo Negativo cia do observador. O teste imunológico para a pesquisa de antígeno fecal para C. tcdA PositivoNegativo parvum apresenta sensibilidade de 97% a tcdB PositivoNegativo 100% e especificidade de 99%. tcdC PositivoNegativo Portanto, para o diagnóstico de infecções causadas por parasitas intestinais, o Toxina binária Positivo Negativo recomendado é conciliar o teste parasi Positivo para C. difficile Negativo para C. difficile tológico, de preferência em um mínimo de três amostras não consecutivas, com Conclusão Positivo para NAP1/027 Negativo para NAP1/027 os testes imunológicos para a pesquisa Positivo para toxina binária Negativo para toxina binária de antígenos fecais. Gastroenterites parasitárias Em comunidades de baixa renda e também em crianças, a incidência de parasitoses intestinais ainda atinge proporções significativas. Dentre a grande quantidade de parasitas, os mais frequentes são a Giardia lam blia, a Entamoeba histolytica e o Cryptosporidium parvum. O diagnóstico laboratorial feito através do exame parasitológico tradicional apresenta grau de sensibilidade reduzido. A realização em várias amostras (três a seis) e a utilização de colorações permanentes (tricrômicas) podem elevar a sensibilidade em cerca de 20% a 30%. A utilização de métodos imunológicos que detectam a presença de substâncias antigênicas nas fezes, em conjunto com o exame parasitológico, eleva consideravelmente a sensibilidade e a especificidade do teste. O teste para a pesquisa de antígeno fecal para E. histolytica apresenta grau de sensibilidade que varia de 95% a 100%, suas próprias fezes, e posteriormente descrita por A. Giard e F. Lambl em 1859, é o protozoário mais detectado em todo o mundo, afetando mais as crianças do que os adultos. Pode causar síndromes de hipersensibilidade, má nutrição e doenças biliares. Geralmente o microrganismo fica aderido à parede intestinal e é expelido em ciclos, o que torna o seu diagnóstico através do exame parasitológico de fezes pouco sensível quando se utiliza apenas uma amostra. O teste imunológico para a pesquisa de antígeno fecal para G. lamblia apresenta sensibilidade em torno de 95%-100% e especificidade de 99%, sendo bastante superior ao exame parasitológico. O Cryptosporidium parvum, descrito pela primeira vez em 1907 por Tyzzer, em ratos de laboratório, atinge principalmente pacientes imunocomprometidos, em especial os portadores de AIDS, nos quais pode se tornar crônico naqueles com contagem de linfócitos CD4+ abaixo de 200/µl. Na verdade, trata-se de uma JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Gastroenterites causadas por vírus As gastroenterites virais são uma patologia extremamente comum, sendo a segunda maior causa de doença infecciosa e a maior causa de diarreia infecciosa. Afetam todas as idades, porém são mais frequentes em crianças e idosos. O quadro clínico evolui com diarreia não sanguinolenta, geralmente com pouco ou nenhum componente inflamatório, com duração de sete a 10 dias. É comum o relato de surtos em comunidades fechadas, como creches, hospitais, pacientes de internação domiciliar (home care), escolas e excursões em navios (cruzeiros). Estima-se que ocorram cerca de 2,5 milhões de mortes causadas pelas gastroenterites virais, principalmente em crianças. Os principais agentes etiológicos são quatro: rotavírus, norovírus, astrovírus e adenovírus. O rotavírus é o agente mais frequente, respondendo por 60% de todos os episódios diarreicos nos países em desenvolvimento e por 40% nos países mais desenvolvidos, cursando com quadros 27 Gastroenterites infecciosas Diagnóstico laboratorial de vômitos e desidratação. O patógeno é indicado como o causador de 20% a 70% das internações hospitalares por diarreia em todo o mundo, sendo responsável por 500 mil mortes por ano em crianças menores de cinco anos em todo o planeta. A infecção afeta todas as idades, porém é mais frequente em crianças. Os adultos liberam menor quantidade de antígenos pelas fezes. Após a vacinação, 4% a 5% dos pacientes continuam a eliminar antígenos pelas fezes por um período de até 15 dias. O diagnóstico de infecções pelo rotavírus é realizado já há mais de 10 anos por métodos imunológicos que pesquisam o antígeno fecal. Estes testes apresentam bons graus de sensibilidade e de especificidade, superiores a 95%. Mais recentemente foram introduzidos testes por biologia molecular — cujos produtos comerciais ainda não se encontram disponíveis no Brasil — que apresentam sensibilidade um pouco superior à dos testes imunológicos. Estima-se que a ingestão de alimentos contaminados seja responsável por uma grande quantidade de hospitalizações. De todos os patógenos conhecidos, os vírus respondem por pelo menos dois terços dos casos. Dentre todos os vírus envolvidos nos processos de contaminação alimentar, o norovírus é o mais frequente. As gastroenterites causadas pelo norovírus geralmente não estão associadas a elevado grau de mortalidade; entretanto, podem trazer grandes impactos econômicos, uma vez que os indivíduos acometidos necessitam de cuidados médicos e ficam sem estudar/trabalhar por vários dias. Apesar de a maioria dos casos cursar como doença autolimitada, as infecções pelo norovírus podem apresentar formas mais graves, com possibilidade de letalidade — especialmente em grupos mais vulneráveis, como idosos, crianças e imunocomprometidos. Os sintomas incluem vômitos e/ou diarreia aquosa, que pode levar à desidratação, dores abdominais, febre baixa, mialgia e cefaleia. Eles se resolvem geralmente em um a três dias, mas os vírus continuam a ser excretados nas 28 fezes por até duas semanas, facilitando a sua transmissão. Outros fatores que contribuem para o alto grau de transmissibilidade do norovírus incluem a pequena dose necessária para a contaminação (aproximadamente 18 a 1.000 partículas virais) e a sua resistência a extremos de temperatura (de congelado a 60ºC), que permite que permaneça viável por longos períodos em alimentos e bebidas. Estudos demonstram a identificação de novas estirpes virais, com capacidade de disseminação rápida e distribuição global, caracterizando o controle dos surtos como mais um desafio para a saúde pública. O norovírus pertence à família Cali civiridae, e até 2002 era referido como Norwalk-símile (Norwalk-like viruses), devido à semelhança com um achado de microscopia eletrônica de um vírus isolado em um surto ocorrido na cidade americana de Norwalk, Ohio. O norovírus foi o primeiro agente viral a ser detectado como causador de gastroenterites, mas permaneceu pouco estudado por muitos anos, devido à falta de métodos diagnósticos práticos e seguros. Após a introdução de métodos diagnósticos mais precisos, o agente passou a ser identificado em uma grande proporção dos casos de gastroenterites e entre 5% e 30% dos casos de hospitalização ou visita médica devidos a gastroenterites. O diagnóstico laboratorial de infecções causadas pelo norovírus pode ser feito através da pesquisa direta por método imunológico, imunocromatografia ou EIA em placas, ou através de testes de biologia molecular (PCR em tempo real), sendo que este último ainda não se encontra comercialmente disponível no Brasil. Os testes imunológicos apresentam grau variável de sensibilidade (que vai de 57% em uma única amostra a 78% em três amostras) e especificidade de 90%, sendo de utilidade nos diagnósticos diferenciais com outras causas de gastroenterites. Os testes por imunocromatografia são de fácil e rápida realização, sendo os mais indicados. Entretanto, os testes por biologia molecular apresentam ainda melhor grau de sensibilidade (> 90%) do que os testes imunológicos e tendem a substituí-los gradativamente. Os astrovírus humanos são membros da família Astroviridae, sendo reconhecidos como uma causa comum de gastroenterite infantil em todo o mundo. Inicialmente associados a um surto de diarreia em bebês em uma maternidade, esses vírus foram assim denominados em função de apresentarem forma estrelada em cinco ou seis pontas, quando vistos através de microscopia eletrônica. A importância médica das infecções por astrovírus humanos foi reconhecida através de estudos que os apontavam como a segunda maior causa de diarreia em crianças. Um estudo recente, realizado no México, relatou astrovírus nas fezes de 61% de todas as crianças e de 26% das crianças com diarreia. As infecções causadas pelos astrovírus têm sido associadas a quadros de diarreia esporádica em crianças da comunidade, bem como a surtos focais, incluindo infecções nosocomiais. O principal sintoma é a diarreia aquosa, frequentemente asso ciada a vômitos, febre e dor abdominal. Os surtos acontecem com frequência em enfermarias infantis, creches, jardins de infância e escolas, podendo também ocorrer em lares para idosos e quartéis militares. Os métodos para o diagnóstico laboratorial de infecções pelo astrovírus incluem a pesquisa do antígeno fecal por imunoensaio ou biologia molecular, sendo o primeiro disponível em nosso meio. Estudos indicam que os testes por imunoensaio apresentam sensibilidade semelhante ao padrão ouro, à microscopia eletrônica e próxima à dos testes por biologia molecular. O adenovírus humano pertence ao gênero Mastadenovirus, da família Adenoviridae. Tem sido implicado em doenças respiratórias agudas, gastrointestinais e infecções do trato urinário. Até o presente, 52 sorotipos foram identificados, dentre eles o subgênero F (AdVF), representado pelos adenovírus tipo 40 (AdV-40) e tipo 41 (AdV-41), que estão associados a quadros de gastroenterite aguda e são responsáveis por JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Gastroenterites infecciosas Diagnóstico laboratorial 1% a 20% dos casos de doença diarreica em crianças em todo o mundo, tanto em pacientes ambulatoriais como hospitalizados. O AdV-40 e o AdV-41 afetam principalmente crianças menores de dois anos de idade e ocorrem durante todo o ano. As características clínicas são diarreia acompanhada de vômitos, febre baixa e desidratação leve. Uma característica distinta de infecções pelo AdV-40 e AdV-41 é a diarreia prolongada (médias: 8,6 e 12,2 dias, respectivamente). Assim como ocorre com as outras viroses gastrointestinais, o diagnóstico laboratorial de infecções pelos adenovírus 40-41 é feito através de testes por imunoensaio ou biologia molecular. Os testes por imunoensaio apresentam sensibilidade satisfatória e os resultados podem ser obtidos de forma fácil e rápida. Os testes por biologia molecular apresentam melhor sensibilidade, mas não se encontram ainda totalmente inseridos na rotina dos laboratórios de patologia clínica. Novos testes do tipo multiplex (painel) para o diagnóstico de gastroenterites infecciosas Há cerca de dois anos foram introduzidos alguns testes baseados em biologia molecular, com capacidade de incorporação de várias sondas em uma única plataforma. Alguns exemplos são o xTag Gastrointestinal Pathogen Panel (xTag GPP), o Luminex, capaz de detectar fragmentos genéticos de Salmonella, Shigella, Campylobacter, Yersinia ente rocolitica, ETEC, E. coli 0157:H7, STEC, C. difficile, Vibrio cholerae, adenovírus 40-41, rotavírus A, norovírus, Giardia, Cryptosporidium e E. histolytica, e também o Seeplex ACE Detection e o Seegene, que detecta rotavírus, norovírus G1 e G2, adenovírus entérico, astrovírus, Salmonella sp., Shigella sp., Vibrio sp., Campylobacter spp., Clostridium difficile toxina B, Clostridium perfringens, Yersinia enterocolitica, Aeromonas spp., E. coli O157:H7 e E. coli produtora de verotoxina (VTEC). Estes tipos de teste têm se mostrado bastante promissores e os estudos demonstram alta sensibilidade JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 e especificidade, devendo se tornar referência no diagnóstico de gastroenterites, devido à praticidade de fornecimento de vários resultados em um único teste. Painel de gastroenterites Um painel para a pesquisa completa de gastroenterites infecciosas deve incluir: Parasitas • Parasitológico de fezes. • Antígeno fecal para Giardia lamblia. • Antígeno fecal para Entamoeba his tolytica. • Antígeno fecal para Cryptosporidium parvum. Neste caso, a inclusão da pesquisa de antígenos fecais acrescenta cerca de 20%-30% mais sensibilidade do que um exame parasitológico simples. Bactérias • Coprocultura. • Cultura para Campylobacter. • Cultura para Yersinia. • Pesquisa de toxina do Clostridium difficile por método PCR. Obs.: A inclusão das culturas para Campylobacter e Yersinia cobre a grande maioria dos casos de gastroenterites de origem bacteriana. A pesquisa para C. difficile só deve ser incluída nos casos em que haja suspeita clínica (antibioticoterapia prévia ou infecção nosocomial). O teste é feito em amostras de fezes, coletadas em frascos fornecidos pelo laboratório. Referências 11. KONEMAN, E. — Color atlas and textbook of diagnostic microbiology. 6. ed., 2006. 12. ISENBERG, H.D. — Clinical microbiology procedures handbook, 2011. 13. PETRA, F.G.; WOLFFS, C.A. et al. — Replacing traditional diagnostics of fecal viral pathogens by a Comprehensive Panel of Real-Time PCRs. J. Clin. Microbiol., 49: 1926-31, 2011. 14. HIGGINS, R.; BENIPRASHAD, M. et al. — Evaluation and verification of the Seeplex Diarrhea. V ACE Assay for Simultaneous Detection of Adenovirus, Rotavirus, and Norovirus Genogroups I and II in Clinical Stool Specimens. J. Clin. Microbiol., 49: 3154-62, 2011. 15. HUANG, H.; WEINTRAUB, A. et al. — Comparison of a commercial multiplex real-time PCR to the cell cytotoxicity neutralization assay for diagnosis of Clostridium difficile infections. J. Clin. Microbiol., 47: 11, 2009. 16. HALL, I.C. & O’TOOLE, E. — Intestinal flora in new-born infants with a description of a new pathogenic anaerobe, Bacillus difficilis. Am. J. Dis. Child., 49: 390-402, 1935. 17. BARTLETT, J.G.; CHANG, T.W. et al. — Antibiotic-associated pseudomembranous colitis due to toxinproducing clostridia. N. Engl. J. Med., 298: 531-4, 1978. 18. DUBBERKE, E.R.; RESKE, K.A. et al. — Short-and long-term attributable costs of Clostridium difficile associated disease in nonsurgical inpatients. Clin. Infect. Dis., 46: 497-504, 2008. 19. KUTTY, P.K.; BENOIT, S.R. et al. — Assessment of Clostridium difficile-associated disease surveillance definitions, North Carolina, 2005. Infect. Control Hosp. Epidemiol., 29: 197-202, 2008. 10. DETRICK, B.; HAMILTON, R.G. & FOLDS, J.D. — Molecular clinical laboratory immunology. 7. ed., ASM Press, 2006. Obs.: As três referências restantes que compõem este artigo se encontram na Redação à disposição dos interes sados. Vírus • Rotavírus. • Adenovírus. • Norovírus. • Astrovírus. Obs.: Os quatro tipos de vírus são os mais comumente associados às infecções gastrointestinais, sendo que o rotavírus corresponde a cerca de 60% dos casos em crianças e o adenovírus ocorre com maior frequência em crianças até dois anos e em imunocomprometidos. Já o norovírus está associado à transmissão através de alimentos e o astrovírus a surtos em escolas, creches, etc. Endereço para correspondência: Helio Magarinos Torres Filho Av. das Américas, 4801/Loja D 22631-004 Rio de Janeiro-RJ [email protected] 29 Constipação intestinal José Galvão-Alves Chefe da 18a Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro — Serviço de Clínica Médica. Professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques. Professor titular de Pós-graduação em Gastroenterologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro titular da Academia Nacional de Medicina. Presidente da Federação Brasileira de Gastroenterologia (2010-2012). Professor de Clínica Médica da Uni-FOA — Universidade da Fundação Osvaldo Aranha. Resumo Summary A constipação intestinal acomete cerca de 20% da população mundial e constitui um dos sintomas mais frequentes de procura ao médico. É mais comum em mulheres e idosos e se encontra entre as doenças funcionais do intestino. Pode ser referida pelo paciente como fezes endurecidas, esforço excessivo no ato evacuatório, evacuações infrequentes ou sensação de evacuação incompleta. Subdivide-se em primária e secundária, tendo essa última causa bem definida, como doenças endócrinas e neurológicas ou uso inadvertido de substâncias obstipantes. É importante orientarmos nossos pacientes para a necessidade de uma dieta rica em fibras e de uma hidratação adequada. O manejo farmacológico pode incluir suplementação de fibras, laxativos osmóticos, emolientes e laxativos irritativos. Constipation occurs in about 20% of the world population and it is a common reason for seeking medical attention. It is more common in women and in the elderly and may be part of a generalized gastrointestinal dysmotility syndrome. Patients may define constipation as hard stools, excessive straining, infrequent stools, or a sense of incomplete evacuation. There are two main types of constipation — primary or secondary, the latter caused by systemic disorders such as endocrine disorders, neurologic dysfunction, or as a side effect of medications. Proper dietary fiber and fluid intake should be emphasized. Pharmacologic management of constipation may include fiber laxatives, osmotic laxatives, stool surfactants, or stimulant laxatives. Introdução consiste em condição clínica comum que depende de uma inter-relação médico-paciente de qualidade para o sucesso terapêutico. O presente artigo inicia-se com um quadro elucidativo das doenças funcionais neurogastroenterológicas, segundo a classificação de Roma III (Quadro 1). A constipação intestinal encontra-se entre as doenças funcionais do intestino. Constitui um dos sintomas mais frequentes de procura ao clínico geral e gastroenterologista, acometendo cerca de 20% da população mundial. É mais comum nas mulheres e nos idosos, representando para estes um problema terapêutico muito preocupante. Constituem fatores desencadeantes e agravantes a baixa atividade física, baixo nível socioeconômico e educacional, alimentação inadequada, história de abuso sexual e os estados depressivos. A constipação intestinal JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Definição Não existe uma definição de abrangência universal para constipação. Fundamentando-se nas queixas dos pacientes, ela pode ser referida como fezes endurecidas, esforço excessivo no ato evacuatório, evacuações infrequentes, sensação de evacuação incompleta e até mesmo demora excessiva no toalete. Considera-se normal a frequência de evacuação de, no mínimo, três vezes por semana. O último Consenso de Roma, no qual se definiram os critérios de constipação funcional, ocorreu em 2006 (Quadro 2). gastroenterologia Constipação intestinal Unitermos: Constipação; doenças funcionais do intestino; suplementação de fibras; laxativos. Keywords: Constipation; gastrointestinal dysmotility syndrome; fiber; laxatives. 31 Constipação intestinal QUADRO 1: Classificação — Roma III — doenças funcionais A. Alterações funcionais do esôfago A1. Pirose funcional (é preciso haver evidência de ausência de refluxo) A2. Dor torácica funcional de presumível origem esofágica A3. Disfagia funcional A4. Globus B. Alterações funcionais gastroduodenais B1. Dispepsia funcional (representa mais de 50% dos doentes com queixas dispépticas) B1a. Síndrome do desconforto pós-prandial B1b. Síndrome da dor epigástrica B2. Eructação (só deve ser considerada alteração quando se torna desagradável) B2a. Aerofagia B2b. Eructação excessiva B3. Náusea e vômito B3a. Náusea crônica idiopática B3b. Vômito funcional B3c. Síndrome do vômito cíclico (menos de uma semana de duração — três ou mais episódios no ano anterior) B4. Síndrome da ruminação (situação muito rara no adulto) C. Alterações funcionais do intestino C1. Síndrome do intestino irritável (afecção mais frequente do trato digestório) C2. Distensão abdominal C3. Obstipação funcional C4. Diarreia funcional C5. Alteração funcional não especificada D. Síndrome da dor abdominal funcional (na maior parte dos casos, a dor abdominal faz parte da dispepsia funcional ou da síndrome do intestino irritável. Em 0,5% a 2% dos casos, a dor aparece isolada, não podendo ser enquadrada em outra síndrome) E. Alterações funcionais da vesícula e do esfíncter de Oddi E1. Alteração funcional da vesícula (situação pouco frequente e de difícil diagnóstico) E2. Alteração funcional do esfíncter de Oddi da via biliar E3. Alteração funcional do esfíncter de Oddi do pâncreas F. Alterações funcionais anorretais F1. Incontinência fecal funcional F2. Dor anorretal funcional F2a. Proctalgia crônica (o episódio doloroso dura pelo menos 20 minutos) F2a1. Síndrome do elevador do ânus F2a2. Dor anorretal funcional não especificada F2b.Proctalgia fugax (o episódio doloroso dura segundos ou minutos. Afeta cerca de 5% da população adulta) F3. Alterações funcionais da defecação F3a. Defecação dissinérgica F3b. Propulsão defecatória inadequada 32 JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Constipação intestinal QUADRO 2: Critérios — ROMA III — de constipação funcional 1. Dois ou mais dos seguintes achados — Esforço ao menos em 25% das evacuações — Fezes ressecadas ou duras ao menos em 25% das evacuações — Sensação de evacuação incompleta ao menos em 25% das vezes — Sensação de bloqueio anorretal ao menos em 25% das evacuações — Manobra manual de facilitação da evacuação ao menos em 25% das vezes — Menos de três evacuações por semana — Distúrbios de evacuação que não preencham os critérios de síndrome do intestino irritável 2. Fezes amolecidas presentes raramente com o uso de laxativos 3. Critério insuficiente para síndrome do intestino irritável Fisiopatologia A constipação intestinal é uma condição multifatorial, sendo na maioria das vezes decorrente da ingesta inadequada de fibras e água. Subdivide-se em primária e secundária, tendo esta última causa bem definida, como doenças endócrinas e neurológicas ou uso inadvertido de substâncias obstipantes (Quadro 3). Em termos fisiopatológicos, divide-se em três categorias: 1. constipação de trânsito normal; 2. constipação de trânsito lento; e 3. doenças do ato evacuatório. Em estudo avaliando mais de mil pacientes constipados, Nyan et al. observaram que 59% apresentavam trânsito intestinal normal; 25%, defeitos defecatórios; 13%, trânsito intestinal lento; e 3%, associação de trânsito lento e distúrbio da defecação. Constipação de trânsito intestinal normal (funcional) Também denominada funcional, é a forma mais comum de apresentação. Embora o tempo de passagem pelo cólon seja normal, o paciente refere ser constipado, queixando-se de fezes endurecidas ou insatisfação com a evacuação. São indivíduos com distúrbios psicossociais frequentes, e queixam-se também de desconforto abdominal e flatulência. Geralmente respondem à adição de fibras à dieta e à melhor hidratação. Algumas vezes se beneficiam de laxativos osmóticos, como o polietilenoglicol. A falta de resposta adequada a esta conduta induz-nos a avaliação etiológica mais criteriosa. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Distúrbios da defecação Ocorrem em virtude da disfunção do assoalho pélvico ou do esfíncter anal. Também são conhecidos como “anismos”, dissinergia do assoalho pélvico, contração paradoxal do assoalho pélvico, constipação obstrutiva, obstrução funcional do retossigmoide, síndrome espástica do assoalho pélvico e retenção fecal funcional na infância. Medo da dor ao defecar (fezes volumosas e endurecidas), fissura anal e hemorroidas podem estar associados a distúrbios da defecação, assim como abuso físico ou sexual ou distúrbios alimentares. Causas menos comuns incluem anormalidades estruturais: intussuscepção retal, retocele, sigmoidocele obstrutiva e deiscência perineal extrema. O não preenchimento total do reto pode levar à falta de coordenação dos músculos abdominais, reto-anais e do assoalho pélvico durante a defecação. Ignorar ou suprimir a urgência de evacuação pode contribuir para uma evolução mais grave. Constipação de trânsito lento É de ocorrência mais comum em mulheres jovens que evacuam até uma vez por semana, comumente iniciando-se na puberdade. Clinicamente, apresenta-se como dor abdominal ou desconforto, flatulência e urgência fecal, essa menos frequente. Os quadros leves respondem bem a tratamento dietético com aumento de fibras, o que não ocorre nos casos mais graves. O trânsito colônico lento, associado à falta de incremento na atividade motora após ingesta de carnes, ou administração de substâncias, caracteriza a inércia colônica. Pontos-chave: > A constipação de trânsito intestinal é a forma mais comum de apresentação; > São indivíduos com distúrbios psicossociais frequentes, e queixam-se também de desconforto abdominal e flatulência; > Geralmente respondem à adição de fibras à dieta e à melhor hidratação. 33 Constipação intestinal QUADRO 3: Etiologia da constipação intestinal 1.Primária — funcional 2.Secundária — orgânica — Doenças endócrinas (p. ex., hipotireoidismo) — Doenças metabólicas (p. ex., diabetes melito) — Doença neurológica (p. ex., doença de Parkinson) — Medicamentosa (p. ex., analgésicos, anti-hipertensivos, neurolépticos, etc.) O exame histopatológico mostra um número diminuído de neurônios do plexo mioentérico, bem como outras anormalidades que alterariam a motilidade gastrointestinal. A doença de Hirschsprung é uma forma extrema de constipação de trânsito lento, em que as células ganglionares do intestino distal são inexistentes. QUADRO 4: Sintomas de alarme Hemorragia retal Dor abdominal intensa Perda de peso Anorexia Tenesmo Febre Avaliação clínica O primeiro e mais importante cuidado na avaliação do paciente constipado é excluir a presença de causas secundárias (Quadro 3). Mediante anamnese, devem-se investigar cuidadosamente sinais de “alarme” ou “alerta” (Quadro 4), como emagrecimento, hemorragia, febre, anorexia e anemia, que podem nos orientar para uma causa anatômica. Em pacientes com mais de 50 anos, ou que se tornaram constipados recentemente, sugere-se a pesquisa de sangue oculto nas fezes, bem como a dosagem sanguínea de eletrólitos (incluindo cálcio, glicemia, hormônio tireoestimulante [TSH] e hemograma completo). Àqueles que não responderam à orientação inicial e/ou apresentam anemia ou sangue oculto nas fezes indica-se a colonoscopia. Nos pacientes com menos de 50 anos sem sinais de alerta e história longa de constipação, opta-se por uma terapêutica progressiva, conforme o algoritmo da Figura 2. A Avaliação diagnóstica da urgência Tempo de trânsito colônico (TTC) O tempo de trânsito normal é inferior a 72 horas. Uma radiografia abdominal deve ser realizada 120 horas após marcadores radiopacos serem deglutidos em uma cápsula de gelatina. Previamente, deve-se fazer dieta rica em fibras, e laxativos/enemas e medicamentos que afetem a função intestinal não devem ser utilizados. Caso haja retenção de mais de 20% dos marcadores, o trânsito é considerado prolongado, e se for predominantemente em cólon esquerdo e reto, é sugestiva de distúrbio defecatório (Figura 1 — A, B e C). Temos utilizado, com muito sucesso, a avaliação do TTC pela medicina nuclear, após ingesta de alimento sólido radiomarcado com 2mCi 99mTc-enxofre coloidal (Figura 2 — A e B). Marcadores radiopacos 1 cápsula com 24 anéis 5 dias B Figura 1: A. Avaliação do trânsito intestinal. B. Tempo de trânsito colônico. C. Diagnóstico do tempo de trânsito colônico. 34 ≤ 5 anéis ≥ 6 anéis Normal Lento C Normal Inércia Colônica JBM Defecatório MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Constipação intestinal Figura 2: A e B. Exame cintilográfico sugestivo de trânsito do intestino grosso lentificado, com retenção em cólon transverso. Manometria anorretal A contração inapropriada do esfíncter anal sugere distúrbio defecatório. A ausência de reflexo inibitório anorretal ocorre na doença de Hirschsprung. Aumento de pressão anal e dor no reto são indicativos de fissura anal ou animus. Em distúrbios neurológicos ou nos casos de aumento da capacidade retal mediante retenção prolongada de fezes observa-se hipersensibilidade retal. Balão de expulsão O paciente é solicitado a expulsar um balão de látex, inserido no reto e preenchido com 50mL de água ou ar. A incapacidade de expulsar o balão dentro de dois minutos sugere distúrbio de defecação. Defecografia É usada para determinar o completo preenchimento do reto, do ângulo anorretal, da deiscência perineal e as anormalidades estruturais (retocele, prolapso da mucosa interna ou intussuscepção). Estes métodos complementares devem ser indicados na suspeita de constipação de trânsito lento e nos casos de distúrbios de defecação. Terapêutica A adesão ao tratamento repousa na perfeita relação do médico com seu paciente. Para isso, faz-se necessário uma abordagem mais do indivíduo do que de seu sintoma. A constipação crônica traz com o paciente uma história de inúmeros médicos, exames complementares e medicamentos. O primeiro passo na JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 terapêutica é entender que a expectativa em sua consulta pode ser imensa, havendo com ela uma cobrança ainda maior. Saber ouvir parece primário, mas tem se tornado raro. Orientação higieno-dietética É importante orientarmos nossos pacientes para a necessidade de uma dieta rica em fibras, em especial vegetais os mais variados, e de uma hidratação adequada (30 a 50mL/ kg/dia), dependente de sua atividade e do clima onde reside. Estas são recomendações que devem conter um grau de exigência significativa, sem o que o paciente não as cumpram. Caso ele não consiga aumentar a ingesta de fibra natural, devem ser utilizados suplementos comerciais. Um ponto relevante na terapêutica da constipação intestinal é a reeducação dos hábitos de evacuação, estimulando-se a disciplina de horário e a obediência ao reflexo evacuatório. É bastante comum, especialmente entre mulheres e homens por demais apressados, não responder ao estímulo evacuatório imediatamente, o que causa a perda progressiva desse reflexo. Deve-se também estimular o exercício físico, em especial a natação e a deambulação. Terapêutica farmacológica Incrementadores do bolo fecal Com a ingestão suplementar de fibras aumenta-se o volume fecal, diminui-se a consistência das fezes e estimula-se fisiologicamente a evacuação. As fibras retêm água em sua estrutura e, por isso, os pacientes devem ingerir volume hídrico adequado. A adesão ao tratamento repousa na perfeita relação do médico com seu paciente. Para isso, faz-se necessário uma abordagem mais do indivíduo do que de seu sintoma. A constipação crônica traz com o paciente uma história de inúmeros médicos, exames complementares e medicamentos. 35 Constipação intestinal No Quadro 5 estão relacionados os principais incrementadores do bolo fecal. Salienta-se que as fibras sintéticas, por não serem degradadas pelas enzimas digestivas e não serem metabolizadas pelas bactérias do cólon, são eliminadas de maneira intacta e não produzem gás. QUADRO 5: Incrementadores do bolo fecal Fibras sintéticas (policarbofila cálcica) Metilcelulose Psyllium Ágar-ágar Laxativos osmóticos Agem fluidificando as fezes por meio de substâncias osmoticamente ativas, que “roubam” água do organismo humano através da mucosa digestiva. Correspondem a um grupo heterogêneo no qual se destacam o polietilenoglicol (PEG), os osmóticos salinos (sal de sódio ou magnésio) e os sacarídeos (lactulose) (Quadro 6). QUADRO 6: Laxativos osmóticos Polietilenoglicol* (PEG 3350) Lactulose Sais de sódio e magnésio * Uso recomendado na gravidez. Pontos-chave: > Os laxativos procinéticos agem aumentando o trânsito intestinal de maneira mais fisiológica; > O tegaserode tem indicação bem definida na constipação da síndrome do intestino irritável; > A lubiprostona é um estimulador seletivo dos canais de cloro tipo 2. 36 A experiência mundial aponta o PEG como o laxativo de eleição, pois é eficaz, isento de paraefeitos, tem absorção desprezível, não é metabolizado, não é calórico e nem teratogênico, podendo ser utilizado, inclusive, para a constipação da gravidez. Ao aumentar a concentração de água no cólon, o PEG lubrifica e amolece as fezes, tornando a evacuação mais confortável. Amaciantes (emolientes, lubrificantes) Esses laxativos agem facilitando o deslizamento das fezes. São substâncias oleosas que podem, em médio prazo, diminuir a absorção das vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K). Riscos especiais em pacientes disfágicos, principalmente idosos, consistem na broncoaspiração e na pneumonia lipoídica. Em situações agudas recomenda-se a utilização de medicamentos de apresentação oral e retal (Quadro 7). QUADRO 7: Agentes amaciantes Docusato de sódio Óleo mineral Laxativos irritativos Agem provocando aumento da contração da musculatura lisa intestinal por meio de estímulo ao plexo mioentérico (Quadro 8). A grande vantagem é a ação rápida, em torno de seis a 12 horas; no entanto, seu uso crônico pode provocar lesão no plexo mioentérico, levando à dismotilidade colônica. São contraindicados na gravidez e na amamentação. Em nossa opinião, devem constituir medicamentos de exceção. QUADRO 8: Laxantes estimulantes Antraquinonas Sene Cáscara sagrada Óleo de rícino Difenilmetanos Bisacodil Fenolftaleína Picossulfato de sódio Laxativos procinéticos Por fim, merecem menção os laxativos procinéticos, que agem aumentando o trânsito intestinal de maneira mais fisiológica. Dentre estes se destacam a cisaprida, que, por sua cardiotoxicidade, se encontra fora de uso comercial em todo o mundo; a domperidona, pouco efetiva; o tegaserode, com indicação mais bem definida na constipação da síndrome do intestino irritável; a lubiprostona e a prucaloprida. A lubiprostona é um estimulador seletivo dos canais de cloro tipo 2, localizados na membrana apical do epitélio gastrointestinal. Como resultado, há um aumento na secreção de fluido intestinal rico em cloro, o que estimula os movimentos intestinais e facilita a passagem de fezes amolecidas (hidratadas) através do intestino, com consequente alívio dos sintomas de constipação intestinal. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Constipação intestinal Na dose de 24µg duas vezes ao dia, a lubiprostona acelera significativamente o trânsito do intestino delgado e cólon, quando comparada ao uso de placebo em estudos randomizados, duplo-cegos, utilizando a cintigrafia para mensurar o tempo de trânsito intestinal. Os efeitos adversos mais frequentes foram náuseas, diarreia e cefaleia, sendo que aproximadamente 8,7% dos pacientes suspenderam o uso em razão de náusea intensa. Pode-se observar, em menor frequência (5%), dor, flatulência e distensão abdominal. As drogas que agem nos receptores de serotonina (5HT) podem reduzir a sensibilidade visceral, bem como aumentar a motilidade do trato intestinal. Através deste último mecanismo a prucaloprida, agonista serotoninérgico do receptor 5HT4, estimula os neurônios intrínsecos e a musculatura lisa e, com isto, o tempo e capacidade da droga evacuatória do trato intestinal. Soma-se a esta ação a capacidade da droga em aumentar a secreção da mucosa intestinal. No momento, este medicamento se encontra liberado em nosso meio apenas para uso em mulheres acima de 18 anos e deve ser droga de exceção após o incremento do bolo fecal, uma adequada hidratação e uso de laxativos osmóticos. Finalizando, apresentamos um algoritmo utilizado por nós, com resultados bastante estimulantes (Figura 3). Terapêutica Dieta rica em fibras Hidratação Fibra suplementar Laxativo osmótico Laxativo lubrificante Procinéticos Laxativos irritativos Figura 3: Algoritmo — Constipação intestinal funcional. Referências 11. BOURAS, E.P. et al. — Chronic constipation in the elderly. Gastroenterol. Clin. North Am., 38(3): 463-80, 2009. 12. CAMILLERI, M.; BHARUCHA, A.E. et al. — Effect of a selective chloride channel activador, Lubiprostone on gastrointestinal transit, gastric sensory, and motor functions in healthy volunteers. Am. J. Physiol. Gastrointest. Liver Physiol., 290(5): 942-7, 2006. 13. DOSH, S.A. — Evaluation and treatment of constipation. J. Fam. Pract., 51: 555-9, 2002. 14. EVERHART, J.E.; GO, V.L. & JOHANNES, R.S. — A longitudinal survey of self-reported bowel habits in the United States. Dig. Dis. Sci., 34: 1153-62, 1989. 15. HIGGINS, P.D. et al. — Epidemiology of constipation in North America: A systematic review. Am. J. Gastroenterol., 99: 750, 2004 [PMID: 15089911]. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 16. JOHANSON, J.F. et al. — Effect of tegaserod on chronic constipation: A randomized, double-blind, controlled trial. Clin. Gastroenterol. Hep., 2: 796, 2004 [PMID 15354280]. 17. LEMBO, A. & CAMILLERI, M. — Chronic constipation. N. Engl. J. Med., 349: 1360-8, 2003. 18. LONGSTRETH, G.F.; THOMPSON, W.G. et al. — Functional bowel disorders. Gastroenterology, 130: 1480-91, 2006. 19. MC CALLUM, I.K. — Chronic constipation in adults. BMJ, 338: b 831, 2009. 10. MC KEAGE, K.; PLOSKER, G.L. & SIDDIGUI, M.A.A. — Lubiprostone. Drugs, 66(6): 873-9, 2006. Obs.: As sete referências restantes que compõem este artigo se encontram na Redação à disposição dos interessados. Endereço para correspondência: José Galvão-Alves Rua Real Grandeza, 108/Sala 123 — Botafogo 22281-034 Rio de Janeiro-RJ [email protected] 37 imagem em medicina interna Coordenação: Marta Carvalho Galvão Marta Carvalho Galvão Professora de Radiologia da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques — FTESM. Professora mestre responsável do Curso de Radiologia da UniFOA — Universidade da Fundação Osvaldo Aranha. Professora da UGF — Universidade Gama Filho. Radiologista do Hospital Federal da Lagoa, RJ. Lívia Lopes Pinheiro Maria Luíza Rodrigues Laguardia Residente (R2) de Radiologia do Hospital Federal da Lagoa, RJ. Introdução O câncer de pulmão é a causa mais comum de óbitos relacionados ao câncer em todo o mundo, e uma das principais causas de morte evitável. No Brasil, nos últimos 20 anos, a incidência do câncer de pulmão aumentou cerca de 130% nas mulheres e 55% nos homens. Geralmente é detectado em estágios avançados, e somente cerca de 20% dos casos têm critérios de operabilidade ao diagnóstico, mesmo nos países de primeiro mundo. Em 80% a 90% dos casos diagnosticados está associado ao tabagismo e também a outros fatores de risco, como exposição a agentes cancerígenos de origem ocupacional e ambiental, fumo passivo, asbestos e radiação no interior de minas, pacientes submetidos à radioterapia, pacientes com fibrose pulmonar idiopática, doenças do colágeno e pacientes com história familiar de câncer de pulmão. 38 Adenocarcinoma brônquico com atelectasia Os sintomas podem resultar da doença local, da extensão do tumor para as estruturas adjacentes, das metástases a distância (especialmente para ossos, fígado e cérebro), da secreção hormonal tumoral ou reação imunológica ou dos efeitos gerais inespecíficos (fadiga, anorexia e perda de peso). Na prática clínica, os carcinomas de pulmão são genericamente classificados em carcinomas de pequenas células e carcinomas de não pequenas células. Estes últimos compreendem principalmente o adenocarcinoma, o carcinoma de células escamosas e o carcinoma indiferenciado de grandes células. O adenocarcinoma é o tipo mais comum, tanto em fumantes e não fumantes quanto em pessoas com menos de 45 anos de idade. De crescimento lento, pode levar anos para evoluir de um tumor localizado para um câncer disseminado. Os sintomas se desenvolvem lentamente. Incluem tosse, dispneia, sibilos, dor torácica e expectoração sanguinolenta. Por vezes, podem se apresentar como pneumonia ou colapso pulmonar (caso apresentado). Os primeiros passos para se diagnosticar o adenocarcinoma são o exame clínico e a análise de uma amostra de escarro para bactérias, organismos infecciosos e células cancerígenas. Se o teste de escarro não fornecer um diagnóstico definitivo, torna-se necessário prosseguir a investigação, que pode incluir broncoscopia ou biopsia por agulha. A TC produz imagens que auxiliam no estadiamento da lesão, determinando suas características, sua localização, seu tamanho e seus componentes (gordura, calcificações), podendo ainda guiar biopsias com agulha fina, para avaliação histopatológica. À tomografia, o adenocarcinoma usualmente se apresenta como nódulo ou massa localizada na periferia do pulmão (50%); 15% se manifestam como massa hilar ou peri-hilar e 35% como uma combinação de massa parenquimatosa e linfonodomegalia hilar ou mediastinal. O adenocarcinoma e o adenocarcinoma subtipo misto (adenocarcinoma invasivo com componente de carcinoma bronquíolo-alveolar) frequentemente se manifestam como nódulos “semissólidos”, também chamados de parcialmente sólidos, ou nódulos com atenuação em vidro fosco “com área central densa/ sólida” (atenuação mista). Calcificações e necrose podem ser encontradas, sobretudo em carcinomas maiores que 3cm de diâmetro. No carcinoma de não pequenas células geralmente é encontrada linfonodomegalia hilar unilateral ou mediastinal, associada a nódulo ou massa pulmonar. O estadiamento final do câncer de pulmão inclui exames clínico (exames de imagem, testes laboratoriais e procedimentos como broncoscopia, mediastinoscopia, mediastinotomia, toracoscopia e toracotomia exploratória) e anatomopatológico. No entanto, é importante avaliar o tumor de modo não invasivo inicialmente, com o intuito de guiar a conduta. Para o cirurgião, é importante ter informações sobre a extensão do tumor, a existência de invasão e se o tumor é potencialmente ressecável ou irressecável. Os pacientes com carcinoma de pulmão de não pequenas células são avaliados de acordo com a classificação TNM, em que T refere-se ao tumor primário, N aos linfonodos regionais e M à presença de metástases a distância. O estadiamento é apresentado nos Quadros 1 e 2 (atualização em 2013). JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 QUADRO 1: Sistema de estadiamento TNM para câncer de pulmão (7a edição) Adenocarcinoma brônquico com atelectasia Tumor primário (T) T1 T1a T1b Tumor ≤ 3cm de diâmetro sem invasão proximal ao brônquio lobar T2 Tumor > 3cm e ≤ 7cm, ou tumor: Tumor ≤ 2cm de diâmetro Tumor > 2cm e ≤ 3cm de diâmetro a. com envolvimento do brônquio principal b. ≥ 2cm distal à carina c. invadindo a pleura visceral d. associado a atelectasia ou pneumonite obstrutiva que se estende à região hilar, mas não envolve todo o pulmão T2a Tumor > 3cm e ≤ 5cm T2b Tumor > 5cm e ≤ 7cm T3 Tumor > 7cm ou tumor: a. invasão direta: da parede torácica, diafragma, nervo frênico, pleural mediastinal, pericárdio parietal, brônquio principal < 2cm da carina (sem envolvimento da carina) b. atelectasia ou pneumonite obstrutiva de todo o pulmão c. nódulos tumorais no mesmo lobo T4 Tumor de qualquer tamanho que invada o mediastino, coração, grandes vasos, traqueia, nervo laríngeo recorrente, esôfago, corpo vertebral, carina, ou com nódulos tumorais em um lobo ipsilateral diferente Linfonodos regionais (N) N0 Sem metástases a gânglios regionais N1 Metástases em linfonodo ipsilateral peribrônquico e/ou linfonodos ipsilaterais e nódulos intrapulmonares, incluindo envolvimento por extensão direta N2 Metástases em linfonodos mediastinais ipsilaterais e/ou subcarinal N3 Metástases em linfonodos mediastinais contralaterais, hilar contralateral, escalênico ipsilateral ou contralateral ou supraclavicular Metástases a distância (M) M0 Sem metástases a distância M1 Metástases a distância M1a Nódulos pulmonares em lobo contralateral, tumor com nódulos pleurais ou derrame pleural ou pericárdico malignos M1b Metástases em órgãos extratorácico QUADRO 2: Estadiamento por grupos Estádio IA T1a-T1b N0 M0 Estádio IB T2a N0 M0 Estádio II A T1a, T1b, T2a N1 M0 T2b N0 M0 Estádio II B N1 M0 T3 N0 M0 Estádio III A T1a, T1b, T2a, T2b N2 M0 T3 N1, N2 M0 T4 N0, N1 M0 Estádio III B T4 N0, N1 M0 Qualquer T N3 M0 Estádio IV Qualquer T Qualquer N M1a ou M1b T2b Adaptado de Goldstraw, P.; Crowley, J. et al. — The IASLC Lung Cancer Staging Project: Proposals for the revision of the TNM stage groups in the forthcoming (seventh) edition of the TNM classification of malignant tumours. J. Thorac. Oncol., 2: 706, 2007. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 39 Adenocarcinoma brônquico com atelectasia Relato do caso Paciente do sexo masculino, branco, 75 anos de idade, natural do Rio de Janeiro. Hipertenso, diabético tipo 2, com queixa de dispneia aos mínimos esforços, associada a episódios de hemoptise e perda ponderal de aproximadamente 5kg em três meses. Foi encaminhado ao Hospital Federal da Lagoa, onde se realizou radiografia do tórax, que evidenciou atelectasia do lobo superior esquerdo. A avaliação foi complementada com tomografia computadorizada, que demonstrou tecido com densidade de partes moles obliterando o brônquio do lobo supe- rior esquerdo, ocasionando atelectasia completa deste lobo (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). Durante a internação realizou-se broncoscopia, que evidenciou árvore brônquica esquerda apresentando formação vegetante na porção do brônquio do lobo superior, com sua total obliteração. Houve acometimento também do brônquio do lobo inferior, com obstrução de 50% de sua luz. Os brônquios segmentares do lobo inferior não mostravam alterações canaliculares, e a mucosa era normal. Realizou-se biopsia na vegetação do brônquio do lobo superior esquerdo e foram colhidos lavado e aspirado brôn- quico, que foram encaminhados para exames histopatológico e citológico. O resultado da microscopia obtida foi adenocarcinoma moderadamente diferenciado e infiltrante, apresentando áreas de necrose. Com o diagnóstico de adenocarcinoma brônquico de pulmão, o paciente foi submetido à tomografia computadorizada de abdome e pelve, para estadiamento, que foi negativo para metástases. Achado de lesão cística na cauda e corpo do pancreático, compatível com pseudocisto. Em acompanhamento na Oncologia. Figura 1: Topograma. Observa-se redução volumétrica do pulmão esquerdo com opacidade que condiciona perda da silhueta mediastinal e atração das estruturas mediastinais ipsilateralmente — atelectasia do lobo superior esquerdo. Figura 3: Tomografia computadorizada do tórax — corte sagital. Nota-se colapso do lobo superior do pulmão esquerdo, com desvio anterior da grande cissura. Figura 5: TC (corte axial). Observa-se a obliteração brônquica por estrutura com densidade de partes moles no seu interior, condicionando atelectasia lobar. Obs.: As referências que compõem este artigo se encontram na Redação à disposição dos interessados. ↑ Endereço para correspondência: Figura 2: Tomografia computadorizada do tórax. Corte coronal no nível da amputação do brônquio do lobo superior esquerdo. Note o lobo superior esquerdo atelectasiado (denso). 40 Marta Galvão Santa Casa da Misericórdia do RJ — Enfermaria 18 Rua Santa Luzia, 206 — Centro 20030-041 Rio de Janeiro-RJ Figura 4: TC (corte axial). Redução volumétrica do LSE e presença de linfonodomegalia na janela aórticopulmonar. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Conduta atual Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Conduta atual endocrinologia Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Gilberto Perez Cardoso Professor titular do Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Cyro Teixeira da Silva Junior Professor associado do Departamento de Medicina Clínica da UFF. Doutor em Neuroimunologia pela UFF. Renato Bergallo Bezerra Cardoso Residente no Programa de Medicina da Família da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Resumo Summary Os estados hiperglicêmicos e hipoglicêmicos agudos são exemplos das mais comuns emergências médicas com que nos deparamos no campo das alterações do metabolismo. Os estados hiperglicêmicos agudos compreendem a cetoacidose diabética e o coma hiperosmolar hiperglicêmico não cetótico. Neste artigo, analisamos essas duas condições hiperglicêmicas, que representam um desafio para o clínico e o médico generalista que trabalham no terreno nas emergências médicas. The acute hypoglycemic and hyperglycemic situations are examples of the most common medical emergencies that we face in the field of metabolic disorders. The acute hyperglycemic situations include diabetic ketoacidosis and hyperosmolar hyperglycemic coma hyperosmolar nonketotic. In this article, we analyze these two hyperglycemic conditions that represent a challenge to the clinician and general practitioner working in the field in medical emergencies. Cetoacidose diabética da doença, tais como poliúria, polifagia, polidipsia e fadiga; nas crianças é muito comum que a condição seja precedida de náuseas, vômitos e dor abdominal. Na ausência de providências, a situação evolui para o coma diabético. Na dependência da concomitância de fatores ou doenças desencadeantes, podemos ter associação de sintomas e sinais a essas manifestações já citadas. A cetoacidose diabética pode ser conceituada como uma emergência médica caracterizada por hiperglicemia superior a 250mg/dl; acidose com pH sanguíneo inferior a 7,3; bicarbonato sérico inferior a 15mEq/l; e positividade do soro do paciente à pesquisa de cetonas. Pode ser a manifestação inicial do diabetes tipo 1, resultando de intercorrências ocorridas nesses pacientes, tais como infecção, trauma, cirurgia, estresse, ou se instalar em pacientes com diabetes tipo 2 submetidos a situações de extrema gravidade, tais como sepse. A taxa de mortalidade da condição gira em torno de 5%, mesmo nos bons centros de tratamento. Aspectos clínicos Geralmente, antes da instalação da cetoacidose diabética há manifestações clássicas JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Aspectos laboratoriais Os achados típicos da cetoacidose diabética são glicosúria elevada, hiperglicemia, cetonemia, pH arterial baixo e bicarbonato plasmático baixo. O potássio sérico quase sempre se encontra elevado e frequentemente ocorre leucocitose, não só porque tais quadros costumam ser desencadeados por infecções, mas também porque a cetonemia Unitermos: Hiperglicemia e hipoglicemia agudas; metabolismo; emergências médicas. Keywords: Acute hypoglycemic and hyperglycemic; metabolism; medical emergencies.. 41 Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Conduta atual se acompanha de leucocitose significativa, não raro com valores em torno de 25.000 células/microL. Fisiopatogenia Duas alterações são marcantes no curso fisiopatogênico do desenvolvimento da cetoacidose diabética: a hiperglicemia e a cetoacidemia. A hiperglicemia ocorre em decorrência da produção hepática exacerbada de glicose, tanto quanto da diminuição da captação periférica de glicose nos tecidos. A insulinopenia relativa ou absoluta que se instala, em associação à hiperglucagonemia, desencadeia gliconeogênese hepática, com aumento do fluxo hepático de glicose e hiperglicemia. A deficiência de insulina que se associa a níveis elevados de glucagon e hormônio do crescimento produz incremento de lipólise no tecido adiposo e cetogênese hepática. Surgem então, no plasma, os chamados “corpos cetônicos”, ácido acetoacético e a acetona, que, junto com o aumento da taxa plasmática do ácido beta-hidroxibutírico, também concorrem para o desenvolvimento da acidose metabólica vista nessa condição. Pontos-chave: > Duas alterações são marcantes no curso fisiopatogênico do desenvolvimento da cetoacidose diabética: a hiperglicemia e a cetoacidemia; > A hiperglicemia ocorre pela produção hepática exacerbada de glicose; > E também pela diminuição da captação periférica de glicose nos tecidos. 42 Tratamento Antes de se cogitar o tratamento é pertinente falar de prevenção, pois melhor seria evitar o desencadeamento de condições que pudessem levar à instalação da cetoacidose diabética. Atualmente, a monitorização constante dos pacientes diabéticos, pela medida frequente da glicemia capilar, é altamente recomendada. Todo paciente diabético deveria fazer uso frequente dessa monitorização, que é a melhor prevenção contra as descompensações. Também a monitorização da cetonemia deve ser frisada nos pacientes com maior instabilidade da doença, para maior controle. Entretanto, instalada a condição, o paciente deverá ser internado, de preferência numa unidade de tratamento intensivo, pois o correto tratamento não dispensa cuidados intensivos. Sempre é bom lembrar que a cetoacidose, mesmo quando tratada em centros de excelência, carrega expressiva taxa de mortalidade. As principais medidas a serem adotadas nesses casos são: Medidas gerais — De início deve ser garantida uma via de acesso venosa, de preferência por punção de jugular ou subclávia, com infusão de líquidos e retirada de sangue para realização de exames laboratoriais. Devem ser medidos glicemia, glicosúria, cetonemia, pH arterial, bicarbonato, ureia, eletrólitos, osmolalidade e hemograma, pelo menos. A osmolalidade plasmática pode ser estimada pelos valores do sódio, do potássio e da glicemia no momento. Nos pacientes comatosos deve-se instalar uma sonda vesical, o que deve ser evitado nos pacientes ainda lúcidos, para não haver risco de infecções urinárias posteriores. Nos pacientes comatosos deve-se passar sonda nasogástrica, e o balanço hídrico deve ser cuidadosamente anotado. Reposição de insulina, líquidos e eletrólitos — No tratamento da cetoacidose diabética costuma-se empregar inicialmente apenas insulina, e da modalidade insulina regular. Uma vez confirmado o diagnóstico, deve-se dar insulina imediatamente. A dose recomendada é de 0,1 unidade/kg estimado de peso corporal, como “bolo” intravenoso, e 0,1 unidade/kg estimado de peso, por hora, continuamente, por bomba de infusão ou por injeção intramuscular; para a maioria dos autores isso basta para cobrir a deficiência de insulina. Em termos fisiopatológicos tal conduta corrige a acidose, reduz o afluxo de ácidos graxos ao fígado, reduz a produção de corpos cetônicos, diminui a hiperosmolaridade e a hiperglicemia. Com isso, inibe-se a gliconeogênese e a glicogenólise e também a hiperaminoacidemia proveniente da liberação muscular periférica de ácidos aminados. Deve-se lembrar que se em uma hora após a injeção venosa de insulina em bolo a glicemia não cair pelo menos 10%, a dose “em bolo” deve ser repetida. Raramente se constata resistência insulínica de monta, com falta de queda de glicemia nesses procedimentos. Se isso acontecer, as doses de insulina devem ser dobradas. Na maioria dos pacientes, a deficiência de líquidos é de cerca de 4 a 5 litros. A reposição deve ser feita, inicialmente, por meio de soro fisiológico a 0,9%, a melhor escolha para reexpandir o volume vascular, que se encontra retraído. O uso de bicarbonato tem sido muito questionado, tendo em vista que pode se acompanhar de problemas indesejáveis, JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Conduta atual tais como desenvolvimento de hipocalemia, acidose liquórica e piora da hiperosmolaridade. Todavia, caso o pH plasmático fique abaixo de 7 ou a concentração de bicarbonato plasmático abaixo de 9mEq/L, devemos dissolver 44mEq (uma ampola de 50ml) de bicarbonato de sódio em 500ml de soro fisiológico e administrar ao paciente até que o pH atinja um nível de pelo menos 7,1. A partir deste momento, não se deve dar mais bicarbonato. Na primeira hora de tratamento costuma-se ministrar cerca de 1 litro de soro fisiológico, monitorizando-se o potássio. Se a glicemia estiver acima de 500mg/ dL, o soro a ser administrado é o de cloreto de sódio a 0,45% na primeira hora de tratamento. Quando a glicemia cai abaixo de 250mg/ dL, deve-se passar a utilizar solução de glicose a 5% venosa, no lugar do soro fisiológico, para manter a glicemia entre 200 e 300mg/ dL, enquanto o uso de insulina provoca a correção da hipercetonemia. Caso isso não seja feito, há risco de hipoglicemia, probabilidade aumentada de edema cerebral (em função do rápido decréscimo da glicemia) e risco de acidose lática (pois a falta de glicose determina continuidade de gliconeogênese hepática). Sabe-se que na cetoacidose diabética é grande a deficiência corporal de potássio. Apesar disso, a dosagem plasmática de potássio desses pacientes não revela níveis baixos, uma vez que a acidose que se desenvolve “expulsa” o potássio intracelular e dá uma ideia de normopotassemia, que não reflete a verdadeira situação do potássio no organismo. Por isso, uma vez iniciado o tratamento e com a melhora da hidratação e da acidose metabólica, o potássio “retorna” a seu sítio intracelular e suas concentrações plasmáticas tendem a cair. Tendo em vista tal fato, deve-se administrar potássio em doses de 20 a 30mEq/hora após duas a três horas do início do tratamento, ou mesmo desde o início, caso se constate que o potássio plasmático se encontra muito baixo. O eletrocardiograma feito seriadamente pode dar uma ideia mais aproximada da quantidade de potássio no organismo, uma vez que as concentrações plasmáticas não refletem o que está acontecendo, tendo em vista as explicações anteriores. Deve-se ter em mente que, mesmo após o sucesso do tratamento imediato da condição, passadas as 12 ou 24 horas iniciais, é indispensável que o paciente, caso possa ingerir JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 líquidos ou mesmo alimentos sólidos, receba generosa cota de potássio via alimentação, pois a deficiência de potássio desses doentes só costuma ser corrigida após cerca de cinco ou sete dias. A reposição de fosfato raramente é necessária no tratamento da cetoacidose diabética. Contudo, se estivermos diante de hipofosfatemia significativa (menos de 1mg/dL) podemos administrar potássio sob a forma de sal de fosfato de potássio. A questão do uso de antibióticos — Como frequentemente a cetoacidose diabética é desencadeada por infecções, e como muitas vezes alguns bons indicativos de infecção (leucocitose e febre) têm sua interpretação prejudicada na cetoacidose, é rotina que sempre sejam usados antibióticos no tratamento da cetoacidose diabética. Na cetoacidose há quase sempre leucocitose, devido à acidose e também à presença de corpos cetônicos. Por outro lado, nesse estado há descontrole do sistema termorregulador, o que faz com que a infecção coexista sem febre. Isso justifica o uso rotineiro de antibióticos no tratamento da cetoacidose. O ideal é individualizar o uso, em especial prescrevendo o antibiótico mais adequado para cada infecção, em caso de desconfiança do foco infeccioso. Não sendo isso possível, usar os de amplo espectro até que culturas definam a indicação mais precisa. O tratamento moderno da cetoacidose, sendo feito inclusive, preferentemente, em unidades de tratamento intensivo, melhorou muito o prognóstico. Mesmo assim, como já ressaltamos, a mortalidade continua expressiva. Infarto do miocárdio, infarto intestinal e insuficiência renal são condições que, se associadas, pioram sensivelmente o prognóstico. O edema cerebral já representou um problema mais sério quando se usavam altas doses de insulina no tratamento. Como frequentemente a cetoacidose diabética é desencadeada por infecções, e como muitas vezes alguns bons indicativos de infecção (leucocitose e febre) têm sua interpretação prejudicada na cetoacidose, é rotina que sempre sejam usados antibióticos no tratamento da cetoacidose diabética. Coma hiperosmolar hiperglicêmico não cetótico O coma hiperosmolar hiperglicêmico não cetótico é a outra complicação aguda do diabetes que leva à emergência. Caracteriza-se por hiperglicemia acima de 600mg/dL, osmolalidade plasmática superior a 310mOsm/ kg, ausência de acidose metabólica, pH 43 Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Conduta atual sanguíneo superior a 7,3 e bicarbonato sérico superior a 15mEq/l. Esse estado é caracterizado por hiperglicemia grave, sem cetose, com hiperosmolaridade e desidratação intensa. Costuma acometer pacientes com diabetes tipo 2, muitas vezes com diagnóstico ainda não feito, e ocorre mais comumente em doen tes de meia-idade e nos idosos. Os fatores precipitantes são infecção, infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico, uso de diuréticos, medicamentos e glicocorticoides. Com a deficiência relativa de insulina há menor aproveitamento de glicose no músculo, tecido adiposo e fígado, e aumento da liberação hepática de glicose e hiperglucagonemia. Há glicosúria maciça, desidratação, contração do volume plasmático e insuficiência renal pré-renal. Pontos-chave: > O coma hiperosmolar hiperglicêmico não cetótico é a outra complicação aguda do diabetes que leva à emergência; > É caracterizado por hiperglicemia grave, sem cetose, com hiperosmolaridade e desidratação intensa; > Costuma acometer pacientes com diabetes tipo 2, muitas vezes com diagnóstico ainda não feito, e ocorre mais comumente em doentes de meia-idade e nos idosos. 44 Clínica e achados laboratoriais Há fraqueza, poliúria, polidipsia e os sintomas se instalam insidiosamente. Talvez a falta de manifestações clínicas mais ostensivas nessa condição retarde o diagnóstico em bom número de casos e protele o início do tratamento. Quando o diagnóstico costuma ser feito, a desidratação já é intensa e o tratamento começa num estágio de maior comprometimento do que quando se costuma iniciar o tratamento da cetoacidose diabética. Desenvolve-se letargia, confusão e pode haver coma. Como não há acidose metabólica, não há a típica respiração de Kussmaul, presente na cetoacidose. Os valores de glicemia variam de 600mg/ dL até valores superiores a 2.000mg/dL, segundo diversos autores; o sódio plasmático costuma exceder 140mEq/L e a osmolalidade plasmática os 330-340mOsm/kg, em função da grave desidratação. Não se costuma detectar acidose metabólica nem corpos cetônicos; quando estes existem, têm grau muito leve. A ureia plasmática costuma elevar-se além de 100mg/dL, por mecanismo pré-renal. Os achados predominantes configuram grave desidratação, acompanhada de intensa hiperglicemia e hiperosmolalidade plasmática. Tratamento Líquidos, uso de insulina e eletrólitos — A reposição de líquidos é fundamental no tratamento desta condição. A deficiência de líquidos no organismo chega a atingir cerca de 5 a 8 litros. Se há grande hipovolemia, inicia-se a reposição com soro fisiológico a 0,9%; caso contrário, prefere-se solução hipotônica a 0,45%, para contrabalançar a hiperosmolalidade. A monitorização da evolução é indispensável para o controle da administração de líquidos e de sua velocidade de infusão. Atingida uma glicemia de 250mg%, usa-se solução glicosada a 5%. Mantém-se tal solução para impedir o edema cerebral e evitar hipoglicemia. Muitas vezes administram-se concomitantemente solução de glicose a 5% e soro fisiológico a 0,9%. Costuma-se requerer muito menos insulina para compensar a glicemia desses pacientes, ao contrário do que ocorre no tratamento da cetoacidose diabética. Por isso devem-se usar as mesmas doses intravenosas preconizadas inicialmente no tratamento da cetoacidose, mas tendo o cuidado de monitorizar o uso horário da insulina, que deve ser muito mais cuidadoso, pois muitos casos de estado hiperosmolar respondem apenas com a reidratação e com a primeira dose venosa de insulina. Não havendo, nesse caso, acidose, a deficiência de potássio é menos grave e também é menos generosa a reposição. Usar 10mEq/L sob a forma de cloreto de potássio para cada 500ml de líquidos infundidos. Monitorizar e dosar potássio para dar continuidade à reposição. Não é comum, no estado hiperosmolar, detectar-se hipofosfatemia. Entretanto, fosfatos podem ser administrados se a fosfatemia se encontrar abaixo de 1mg/dL. A mortalidade desses pacientes é cerca de 10 vezes maior do que a daqueles tratados de cetoacidose diabética, em função, talvez, de serem mais idosos e apresentarem outras doenças, que contribuem para um menor sucesso terapêutico. Hipoglicemia por tumores pancreáticos de células beta Essa condição deve ser suspeitada num indivíduo adulto, bem nutrido e que começa a desenvolver episódios hipoglicêmicos em jejum. A causa é, em geral, um adenoma de células pancreáticas beta, e em 90% dos casos é um tumor benigno. Às vezes, o adenoma pode compor uma síndrome genética do tipo neoplasia endócrina múltipla, caso em que encontraremos também adenomas nas paratireoides e na hipófise (MEN tipo 1). JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Estados hiper e hipoglicêmicos agudos Conduta atual Episódios frequentes de hipoglicemia e ocorrendo a intervalos cada vez menores, com sudorese, tremores e taquicardia, fazem pensar em tumor de células beta do pâncreas, ou insulinoma; muitas vezes o paciente vai se tornando obeso e, não raro, tem diagnósticos neuropsiquiátricos imprecisos, tais como psicose ou mesmo crises epilépticas. O que se supunha ser uma enfermidade psiquiátrica revela-se uma doença metabólica, não raras vezes. As taxas glicêmicas podem cair a 40mg%, e tais pacientes relatam episódios de hipoglicemia e imediata recuperação após injeção de glicose hipertônica na veia. Tais episódios costumam aparecer em jejum, pela manhã, mas também podem se manifestar quando uma refeição não é tomada. Há visão turva, diplopia, cefaleias, fraqueza e sensação de dissociação da personalidade. Demonstra-se, nas crises, glicemia abaixo de 40mg% e, caso se consiga dosar, a insulina plasmática atinge níveis superiores a 8microU/ mL nessas ocasiões. Na investigação usam-se testes diagnósticos — que não detalharemos aqui, por não cumprirem nosso objetivo neste trabalho. O tratamento do insulinoma é cirúrgico, devendo ser precedido de exames que localizem o tumor. O sucesso é de cerca de 90% a 95% dos casos. Para prevenir episódios de hipoglicemia até a cirurgia usa-se diazóxido, 300 a 400mg/dia, por via oral, que age inibindo a liberação pancreática de insulina. Para combater o edema e a hipercalemia secundários ao uso do diazóxido, utiliza-se hidroclorotiazida, 25 a 50mg/dia. Para os pacientes que não respondem ao tratamento cirúrgico recomenda-se alimentação frequente, com carboidratos de digestão lenta a cada duas ou três horas, para evitar a hipoglicemia. Nas emergências pode-se usar glucagon por via intravenosa. Na maioria dos casos há bom prognóstico, com completa recuperação. Referências 16. SERVICE, F.J. — Hypoglycemia. Med. Clin. North Am., 79: 1, 1995. 17. AMERICAN DIABETES ASSOCIATION — Hyperglicemic crisis in patients with diabetes mellitus. Diabetes Care, 24: 154, 2001. 18. YAN, S.H.; SHEU, W.H. et al. — The occurrence of diabetic ketoacidosis in adults. Intern. Med., 39: 10, 2000. 19. CORNBLATH, M. & ICHORD, R. — Hypoglycemia in the neonate. Semin. Perinatol., 24: 136, 2000. 10.VAN DER WAL, B.C.; DE KRIJGER, R.R. et al. — Adult hyperinsulinemic hypoglycemia not caused by an insulinoma: A report of two cases. Virchows Arch., 436: 481, 2000. 11. GENUTH, S.M. — Diabetic ketoacidosis and hyperglycemic, hyperosmolar coma. Curr. Ther. Endocrinol. Metab., 6: 438, 1997. 12. OKUDA, Y. et al. — Counterproductive effects of sodium bicarbonate in diabetic ketoacidosis. J. Clin. Endocrinol. Metab., 81: 314, 1996. 13. LORBER, D. — Nonketotic hypertonicity in diabetes mellitus. Med. Clin. North Am., 79: 39, 1995. 14. BOUKHMAN, M.P. et al. — Insulinoma. Experience from 1950-1995. West J. Med., 68: 48, 1998. 15. BRUN, J.F. et al. — Evaluation of a standardized hyperglucidic breakfast test in postprandial reactive hypoglycemia. Diabetologia, 38: 494, 1995. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Hipoglicemia reativa Em pacientes que sofreram gastrectomia é comum depararmo-nos com hipoglicemias, em função do hiperinsulinismo que resulta do rápido esvaziamento gástrico nesses casos. Os sintomas resultam da hiperatividade adrenérgica em resposta à hipoglicemia. O tratamento consiste em alimentação mais frequente, com porções menores, à base de carboidratos de assimilação e digestão mais lenta e lipídios e protídios de mais lenta digestão. Algumas pessoas, após alimentação rica em carboidratos de rápida digestão, se queixam de fadiga, ansiedade, tremores, fome e cefaleia. A conduta consiste em aumentar a frequência da alimentação e diminuir as quantidades, eliminando a ingestão de carboidratos de digestão rápida. A condição é benigna, e corresponde a uma situação própria da constituição individual. Episódios frequentes de hipoglicemia e ocorrendo a intervalos cada vez menores, com sudorese, tremores e taquicardia, fazem pensar em tumor de células beta do pâncreas, ou insulinoma; muitas vezes o paciente vai se tornando obeso e, não raro, tem diagnósticos neuropsiquiátricos imprecisos, tais como psicose ou mesmo crises epilépticas. O que se supunha ser uma enfermidade psiquiátrica revela-se uma doença metabólica, não raras vezes. Hipoglicemia relacionada ao etanol No jejum prolongado as reservas de glicogênio são depletadas em aproximadamente 18 a 24 horas e a liberação hepática de glicose (que mantém a glicemia estável no organismo) torna-se totalmente dependente da gliconeo gênese. Nessa situação, pequenas concentrações plasmáticas de etanol bloqueiam a gliconeogênese e induzem hipoglicemia. Por isso, quem usa bebidas alcoólicas deveria sempre se alimentar concomitantemente. O tratamento da hipoglicemia desses estados consiste na administração de glicose, para refazer os estoques de glicogênio hepático. Com isso, e à medida que o etanol é metabolizado e eliminado do organismo, o paciente se recupera. Endereço para correspondência: Gilberto Perez Cardoso Hospital Universitário Antônio Pedro Rua Marquês do Paraná, 303 — Centro 24037-900 Niterói-RJ [email protected] 45 Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso reumatologia Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso Fábio Freire José Especialista em Reumatologia pela Unifesp-EPM. Docente de Reumatologia do Curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo. Resumo Summary A osteoartrite (OA) é a causa mais frequente de doença crônica musculoesquelética, sendo sem dúvida a maior causa de limitação das atividades diárias entre os idosos. Atualmente, cerca de 40% dos adultos com idade superior a 70 anos sofrem de OA do joelho; destes, 80% apresentam limitações de movimento e em 25% as atividades diárias estão comprometidas. Nas últimas décadas têm ocorrido avanços na terapêutica da osteoartrite. Osteoarthritis (OA) is the most common cause of chronic musculoskeletal disease and the most prevalent reason for the limitation of daily activities of the elderly population. Currently, about 40% of adults aged over 70 suffer from OA of the knee. Of these, 80% suffer from limitations in motion and 25% are engaged to carry out their daily activities. In recent decades there have been advances in the treatment of osteoarthritis. Introdução Osso subcondral A osteoartrite (OA) é a mais frequente causa de doença crônica musculoesquelética, sendo sem dúvida, a maior causadora de limitação das atividades diárias na população de idosos. Neste momento, pelo menos 27 milhões de pessoas estão sendo atingidas pela osteoartrite nos EUA, representando um custo anual de aproximadamente 60 bilhões de dólares. Atualmente, cerca de 40% dos adultos com idade superior a 70 anos sofrem de OA do joelho. Destes, 80% apresentam limitações de movimento e em 25% a realização das atividades diárias está comprometida. Um crescente corpo de evidências mostra que o osso subcondral está ativamente envolvido na patogênese da OA através de vários mecanismos possíveis, incluindo: defeito em seu papel de “amortecedor”; função anormal do osteócito; e aumento da produção de citocinas e metaloproteinases (MMPs). Estes eventos ao nível do osso subcondral são claramente demonstrados por ressonância magnética (MRI) de alta resolução das articulações. Áreas brilhantes do osso subcondral na RM, comumente observadas em OA precoce e estabelecida e em indivíduos com dores nas articulações, provavelmente correspondem a áreas de lesões de edema da medula óssea (EMO), ocorrendo de forma idiopática ou em resposta ao trauma ósseo. Fisiopatologia Embora a cartilagem articular tenha recebido grande atenção nesta doença, há pouca evidência sugerindo que a perda de cartilagem articular contribui diretamente para a dor, pois essa estrutura é aneural. Em contraste, o osso subcondral, o periósteo, a membrana sinovial e a cápsula articular são ricamente inervados e contêm terminações nervosas que poderiam ser a fonte de estímulos nociceptivos na OA. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Unitermos: Osteoartrite; osteoartrose; anti-inflamatórios não hormonais; sulfato de glucosamina; sulfato de condroitina. Keywords: Osteoarthritis; osteoarthrosis; nonsteroidal anti-inflammatory; glucosamine sulphate; chondroitin sulphate. Quadro clínico Na feitura do diagnóstico de OA deve-se considerar, utilizando os critérios do American College of Rheumatology (ACR) para fins de diagnóstico e classificação, a OA do quadril, joelho e mãos em pacientes com dor 47 Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso nessas articulações. Os critérios clínicos e radiográficos do ACR para a classificação da OA do joelho apresentam sensibilidade de 91% e especificidade de 86% e incluem dor no joelho, osteófitos em radiografias do joelho e pelo menos uma das seguintes características: idade superior a 50 anos, rigidez que dura menos de 30 minutos e crepitação. Existe uma grande dissociação clínico-radiológica na OA. Muitos indivíduos apresentam alterações radiológicas sem a presença de qualquer manifestação clínica. Por outro lado, alguns apresentam quadro clínico compatível com OA, sendo as alterações radiológicas pouco significativas. Assim, o diagnóstico e a conduta da OA do joelho assintomática são comuns, especialmente entre os pacientes mais idosos com o joelho contralateral com OA radiográfica sintomática e naqueles com OA de quadril. Tratamento Pontos-chave: > Os recursos farmacológicos disponíveis para o tratamento da OA podem ser de uso sistêmico, tópico ou intra-articular; > As medicações modificadoras dos sintomas e/ou da evolução da doença caracterizam um novo conceito na terapêutica da OA; > A medicação de primeira escolha para o controle da dor é o paracetamol. 48 Os objetivos da abordagem da OA são, em linhas gerais: 1. educação do paciente sobre a doença e seu controle; 2. controle da dor; 3. melhora da função e diminuição da deficiência; e 4. alteração do processo de doença e suas consequências. Os planos de tratamento nunca devem ser rigidamente definidos de acordo com a aparência radiográfica da articulação, mas devem manter-se flexíveis, de modo que possam ser alterados de acordo com as respostas funcionais e sintomáticas obtidas. Em 2000, o ACR publicou consensos de especialistas que orientam sobre a abordagem da OA de quadril e joelho. Na literatura mundial são bastante valorizadas as recomendações da OA Research Society International (OARSI) e da Liga Europeia Contra o Reumatismo (EULAR), que devem ser utilizadas preferencialmente. A OARSI publicou importante documento, recentemente atualizado, com as principais recomendações sobre a OA de joelho e quadril (ver Tabela). Seguindo a mesma linha, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE), do Reino Unido, publicou destacado documento, sobre o qual falaremos mais adiante. O NICE lista suas recomendações (ver Quadro) como recomendações centrais e demais recomendações, que se seguem em ordem de importância. Medidas não farmacológicas Esse conjunto de estratégias constitui a primeira linha no tratamento, sendo de fundamental importância tanto quanto a analgesia, a recuperação e/ou manutenção do estado funcional e a readaptação funcional. Deve-se destacar que essas medidas apresentam baixo custo e pequeno potencial de complicações, o que é fator relevante em nosso meio. Educação do paciente, perda de peso e fisioterapia têm papel fundamental no tratamento da OA. Tratamento medicamentoso Os recursos farmacológicos disponíveis para o tratamento da OA podem ser de uso sistêmico, tópico ou intra-articular. As medicações disponíveis podem ser divididas em analgésicas e/ou anti-inflamatórias e drogas modificadoras dos sintomas e/ou da evolução da doença. Essas últimas caracterizam um novo conceito na terapêutica da OA, a exemplo do que ocorre na artrite reumatoide, apresentando um início de ação lento (pelo menos duas semanas), que se sustenta por período variável após a interrupção das mesmas, em associação com a possibilidade de interferência na estrutura do processo de destruição da cartilagem, retardando o mesmo. A medicação de primeira escolha para o controle da dor é o paracetamol, na dose de até 4g/dia. A introdução de um anti-inflamatório não hormonal (AINH) deve ser precedida de cuidadosa avaliação do risco de toxicidade gastrointestinal e renal. Uma alternativa interessante para os pacientes com restrições ao uso sistêmico de AINHs é a prescrição de analgésicos (capsaicina) ou anti-inflamatórios tópicos. O uso de AINHs tópicos também se mostrou eficaz, contudo, pouco se conhece sobre o efeito sistêmico por essa via, embora se saiba que não é negligível, bem como não existe comparação entre as várias formulações. Há evidências de que os pacientes são 2,5 vezes mais propensos a preferir os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) do que o paracetamol. O comitê do NICE recomenda o uso do misoprostol ou de inibidores da bomba de prótons (IBPs) na presença de alto risco e apoia a declaração do European Medicines Group de que “a avaliação dos COX-2 seletivos é contraindicada em portadores de doença isquêmica cardíaca JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso TABELA: Recomendações para o tratamento da osteoartrite de acordo com a OARSI Proposição Nível de evidência* Nível de consenso (%) O acetaminofeno (até 4g/d) pode ser um analgésico eficaz inicial oral para o tratamento da dor leve a moderada em pacientes com OA de joelho ou quadril. Na ausência de resposta adequada, ou na presença de dor ou inflamação, a terapia farmacológica alternativa deve ser considerada com base na relativa eficácia e segurança, bem como medicamentos concomitantes e comorbidades Ia (joelho) IV (quadril) 77 Em pacientes sintomáticos ou com OA de quadril ou joelho, os AINEs devem ser usados na menor dose eficaz, mas sua utilização em longo prazo deve ser evitada, se possível. Em pacientes com risco gastrointestinal aumentado pode ser considerado um agente de COX-2 seletivo ou um AINH não seletivo, com prescrição simultânea de um inibidor de bomba de próton ou misoprostol para gastroproteção, mas os AINEs, incluindo os não seletivos de COX-2 e agentes seletivos, devem ser usados com precaução em pacientes com fatores de risco cardiovascular Ia (joelho) Ia (quadril) 100 AINHs tópicos e capsaicina podem ser eficazes como adjuvantes e alternativas para analgésicos/anti-inflamatórios orais em OA de joelho a (AINH) Ia (capsaicina) 100 Injeções intra-articulares com corticosteroides podem ser utilizadas no tratamento Ib (quadril) da OA de quadril ou joelho e devem ser consideradas particularmente quando Ia (joelho) os pacientes têm dor moderada a grave que não responde satisfatoriamente aos analgésicos/anti-inflamatórios orais e em pacientes com OA sintomática de joelho com derrames ou outros sinais físicos de inflamação local 69 Injeções de hialuronato intra-articular podem ser úteis em pacientes com OA de joelho ou quadril. São caracterizadas pelo início atrasado, mas a duração prolongada do benefício sintomático, quando comparadas com injeções intra-articulares de corticosteroides 85 Ia (joelho) Ia (quadril) O tratamento com glucosamina e/ou sulfato de condroitina pode fornecer Ia (glucosamina) 92 benefício sintomático em pacientes com OA de joelho. Se nenhuma resposta Ia (condroitina) for evidente dentro de seis meses, o tratamento deve ser interrompido Em pacientes com OA sintomática de joelho, o sulfato de glucosamina e o Ib (joelho) 69 sulfato de condroitina podem apresentar efeitos modificadores da estrutura, Ib (quadril) enquanto a diacereína pode modificar os efeitos em pacientes com OA sintomática de quadril Osteotomia e procedimentos cirúrgicos de preservação devem ser considerados IIb 100 em adultos jovens com OA de quadril sintomática, especialmente na presença de displasia. Aos pacientes jovens e fisicamente ativos com sintomas significativos de OA unicompartimental, a osteotomia alta da tíbia pode oferecer uma alternativa, que posterga a necessidade de substituição da articulação em cerca de 10 anos O papel da lavagem articular e do desbridamento artroscópico na OA de joelho Ib (lavagem) 100 é controverso. Embora alguns estudos tenham demonstrado alívio dos sintomas Ib (desbridamento) em curto prazo, outros sugerem que a melhora dos sintomas pode ser atribuível a um efeito placebo Em pacientes com OA de joelho a artrodese pode ser considerada um IV 100 procedimento de resgate em caso de falha da recolocação comum Adaptado de Zhang, W.; Moskovitz, R. et al. — OARSI recommendations for the management of hip and knee osteoarthritis. Part II. OARSI evidence-based, expert consensus guidelines. Osteoarthritis Cartilage, 16(2): 137-62, 2008 (com permissão). * http://www.mdconsult.com/das/article/body/408787479-12/jorg=clinics&source=&sp=21588392&sid=0/N/679955/1. html?issn=0025-7125&issue_id=22960#tblfn1. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 49 Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso QUADRO: Abordagem holística da AO de acordo com o NICE Sulfato de glucosamina e sulfato de condroitina Educação, conselhos, exercícios de fortalecimento, treinamento aeróbico, perda de peso e obesidade e sobrepeso Paracetamol, AINEs tópicos Opioides, capsaicina, corticoides injetáveis, AINEs orais, incluindo inibidores de COX-2 TENS, palmilhas, órteses Artroplastia Paracetamol, AINEs tópicos Opioides, capsaicina, corticoides injetáveis, AINEs orais, incluindo inibidores de COX-2 Começando pelo centro e trabalhando para fora, os tratamentos estão dispostos na ordem em que devem ser considerados para pessoas com osteoartrite, já que as necessidades individuais, fatores de risco e as preferências vão modular esta abordagem. De acordo com as recomendações do guia, os tratamentos básicos, que estão no círculo central, devem ser considerados nos portadores de osteoartrite. Alguns deles podem não ser pertinentes, dependendo da pessoa. Quando o tratamento é mais necessário, deve-se considerar o segundo anel, que contém opções farmacêuticas relativamente seguras. Novamente, eles devem ser considerados à luz das necessidades individuais da pessoa e das preferências. O terceiro círculo (exterior) oferece tratamentos adjuvantes. Esses tratamentos são assim considerados por reunirem pelo menos um dos seguintes critérios: eficácia bem menos comprovada, alívio de sintomas ou aumento de algum grau de risco para o paciente. O círculo externo é dividido em quatro grupos: opções de produtos farmacêuticos, técnicas de autogestão, cirurgia e outros tratamentos não farmacêuticos. Pontos-chave: > Todos os inibidores dos AINHs/COX-2 orais apresentam efeito analgésico de magnitude semelhante; > Variam em hepatotoxicidade, efeitos colaterais gastrointestinais e toxicidade cardiorrenal; > Cuidados devem ser tomados na escolha do agente e da dose. 50 Adaptada de: NICE clinical guideline 59. London, Royal College of Physicians, 2008. ou derrame”. Segue-se o resumo das principais recomendações do NICE com relação à terapia medicamentosa: — Caso o paracetamol ou o AINH tópicos sejam ineficazes no alívio da dor em pessoas com OA, deve-se considerar, em seguida, a substituição por AINH tradicional/COX-2. — Quando o paracetamol ou medicação tópica fornecer alívio de dor insuficiente a portadores de OA, deve-se considerar a adição de um inibidor oral AINH/COX-2 ao paracetamol. — Os AINEs e os inibidores da COX-2 devem ser utilizados na menor dose eficaz e no menor tempo possível. — Os profissionais de saúde devem levar em conta os fatores de risco de cada paciente, incluindo a idade. Ao prescreverem estas drogas devem considerar uma avaliação adequada e/ou acompanhamento contínuo desses fatores de risco. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso Existem diferenças entre os anti-inflamatórios? Todos os inibidores dos AINHs/COX-2 orais apresentam efeito analgésico de magnitude semelhante, mas variam em hepatotoxicidade, efeitos colaterais gastrointestinais e toxicidade cardiorrenal. Portanto, cuidados devem ser tomados na escolha do agente e da dose. Vejamos, por exemplo, o caso do meloxicam, que é um agente seletivo para COX-2. Singh et al. compilaram informações de 28 ensaios publicados e não publicados, incluindo 24.196 pacientes, para avaliar o perfil de segurança do meloxicam. Na dose de 7,5mg o meloxicam apresentou menos efeitos colaterais gastrointestinais e eventos tromboembólicos. Ensaios clínicos randomizados demonstram sua eficácia e tolerabilidade na OA e na artrite reumatoide. O perfil do meloxicam e dos demais COX-2 seletivos para OA e artrite reumatoide foi avaliado em revisão sistemática, que demonstrou segurança gastrointestinal e perfil econômico favorável em relação aos fármacos da classe dos coxibes. Opioides Nos casos de má resposta terapêutica aos medicamentos anteriores, ou, ainda, quando houver contraindicação ao uso de inibidores específicos da COX-2 ou aos anti-inflamatórios não seletivos, pode-se associar os opioides naturais ou sintéticos. Há autores que defendem a utilização dos opioides em pacientes com contraindicação para cirurgia. Nos pacientes em uso de anti-inflamatórios e que apresentem reagudização da dor podem ser utilizados opioides como o tramadol. Agentes condroprotetores Nos últimos anos tem sido proposto o uso de algumas drogas que teriam um efeito modificador da evolução da doença, seja promovendo diminuição da degradação e/ou aumento da produção da matriz cartilaginosa. Essa possibilidade foi aventada devido ao fato de que esses preparados não têm efeito analgésico imediato, o qual pode demorar várias semanas, ao passo que, quando a medicação é suspensa, seu efeito também leva algum tempo para desaparecer. Embora em 2005 uma meta-análise envolvendo a glucosamina tenha revelado vantagem significativa desta sobre o placebo no JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 alívio da dor e na melhora funcional, novas análises indicando que não houve diferença significativa nos ensaios com ocultação adequada (blinding) põem em dúvida a eficácia do sulfato de glucosamina. O maior estudo randomizado controlado com placebo não observou diferença significativa na proporção de pacientes com pelo menos uma diminuição de 20% na dor com glucosamina HCl, sulfato de condroitina ou a combinação de cloridrato de glucosamina e sulfato de condroitina, após 24 semanas de tratamento. Os efeitos adversos desses suplementos são mínimos e não foram significativamente mais ou menos frequentes do que em indivíduos do estudo que receberam celecoxibe ou placebo. São necessários novos estudos sobre a possibilidade de que esses agentes afetem a progressão radiográfica da OA. Os resultados desse estudo podem diferir dos reais por não ter sido utilizada a mesma formulação de glucosamina — no caso sulfato de glucosamina em vez de cloridrato — que os demais ensaios clínicos utilizaram. Como vimos, conforme recomendação da OARSI, a utilização de sulfato de glucosamina e condroitina deve se estender por seis meses antes de ser considerada ineficaz. No tratamento da osteoartrite, a viscossuplementação é indicada para a recuperação das propriedades reológicas do líquido sinovial, analgesia, melhora da função e para a tentativa de regeneração da cartilagem articular. Viscossuplementação (VS) No tratamento da osteoartrite, a viscossuplementação é indicada para a recupera ção das propriedades reológicas do líquido sinovial, analgesia, melhora da função e para a tentativa de regeneração da cartilagem articular. A viscossuplementação se faz através da injeção de ácido hialurônico exógeno nas articulações diartrodiais. Polissacarídeo de alta viscosidade, o ácido hialurônico é naturalmente produzido pelas células B da membrana sinovial, sendo também denominado hialuronato de sódio, ou hialuronano. O ácido hialurônico pode ter origem animal, produzido a partir de matéria-prima da crista do galo e com potencial alergogênico; e origem bacteriana, ou fermentado, obtido a partir de Streptococcus, por biofermentação, com menor potencial alergogênico. Estudo comparativo entre o ácido hialurônico de origem animal (Hylan GF 20) e o de origem bacteriana por fermentação mostrou potencial de efeitos adversos locais com Hylan, especialmente a partir do segundo ciclo. 51 Osteoartrite Fisiopatologia e tratamento medicamentoso Os ácidos hialurônicos são classificados em dois tipos, assim descritos: 1. Hialuronanos: Cadeias de moléculas longas com peso molecular entre 0,5 e 1,3 x 106 daltons. 2. Hilano: Molécula de hialuronano quimicamente modificada através de ligações cruzadas, com uma fase líquida de maior peso molecular (cerca de 6 x 106 daltons), pela união de fitas longas de hialuronano por pontes cruzadas (cross-links), e uma porção sólida (peso molecular infinito), formada pela presença ainda maior de pontes. Estudos baseados em evidências apontam para o fato de que o peso molecular entre 0,6 e 1,0 x 106 daltons estimularia melhor a produção de componentes da matriz. O peso molecular menor penetra de forma fisiológica na matriz extracelular, ampliando sua concentração e facilitando a interação com as células-alvo da sinóvia. Os bons resultados clínicos têm mostrado a eficácia do ácido hialurônico no alívio da dor e na melhora da rigidez articular, sendo seu uso intra-articular indicado para o tratamento da osteoartrite do joelho graus II e III, tanto na fase aguda quanto crônica. Apesar de a maior parte dos trabalhos científicos relatarem eficácia dos resultados da viscossuplementação na articulação dos joelhos, qualquer articulação osteoartrítica pode ser infiltrada, incluindo quadris, ombros, tornozelos, cotovelos, mãos e pés. Referências Endereço para correspondência: Fábio Freire José Rua Borges Lagoa, 908/ Ap. 113 04038-002 — São Paulo-SP [email protected] 52 11. LAWRENCE, R.C. et al. — Estimates of the prevalence of arthritis and selected musculoskeletal disorders in the United States. Arthritis Rheum., 41(5): 778-99, 1998. 12. FELSON, D.T. — An update on the pathogenesis and epidemiology of osteoarthritis. Radiol. Clin. North Am., 42(1): 1-9, 2004. 13.HUNTER, D.J. & FELSON, D.T. — Osteoarthritis. BMJ, 332(7542): 639-42, 2006. 14.WITONSKI, D.; WAGROWSKA-DANILEWICZ, M. & RACZYNSKA-WITONSKA, G. — Distribution of substance P nerve fibers in osteoarthritis knee joint. Pol. J. Pathol., 56(4): 203-6, 2005. 15. HUNTER, D.J. & LO, G.H. — The management of osteoarthritis: An overview and call to appropriate conservative treatment. Med. Clin. North Am., 93(1): 127-43, 2009. 16. HANNAN, M.T.; FELSON, D.T. & PINCUS, T. — Analysis of the discordance between radiographic changes and knee pain in osteoarthritis of the knee. J. Rheumatol., 27(6): 1513-7, 2000. A viscossuplementação tem apresentado eficácia superior à da injeção intra-articular com corticosteroides, principalmente a partir da quinta semana. Este resultado não se revela nas primeiras quatro semanas do tratamento, certamente influenciadas pela ação rápida e potente dos corticosteroides na atividade inflamatória da articulação. Contudo, a partir da quinta semana, os benefícios da infiltração com corticosteroides perdem a relevância, mostrando uma diferença significativamente importante em favor da viscossuplementação, com resultados eficazes de seis meses a dois anos. A terapia combinada com infiltração de corticosteroides e ácido hialurônico melhora os resultados iniciais da viscossuplementação. A terapia combinada (ácido hialurônico e corticoide), de acordo com os estudos, produziu redução maior e mais rápida da intensidade da dor do que o ácido hialurônico isoladamente. Outro aspecto a destacar é a redução do uso de medicações de resgate, como AINEs e corticoterapia, após o início do tratamento com ácido hialurônico intra-articular. A viscossuplementação também oferece equilibrada relação custo-efetividade, adiando a cirurgia de prótese total do joelho. A VS é realizada ambulatorialmente, e o regime de aplicação está bem estabelecido apenas em relação aos joelhos. Nos joelhos, o hylan G-F 20 permite aplicação única de 6ml. Os hialuronanos, como o hialuronato de sódio, apresentam meia-vida intra-articular de 13 horas. Sua aplicação é semanal (três a cinco semanas), e os melhores resultados encontrados na literatura referem-se a trabalhos que utilizaram o regime de uma aplicação semanal, durante cinco semanas. 17. AMERICAN COLLEGE OF RHEUMATOLOGY SUBCOMMITTEE ON OSTEOARTHRITIS GUIDELINES — Recommendations for the medical management of osteoarthritis of the hip and knee: 2000 update. Arthritis Rheum., 43(9): 1905-15, 2000. 18. JORDAN, K.M. et al. — EULAR recommendations 2003: An evidence based approach to the management of knee osteoarthritis: Report of a Task Force of the Standing Committee for International Clinical Studies Including Therapeutic Trials (ESCISIT). Ann. Rheum. Dis., 62(12): 1145-55, 2003. 19. ZHANG, W. et al. — OARSI recommendations for the management of hip and knee osteoarthritis. Part II: OARSI evidence-based, expert consensus guidelines. Osteoarthritis Cartilage, 16(2): 137-62, 2008. 10. CLEGG, T.E. et al. — Viscosupplementation with hyaluronic acid in the treatment for cartilage lesions: A review of current evidence and future directions. Eur. J. Orthop. Surg. Traumatol., 23: 119-24, 2013. Obs.: As 11 referências restantes que compõem este artigo se encontram na Redação à disposição dos interessados. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 atualidades médicas Ressonância magnética funcional na avaliação objetiva da dor NEJM A dor, em suas diferentes formas de apresentação, é um dos principais sintomas referidos pelos pacientes, com importante impacto cognitivo, social e econômico. É um dado subjetivo, que depende da interação de componentes físicos, sensoriais e afetivos, variando amplamente de um indivíduo para outro e entre diferentes culturas. Portanto, sua quantificação precisa, com base em dados clínicos, não é possível. A melhor compreensão dos mecanismos neurofisiológicos envolvidos nos diferentes tipos de dor pode ser um caminho para a busca de tratamentos específicos. Assim, Wager e colaboradores buscaram correlacionar a existência de áreas encefálicas com maior ou menor atividade com a existência de dor de aspecto físico, emocional e com o controle da dor por efeito de analgesia farmacológica (“An fMRI-Based Neurologic Signature of Physical Pain”. NEJM 2013; 368:1388-97). Para tal, submeteram cerca de 120 voluntários saudáveis à avaliação por ressonância magnética funcional (RMf) — método que permite a análise do fluxo sanguíneo cerebral visando à identificação de áreas onde há maior atividade, ou seja, maior ativação neuronal. O método foi capaz de identificar padrões específicos de dor (física vs. emocional), além de documentar a diminuição da atividade neuronal em áreas específicas, após analgesia com o fármaco remifentanila. Tais achados levaram os autores a concluir que, se estendidos à prática, esses padrões de atividade encefálica podem vir a ser úteis, por exemplo, em pacientes incapazes de se expressar adequadamente sobre o caráter da dor (extremos da vida, distúrbios cognitivos, alteração do nível de consciência) ou naqueles nos quais há dúvida sobre a real intensidade de um quadro álgico. Além disso, permitiriam identificar distúrbios funcionais neuropatológicos que podem servir de base para a dor neuropática crôJBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 nica e, em última análise, auxiliar na identificação de possíveis alvos para terapêuticas futuras. A interpretação de tais achados exige cautela, e sua aplicabilidade clínica requer confirmação científica. Entretanto, constituem um exemplo de como os avanços obtidos com a neuroimagem funcional poderão auxiliar o médico na avaliação de sintomas até então considerados invioláveis, como a dor somática e emocional. Perspectivas futuras no tratamento da hepatite C crônica: Micro-RNAs NEJM A hepatite crônica por vírus C (HCV) é um importante problema de saúde, com cerca de 170 milhões de infectados ao redor do mundo. Constitui a principal causa de cirrose hepática, é importante fator de risco de carcinoma hepatocelular e lidera a lista de indicações ao transplante hepático. Apesar do recente avanço alcançado com a introdução dos inibidores de protease, o tratamento atual ainda não é o ideal — ocorrência frequente de eventos adversos e eficácia limitada. Assim, permanece a busca incessante por novos esquemas que confiram melhor prognóstico aos portadores de HCV. Em artigo publicado no periódico The New England Journal of Medicine, Janssen e colaboradores descrevem o resultado de um estudo multicêntrico, patrocinado por indústria farmacêutica, duplo-cego, controlado por placebo, em fase 2, que buscou avaliar a eficácia e a segurança do miravirsen, droga que atua bloqueando o micro-RNA hepático miR-122, estrutura necessária à replicação do vírus C. O estudo incluiu 36 pacientes portadores de HCV, genótipo 1, não cirróticos e virgens de tratamento, randomizados para receberem o princípio ativo por cinco semanas (3,5 ou 7mg/kg/ sem, via SC) ou placebo. Após 18 semanas de acompanhamento, verificou-se que o uso de miravirsen resultou em redução Profa. Dra. Andréa F. Mendes dose-dependente do RNA viral significativamente maior do que no grupo placebo (4,0, com a dose de 7mg, vs. 0,4log10), tornando-o indetectado em cinco pacientes. Além disso, não ocorreram eventos adversos significativos, tampouco foram observadas evidências de resistência viral (mutações genéticas). Assim, os autores concluem que o medicamento deve ser considerado uma estratégia terapêutica em potencial no controle da infecção pelo vírus C, como monoterapia; informam que o medicamento já está sendo testado em regimes com 12 semanas de duração, com o objetivo principal de se alcançar resposta virológica sustentada. Uso de antidepressivos na gestação como fator de risco de autismo BMJ Recentemente, tem sido descrito um aumento na prevalência do autismo nas populações de diversos países. Tal ocorrência pode ser justificada pelo fato de a doença ser cada vez mais estudada e, consequentemente, diagnosticada adequadamente. Entretanto, a exposição mais frequente a possíveis fatores de risco também tem sido considerada. A doença, cuja patogênese ainda não foi totalmente elucidada, parece estar relacionada a fatores genéticos e ambientais; a identificação desses últimos, por serem modificáveis, constitui importante medida na sua prevenção. Em artigo de Rai e colaboradores, publicado em abril no British Medical Journal (“Parental Depression, Maternal Antidepressant Use During Pregnancy and the Risk of Autism Spectrum Disorders: Population Based Case-control Study”. BMJ 2013; 346:f2059), o uso de antidepressivos — tanto inibidores seletivos da receptação de serotonina (ISRSs) quanto inibidores não seletivos — é debatido como um possível fator de risco de autismo. Os autores analisaram retrospectivamente dados de quase 50 mil prontuários e verificaram que o uso de antidepressivos durante a gestação duplicou ou triplicou o risco de autismo nos filhos (0-17 anos), sem alteração da capacidade intelectual. A principal limitação do estudo parece estar em determinar se o fator de risco é realmente o uso de antidepressivo ou a depressão materna durante a gestação. Ainda assim, parece razoável ter cautela ao se prescrever tais medicamentos para mulheres nessa fase da vida, em especial se outros fatores de risco, como a predisposição genética, tiverem sido identificados. 53 relato de caso Mesenterite J. Galvão-Alves Chefe da 18a Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro — Serviço de Clínica Médica. Professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques. Professor titular de Pós-graduação em Gastroenterologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro titular da Academia Nacional de Medicina. Presidente da Federação Brasileira de Gastroenterologia (2010-2012). Professor de Clínica Médica da Uni-FOA — Universidade da Fundação Osvaldo Aranha. Marta C. Galvão Professora de Radiologia da FTESM. Professora mestre responsável do Curso de Radiologia da UniFOA — Universidade da Fundação Osvaldo Aranha. Professora da UGF — Universidade Gama Filho. Radiologista do Hospital Federal da Lagoa, RJ. Daniella Cavalcante Médica membro do “staff” da 18a Enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Docente auxiliar do Curso de Especialização de Gastroenterologia pela PUC-RJ. Identificação M.T.P., sexo masculino, 44 anos, branco, casado, jornalista, natural e procedente do Rio de Janeiro. Queixa principal: dor abdominal. HDA Relato de dor epigástrica tipo cólica há cerca de três meses, de intensidade progressiva, que piorava com a alimentação e melhorava com o uso de antiespasmódicos (hioscina). Uma semana antes a dor piorou, com dois episódios de vômitos, pós-prandiais, de restos alimentares — o que motivou a consulta. Nega outras queixas digestivas, febre e emagrecimento. 54 Mesenterite HPP Seis meses antes, por apresentar sintomas semelhantes, realizou TC de abdome, que evidenciou paniculite mesentérica e colelitíase. Foi submetido à colecistectomia videolaparoscópica, sem intercorrências. Nega tabagismo. Etilista social. Pai: diabetes melito não insulinodependente. Exame físico: afebril, anictérico, acianótico, hidratado, normocorado, eupneico, consciente e orientado. PA: 120 x 80mmHg. FC: 84bpm; FR: 12irpm; AR: MVA em AHT, s/RA. Abdome flácido, depressível, sem massas palpáveis ou visceromegalias, peristáltico, discreta dor à palpação do mesogástrio. Evolução Internado e encaminhado para tomografia computadorizada (TC) do abdome. Resultado de nova TC do abdome evidenciou mesenterite, adenomegalia intra-abdominal e espessamento de alça de delgado. Encaminhado à videolaparoscopia diagnóstica, porém realizada TC de tórax pré-operatória, que evidenciou nódulos pulmonares bilaterais com densidade de partes moles, sugestivos de implantes neoplásicos secundários. Submetido à videolaparoscopia, que identificou estenose de alça de delgado associada à infiltração do omento adjacente e adenomegalia. Necessidade de conversão da videolaparoscopia a laparotomia, com ressecção em bloco de alça de delgado e omento e linfonodos, cujo anatomopatológico mostrou tratar-se de adenocarcinoma. Encaminhado à oncologia clínica, para tratamento quimioterápico. Discussão Relata-se o caso de paciente adulto jovem, previamente hígido, que apresentou sintomas gastrointestinais que levaram à realização de TC do abdome. O resultado mostrou imagem compatível com paniculite mesentérica e coleli tíase, sendo o paciente considerado portador de doença benigna. A evolução do quadro clínico, apesar do tratamento cirúrgico, levou à necessidade de nova avaliação por imagem. Nessa ocasião, foi mais uma vez demonstrada a paniculite mesentérica, associada a outros achados não descritos previamente, como adenomegalia intra-abdominal (1,7cm no seu maior diâmetro) e espessamento de alça intestinal de delgado. A mesenterite esclerosante (ME) é uma condição fibroinflamatória rara, benigna, não específica, que primariamente afeta o mesentério do intestino delgado, sendo o acometimento do mesentério do cólon observado em cerca de 20% dos casos. É de etiologia desconhecida, frequentemente associada com outras doenças inflamatórias, como fibrose retroperitoneal, colangite esclerosante, tireoidite de Riedel e pseudotumor orbitário. Apresenta diversas terminologias, como paniculite mesentérica, mesenterite retrátil ou esclerosante, paniculite nodular sistêmica, mesenterite lipoesclerótica, mesenterite xantogranulomatosa, pseudotumor inflamatório, lipogranulomatose. A ME pode se associar a uma variedade de condições malignas, como linfoma, câncer de cólon, câncer renal, câncer pulmonar, melanoma, carcinoma gástrico, doença de Hodgkin, leucemia linfocítica crônica, mesotelioma torácico e tumor carcinoide. Kipfer et al. encontraram que 30% dos pacientes com mesenterite tinham uma doença maligna de base. Esta grande diversidade de patologias associadas indica que se trata de processo inflamatório inespecífico, autoimune, reativo a qualquer tipo de agressão intra-abdominal, provocando reação inflamatória local, cujo diagnóstico baseia-se nos estudos de imagem e histológicos. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 Mesenterite Mesenterite Figura 2: TC do abdome mostrando linfonodo mesentérico de 1,7cm (seta). Figura 1: Ato cirúrgico evidenciando estenose em alça de delgado. A característica mais marcante da ME à TC é o aumento da densidade de gordura mesentérica para valores de atenuação de – 40 a – 60 unidades Hounsfield (HU), em comparação com a atenuação normal da gordura subcutânea e retroperitoneal, de – 100 a – 160HU. A aparência à TC pode variar entre atenuação aumentada (mesentério enevoado) e massa sólida de densidade de partes moles, que pode envolver os vasos mesentéricos, preservando a área gordurosa circundante (sinal do anel gorduroso). A gordura hiperatenuada reveste os vasos mesentéricos, sem deslocá-los. Múltiplas massas ou espessamento difuso do mesentério são incomuns. Calcificações associadas com necrose da gordura são um achado raro na doença. Em 50% dos pacientes uma pseudocápsula tumoral pode estar presente. A presença de adenomegalia mesentérica, assim como seu tamanho, se correlacionam com o desenvolvimento de malignidade nos pacientes com ME, sendo que a adenomegalia menor que 10mm no seu maior diâmetro, sem outras áreas de linfadenopatia associadas, demonstra evolução benigna. Histopatologicamente a doença progride em três estádios: 1.Lipodistrofia mesentérica: macrófagos invadem o tecido adiposo mesentérico. 2.Paniculite mesentérica: infiltrado de células inflamatórias plasmáticas e raros leucócitos PMN, células gigantes de corpo estranho e macrófagos. 56 Figura 3: Diferença de densidade do mesentério normal e infiltrado. 3.Mesenterite esclerosante: predomínio de deposição de colágeno, fibrose e inflamação. Na maioria dos pacientes coexistem inflamação crônica, necrose gordurosa e fibrose. Embora os tumores malignos do jejuno e duodeno sejam raros, eles podem envolver diretamente a raiz do mesentério. Algumas condições benignas, como hipoalbuminemia, trombose da veia portal, artéria mesentérica ou trombose venosa e vasculite, levam à atenuação aumentada na raiz do mesentério, que deve ser diferenciada de outras condições patológicas malignas. O presente caso exemplifica e justifica a necessidade de avaliarmos cuidadosamente os achados, à TC, de mesenterite ou paniculite mesentérica, pois estes podem ocultar condições benignas ou neoplásicas extremamente importantes. Referências 1. CANYIGIT, M.; KOKSAL, A. et al. — Multidetector-row computed tomography findings of sclerosing mesenteritis with associated diseases and its prevalence. Jpn. J. Radiol., 29(7): 495-502, 2011. Epub 2011 Sep 1. 2. FILIPPONE, A.; CIANCI, R. et al. — Misty mesentery: A pictorial review of multidetector-row CT findings. Radiol. Med., 116(3): 351-65, 2011. Epub 2010 Dec 3. 3. CORWIN, M.T.; SMITH, A.J. et al. — Incidentally detected misty mesentery on CT: Risk of malignancy correlates with mesenteric lymph node size. J. Comput. Assist. Tomogr., 36(1): 26-9, 2012. 4. VLACHOS, K.; ARCHONTOVASILIS, F. et al. — Sclerosing mesenteritis: Diverse clinical presentations and dissimilar treatment options. A case series and review of the literature. Int. Arch. Med., 4: 17, 2011. 5. FERREIRA, M.; SILVA, A. et al. — Mesenterite esclerosante. Acta Med. Port., 22: 855-60, 2009. 6. OKINO, Y.; KIYOSUE, H. et al. — Root of the small-bowel mesentery: Correlative anatomy and CT features of pathologic conditions. RadioGraphics, 21: 1475-90, 2001. Endereço para correspondência: José Galvão-Alves Rua Real Grandeza, 108/Sala 123 — Botafogo 22281-034 Rio de Janeiro-RJ [email protected] JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2 noticiário Gastrium agora na versão 40mg O laboratório Aché acaba de lançar a versão de 40mg de Gastrium. A nova apresentação completa a família dos inibidores de bomba de prótons (IBPs) da companhia, que já conta com as versões de 10mg e 20mg. O produto está disponível em embalagens com sete e 28 comprimidos. Gastrium 40mg é indicado para condições em que ocorre muita produção de ácido no estômago, tais como úlceras e esofagite e refluxo, e para o tratamento da síndrome de Zollinger-Ellison, doença caracterizada por ulceração péptica grave do trato gastrointestinal com hipersecreção. O medicamento possui avançada tecnologia Eudragit, que faz com que a cápsula chegue intacta ao intestino delgado, garantindo a eficácia do tratamento. A versão de 40mg facilita a prescrição pelos gastroenterologistas e clínicos gerais, e é mais cômoda para os pacientes. Novos benefícios da terapia de ECP na doença de Parkinson Os resultados de um estudo clínico publicado recentemente no The New England Journal of Medicine comprovaram que os pacientes com doença de Parkinson em estágio inicial também podem se beneficiar da terapia de estimulação cerebral profunda (ECP). O dispositivo de ECP da Medtronic é semelhante a um marcapasso. Implantado cirurgicamente no peito do paciente, envia impulsos elétricos a áreas precisas do cérebro. Essa estimulação resulta em melhoria dos sinais motores parkinsonianos. Os pacientes avaliados pelo estudo EARLYSTIM, que receberam ECP em conjunto com o melhor tratamento medi58 camentoso disponível, relataram melhora média de 26% na qualidade de vida, enquanto aqueles tratados apenas com a terapia medicamentosa não obtiveram melhora. Glibeta: bula passa pelo crivo do IDEC Glibeta, antidiabético comercializado pela Torrent do Brasil, está entre os medicamentos cuja nova bula foi aprovada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), depois de ser também avaliada pela Anvisa. Em teste realizado com bulas de 17 medicamentos de uso comum, apenas cinco — entre as quais a de Glibeta — foram consideradas pelo Idec em total conformidade com as exigências do órgão regulador. Em 2009 foram estabelecidos alguns padrões para a apresentação das bulas, como impressão com letra maior, uso de linguagem simples e formato de perguntas e respostas. A bula de Glibeta não apresentou nenhuma irregularidade, contendo todas as informações necessárias para o uso do medicamento com segurança. Segundo Waldemar C. Júnior, gerente de produtos da linha de metabolismo da Torrent, a compreensão correta dos dados da bula é fundamental, pois erros poderiam interferir na saúde do paciente. Doação de óvulos no tratamento de fertilização Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) autoriza as candidatas à fertilização assistida a doar parte de seus óvulos a outras que não têm como produzi-los. Em contrapartida, estas podem financiar parte do tratamento das doadoras. O CFM estabelece que a quantidade de embriões a serem implantados deve variar de acordo com a idade da doadora, e não da receptora dos embriões. A regra visa reduzir o número de gestações múltiplas, responsáveis por maior risco às gestantes e aos bebês. As mulheres acima dos 50 anos de idade não poderão mais se submeter à reprodução assistida. A decisão se baseia em pesquisas, e visa evitar complicações de saúde. Também foi determinado que, agora, a doação de óvulos só poderá ser feita até os 35 anos; para os espermatozoides, o limite será 50 anos. O CFM também decidiu ampliar o espectro de pessoas que podem emprestar o útero temporariamente para parentes. Com isto, as tias, primas e sobrinhas de um dos parceiros também entram na lista. VIII Congresso de Medicina Reprodutiva e Climatério A Sociedade Paulista de Medicina Reprodutiva (SPMR) e a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP) promovem, de 6 a 9 de dezembro, o VIII Congresso de Medicina Reprodutiva e Climatério. Médicos, outros profissionais de saúde e profissionais ligados à indústria farmacêutica e de equipamentos participarão do evento, que será inteiramente voltado à evolução da medicina reprodutiva e climatério nos últimos 25 anos. Serão debatidas todas as principais conquistas da área, suas evoluções até hoje e, principalmente, as novidades que já estão sendo oferecidas ou virão em breve. Obesidade, diabetes e doenças associadas Acontecerá no Hotel Wind sor Barra, nos dias 25 e 26 de outubro de 2013, mais uma edição do curso TODDA (Tratamento da Obesidade, Diabetes e Doenças Associadas). Foi mantido o mesmo formato interativo, com prioridade para as discussões com os participantes. Os temas estão focados na prática clínica. A organização e a coordenação do curso estão a cargo dos Drs. Walmir Coutinho e Alexander Benchimol. JBM MARÇO/ABRIL, 2013 VOL. 101 No 2
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