RH 167 - Tradução - Português-Inglês
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RH 167 - Tradução - Português-Inglês
POR QUE OS SERES HUMANOS AGEM COMO AGEM? AS RESPOSTAS BASEADAS NA NATUREZA HUMANA E SEUS CRÍTICOS Contato Universidade Federal Fluminense Campus do Gragoatá Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis Bloco O – Sala 507 24.210-380 – Niterói – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Ciro Flamarion Cardoso Universidade Federal Fluminense Resumo Este texto apresenta um dos tipos de respostas possíveis à pergunta: o que explica os comportamentos e ações dos seres humanos? Especificamente, abordam-se as respostas que partem de uma natureza humana determinante, seja ela genética, de outro modo natural, ou não explicitamente explicada por fatores naturais. Examinam-se críticas e alternativas a essas respostas, apoiadas pelo autor. Palavras-chave Natureza humana – determinismo biológico – determinismo cultural. 3 WHY DO HUMANS BEHAVE AS THEY DO? ANSWERS BASED ON “HUMAN NATURE” AND THEIR CRITIQUE Contact Universidade Federal Fluminense Campus do Gragoatá Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis Bloco O – Sala 507 24210-380 – Niterói – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Ciro Flamarion Cardoso Universidade Federal Fluminense Abstract This article focus on one of the possible kinds of answers to the question: what can explain the behavior and the actions of human beings? Namely, it analyses the answers to this question that stress a determinant human nature, be it genetic, otherwise natural, or not clearly attributed to natural factors. Critiques and alternatives, supported by the paper’s author, are also examined. Keywords Human nature – biologic determinism – cultural determinism. 4 Prolegômenos Um artigo com o título deste tem potencialmente um escopo vastíssimo. Impõe-se, portanto, delimitá-lo. Assim, fique claro o fato de que o texto não tratará, por exemplo, de formas de ação vinculadas a comportamentos considerados patológicos. Estará centrado nas ações e comportamentos reiterados, repetitivos, ordinários, esperados. Mesmo assim, é necessária uma delimitação adicional: como estabelece o subtítulo, só desenvolverei uma das modalidades possíveis de respostas à pergunta contida no título, isto é, as concepções que atribuem os comportamentos humanos ao impacto de uma natureza humana, bem como as críticas a elas. Ficarão de fora quase inteiramente, então, múltiplos elementos que apareceriam se fossem discutidas posturas de outros tipos, por exemplo, o impacto das ideologias, representações coletivas e programações sociais do comportamento sobre as ações humanas. Outrossim, veremos que, em muitos casos, aparece uma dicotomia natural/social ou cultural; as escolhas para este artigo também fecharão a porta a que se discuta a razão da preferência, seja pelo social, seja pelo cultural, ao tratar das dimensões coletivas do humano.1 A resposta à sempiterna pergunta “o que torna humanos os humanos?” varia com o tempo. Atualmente, uma das respostas preferidas − antropologizante − pretende que, há talvez cerca de 40 mil anos (para certos autores, mais de 100 mil anos), a humanidade plena emergiu “mediante uma combinação específica de: habilidades corporais; o universo dos objetos [a cultura material como vetor de relações sociais]; e a dimensão da linguagem”.2 Leslie C. Aiello e Robin Dunbar acreditam que existe uma relação positiva entre o tamanho do cérebro em comparação com o do corpo, por um lado, e, por outro, o tamanho do grupo social. Esta correlação − máxima nos primatas e, entre eles, nos humanos atuais − permite que emerjam tanto a inteligência em sua modalidade humana (de que hoje em dia se tende a sublinhar, em lugar do pensamento abstrato unicamente, a interseção de ações habituais, mas que exigem competência e destreza, com o pensamento consciente) quanto a linguagem plenamente desenvolvida. Esta última é explicada por formularem, as relações sociais, extremamente intrincadas entre os seres 1 2 Ver, a respeito: CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005, p. 255-282. GOSDEN, Chris. Prehistory: A very short introduction. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2003, p. 45. 5 humanos, exigências especiais que levaram ao surgimento da linguagem humana, uma das possibilidades abertas por um cérebro especialmente grande e complexo.3 Outros autores insistiriam na “agência dos objetos”, na cultura material como vetor das relações sociais. Tais considerações incidem todas sobre o comportamento e as ações dos humanos. Mas não vou desenvolvê-las neste artigo: elas têm a ver, sobretudo, com a forma em que comportamento e ações funcionam ou se vetorizam, enquanto estou mais interessado é nas determinações − se é que existem − incidentes sobre eles (sobretudo as genéticas ou, de outro modo, naturais). Este artigo retoma, com mais materiais e argumentos mais desenvolvidos, um texto preparado por mim, há alguns anos, para uma revista eletrônica universitária. Uma seleção liminar de grandes problemas de teoria e método Encontraremos numerosas questões dessas neste artigo. Aqui, separei algumas, a meu ver prévias, além de apresentarem uma magnitude especial; por tais razões, merecem uma consideração preliminar, a partir de dois grandes eixos: coletivo ou individual? natural ou social/cultural? Coletivo ou individual? Trata-se, neste ponto, de decidir se as ações humanas são mais bem entendidas partindo-se de um contexto ou sujeito coletivo (intersubjetivo) ou, pelo contrário, do nível dos indivíduos e suas interações. Para alguns, é necessário estabelecer gradações conducentes a uma tipologia. Uma das tentativas a respeito foi a distinção, por autores como Marhall Sahlins e M. Bloch, do contraste que deveria ser estabelecido entre sociedades prescritivas (prescriptive) e sociedades de livre desempenho (performative). No primeiro caso, teríamos aquelas que prescrevem, em caráter prévio a quaisquer ações concretas, muitas das maneiras em que as pessoas agem e interagem. Em casos assim, nada novo está previsto; ou, pelo menos, as novidades que surjam serão avaliadas de acordo a como apareçam ao serem passadas pelo crivo da ordem estabelecida: execução e repetição predominam 3 AIELLO, Leslie C.; DUNBAR, Robin I. M. Neocortex size, group size and the evolution of language. Current Anthropology. Londres, n. 34, 1993, p. 184-193. 6 sobre ações livres e espontâneas. Pelo contrário, ao se tratar de sociedades de livre desempenho (performative), a mudança é considerada a forma natural e normal em que a ordem social ou cultural se reproduz. Duas coisas devem ser notadas: (1) tanto Sahlins como Bloch consideram a dicotomia indicada como estando constituída por tipos ideais não de todo excludentes; (2) o que acabamos de dizer levaria a que, mais do que sociedades (ou culturas) prescritivas ou de livre desempenho, tivéssemos estruturas ou situações de ambos os tipos, presentes eventualmente numa mesma sociedade ou cultura.4 Nas últimas décadas, fortaleceram-se as posições que, no estudo das ações ou do comportamento, preferem enfatizar os indivíduos e suas interações, e não partir de entidades coletivas. Este sempre foi um dilema no seio das ciências humanas e sociais, que reaparece uma e outra vez sob diferentes roupagens. A recente mudança de atitude, entretanto, está muito longe de se restringir às ciências humanas e sociais; ela afeta também a biologia. Nos estudos da hominização biologicamente considerada, como de quaisquer outros processos evolucionários, a ênfase tendeu a passar das espécies em competição entre si para a percepção destas últimas como “massas complexas de redes de indivíduos reprodutores”, alegando que, afinal, “é sobre os indivíduos que a seleção natural opera”, já que são indivíduos os que se reproduzem, passando seus genes às gerações seguintes.5 Em outras palavras, os indivíduos competem entre si no interior de uma mesma espécie. É verdade que, exatamente como nas ciências humanas e sociais, o individualismo metodológico, em biologia, pode ou não ser radical. Para Robert Hinde, em matéria de comportamento dos primatas não humanos, bem como dos próprios humanos, o mais importante seria sublinhar a dialética entre os indivíduos, suas interações e o sistema que emerge destas últimas.6 Temos aí uma postura não muito diferente da de Pierre Bourdieu. No domínio do humano e do social, o assim chamado “individualismo metodológico” é uma posição bastante variada. Pierre Bourdieu, Jon Elster, Er- 4 5 6 SAHLINS, Marshall. Islands of history. Chicago: University of Chicago Press, 1985, p. XII, 28; BLOCH, M. From cognition to ideology. In: FARDON, R. (org.). Power and knowledge. Edimburgo: Scottish Academic Press, 1985, p. 35-36. Ver também BRADLEY, Richard. The significance of munuments: On the shaping of human experience in Neolithic and Bronze Age Europe. Londres; Nova York: Routledge, 1998, p. 86-100, para especificações importantes que não posso desenvolver aqui. FOLEY, Robert. Os humanos antes da humanidade: Uma perspectiva evolucionista. Trad. Patrícia Zimbres. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 171. HINDE, Robert A. Interactions, relationships and social structure. Man, n. 11, 1976, p. 1-17; HINDE, Robert A. Primate social relationships: An integrated approach. Oxford: Blackwell, 1983. 7 ving Goffmann e Raymond Boudon exemplificam algumas de suas vertentes.7 Em todos os casos, ele deve dar alguma solução à questão de como se relacionam os indivíduos e as coletividades, posto que os homens são seres sociais por excelência, aspecto que há como minimizar ou deixar de priorizar, como é tendência na atualidade, mas não escamotear. Ao tentar reduzir as entidades coletivas a meras ilusões ou epifenômenos, chega-se a posições insustentáveis. Num plano mais prático, ao se admitir haver constrições de tipo social (ou cultural) às ações dos indivíduos, coloca-se a questão do que já foi chamado de “dois filtros”. Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como o resultado final de dois processos de seleção. O primeiro é a passagem pelo filtro definido pelo conjunto de limitações estruturais − sobre as quais os agentes não tenham controle − que reduz as possibilidades alternativas de agir, de seu número teórico a um conjunto menor de ações efetivamente possíveis. E o segundo é outro filtro, o do mecanismo que leve um indivíduo ou grupo de indivíduos a escolher, dentre as ações factíveis remanescentes, qual será efetivamente realizada. As ciências humanas e sociais soem apresentar tendências contrastantes ao considerarem estes dois processos de seleção. O economista, ao aceitar ordinariamente uma teoria da escolha racional, costuma negligenciar (ou minimizar) em muitos casos o primeiro filtro e concentrar-se no segundo. Partirá, aliás, da suposição de que as preferências dos seres humanos sejam, no fundamental, idênticas ou similares, independentemente dos períodos da história e dos tipos de sociedade. O historiador, o antropólogo e muitos dos sociólogos, pelo contrário, concentrar-se-ão no primeiro filtro ou processo, sublinhando coisas como cultura, ideologia, tradição ou valores. Os indivíduos ou grupos que agem são considerados pelo economista como se fossem atraídos por distintas recompensas, ao decidirem entre formas alternativas de agir; por outros cientistas sociais, como se fossem impelidos a dadas escolhas. De certo modo, a atitude dos economistas baseia-se de ordinário na intencionalidade e a de outros cientistas sociais, na causalidade cultural ou estrutural.8 As duas atitudes contrastantes parecem ter a ver com a diferença estabelecida certa vez por Claude Lévi-Strauss entre o que, naquela oca- 7 8 Ver FAVERSANI, Fábio. As relações interpessoais sob o Império romano: uma discussão da contribuição teórica da escola de Cambridge para o estudo da sociedade romana. In: CARVALHO, Alexandre Galvão (org.). Interacão social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2003, p. 19-42. Ver ELSTER, Jon. Ulises y las sirenas: Estudios sobre racionalidad e irracionalidad. Trad. J. J. Utrilla. México: Fondo de Cultura Económica, 1989, especialmente p. 190-235. 8 sião, propôs denominar ciências humanas (como a antropologia ou a história: aquelas que se interessam pelas formas variáveis das estruturações sociais, isto é, por múltiplas sociedades) e ciências sociais (as que, como a economia, se instalam, para efetuar seus trabalhos, num único tipo de sociedade).9 Natural ou social/cultural? Quando se atribui uma determinação natural às ações humanas, é preciso saber exatamente do que se está falando, já que há formas muito variadas de o fazer. Como bem expressa Robert Foley, “não foi possível identificar genes específicos que controlem aspectos particulares do comportamento”; e acrescenta: “as tentativas feitas nesse sentido raramente são mais que estereótipos racistas ou sexuais”.10 Ou, também, estereótipos naturalizadores da territorialidade e da agressão, portanto, da guerra e do imperialismo. Isto não significa que a determinação genética um para um do comportamento não tenha sido afirmada repetidamente com pretensões científicas. Significa é que as teorias do “primata assassino” e as da sociobiologia, entre outras, são enganosas do ponto de vista científico, já que se baseiam em pseudocomprovações. Uma das razões de não terem, os propugnadores da determinação genética direta de ações humanas específicas, tentado uma verdadeira comprovação científica de suas hipóteses pode ser a enorme dificuldade que apresentaria tal desideratum. O biólogo Dobzhansky expôs quais seriam os passos metodológicos para poder demonstrar a origem genética de traços culturais quaisquer (incluindo, portanto, os comportamentos reiterados): (1) identificar os traços culturais em questão de uma maneira que permitisse uma análise genética; (2) estimar a possibilidade de esses traços poderem ser herdados; (3) medir as diferenças genéticas entre diferentes sociedades; e (4) avaliar as intensidades das pressões seletivas no interior de uma dada socie- 9 10 LÉVI-STRAUSS, Claude. Critères scientifiques dans les disciplines sociales et humaines. Aletheia. Paris, n. 4, 1966, p. 189-236. Para uma exemplificação da ênfase − no caso de escolhas de tipo econômico − respectivamente no primeiro e no segundo dos processos que indiquei a partir de Jon Elster, cf. GODELIER, Maurice. Rationalité et irrationalité en économie. Paris: François Maspéro, 1971, 2 vols., vol. 2, p. 206-208; SILVER, Morris. Economic structures of Antiquity. Westport (Conn.); Londres: Grenwood Press, 1986, passim. Existem tentativas de conciliar ambas as posturas, mas não são convincentes como, por exemplo, cf. SNELL, Daniel C. Life in the ancient Near East, 3100-332 B.C.E. New Haven; Londres: Yale University Press, 1997, p. 151-158. FOLEY, Robert, op. cit., p. 244. 9 dade, relativamente a traços culturais que pudessem ser herdados.11 O primatologista John Napier escreveu que, quanto aos componentes biológicos do comportamento humano, seria preciso “demonstrar exatamente o que esses componentes são”.12 Esta tarefa esteve sempre acima das forças dos que a deveriam tentar e não avançou desde que Napier redigiu o seu texto, em 1970. O que se disse até aqui não elimina a questão da determinação genética de comportamentos. Esta última certamente existe: seria absurdo pretender o contrário quanto a seres, como os humanos, dotados de um corpo e de uma carga genética. O que parece ocorrer é que ela atue num nível baixo de especificidade. Não existe um “gene da agressividade” ou um “gene da territorialidade”. Mas, provavelmente, existem genes que controlam características bem mais gerais, como a capacidade de aprender, de alterar reações etc. − aquelas características que seriam, para Hinde, as “predisposições biológicas”. Assim, a evolução biológica continua a ser centralmente relevante para a compreensão do comportamento humano, mesmo na ausência de um componente causal genético simples, um para um.13 Os biólogos evolucionistas e os cientistas sociais que neles se baseiam se queixam, com bastante razão, do que chamam de “modelo padrão das ciências sociais”14 que, além de manifestar uma tremenda ignorância acerca da biologia (que se manifesta, por exemplo, na identificação do biológico como sendo unicamente genético), eleva desnecessariamente uma barreira intransponível entre saberes que teriam muito interesse em dialogar.15 O fato de os cientistas humanos e sociais se afastarem de quaisquer determinações biológicas resulta, em parte, de um trauma forte e durável causado pelo racismo nazista e, sobretudo, pelos trágicos efeitos do mesmo. 11 12 13 14 15 DOBZHANSKY, Theodosius. Anthropology and the natural sciences: the problem of human evolution. Current Anthropology. Londres, n. 4, 1963, p. 138-148. NAPIER, John. The roots of mankind: The story of man and his ancestors. Londres: Allen & Unwin, 1971, p. 221. HINDE, Robert A. Interactions, relationships and social structure, op. cit.; FOLEY, Robert. op. cit., p. 245-246. No bojo desse modelo, o mais famoso dos sociólogos franceses de meados do século XX enfrentou com grande erudição o difícil problema da relação entre determinismo e liberdade nas ações humanas; mas o livro, excessivamente preocupado com a diversidade e praticando sistematicamente o que em língua inglesa seria considerado hair-splitting, acaba não indo a parte alguma, o que limitou muito a sua influência: GURVITCH, Georges. Déterminismes sociaux et liberté humaine: Vers l’étude sociologique des cheminements de la liberté. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. Cf. TOOBY, J.; COSMIDES, L. The psychological foundations of culture. In: BARKOW, J. H.; COSMIDES, L.; TOOBY, J. (orgs.). The adapted mind: Evolutionary psychology and the generation of culture. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 19-136. 10 Desenvolveram-se, a partir de 1964, enfoques que partiram da biologia para as ciências humanas e sociais, em especial empregados, quanto a estas últimas, por antropólogos e psicólogos. As bases desses estudos foram noções derivadas da biologia darwinista ou, no mínimo, inspiradas pelo tipo de materialismo que ela implica; em muitos casos, no entanto, não supuseram determinação genética, mas, sim, processos de seleção natural de certos comportamentos, incidentes em graus diferenciais no êxito reprodutivo dos indivíduos. Em análises antropológicas no âmbito do que foi denominado socioecologia, verifica-se a aplicação de modelos adaptacionistas baseados num processo de seleção, ao explicar as ações e comportamentos humanos, sem inferir que tais ações e comportamentos estivessem sob controle genético direto. Isso é feito num contexto de método quase sempre situado no interior do individualismo metodológico.16 Algumas das análises de que agora estou tratando − por exemplo, as desenvolvidas pelo antropólogo Marvin Harris − foram marcadas por um materialismo do tipo mais vulgar, bem como por enormes inadequações e reducionismos. Observe-se, por exemplo, a passagem seguinte: A emergência do budismo e do jainismo no vale do Ganges no século VI a.C. esteve associada de perto a um desafio ao controle dos brâmanes sobre o sacrifício de animais e à redistribuição de carne. Buda condenava o sacrifício de animais (mas não insistia numa dieta puramente vegetariana). Os jainistas se opunham mais ao consumo de carne sob qualquer forma. (...) Em suma: o desenvolvimento de fortes tabus contra o consumo de carne envolveu a conversão das classes e castas governante e sacerdotal, de sacrificadores e redistribuidores de carne, em protetores da vaca e de sua progênie masculina de tração.17 O reducionismo é evidente − as ideologias, no caso religiosas, aparecem como meras distorções ou reflexos de uma causalidade material simplificada −; e uma multidão de fatores incidentes perfeitamente relevantes para explicar um comportamento e certas ações humanas foi deixada de fora. Também se nota que o privilegiamento exagerado do consumo de carne em função dos sacrifícios leva a ignorar múltiplas outras ocasiões desse consumo. Caso pudéssemos acompanhar aqui o detalhe do argumento, veríamos que o manejo empírico das hipóteses abunda em meias verdades, absolutas falsidades 16 17 LAYTON, Robert. An introduction to theory in anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 159. HARRIS, Marvin. Cultural materialism: The struggle for a science of culture. Nova York: Vintage Books/ Random House, 1980, p. 250-251. 11 e informação insuficiente (além de muitas vezes distorcida e unilateral). O que os enfoques que estou examinando têm a oferecer é, em certos casos, entretanto, bem mais relevante. Se menciono Marvin Harris é porque, apesar de suas muitas inadequações de teoria, método e manejo dos dados empíricos, continua sendo invocado em forma positiva pela tendência em questão; o que, a meu ver, é um indício importante de certos reducionismos quase sempre presentes nos estudos desse tipo, de forte viés determinista e simplificador. Entrarei, adiante, em algum detalhe sobre esses enfoques pós-1964. De momento, quero referir-me a que, tanto em biologia evolutiva quanto nesses estudos dela derivados direta ou indiretamente, é possível notar a presença de metáforas que considero infelizes − no sentido de não ajudarem a compreensão adequada, mas, sim, levarem a direções interpretativas inadequadas e gerarem repulsas. Elas têm a ver, embora numa etapa diferente, com algo que muitos já percebiam no darwinismo tal como aparecia em certas apropriações suas do século XIX: ele pôde ser entendido, pelos assim inclinados, como dando caução à competição capitalista em toda a sua crueza. No caso dos psicólogos e antropólogos que, desde 1964, buscaram inspiração na biologia evolucionista, as metáforas aludidas derivam diretamente, muitas vezes, do fato de que vários deles importaram em forma explícita, para uso em suas pesquisas, modelos matemáticos microeconômicos. Assim, têm proliferado expressões como: o “gene egoísta” de Dawkins; o “preço” do sucesso evolucionário, ou a evolução vista em termos de “custos e benefícios” ou de “custos de oportunidade”; nos estudos antropológicos e psicológicos, toda uma pletora de “lucros”, “investimentos”, “maximização dos benefícios” etc. E isso, em trabalhos voltados para temas como as decisões quanto à escolha de cônjuges, o cuidado das crias pelos pais e por outros adultos, a emergência de sistemas simbólicos, linguagens, rituais, ideologias vinculadas ao gênero, mitos etc. Todas essas metáforas são, a meu ver, equívocas e, portanto, pouco úteis. Para dar um único exemplo: um gene não interage com coisa alguma nem pode ter intenções (sendo exclusivamente um mecanismo de replicação); os indivíduos que o levam é que são capazes de interagir intencionalmente. Um indivíduo, portanto, pode eventualmente ser caracterizado como egoísta, ao ser analisado em suas interações; mas um gene não! Que sentido, então, pode ter a apresentação dos humanos como simples autômatos, ou algo assim, a serviço do que “pretendam” os genes em seu “egoísmo”? Outrossim, toda a euforia paneconômica mencionada teve o efeito de afastar de um campo de estudos com que, em outros aspectos, se teria muito a aprender, numerosos cientistas sociais (incluindo alguns dos melhores, como Marshall Sahlins) que se sentiram repelidos ideologicamen12 te por ela; de um modo, aliás, perfeitamente justificado, mesmo porque ela nada tinha de inocente e marcava de fato uma atitude de adesão aos valores do mundo ocidental. Parece-me claro que o “gene egoísta” é uma personificação ideológica (se bem que metaforizada), entre outras, do individualismo burguês. A repulsa foi forte, em especial, nos anos que vão de 1965 a 1994.18 No tocante ao contraste entre determinação natural e social (ou cultural), notam-se tendências diversas em diferentes ciências humanas e sociais. Segundo o antropólogo Robert Redfield, existem três formas principais de conceber a natureza humana: (1) “como potencialidade ou necessidade inata definida ou vaga”; (2) “como só podendo ser conhecida em suas formas especiais localmente desenvolvidas”; e (3) “como uma natureza universalmente adquirida ou desenvolvida e comum a todos”. A partir delas, diversas combinações seriam possíveis e de fato foram efetuadas. Ele cita uma delas: “A visão freudiana do homem, por exemplo, combina a primeira e a terceira”.19 Isto significa que o enfoque de Freud deixa de lado a segunda forma de conceber a natureza humana – exatamente a que a aborda, em suas variantes no tempo e no espaço, uma postura mais adequada a como raciocinam, por exemplo, antropólogos e historiadores. A teoria psicanalítica parte de um postulado para ser capaz de estabelecer a continuidade da experiência: “todos os seres humanos partilham certas precondições universais ineludíveis”.20 Algumas dessas precondições podem ser aceitas sem dificuldade também pelos historiadores; por exemplo, o fato de que o ser humano individualmente considerado nasce desvalido e precisa de proteção e cuidados de parte de adultos da mesma espécie durante longo tempo (infância protraída), disto decorrendo muitas consequências de peso para todas as sociedades humanas, bem como para os indivíduos. Entretanto, os historiadores, em sua maioria, definiriam os limites nos quais 18 19 20 Cf como exemplos: DAWKINS, Richard. The selfish gene. Oxford: Oxford University Press, 1993; FOLEY, Robert, op. cit., p. 195, 213-236; KNIGHT, Chris; DUNBAR, Robin; POWER, Camilla. An evolutionary approach to human culture. In: DUNBAR, R.; KNIGHT, C.; POWER, C. (orgs). The evolution of culture. New Brunswick (Nova Jersey): Rutgers University Press, 1999, p. 1-14: os autores deste último texto percebem os efeitos adversos das metáforas mencionadas, mas as defendem com unhas e dentes mesmo assim. REDFIELD, Robert. A natureza humana. In: FADIMAN, Clifton (org.). O tesouro da Enciclopédia Britânica: O melhor do pensamento humano desde 1768. Trad. Maria Luíza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 252. O texto de Redfield integrou (postumamente) a edição de 1961 da Enciclopédia Britânica. BERENZON GORN, Boris. Historia es inconsciente: La historia cultural. Peter Gay y Robert Darnton. San Luis Potosí (México): El Colegio de San Luis, 1999, p. 107. 13 estariam dispostos a aceitar a existência de uma natureza humana stricto sensu muito mais estreitamente do que os psicólogos ou psicanalistas. Em certos casos, chegariam a negar a existência de uma natureza humana que não fosse histórica e, portanto, social e culturalmente variável segundo os contextos temporais e espaciais considerados. Nem todos os historiadores são tão infensos a aceitar a existência de uma natureza humana no sentido mais forte da expressão. Alguns deles diriam que, se a mudança possibilita a história, a persistência fundamenta a compreensão histórica. A sociedade mostraria variadas combinações a partir de um número limitado de elementos e regras.21 Note-se que esta posição é bem antiga entre historiadores profissionais: aqueles da “escola metódica” do século XIX defendiam a possibilidade da cientificidade da história, mesmo sendo ela uma ciência da observação indireta, exatamente pela possibilidade de comparar as ações e motivações dos humanos do passado com as dos humanos atuais, estes sim, observáveis diretamente. Uma tal opinião tinha como suposto uma natureza humana relativamente constante, sem dúvida não problematizada de verdade, posto que baseada no senso comum. A “história natural do mal”: o primata assassino e a sociobiologia Consideremos, em primeiro lugar, a hipótese do “primata assassino”, também conhecida como teoria do “macaco nu” (naked ape). Ela aparece, desde o princípio, caracterizada por uma mescla de intenções científicas e ideológicas. Num livro de divulgação que escreveu em colaboração com Dennis Craig, o decano dessa postura, o anatomista e paleontólogo sul-africano Raymond Dart, que a vinha desenvolvendo desde 1949 (sob o impacto recente das matanças da Segunda Guerra Mundial), conclui que, se os humanos e seus antecessores evolutivos não deixaram de ser assassinos e homicidas durante um milhão de anos, pode-se entender porque os homens e mulheres desconfiam uns dos outros e as nações mantêm, umas contra as outras, um equilíbrio apoiado unicamente no “terror das armas”.22 A agres- 21 22 Idem, ibidem, p. 102. DART, Raymond; A. CRAIG, Dennis. Aventuras con el eslabón perdido. Trad. Florentino M. Torner. México: Fondo de Cultura Económica, 1962, p. 362-363. A edição original em inglês é de 1959. Houve hipóteses mais antigas (do início do século XX) que iam na mesma direção, mas não tiveram impacto. 14 são e o militarismo são inerentes, naturais, inevitáveis. Se forem um mal, trata-se de um mal necessário e incontornável. Um dos criadores da etologia, disciplina biológica voltada para o estudo do comportamento dos animais, o austríaco Konrad Lorenz, desde 1963 desenvolveu o argumento de que, ao lado da razão e das tradições culturais − o autor aceita a incidência do pensamento conceitual e da fala na evolução humana criando algo análogo e paralelo à hereditariedade dos caracteres adquiridos −, outro determinante das ações sociais humanas seria “o comportamento instintivo adaptado pela filogenia”.23 Deste postulado deriva um corolário: a observação do comportamento animal pode iluminar o comportamento humano. A transferência que fez Lorenz das observações da etologia animal para o domínio dos homens não foi, entretanto, precedida ou acompanhada das necessárias demonstrações de quais seriam, no detalhe, os caminhos e mecanismos da inserção genética, nos seres humanos, dos comportamentos animais que descrevia e usava como “provas”: seu raciocínio foi, o tempo todo, analógico e metafórico, baseando-se em extrapolações que não estavam, de fato, demonstradas. Ora, as analogias podem distorcer o argumento. Por exemplo, será lícito transferir do âmbito humano para, por exemplo, o dos chimpanzés a noção de status, entendendo-a em ambos os casos como um elemento geneticamente codificado pela evolução, quando, entre os humanos, o status envolve prestígio e este pressupõe valores, ou seja, regras ou normas arbitrárias que dependem de cada cultura e precisam ser aprendidas? Ao fazê-lo, cria-se uma metáfora espúria. Lorenz era um autor famoso, com justiça, em sua área de especialidade, a etologia animal. Ao escrever sobre agressividade, territorialidade etc. entre os humanos, ele estava, porém, fora da mencionada área: tratava-se de um sábio bem versado em etologia animal, mas profundamente ignorante em história ou em antropologia, como demonstrou Ashley Montagu. Longe de serem “filogeneticamente programadas”, as formas especificamente humanas da agressão e da territorialidade são social e culturalmente adquiridas, portanto, muito variáveis historicamente.24 Na época da guerra do Vietnã, desenvolveu-se, na cultura popular norte-americana, portanto na opinião pública, uma teoria reacionária, nada gratuita ideológica e politicamente, que pretendia “provar” ser a territorialidade, 23 24 LORENZ, Konrad. L’agression: Une histoire naturelle du mal. Trad. Vilma Fritsch. Paris: Flammarion, 1969, p. 229-230. A edição em alemão ocorreu em 1963. MONTAGU, Ashley. The human revolution. Nova York: Bantam Books, 1967, p. 119-122. 15 bem como a tendência à concorrência, à agressividade e à hierarquia, características inatas nos humanos, geneticamente determinadas. A conjuntura do auge da guerra imperialista não criou tal teoria, já formulada antes com clareza, como vimos; mas o conflito a promoveu fora de qualquer proporção, em especial mediante repetidas edições de grande tiragem das obras de seu maior divulgador − um escritor, não um cientista −, Robert Ardrey, que chamou a si a defesa de noções primeiro desenvolvidas por Raymond Dart (e por Robert Broom). A carreira editorial de sucessivos livros de Ardrey segue uma curva que acompanha a do auge (ápice editorial em 1970) e a seguir a do declínio das esperanças bélicas do governo estadunidense no Vietnã, quando a derrota da maior potência mundial na guerra veio a configurar-se. Outro divulgador popular foi, na mesma linha, Desmond Morris. Devido à leitura aprovadora do primeiro livro de Ardrey por Arthur C. Clarke, a noção do “primata assassino” serviu para organizar a parte inicial de um dos filmes mais influentes da década de 1960, 2001: Uma odisseia no espaço (1968), com roteiro de Clarke e direção de Stanley Kubrick, difundindo ainda mais tal noção na cultura popular, fora também dos Estados Unidos.25 Como notaram Richard Leakey e Roger Lewin no prólogo de um dos livros que escreveram em colaboração, apesar de falhas muito evidentes em suas tentativas de comprovação, a hipótese dos humanos como primatas assassinos “foi saudada com um bizarro entusiasmo por um público que parecia ansioso não só para explicar a guerra, como para trivializá-la”.26 Isso acontecia a despeito de tal hipótese ter sido, desde o início, combatida com excelentes argumentos pela maioria absoluta dos cientistas que a ela se referiram, naturais tanto quanto sociais.27 Em forma bem mais ideologicamente explícita do que nos escritos de Dart e Lorenz, em seu primeiro livro sobre o assunto, Robert Ardrey chegou 25 26 27 CLARKE, Arthur C. The lost worlds of 2001. Nova York: New American Library, 1972, p. 34. LEAKEY, Richard; LEWIN, Roger. Origins reconsidered: In search of what makes us human. Nova York: Anchor Books, 1992, p. XVII. A acolhida das noções divulgadas por Robert Ardrey foi ampla nas mais variadas posturas reacionárias: por exemplo, constituiu uma das bases de uma versão religiosa de direita da hominização ligada, na França, à revista Planète e ao notório Jacques Bergier: ALBESSARD, A. D’où vient l’humanité? Paris: Le Livre de Poche, 1969. (Encyclopédie Planète). Entre as melhores refutações temos: LEAKEY, Richard; LEWIN, Roger. People of the lake: Man; its origins, nature and future. Londres: Collins, 1979, p. 66, 191-213; MONTAGU, Ashley, op. cit., p. 98-124; MONTAGU, Ashley (org.). The origins & evolution of man: Readings in physical anthropology. Nova York: Thomas Y. Crowell, 1973. Ver também: PILBEAM, David. The naked ape: an idea we could live without, In: HUNTER, David E.; WHITTEN, Phillip (orgs.). Anthropology: Contemporary perspectives. Boston; Toronto: Little, Brown and Company, 1979, p. 58-67. 16 a dizer que: a batalha de Maratona foi a garantia da sobrevivência da liberdade helênica contra “a horda” persa [ah, esses pérfidos asiáticos!] e da Idade de Ouro (ou de Péricles) subsequente em Atenas; o império da lei dependeu do poder baseado nas legiões romanas; a sobrevivência do cristianismo dependeu de lutas armadas; os inícios da prosperidade baseada na Revolução Industrial não seriam possíveis sem a supremacia da marinha de guerra britânica nos oceanos... Independentemente disso, afirmava, somos, em forma inescapável, os “filhos de Caim”. O material genético que herdamos, o do “primata assassino”, é o material de construção básico da cultura humana: “não fomos capazes, até agora, de construir sem ele”. Ou, ainda mais abertamente: Tenho a liberdade de defender nas páginas deste relato certas opiniões que desafiam as ortodoxias de minha época porque pertenço a uma nação [os Estados Unidos da América] que obteve a liberdade para seus cidadãos por meio da guerra, e, pelo mesmo meio, defendeu a minha liberdade em todas as ocasiões, desde a independência.28 Defendeu também, obviamente, a propriedade privada (incluindo os ganhos financeiros que obteve Ardrey com o sucesso de público de seus livros amplamente divulgados e institucionalmente apoiados de diversos modos), a territorialidade agressiva, a hierarquia social − tudo isso, a partir de uma programação genética que tornaria inevitáveis tais coisas (e também os modos eventualmente brutais de garanti-las). Posteriormente à hipótese do “primata assassino”, fomos brindados com outra concepção conservadora de bases semelhantes, surgida no contexto da assim chamada teoria sociobiológica da cultura, proposta principalmente por Edward Osborne Wilson, um biológo de Harvard. Wilson teve o cuidado de separar-se de posturas que considerava radicais ou unilaterais. Para começar, a de Lorenz, por ter este enxergado o instinto agressivo nos humanos como algo incontrolável. Segundo Wilson, as “tendências agressivas” humanas são reais, mas ajustadas às circunstâncias, podendo permanecer adormecidas ou latentes durante longos períodos. Também criticava o psicólogo B. F. Skinner, cuja teoria do estímulo/resposta transformaria os humanos em máquinas governadas, em suas ações, por recompensas, punições e umas poucas regras básicas de aprendizagem. Quanto a ele, via a mente humana como uma espécie de palimpsesto, nela estando 28 ARDREY, Robert. African genesis: A personal investigation into the animal origins and nature of man. Nova York: Dell, 1967, p. 330-331. 17 codificados geneticamente comportamentos, por meio de codificações sucessivas ocorridas em períodos-chave da evolução que desembocou em nossa espécie e da espécie mesma. Entretanto, Wilson continuava a acreditar nas comprovações empíricas apontadas por Raymond Dart para sua tese do “primata assassino” − no entanto, já desacreditadas devido a alternativas − a sua interpretação do registro arqueológico e fóssil − bem assentadas em pesquisas sérias e adequadamente levadas a cabo (por Bob Brain, entre outros).29 O ponto de partida de Wilson consiste em afirmar ser a biologia − teoria da evolução, zoologia comparada e genética − a chave da natureza humana, o que não deveria continuar a ser ignorado pelas ciências sociais. Os humanos são diferentes das outras espécies de primatas segundo modalidades “que só podem ser explicadas como resultantes de um genótipo humano único”.30 Ao especificar os elementos integrantes de tal genótipo, ou explicados por ele, os sociobiólogos não consideram, curiosamente, a linguagem plenamente desenvolvida. O comportamento social não pode explicar-se, alegam, pela cultura, já que programas inteiros de comportamento estariam codificados nos genes humanos. Uma eventual mudança cultural aberrante, carente de base biológica, não persistiria: a rédea genética traria a cultura desviante de volta ao bom caminho, aquele biologicamente determinado. Todas as sociedades humanas seriam governadas por “regras epigenéticas” onipresentes. Obedecer às normas, sentir-se culpado ao violá-las e controlar tendências sexuais consideradas desviantes ou indesejáveis, bem como refrear impulsos agressivos, por se tratar de comportamentos codificados geneticamente, vêm sendo favorecidos ao longo do tempo pela seleção natural. Wilson apoia ainda uma encarnação da natureza humana bastante comum entre os cientistas sociais, o homo religiosus, pois considera ser a predisposição humana a possuir uma crença religiosa um elemento geneticamente determinado do comportamento humano, um componente universal do comportamento social, existente em todas as sociedades; portanto, algo impossível de erradicar. Assim, propensões identificáveis a certos comportamentos sociais estão codificadas, dependem da lógica bioquímica do código genético.31 Tais comportamentos, por conseguinte, possuem um 29 30 31 WILSON, Edward O. The origins of human social behavior. In: HUNTER, David E.; WHITTEN, Phillip (orgs.), op. cit., p. 36-41. WILSON, Edward O. Biology and the social sciences. Daedalus, n. 106, 2, 1977, p. 132. WILSON, Edward O. Sociobiology: The new synthesis. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1975. É interessante notar que um arqueólogo como Seven Mithen, vinculado a uma postura metodológica que parte do darwinismo, acha, no entanto e pelo contrário, que a religião, 18 alicerce natural, ancorado nos genes. A natureza humana definir-se-ia em boa parte como “uma mescla de adaptações genéticas ocorridas num meio ambiente amplamente desaparecido hoje, o mundo dos caçadores-coletores da Idade Glacial” − a última de uma série de codificações que incidiram ao longo do processo evolutivo dos hominídeos e do Homo sapiens.32 Os argumentos avançados pelos sociobiólogos tiveram considerável apelo popular; mas não convenceram a maioria dos biólogos, menos ainda dos cientistas sociais, além de se aterem a uma forma arcaica de teoria genética, superada pelo próprio movimento das pesquisas: aquela baseada na noção de que, em cada caso, um único genótipo estará mais bem adaptado ao seu ambiente e, por tal razão, todas as outras variantes serão eliminadas pela seleção natural.33 Quanto à explicação de comportamentos humanos específicos pelos genes, as mesmíssimas críticas dirigidas à hipótese do “primata assassino” são aplicáveis também à sociobiologia de autores como E. O. Wilson e C. J. Lumsden, em especial a total ausência de uma comprovação que o seja verdadeiramente.34 O método básico de Wilson consiste em retroagir comparativamente dos caçadores-coletores da atualidade em direção ao passado (examinado arqueologicamente) efetuando também comparações com os comportamentos dos primatas não humanos, bem como postulando diferentes graus da evolução ocorrida nas “categorias de comportamento”. A ideia é que, quanto mais fi xas as categorias comportamentais, mais provável seria uma codificação genética delas, ocorrida em algum momento do passado evolutivo.35 Além de que muitos autores contestaram a fi xidez ou a legitimidade de várias das categorias por ele apontadas como menos variáveis com um método como o seu, o máximo que se pode fazer é postular a existência de codificações genéticas; em caso algum, seria factível provar que de fato incidiram. Alguns biólogos admitem que certos comportamentos humanos, muito delimitadamente, podem ter um fundamento genético. Com base nis- 32 33 34 35 longe de ser algo facilmente explicável, é difícil de sustentar como elemento que passou pelo crivo da seleção natural, ao se ocupar de dados que “envolvem ideias que contradizem nossa compreensão intuitiva do mundo”, razão pela qual constitui um desafio considerável à antropologia ou à psicologia evolucionárias: cf. MITHEN, Steven. Symbolism and the supernatural. In: DUNBAR, R.; KNIGHT, C.; POWER, C. (orgs), op. cit., p. 147-148, 157-158, 162. WILSON, Edward O. On human nature. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1978, p. 196. MEGARRY, Tim. Society in prehistory. Londres: Macmillan, 1995, p. 64-90. LUMSDEN, C. J.; WILSON, E. O. Promethean fire: Reflections on the origin of mind. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1983. WILSON, Edward O. The origins of human social behavior, op. cit. 19 to, raciocinando passo a passo e com grande cuidado, paleoantropólogos e pré-historiadores tentam explorar possíveis caminhos pelos quais uma evolução seria hipoteticamente possível, de comportamentos similares aos observados entre os primatas atuais mais próximos biologicamente de nós, para comportamentos humanos compatíveis com os vestígios pré-históricos investigados arqueologicamente.36 Uma postura semelhante, de parte de alguns biólogos, admite a primazia cultural entre os humanos, mas sem descartar in totum uma incidência genética limitada e genérica, aliás, como já se mencionou, impossível de ser negada em seres dotados de carga genética.37 Os que assim pensam reconhecem que, até agora, não há provas cabais da base genética de quaisquer comportamentos humanos específicos, só indicações vagas. Além do mais, uma base genética não implica determinação genética, e, sim, algo muito menos específico, por exemplo, ao afirmar que a possibilidade, para os humanos, de terem uma cultura depende de uma base genética, mesmo não sendo a cultura mesma derivável ponto a ponto, em seus detalhes e características, de uma programação presente nos genes. A sociobiologia faz certas concessões à crítica do que poderia ser visto como um determinismo genético excessivo. Reconhece que as variações culturais entre os povos atuais estão baseadas em respostas socialmente aprendidas, não nos genes.38 Em outras palavras, os sociobiólogos não estão voltados para explicar as diferenças culturais entre os povos de hoje, mas, sim, concentram-se no que, a seu ver, seria um considerável patrimônio genético comum, incidente na determinação de ações e comportamentos universais. A incidência alegada é explicada por eles em termos darwinistas (seleção, sucesso reprodutivo). Isso minimiza o fato evidente de que não há como explicar toda a variada gama de ações e comportamentos humanos somente por um programa genético apoiado na seleção reprodutiva. As instituições humanas são numerosas, variadas e complexas demais para que sua explicação possa depender do mero sucesso em deixar descendentes! O caráter reiterado de certos traços considerados universais é atribuído às consequências de uma programação genética da natureza humana. Esta assertiva é, porém, 36 37 38 PILBEAM, David. The evolution of man. Nova York: Funk and Wagnalls, 1970, p. 195-207; PFEIFFER, John E. The emergence of man. Londres: Sphere Books, 1973, p. 420-421. ZUCKERMAN, S. La hominización de la familia y de los grupos sociales. In: VALLOIS, H. et alii. Los procesos de hominización. Trad. Rafael Angla Marín. México: Grijalbo, 1969, p. 83, 92. WILSON, Edward O. Biology and the social sciences. Daedalus, n. 106, 2, 1977, p. 133; ALEXANDER, Richard. Evolution, human behavior, and determinism. PHILOSOPHY OF SCIENCE ASSOCIATION. Proceedings of the biennial meetings, n. 2, 1976, p. 5. 20 moderada pela explicação das variantes culturais mediante o que os sociobiólogos chamam de “escalas de alternativas geneticamente programadas”, cada uma dessas escalas podendo ser acionada pela incidência de fatores do meio ambiente: uma escala em sua totalidade, e não pontos isolados dela, seria o traço (geneticamente baseado) que foi fi xado pela seleção natural.39 A propensão a “naturalizar” geneticamente os comportamentos humanos pôde também aparecer – com muito menor frequência – a serviço de posturas mais progressistas, embora sem dúvida baseadas em opiniões abstratas e utópicas. Como exemplo, citemos a concepção de natureza humana presente na noção de “humanismo evolucionista” defendida por Julian Huxley, segundo a qual a propensão dos seres humanos para a educação, a ciência e a cultura estaria condicionada por fatores evolucionistas de base genética. Nessa perspectiva, a natureza humana aparece segundo um ângulo que sublinha o altruísmo, servindo de apoio a convicções otimistas acerca das interações humanas, em oposição a opiniões como as de Lorenz ou Ardrey, por exemplo.40 No entanto, os mesmos problemas de comprovação aparecem também neste caso. Seleção natural, psicologia e cultura A partir de 1964, desenvolveram-se os estudos do que foi chamado “antropologia evolucionária” (evolutionary anthropology), que alguns preferem denominar “socioecologia”, e da “psicologia evolucionária” (evolutionary pscychology). Em ambos os casos, vemos a tentativa de estender aos estudos antropológicos e psicológicos raciocínios inspirados em avaliar os “custos e benefícios” do comportamento social de indivíduos em termos das consequências desse comportamento para garantir maior aptidão, ou quanto ao efeito desta última no sentido de fazer chegar os genes individuais às gerações futuras. Embora reconhecendo que tais estudos com frequência foram prejudicados pela indeterminação empírica e por um excesso de especulação teórica, os proponentes e entusiastas desses enfoques salientam a possibilidade de, a partir deles, submeter hipóteses a uma verificação empírica ade- 39 40 WILSON, Edward O. Sociobiology, op. cit., p. 20-21. HUXLEY, Julian. The human crisis. Seattle: University of Washington Press, 1963; HUXLEY, Julian. Essays of a humanist. Harmondsworth: Penguin, 1966. Houve também defesas mais detalhadas de ter sido o altruísmo recíproco elemento central na evolução das características tanto biológicas quanto culturais dos humanos atuais: ver por exemplo LANCASTER, Jane B.; WHITTEN, Phillip. Sharing in human evolution. In: HUNTER, David E.; WHITTEN, Phillip (orgs.), op. cit., p. 53-57. 21 quada e cuidadosa: hipóteses fracas ou incorretas não tardariam a ser excluídas com rapidez.41 Ora, esta convicção revela-se, a meu ver, duvidosa. Entre as pesquisas muito heterogêneas compreendidas dentro desta tendência, temos desde posturas teóricas e metodológicas ainda mais extremas do que as de Konrad Lorenz, por exemplo, que afirmam um determinismo genético estrito dos comportamentos e geram hipóteses impossíveis de comprovar, até posições bem mais moderadas e sensatas que permitem uma comprovação pelo menos parcial mediante o recurso a elementos do registro arqueológico ou etnográfico. Mesmo assim, ainda nessa última possibilidade, pode-se perguntar muitas vezes se o que se está chamando de comprovação de fato cumpre a função pretendida pelo autor, sendo comum que não se considerem suficientemente, para controle, teorias ou hipóteses alternativas. Philip G. Chase, estudando o simbolismo como sendo, de fato, uma expressão que cobre dois fenômenos diferentes − o simbolismo que consiste no uso de signos arbitrários (convencionais) na linguagem e de outros modos, por um lado, e por outro, aquilo que denomina “cultura simbólica”, ou seja, o processo gerador de um entorno intelectual repleto de fenômenos que só puderam emergir simbolicamente e formam um sistema simbólico englobante −, sensatamente descarta a possibilidade de que a “cultura simbólica” pudesse ter uma origem genética. Possui, no entanto, uma função adaptativa, ao permitir o desenvolvimento e a manutenção (mediante sanções positivas e negativas) de formas de cooperação e de altruísmo muito amplas que, de outro modo, não existiriam. Enxerga na cultura simbólica “uma adaptação [que] provavelmente teve mais a ver com fatores do meio ambiente e históricos locais do que com qualquer mudança genética”, a não ser as mudanças genéticas mais antigas “que tornaram possível a referência simbólica”. A comprovação de algo assim, segundo Chase, deveria apelar para a arqueologia, a psicologia, a neurologia e a antropologia (já que os símbolos são invenções sociais, portanto, fenômenos culturais). Entretanto, o pouco que há de semelhante à comprovação em seu texto remete a modelos de simulação, procedimentos capazes de sugerir hipóteses, jamais de comprovar coisa alguma. Eis aqui o argumento principal: Pareceria, então, que a construção de redes sociais generalizadas, fundamentadas em extensa cooperação, se baseou, não em qualquer tendência genética codificada a coope- 41 KNIGHT, Chris; DUNBAR, Robin; POWER, Camilla (org.), op. cit., p. 1: os autores mencionam “uma pletora de estudos empíricos cuidadosamente executados”. 22 rar com estranhos, mas sim na cultura simbólica, que provê a motivação para uma tal cooperação. Isto, porém, não resolve a questão de saber se o aparecimento da cultura simbólica reflete ou não outras mudanças evolucionárias no pool genético humano.42 Como o texto mostrara anteriormente que essas “outras mudanças evolucionárias” de tipo genético seriam disposições de tipo bastante genérico que possibilitaram a emergência da cultura simbólica − coisa com que praticamente todos estão de acordo − e não determinações genéticas diretas de comportamentos específicos, parece-me que o que o texto está propondo, além de independer da determinação genética, só acena ao neodarwinismo mediante a possibilidade de terem as formas de altruísmo, possibilitadoras de redes sociais amplas por sua vez dependentes da cultura simbólica, um valor adaptativo (se não no nível dos indivíduos, num nível social mais vasto). Parece-me também que seria perfeitamente possível tentar comprovar essa hipótese de um modo totalmente independente do mencionado neodarwinismo, introduzindo mudanças em sua formulação e delimitando mais o objeto estudado (ou seja, não querendo explicar de um golpe a humanidade inteira!). Seja como for, o diálogo entre um antropólogo tradicional e um antropólogo e arqueólogo como Chase é perfeitamente possível. O mesmo não pode ser suposto ao se tratar, por exemplo, do texto de Geoffrey Miller sobre a seleção sexual dos desempenhos artísticos. O autor é um determinista estrito: A cultura, mais do que um sistema destinado a transmitir conhecimento tecnológico útil e tradições benéficas para o grupo através das gerações, pode ser considerada como uma arena para várias exibições de cortejamento em que indivíduos tentam atrair e reter parceiros sexuais.43 42 43 CHASE, Philip G. Symbolism as reference and symbolism as culture. In: DUNBAR R.; KNIGHT, C.; POWER, C. (orgs.), op. cit., p. 45. MILLER, Geoffrey F. Sexual selection for cultural displays. In: DUNBAR R.; KNIGHT, C.; POWER, C. (orgs.), op. cit., p. 71. 23 Miller persiste na crueza de afirmações como esta que acabo de reproduzir, por exemplo, ao definir a cultura como “as capacidades geneticamente herdadas para comportamentos como a linguagem, a arte e a música”, explicáveis pela “teoria da seleção sexual”.44 A comprovação tentada, que obviamente nem de longe trata de demonstrar a presença efetiva da carga genética herdada que postula o autor, só a supõe, e consiste em mostrar estatisticamente, no relativo a certo número de álbuns de jazz lançados no mercado, de pinturas modernas que constam do acervo de museus e galerias, e da autoria de alguns milhares de livros, que, em todos os casos, predominam, entre os autores, pessoas jovens (ou relativamente jovens, pelo menos ainda ativas sexualmente) do sexo masculino: assim, devem estar se exibindo, no processo de buscar acesso às mulheres para fins de procriação!45 Provoca uma mescla de horror e fascinação especular sobre como Miller lidaria, por exemplo, com dados sobre as vocações religiosas para a vida de convento entre os católicos da Idade Média, já que provavelmente tais dados lhe mostrariam que as vocações eram predominantes nos mesmos grupos de idade que considera no tocante aos artistas, e também, nesse caso, acharia homens mais do que mulheres; ou como, na Antiguidade, interpretaria a autocastração dos homens jovens que desejavam ser sacerdotes da Grande Deusa síria. Será que expulsaria tais elementos para fora do que chama de cultura, já que, para ele, a explicação desta depende estritamente da “teoria da seleção sexual”? Mesmo em exemplos de estudos menos gritantemente simplórios ou reducionistas, o leitor que não pertença à tendência quase sempre será de opinião que muitas variáveis intervenientes são deixadas de fora, simplificando mais do que seria desejável a construção do objeto de estudo; e que a comprovação às vezes abusa dos modelos de simulação baseados, por exemplo, na teoria dos jogos (o dilema do prisioneiro parece ser um dos modelos favoritos ao se abordar a questão do altruísmo recíproco e de como limitar a incidência do comportamento que tenta se aproveitar de tal altruísmo sem reciprocar), ou na aplicação, que pode parecer fora de contexto, de modelos derivados da microeconomia. Como ao examinar o “materialismo cultural” de Marvin Harris, praticantes de outras tendências das ciências humanas e sociais acharão nesses trabalhos muitas sugestões valiosas, bem como indicações de variáveis e correlações antes não levadas em conta e que vale a pena considerar, mas dificilmente serão convencidos pelos procedimentos 44 45 Idem, ibidem, p. 72. Idem, ibidem, p. 81-87. 24 metodológicos empregados e por certa estreiteza teórica acompanhada de forte viés determinista. Em sua avaliação da socioecologia ou antropologia evolucionária, baseada principalmente na consideração de análises diferentes quanto ao objeto das que citamos − voltadas para a eficiência das ações dos indivíduos e suas interações, no quadro da economia de povos caçadores-coletores, no sentido de garantir a ingestão suficiente de calorias −, afirma Layton: A socioecologia (...) oferece oportunidades excitantes para explicar a variação do comportamento humano. Ao contrário do marxismo, porém, tende a negligenciar as consequências a longo prazo da interação, que resultam em diferenças de riqueza e de poder. O calcanhar de Aquiles da socioecologia consiste em basear-se explicitamente em modelos derivados da economia de mercado, que (...) só se generaliza na sociedade industrial. Quão válido é o processo analógico que explica o comportamento animal mediante modelos designados para explicar as decisões dos lojistas para, então, voltar a aplicar tais modelos a populações humanas não ocidentais? O enfoque é verdadeiramente universal, ou meramente recria outras sociedades segundo nossa própria imagem?46 A vertente dita “humanista” da natureza humana A vertente científica − como foi visto, de fato, pseudocientífica − que pretende derivar uma natureza humana estática, aistórica, da programação genética ou de algum outro fator derivado da biologia, partindo, assim, da noção de existir uma continuidade simples e radical entre o natural (biológico) e o cultural, não é a única que existe. Há interpretações − chamadas por Christopher Berry de “humanistas” em contraposição às “científicas” − que não invocam tal continuidade, mas, sim, constroem a natureza humana, também neste caso fortemente determinista, de diferentes maneiras, vendo-a como uma propriedade particular dos seres humanos que, conforme a corrente, é explicada de diversos modos (em alguns casos é simplesmente postulada e permanece inexplicada quanto à sua origem). Berry inclui entre tais interpretações, por exemplo, o simbolismo, que se baseia na concepção de um homo symbolicus (a natureza humana consistiria na primazia, entre os humanos, da ação simbólica), em autores como Ernst Cassirer ou Marshall Sahlins − quanto a este último, em sua fase influenciada pelo pós-estruturalismo francês −; bem como o contextualismo, que atribui a antropólogos como 46 LAYTON, Robert, op. cit., p. 183. 25 Clifford Geertz: a natureza humana e os comportamentos, neste caso, seriam contextualizados pela cultura específica; os seres humanos são “artefatos culturais” e em função disto é que agem, e as culturas são incomensuráveis entre si, sendo inadequado pretender criticar uma delas a partir de características ou valores externos, provenientes de outra cultura.47 Na verdade, a diferença é mais aparente do que real entre simbolismo e contextualismo: a antropologia geertziana, mesmo se o homo symbolicus foi proclamado mais abertamente por Sahlins e não por Geertz, acha-se, no mesmo grau, obcecada pelo simbólico e pelo sentido. Não é preciso que a natureza e as ações dos humanos sejam afirmadas a partir de bases biológicas para terem, ideologicamente, um caráter de facto conservador do ponto de vista político e ideológico. Mostrou-se, para dar um exemplo, que as concepções de viés culturalista de Clifford Geertz sobre o reino de Negara, e o que o antropólogo descreveu como seu elaborado ritual de corte, foram elaboradas de tal modo que não levaram em conta (e portanto ocultaram) a incidência, na situação estudada, do colonialismo holandês no que é hoje a Indonésia, no século XIX.48 O exemplo de uma atitude conservadora diante do social que escolhi expor, apoiada (neste caso, quase sempre implicitamente) numa determinada visão da natureza humana em que não se mencionam os genes nem, mais em geral, a biologia, é o que os discípulos de Karl Polanyi chamam de posição “formalista”, isto é, a postura teórico-metodológica que, em antropologia ou em história econômica, consiste em acreditar ser possível projetar sobre qualquer período do passado os conceitos e esquemas explicativos gerados pelos economistas, desde o século XVIII, para o estudo da economia capitalista e dos comportamentos humanos em seu interior. Embora muitos dos formalistas não tenham disto consciência, não há dúvida alguma de que sua posição traga, implícita, uma concepção específica, abstrata e generalizante, a respeito da natureza humana (o homo oeconomicus quando levado às últimas consequências, isto é, quando não se restringir a mero modelo exploratório construído com finalidades heurísticas). A partir de 1890, a economia, de economia política que era – portanto, relativamente aberta a fatores políticos e sociais em suas análises –, tendeu 47 48 BERRY, Christopher J. Natureza humana. In: OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom (orgs.). Dicionário do pensamento social do século XX. Trad. Álvaro Cabral; Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 517-518. Edição inglesa: 1993. KUPER, Adam. Culture: The anthropologists’account. Cambridge (Mass.); Londres: Harvard University Press, 1999, p. 81, 116-118. 26 a transformar-se em disciplina taxativamente separada das outras ciências sociais e humanas, crescentemente matematizada e girando em torno dos conceitos de escassez e utilidade, bem como da abstração conhecida como homo oeconomicus − um homem totalmente informado, totalmente racional em suas escolhas e marcado pelo hedonismo (entendido como busca do máximo de satisfação mediante o menor dispêndio possível de esforço e fatores de produção) −, limitando-se cada vez mais ao estudo dos sistemas de mercados e do processo de formação dos preços em tais mercados, bem como à noção universalizada de recursos escassos. No século XX, isto acabou tendo influências sobre a tendência da história econômica anteriormente conhecida como modernista, a qual veio a assumir a forma que Polanyi chamava de formalista. O formalismo − na antropologia e na história econômica − resultou da confluência gradual de numerosas influências compatíveis entre si: a economia política clássica, as teorias neoclássicas, a microeconomia convencional, a estatística e a cliometria de certos historiadores, bem como a teoria da utilidade marginal. Conforme os autores, um ou alguns destes componentes podem assumir maior importância do que os demais na explicação dos comportamentos individuais. Mencionamos que uma das bases do desenvolvimento de uma ciência econômica que já não fosse, no essencial, uma economia política, como anteriormente acontecia, consistiu na noção central de escassez, em conjunto com a opinião sobre como os seres humanos (sempre individualmente considerados) lidam com tal escassez e, em função dela, decidem como agir. A teoria da utilidade marginal baseia suas pretensões à universalidade na proposição de serem os recursos escassos em toda parte: a economia seria, neste paradigma, um sistema em que os indivíduos calculam, racionalmente, como alocar meios escassos entre empregos alternativos deles. Isto é entendido como uma atividade universal, presente em quaisquer períodos ou regiões, de que todos os seres humanos participam, independentemente de qualquer contexto, mediante suas decisões e ações. A tarefa da história econômica, nesta perspectiva, limitar-se-ia, no essencial, a entender como agem os indivíduos − natural e racionalmente gananciosos − para a maximização de seu controle sobre recursos escassos.49 O ponto de vista dos historiadores formalistas da economia traz consigo, em sua pretensão à universalidade de certa natureza humana e dos 49 BLEIBERG, Edward. The official gift in ancient Egypt. Norman; Londres: The University of Oklahoma Press, 1996, p. 7. 27 comportamentos que determina, uma carga ideológica de apologia do capitalismo, uma noção de sua inevitabilidade “natural” estendida ao curso total da trajetória humana, do Paleolítico Inferior à atualidade. Embora tal carga possa muitas vezes permanecer implícita, em certos casos ela se explicita. Assim, por exemplo, Donald McCloskey afirma que a crença na inexistência de mercados nas sociedades não-modernas ou não-ocidentais leva a ignorar as virtudes burguesas − uma falha diante da qual o autor prega uma volta à ética do negócio honesto e das trocas amigáveis...50 Deliciosamente ideológica é, também, a opinião expressada por Morris Silver de que a visão dos profetas de Israel era má porque procurava limitar a ação dos mercados para preservar a justiça.51 Que terrível crime contra sua majestade, o mercado! Do outro lado da barreira: as posturas críticas a uma natureza humana fixa e aistórica Num livro de síntese de Peter Singer a respeito do marxismo − obra política e filosoficamente conservadora, portanto, negativa no essencial em suas conclusões sobre a corrente de pensamento que aborda −, o último capítulo se intitula An assessment (Uma avaliação). Após contrastar a noção marxista de liberdade com a do liberalismo, o autor trata de apontar a razão da inviabilidade da proposta marxista a partir de sua concepção da natureza humana. Para Marx, afirma Singer, esta última não existiria fora da história; alterar-se-ia com as mudanças das condições econômicas e sociais de cada período, razão pela qual a destruição da ganância, do egoísmo e da ambição individual seria factível mediante a abolição da propriedade privada e o estabelecimento da propriedade coletiva sobre os meios de produção e de troca, o que conduziria a uma sociedade em que as pessoas fossem motivadas, doravante, pelo desejo do bem comum, não mais pela busca da vantagem individual. Singer argumenta que a natureza humana não é tão histórica, nem tão maleável quanto Marx esperava. O egoísmo não pode ser eliminado por uma reorganização econômica, nem pela abundância de bens materiais. Resolvidas as necessidades básicas de subsistência, outras “necessidades” emergem. Ora, pergunta o autor: “Como poderíamos conseguir para cada pessoa uma casa numa posição dotada de privacidade com vista para 50 51 McCLOSKEY, Donald. Bourgeois virtue. The American Scholar, n. 63, 1994, p. 177-191. SILVER, Morris. Prophets and markets. Nova York: Barnes & Noble, 1983, p. 250. 28 o mar e, ao mesmo tempo, a uma distância cômoda da cidade?”52 Ele não cogita, é claro, da solução social óbvia: reservar os ambientes especialmente desejáveis para uso e fruição coletivos. Para Singer, os desejos egoístas têm raízes profundas, não somente no que tange à procura de riquezas, mas também de status e poder, num nível individual ou familiar. Neste ponto, apela para uma das argumentações conservadoras mais usuais: a afirmação do caráter “natural” daquelas raízes, invocando comparações com o mundo animal. A territorialidade bem como a hierarquia do status e do poder estariam, portanto, inscritas em nossos genes, o que as tornaria geradoras de comportamentos inevitáveis porque naturais.53 Neste artigo, tive ocasião de expor e comentar posições conservadoras deste tipo. Do outro lado da barreira ideológica, o que, conforme verificamos, afirmou Singer a respeito de como o marxismo veria a natureza humana não é de todo exato. Sem dúvida, tal natureza nada tem de imóvel, de dado imutável, já que se transforma em forma constante ao longo do próprio processo histórico: no mesmo movimento em que modificam a natureza extra-humana, os humanos mudam a sua própria, desenvolvendo gradualmente as faculdades que nela existam em potencial.54 Também é certo que o marxismo é de todo contrário à forma habitual e estática de encarar a “natureza humana”, adscrevendo a esta − sem quaisquer provas e independentemente das circunstâncias − tendências inatas a comportamentos que expressam a competitividade, a territorialidade agressiva, a ganância e a vontade de adquirir bens. Sendo esta a tradição conservadora quanto ao uso da noção de natureza humana, neste sentido é correto afirmar que não existe, para o marxismo, uma natureza humana que não seja estritamente histórica. Mas esta história é primeiro natural; o processo histórico, no seu sentido especificamente humano, só gradativamente se destaca da história natural. Não procede do próprio Marx a tradição − forte entre os marxistas − de negar a existência de qualquer natureza humana stricto sensu: a própria tendência dos humanos socialmente organizados a agir no sentido de reter forças produtivas superiores, uma vez obtidas, mediante a mudança das relações de produção, afirmada por Marx, se parece a um postulado sobre a natureza humana, mesmo sendo sua realização concreta muito variável ao 52 53 54 SINGER, Peter. Marx. Oxford: Oxford University Press, 1980, p. 73-75. Idem, ibidem, p. 74-76. MARX, Karl. Le capital: Critique de l’économie politique. Tomo I. Paris: Éditions Sociales, 1967, p. 180. 29 longo do tempo.55 Tal postulado, por sua vez, parece depender de outro, mais geral: o caráter racional e social dos seres humanos.56 Um pré-historiador marxista exemplifica nos pontos seguintes a herança biológica do homem. Na medida em que os humanos são animais, tão dependentes da evolução biológica quanto os outros, sendo mais exatamente mamíferos e primatas, obviamente partilham com os demais mamíferos, em especial com os primatas, certas características: um cérebro grande e complexo; elementos que derivam de um passado arborícola comum que, por exemplo, favoreceu a evolução de uma visão aguçada, em cores e estereoscópica, bem como da precisão na coordenação de mãos capazes − mesmo antes do desenvolvimento cabal da oposição do polegar aos demais dedos − de movimentos consistentes ao agarrar e manipular objetos. O forte laço entre mãe e criança e a infância protraída que se caracteriza por um longo processo de aprendizagem, acompanhado necessariamente pelo cuidado intensivo da cria, também são traços partilhados por todos os primatas (mesmo se em graus variáveis). Em consequência, a vida social dos primatas − incluindo a dos humanos, em grau superlativo − se caracteriza por padrões de organização mais complexos e flexíveis do que aqueles característicos de outras espécies gregárias. A vida social e os modos de agir dos humanos dependem de um conjunto complexo de mecanismos sociais, psíquicos e biológicos que surgiram durante uma trajetória evolutiva que, em parte, é partilhada por eles com outros animais: não pode haver, por tal razão, uma fronteira final entre o natural e o cultural. A possibilidade mesma de se comportar segundo tradições culturais constitui uma parte integral da história humana e depende de uma longa interação entre os processos genéticos e culturais integrantes da evolução da espécie. Em suma, a cultura e os modos de agir que incentiva não procedem dos genes; mas sua possibilidade, nos humanos, tem fundamentos genéticos que não parecem ter mudado perceptivelmente nos últimos 40 a 50 mil anos, isto é, desde a emergência do Homo sapiens sapiens.57 Para expor as opiniões de Karl Marx em maior detalhe, podemos conceder importância estratégica aos manuscritos de 1844. Talvez seja este o texto mais claro no sentido de mostrar que, no raciocínio marxiano, a natureza 55 56 57 COHEN, G. A. Karl Marx’s theory of history: A defence. Princeton (Nova Jersey): Princeton University Press, 1978, p. 151-152; SHAW, William H. Marx’s theory of history. Londres: Hutchinson, 1978, p. 62. McCARNEY, Joseph. Social theory and the crisis of Marxism. Londres; Nova York: Verso, 1990, p. 156. MEGARRY, Tim, op. cit., p. 96; COHEN, G. A., op. cit., p. 151. 30 humana tem um caráter natural (no sentido biológico), assentada em ser o homem social e racional, sendo, porém, ao mesmo tempo, radicalmente histórica. Há, no texto mencionado, a insistência em serem os humanos parte da natureza, seres naturais. A emancipação pretendida pelo marxismo tem de ser, então, a do “homem real, dotado de um corpo, com seus pés firmemente assentados no chão, do homem que exala e inspira todas as forças da natureza”. Tal emancipação será também a de todos os sentidos e qualidades humanos. Para Marx, só assim a natureza dos homens poderá tornar-se uma natureza verdadeiramente humana. A sociedade resultante da emancipação revolucionária será aquela em que se dará a autêntica unidade do homem com a natureza. Ao longo de toda a exposição, o caráter histórico da visão marxiana é consistente: “é na história humana, na gênese da sociedade humana” que se desenvolve a “natureza humana real”. E “a própria história é uma parte real da história natural”. A necessidade que cada ser humano sente de outro “como uma pessoa” tem uma base natural, em última análise, biológica: o homem é um ser social num sentido muito profundo; e a autorrealização individual só pode ser a que é própria de um ser eminentemente social. Entretanto, para que ocorra adequadamente, ela depende do longuíssimo processo histórico que conduz à emancipação.58 O marxismo, dentre as correntes que criticam as “naturezas humanas” estáticas, é especialmente sofisticado em suas posições, ao assumir também a existência e importância dos elementos naturais na evolução dos humanos. Está muito longe, no entanto, de ser, a respeito, a única postura crítica. O movimento de ideias que, na França, viria a desembocar nos Annales da primeira e da segunda gerações (1930-1969), desde muito antes, na esteira da herança iluminista, era já enfático na negação de uma natureza humana estática, aistórica. Isto foi expressado, em linguagem bizarra para nós hoje em dia, pelo médico e anatomista Edmond Perrier quando, ao concluir uma análise da trajetória da Terra até a hominização, afirmou que, por mais que nós, os humanos, sejamos um produto da evolução biológica tanto quanto quaisquer outros animais, em nossa trajetória, “o espírito sempre dominou a matéria”.59 No contexto em que escrevia, o autor queria dizer que, uma vez desenvolvido um cérebro excepcionalmente grande e complexo entre os humanos, a cultura e os comportamentos a ela vinculados passaram a 58 59 MARX, Karl. Economic and philosophic manuscripts of 1844. Moscou: Progress Publishers, 1974, p. 89-136. PERRIER, Edmond. La Terre avant l’histoire: Les origines de la vie. Paris: La Renaissance do Livre, 1921, p. 386 (L’évolution de l’humanité). 31 predominar sobre a herança genética. “O homem faz-se a si próprio”, na conhecida fórmula do arqueólogo Gordon Childe, altamente influente em meados do século XX; este autor o entendia, sem ambiguidade, no sentido de uma clara supremacia, entre os seres humanos, da adaptação cultural ao meio ambiente, com seus resultados maleáveis, históricos e mutáveis, sobre a adaptação biológica.60 Entre os antropólogos, esta opinião − que encara a cultura como algo análogo, mas ao mesmo tempo alternativo à evolução biológica − transformou-se mesmo num lugar comum, que encaravam quase como um truísmo: a cultura “tornou-se uma propriedade peculiar dos seres humanos”, sendo a especialização humana na cultura semelhante, por exemplo, àquela da girafa num longo pescoço.61 Afirmar ao mesmo tempo a analogia e a diferença entre herança histórico-cultural e herança biológica − sem negar necessariamente que esta última exista entre os humanos dentro de certos limites − é postura amplamente predominante, embora nem todos os historiadores e cientistas sociais concordem com ela. Para o antropólogo Michael Carrithers, por exemplo, o caráter social dos humanos é transmitido geneticamente e vem evoluindo mediante a seleção natural − o que é objeto da crítica de outro antropólogo, Tim Ingold, que escolhe uma posição distinta: o caráter eminentemente social dos seres humanos depende é das interações entre pessoas em diferentes contextos históricos, no quadro (extremamente genérico) de uma estrutura genética herdada. Não se trata, então, de que as relações sociais resultem da associação de indivíduos, cada um dos quais pré-programado geneticamente para um comportamento baseado na cooperação e na interdependência, como quer Carrithers, mas, sim, o caráter social consiste em algo imanente ao campo de interações em que se desenvolve a vida humana − algo eminentemente histórico, portanto.62 Do lado dos historiadores, a insistência de Lucien Febvre no uso do plural “os homens”, de preferência a “o homem”, expressava exatamente a afir- 60 61 62 CHILDE, Vere Gordon. O homem faz-se a si próprio: O progresso da humanidade desde as suas origens até ao fim do Império romano. Trad. Vitorino Magalhães Godinho; Jorge Borges de Macedo. Lisboa: Edições Cosmos, 1947, p. 9-48. BOHANNAN, Paul. Beyond civilization: on the past, present, and future of man. In: DUNBAR R.; KNIGHT, C.; POWER, C. (orgs.), op. cit., p. 217. O artigo de Bohannan foi publicado pela primeira vez em 1971. CARRITHERS, Michael. Why humans have cultures. Oxford: Oxford University Press, 1992; INGOLD, Tim. A evolução da sociedade. In: FABIAN, A. C. (org.). Evolução: Sociedade, ciência e universo. Trad. Marisa Baldani Peres Moreira. Bauru: Edusc, 2003, p. 122-127. O artigo de Ingold foi publicado em inglês em 1998. 32 mação da heterogeneidade inerente a uma natureza humana que fosse explicativa dos comportamentos e ações; ela só existe historicamente: “a virtude cardeal do historiador é o sentido do movimento”, a negação do postulado de uma “necessidade perpétua”. Febvre chegou a escrever que o homem não tem natureza, mas, sim, história, afirmando ser a “natureza humana” stricto sensu uma hipótese desprovida de qualquer utilidade para os historiadores.63 Conclusão A natureza humana, num sentido estrito, até mesmo genético, existe sem dúvida alguma. Afirmar o contrário seria absurdo, sendo como somos seres corpóreos, dotados de uma carga genética e emergentes de um processo evolutivo biológico. Por exemplo, a percepção humana do espaço é anisotrópica − estima as dimensões verticais com maior precisão do que as horizontais −, uma característica herdada da fase arborícola dos primatas.64 Tudo depende é dos limites e das inferências a que se chegue a partir da constatação de tal existência, o que, por sua vez, decorrerá, antes de mais nada, da opinião que se tenha sobre as origens do comportamento social e cultural no caso do Homo sapiens sapiens. Há, a respeito, duas posições polares. De um lado estão os que consideram ter significado, o surgimento do homem totalmente moderno, um avanço radical nas capacidades biológicas inatas dos humanos, no nível, muito especialmente, de nosso cérebro e das capacidades cognitivas que passou a permitir, extremamente ampliadas em comparação com as que possuem os demais primatas. Admitido isto, não é necessário postular, doravante, uma determinação genética de cada comportamento social ou cultural, já que o salto qualitativo na cognição teria conduzido a que, desde então, o processo cultural se constituísse num mecanismo autônomo, ao mesmo tempo diferente e análogo ao da evolução biológica. Neste caso, aceita-se, sem dúvida, uma capacidade para a cultura e o comportamento social ancorada em bases genéticas; mas, uma vez assentadas estas bases, as adaptações humanas ulteriores às transformações do meio ambiente e das circunstâncias passaram a 63 64 FEBVRE, Lucien. Combates por la historia. Trad. Francisco J. Fernández Buey; Enrique Argullol. Barcelona: Ariel, 1970 [1953], p. 150, 157; BERENZON GORN, Boris, op. cit., p. 101. HAVEMANN, Robert. Dialéctica sin dogma: Ciencia natural y concepción del mundo. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1967 [1963], p. 46-61, 33 depender da própria dinâmica social e cultural, e não de múltiplas incidências genéticas detalhistas de que se possam deduzir traços e comportamentos sociais e culturais. É possível ir ainda mais longe e negar qualquer importância, mesmo fundadora, à evolução biológica na emergência da cultura e dos comportamentos sociais característicos dos últimos 40 a 50 mil anos: com efeito, autores há que negam, na passagem do Paleolítico Médio ao Superior, a incidência do mencionado salto qualitativo biológico, tudo atribuindo não a diferenças de capacidade (geneticamente programada), mas, sim, de desempenho: em outros termos, a mudança não haveria ocorrido na carga genética mas, sim, como resultado de uma espécie de revolução sociocultural dos comportamentos.65 Note-se que os que assim raciocinam não deixam de acreditar numa incidência genética possibilitadora das transformações posteriores, só as transportam para trás no tempo, para mais de 100 mil anos no passado. Do outro lado, estão os que, como vimos, negam ou limitam muito a autonomia dos processos sociais e culturais humanos, já que preferem atribuí-los, até mesmo em seus detalhes, a uma determinação direta, genética ou, de outra maneira, biológica. Como foi assinalado, esta posição extrema, fundadora de uma natureza humana de tipo biológico que, afinal de contas, tudo determina em última análise entre os humanos socialmente organizados, não tem a seu favor elementos válidos de comprovação. Verificou-se também que outras modalidades da natureza humana podem ser postuladas sem que, em sua origem, achemos considerações biológicas. Em muitos casos, nem mesmo se aborda o problema das suas raízes. Obviamente, isso abre caminho, de imediato, à dúvida de que em tais casos haja, verdadeiramente, uma natureza humana em ação. Se bem que as duas maneiras de afirmar uma natureza humana “forte” − a “científica” e a “humanista”, se seguirmos a distinção de Christopher Berry − sejam bastante diferentes entre si, as posições, seja a favor, seja contra qualquer natureza humana stricto sensu, têm configurações similares no relativo à ideologia e à política. Grosso modo, as posturas favoráveis a uma natureza humana stricto sensu, determinante dos comportamentos até mesmo no detalhe, costumam ser conservadoras, ou mesmo reacionárias. E não por acaso: qualquer tipo de natureza humana “forte” é bem mais útil para quem quiser defender que as coisas são como devem ser, já que se configuram segundo uma necessidade de base natural, portanto inescapável, do que para 65 LEWIN, Roger. The origin of modern humans. Nova York: Scientific American Library, 1998, p. 116. 34 os que insistem no caráter radicalmente histórico e mutável das sociedades humanas. A não ser, claro está, que se aceite − algo bem raro − uma concepção complexa do tipo da que defendia Marx, no bojo da qual a natureza humana se mostre simultaneamente natural e histórica. Entre os historiadores predominam os que tendem a não levar em conta a natureza humana em suas explicações: fazer derivar os processos e comportamentos que estudam tais historiadores de uma necessidade fi xa, dada de uma vez para sempre − genética ou, de outro modo, natural −, é todo o contrário da démarche historiográfica habitual, valorizadora de processos específicos de tipo social ou cultural. Por tal razão, mesmo os cultores da assim chamada nova história cultural mais entusiastas do homo symbolicus de Cassirer ou de Sahlins estarão, na prática, bem mais interessados no estudo de semioses concretas, historicamente delimitadas, do que inclinados a atribuir as ações e os comportamentos a disposições inatas dos seres humanos. Isto ajudaria a explicar, por exemplo, que, enquanto Clifford Geertz, um antropólogo, tendia a perceber os significados culturais como se fossem coextensivos à totalidade do social, os historiadores, nas mesmas circunstâncias, costumavam identificar, nas sociedades complexas, diversas versões e apropriações, coexistentes e eventualmente em conflito entre si, dos mesmos elementos culturais: uma postura metodológica mais similar à de Roger Chartier ou à de Pierre Bourdieu, do que à de Geertz. Referências bibliográficas AIELLO, Leslie C.; DUNBAR, Robin I. M. Neocortex size, group size and the evolution of language. Current Anthropology. Londres, n. 34, 1993, p. 184-193. ALBESSARD, A. D’où vient l’humanité? Paris: Le Livre de Poche, 1969. Encyclopédie Planète. ALEXANDER, Richard. Evolution, human behavior, and determinism. PHILOSOPHY OF SCIENCE ASSOCIATION. Proceedings of the biennial meetings, n. 2, 1976, p. 3-21. ARDREY, Robert. 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Recebido: 21/12/2011 - Aprovado: 23/03/2012 38 OS DURKHEIMIANOS NO MUSÉE DES ANTIQUITÉS NATIONALES: SOBRE REDES INTELECTUAIS E DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES (FRANÇA, TERCEIRA REPÚBLICA)1 Rafael Faraco Benthien Contato Pós-doutorando – Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (bolsista Fapesp). Rua Dr. Nogueira Martins, 420, Apto. 83 04143-020 – Saúde – São Paulo – SP E-mail: [email protected] Resumo O Musée des Antiquités Nationales acolheu sociólogos próximos a Durkheim enquanto eles lutavam para se firmar no cenário intelectual francês. O presente artigo visa apresentar e discutir o perfil de tal instituição, dando ênfase ao espaço que a sociologia veio aí a ocupar. Palavras-chave Musée des Antiquités Nationales – sociologia – arqueologia. 1 O presente artigo apresenta resultados de minha tese “Interdisciplinaridades: latinistas, helenistas e sociólogos em revistas”, defendida em maio de 2011 junto ao programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, apoiada pela Fapesp e orientada por Francisco Murari Pires. Uma primeira versão do presente texto foi apresentada, nos quadros de um study day organizado pelo British Centre for Durkheimian Studies da Universidade de Oxford, em novembro de 2010. O nome de Christine Lorre merece ser aqui evocado: sem ela, muito do que se vê aqui não teria sido possível. Por fim, indico que toda tradução dos textos franceses, salvo indicação contrária, é de minha responsabilidade. 39 DURKHEIMIANS AT THE MUSÉE DES ANTIQUITÉS NATIONALES: ABOUT INTELECTUAL NETWORKS AND INTERDISCIPLINARY DIALOGUES (FRANCE, THIRD REPUBLIC) Rafael Faraco Benthien Contact Postdoctoral student at Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas of Universidade de São Paulo (Fapesp’s grantee). Rua Dr. Nogueira Martins, 420, Apto. 83 04143-020 – Saúde – São Paulo – SP E-mail: [email protected] Abstract The Musée des Antiquités Nationales hosted sociologists close to Durkheim during the period they struggled to establish themselves on the French intellectual scene. This paper aims to present and discuss the profile of this Museum, emphasizing the space sociology held in that institution. Keywords Musée des Antiquités Nationales – sociology – archeology. 40 Em um texto autobiográfico produzido em 1930, por ocasião de sua derradeira campanha ao Collège de France, Marcel Mauss apresentou nos seguintes termos o projeto intelectual que o ligava a Henri Hubert, seu amigo e interlocutor privilegiado:2 Nós [Hubert e eu] descobrimos juntos o mundo [da] humanidade pré-histórica, primitiva, exótica, o mundo semítico e o mundo indiano, além do mundo antigo e do mundo cristão que já conhecíamos. Quando dividimos nossos estudos e repartimos nossas competências para melhor conhecer esses mundos, fomos um pouco loucos. Ainda assim, graças ao bom senso e ao trabalho, creio eu, realizamos nosso projeto. Só a morte de Hubert o torna caduco. Sem ela, com a ajuda de nossos alunos, apoiados no Museu de Saint-Germain, no Institut d’Ethnologie e no Année Sociologique, confrontando os últimos resultados de nossos trabalhos com o de outros especialistas de nossas ciências tornados cada dia mais numerosos sobretudo no estrangeiro, nós recolheríamos os frutos tardios de nossos esforços. A despeito da importância que lhe foi atribuída na passagem acima reproduzida, o Musée des Antiquités Nationales, situado em Saint-Germain-en-Laye, nos arredores de Paris, suscitou até hoje pouco interesse dos especialistas na história da “escola sociológica francesa”. Em paralelo aos estudos pontuais voltados à influência da sociologia na montagem de suas salas de exposição e na análise de suas coleções,3 a única investigação sistemática produzida sobre o tema foi o dossiê “Henri Hubert”, publicado há pouco mais de uma década por Patrice Brun e Laurent Olivier na revista Les Nouvelles de l’Archéologie.4 Nele, porém, tratou-se basicamente de caracterizar a formação do Hubert-arqueólogo, de mapear suas contribuições ao museu e de mensurar o impacto de sua obra no desenvolvimento da arqueologia francesa. Ainda que se reconheça o interesse de uma investigação acerca dos sucessos e dos fracassos da sociologia sob a perspectiva de uma disciplina como a arqueologia, o presente artigo investe em outra direção. Importa mais aqui destacar algumas das redes institucionais e intelectuais que 2 3 4 MAUSS, Marcel. L’œuvre de Marcel Mauss par lui-même. Revue Française de Sociologie. Paris: CNRS, vol. 20-21, 1979, p. 215. Em especial, MOHEN, Jean-Pierre. Henri Hubert et la Salle de Mars. Antiquités Nationales. SaintGermain-en-Laye: Musée des Antiquités Nationales, no 12-13, 1980-1981, p. 85-89; e LORRE, Christine. Henri Hubert (1872-1927) et l’aménagement de la Salle de Mars: un atelier de sociologie durkheimienne. Antiquités Nationales. Saint-Germain-en-Laye: Musée d’Archéologie Nationale, no 41, 2010. Cf. BRUN, Patrice; OLIVIER, Laurant. Henri Hubert. Les Nouvelles de l’Archéologie. Paris: Maison de Sciences de l’Homme, no 79, 2000, p. 5-32. 41 atravessaram o Musée des Antiquités Nationales na Belle Époque, bem como problematizar os eventuais usos que os colaboradores de L’Année Sociologique delas fizeram. Com efeito, não se pode ignorar que diretores e conservadores dessa instituição transitaram também por espaços não necessariamente ligados à arqueologia, permitindo com que mundos diferentes pudessem aí convergir. Mas quem foram eles? Quais pontes ajudaram a construir? E, por fim, como isso tangenciou o processo de emergência da sociologia universitária? Alexandre Bertrand e os primórdios do Museu de Saint-Germain A inauguração do Musée des Antiquités Nationales, ocorrida em meio às festividades da Exposição Universal de 1867, remete às agendas políticas e científicas do Segundo Império. Alguns anos antes, interessado em alimentar o nacionalismo francês contra as ameaças advindas dos processos de unificação da Itália e da Alemanha, Napoleão III havia financiado uma série de escavações em Alise-Sainte-Reine, no departamento da Côte-d’Or, centro-leste do país. Engajado na redação de uma biografia de Júlio César, na qual a conquista da Gália ocupa um considerável espaço, o imperador almejava aí recolher vestígios da passagem do general romano. O resultado, no entanto, superou as expectativas iniciais: os especialistas encarregados da exploração julgaram encontrar em Alise-Sainte-Reine as ruínas da cidade de Alésia, último bastião da resistência gaulesa contra a ocupação romana. O Estado passou então a se preocupar com o tratamento e a exposição do material acumulado. Em se tratando de um dos episódios mais simbólicos para a constituição do povo francês, era preciso agir rápido. O decreto determinando a criação de um museu destinado às antiguidades galo-romanas em Saint-Germain-en-Laye foi assinado em março de 1862, em meio às descobertas na Côte-d’Or. Quanto ao local designado para acolhê-lo, tratava-se de uma municipalidade rica, situada cerca de vinte quilômetros a oeste da capital e a ela ligada por uma linha férrea desde 1847. Mas o maior patrimônio de Saint-Germain-en-Laye era outro, sua história. Entre o século XII e o término da construção de Versailles, em 1682, ela dividiu com Paris a honra de abrigar a corte real. Pensando em vincular o novo museu a esse glorioso passado nacional, o governo francês optou por instalá-lo em um dos palácios locais, o “velho castelo”, situado nas imediações da estação de trens. Nomeada em abril de 1865, uma comissão de notáveis foi incumbida das tarefas de velar pelo restauro da futura sede e de conceber 42 seu regulamento científico. Um ano mais tarde, definiu-se a vocação da instituição nos seguintes termos:5 O museu de Saint-Germain tem por finalidade centralizar todos os documentos relativos à história das raças que ocuparam o território da Gália desde os tempos mais remotos até o reino de Carlos Magno, classificar esses documentos de acordo com uma ordem metódica, tornar seu estudo fácil e disponível ao público, editá-los e difundir seu ensino. Desse modo, se o Louvre pretendia servir à França ao especializar-se cada vez mais na história dita universal, o que incluía os vestígios materiais de antigas civilizações e as façanhas artísticas das modernas, Saint-Germain investiu na pré-história, na Antiguidade e no Medievo, mas privilegiando um ângulo de ataque nacional. Complementares, as duas instituições passaram a constituir o núcleo do que à época se considerava o melhor em termos de ensino e de pesquisa arqueológicas na França.6 Dentre os vários responsáveis pelo sucesso desse projeto, destaca-se o nome de Alexandre Bertrand. Ele foi o único a participar das escavações em Alise-Sainte-Reine, a integrar a comissão responsável pela criação do museu e, ainda, a ser seu primeiro diretor, posição que manteve por um período de trinta e cinco anos, até sua morte em 1902. Nascido na Paris de 1820, Bertrand pertenceu a uma família inclinada às atividades intelectuais: seu pai (1795-1831), de quem herdou nome e sobrenome, era um reputado médico, ao passo que seu irmão caçula, Joseph (1822-1900), veio a se tornar professor de matemática e de física no Collège de France. Sua formação escolar e profissional sofreu assim uma influência das ciências naturais. Em um primeiro momento, ele chegou mesmo a obter um bacharelado de ciências, embora tenha optado por prestar a seguir o exame de admissão na seção de letras da École Normale Supérieure, onde foi recebido em 1840. Na sequência, Bertrand atuou como professor do ensino fundamental em Pau e, mais tarde, como bolsista de agrégation em Paris. O sucesso no concurso de agrégation de lettres em 1848 lhe permitiu o primeiro contato com a arqueologia. Graças a ele, Bertrand atuou como membro da recém-fundada École Française d’Athènes. Sabe-se que as primeiras décadas dessa instituição foram marcadas por precariedades de toda sorte.7 5 6 7 Disponível em www.musee-archeologienationale.fr/template.php?SPAGE=21. Acesso 13/08/2011. Isso explica, a reboque, o caráter elitista do recrutamento da instituição. Como se verá na sequência, três dos quarto conservadores que o MAN teve até 1918 provinham das melhores écoles francesas. Cf. VALENTI, Catherine. L’École Française d’Athènes. Paris: Belin, 2006, p. 11-55. 43 Na ausência de um projeto científico claro, ela tateava entre a tradição literária francesa e o primeiro contato com novas disciplinas como a epigrafia e a arqueologia. Alexandre Bertrand, como assinala uma recente nota biográfica, encarnou perfeitamente tal ambiguidade.8 Nos anos em que foi professor de retórica no liceu de Rennes (1851-1858), logo após seu retorno da Grécia, os temas de sua tese e de seus primeiros livros estiveram ligados ao estudo tanto da mitologia quanto da arqueologia helênicas.9 A conversão definitiva de Bertrand à arqueologia se deu após esse período, quando assumiu a direção da Revue Archéologique e, sobretudo, quando tomou parte nas escavações iniciadas na Côte-d’Or, respectivamente em 1860 e 1861. Ao menos é o que sugere a rápida transformação de seus interesses e de suas inserções institucionais. Em meados da década de 1860, ele publicou uma edição crítica das memórias de César sobre sua campanha na Gália, aí incluindo longas discussões arqueológicas.10 Nas décadas de 1870 e 1880, deu ênfase à produção dos primeiros catálogos sistemáticos sobre a arqueologia céltica e gaulesa.11 Por fim, em seus últimos anos de vida, explorou os vestígios dos celtas fora da Gália (no norte da Itália e ao longo do Danúbio), bem como se interessou por estudar suas crenças religiosas.12 Quanto às prebendas acumuladas, além da direção do Musée des Antiquités Nationales e da Revue Archéologique, Bertrand passou a ocupar, por ocasião da fundação da École du Louvre em 1882, a cadeira intitulada Archéologie Nationale. Ele ainda se tornou membro fundador da Association pour l’Encouragement 8 9 10 11 12 CHEW, Hélène. Alexandre Bertrand. In: SÉNÉCHAL, Claire; BABILLON, Philippe. (orgs.). Dictionnaire critique des historiens de l’art. Paris: L’Inha, 2010. Disponível em http://www.inha.fr/spip. php?article2197. Consultado em 13/08/2011. Trata-se de BERTRAND, Alexandre. Essai sur les dieux protecteurs des héros grecs et troyens dans l’Iliade. Paris: Catel, 1858 e BERTRAND, Alexandre. Études de mythologie et d’archéologie grecques d’Athènes à Argos. Paris: Catel, 1858. É interessante comparar sua trajetória com a de outro pioneiro dos estudos científicos franceses, Michel Bréal. Também neste caso, a consagração enquanto linguista veio após os estudos sobre mitologia e semântica envolvendo basicamente a cultura greco-latina. Veja-se, por exemplo, as diferenças de conteúdo entre os artigos mais antigos e os mais recentes que compõem a seguinte coletânea: BRÉAL, Michel. Mélanges de mythologie et de linguistique. Paris: Hachette, 1877. Cf. BERTRAND, Alexandre; CREULY, Casimir. Commentaires de Jules César. Guerres de Gaules. Paris: Didier, 1865. BERTRAND, Alexandre. Archéologie celtique et gauloise: mémoires et documents relatifs aux premiers temps de notre histoire nationale. Paris: Didier, 1876; BERTRAND, Alexandre. La Gaule avant des gaulois: d’après les monuments et les textes. Paris: Leroux, 1884. Cf., respectivamente, BERTRAND, Alexandre; REINACH, Salomon. Les celtes dans la valée du Pó. Paris: s. e., 1894. BERTRAND, Alexandre. La religion des gaulois, les druides et le druidisme. Paris: s. e., 1897. 44 des Études Grecques en France (1867), presidente da Société d’Anthropologie de Paris (1868) e foi eleito membro efetivo da Académie des Inscriptions et Belles-Lettres (1881). Sem entrar aqui nos méritos ou na atualidade dos trabalhos de Bertrand, é possível reconhecer que sua trajetória ilumina, por si só, muitas das circunstâncias que marcaram os primórdios do museu de Saint-Germain. Ela permite atentar, em primeiro lugar, para certas especificidades do sistema de ensino francês. Estando aí bastante implicado, Bertrand representou uma das possibilidades de autossuperação desse sistema; afinal, se ele permaneceu marcado por um ensino literário clássico, então dominante, utilizou esse saber para avançar na direção da investigação científica.13 Os vínculos com a Association pour l’Encouragement des Études Grecques en France e sua eleição para o Institut mostram bem que não houve de sua parte intenção de ruptura institucional, assim como apontam para a boa acolhida que lhe foi reservada. Já, quanto às aproximações com as ciências naturais e com a antropologia, tão necessárias ao desenvolvimento da arqueologia moderna, elas esclarecem as direções nas quais foi possível acrescentar algo ao que já se fazia na universidade francesa. O segundo ponto a ser aqui destacado é que os links institucionais e a consagração intelectual de Bertrand se confundiram com o Musée des Antiquités Nationales, conformando seu legado à instituição. De fato, estando seu diretor em uma posição hierarquicamente dominante nos primórdios da arqueologia francesa, seus atributos passaram a ser aqueles de um patrão. Em termos práticos, isso significou que a direção da Revue Archéologique, o ensino de Archéologie Nationale na École du Louvre e o reconhecimento da Académie des Inscriptions estiveram, a partir de então, vinculados às atribuições do diretor do Museu.14 Eis aí a rede intelectual e institucional que foi herdada por seus sucessores. 13 14 Com efeito, é importante destacar aqui que a moderna universidade francesa, constituída a partir da imitação e sob a pressão de sua homóloga alemã, manteve-se muito tributária das belas letras e das demandas do ensino secundário, sobretudo no que concerne à história e às ciências sociais. Veja-se, RINGER, Fritz. Fields of knowledge. Cambridge: Cambridge, 1992; e BENTHIEN, Rafael Faraco. Interdisciplinaridades: latinistas, helenistas e sociólogos em revistas. Tese de doutorado, História Social, Universidade de São Paulo, 2011, p. 4-8. Isto, bem entendido, no interior do próprio sistema de ensino e pesquisa francês. Sobre as relações que Bertrand estabelecerá com instituições de outros países, cf. CHEW, Hélène. Les échanges archéologiques internationaux au XIXe siècle. L’exemple d’Alexandre Bertrand et du Musée des Antiquités Nationales. In: MINISTÈRE DE LA CULTURE ET DE LA COMMUNICATION. Les dépots de l’État au XIXe siècle. Politiques patrimoniales et destin d’oeuvres. Paris: Louvre, 2008. 45 Salomon Reinach, prodígio e polígrafo Substituto imediato de Bertrand na direção do Musée des Antiquités Nationales, Salomon Reinach vem ganhando destaque nos estudos sobre a “escola sociológica francesa”. Praticamente ignorado até os anos 1990, ele voltou a figurar nos debates como um importante “concorrente” dos durkheimianos entre os “modernistas” no campo dos estudos religiosos.15 Tal ajuizamento justo, centrado em uma leitura de seus escritos antropológicos, precisa, no entanto, ser complexificado.16 Com efeito, Reinach encarnou como poucos o ideal do polígrafo prodígio: além de tratar de assuntos relativos ao que à época se entendia por antropologia, ele abordou desde muito cedo temas relacionados às histórias da arte, do judaísmo e da filosofia, trabalhando igualmente com a arqueologia helênica e céltica. Antes de tratar de suas relações com o museu de Saint-Germain e com os sociólogos, cumpre apresentar, em grandes linhas, seu background familiar e trajetória.17 Os Reinach franceses, ramo de uma família judaica originária da Suíça alemã, estabeleceram-se em Paris em meados do século XIX. O pai de Salomon, Hermann (1814-1899), tornou-se um dos grandes banqueiros do Segundo Império, frequentando assiduamente os círculos letrados de então. Foi nesse ambiente privilegiado que ele educou seus três filhos, Joseph (18561921), Salomon (1858-1932) e Théodore (1860-1928). Conhecidos popularmente no início do século XX como “os irmãos eu sei tudo” (les frères je sais tout), os três se firmaram, cada um a seu modo, como personalidades da Terceira República. Joseph, o varão, após realizar seus estudos de direito, dedicou-se à advocacia e à política. Ele iniciou suas atividades de homem público como secretário pessoal de Léon Gambetta, atuando ainda como defensor do ca- 15 16 17 Na biografia de Durkheim escrita por Stephen Lukes, o nome de Salomon Reinach sequer consta no índice onomástico (Cf. LUKES, Stephen. Émile Durkheim. Londres: A. Lane, 1973). Quanto à tese da “concorrência”, veja-se, em especial, STRENSKI, Ivan. Durkheim and the Jews of France. Chicago: University of Chicago Press, 1997, p. 53-81; assim como uma confirmação mais recente em FOURNIER, Marcel. Émile Durkheim. Paris: Fayard, 2007. Cf., como um primeiro esforço nessa direção, a introdução à edição crítica que produzi das cartas que Émile Durkheim endereçou a Salomon Reinach: BENTHIEN, Rafael Faraco. Lettres d’Émile Durkheim à Salomon Reinach. In: Durkheimian Studies. Nova York: Berghahn Books, vol. 16, 2010, p. 19-21. Veja-se, para maiores informações, BASCH, S.; ESPAGNE, Michel; LECLANT, J. (orgs.). Les frères Reinach. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 2008. Uma recente nota biográfica bastante completa sobre Reinach, de autoria de Hervé Duchêne, foi igualmente publicada no site do Dictionnaire critique des historiens de l’art. Paris: L’Inha, 2009. Disponível em http://www. inha.fr/spip.php?article2511. Consultado em 13/08/2011. 46 pitão Dreyfus e como deputado na Assembleia Nacional por dois mandatos, entre 1889 e 1914. Théodore, por seu turno, combinou a carreira universitária com atividades políticas. Doutor em direito e em história, ele se especializou no estudo da numismática antiga, atuando ainda como diretor da Revue des Études Grecques e da Gazette des Beaux-Arts. Como professor, atuou pontualmente em instituições públicas e privadas, até lhe ser atribuída a cadeira de Numismatique Ancienne no Collège de France (1924). Como político, em 1906, foi eleito para a Assembleia Nacional como deputado ligado à esquerda. Dos três, Salomon foi quem mais se manteve colado a uma carreira propriamente universitária. Nascido em Saint-Germain-en-Laye, ele realizou os estudos secundários em Paris, acumulando uma série de prêmios nacionais. Na sequência, em 1876, ingressou como primeiro colocado no concurso de admissão da École Normale Supérieure, a mesma instituição que, apenas três anos mais tarde, frequentaria Durkheim. No período em que aí esteve, destacou-se pela qualidade e pela diversidade de seus investimentos. Não bastasse a obtenção do primeiro lugar no concurso de agrégation de grammaire em 1879, um dos concursos nacionais necessários para quem desejasse seguir uma carreira ligada à docência e à pesquisa, Salomon ainda traduziu o Ensaio sobre o livre-arbítrio de Schopenhauer, filósofo então em evidência, assim como escreveu um manual de filologia.18 Tamanha desenvoltura não deixou de ser reconhecida por seus contemporâneos. Na sequência, ele obteve do governo uma posição junto à École Française d’Athènes.19 Lá, em meio a um ambiente cosmopolita no qual conviviam e competiam pesquisadores advindos de outros países, em especial alemães e ingleses, Salomon recebeu a melhor formação em arqueologia e epigrafia disponível à época. Seguiu-se a Atenas um período de escavações no norte da África, até que, em 1886, ele foi nomeado attaché libre do Musée des Antiquités Nationales, tornando-se seu diretor após a morte de Bertrand, dezesseis anos mais tarde. Quanto às suas atividades docentes, Reinach assumiu os cursos de Archéologie Nationale (1890-1892, 1895-1905 e 1915-1920) e de Histoire de la Peinture de la Renaissance (1906-1910) na École du Louvre. Note-se, por fim, sua inserção em instituições como a Association pour l’Encouragement des Études Grecques 18 19 Veja-se, respectivamente, SCHOPENHAUER, Arthur. Essai sur le libre-arbitre. Trad. Salomon Reinach. Paris: Germer Baillière, 1877 e REINACH, Salomon. Manuel de philologie classique. Tomo 1. Paris: Hachette, 1880. Já não se tratava, porém, da mesma instituição “literária” que conhecera Bertrand. Cf. VALENTI, Catherine. L’École Française d’Athènes. Paris: Belin, 2006, p. 59-96. 47 en France, da qual ele se tornou sócio em 1878, e a Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, para a qual foi eleito membro efetivo em 1896. Mas a formação universitária de helenista e os vínculos com instituições dedicadas à arqueologia não devem obscurecer o fato de Reinach ter atuado em várias vanguardas científicas ao mesmo tempo, cumprindo igualmente o papel de divulgador dessa produção junto a um público leigo. Seus livros incluem, sem que a lista que se segue seja exaustiva, uma história da arte ocidental, uma história das religiões de inclinação antropológica, uma história da filosofia, métodos de aprendizado das línguas grega, latina e francesa, além de toda uma série de trabalhos mais específicos de história e de arqueologia.20 Tamanha versatilidade se verifica também em seus engajamentos junto a periódicos acadêmicos. Ele se fez colaborador assíduo, para evocar os exemplos mais significativos, da Revue des Études Grecques, da Revue des Études Juives, da Revue des Études Anciennes, da Revue Celtique, de L’Anthropologie e da Revue Archéologique, da qual se tornou codiretor em 1903. Para além do trabalho intelectual, Salomon Reinach ainda esteve direta ou indiretamente envolvido com as grandes questões da vida pública francesa na virada dos séculos XIX e XX. Pessoalmente, ele atuou nos meios letrados por ocasião do affaire Dreyfus, bem como se posicionou a favor das reformas do sistema de ensino (defendendo, por exemplo, a modernização do ensino das línguas, literaturas e pensamento greco-latinos). Importa ainda evidenciar certas semelhanças e diferenças entre a trajetória de Reinach e a de Bertrand. Por certo, ambos passaram pelas mesmas instituições. A formação literária da École Normale Supérieure os marcou, bem como a iniciação à arqueologia e à epigrafia na École Française d’Athènes. Ainda assim, a universidade francesa não era a mesma no momento em que Bertrand iniciou sua carreira, nos anos 1850, e quando Reinach o fez, três décadas depois. Para um, a arqueologia era uma disciplina a ser construída, desprovida de grandes enquadramentos institucionais nas universidades e bastante marcada por uma inclinação “literária”. Para o outro, tratava-se de uma posição herdada e já dotada de relativa complexidade. 20 Cf., respectivamente, REINACH, Salomon. Apollo: histoire générale des arts plastiques. Paris: Picard, 1904; Id. Orpheus: histoire générale des religions. Paris: Picard, 1909; Id. Lettres à Zoé sur l’histoire des philosophes. Paris: Hachette, 1926; Id. Eulalie ou le grecs sans larmes. Paris: Hachette, 1911; Id. Cornélie ou le latin sans pleures. Paris: Hachette, 1912; Id. Sidonie ou le français sans peine. Paris: Hachette, 1913; Id. Esquisses archéologiques. Paris: Leroux, 1888; Id. Les gaulois dans l’art antique. Paris: Leroux , 1889; e, por fim, POTTIER, Edmond e REINACH, Salomon. La nécropole de Myrina. Paris: Thorin, 1887. 48 Reinach soube manter as redes estabelecidas por seu antecessor. Ele foi, até sua morte, diretor do Musée des Antiquités Nationales e da Revue Archéologique, atuando também como professor na École du Louvre. Sua eleição à Académie des Inscriptions e seu vínculo com a Société pour l’Encouragement des Études Grecques en France confirmam ainda o mesmo padrão. Mas não se trata apenas da manutenção de um legado. Reinach também o ampliou. Devem ser considerados, no seu caso, os vínculos com o mundo da política, assim como a excelência reconhecida em outras áreas. O interesse pela sociologia e o contato com os portadores de tal saber foi uma das facetas dessa ampliação. Entre tensões e afinidades eletivas: Salomon Reinach e os durkheimianos O contato inicial entre os durkheimianos e Salomon Reinach parece ter ocorrido logo antes da publicação do primeiro volume de L’Année Sociologique. Hubert e Mauss manifestaram então um claro desejo de tê-lo como aliado. Em fins de 1897, este escreveu àquele: “Seria muito divertido e muito positivo, materialmente, seduzir Reinach. Tal como os budas, façamos girar diante dele a roda da lei”.21 Ao que Hubert respondeu, meses depois: “é um bravo homem esse Reinach (...); quando eu o conhecer melhor, espero que com um pouco de obstinação convertê-lo-ei às nossas ideias e fá-lo-ei servir a nossos desejos”.22 O próprio Reinach acolheu com entusiasmo os sociólogos, pois, após travar contato com o Année Sociologique em março de 1898, chegou a convidar o diretor da nova revista, Émile Durkheim, para uma visita a Saint-Germain.23 Dos quatro homens, aliás, Durkheim parece ter sido o mais reticente. Em uma carta endereçada ao seu sobrinho e datada de abril do mesmo ano, ele traça o seguinte retrato de Reinach: “trata-se certamente de um espírito ativo, [curioso?], de iniciativa. Mas, no fundo, ele continua um filólogo e está bem longe de nós”.24 Em paralelo à simpatia propriamente intelectual, outros fatores contribuíram para esse bom início de relação entre a “escola sociológica francesa” 21 22 23 24 Carta inédita de Mauss a Hubert, datada de 1897 e pertencente ao Fundo de Arquivos Hubert-Mauss, do Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (cota MAS 6.37). Carta inédita de Hubert a Mauss, não datada, pertencente ao Fundo de Arquivos Hubert-Mauss, do Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (cota MAS 6.36). BENTHIEN, Rafael Faraco. Lettres d’Émile Durkheim à Salomon Reinach. In: Durkheimian Studies. Nova York: Berghahn Books, vol. 16, 2010, p. 22. DURKHEIM, Émile. Lettres à Marcel Mauss. Paris: Presses Universitaires de France, 1998, p. 131. 49 e Reinach. A militância em favor da revisão do processo do capitão Dreyfus foi um deles. Hubert e Durkheim mantiveram contato regular com Reinach a esse respeito, ora para sondá-lo acerca de detalhes do affaire, ora para transmitir-lhe informações que julgavam importantes. Com exceção de um único ponto de tensão, a reprimenda que Hubert faz a Reinach por este ter aderido ao Appel à l’Union ao invés de assinar o Manifeste des intellectuels, os três manifestam a convicção de estarem servindo a mesma causa.25 Quanto ao segundo fator, este remete à presença de Hubert no Musée des Antiquités Nationales a partir de 1898. O jovem sociólogo aí obteve, com o apoio de Reinach, sua primeira posição institucional, a qual manterá por toda a vida. Mas o vínculo entre Reinach e os durkheimianos alternou momentos de maior e de menor proximidade. É possível caracterizar, a partir de seus artigos científicos e correspondências, três períodos distintos. No primeiro deles, situado grosso modo entre 1897 e 1906, manteve-se o ambiente de simpatia e cooperação iniciais. Em termos teóricos, Reinach acompanhou com interesse e constância a produção dos sociólogos. Em 1899, ele discutiu o trabalho de Durkheim sobre as origens do tabu do incesto.26 No ano seguinte, por duas ocasiões, valeu-se do trabalho dos sociólogos para dar mais autoridade às suas teses sobre o tabu e o totemismo.27 Em 1902, redigiu uma resenha elogiosa do texto Sur le totemisme de Durkheim, publicado um ano antes.28 Em 1903, por fim, discutiu as teses dos sociólogos sobre “as formas de classificação”.29 Os durkheimianos, em contrapartida, indicaram a produção de Reinach aos seus leitores (veja-se o quadro 1). O que se depreende do conjunto desses textos, a despeito de eventuais ressalvas, é o reconhecimento da fecundidade das ideias alheias. O próprio Durkheim, em suas cartas endereçadas a Reinach, parece relativizar sua opinião inicial sobre o 25 26 27 28 29 Para as cartas de Durkheim à Reinach, cf. BENTHIEN, Rafael Faraco. Lettres d’Émile Durkheim à Salomon Reinach. In: Durkheimian Studies. Nova York: Berghahn Books, vol. 16, 2010. Já quanto à reprimenda de Hubert, veja-se, na caixa 84 das Correspondances de Salomon Reinach na Bibliothèque Méjanes, a carta datada de 25 de janeiro de 1899. Sobre a diferença entre os referidos manifestos, veja-se DUCLERT, Vincent. L’affaire Dreyfus. Paris: La Découverte, 2006. REINACH, Salomon. La prohibition de l’inceste et ses origines. L’Anthropologie. Paris: G. Masson, vol. 10, 1899, p. 59-70. REINACH, Salomon. Quelques observations sur le tabou. L’Anthropologie. Paris: G. Masson, vol. 11, 1900, p. 401-407; e também REINACH, Salomon. Les survivances du totémisme chez les anciens celtes. Revue Celtique. Paris: s. e.,1900, p. 267-306. REINACH, Salomon. Sur le totemisme. L’Anthropologie, vol. 13, 1902, p. 664-669. REINACH, Salomon. De quelques formes primitives de la classification. L’Anthropologie. Paris: G. Masson, vol. 14, 1903, p. 601-603. 50 interlocutor. Afinal, agradecendo-o sempre, não deixou de sublinhar o fato de ambos estarem geralmente de acordo “quanto ao essencial”.30 Os diálogos entre Reinach e os durkheimianos foram igualmente proveitosos em outros sentidos. Quanto ao museu de Saint-Germain, tudo indica que Reinach encontrou em Henri Hubert um potencial sucessor. Aquele confiou a este, desde cedo, importantes coleções arqueológicas (Moreau, Baye, Piette), lutou por sua promoção ao cargo de conservateur adjoint, abriulhe as portas de várias revistas acadêmicas (em especial, L’Anthropologie e a Revue Archéologique), e, ainda, tornou-o seu suplente na École du Louvre para a cadeira de Arqueologia Nacional.31 Mauss, por sua vez, soube tirar proveito da relação com Reinach em sua militância política, requisitando junto a ele recursos financeiros para atividades socialistas.32 Já Durkheim consultou Reinach quando estiveram em pauta temas relativos ao universo dos estudos greco-latinos e, em particular, à Académie des Inscriptions et Belles Lettres.33 O que se observa a seguir não é exatamente uma ruptura da relação, mas a consolidação de certa distância entre as partes. Há, a partir de 1906, um estranhamento maior, o qual vai progressivamente perdendo força até se estabilizar e voltar a assumir contornos mais positivos por volta de 19111912. Vários são os indícios nessa direção: Hubert passa a publicar pouco nas revistas frequentadas por Reinach; as cartas de Durkheim e de Mauss a ele tornam-se esporádicas; e os elogios aos trabalhos alheios se diluem em meio a críticas. Os indícios hoje disponíveis sugerem que essa crise tenha sido motivada por razões intelectuais e tenha partido dos sociólogos. As resenhas dos trabalhos de Reinach sobre religião e sobre arqueologia, todas assinadas por Hubert, passaram a ter um tom negativo (veja-se o quadro 2). O ponto central da crítica recaiu sobre o que os sociólogos entendiam ser o caráter simplista do raciocínio de Reinach. Quanto ao conteúdo, acusaram-no de forçar e de generalizar uma ligação entre animismo e totemismo. Quanto à 30 31 32 33 Cf. BENTHIEN, Rafael Faraco. Lettres d’Émile Durkheim à Salomon Reinach. In: Durkheimian Studies. Nova York: Berghahn Books, vol. 16, 2010, p. 19-35. Veja-se, para mais detalhes, LORRE, Christine. Henri Hubert. In: SÉNÉCHAL, Claire; BABILLON, Philippe. (orgs.). Dictionnaire critique des historiens de l’art. Paris: L’Inha, 2009. Disponível em: http:// www.inha.fr/spip.php?article2370. Consultado em 13/08/2011. Cf., a este respeito, na caixa 105 dos Arquivos Salomon Reinach depositados na Bibliothèque Méjanes, em Aix-en-Provence, as cartas escritas por Marcel Mauss e datadas de 10 de junho de 1902, de 30 de janeiro de 1904, de 9 e de 15 de maio de 1906. Cf. BENTHIEN, Rafael Faraco. Lettres d’Émile Durkheim à Salomon Reinach. In: Durkheimian Studies. Nova York: Berghahn Books, vol. 16, 2010, p. 25-26 e 28. 51 forma, condenaram o fato de suas obras se destinarem ao grande público, rotulando-as com frequência “de divulgação”. Quadro 1 Apreciações críticas dos trabalhos de Salomon Reinach em L’Année Sociologique (1898-1905) Ano 1898 1901 Artigo/livro resenhado La préhistoire en Egypte d’après des recentes publications (L’Anthropologie, 1897) (apenas referência) L’Amphidromie (L’Anthropologie, 1899) “uma teoria engenhosa” (p. 228) Le totémisme animal (Revue Scientifique, 1900) Les survivances du totémisme chez les anciens celtes (Revue Celtique, 1900) Quelques observations sur le tabou (L’Anthropologie, 1900) Les interdictions alimentaires et la loi mosaïque (Revue des Études Juives, 1900) De l’origine des prières pour les morts (Revue des Études Juives, 1900) “A tese é capciosa; ela ganharia mais com uma triagem mais rigorosa dos fatos” (p. 214) “o sr. Reinach tenta distinguir o tabu da interdição” (p. 215) “[Reinach] deixa de lado a questão do sacrifício aos mortos” (p. 247) Les théoxénies et le vol des Dioscures (Revue Archéologique, 1901) Une formule orphique (Revue Archéologique, 1901) (apenas referência) (apenas referência) L’art et la magie (L’Anthropologie, 1903) La mort d’Orpheus (Revue Archéologique, 1902) Sisyphe aux enfers et quelques autres damnés (Revue Archéologique, 1902) (apenas referência) “estas hipóteses totêmicas são um terreno escorregadio e o sr. Reinach já sabe que nós não ousamos segui-lo sempre” (p. 334) “[Fato] interessante a ser notado” (p. 344) 1902 1903 1904 1905 Apreciação crítica La flagellation rituelle (L’Anthropologie, 1904) Les apôtres chez les anthropophages (Annales du Musée Guimet, 1904) 52 (apenas referência) (apenas referência) Quadro 2 Apreciações críticas dos trabalhos de Salomon Reinach em L’Année Sociologique (1906-1913) Ano Artigo/livro resenhado 1906 1907 1910 1913 Apreciação crítica Cultes, mythes et religions. Tome I. (Paris: Leroux, 1905) Xerxès et l’Hellespont (Revue Archéologique, 1905) “obra de apostolado”; “reserva quanto ao método”; “reservas quanto à originalidade” (p. 174-5) (apenas referência) Cultes, mythes et religions. Tome II. (Paris: Leroux, 1906) Αωροι Βιαιοτανατοι (Archive für Religionswissenschaft, 1906) Pourquoi Vercingétorix a renvoyé sa cavalerie d’Alésia (Revue Celtique, 1906) “pouco escrupuloso na escolha das provas”; “fogos de artifício de hipóteses” (p. 218-9) (apenas referência) (apenas referência) Orpheus: histoire générale de la religion. (Paris: Picard, 1909) Hyppolite (Archive für Religionswissenschaft, 1907) “manual de bolso destinado ao grande público” (p. 72-73) (apenas referência) Cultes, mythes et religions. Tome IV. (Paris: Leroux, 1912) “[Reinach] se atém a todos os problemas que não comportam soluções precisas” (p. 82) A resposta de Reinach veio também na forma de textos acadêmicos. Ao resenhar a coletânea de artigos publicada por Henri Hubert e Marcel Mauss em 1909, “Mélanges d’Histoire des Religions”, por exemplo, ele afirmou:34 A reimpressão [dos artigos em forma de coletânea] é precedida de um prefácio destinado em parte contra minhas ideias, em parte contra as de Robertson Smith. Os Srs. H[ubert] e M[auss] bem querem convir que eu “acrescentei muitos bons exemplos de mitos sacrificiais” e fazem alusões a minhas memórias sobre Orfeu, Hipólita, Acteon e Faeton. “Mas, acrescentam eles, todo animal sacrificado não é um totem. Para que exista um totem é preciso que exista um clã. Mas nós esperamos ainda que o sr. R[einach] nos 34 REINACH, Salomon. Mélanges d’histoire des religions. Tomo 14, quarta série. Revue Archéologique. Paris: Léroux, 1909, p. 192. 53 demonstre a existência de clãs aos quais teriam pertencido os referidos totens”. Estes senhores esperarão por um longo tempo. Mas eu esperarei talvez ainda mais que eles deem dos mitos em questão uma explicação diferente da minha e que seja coerente. Em geral, é sempre a mesma linha de argumentação que se repete por parte do então diretor do Musée des Antiquités Nationales. Ele afirmava defender a teoria que, sendo a mais simples possível, resolveria o maior número de casos. Os sociólogos teriam, assim, e com resultados positivos, trabalhado para complexificar a análise dos estudos religiosos, mas não estariam em condições de propor teorias de alcance global.35 Em todo caso, as críticas mútuas não impediram que, a partir de 1911, ambos trabalhassem juntos para a criação da Institut Français d’Anthropologie. Elas também não anularam, sobretudo da parte de Reinach, o reconhecimento dos méritos alheios. As hipóteses de Hubert sobre a divindade celta Nantosvelta foram por ele recebidas como “certezas”.36 Já quanto a Les formes élémentaires de la vie religieuse, Reinach chega a confidenciar a seu colega belga Franz Cumont que achou o derradeiro livro de Durkheim um “chef-d’oeuvre”,37 opinião reforçada em duas resenhas impressas em 1912.38 Até sua morte, em 1933, ele publicou três necrológios elogiosos de membros da equipe de L’Année Sociologique,39 assim como acolheu e resenhou seus trabalhos no pós-guerra.40 35 36 37 38 39 40 Em um texto escrito a quatro mãos com a socióloga Raquel Weiss, apresento com maiores detalhes os fundamentos epistemológicos que separaram e aproximaram Reinach e os durkheimianos quanto ao estudo do totemismo e, por conseguinte, da religião. Veja-se WEISS, Raquel; BENTHIEN, Rafael Faraco. A redescoberta de um sociólogo. Novos Estudos Cebrap, no 93, julho de 2012 (no prelo). REINACH, Salomon. Nantosvelta. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quarta série, tomo 21, 1913, p. 264-265. Veja-se a carta de Reinach a Cumont, datada de 1 de agosto de 1912, depositada nos Arquivos Cumont da Academia Bélgica. Disponível em http://www.academiabelgica.it/img_lettre/5385_ page_2.jpg. Consultado em 13/08/2011. REINACH, Salomon. Une étude sur les religions primitives. Revue Critique des Livres Nouveaux. Paris: Édouard Córnely, 15 Octobre, 1912, p. 153-154. E também Id. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Revue Archéologique, Paris: Leroux, quarta série, tomo 20, 1914, p. 183. REINACH, Salomon. Robert Herz. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quarta série, tomo 25, 1915, p. 333; REINACH, Salomon. Émile Durkheim. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quarta série, tomo 30, 1917, p. 458; e REINACH, Salomon. Henri Hubert. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quinta série, tomo 26, 1927, p. 176-178. Quanto às resenhas, cf. REINACH, Salomon. Le culte des herós et les conditions sociales. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quinta série, tomo 15, 1922, p. 204 (sobre livro de Stefan Czarnowski); REINACH, Salomon. Des clans aux empires. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quinta série, tomo 17, 1923, p. 188-189 (sobre livro coescrito por Alexandre Moret e Georges Davy); e REINACH, Salomon. Les celtes. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quinta série, tomo 32, 1932, p. 325-327 (sobre o livro de Henri Hubert). Quanto aos artigos, veja-se JEANMAIRE, Henri. La 54 Um museu aberto à sociologia Se a simpatia de Reinach, por si só, permitiu que os sociólogos se fizessem representar no leque de instituições por ele frequentadas, o próprio museu de Saint-Germain foi transformado em uma espécie de laboratório da nova ciência. A figura central, nesse caso, foi inquestionavelmente Henri Hubert. Ainda que parte dos estudos que lhe foram consagrados tenha destacado uma suposta incomunicabilidade entre seus trabalhos arqueológicos e sociológicos, essa opinião não se sustenta diante de uma análise mais detida da documentação hoje disponível.41 No momento mesmo em que inicia suas atividades no museu, Hubert tem o claro intuito de promover o diálogo entre as duas ciências, tal como explicita neste trecho de uma carta sua endereçada a Mauss:42 Quero trabalhar, aproveitar esse Museu. Para permanecer orientalista me ocupando das antiguidades nacionais é necessário que eu faça antiguidades nacionais a fundo. Logo vou me ocupar da preparação do catálogo, ou seja, do primeiro estudo metódico da arqueologia merovíngia: sarcófagos, tumbas, conteúdo das tumbas. Não preciso destacar que isso me separa apenas em aparência de nossos estudos; para fazer isso de forma conveniente é preciso ter as nossas preocupações. Ao longo dos anos que se seguiram, Hubert manteve seu projeto original. É o que se constata, por exemplo, em seus trabalhos de classificação das coleções arqueológicas depositadas em Saint-Germain. Os artigos que dedicou ao tema ilustram sua constante preocupação em encontrar, na materialidade mesma dos objetos, padrões histórica e socialmente relevantes em termos técnicos, morfológicos e/ou de práticas rituais.43 A Sala de Marte, cuja 41 42 43 politique religieuse d’Antoine et Cléopâtre. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quinta série, tomo 19, 1924, p. 241-261; e ROUSSEL, Pierre. Un réglement militaire de l’époque macédonienne. Paris: Leroux, sexta série, tomo 3, 1934, p. 39-47. Veja-se, em especial, BRUN, Patrice; OLIVIER, Laurant. Henri Hubert. Les nouvelles de l’archéologie. Paris: Maison de Sciences de l’Homme, no 79, 2000, p. 5-32. Para uma crítica dessa leitura, bastante colada à posição aqui defendida, cf. LORRE, Christine. Henri Hubert. In: SÉNÉCHAL, Claire; BABILLON, Philippe (orgs.). Dictionnaire critique des historiens de l’art. Paris: L’Inha, 2009. Disponível em: http://www.inha.fr/spip.php?article2370. Consultado em 13/08/2011. Carta inédita de Hubert a Mauss, não datada, pertencente ao Fundo de Arquivos Hubert-Mauss, do Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (cota MAS 6.36). HUBERT, Henri. La Collection Moreau au Musée de Saint-Germain. Revue Archéologique. Paris: Leroux, quarta série, tomo 2, 1902, p. 167-206; HUBERT, Henri. La Collection Moreau au Musée de Saint-Germain (suite). Revue Archéologique. Paris: Leroux, quarta série, tomo 8, 1906, p. 337- 55 organização foi assumida por ele em 1910, dedicada à arqueologia comparada, é a prova maior disso. Apresentada em um escrito autobiográfico como seu “trabalho principal”, ela reunia coleções de todo o mundo, dispostas em função de recortes sociais (tecnológicos e rituais), cronológicos e espaciais.44 Tratava-se de um microcosmo experimental, no qual a humanidade poderia contemplar, sob certos ângulos, o conjunto de suas realizações, em sua unidade e em sua multiplicidade.45 Outros indícios do comprometimento de Hubert com uma arqueologia enriquecida pela sociologia, ou vice-versa, vêm de suas atividades docentes na École du Louvre e École Pratique des Hautes Études, onde ele atuou a partir de 1901. É bem verdade que não temos hoje condições de restituir integralmente o conteúdo de suas lições, sobretudo porque se tratavam, na maior parte dos casos, de sequências de exercícios práticos. Ainda assim, parte de suas aulas introdutórias ou teóricas sobreviveram ao tempo, permitindo ter uma ideia bastante precisa das preocupações gerais de Hubert. Chama aí atenção, em primeiro lugar, o caráter itinerante do curso. Sobretudo passado o inverno, os alunos tinham de visitar, devidamente acompanhados pelo professor, os principais museus de arqueologia (Louvre e Saint-Germain) e de etnografia (Trocadero) franceses. Estes passeios visavam ilustrar as correlações possíveis entre diferentes modalidades de objetos, do ponto de vista da arqueologia etnográfica, da linguística e da sociologia. Hubert insiste com seus alunos na necessidade de fugir a uma explicação puramente formal dos objetos e o faz assumindo uma perspectiva histórica e/ou comparatista. Referindo-se, por exemplo, ao estudo dos adornos de objetos do neolítico, ele afirma:46 Eu sustento que essas linhas não figuram sobre os ditos objetos a título de puros ornamentos. Em outros termos, [sustento] que elas são objeto de representações e de sentimentos obscuros, não analisáveis, do tipo de nossa categoria de mana, na qual a 44 45 46 371; e HUBERT, Henri. La poterie de l’âge du bronze et de Hallstatt dans la Collection Baye. Revue Préhistorique. Paris: s. e., tomo 5, 1910, p. 5-23. HUBERT, Henri. [Texte autobiographique rédigé le 10 mars 1915]. Revue Française de Sociologie. Paris: CNRS, tomo 20, 1979, p. 205-207. Remeto aqui aos textos já citados na nota 3. Nos Arquivos Henri Hubert do Musée d’Archéologie Nationale, veja-se, na caixa Cours École du Louvre, o envelope contendo três envelopes menores e intitulado Conférence Complémentaire. O trecho citado encontra-se na página 11 do primeiro envelope menor. Outra conferência pode ser encontrada na caixa Religions I. Agradeço a Christine Lorre por ter me comunicado esses e outros documentos previamente analisados e parcialmente transcritos por ela. 56 ideia de ornamento por um lado e o prazer estético de outro se encontram incluídas, mas certamente misturadas a todo tipo de coisas [tão?] contraditórias quanto se supõe. Do caráter formal da eficácia desses instrumentos nós [passamos?] ao caráter social das representações que eles reagrupam [?] seu uso e sua invenção. Desse modo, embora o conteúdo de seus cursos estivesse centrado no conjunto dos povos europeus, Hubert não parece ter descartado as competências que possuía. Toda uma nova geração de sociólogos usufruiu das aulas de Hubert e, graças a elas, da estrutura do Museu de Saint-Germain. Entre eles estiveram, para mencionar alguns nomes, Stefan Czarnowski, Henri Beuchat, Raymond Lantier e Jean Marx. Sabe-se, aliás, que ao menos dois deles, Beuchat e Lantier, trabalharam com coleções inteiras do museu, uma contribuição cuja amplitude e frutos ainda precisam ser investigados. Considerações finais Famoso por suas coleções únicas que abarcam desde a Pré-História até a Idade Média europeias, o Musée des Antiquités Nationales merece assim um espaço na história da emergência da sociologia universitária. Independente dos eventuais sucessos ou fracassos dos sociólogos em impor filiações teóricas diretas no campo da arqueologia, é preciso também levar em consideração a visibilidade e a legitimidade que tal instituição pôde conferir à própria empresa sociológica como um todo. Havia aí seu notável padrão de recrutamento: boa parte de seus conservadores e diretores provinham da École Normale Supérieure, representando assim o que havia de mais conceituado em termos de formação intelectual na França. Havia aí também as inserções sociais e honrarias acumuladas por esses mesmos homens: eles eram, em geral, membros do Institut, professores na École du Louvre e frequentadores de inúmeras sociedades científicas. Não seria, portanto, exagero afirmar que, entre a invenção e a tradição, o museu de Saint-Germain foi sempre mais do que o próprio museu. Ele soube acolher os sociólogos que por ele transitaram, assim como fez ecoar seus nomes e ideias para além da disciplina que o caracterizava. 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Recebido: 05/09/2011 - Aprovado: 13/08/2012 60 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: DINÂMICAS POLÍTICOADMINISTRATIVAS EM PORTUGAL E NA AMÉRICA PORTUGUESA (SÉCULOS XVII E XVIII)1 Contato Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal Fluminense – Campos Gragoatá Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis Bloco O – sala 505 24210-380 – Niterói – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Maria Fernanda Bicalho Universidade Federal Fluminense Resumo Este artigo se propõe a discutir os argumentos de uma historiografia brasileira, no que diz respeito às tópicas da confusão administrativa e da justaposição de jurisdições no governo da América portuguesa. Privilegia uma perspectiva teórica fundada na matriz interpretativa da dinâmica política do Antigo Regime ibérico. A análise que se segue desdobrar-se-á em dois estudos de caso, ambos baseados em documentação que envolve o Conselho Ultramarino: o primeiro se refere aos conflitos de jurisdição entre o Conselho Ultramarino e os demais tribunais do reino nos anos iniciais de seu funcionamento; o segundo diz respeito às jurisdições, nem sempre bem delimitadas e não raro conflituosas, de governadores de capitanias, governadores-gerais e vice-reis na América portuguesa. Palavras-chave Conselho Ultramarino – administração – governo – América portuguesa. 1 Este texto faz parte de uma investigação mais ampla, “Labirinto dos negócios: A dinâmica política e administrativa do Conselho Ultramarino entre comunicação, consultas e papéis de secretaria”, financiada pelo CNPq por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa. 61 BETWEEN THEORY AND PRACTICE: POLITICAL-ADMINISTRATIVE DYNAMICS IN PORTUGAL AND PORTUGUESE AMERICA (XVIIth AND XVIIIth CENTURIES) Contact Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal Fluminense – Campos Gragoatá Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis Bloco O – sala 505 24210-380 – Niterói – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Maria Fernanda Bicalho Universidade Federal Fluminense Abstract This article aims to discuss the arguments of a Brazilian historiography, as they relate to the topic of administrative confusion and overlapping of jurisdictions in the government of Portuguese America. It shares a theoretical perspective based on interpretative matrix of the political dynamics of the Old Regime Iberian. The analysis that follows will unfold in two case studies, both based on documentation that involves the Overseas Council: the first refers to conflicts of jurisdiction between the Overseas Council and other Portuguese central councils in the early years of its operation; and the second concerns jurisdictions, not always well-defined and often conflicting, of governors of captaincies, governors-general and viceroys in Portuguese America. Keywords Overseas Council – administration – government – Portuguese America. 62 Em artigo clássico sobre administração, no livro Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Júnior defende que, “de um modo geral, pode-se afirmar que a administração portuguesa estendeu ao Brasil sua organização e seu sistema, e não criou nada de original para a colônia”. Este sistema não se baseava em funções bem discriminadas, competências bem definidas, segundo o princípio uniforme de hierarquia e simetria dos diferentes órgãos administrativos que observamos na atualidade. Feita esta distinção, atribui uma valoração negativa às práticas administrativas de então, ao afirmar que “devemos abordar a análise da administração colonial com o espírito preparado para toda sorte de incongruências”. Relaciona a “centralização administrativa que faz de Lisboa a cabeça pensante única em negócios passados a centenas de léguas que se percorrem em lentos barcos à vela” à “falta de organização, eficiência e presteza do seu funcionamento”. A “complexidade dos órgãos, a confusão de funções e competência”, somava-se um “excesso de burocracia dos órgãos centrais em que se acumula um funcionalismo inútil e numeroso”. O resultado não poderia deixar de ser a “monstruosa, emperrada e ineficiente máquina burocrática que é a administração colonial”.2 Já Raymundo Faoro, em trabalho igualmente seminal, embora partindo de outros pressupostos teóricos, enfatiza a precoce centralização da monarquia portuguesa, a extrema racionalidade do aparato estatal e a transplantação para os domínios ultramarinos de um rígido corpo de leis. Ao defender a presença marcante do Estado, moldando a realidade a seu gosto, e a ela sobrepondo a lei, afirma, no entanto, que “o quadro metropolitano da administração como que se extravia e se perde, delira e vaga no mundo caótico, geograficamente caótico, da extensão misteriosa da América”. Refere-se à dispersão “em todos os graus” da administração colonial, cuja aparente simplicidade da linha descendente de autoridade encabeçada pelo rei “engana e dissimula a complexa, confusa e tumultuária realidade” governamental. A seu ver, “os órgãos colegiados e a hierarquia sem rigidez” teriam sido responsáveis pela “fluidez do governo”, composto por funcionários que se perdiam “no exercício de atribuições mal delimitadas”. Se, por um lado, todos se dirigiam ao rei, atropelando os graus intermédios de comando, por outro, “a ordem monocrática sofre, com os órgãos colegiados, limitação drástica, 2 PRADO JÚNIOR, Caio. Administração. In: Formação do Brasil contemporâneo. Colônia. 15ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 301 e 333. 63 retardando as decisões, orientando-as e distorcendo-as, ao sabor das suas deliberações”.3 Estas “duas formas possíveis, mas igualmente extremadas, de se examinar o problema da administração” foram magistralmente analisadas por Laura de Mello e Souza na década de 19804 que, ao revisitá-las recentemente, contextualizou ambos os “ensaios explicativos” no âmbito da historiografia sobre a política e a administração coloniais. A seu ver, Caio Prado, “à luz da perspectiva do Estado liberal, assentado sobre a teoria dos três poderes, ressalta a irracionalidade do mundo do Antigo Regime (...), e não leva em conta que, nele, o Estado português não era exceção”, constatando, no entanto, o evidente “fosso entre a teoria e a prática”.5 Ao analisar as influências e os interlocutores de Faoro – entre eles, Oliveira Martins, Antero de Quental e António Sérgio –, argumenta que “o pessimismo inerente a essa visão impediu, muitas vezes, perceber especificidades próprias à história de Portugal e de seu império, forçando os juízos negativos e fazendo prevalecer a perspectiva liberal”.6 Embora datadas, filhas de conjunturas e contextos históricos específicos, ambas as interpretações marcaram gerações de historiadores e permanecem, até hoje, referências incontornáveis a todos os que se dedicam ao tema da política e da administração no período colonial. No entanto, a partir das últimas décadas, novas análises e outros referenciais teóricos têm motivado estudos circunstanciados e baseados em ampla documentação, que reintroduziram o tema do governo e da administração nos tempos modernos no centro do debate acadêmico, tanto no Brasil quanto em Portugal. Em artigo intitulado “‘Administração’, ‘governo’ e ‘política’. Uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime”, Pedro Cardim afirma ser interessante verificar como, num memorial em defesa da jurisdição do Conselho Ultramarino, Delgado Figueira – um de seus conselheiros – apresentava lúcida enunciação dos princípios gerais que norteavam a atividade administrativa dos tribunais e conselhos régios em Portugal no Antigo Regime. Ao defender a centralidade dos órgãos colegiados na ação e opções da Coroa, 3 4 5 6 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro, vol. 1. 6ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo, 1984, p. 176-177. SOUZA, Laura de Mello e. Nas redes do poder. In: Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 91 ss. SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. In: O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 37. Idem, p. 35. 64 além da primazia da decisão régia na constituição dos mesmos tribunais, o conselheiro referia-se aos motivos que levaram à criação, em 1642, do Conselho Ultramarino. No contexto da Restauração e da afirmação da dinastia bragantina, nenhum dos tribunais portugueses dedicava-se especificamente às conquistas d’além mar. Nestas, no entanto, multiplicavam-se as causas e negócios referentes à fazenda, à justiça e à guerra. Tornava-se necessária a existência de um órgão – separado e autônomo em relação ao demais existentes – que se dedicasse à crescente especificidade e à complexidade das matérias relacionadas aos territórios ultramarinos. Cardim afirma ser importante olhar para esta querela jurisdicional como um evento ocorrido num tempo em que a “administração”, o “governo” e a “política” eram realidades muito diferentes daquilo que é hoje designado por essas mesmas palavras. (...) o termo “administração”, para além de possuir uma semântica algo ambivalente, reportava-se a esferas de atividade muito diversas, estando longe de evocar a sua acepção atual, ou seja, a função pública que o Estado desempenha, a título exclusivo e unilateral, dotada de uma identidade própria, de uma jurisdição e de uma legislação específicas, e nitidamente autonomizada no seio do aparelho estatal.7 Segundo o autor, o que designamos por Coroa não era algo unitário, mas, sim, um agregado de órgãos e de interesses, que não funcionava como um polo homogêneo de intervenção sobre a sociedade. Coexistia, no seio da Coroa, uma série de organismos cuja jurisdição derivava, em parte, de um ato constituinte do rei, embora também de sua auto-organização. Essa configuração peculiar explica a existência, no âmbito da monarquia, de órgãos concorrentes na tramitação dos assuntos, o que não raro produzia conflitos de jurisdição. O autor também se interroga sobre o alegado – e a seu ver excessivo – protagonismo do Estado no governo e na vida social das monarquias de Antigo Regime, propondo, como alternativa, uma visão mais descentrada das relações de poder. Segundo Cardim, Aqueles que asseveram a presença da entidade “Estado” dão continuidade à historiografia que, a partir de meados do século XIX, retratou o passado português como um caso singular e precoce de concentração do poder político, primeiro nas mãos do monarca e, mais tarde, de um Estado centralizado. Nascida após as revoluções liberais, até há relativamente pouco tempo esta tese gozou de um aparente consenso, pois quase todos 7 CARDIM, Pedro. “Administração”, “governo” e “política”. Uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera L. do Amaral. Modos de governar. Ideias e práticas políticas no Império português. São Paulo: Alameda Editorial, 2005, p. 51 e segs. 65 os trabalhos relacionam este processo de centralização, iniciado alegadamente no século XVI, com a gestação do Estado, uma entidade que se apoderou dos mecanismos de dominação e que promoveu a integração, sob a sua alçada, do espaço e da população portuguesa8 (1998, p. 131). Em livro sobre as Cortes e a cultura política em Portugal no Antigo Regime, o autor afirma que “nos últimos anos, acabou por ser a historiografia do direiro a revelar mais empenho para compreender esta dimensão ‘estrangeira’ da política e do seu exercício em sociedades do passado”.9 Em Portugal, nos séculos XVI, XVII e, ainda, no XVIII, a Coroa partilhava o governo com outros corpos sociais, entre eles conselhos e tribunais, órgãos que gozavam de relativa autonomia, responsáveis por um campo de ação ou jurisdição. Não havia uma única instância normativa e, sim, uma pluralidade de espaços de decisão, hierarquizados e concorrentes entre si. Embora na época moderna tenha se efetivado o alargamento da administração ativa da Coroa e, em última instância, do rei, a este cabia, como cabeça do reino, garantir a justiça e a ordem estabelecida, zelar por sua conservação. A metáfora da cabeça apontava para uma concepção limitada do poder régio, de acordo com a qual o soberano representava simbolicamente o corpo, não podendo, no entanto, substituir suas funções. Longe da concentração total e absoluta na figura do rei, o poder era, por natureza, repartido. Se, por um lado, a falta de uma rígida hierarquia jurisdicional entre os conselhos – não raro manifestada em conflitos de jurisdição e precedência – constituía-se em entrave à agilidade da administração ativa da Coroa, por outro, a decisão dos órgãos colegiados, por intermédio de consultas e pareceres, reafirmava o caráter corporativo do governo, atualizando a imagem do rei como árbitro, mantenedor da harmonia entre as diferentes instituições do corpo político, sem usurpar, no entanto, suas atribuições.10 Este artigo se propõe a discutir os argumentos de Caio Prado Jr. e de Raymundo Faoro no que diz respeito à tópica da justaposição de jurisdições, a partir de uma perspectiva teórica baseada na matriz interpretativa dos argumentos enunciados por António Manuel Hespanha e Pedro Cardim. Para tanto, a análise que se segue basear-se-á em dois estudos de caso: o 8 9 10 CARDIM, Pedro. Centralização política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime. Nação e Defesa, v. 87, 1998, p. 131. CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 13. Cf. HESPANHA, António Manual. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994. 66 primeiro referente aos conflitos de jurisdição entre o Conselho Ultramarino e os demais tribunais do reino nos primeiros anos de seu funcionamento; o segundo relativo às jurisdições, nem sempre bem delimitadas e não raro conflituosas, de governadores de capitanias, governadores-gerais e vice-reis na América portuguesa. O Conselho Ultramarino e a pluralidade jurisdicional A conjuntura política da criação do Conselho Ultramarino foi minuciosamente analisada por Edval de Souza Barros, no livro “Negócios de tanta importância”: O Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661).11 No período imediatamente após a Restauração, em meio à guerra no reino e no ultramar, com os holandeses em Pernambuco e Angola, d. João IV não havia ainda consolidado as condições, quer externas, quer internas, que lhe garantissem legitimidade e uma extensa vassalagem. Dada a relativa fragilidade da persona régia, a afirmação da autonomia, a capacidade de governo do reino e a manutenção do Império permaneciam incertas. O regimento do recém-criado Conselho data de 1642 e sua instituição, assim como sua primeira reunião, ocorreram a 3 de dezembro de 1643. Nela, os conselheiros dedicaram-se a discutir e avaliar as disposições regimentais e a defender, junto ao rei, modificações que, a seu ver, minimizavam sua preeminência frente a outros tribunais do reino. De acordo com Edval de Souza Barros, cuidava-se de zelar pelas jurisdições ainda compartilhadas com os outros tribunais, e as razões adiantadas tanto procuravam garantir um controle mais estreito sobre os cargos que ficaram de fora de sua alçada, quanto prevenir a intromissão de outras instâncias nos trâmites burocráticos que se entendiam exclusivos.12 11 12 Até bem pouco tempo, raros eram os estudos específicos sobre o Conselho Ultramarino. Entre eles destaca-se o de Marcello Caetano, O Conselho Ultramarino. Esboço de sua história. Nos últimos anos, este órgão fundamental para se pensar a política imperial portuguesa tem sido objeto de novas abordagens. Cf. MYRUP, Erik Lars. To rule from afar: The Overseas Council and the making of Brazilian West, 1642-1807. Tese de doutorado, 2006 (inédita), Yale University; e, sobretudo, BARROS, Edval de Souza. “Negócios de tanta importância”: O Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Lisboa: Centro de História do Além-Mar, 2008. Cf. BARROS, op. cit., p. 107. 67 Muitas das atribuições que passaram à alçada do novo órgão pertenciam anteriormente ao Conselho da Fazenda.13 O próprio regimento do recém-instituído tribunal dispunha sobre as respectivas competências. O capítulo 6 estabelecia que ao Conselho Ultramarino: pertençam todas as matérias e negócios de qualquer qualidade que forem, tocantes aos ditos Estados da Índia, Brasil e Guiné, Ilhas de São Tomé e Cabo Verde e de todas as mais partes ultramarinas, tirando as ilhas dos Açores e da Madeira e lugares da África, e por ele há de correr a administração da fazenda dos ditos Estados; e a que deles vier ao Reino se administrará pelo Conselho da Fazenda, que correrá também com os empregos e retornos das carregações.14 Segundo Edval Barros, “os atritos com o Conselho da Fazenda, manifestos desde o primeiro dia da existência do Conselho Ultramarino, foram recorrentes durante o período de ‘guerra encoberta’ com os neerlandeses no Atlântico e no Índico”.15 Os conflitos de jurisdição entre o Conselho Ultramarino e os demais tribunais do reino não se esgotaram nos primeiros meses, nem sequer nos primeiros anos de seu funcionamento. Percorreram toda a segunda metade do século XVII, entrando bem longe no século XVIII. Sobre a partilha de atribuições e competências com o Conselho da Fazenda – perceptível na citação acima de seu regimento – em sua primeira reunião, os conselheiros do ultramar advertiam o monarca sobre alguns inconvenientes: porquanto de ordinário sucede diferirem os Conselhos no parecer, seguindo-se daqui frieza e dilação, quando em um se executar o que o outro lhe parece, vindo tudo a resultar em grande dano da república, e desserviço de Vossa Majestade, o que não acontece quando o mesmo Tribunal executa aquilo que aconselha, e que corre por sua conta e reputação.16 Não obtendo do rei o que reivindicavam, o Conselho da Fazenda continuou, quer administrando as rendas e fazendas que das conquistas chegavam a Portugal, quer responsável pelos gastos e despesas tocantes aos navios que zarpavam para a Índia, Brasil e África, embora coubesse ao Conselho Ultramarino “consultar que naus e navios devem ir para a Índia e 13 14 15 16 Para uma breve abordagem sobre o Conselho da Fazenda, cf. SUBTIL, José. Os poderes do centro. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime, vol. VII (coord. de António Manuel Hespanha). Lisboa: Lexicultural, 2002, p. 212-213. CAETANO, op. cit., p. 120. BARROS, op. cit., p. 108. Apud BARROS, op. cit., p. 109. 68 conquistas, e em que forma hão de ir apercebidos da gente e armas”, como dispunha o capítulo 9 do seu regimento. Cabe ressaltar que o regimento do Conselho Ultramarino determinava que seu presidente fosse o vedor da Fazenda da Repartição da Índia e, portanto, atuasse também no Conselho da Fazenda. Vê-se, portanto, que além da sobreposição de jurisdições entre diversos tribunais, ocorria a duplicidade de atribuições e pertencimento de um mesmo indivíduo a diferentes corporações. As imprecisões do regimento e os limites não muito claros das atribuições de ambos os tribunais levaram a que as instâncias dos conselheiros junto ao rei se multiplicassem. É o caso da consulta de 20 de outubro de 1654 sobre pertencer ao Conselho Ultramarino, e não ao da Fazenda, expedir licenças aos navios estrangeiros que zarpavam para as conquistas, e aos navios portugueses com tripulação estrangeira, devido à falta de condestáveis e artilheiros no Reino. A consulta partiu de um decreto de d. João IV, solicitando ao presidente do Conselho Ultramarino, conde de Odemira, que dissesse “o que toca ao Conselho” para que se resolvesse a querela, “sem prejudicar a conservação de seu direito, ou preeminência”. O conde de Odemira defendia, antes de tudo, sua condição e preeminência como vedor da Fazenda e, em seguida, a do tribunal que presidia naquele momento. Isso porque, em tempos anteriores, ao integrar exclusivamente o Conselho da Fazenda, se colocara a favor da jurisdição deste órgão sobre questão semelhante. Atribuía a mudança de sua posição à conjuntura mutante não só da política externa e ultramarina de Portugal, mas igualmente ao fato de, naquele momento, presidir o Conselho Ultramarino. Nesse sentido, O Conde Presidente diz que ele se lembra de haver defendido esta jurisdição a favor do Conselho da Fazenda, quando nele assistia (...). Se o Conselho da Fazenda deu em algum tempo licenças, foi por ter então incorporado em si o que tocava das conquistas ao Conselho Ultramarino, enquanto o não houve, mas hoje que o há não pode deixar de representar a Vossa Majestade que a jurisdição e faculdade de consultar as ditas licenças lhe toca [ao Conselho Ultramarino].17 Apesar das razões alegadas, d. João IV optou pela manutenção da jurisdição do Conselho da Fazenda sobre aquele negócio específico. Os conflitos de competências eram partilhados com outros tribunais do reino, uma vez que, numa sociedade profundamente hierarquizada, na 17 AHU_ACL_CU_089, Cx. 1, D. 25. 69 qual os critérios de precedência eram um dos sinais de distinção entre as pessoas e os corpos que a constituíam, aquelas e estes defendiam sua autoridade na gestão das hierarquias internas aos próprios conselhos. Esse é o tema da consulta de 16 de junho de 1662, na qual o Conselho Ultramarino se colocava contra a intromissão do Desembargo do Paço18 na arbitragem de dúvidas de precedência entre os conselheiros Luís Mendes de Elvas e Francisco de Miranda Henriques. Este último havia sido nomeado pelo rei como conselheiro ultramarino, devendo-se sentar abaixo de Jerónimo de Mello. No entanto, o conselheiro Luís Mendes de Elvas, por ser mais antigo, supunha que tinha direito de precedê-lo nos assentos das reuniões do tribunal.19 O conde-presidente, por sua vez, lhe disse que havia executado o que o rei mandara na carta de nomeação de Francisco de Miranda, “com o que Luís Mendes se saiu do Conselho dizendo que recorreria a Vossa Majestade (como se sabe que o fez).” D. Afonso VI mandou remeter a petição de Luís Mendes ao Desembargo do Paço, para que resolvesse a disputa, dando a entender aos ministros ultramarinos que “o Desembargo do Paço tem superioridade a este Conselho”. Referindo-se a casos similares ocorridos em outros tribunais, como a Mesa de Consciência e Ordens,20 os conselheiros defendiam que, como esta questão “toca em preeminência, (…) não é justo que Vossa Majestade a queira tirar a um conselho benemérito em seu serviço, e acrescentá-la a outro, posto que também o seja”. Nesse sentido, afirmavam os conselheiros do ultramar: Pareceu representar tudo a Vossa Majestade e pedir-lhe seja servido de mandar que as petições, respostas e documentos que estes dois conselheiros alegarem ou tiverem alegado se remetam a este Conselho [Ultramarino] para por ele (como é justo) se representarem a Vossa Majestade, e Vossa Majestade, com comunicação de pessoas que 18 19 20 Sobre este tribunal, cf. SUBTIL, José. O Desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Universidade Autónoma, 1996. O capítulo 4 do regimento do Conselho Ultramarino determinava que os conselheiros “assentarão em bancos de espaldar forrados de couro, o Presidente na cabeceira, com uma almofada de veludo carmesim, em que se assente, e os Conselheiros nos bancos colaterais, o Conselheiro de capa e espada mais antigo no primeiro lugar da mão direita, e o mais moderno no segundo da mesma parte, e o letrado no primeiro lugar da mão esquerda, e os de capa e espada se precederão entre si por suas antiguidades, e o letrado não poderá pretender nunca antiguidade contra os de capa e espada”. CAETANO, op. cit, p. 120. Cf. SUBTIL, Os poderes do centro..., op. cit., p. 209. Sobre a atuação da Mesa da Consciência e Ordens no Brasil, cf. PEREIRA das NEVES, Guilherme C. E receberá mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil (1808-1828). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. 70 para isso eleger, tomar a resolução que mais convenha a seu serviço e à reputação e crédito de seus ministros.21 Desta vez, o arbítrio régio deferiu a solicitação do Conselho Ultramarino, embora cada monarca, e ainda cada conjuntura política pela qual passou a monarquia portuguesa e seu império ultramarino, influíram nas decisões régias, que ora pendiam para um determinado tribunal ou grupo cortesão, ora privilegiavam outros, concorrentes. Como bem analisou André da Silva Costa, em Os secretários e o Estado do rei: luta de Corte e poder político, séculos XVI-XVIII, para entendermos o processo decisório na monarquia portuguesa do Antigo Regime é necessário termos em conta não apenas as dinâmicas político-burocráticas, mas também as estratégias cortesãs.22 Jurisdições num império multifacetado Contrapondo-se às interpretações sobre a administração colonial de Caio Prado Jr. e de Raymundo Faoro, referidas acima, António Manuel Hespanha chama a atenção para a estrutura administrativa centrífuga da monarquia e do Império português e para a autonomia dos poderes na hierarquia política imperial. Apesar do estilo altamente detalhado das cláusulas regimentais e da obrigação de, para certos casos, consultarem o rei ou o Conselho Ultramarino, funcionários régios no ultramar, como vice-reis e governadores, gozavam de uma grande autonomia. Seu palco de atuação não era o mundo estabilizado da política dos reinos europeus, em que a justiça e o governo se enraizavam em tradições estáveis e duradouras e se formalizavam em processos e fórmulas fi xados pelo tempo. Pelo contrário, atuavam num mundo estranho e não balizado, ele próprio subvertido nos seus estilos pela erupção dos europeus.23 21 22 23 AHU_ACL_CU_089, Cx. 1, D. 41. COSTA, André da Silva. Os secretários de Estado do Rei: Luta de corte e poder político, séculos XVI-XVII. Dissertação de mestrado inédita, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2008,. HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 163-188; HESPANHA, António Manuel. Por que é que foi portuguesa a expansão portuguesa? Ou o revisionismo nos trópicos. In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia F. e BICALHO. Maria Fernanda (orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 29-53. 71 O ofício de vice-rei na América portuguesa tem sido pouco estudado, o que fez do trabalho de Dauril Alden, Royal government in colonial Brazil, publicado em 1968, uma referência para os que mais recentemente se dedicaram ao tema.24 Contrariamente a uma plêiade de antigos historiadores que defendia o ilimitado poder dos vice-reis, Alden afirma que, durante todo o século XVIII, quando o título passou a ser sistematicamente concedido, sua autoridade não se exercia além dos limites da capitania na qual se instalava a sede do vice-reinado. A particularidade da conferição do título de vice-reis aos representantes máximos do rei de Portugal em seus domínios ultramarinos impõe-nos algumas considerações acerca da administração e do governo da América portuguesa. A primeira delas, ressaltada por Francisco Carlos Cosentino, refere-se à ausência de regras uniformes e de um conjunto de leis específicas para a administração do ultramar, nos moldes do que se fez, por exemplo, no âmbito da monarquia hispânica.25 Ao contrário, a ordenação administrativa da América portuguesa experimentou uma pluralidade de soluções que variou de acordo com suas diferentes regiões e com conjunturas econômicas e políticas específicas. Após o momento inicial de conquista e fi xação dos portugueses em pontos descontínuos do litoral, período marcado pela descentralização administrativa e pela doação régia de capitanias hereditárias a particulares,26 a Coroa instituiu, em 1549, o governo-geral, com sede na cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, primeiro indício de um processo de centralidade régia no extenso território da América. Francisco Cosentino discute o argumento da “centralização monárquica”, defendido por parte da historiografia brasileira. Analisando os regimentos dos primeiros governadores-gerais, afirma que a referência aos domínios ultramarinos, até 1612, como “partes do Brasil”, “representou a maneira como era percebida pela monarquia portuguesa a montagem do ordenamento político na sua conquista americana”.27 24 25 26 27 ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1968. Cf., entre outros, para os vice-reinados hispano-americanos, BARRIOS, Feliciano (coord.). El gobierno de un mundo. Virreinatos y audiencias en la América Hispánica. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2004; para os territórios europeus e americanos sob o domínio dos Habsburgos, CANTÙ, Francesca (ed.). Las cortes virreinales de la monarquia española: América e Italia. Roma: Viella, 2008. Cf. SALDANHA, António V. de. As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenómeno atlântico. Lisboa: CNCDP, 2001. COSENTINO, Francisco C. Governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII). Ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo / Belo Horizonte: Anablume /Fapemig, 2009, p. 220. 72 De acordo com o clássico estudo de Caio Prado Júnior, já aqui mencionado, a unidade do Brasil, embora existisse na geografia, aparecia oficialmente apenas nos títulos honoríficos dos vice-reis e no de príncipe do Brasil, que traziam os primogênitos da dinastia de Bragança e herdeiros da Coroa, desde, pelo menos, a elevação do Estado do Brasil à condição de Principado, por carta régia de 26 de outubro de 1645. Com evidente exagero, e alguma impropriedade, afirma que O Brasil não constitui, para os efeitos da administração metropolitana, uma unidade. O que havia nesta banda do oceano, aos olhos dela, eram várias colônias ou províncias, até mesmo “países”, se dizia às vezes, que, sob o nome oficial de capitanias, se integravam no conjunto da monarquia portuguesa, e a constituíam de parceria com as demais partes dela: as províncias do Reino de Portugal e as do de Algarve, os estabelecimentos da África e do Oriente.28 Segundo Dauril Alden, tanto os governadores-gerais na Bahia, quanto os capitães-mores das diferentes capitanias – quer sob administração direta da Coroa, quer em posse dos donatários – exerciam poderes similares na supervisão da justiça, da fazenda, das milícias, e na doação de terras e sesmarias.29 Até fins do século XVII, cabia especificamente aos governadores-gerais – e não aos capitães mores das capitanias – a nomeação para postos civis e militares, submetida à confirmação régia. De 1572 a 1578, e novamente de 1608 a 1612, as capitanias do sul – Porto Seguro (entre 1572-1578), Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente – foram subtraídas à autoridade do governadorgeral na Bahia e se tornaram subordinadas ao governador do Rio de Janeiro. Em 1621, os territórios do Ceará, Maranhão e Pará foram desmembrados do Estado do Brasil, formando uma circunscrição político-administrativa distinta, o Estado do Maranhão e Grão-Pará. Novamente na década de 1640, Salvador Correa de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro, restaurador de Angola contra os holandeses (1648) e vogal do Conselho Ultramarino (a partir de 1644), obteve de d. João IV sua nomeação como superintendente em todas as matérias de guerra na Repartição Sul (1637-1641), governador e administrador geral das minas de São Paulo (1643) e governador e capitão general das capitanias do sul (1658). Estas redefinições administrativas incidiram na diminuição da autoridade do governador-geral sobre o conjunto dos territórios que formavam, fragmentariamente, o Estado do Brasil. 28 29 PRADO JR, op. cit., p. 303-304. ALDEN, Dauril, op. cit., especialmente cap. XVI: “Relations with governors and captains-general”. 73 Salvador de Sá e Benevides, ao ser instituído, em 1658, governador e capitão-geral da Repartição do Sul, dispunha de amplos poderes e de jurisdição independente do governador-geral na Bahia, o que, por outro lado, multiplicou as disputas e os conflitos jurisdicionais entre o governo do Rio e o do Estado do Brasil. Em 1656, Francisco Barreto, antigo mestre-de-campo das forças portuguesas em Pernambuco, foi nomeado governador-geral. Como afirma C. R. Boxer, Barreto e Salvador discordaram no tocante aos limites territoriais da nova Repartição do Sul, ponto que não deixavam muito claros os termos da patente e da comissão de que o último era portador. Salvador sustentava que a capitania do Espírito Santo estava incluída em sua esfera, tal como acontecera nas duas anteriores delimitações das capitanias do sul (em 1574 e 1608); mas Barreto, de seu lado, pensava que só o Rio de Janeiro e as capitanias que lhe ficavam mais ao sul (ditas capitanias de baixo) deviam considerar-se implicadas nos termos da patente. O governador-geral, não querendo receber um novo contra da corte, escreveu para Lisboa, dizendo que embora não concordasse com as exigências territoriais, ele lhe havia feito a entrega do Espírito Santo, além do Rio de Janeiro e das capitanias situadas mais ao sul.30 Se a nomeação de Salvador de Sá como governador da Repartição do Sul significava, por um lado, o reconhecimento dos serviços prestados à monarquia portuguesa e, especificamente, à dinastia dos Bragança, por outro, legitimava o exercício de seu poder sobre toda uma extensa região que possuía como epicentro ou, como se dizia então, cabeça, a cidade do Rio de Janeiro. Em 1693, a Coroa conferiu, aos governadores da capitania do Rio de Janeiro, ampla jurisdição em tudo o que se referisse às minas recém-descobertas. Artur de Sá e Meneses, nomeado a 12 de janeiro de 1697, foi o primeiro a exercê-la. Em novembro de 1698, a capitania de São Paulo subordinou-se ao governador do Rio, salvo em competências de justiça, que continuavam sob a alçada do Tribunal da Relação da Bahia.31 Em novembro de 1699, foi a vez da Colônia do Sacramento se sujeitar ao governo do Rio. Nova carta régia de 10 de dezembro de 1701 confirmava, uma vez mais, que os territórios e capitanias do sul, incluindo São Vicente, São Paulo, Santos e as minas recémdescobertas, deveriam ser regidos pelo governador do Rio de Janeiro. Se- 30 31 BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Companhia Editora Nacional / Editora de Universidade de São Paulo, 1973, p. 318. Cf. BELLOTTO, Heloisa L, Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2ª ed. revista. São Paulo: Alameda, 2007, p. 23-24. 74 gundo Felisbello Freire, antigo historiador da cidade, no final do século XVII, “o Rio de Janeiro era a metrópole, a vida administrativa e política do Sul”.32 A interiorização da colonização portuguesa a partir de finais do século XVII levou à criação de outras capitanias e à nomeação de novos governadores e capitães-generais para os seus respectivos governos. A reorganização administrativa da América portuguesa e a multiplicação de capitanias levaram à diminuição das atribuições dos antigos governadores-gerais, assim como de seu poder de interferência para além das circunscrições político-administrativas para as quais eram nomeados. Nas primeiras décadas do século XVIII, quando o título de vice-rei passou a ser sistematicamente atribuído aos antigos governadores-gerais, sua superioridade hierárquica, em termos político-administrativos, e sua capacidade de intervenção nas demais capitanias deixaram de existir. É corrente na historiografia clássica a atribuição do frágil poder de governadores-gerais e, posteriormente, de vice-reis, à superposição de jurisdições entre os diferentes oficiais régios no distante ultramar. À excessiva centralização do poder e das decisões em Lisboa, Caio Prado Jr. opõe, na obra já aqui mencionada, a fluida competência dos funcionários régios na colônia, cujas jurisdições e autoridade eram marcadas pelo hibridismo e pela justaposição, carecendo de definição e limites. Afirma que, embora o vice-rei fosse “em regra, adstrito a normas muito precisas e rigorosas, traçadas com minúcias até extravagantes”, suas competência e autoridade chocavamse com as jurisdições dos demais oficiais régios e órgãos administrativos. Alguns destes órgãos – como as Juntas da Fazenda, a Mesa de Inspeção, o Tribunal da Relação –, por constituírem entidades coletivas e não serem hierarquicamente submetidos a qualquer outro agente na colônia, funcionavam como contrapeso e, por vezes, como limitação à autoridade de governadores e vice-reis.33 Mais recentemente, A. J. R. Russell-Wood analisou essa questão sob um novo prisma. Voltando-se para as várias partes constituintes do ultramar português, argumentou que, 32 33 FREIRE, Felisbello, História da cidade do Rio de Janeiro, vol. I (1564-1700). Rio de Janeiro: Typ. da Revista dos Tribunais , 1912, p. 303. PRADO JR., op. cit., p. 307-309. 75 enquanto, em teoria, se tratava de uma estrutura altamente centralizada e dependente de Lisboa, com Goa e Salvador (Rio de Janeiro, a partir de 1763) a actuarem como centros subordinados respectivamente no Estado da Índia e no Brasil, e com todas as nomeações feitas pela Coroa ou sujeitas à aprovação real, a realidade era uma extraordinária descentralização da autoridade que podemos atribuir a vários factores.34 Um deles era a distância em relação ao centro decisório da monarquia, o que concentrava uma excepcional responsabilidade na pessoa dos governadores de capitanias, governadores-gerais e vice-reis. Estes, antes de tomarem decisões inadiáveis, não raro convocavam juntas, nas quais consultavam os demais oficiais régios – civis, militares, judiciais e religiosos – e, ainda, os meros cidadãos, simples vassalos do rei de Portugal nas longínquas paragens ultramarinas. O resultado não era apenas a descentralização sistêmica do governo, mas uma limitação da autoridade efetiva dos representantes máximos do rei no ultramar, independentemente dos poderes regimentais concedidos pela Coroa e do fato de lhes caber a responsabilidade pela administração de várias facetas do governo. Da mesma forma, António Manuel Hespanha critica a ideia de excessiva centralização aplicada ao Império ultramarino português. A seu ver, “a imagem de um império centralizado era a única que fazia suficiente jus ao gênio colonizador da metrópole. Em contrapartida, admitir um papel constitutivo das forças periféricas reduziria o brilho da empresa imperial”.35 O autor defende a inexistência de um modelo geral para a expansão portuguesa, ou de uma estratégia sistemática abrangendo todas as partes do império, pelo menos até meados do século XVIII. Insiste no argumento de um estatuto colonial múltiplo, baseado num direito pluralista, que autorizava governadores e vice-reis a criarem direito, ou, pelo menos, a dispensarem o direito existente. A seu ver, De acordo com a doutrina da época, os governadores gozavam de um poder extraordinário (extraordinária potestas), semelhante ao dos supremos chefes militares (dux). (…) Nos regimentos que lhes eram outorgados, estava sempre inserida a cláusula de que poderiam desobedecer às instruções régias aí dadas sempre que uma avaliação pontual do serviço real o justificasse. Daí que, apesar do estilo altamente detalhado das cláusu- 34 35 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Governantes e agentes. In: BETHENCOURT, F. & CHAUDHURI, K. (dir.). História da expansão portuguesa, vol. 3. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1997, p. 171. HESPANHA, A. M. A constituição do império português..., op. cit., p. 167. 76 las regimentais e da obrigação de, para certos casos, consultarem o rei ou o Conselho Ultramarino, os vice-reis e governadores gozavam, de fato, de grande autonomia.36 Essa autonomia foi maior no Estado da Índia. Segundo Catarina Madeira dos Santos, no Estado da Índia, a instituição do ofício de vice-rei baseouse no propósito de dotar os governantes ultramarinos de uma dignidade quase real, permitindo-lhes o exercício da graça, a concessão de mercês, a atribuição de ofícios, a outorga de rendas, o perdão de crimes.37 O mesmo, no entanto, não se deu em relação aos governadores-gerais e vice-reis do Brasil, cuja jurisdição era mais limitada. Em outros termos, não se transpôs na pessoa, quer dos governadores-gerais, quer dos vice-reis do Estado do Brasil, o conjunto de regalia maiora ou direitos majestáticos considerados inseparáveis do rei, como ocorreu no Estado da Índia. Não obstante, o regimento de Francisco Giraldes, de 1588, autorizava-o a conceder tenças até o valor de mil cruzados, enquanto o de Gaspar de Souza, de 1612, permitia-lhe a dispensa do processo devido nos casos civis e criminais, o lançamento de fintas, a atribuição de tenças, o direito de conceder ofícios, em propriedade ou em serventia, embora não pudesse criar novos ofícios ou aumentar os salários dos já existentes. Note-se, no entanto, que os regimentos destes governadores foram expedidos no período filipino.38 Foram, ao todo, cinco os regimentos atribuídos aos governadores gerais do Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII: os de Tomé de Sousa (1549-1553), Francisco Giraldes (1588), Gaspar de Sousa (1612-1616), Diogo de Mendonça Furtado (1621-1624) e Roque da Costa Barreto (1678-1682). Todos os demais governadores-gerais e vice-reis até o início do século XIX se orientaram por 36 37 38 Idem, p. 174-175. SANTOS, C. M. dos. “Goa é a chave de toda a Índia”. Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570). Lisboa: CNCDP, 1999, p. 51-62. Acerca dos regalia maiora, ou direitos majestáticos, transferidos aos vice-reis do Estado da Índia, Catarina Madeira dos Santos cita a produção de alvarás vice-reais; a prerrogativa de aplicação da justiça suprema em matérias cíveis e crime, não sendo as sentenças vice-reais sujeitas à apelação ao rei; a cunhagem de moeda; a capacidade de impor tributos; intervenções no padroado régio no Oriente; o estabelecimento e provimento de novos ofícios; a autonomia na gestão dos bens materiais. Estas prerrogativas se mostraram alargadas nos primeiros vice-reinados do Estado da Índia, tendo sido posteriormente cerceadas com a criação de instituições específicas para cuidar da Justiça e da Fazenda, como o Tribunal da Relação e a Vedoria da Fazenda. HESPANHA, A constituição do império português…, op. cit., p. 176-177. Cf. COSENTINO, op. cit., cap. 7: “Os regimentos do período filipino: consolidando um governo e incorporando práticas castelhanas”. Cf. também MARQUES, Guida. O Estado do Brasil na União Ibérica: dinâmicas políticas no Brasil no tempo de Filipe II de Portugal. Penélope, nº 27, 2002, p. 7-35. 77 este último regimento, assim como por suas cartas patentes e demais legislação específica. Isso coloca a questão da pouca diferença entre o ofício e as jurisdições dos governadores-gerais e vice-reis no Brasil. O estatuto de vice-rei substituiu literalmente o de governador-geral, sem que as competências respectivas ou outras dimensões se tenham alterado.39 O primeiro oficial régio na América portuguesa que recebeu o título de vice-rei e capitão general de mar e guerra e da restauração do Brasil foi d. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão (1640-1641), que desempenhou importante papel no juramento de fidelidade por parte dos vassalos americanos à Casa de Bragança. O segundo vice-rei, d. Vasco Mascarenhas, conde de Óbidos, governou entre 1663 e 1667. O terceiro, d. Pedro de Noronha, marquês de Angeja, assumiu o governo em 1714, permanecendo até 1718. Somente em 1720, com a nomeação de Vasco Fernandes Cesar de Meneses, conde de Sabugosa – que desempenhou o ofício até 1735 – o título de vice-rei foi concedido, ininterruptamente, até 1808, aos que governaram o Estado do Brasil. Os quatro primeiros vice-reis do Brasil haviam anteriormente governado a Índia. Embora não haja notícia de nenhum alvará que tenha elevado o Estado do Brasil à condição de vice-reino, a atribuição do título de vice-rei aos sucessivamente nomeados para o seu governo a partir de 1720 demonstra, por um lado, uma significativa alteração no perfil dos homens que passaram a ocupar o cargo e, por outro, o reconhecimento da importância econômica e política que o Brasil conquistou, desde meados do século XVII, no conjunto da monarquia portuguesa, importância transfigurada no título e na qualidade dos que passaram a assumir o ofício, sistematicamente arregimentados no interior da nobreza titulada. De acordo com Nuno Monteiro, se comparados aos vice-reis da Índia – em sua grande maioria filhos primeiros das casas nobres do reino –, os governadores-gerais do Brasil no século XVII, embora provenientes da primeira nobreza, eram filhos secundogênitos. Poucos se elevaram à grandeza. No entanto, essa situação mudaria na primeira metade do século XVIII, quando passou a ser sistemática a atribuição do título de vice-rei aos nomeados para aquele Estado, o que leva o autor a concluir que “a coincidência entre o vice-reinado e o título condal era claramente assumida na época”. Assim, todos 39 Cf. MONTEIRO, Nuno G. Trajetórias sociais e governo das conquistas. Notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs). O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 258. 78 os vice-reis nomeados a partir de 1714 eram ou seriam feitos titulares “com Grandeza” no reino, fossem eles primogênitos e sucessores da casa paterna, fossem filhos segundos: “Na verdade, a atribuição do título vice-reinal e a elevação à Grandeza constituem, como se disse, dimensões indissociáveis”.40 Por outro lado, se faltava anterior experiência ultramarina aos governadores-gerais nomeados para o Brasil no século XVII, o mesmo não se pode dizer dos vice-reis que serviram na centúria seguinte. Em sua grande maioria, haviam governado outras capitanias na América ou passado pelos governos da Índia e de Angola. Ainda de acordo com o mesmo autor, se na Índia os vice-reis continuavam a ser recrutados entre os que haviam bem servido à monarquia no âmbito militar, no Brasil, o que parece ter sido um ponto distintivo no curriculum dos escolhidos era o de possuírem anterior experiência administrativa em outras partes do império.41 Isso nos remete às argumentações defendidas pela historiografia – e inclusive por alguns dos autores aqui citados – de que a qualidade de vice-rei no Brasil, além de distinguir os nomeados para o ofício, provenientes da primeira nobreza do reino, não passava de um título, que não trazia consigo maiores poderes ou competências. Dauril Alden afirma que uma das mudanças mais significativas ocorridas na passagem da designação de governadores-gerais para a de vice-rei foi o acréscimo de seus salários.42 De resto, as ordens e deliberações remetidas de Lisboa não se dirigiam mais tão-somente aos vice-reis, para serem por ele reencaminhadas aos demais governadores das capitanias. Contrariamente, estes se correspondiam diretamente com a Coroa, não sendo mais obrigados a pedir autorização ou dar satisfação de seus atos ao vice-rei, quer na Bahia, quer, posteriormente, no Rio de Janeiro. No entanto, se os vice-reis do Estado do Brasil não possuíam as mesmas prerrogativas que os do Estado da Índia e, se ao longo do século XVIII, com a criação de novas capitanias-gerais, seu poder de intervenção nas mesmas era quase inexistente, ao menos simbolicamente continuavam a representar a figura régia e alguns direitos majestáticos nos distantes domínios ultramarinos. Daí a importância do estudo deste ofício a partir de uma perspectiva 40 41 42 Idem, p. 264. Id., ibidem, p. 266-270. Cf. também GOUVÊA, Maria de Fátima S. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português (c. 1680 – c. 1730). In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, M. F. S. (orgs). Na trama das redes. Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 155-202. ALDEN, op. cit., p. 40. 79 que privilegie, para entender o governo e a administração ultramarina, a cultura política do Antigo Regime. Em 13 de junho de 1714, tomava posse do governo na Bahia, com a patente de vice-rei e capitão general de mar e terra, d. Pedro Antônio de Noronha, 1° marquês de Angeja. Filho de d. Antônio de Noronha, 1° conde de Vila Verde, e de d. Maria de Menezes, filha de d. Duarte Luiz de Menezes, 3° conde de Tarouca, e da condessa d. Luiza de Faro, d. Pedro Antônio de Noronha de Albuquerque e Sousa serviu como vice-rei na Índia entre 1692 e 1699. Foi general da cavalaria da província do Alentejo e participou como mestre de campo general da campanha de 1706, “em que o nosso Exército mandado pelo Marquês de Minas ocupou Madri, em que o Marquês teve grande parte”. Em 1710, assumiu o posto de governador de armas da província do Alentejo e, em 1713, foi nomeado “Vice-Rei e Capitão General de Mar e Terra, com intendência, e superioridade em todas as capitanias da América”.43 Uma das principais finalidades de sua escolha – “pela sua qualidade e de tão grande suposição em lugares” – foi a de estabelecer a dízima da Alfândega de Salvador e o direito dos escravos que passavam “por mercancia” às Minas.44 Seu governo, no entanto, foi marcado por um quadro de conflituosidade com o Conselho Ultramarino. Os motivos do enfrentamento transparecem nas discussões e nos pareceres do tribunal. Ao consultar uma carta do marquês de Angeja solicitando ao rei a faculdade de conceder foros de fidalgos e hábitos da Ordem de Cristo aos vassalos americanos, o parecer do Conselho sustentava que: se não deve permitir a faculdade que pede, (...) porque ainda que ao vice-rei da Índia costumava passar provisão para semelhante concessão isto foi por animar aos homens nobres deste Reino que passassem àquele Estado, e para que nele na guerra obrassem ações singulares e heróicas, como declara a mesma provisão, e porque o governo da Índia é um governo totalmente militar e guerreiro, e sempre os vice-reis estão em campanha, ou no mar e na terra, contendendo com os reis da Ásia, e ainda muitas vezes com as nações da Europa, o que não há no Brasil como reconhece o mesmo vice-rei (...)45 43 44 45 SOUSA, Antônio Caetano de. Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal. Lisboa, 1742, p. 87-89. Consulta do Conselho Ultramarino, de 17 de dezembro de 1715. DH/BNRJ, vol. 96, 1952, p. 208-209. Consulta do Conselho Ultramarino de 15 de dezembro de 1714. DH/BNRJ, vol. 96, 1952, p. 141-142. 80 Afirmavam os conselheiros que aquela faculdade não havia sido concedida ao conde de Óbidos, que fora vice-rei do Brasil depois de ter governado a Índia. E, se ela fora atribuída, com alguma moderação, a Artur de Sá e Menezes, governador e capitão-general do Rio de Janeiro (1697-1702), “foi para convidar aos paulistas ao descobrimento das minas, (o negócio) mais útil e importante a este Reino que teve naquele Estado (...) sendo prêmio com que Vossa Majestade queria animar aos homens para lhe fazerem tamanho serviço”.46 Uma semana mais tarde, o Conselho se reuniu para avaliar mais uma pretensão do marquês de Angeja: a de reformar os oficiais de guerra, dar-lhes entretenimentos e prover-lhes os postos. Novamente, o parecer foi contrário à solicitação do vice-rei, “porque esta jurisdição é imediata e inerente à real pessoa de Vossa Majestade, nem convém que se amplie tanto a jurisdição de vice-rei, (...) porque neste Reino o Conselho de Guerra nem este tribunal o pode fazer senão por consultas e resolução de Vossa Majestade”.47 Em ambas as consultas, d. João V conformou-se com o parecer do Conselho. No entanto, em 15 de dezembro de 1716, novo requerimento do marquês de Angeja, fundava-se na “inteligência” que o vice-rei tinha, em sua patente, sobre o provimento de postos militares vagos por falecimento daqueles que os ocupavam. Referia-se à maior jurisdição que possuía, comparativamente aos anteriores governadores-gerais e vice-reis do Estado do Brasil. Tendo vagado um posto de capitão de infantaria por morte de seu ocupante, provera-o, “com a obrigação de dentro de um ano mostrar confirmação de Vossa Majestade”. No entanto, o provedor-mor, Luiz Lopes Pegado, duvidava em assentar-lhe praça, com a justificativa de que possuía ordem régia para não o fazer enquanto as patentes não fossem assinadas pelo próprio rei. Os magistrados do Conselho se dividiram a respeito. O procurador da Fazenda não colocava em causa a jurisdição ampliada do vice-rei e, sim, a qualidade da pessoa provida. Já o procurador da Coroa dizia que “nenhum destes provimentos é legítimo nem jurídico”, devido ao 46 47 Idem. Já no final de seu governo, o marquês de Angeja representava que, “atendendo à sua pessoa, e aos gastos que se lhe faziam precisos naquela praça, correspondentes ao lugar que ocupa”, e ainda aos que teria com a preparação de sua viagem para o Reino, era justo que continuasse recebendo soldo até a data de sua partida. O Conselho foi de parecer que d. João V deferisse ao pedido do marquês, “pois a sua pessoa por quem é e pelos lugares e postos que há ocupado, faz uma grande distinção dos mais governadores, porém que se deve declarar que esta graça não fará exemplo para outros”. Consulta do Conselho Ultramarino de 15 de março de 1717. DH/BNRJ, vol. 97, 1952, p. 57-58. Consulta do Conselho Ultramarino de 22 de dezembro de 1714. DH/BNRJ, vol. 96, 1952, p. 147. 81 fato de os providos não terem os anos de serviço que determina o regimento. Além do que, “a dúvida principal sobre a jurisdição do vice-rei para prover os postos que vagam por morte, assim como quando os pode prover quando vagam por culpas, não pode se resolver sem que primeiro se ponha na presença de Vossa Majestade, a quem incumbe declarar a sua real intenção”.48 Ao Conselho pareceu, com base apenas na interpretação da patente do marquês de Angeja, sem sequer se remeter ao regimento dos governadoresgerais, que, ainda que tenha cláusulas exuberantes, as quais se costumam expressar nas patentes de cargos superiores, mais para o honorífico do que para o efeito e execução, contudo por ela não lhe é competente passar patentes absolutas de propriedade de postos e ofícios que remover por culpas, (...) e assim muito menos lhes pode competir pela mesma patente prover os postos de propriedade, que vagarem por falecimento.49 A resolução régia contradizia, em parte, o parecer dos conselheiros. Dispunha que fosse facultado ao marquês de Angeja o provimento de postos militares que vagassem por morte e por delito, embora não os que se criassem de novo.50 Em duas outras consultas sobre a determinação do vice-rei em criar novos ofícios para a Fazenda Real na Bahia, assim como para a secretaria do mesmo governo, devido às novas necessidades decorrentes da imposição da dízima da Alfândega, os conselheiros argumentaram, na primeira, que o vice-rei ia “procedendo absolutamente no seu governo, sem reconhecimento de superior e sem atenção aos regimentos, leis, e ordens de Vossa Majestade, nem ao estado em que se acha a Fazenda Real (...) multiplicando despesas de seu moto próprio, criando ofícios novos sem jurisdição”. Aconselhavam o monarca a admoestar o marquês de Angeja para que não continuasse “nesta forma de governo tão despótico e absoluto”, e para que não inovasse “a forma em que está disposto aquele governo”.51 Na segunda consulta sobre o mesmo tema, os votos dos magistrados divergiam. O parecer do procurador da Fazenda era de que 48 49 50 51 Consulta do Conselho Ultramarino de 15 de dezembro de 1716. DH/BNRJ, vol. 97, 1952, p. 36-41. Idem, p. 40. Id. ibidem, p. 41. Consulta do Conselho Ultramarino de 19 de janeiro de 1715. DH/BNRJ, vol. 96, 1952, p. 150-152. 82 ao vice-rei sem expressa e declarada autoridade, ainda em nome de Vossa Majestade, não é permitido criar ofícios de novo, porque esta jurisdição é só de Vossa Majestade e soberania régia, e que quando parecesse necessário mais alguns oficiais, devia o vice-rei dar conta da necessidade para o dito Senhor resolver o que fosse servido, e não criar ele tantos ofícios de novo por sua própria autoridade.52 Afirmava que o marquês de Angeja devia guardar tão-somente o que determinava o regimento dos governadores-gerais. Já Antônio Rodrigues da Costa concordava com o vice-rei sobre a necessidade de novos oficiais para a boa arrecadação da dízima, endossando seu pedido para que d. João V ordenasse que o escrivão da Alfândega de Lisboa fosse à Bahia, “não para ele fazer leis nem para dar foral, porque isso nem o vice rei o pode fazer”, mas para conferir e apontar os meios para uma melhor arrecadação e despacho da Alfândega, submetendo-os ao monarca, a fim de que os aprovasse. D. João V acatou o parecer do conselheiro, ordenando que se colocassem editais tanto em Salvador quanto na Corte, para o provimento dos ofícios.53 Considerações finais Com base na análise da documentação parcialmente reproduzida acima, podemos concluir que a falta de limites precisos de jurisdição dos diferentes órgãos e ofícios da monarquia portuguesa sustentava-se na cultura política do Antigo Regime ibérico. As prescrições contidas nos regimentos e mesmo nas patentes dos oficiais régios podiam ser alargadas, diminuídas, ignoradas e até mesmo subvertidas de acordo com as conjunturas políticas e econômicas pelas quais passavam o reino e seu império ultramarino. No caso do marquês de Angeja, a “necessidade”, ou seja, a particularidade de sua missão no governo do Estado do Brasil – estabelecer a dízima da Alfândega de Salvador e o direito dos escravos que passavam às Minas – autorizava, mesmo que em dissonância com o regimento dos governadores-gerais, o exercício de alguns poderes majestáticos. Se, em geral, o Conselho Ultramarino, cioso das atribuições exclusivas do rei, tentava preservar a centralidade do monarca nas decisões, concessões de mercês e provimentos no ultramar, acusando o vice-rei de pretender governar de maneira despótica e absoluta, a conjuntura específica na qual o marquês de Angeja foi nomeado para go- 52 53 Consulta do Conselho Ultramarino de 23 de fevereiro de 1715. DH/BNRJ, vol. 96, 1952, p. 152-155. Consulta do Conselho Ultramarino de 23 de fevereiro de 1715, e resolução anexa de 20 de dezembro de 1715. Idem, p. 154-155. 83 vernar o Estado do Brasil flexibilizava os rigores regimentais de seu ofício. Caio Prado Jr. tem razão ao apontar o “fosso entre a teoria e a prática” no governo e na administração da América portuguesa. No entanto, uma coisa é a teoria e a outra consiste na dinâmica histórica da ação política e administrativa. Esta sempre foi muito mais complexa e imponderável do que aquela poderia prever ou dispor. Os estudos de António Manuel Hespanha chamam atenção para a ausência de homogeneidade, de excessiva centralidade e de hierarquias rígidas na arquitetura do poder no reino e no ultramar.54 Chamam igualmente atenção para o caráter pluralista do direito, sobretudo para o fato de que o pluralismo e a fluidez eram reflexos da inconsistência jurídica da própria arquitetura do direito comum europeu, erguida sobre o princípio de que as regras particulares (os costumes locais, “estilos” locais de decisão em tribunais, privilégios etc.) desbancavam as regras gerais (como a lei e o ius commune). O direito era assim constituído por uma estrutura de normas pluralísticas e casuísticas, por múltiplos estatutos e privilégios particulares, os quais eficientemente limitavam a ação do centro da monarquia e, em última instância, do rei. Essa característica do ius commune europeu resultou numa vantagem essencial quando os europeus tiveram de lidar com um mundo complexo e em constante movimento e mutação, como o dos territórios, domínios e sociedades ultramarinas.55 O autor alertou-nos, enfim, para que a tão propalada ineficiência administrativa não era uma característica singular da experiência portuguesa, mas, sim, um traço estrutural dos sistemas políticos de Antigo Regime, quer nas colônias, quer nas metrópoles. Uniformidade e poder político ilimitado característico de estados centralizados não existiram no mundo ibérico, seja na Europa, seja nas Américas. Ao contrário, justaposição institucional e jurisdicional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder central, caráter mutuamente negociado de vínculos políticos e multiplicidade de canais de comunicação política entre o centro e as periferias eram, não a exceção, e sim a norma.56 Recebido: 25/07/2012 - Aprovado: 14/09/2012 54 55 56 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português..., op. cit., p. 163-188. HESPANHA, António Manuel. Depois do Leviathan. Almanack Braziliense, n° 5, maio de 2007, p. 55-66. HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império colonial português. In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes. Política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 43-93. 84 “ÚLTIMA VONTADE”: A ALFORRIA EM TESTAMENTOS DE HOMENS PARDOS (VILA RICA, 1755-1831) Daniel Precioso Contato: Doutorando do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal Fluminense (bolsista CNPq) Rua Andrade Pertence, 34 – apto. 204 22220-010 – Catete – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Resumo O artigo examina a prática da alforria entre os homens pardos de Vila Rica (1755-1831). Seu objetivo é apreender os motivos que levaram pardos, donos de pequenas escravarias, a libertar escravos em disposições testamentárias. Buscando a dinâmica da alforria na relação senhor-escravo, conciliamos uma análise das formas de alforriar e do grupo de alforriados com um exame da condição senhorial. Palavras-chave Alforria – homens pardos – séculos XVIII e XIX. 85 “LAST WILL”: THE ENFRANCHISEMENT IN PARDO MEN’S WILLS (VILA RICA, 1755-1831) Daniel Precioso Contact Doctorate Student at Instituto de Ciências Humanas e Filosofia of Universidade Federal Fluminense (CNPq’s grantee) Rua Andrade Pertence, 34 – apto. 204 22220-010 – Catete – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Abstract The article examines the practice of the manumission among the pardos of Vila Rica (1755-1831). The objective is to apprehend what took them, few slaves’ owners, to practice the manumission in their testamentary dispositions. Looking for the dynamics of the manumission in the relationship gentleman-slave, we reconciled an analysis in the ways of freeing slaves and of the group of having freed with an exam of the proprietors’ condition. Keywords Manumission – pardos (brown men) – centuries XVIII and XIX. 86 Pesquisas recentes em história social têm enfocado o tema da alforria cada vez mais, utilizando para tanto um conjunto variado de fontes, sobretudo cartas de alforria e testamentos. Estas pesquisas trazem à tona muitas histórias individuais de escravos que conseguiram obter suas liberdades. Apesar disso, os estudos da prática da alforria no Brasil dos séculos XVIII e XIX ainda são fragmentários e carecem de maiores pesquisas. O presente estudo tem como propósito realizar um sucinto exame de alforrias concedidas em testamentos por um pequeno grupo de homens pardos de Vila Rica, entre 1755 e 1831.1 Sem descuidar da ação dos escravos na obtenção de suas próprias liberdades, o artigo tem por objetivo formular hipóteses para explicar os motivos que levavam senhores com ascendência africana, mecânicos e donos de pequenas escravarias a alforriar seus escravos na hora da morte. Assim, não obstante o exame da condição senhorial apareça em primeiro plano, partiremos do pressuposto de que a prática da alforria não pode ser apreendida sem que a consideremos no interior de um jogo de forças assimétricas, que engloba os dois polos da relação senhor-escravo. A alforria como objeto de estudo: um debate historiográfico Os historiadores da escravidão no Brasil tardaram a contemplar a alforria entre as suas preocupações. Podemos atribuir o longo hiato representado pela falta de estudos sobre o tema a dois fatores: a atração quase magnetizadora que o escravo e a condição cativa geravam naqueles que se debruçaram sobre o tema da escravidão, e a popularidade de uma visão estática da sociedade colonial, que tendia a congelá-la no binômio senhor versus escravo.2 A confluência desses dois fatores, ao que parece, redundou em uma crença na irrelevância e na pequena expressividade numérica da alforria, não obstante essas hipóteses não possuíssem sustentação empírica. O resultado disso foi que, antes da década de 1970, os historiadores não debateram a constituição 1 2 Os limites cronológicos da pesquisa foram delimitados de acordo com o ano de abertura do primeiro e do último testamento analisado. Essa vertente interpretativa ficou consagrada pela obra de PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 29ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. Para uma revisão crítica dessa produção, cf. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 87 de uma ampla camada de libertos nas vilas e cidades da Colônia e do Império e o que estava na sua base, uma arraigada prática senhorial de alforriar.3 No início da década de 1970, Richard Graham chamou a atenção para a necessidade de estudos sobre o tema da alforria.4 A partir de então, os historiadores passaram a valorizar pesquisas sobre o assunto e a explorar as suas potencialidades de análise, publicando trabalhos que enfocaram, basicamente, o século XIX.5 Nos anos 1970 e 1980, cinco questões fundamentais nortearam o debate: a alforria ocorria preferencialmente ou em maior quantidade em tempos de crise ou de prosperidade econômica?6 A maior ou menor incidência da alforria ligava-se a fatores demográficos e, em última análise, ao tráfico atlântico?7 As alforrias eram mais frequentes nas zonas urbanas do que nas rurais? Os escravos com idade mais avançada eram os mais frequentemente manumitidos?8 Em termos estatísticos, predominaram as alforrias gratuitas, pagas ou condicionais?9 As indagações presentes no período em questão se valeram, portanto, de uma “lógica de mercado” e de uma leitura “economicista” da alforria. Assim, a lógica senhorial da alforria foi buscada em movimentos de estruturas 3 4 5 6 7 8 9 Conhecemos apenas dois estudos que trataram desses temas antes da década de 1970: The black man in slavery and freedom (1967) de Russell-Wood, que propõe a análise da escravidão sob a ótica dos forros e dos mulatos, e “A libertação dos escravos no Brasil através de alguns documentos” de Vivaldo Daglione, que trabalhou com as cartas de alforria num cartório de Apiaí, em São Paulo. Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial (trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; e DAGLIONE, Vivaldo N. F. A libertação dos escravos no Brasil através de alguns documentos. Anais de História I. Assis, São Paulo, 1968/69, p. 131-4. GRAHAM, Richard. Brazilian slavery re-examined: a review article. Journal of Social History, 3 (4), Berkeley, 1970, p. 449-50. Existem raras exceções, como a de Stuart Schwartz, que estudou a alforria na Bahia dos séculos XVII e XVIII. SCHWARTZ, Stuart B. The manumission of slave in colonial Brazil. Bahia, 1684-1745. The Hispanic American Historical Review, 54, n. 4, novembro, 1974, p. 603-635. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1985; MATTOSO, Kátia. A propósito de cartas de alforria – Bahia, 1779-1850. Anais de História, IV, 1972, p. 23-52; RUSSELL-WOOD, op. cit., 2005; COSTA, Iraci del Nero da; LUNA, Francisco Vidal. A presença do elemento forro no conjunto de proprietários de escravos. Ciência e Cultura. São Paulo, julho 32 (7), 1980, p. 836-41. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton: Princeton University Press. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 22. GORENDER, op. cit., 1985. Idem. Para um balanço historiográfico dessa produção, cf. FARIA, Sheila de Castro. A riqueza dos libertos: os alforriados no Brasil escravista. In: SILVEIRA, Marco Antonio, CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Território, conflito e identidade. Minas Gerais: Argumentvm, 2007, p. 11-24; e EISENBERG, Peter. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil - séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1989. 88 econômicas que, segundo autores como Jacob Gorender e Kátia Mattoso, teriam incentivado ou inibido a sua prática.10 Nessa perspectiva, Conjunturas favoráveis os fariam [os senhores] estimular a alforria como prêmio para melhorar o serviço ou por facilidade em repor a mão-de-obra. Contrariamente, períodos de depressão teriam mais alforrias para retirar gastos do senhor, excessivos no momento, ou para repor o valor investido no escravo. Todos, também, têm como pressuposto que a maioria das alforrias era onerosa, independentemente da época [...].11 A propósito dessas questões, Sheila de Castro Faria concluiu que o desenvolvimento de pesquisas mais recentes sobre regiões e períodos diversos demonstra que as suposições apresentadas para explicar a prática da alforria não apresentam um padrão fi xo.12 A única constatação unânime é a de que, independentemente da época e da região, se alforriavam muito mais mulheres do que homens.13 Como a autora observou, “todos estes argumentos partem da perspectiva dos interesses dos senhores.”14 O primeiro estudioso da alforria que não adotou um ponto de vista unilateral de sua prática, ou seja, que não a considerou unicamente como fruto dos interesses senhoriais, foi Stuart Schwartz. O historiador chamou a atenção para a necessidade da “[...] inclusão das percepções e das iniciativas dos escravos em relação aos regimes criados pelos fatores demográficos, econômicos e culturais.”15 Tornou-se possível, então, pensar o escravo como agente e não como coisa, abordagem desenvolvida, posteriormente, na década de 1980, por Sílvia Lara (1988) e Sidney Chalhoub (1990).16 Assim, apesar da alforria ser uma concessão senhorial, posto que era doada,17 para o seu 10 11 12 13 14 15 16 17 Para uma revisão crítica das versões “economicistas” e da “lógica de mercado” aplicada ao entendimento da prática da alforria na sociedade brasileira dos séculos XVIII e XIX, herdeira de valores do Antigo Regime, cf. SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750-c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p. 25 e 27. FARIA, op. cit., 2007, p. 13. Na década de 1980, Peter Eisenberg já havia posto reservas às características do “alforriado-padrão” presentes na obra de Jacob Gorender. EISENBERG, op. cit., 1989, p. 256-7. FARIA, op. cit., 2007, p. 15. Douglas Libby e Clotilde Paiva chegaram a conclusões semelhantes. LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Clotilde Andrade. Alforrias e forros em uma freguesia mineira: São José d’El Rey em 1795. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 17, n. 1/2, jan./dez. 2000, p. 38. FARIA, op. cit., 2007, p. 13. SCHWARTZ, op. cit., 1974, p. 631. LARA, Silvia. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. No título LXIII do Livro 4 das Ordenações Filipinas, “Das doações e alforria, que se podem revogar por causa de ingratidão”, fica evidente o caráter de “dádiva” ou “doação” da alforria. Ordenações 89 estudo devemos incluir os diversos mecanismos de que se valeram os escravos para a barganha da liberdade, já que eles possuíam perspicácia para perceber conjunturas favoráveis para a aquisição da alforria.18 Estudos recentes têm demonstrado também que a alforria não consistia no fim de um processo de mobilidade social de egressos do cativeiro, mas no seu começo. Portanto, a mudança de status legal não implicava, necessariamente, em mobilidade econômica ou social. Neste sentido, estudos como os de Eduardo França Paiva (1995), Sheila de Castro Faria (2004), Roberto Guedes Ferreira (2008) e Márcio de Sousa Soares (2009), precedidos pelas pesquisas pioneiras de Russell-Wood (1967), Maria Inês Cortes de Oliveira (1988) e Pierre Verger (1992),19 têm procurado recuperar a trajetória de forros e livres com ascendência africana no pós-cativeiro. 18 19 Filipinas. Rio de Janeiro: Edição de Cândido Mendes de Almeida, 1870, livro 4, p. 865-6. A prerrogativa de alforriar sempre partia do senhor, que detinha o domínio sobre o escravo, sua propriedade. Como observou Manuela Carneiro da Cunha, não havia leis que obrigassem os senhores a alforriar seus escravos, sendo a concessão da liberdade a um cativo de alçada particular. CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1987, p. 123-44. No entanto, em alguns casos, que não preponderaram numericamente, a alforria poderia ser atingida à revelia da vontade senhorial, mediante ações de liberdades perpetradas por escravos em diferentes instâncias de justiça. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Os estudos de Maria Beatriz Nizza da Silva e de John Russell-Wood demonstraram que governadores e ouvidores poderiam concorrer, pressionando os senhores para a liberdade de escravos, bem como que o forro partido poderia ser atingido por meio de pedidos extrajudiciais que os escravos enviavam diretamente ao monarca, o que reforçava o caráter contratual do mando no Império colonial português. Cf., respectivamente, SILVA, Maria Beatriz Nizza da Silva. A luta pela alforria. In: Brasil. Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000, p. 298-307; e RUSSELL-WOOD, A. J. R. Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e de indivíduos de origem africana na América portuguesa. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 215-33. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. Estratégias de resistência através dos testamentos. Belo Horizonte: Annablume, 1995; FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Niterói: Tese (titular), IFHC/UFF, 2004; FERREIRA, Roberto Guedes. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798-1850). Rio de Janeiro: Mauad X, 2008; SOARES, op. cit., 2009; RUSSELL-WOOD, op. cit., 2005; OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. O liberto: o seu mundo e os outros. Salvador, 1790-1890. Salvador: Corrupio, 1988; VERGER, Pierre. Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. São Paulo: Corrupio, 1992. 90 Sobre o caráter sistêmico da escravidão,20 questiona-se, hoje, se a alforria estruturava ou desestruturava o sistema escravista. Em Fragmentos setecentistas (2007), Silvia Lara argumenta que a “multidão” de negros e mulatos forros presente nas principais vilas e cidades coloniais assumiu feições insurgentes em fins do século XVIII, já que esses grupos eram temidos e percebidos pelas autoridades metropolitanas como “vadios” e “perturbadores”.21 A historiadora narra o tom negativo dos discursos de autoridades governativas sobre a prática da alforria e conclui que “[...] a presença massiva de homens negros e mulatos libertos apresentava, sem dúvida, um potencial político eminentemente disruptivo.”22 Portanto, ao indagar sobre os significados políticos e sociais da crescente presença de negros e mulatos forros na América portuguesa, Sílvia Lara construiu uma versão em que sobressai a tensão social. Nesse contexto, “a presença estruturadora da escravidão e aquela desestruturante dos negros e mulatos”, argumenta a autora, oferecem a chave interpretativa para a compreensão das “tensões conformadoras da sociedade que, sob o domínio português, se desenvolveu nas terras da América.”23 Sob essa ótica, a alforria desestruturaria o sistema escravista, pois negros trajavam como brancos, ostentavam galas e luzimentos impróprios às suas qualidades e, assim, tensionavam a hierarquização social de uma sociedade herdeira do Antigo Regime. Em A remissão do cativeiro (2009), Márcio Soares chegou a conclusões opostas. Ao compreender a alforria como um “dom” – na acepção de Marcel Mauss (2008) e Maurice Godelier (2001) –,24 Soares sugeriu que ela não formava uma massa autônoma, mas dependente. Nas palavras do autor, a alforria, “ao fornecer o principal incentivo para os escravos, transformava 20 21 22 23 24 Reporto-me aos pressupostos de Orlando Patterson (1982) e às sugestões de Rafael de Bivar Marquese (2006). PATTERSON, Orlando. Slavery and social death: a comparative study. Cambridge: Harvard University Press, 1982; MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência escrava, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos. Cebrap. São Paulo, v. 4, p. 107-23, 2006. O livro segue o caminho aberto pelas considerações do conde de Resende, vice-rei do Estado do Brasil entre 1790 e 1801, em carta remetida ao secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, discutindo os significados políticos da presença cada vez maior de escravos e libertos nos centros urbanos da América portuguesa nas décadas finais do século XVIII. LARA, Silvia. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. LARA, op. cit., 2007, p. 279. Idem, p. 284-5. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008; GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 91 obediência em dever, reforçando a autoridade senhorial e, portanto, a ordem escravista.”25 Nessa perspectiva, a concessão da liberdade para um cativo, prerrogativa senhorial, derivaria de “[...] um acordo moral entre as partes e pressupunha a continuidade do mesmo após a efetivação da dádiva.”26 Sheila Faria aproxima-se de Márcio Soares, mas vai um pouco além. Na perspectiva dessa historiadora, a “expectativa da liberdade para os escravos ou seus descendentes era tão estruturante do regime escravista quanto o fato de ex-escravos terem a expectativa de se tornarem, um dia, senhores de escravos.”27 Assim, negros e mulatos forros não se tornariam “insurretos em potencial”, mas antes, “senhores de escravos em potencial.”28 Em certa medida, a visão de Faria mostra afinidades com a de Rafael de Bivar Marquese, para quem a gênese da grande população livre negra e mulata ocorreu pela confluência das dinâmicas do tráfico transatlântico de escravos e da alforria. Desse modo, o sucesso do sistema escravista brasileiro residiria na seguinte fórmula: o tráfico de africanos reporia a mão-de-obra escrava e a alforria funcionaria como mecanismo que tornava o cativeiro suportável e legítimo, pois abriria aos escravos um horizonte de expectativa de liberdade.29 A perspectiva de “mecanismo” sugere uma explicação para a longevidade do sistema escravista, mas não elucida os motivos que levaram os senhores a alforriarem seus escravos. Os senhores não libertavam seus cativos para manter em funcionamento o sistema da escravidão. Por trás da liberta- 25 26 27 28 29 SOARES, op. cit., 2009, p. 276. Idem, p. 153. Roberto Guedes Ferreira também analisou a alforria como mecanismo de fortalecimento do domínio senhorial. Para o autor, a alforria era uma “concessão senhorial” e, apesar de “estimulada pela pressão dos escravos”, “não se trata de resistência dentro do sistema”. FERREIRA, Roberto Guedes. A amizade e a alforria: um trânsito entre a escravidão e a liberdade (Porto Feliz, SP, século XIX). Afro-Ásia, n. 35, 2007, p. 87. FARIA, op. cit., 2007, p. 22. Idem, p. 22. Para Sheila Faria, “[...] o fim do tráfico, mesmo o de 1831, foi o fim da alforria como estruturante do sistema escravista. Vejam-se as revoltas que eclodiram a partir de 1830. O escravo passou a ser caro, inacessível à maioria da população e também dos alforriados. A alforria gratuita, que passou a predominar nessa época, foi acompanhada invariavelmente de alguma condição (a morte de alguém, que chegou às raias do absurdo, prevendo a morte do senhor até seus netos) [...] Certamente esses escravos nunca seriam livres nem muito menos donos de escravos. Devem ter se tornado insurretos em potencial. O mecanismo da alforria, que, durante séculos, organizou o sistema escravista do Brasil diretamente alimentado pelo tráfico, ruiu. Foi o fim de um sistema de sucesso”. Idem. MARQUESE, op. cit., 2006, p. 118. De acordo com Rafael Marquese, a alforria consistia num mecanismo de segurança ao sistema escravista brasileiro, fundado na introdução incessante de estrangeiros, evitando “um quadro social tenso” através da “libertação gradativa dos descendentes dos africanos escravizados – não mais estrangeiros, mas sim brasileiros”. Idem, p. 118. 92 ção de escravos encontram-se “cálculos” mais circunscritos, que remontam à vida cotidiana. O motivo da alforria perpassa, no âmbito mais microscópico, a relação pessoal entre senhor e escravo. É preciso ter em mente, ainda, a barganha dos escravos e os diferentes sentidos que cativos e senhores conferiam à liberdade: se para os primeiros a alforria “[...] estava associada à conquista de um maior grau de autonomia,”30 para os últimos associava-se, por exemplo, à propriedade e à transmissão de bens.31 Se a historiografia sobre a alforria, durante as décadas de 1970 e 1980, privilegiou a investigação dos interesses senhoriais em detrimento dos cativos, nas décadas seguintes, o peso relativo das forças dos agentes envolvidos se inverteu: seguindo os caminhos abertos pelos estudos de João José Reis e Eduardo Silva (1989),32 pesquisas realizadas nas duas últimas décadas têm privilegiado o ponto de vista cativo e o caráter negociado da alforria.33 Desse modo, muitos casos de ex-cativos que se tornaram senhores de escravos são trazidos a lume,34 mas pouco se discute como esses indivíduos – na maioria das vezes, donos de pequenas escravarias – se comportavam como senhores e o que os levava a praticar a alforria. Sendo assim, é oportuno pensar como os egressos do cativeiro e seus descendentes comportavam-se como senhores e praticavam a alforria.35 30 31 32 33 34 35 PERUSSATTO, Melina Kleinert. Como se de ventre livre nascesse: experiências de escravidão, parentesco, emancipação e liberdade – Rio Parto/RS (c. 1860-1888). 5° ENCONTRO DE ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL. Anais. Porto Alegre: UFRGS / ANPUH-RS, 2011, p. 15. Sobre as diferentes interpretações dadas por senhores e escravos à alforria, cf., entre outros, MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; TASSONI, Tatiani. Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST, 2007. Cf. REIS, João José, SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Sobre essa produção, Cf. DIÓRIO, Renata Romualdo. As marcas da liberdade: trajetórias sociais dos libertos em Mariana na segunda metade do século XVIII. Dissertação de mestrado, História, FFLCH/ USP, São Paulo, 2007, p. 68-72. Tornar-se senhor de escravos consistia no meio mais eficaz do forro se desvencilhar do estigma da herança do cativeiro. COSTA, Iraci Del Nero da; LUNA, Francisco Vidal. A presença do elemento forro, op. cit., p. 837. Em estudo das estratégias adotadas pelos ex-escravos para marcar a liberdade, Renata Diório afirmou que a maior parte dos libertos que legaram posses possuía escravos, apesar deles representarem menos de 10% do total de donos de escravos que indicaram condição social nos registros de óbitos de Mariana. DIÓRIO, op. cit., 2007, p. 69 e 70. Esses problemas de pesquisa foram esboçados nos estudos de LEWKOWICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. Revista Brasileira de História, v. 9, n° 17, set.88/fev.89, p. 110; e DIÓRIO, op. cit., p. 71. 93 Os testamentos: fontes para o estudo da alforria Existem cinco séries de fontes para o estudo da alforria: cartas de alforria, assentos de batismos, testamentos/codicilos, ações de liberdade e escritos particulares.36 Entre elas, as mais exploradas pelos historiadores foram, certamente, as cartas de alforria. Os testamentos, fontes compulsadas para a nossa pesquisa, consistiam num dispositivo legal em forma de declaração, por meio do qual um indivíduo prescrevia qual seria o destino de bens móveis e de raiz que ficariam com a sua morte.37 As “últimas vontades” eram escritas de próprio punho ou “a rogo” de outrem, que lançava no papel um texto ditado pelo testador na presença de testemunhas. Posteriormente, para que o testamento tivesse validade, um notário deveria comparecer à casa do “enfermo”. Nessa ocasião, as disposições testamentárias eram novamente lidas na presença de cinco testemunhas, que assinavam com o notário e o testador. Uma cópia do documento lavrado era lançada em um livro cartorial de registro. Somente depois o testamento era lacrado e guardado pelo próprio testador ou por uma pessoa de confiança, geralmente um herdeiro ou um testamenteiro eleito. Após a morte do testador, o testamento era aberto pelo tabelião e um dos testamenteiros eleitos cumpria as formalidades de aceitação da administração da testamentaria.38 Finalmente, perante o Juízo dos Defuntos e Ausentes, o testamenteiro iniciava a prestação de contas, demonstrando ter dado cumprimento às disposições do testador por meio de recibos e declarações. 36 37 38 Os papéis particulares são as fontes mais raras para o estudo da alforria, pois não eram registrados em cartório. Sobre as fontes para o estudo da alforria, cf. EISENBERG, op. cit., 1989, p. 245-54; e FARIA, op. cit., 2007, p. 16. Não obstante tivessem a função primordial de dispor quem herdaria os espólios amealhados durante a vida de alguém, os testamentos funcionavam também como canais privilegiados para a expressão de atitudes diante da morte (missas, mortalhas, modos e lugares de sepultamento). Assim, nas páginas desses registros, aflorava a devoção a santos intercessores e a disposição detalhada dos enterros e dos sepultamentos, conjunto de práticas que visavam encaminhar a alma do moribundo no caminho da salvação. Segundo Maria Luiza Marcílio, em fins do século XVIII e inícios do XIX, a regulamentação das questões materiais referentes ao legado dos bens passou a preponderar e, paulatinamente, tornar-se exclusiva. MARCÍLIO, Maria Luiza. A morte de nossos ancestrais. In: MARTINS, José de Souza (org.). A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 68. Sobre o assunto, cf. também MATTOSO, Kátia. Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX; uma fonte para o estudo de mentalidades. Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBa, 1979, p. 23, 24 e 25. Nem sempre os testamenteiros eleitos pelo testador aceitavam administrar a testamentaria. Quando isso ocorria, o Juízo dos Defuntos e Ausentes assumia a função de testamenteiro. 94 Eduardo França Paiva, que analisou cópias de testamentos da Vila de Sabará (MG) realizadas entre 1748 e 1784, apresentou uma divisão tipológica desses registros documentais em quatro partes bem definidas: 1) invocação da Santíssima Trindade e dos santos intercessores, datação do documento, identificação do testador e identificação dos testamenteiros e herdeiro(s) universal(is); 2) disposições e legados espirituais (tais como a forma de sepultamento e número de missas rezadas pela alma do testador ou de outrem); 3) inventário resumido (às vezes completo) dos bens móveis e imóveis; alforrias, coartações, arrestos e venda de escravos, disposições legais e legados materiais, além de dívidas passivas e ativas; 4) Disposições gerais, assinatura ou sinal do testador.39 A fim de dimensionar os questionamentos apresentados na primeira seção do artigo, doravante buscaremos analisar a alforria através da terceira parte dos testamentos identificada acima. Para tanto, examinaremos testamentos, cópias de testamentos e contas testamentárias de 12 homens pardos, abertas nos cartórios do 1° e do 2° ofício de Vila Rica entre os anos de 1755 e 1831. Enfocaremos alforrias e coartações concedidas por homens com ascendência africana que, em sua maioria, possuíam pequenas escravarias. Procuraremos também sistematizar as formas de alforria, condicionais, pagas ou gratuitas, através das motivações que estiveram na origem de tais concessões, concebendo a alforria como fruto de uma relação dual, porém assimétrica, que conectava dois polos, o senhorial e o cativo. A prática da alforria pelos homens pardos de Vila Rica Nos séculos XVIII e XIX, o escravo consistia no principal bem móvel e, ao lado de morada de casas, serviços minerais, casas de vivendas, roças, ranchos etc., frequentemente figurava em testamentos.40 Não surpreende, portanto, a atenção dada pelos testadores à transmissão de uns cativos aos herdeiros e à libertação de outros, onerosa, condicional ou gratuitamente. 39 40 PAIVA, Eduardo França. Discussão sobre fontes de pesquisa histórica: os testamentos coloniais. LPH: Revista de História. Mariana: Dep. História/UFOP, n. 4, 1993/1994, p. 96. Raramente, aparece também uma quinta parte: os codicilos. Trata-se de anexos de disposições não referendadas no testamento ou de anulação parcial de cláusulas nele presentes. Nos testamentos, os escravos apareciam nomeados, tendo, ainda, mencionada a sua procedência/naturalidade e, às vezes, a idade aproximada, a filiação, o estado civil, o nome dos filhos e as especializações/aptidões. 95 A parte que corresponde ao inventário de bens do testamento é, quase sempre, a de maior riqueza informativa. Para a nossa pesquisa, é de grande valor porque permite observar, ainda que de maneira fragmentária, a trajetória de indivíduos no cativeiro e no pós-cativeiro, os últimos como senhores e testadores. Na amostragem em análise,41 as alforrias condicionais e pagas, em conjunto, preponderaram sobre as gratuitas (quadro 1, pág. 122).42 Em meio às nove alforrias condicionais, apenas em três apareceram cláusulas que determinaram a manutenção dos vínculos entre os herdeiros e os escravos.43 Nas demais, os testamenteiros dispuseram o seguinte: o escravo alforriado deverá “me servir só enquanto eu viver” (quadro 3, pág 124). Portanto, com a morte do testador, os libertos poderiam se deslocar geograficamente, vivendo “como se de ventre livre nascesse[m]”. As cláusulas condicionais apareceram, sem exceções, na modalidade de alforria que se denominava coartação. Em Minas Gerais, como observou Eduardo França Paiva (1995) e Laura de Mello e Souza (2000), a coartação era uma prática muito comum na hora de se fazer o testamento.44 Essa modalida- 41 42 43 44 A amostragem de testamenteiros pardos derivou-se do cruzamento onomástico dos oficiais e mesários da Irmandade de São José dos Bem Casados dos Homens Pardos de Vila Rica coletados nos Livros de Eleições da irmandade do Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar/ Casa dos Contos de Ouro Preto com os índices de testamentos e de inventários post-mortem do Arquivo da Casa do Pilar/Anexo III do Museu da Inconfidência de Ouro Preto (AHMI) e do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM). Como resultado, encontramos 36 indivíduos que ocuparam cargos administrativos na Confraria de S. José, muitos deles também providos com patentes militares do terço de homens pardos libertos da mesma localidade. Entre os registros de testamentos, os traslados de cartas testamentárias anexadas em inventários e as contas de testamentos, encontramos referências feitas por 21 testadores à posse de escravos. Desse montante, 15 alforriaram/coartaram escravos em seus testamentos (quadro 1, pág.122). Para uma análise prosopográfica dos homens pardos da Confraria de S. José de Vila Rica que compõem a nossa amostragem, cf. PRECIOSO, Daniel. Legítimos vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803). Dissertação de mestrado, História, FHDSS/Unesp, Franca, SP, 2010. No rol das alforrias pagas, preponderaram quase exclusivamente as coartações, pois apenas dois cativos pagaram pelas suas alforrias, ambos pertencentes a Pedro Martins do Monte. Mesmo nesses casos, a alforria foi paga ainda em vida do testador, ou seja, antes da redação do testamento (quadro 3, pág.124). No momento da morte, portanto, a alforria onerosa deuse – levando em conta a nossa amostragem – exclusivamente através do coartamento. O ferreiro-serralheiro Euzébio da Costa Ataíde determinou que seu escravo Francisco Pardo, “rapaz”, deveria viver em companhia de sua irmã até se tornar capaz de exercer o seu ofício de serralheiro, que estava aprendendo. O pedreiro-mineiro João Gonçalves Dias dispôs que Manoel Crioulo, oficial de ferreiro, servisse quatro anos a seus dois herdeiros, dois anos a cada um deles. Por último, Eugênia Crioula, escrava do minerador Manoel Pereira Campos, ficou obrigada a servir a mulher do testador “enquanto fosse viva” (quadro 3, pág. 124). Apesar da recorrência da coartação nas Minas, esse tipo de alforria não era uma “modalidade específica” da região, como aventou SOUZA, Laura de Mello e. Coartação - Problemática e 96 de de alforria era paga e condicional, mas possuía singularidades.45 Segundo Stuart Schwartz, “o coartado era um escravo que se encontrava em processo de transição para a condição social de livre.”46 Eduardo França Paiva, por sua vez, aproximou a condição de coartado à do negro de ganho, uma vez que lhe era permitida certa liberalidade de movimentos para acumular a quantia necessária ao pagamento de sua própria liberdade.47 Assim, os coartamentos complicavam ainda mais uma estrutura social demasiadamente complexa, pois abriam “[...] vastas áreas de indefinição entre o cativeiro e a liberdade”,48 haja vista que o escravo coartado não era livre, mas, provavelmente, a sua percepção social não era a mesma de um escravo comum. As cláusulas condicionais da coartação eram dispostas em cartas de corte e, mais frequentemente, nas disposições testamentárias. Elas determinavam não apenas quantas parcelas deveriam ser pagas em tantos anos, mas também aspectos da conduta moral e, sobretudo, do deslocamento geográfico no período de coartamento. Se não havia tanto rigor com o tempo de pagamento das parcelas,49 o mesmo não se pode dizer sobre o cumprimento das condições impostas na carta de corte ou nas disposições testamentárias, sendo que os padrões mais recorrentes eram: morar em companhia de herdeiros e trabalhar sob a administração de testamenteiros durante a quitação das parcelas (quadro 4, pág. 125).50 Quem eram os escravos alforriados (gratuita, paga e condicionalmente) e coartados? Entre os alforriados, havia 11 crioulos, sete africanos, dois pardos e um cabra. Entre os coartados, contamos 12 crioulos, sete africanos 45 46 47 48 49 50 episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil. Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 279. Idem, p. 281-2. A coartação era condicional, mas possuía especificidades, não sendo pertinente – como fez Kathleen Higgins – incorporá-las, indissociavelmente, no rol das manumissões condicionais. HIGGINS, Kathleen Joan. The slave society in eighteenth-century Sabara: a community study in colonial Brazil. Tese, Universidade de Yale, 1987, UMI Dissertation Services, 1994, p. 122. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 214. PAIVA, op. cit., 1995, p. 83. SOUZA, op. cit., 2000, p. 290. Essa indefinição de status, não raro, culminava em pleitos judiciais, nos quais se discutia, por exemplo, a condição legal de filhos havidos de uma escrava em processo de coartamento. Em alguns casos, previa-se a prorrogação do tempo no próprio testamento, dando-se um, dois ou mais anos de tolerância para que o escravo coartado pudesse saldar as anuidades previstas no corte. Houve um caso em que a mãe ficou obrigada a “responder pelos filhos menores”, cujas alforrias ficaram atreladas ao seu próprio corte. 97 e um pardo.51 Observa-se a ocorrência de um padrão de qualidade/procedência muito parecido nas alforrias e nas coartações, sendo que os crioulos e os africanos foram os mais contemplados. Só pudemos determinar a especialização/aptidão de escravos crioulos e pardos. Eram dois carpinteiros, um serralheiro e quatro ferreiros (quadros 3 e 4, págs. 124 e 125).52 Para evitar mal entendidos, deixamos claro, desde já, que não é parte integrante de nossos objetivos proceder quantificações, mas, apenas, caracterizar os escravos manumitidos nos testamentos examinados para, em seguida, lançarmos olhar sobre a condição dos seus senhores, formulando hipóteses para a compreensão da prática da alforria. Nossa amostragem de senhores de escravos contempla três brancos, 10 pardos livres e dois pardos forros. Os 15 testadores em foco desempenharam atividades administrativas na Confraria de São José de Vila Rica, irmandade leiga que reunia homens pardos.53 A amostragem foi coletada em meio aos dirigentes da irmandade porque, entre os associados, eram eles que ocupavam as melhores posições sociais e gozavam de reconhecimento, sendo mais provável a posse de escravos entre os pardos que detinham recursos materiais e simbólicos. Eram, em sua maioria, artistas liberais, oficiais mecânicos e integrantes do terço auxiliar dos pardos libertos de Vila Rica.54 A “tábua de habitantes” de Vila Rica (1776) aponta um número de pardos (16,02%) um pouco maior que o de brancos (15,76%) e um grande número de pretos (68,2%).55 Em relação ao peso relativo entre os sexos, as mulheres pardas se apresentavam com ligeira vantagem sobre os homens de mesma qua- 51 52 53 54 55 Em relação à procedência, os africanos alforriados e coartados eram das seguintes “nações”: Congo, Angola, Benguela e Mina. Verificamos a ocorrência de mais quatro ferreiros, mas não pudemos determinar a qualidade/ procedência deles. A explicação para a presença de homens brancos na administração de uma irmandade de pardos reside em quatro fatores principais: concubinato com mulheres “de cor” (possuindo delas descendentes que sociabilizavam em irmandades de pardos), sacerdócio (os padres sociabilizavam em irmandades de diferentes grupos étnicos), pobreza (aproximação com descendentes de escravos) e devoção. PRECIOSO, op. cit., 2010. Idem. A Comarca de Vila Rica, apesar de ser a menos extensa da capitania, apresentava índices elevados de densidade demográfica. Em 1776, contava 78.618 almas, 49.789 (63,33%) homens e 28.829 (36,66%) mulheres. ESCHEWEGE, Wilhelm Ludwig von. Notícias e reflexões estatísticas da Província de Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: volume IV, 1899, p. 294-5. A Comarca de Vila Rica possuía a segunda maior população de pardos dentre as quatro comarcas, sendo somente suplantada pela de Sabará. Idem. 98 lidade.56 Somente com o recenseamento de 1804, porém, são apresentados dados mais concisos sobre a paisagem social de Vila Rica. Os habitantes da vila – que atingiram, aproximadamente, a cifra de 15.000 almas em 1740, ou seja, no auge da mineração – 57 somavam apenas 8.867 almas em 1804. Os distritos de Ouro Preto e de Antônio Dias eram os mais populosos, contando a sua população, aproximadamente, 31,93% e 18,84% do total, respectivamente.58 Nos seis distritos recenseados, os livres e forros predominavam numericamente, representando 68,61% da população total, enquanto os escravos e coartados representavam pouco menos de um terço (31,39%). O Alto da Cruz apresentava a maior parcela de livres (77,85%), em seguida Padre Faria (73,35%), Morro (73,20%), Antônio Dias (68,20%), Cabeças (66,86%) e Ouro Preto (63,81%).59 Entre os 12 pardos de nossa amostragem que alforriaram escravos, seis desempenhavam ofícios mecânicos (três eram pedreiros, dois ferreiros e um carpinteiro), dois ocupavam-se com artes liberais (um músico e um boticário-cirurgião) e os outros quatro não pudemos determinar a ocupação (quadro 2, pág. 123). O capitão Caetano José de Almeida, pardo livre, era pedreiro-mineiro e possuía o segundo maior cabedal e a maior escravaria entre os senhores de nossa amostragem.60 Dos 25 escravos que tinha, alforriou um e coartou sete.61 Com exceção de Caetano, os ferreiros Euzébio da Costa Ataíde e Manoel Rodrigues Rosa, pardos livres, consistiram nos oficiais mecânicos que mais alforriaram escravos nos testamentos analisados: o primeiro alforriou três escravos e deixou outros sete coartados; o segundo alforriou um cativo e coartou outros quatro. Entre os coartados por Euzébio, dois eram oficiais de ferreiro e um serralheiro, e os quatro cativos coartados por 56 57 58 59 60 61 ESCHEWEGE, op. cit., p. 294-5. RAMOS, Donald. Marriage and the family in colonial Vila Rica. The Hispanic American Historical Review, vol. 55, n. 2, May/1975, p. 202. Nos dois distritos concentravam-se 50,77% da população, 48,13% dos livres e 56,56% dos cativos. Segundo Costa & Luna, “[...] neste núcleo principal centralizava-se a vida administrativa, militar e religiosa da urbe. Estas duas unidades distritais assemelhavam-se, ainda, pela estratificação de seus moradores e com respeito ao peso relativo dos sexos”. COSTA, Iraci Del Nero da, LUNA; Francisco Vidal. Minas colonial: economia & sociedade. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas/Pioneira Editora, 1982, p. 64. Idem, p. 64-5. Durante a segunda metade do século XVIII, a posse de escravos entre os libertos de Mariana, cidade vizinha à Vila Rica, variava entre um e 13, embora a predominância fosse de menos de cinco por proprietário. DIÓRIO, op. cit, p. 72. Em seu testamento (1818), o capitão alforriou Antônio Borges Crioulo “pelos bons serviços”, deixando coartados outros sete escravos: cinco crioulas, uma parda e um crioulo. AHMI. Testamento, 1º ofício, códice 317, auto 6765, 1818. 99 Manoel eram oficiais de ferreiro. Parece-nos evidente a ligação – diga-se de passagem, já fartamente observada pela historiografia – entre o desempenho de ofícios mecânicos e a aquisição dessa modalidade de alforria. Provavelmente, escravos adultos, como os artífices e as mulheres que comerciavam em tabuleiros e vendas, estavam mais aptos a receber esse tipo de alforria porque eram capazes de prover a própria subsistência e, por meio de suas atividades, reunirem espólios para o pagamento de suas liberdades.62 Não raro, testadores-artífices disponibilizavam recursos materiais e somas em dinheiro ou em ouro para facilitar o acesso de seus cativos especializados à liberdade.63 Os escravos coartados por Euzébio e Manoel, por exemplo, receberam como legado as tendas de ferreiros e as ferramentas do ofício que os testadores possuíam para que pudessem, trabalhando debaixo da administração dos testamenteiros dos antigos senhores, amealharem recursos para o pagamento das parcelas de suas alforrias.64 Além dos casos examinados, três outros oficiais mecânicos deixaram escravos alforriados em seus testamentos: os carpinteiros Manoel da Conceição, Manoel Rodrigues Graça e Antônio da Silva Maia (quadros 1 e 2, págs. 122 e 123).65 A escravidão urbana parece ter oferecido maiores possibilidades de forros ascenderem à posição de senhores de escravos e maior liberdade de deslocamento espacial e chances de arredar somas em dinheiro aos escravos mecânicos e de ganho.66 Entre os três senhores brancos que libertaram cativos nos testamentos que manuseamos, havia apenas um com cabedal, o alferes João Gonçalves Dias. O monte-mor de seu inventário importou a quantia de seis contos de réis. Na 62 63 64 65 66 SOUZA, op. cit., 2000, p. 290. Houve casos em que os testadores também legaram pedaços de terra, animais e instrumentos de trabalho a ex-escravos, sobretudo mulheres e crianças, dotando-os ou os elegendo como herdeiros. Como observou Eduardo França Paiva, “nesta perspectiva, vislumbra-se um código de comportamento que credenciava escravos à libertação e forros ao status de proprietário, tanto de imóveis quanto de escravos”. PAIVA, op. cit., 1993/4, p. 103. Sobre os escravos ferreiros que coartou em seu testamento (1809), Manoel Rodrigues Rosa dispôs o seguinte: “[...] serão obrigados a estarem todos juntos a trabalhar debaixo da administração de meu testamenteiro, como lhes deixo para usarem da dita ferramenta do ofício de ferreiro para o mesmo ofício, para melhor eles satisfazerem os seus quartamentos”. AHMI. Testamento, 1º ofício, códice 347, auto 7229, 1809. Entre os artistas liberais, a prática da alforria foi mais modesta. O músico Francisco Gomes da Rocha alforriou gratuitamente dois cativos e o boticário-cirurgião Gonçalo da Silva Minas alforriou gratuitamente apenas um escravo (quadros 1 e 3, págs. 122 e 124). COSTA & LUNA, op. cit. Não à toa, Eduardo França Paiva comparou o escravo de ganho com o coartado, que geralmente possuía especialização ou desempenhava alguma atividade comercial em áreas urbanas. PAIVA, op. cit., p. 83. 100 descrição de seus bens, aparecem avaliados sete escravos, 67 dos quais alforriou cinco gratuitamente e um condicionalmente. O último era Manoel Crioulo, oficial de ferreiro, que ficou obrigado a servir, após a morte do testador, quatro anos aos dois primeiros herdeiros, “vindo a servir a cada um dois anos”.68 Nos testamentos analisados, os motivos alegados pelos senhores para libertar seus escravos eram, geralmente, “pelo ter criado”, “pelo amor que lhe tenho”, “pelo amor de Deus” e “pelos bons serviços”. Não obstante essas expressões se enquadrarem num “discurso-modelo” ou remeterem a um “padrão discursivo” recorrente em testamentos, em alguns casos, aludem às relações pessoais entre senhores e escravos.69 É importante destacar que o “cálculo” do senhor para a alforria testamentária não visava o lucro, segundo uma lógica de mercado. Desse modo, os estudos da transmissão de bens (dentre eles, os escravos) no Brasil dos séculos XVIII e XIX devem reconstituir amizades e alianças, fatores essenciais para compreender o destino dos bens legados. Nesse ínterim, o dote e a herança aparecem em primeiro plano.70 Entre os senhores de poucas posses, que não tinham herdeiros forçados e que conviviam em ambiente doméstico ou profissional com seu(s) escravo(s), é provável que a prática de alforriar em testamentos não configurasse sempre um meio de ressarcimento do valor do cativo (em alforrias pagas) ou uma desoneração de gastos com o sustento de um escravo idoso ou improdutivo (em alforrias gratuitas). Antônio Marques e o padre Manoel de Abreu Lobato, homens brancos de pequenas posses, por exemplo, possuíam, cada um, apenas um escravo, os quais libertaram gratuitamente “pelo ter criado” e “pelo amor de Deus”, respectivamente (quadro 3, pág. 124). Ambos não tinham herdeiros forçados e, vendo a morte se aproximar, decidiram libertar gratuitamente 67 68 69 70 AHMI. Inventário, 1º ofício, códice 143, auto 1806, 1821; AHMI. Inventário, 2º ofício, códice 29, auto 327, 1818. AHMI. Testamento, 2º ofício, códice 344, auto 7171, 1808. Segundo João Reis, as expressões das cartas de alforrias que “[...] invocam a imagem do pai, ou da mãe, para se referirem a suas relações com os escravos alforriados”, são indícios do pacto paternalista entre os crioulos e os senhores brasileiros. REIS & SILVA, op. cit., p. 102. Procuraremos demonstrar que a alforria não era sempre um reforço do domínio senhorial e que, às vezes, formava uma massa autônoma, sem laços de dependência. Em estudo da transmissão de terras no Piemonte do século XVII, Giovanni Levi chamou a atenção para o fato de que, em sociedades de Antigo Regime, a escolha dos indivíduos obedecia às alianças, ocupando a família o centro das preocupações. Para explicar como a distribuição de terra se reiterava no tempo, na passagem de uma geração familiar para outra, Levi considerou não apenas o aspecto econômico da transação, mas uma série de elementos, como os dotes e a herança. Cf. LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII (trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 101 seus cativos. Nas decisões de Antônio e Manoel, certamente pesaram os laços pessoais com seus escravos, assim como a ausência de herdeiros diretos que houvessem de legar casas e escravos.71 Nesses casos, a alforria gratuita parece indicar a existência de laços de solidariedade verticais entre senhores e escravos. Essas conjecturas, obviamente, não pressupõem a ausência de contrapartida do escravo no processo de sua libertação. Ao contrário, este funda-se no bom comportamento e nos bons serviços prestados ao senhor. Nossa hipótese é a de que a chave para o entendimento da prática da alforria, nos casos em análise, reside nas relações tecidas entre senhores e escravos – e não em flutuações de mercado, na condição econômica de quem alforriava ou em uma forma de governar ex-escravos. Supomos que quanto maior a distância social existente entre o senhor e os seus cativos, maior era o cálculo das disposições para a transmissão de escravos a herdeiros e para a alforria. Em grandes escravarias, a relação senhor-escravo devia ser mais diluída e pulverizada que nas pequenas. A maior diferença de condição social entre senhores e escravos pode estar associada a alforrias mais calculistas. A escolha de uma amostragem composta por pequenos proprietários de escravos, mecânicos e indivíduos com ascendência africana é justificada, portanto, por um menor “abismo” entre a condição senhorial e a escrava. Certamente, os forros não foram mais “benévolos” com os seus escravos, mas, em virtude de não se encontrarem demasiadamente distanciados deles na escala social, poderiam desenvolver laços de solidariedade que, no momento da morte, revertiam-se em coartações e, até mesmo, em alforrias gratuitas.72 Entre os pardos de nossa amostragem que desempenhavam ofícios mecânicos, muitos trabalhavam lado a lado com seus escravos em canteiros de obras, logeas, tendas ou boticas. Os casos dos ferreiros Euzébio da Costa Ataíde e Manuel Rodrigues Rosa, citados anteriormente, sugerem que a coartação em testamentos de escravos especializados em ofícios mecânicos poderia decorrer dos “bons serviços” prestados em vida do testador. É preciso lembrar que a maior parte das alforrias doadas pelos homens pardos de nossa amostragem ocorreu mediante coartação. Poder-se-ia argumentar que a alforria gratuita era a forma privilegiada para expressar gratidão e 71 72 Do mesmo modo que o reconhecimento de filhos ilegítimos na hora da morte sinalizava uma tentativa de remissão de um pecado, a dádiva da alforria em testamento poderia significar um ato de piedade cristã. Distanciamo-nos, assim, das hipóteses de Renata Diório e Ida Lewkowicz que afirmaram que a “contrapartida pecuniária” da coartação era um indício de que “os forros reproduziam os padrões de escravização dos brancos”. DIÓRIO, op. cit., p. 71; LEWKOWICZ, op. cit., p. 110. 102 solidariedade, mas, no caso dos testamentos, o proprietário do escravo tinha de dispor sobre o legado de seus bens e, nesse contexto, o escravo, propriedade móvel, teria o seu destino traçado e a sua sorte dependia não apenas das suas relações e alianças, mas das condições de transmissão dos bens. Na existência de herdeiros (forçados ou não) ou dívidas, a coartação parece ter sido a modalidade de alforria mais adequada para testadores. Desse modo, atendia-se aos interesses de todas as partes envolvidas: os cativos, os herdeiros e os credores. Por um lado, o pagamento das parcelas do corte era uma forma de acréscimo no monte-mor a ser empregado no pagamento das dívidas ativas e na partilha realizada com a abertura do inventário e, por outro, atendia aos anseios de liberdade dos escravos. A condição de “trabalhar debaixo da administração do testamenteiro”, imposta nas coartações concedidas pelos ferreiros Euzébio e Manuel, não configurava propriamente uma forma de manter laços de dependência, mas de assegurar que os escravos ferreiros coartados não incorressem em malversação dos bens legados (tendas e ferramentas de ofício), que serviriam aos cativos para o trabalho e o acúmulo da quantia para o pagamento das parcelas do corte. Os senhores poderiam alforriar por motivos que não fossem econômicos, mas tratavam de impor condições para que o escravo, uma vez liberto, não se entregasse a maus costumes ou viesse a desmerecer a sua mercê, precaução que nem sempre surtia efeito. As alforrias condicionais, as pagas e as coartações poderiam ser anuladas pelo descumprimento das suas cláusulas. No entanto, mesmo após o cumprimento das condições e o pagamento pela própria liberdade, o ex-escravo – inclusive o manumitido gratuitamente – poderia ter sua alforria revogada por ingratidão. Segundo o título LXIII do livro IV das Ordenações Filipinas, as “doações puras e simples”, como as alforrias, “sem condição ou causa passada, presente ou futura”, são “firmes e perfeitas, de maneira que em tempo algum não podem ser revogadas.”73 Porém, elas poderiam ser anuladas em virtude de injúrias feitas pelo liberto ao ex-senhor (compreendendo-se aí agressões verbais ou físicas) ou pelo não cumprimento de algum juramento ou acordo com o ex-senhor. Estava previsto em lei, portanto, que 73 Ordenações, op. cit., 1870, p. 865-6. 103 Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, cometer contra quem o forrou, alguma ingratidão pessoal em sua presença, ou em absência, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá esse patrono revogar a liberdade, que deu a esse liberto, e reduzi-lo à servidão, em que antes estava.74 A revogação só poderia ser feita em vida do “patrono” e, depois de sua morte, seus herdeiros não poderiam fazê-lo.75 A esse propósito, é ilustrativo o caso de Gonçalo da Silva Minas, um dos dois pardos forros que compõem nossa amostragem de senhores que alforriaram ou coartaram escravos. Gonçalo não relatou a sua condição legal no testamento, mas sabemos que era liberto, tendo sido alforriado por seu antigo senhor, o boticário José Carneiro de Miranda, em uma “forma híbrida de coartamento e alforria.”76 Em seu testamento, José Carneiro legou ao seu escravo “pardo”, “[...] uma botica aparelhada, e uma morada de casas com seus trastes”, bens vendidos “[...] pelo preço de sete mil cruzados com obrigação de os satisfazer dentro de sete anos em pagamentos iguais, e que findo o dito tempo, e satisfeito o preço, ficaria liberto”.77 Para além das parcelas a serem quitadas, os bens legados e a própria alforria de Gonçalo estavam condicionados também ao bom costume deste e a não mudança de mãos dos bens que legou.78 Em 1769, o testamenteiro de seu antigo senhor, Manuel Francisco Moreira, escreveu uma carta ao conde de Valadares, governador das Minas, expondo que Gonçalo se achava “privado” do “favor de liberdade”, [...] não só por não ter dado coisa alguma á conta do preço achando-se já vencidos seis pagamentos, como por se ter dado a maus costumes gastando superfluamente os bens do testador seu senhor e ter-se portado com escandalosa ingratidão que esta chegou à denúncia injustamente do suplicante e bens de herança.79 74 75 76 77 78 79 Idem. Ordenações, op. cit., 1870, p. 867. O testamenteiro ou o herdeiro poderia pleitear a reescravização perante a justiça em casos de descumprimentos de condições e não pagamento de coartações. No entanto, só era facultado ao doador da alforria – o senhor – revogá-la alegando, para tanto, ingratidão. SOUZA, op. cit., 2000, p. 286. BN, SMs, códice 18, 03, 002, documento n. 62, fls. 144. Caso não fossem cumpridas as cláusulas do acordo, Manuel Francisco Moreira, testamenteiro do antigo senhor de Gonçalo, deveria tomar conta de todos os bens, vendendo-os como bem lhe parecesse. Idem. Idem. 104 Manuel Francisco, que já alimentava desavenças com Gonçalo, 80 tendo “notícia” de que este seria provido no posto de sargento-mor do terço dos pardos libertos de Vila Rica – “talvez com falsa narrativa, e ocultação da verdade de se não achar inda liberto, mas sim sujeito à escravidão” – pediu ao conde de Valadares que lhe fizesse a mercê de desapropriar de Gonçalo os bens legados, de revogar sua alforria e de não provê-lo no posto, em virtude de “não poderem os escravos empregarem-se, nem exercerem cargo, ou posto algum da República, mas só sim os libertos”. 81 Supostamente em nome do antigo senhor de Gonçalo, Manuel cobrava ações do governador geral da Capitania, rogando que intercedesse no caso a fim de “se evitarem prejuízos á testamentaria”. Ao cabo, o suplicante ironizou: se Gonçalo fosse provido, as autoridades exporiam “[...] ao perigo de se ver reduzido o suplicado a cativeiro, e talvez posto em praça um sargento-mor, que além de outros requisitos deve ser forro por nascimento ou carta”.82 É certo que nenhum dos pedidos do testamenteiro do antigo senhor de Gonçalo foi atendido, pois a conta de testamento do último não deixa dúvidas quanto ao fato de que ele manteve-se na condição de liberto e com a posse da botica que lhe fora legada. Parece claro que Manuel Francisco, na qualidade de testamenteiro de José Carneiro de Miranda, desejava “puxar ao cativeiro” Gonçalo porque, uma vez revogada a liberdade do boticário, seria ele quem passaria a versar os bens que foram deixados pelo seu testador, assim como ao próprio Gonçalo, caso viesse a ser reescravizado. Além desses benefícios, se os seus pedidos fossem atendidos, satisfaria ao seu próprio ego, ferido por Gonçalo que, acusando-o, havia lhe implicado com uma denúncia perante a justiça mineira. Como demonstra o testamento de Gonçalo, o tiro saiu pela culatra. Esse caso é interessante não apenas por demonstrar as dificuldades de testamenteiros e herdeiros reescravizarem escravos por ingratidão após a morte do ex-senhor, mas, sobretudo, por ilustrar a mudança de status social e jurídico inerente ao funcionamento da sociedade colonial. Nascido cativo, 80 81 82 Gonçalo havia implicado Manuel em uma ação judicial. Cf. Embargo de sequestro de moeda entre Gonçalo da Silva Minas e Manuel Francisco Moreira. Índice analítico dos códices da Coleção Casa dos Contos. Acervo Arquivo Nacional. BN, SMs, códice 18, 03, 002, documento n. 62, fls. 144. BN, SMs, códice 18, 03, 002, documento n. 62, fls. 143. Como destacou Laura de Mello e Souza, “instalara-se, pois, a confusão: como oficial de ordenanças, era obrigatoriamente liberto, e gozava das prerrogativas que tal status lhe conferia; como alforriado condicionalmente, ou coartado que não cumprira com o combinado, era cativo. Como liberto, não mais pagaria as parcelas, deixando o testamenteiro de mãos atadas; como escravo, deveria ser destituído da distinção recebida”. SOUZA, op. cit., 2000, p. 286. 105 Gonçalo experimentou, como tantos outros escravos, a condição de forro após a morte de seu antigo senhor. Uma vez liberto, o pardo forro alçou à condição de senhor de escravos, quartel-mestre do terço de homens pardos de Vila Rica, proprietários de moradas de casas, engenhos e lavras, e boticário bem-sucedido.83 Ainda em vida, Gonçalo repetiu a atitude de seu exsenhor, alforriando um cativo pardo por nome Narcizo, que arrematou em hasta pública em virtude do dito afirmar ser seu irmão (quadro 3, pág. 124). Considerações finais Em Minas Gerais, a posse generalizada de pequenas escravarias (entre um e cinco cativos), inclusive entre forros e livres com ascendência africana, sinaliza o peso de pequenos proprietários de escravos na prática da alforria. Partindo dessa premissa, procuramos argumentar que, do mesmo modo que não se pode falar num “alforriado-padrão”, é incorreto pensar num “senhor-padrão”. Diferentes senhores alforriavam de variadas maneiras, movidos por diversas intenções. Neste sentido, procuramos examinar a concessão de alforrias por um grupo de homens pardos de Vila Rica que possuíam poucos escravos. Visando estabelecer padrões de alforria, procuramos generalizar certos tipos de relações entre senhores e escravos que desembocaram na manumissão, levando em consideração, sobretudo, a relação próxima ou distante entre uns e outros. Priorizamos uma explicação para a prática da alforria calcada no exame das alianças de senhores e escravos, bem como do peso do cativo no sustento da família do senhor. O dote, a herança e o pagamento das dívidas foram alçados ao primeiro plano de análise das alforrias em testamentos. Argumentamos que, ao contrário das outras modalidades de libertação de escravos, a alforria testamentária aflorava em meio à transmissão de bens e à intenção do testador de demonstrar atos de piedade cristã. Um grande número de escravos foi alforriado gratuitamente nos testamentos analisados, sobretudo quando o senhor-testador possuía apenas um ou dois escravos e não tinha herdeiros forçados. Porém, constatou-se que a modalidade de alforria paga denominada coartação preponderou sobre a alforria gratuita, principalmente na libertação de escravos especializados em ofícios mecânicos, muito presentes em áreas urbanas como Vila Rica. Senho- 83 Em seu testamento, Gonçalo pediu ao administrador de sua testamentaria que efetivasse a cobrança de diversas dívidas constantes de suas receitas, “cozimentos” de remédios e da sua “arte de cirurgia”. 106 res-testadores que também se ocupavam com serviços manuais tenderam a coartar escravos que integravam suas oficinas, tendas, boticas ou logeas. Não raro, esses cativos receberam como legado instrumentos de trabalho e puderam usar das “fábricas” de seus ex-senhores para poderem pagar pela própria liberdade. A maioria dos escravos coartados eram crioulos, mas os africanos também apareceram em peso numérico expressivo. Sugerimos que a coartação era uma modalidade de alforria que permitia ao senhor conciliar os interesses de herdeiros e escravos, pois, ao mesmo tempo em que libertava o cativo, revertia à herança a contrapartida pecuniária da alforria. Os proprietários de escravos, cujas trajetórias escrutinamos, não eram portugueses ou homens brancos nascidos na colônia, mas indivíduos com ascendência africana. Visamos, assim, contribuir para o entendimento da prática da alforria em um grupo específico, qual seja o dos homens pardos, cujos indivíduos experimentaram a escravidão ainda em vida – encontrando-se forros no momento da redação do testamento – ou se encontravam distanciados em apenas uma geração do cativeiro. Aventamos que a alforria era tanto menos calculista quanto menor fosse o abismo entre senhor e escravo, o que foi constatado por meio de uma análise das relações tecidas pelos dois lados da moeda. Coadunamo-nos aos estudos que ressaltam as maiores possibilidades de manumissão em áreas urbanas – como era Vila Rica –, que implicavam também em maior mobilidade social e possibilidades efetivas de viver de modo autônomo e, com frequência, de alçar à condição senhorial. Assim, acreditamos que a alforria nem sempre impunha a continuidade de laços entre herdeiros-testamenteiros e libertos. Nesse ponto, o caso de Gonçalo da Silva Minas é exemplar. Acreditamos que, nos centros urbanos, a mobilidade social de egressos do cativeiro poderia ser abrupta (e não gradual), tornando fluida a diferença entre forros e livres com ascendência africana. Entre os libertos com especialização, aptidões ou prerrogativas – geralmente mecânicos, artistas, oficiais/mesários de irmandades e milicianos – a possibilidade de alçar à condição de senhor de escravos e proprietário de bens imóveis não era, de forma alguma, uma realidade intangível. Aliás, como demonstrou a trajetória do pardo forro Gonçalo, ser provido com patente militar tornava inexequível a reescravização, pois escravos não poderiam compor tropas. Os casos examinados revelam, ainda, que a doação da alforria não pode ser entendida apenas do ponto de vista do lucro senhorial. Por trás da “dádiva”, encontramos a consanguinidade, o bom comportamento, o desempenho de bons serviços em vida do senhor-testador etc. Julgamos, enfim, que a alforria nem sempre formava laços de dependência entre forros e ex-senhores 107 em ambientes urbanos, podendo gerar uma camada autônoma de forros e descendentes, proprietários de escravos. QUADROS Quadro 1 Número de escravos alforriados e coartados por testador (1755-1831) Testador N. de escravos alforriados gratuitamente N. de escravos alforriados onerosa ou condicionalmente N. de escravos coartados Ano 1 Antônio da Silva Maia 1 - - 1781 2 Antônio Marques 1 - - 1808 3 Caetano José de Almeida 1 - 7 1818 4 Eusébio da Costa Ataíde 1 2 7 1823 5 Francisco Gomes da Rocha 2 - - 1807 6 Francisco Pereira Casado - 3 1 1755 7 Gonçalo da Silva Minas 1 - - 1803 8 João Gonçalves Dias 5 1 - 1808 9 Manoel da Conceição 1 - 1 1808 10 Manoel de Abreu Lobato 1 - - 1831 11 Manoel Pereira Campos - 1 - 1798 12 Manoel Rodrigues Graça - 1 2 1791 13 Manoel Rodrigues Rosa - 1 4 1809 14 Pedro Martins do Monte 2 - 1 1779 15 Pedro Rodrigues de Araújo - - 1 1807 / Total 16 9 24 Fonte: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI). Testamentos (ofício, códice, auto, ano): 1º, 304, 6552, 1781; 1º, 317, 6765, 1818; 1º, 340, 7101, 1823; 1º, 329, 6931, 1755; 1º, 434, 8957, 1803; 2º, 344, 7171, 1808; 1º, 343, 7159, 1831; 1º, 346, 7196, 1798; 1º, 347, 7230, 1791; 1º, 347, 7229, 1809. Registros de testamentos (número do livro, folha, ano): 17, 115 v, 1808; 17, 71 v, 1808. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Testamento (ofício, códice, folha, ano): 1º, 39, 186 v, 1807. 108 Quadro 2 - Perfil social de inventariados e testadores que alforriaram ou coartaram escravos (1755-1831) Inventariado Qualidade Ocupação Monte mor (em réis) N. de escravos Ano 1 Antônio da Silva Maia Pardo livre Carpinteiro / Mineiro 269$638 1 1791 2 Caetano José de Almeida (capitão) Pardo livre Pedreiro / Mineiro 5:882$064 25 1815 3 Euzébio da Costa Ataíde (quartel-mestre) Pardo livre Ferreiro / Serralheiro 2:504$331 11 1823 4 Francisco Gomes da Rocha Pardo livre Músico 171$432 2 1809 5 João Gonçalves Dias (alferes) Branco Vendeiro / Negociante 6:185$013 7 1806 6 Manoel Pereira Campos Pardo livre Mineiro 193$275 2 1804 7 Manoel Rodrigues Graça Pardo livre Carpinteiro 647$700 3 1815 8 Pedro Martins do Monte (capitão) Pardo forro - 1:205$000 4 1780 Qualidade Ocupação Benz de raiz, móveis e semoventes N. de escravos Ano Testador 9 Antônio Marques Branco - Uma morada de casas com seus trastes 1 1808 10 Francisco Pereira Casado (capitão) Pardo livre - Uma morada de casas térreas c/ seus móveis e roupas do uso 6 1755 11 Gonçalo da Silva Minas (quartel-mestre) Pardo forro Boticário Uma morada de casas térreas assobradadas, uma botica, terras com engenhos e lavras 9 1803 12 Manoel da (capitão) Conceição Pardo livre Carpinteiro Uma morada de casas com suas terras. 3 1808 13 Manoel de Abreu Lobato Branco Padre Duas moradas de casa, “bens móveis de prata, ouro e outras coisas estimáveis” 1 1831 14 Manoel Rodrigues Rosa Pardo livre Ferreiro Duas moradas de casas, uma tenda de ferreiro com suas ferramentas e 10 cabeças de gado vacum 5 1809 15 Pedro Rodrigues Araújo (alferes) Pardo livre - Uma morada de casas e roupas do uso 5 1807 de Fontes: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI). Inventários (ofício, códice, auto, ano): 2º, 68, 763, 1791; 2º, 58, 655, 1791; 1º, 144, 1850, 1815; 1º, 32, 363, 1815; 1º, 340, 7101, 1823; 2º, 14, 142, 1809; 1º, 143, 1806, 1821; 2º, 29, 327, 1818; 2º, 47, 527, 1804; 1º, 106, 1328, 1815; 1º, 126, 1577, 1780. Testamentos (ofício, códice, auto, ano): 1º, 304, 6552, 1781; 1º, 317, 6765, 1818; 1º, 340, 7101, 1823; 1º, 329, 6931, 1755; 1º, 434, 8957, 1803; 2º, 344, 7171, 1808; 1º, 343, 7159, 1831; 1º, 346, 7196, 1798; 1º, 347, 7230, 1791; 1º, 347, 7229, 1809. Registros de testamentos (número do livro, folha, ano): 17, 115 v, 1808; 17, 71 v, 1808. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Testamento (ofício, códice, folha, ano): 1º, 39, 186 v, 1807. 109 110 Antônia Crioula Domingos Crioulo 24 25 - Aprendiz de serralheiro “me servir só enquanto eu viver” - - Vide acima Por haver recebido o seu valor - - “servir-me enquanto eu for vivo” e até “acabar a obra” de uma casa da rua Direita de Vila Rica Carpinteiro - - - “pelo amor de Deus” “servirá a minha mulher enquanto ela for viva” “pelos bons serviços” - “pelo ter criado” “por dizer ser meu irmão” “pelo ter criado” “pelos bons serviços” - - - - “pelo ter criado” - - - - “que sirva quatro anos aos meus primeiros dois herdeiros [...] vindo a servir a cada um dois anos” - Vide acima “com a obrigação de me servirem só enquanto eu viver” Vide acima. - - - Motivo da alforria “por ser minha filha” “pelo ter criado e pelo amor que lhe tenho” “pelos bons serviços” - - Oficial de ferreiro - - - - - - - - Oficial de carapina Viver em companhia da irmã do testador até aprender seu ofício Depois da morte do testador, caso retornasse (pois estava fugido) - Condições para a alforria Senhor (testador) Pedro Martins do Monte Pedro Martins do Monte Manoel Rodrigues Rosa Manoel Rodrigues Graça Manoel Pereira Campos Manoel de Abreu Lobato João Gonçalves Dias João Gonçalves Dias João Gonçalves Dias João Gonçalves Dias João Gonçalves Dias Manoel da Conceição João Gonçalves Dias Francisco Pereira Casado Gonçalo da Silva Minas Francisco Pereira Casado Francisco Pereira Casado Francisco Gomes da Rocha Francisco Gomes da Rocha Eusébio da Costa Ataíde Eusébio da Costa Ataíde Eusébio da Costa Ataíde Caetano José de Almeida Antônio Marques Antônio da Silva Maia Ano 1779 1779 1809 1791 1798 1831 1808 1808 1808 1808 1808 1808 1808 1755 1803 1755 1755 1807 1807 1806 1806 1806 1818 1808 1781 Fonte: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI). Testamentos (ofício, códice, auto, ano): 1º, 304, 6552, 1781; 1º, 317, 6765, 1818; 1º, 340, 7101, 1823; 1º, 329, 6931, 1755; 1º, 434, 8957, 1803; 2º, 344, 7171, 1808; 1º, 343, 7159, 1831; 1º, 346, 7196, 1798; 1º, 347, 7230, 1791; 1º, 347, 7229, 1809. Registros de testamentos (número do livro, folha, ano): 17, 115 v, 1808; 17, 71 v, 1808. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Testamento (ofício, códice, folha, ano): 1º, 39, 186 v, 1807. Teresa Benguela 23 11 12 João Crioulo Valentim Vitorino Narcizo Pardo 10 22 Josefa 9 Eugênia Crioula Manoel Mina 8 21 José Benguela 7 Inácio Angola Madalena Congo 6 20 Eugênio de tal 5 João Angola Mariana Angola Josefa Crioula Felícia Crioula Francisca Cabra Joana Francisco Pardo (rapaz) 4 14 15 16 17 18 19 Antônio Borges Crioulo 3 Manoel Crioulo Manoel Pinto Crioulo 2 13 Mariana Escravo alforriado 1 Quadro 3 - Escravos alforriados em testamentos (1755-1831) Especialização/ aptidão - 111 Manoel Francisco (“mais moço”) Rosa Mina Antônio Benguela 21 22 23 24 - - 50/8ª de ouro 80/8ª de ouro Oficial de ferreiro Oficial de ferreiro - 80/8ª de ouro 80/8ª de ouro 100/8ª de ouro 50/8ª de ouro Oficial de ferreiro Oficial de ferreiro - - - 64/8ª de ouro - 150$000 réis 80$000 réis Oficial de ferreiro - 130$000 réis 40$000 réis 1 libra de ouro 150$000 réis - - Oficial de ferreiro Oficial de ferreiro - - - - 100$000 réis 36$000 réis - 36$000 réis 30$000 réis Valor - - / -/6 3/3 -/6 -/6 -/4 4/4 - - -/4 -/2 e ½ - - - - -/3 4/4 - - -/6 4/4 -/4 3/3 Parcelas / ano - Pedro Martins do Monte Pedro Rodrigues de Araújo “será obrigado a não sair desta freguesia, e viver sempre em companhia de minha mulher ou do meu testamenteiro enquanto dever seu quartamento” Manoel Rodrigues Rosa Manoel Rodrigues Rosa Manoel Rodrigues Rosa Manoel Rodrigues Rosa Manoel Rodrigues Graça Manoel Rodrigues Graça Manoel da Conceição Eusébio da Costa Ataíde Eusébio da Costa Ataíde Francisco Pereira Casado Eusébio da Costa Ataíde Eusébio da Costa Ataíde Eusébio da Costa Ataíde 1807 1779 1809 1809 1809 1809 1791 1791 1808 1806 1806 1755 1806 1806 1806 1806 1806 Eusébio da Costa Ataíde Eusébio da Costa Ataíde 1818 1818 1818 1818 1818 1818 1818 Ano Caetano José de Almeida Caetano José de Almeida Caetano José de Almeida Caetano José de Almeida Caetano José de Almeida Caetano José de Almeida Caetano José de Almeida Senhor (testador) - Vide acima Vide acima Vide acima “serão obrigados a estarem todos juntos a trabalhar debaixo da administração de meu testamenteiro” “suceda dentro nos ditos quatro anos” “daqui a vinte anos os quartem pelo preço que juntamente merecerem” Vide acima - - - - - - - “morar em companhia de minha irmã” Vide acima “na mesma quantia, Manoel e Joanna, filhos da mesma [...], ficando obrigada a responder pelos menores” Vide acima - - - Condições de alforria Quadro 4 - Escravos coartados em testamentos (1755-1818) Fonte: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI). Testamentos (ofício, códice, auto, ano): 1º, 304, 6552, 1781; 1º, 317, 6765, 1818; 1º, 340, 7101, 1823; 1º, 329, 6931, 1755; 1º, 434, 8957, 1803; 2º, 344, 7171, 1808; 1º, 343, 7159, 1831; 1º, 346, 7196, 1798; 1º, 347, 7230, 1791; 1º, 347, 7229, 1809. Registros de testamentos (número do livro, folha, ano): 17, 115 v, 1808; 17, 71 v, 1808. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Testamento (ofício, códice, folha, ano): 1º, 39, 186 v, 1807. Mateus 20 Pedro Congo 12 Francisco Francisco Benguela 11 19 Manoel Crioulo 10 Lourenço Crioulo Francisco Crioulo 9 18 Francisca Crioula 8 Antônia Crioula Teresa Parda 7 17 Joana Crioula 6 José Angola Manoel Crioulo 5 16 Jerônima Crioula 4 José Benguela Adão Crioulo Manoel Angola Teodora Crioula 3 13 14 15 Leonor Crioula Severina Crioula 1 2 Escravo coartado Especialização aptidão Referências bibliográficas ALMEIDA, Kátia Lorena de. Alforria em Rio das Contas - Bahia, século XIX. Dissertação de mestrado, História, UFBA, Salvador, 2006. 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Residencial Oliveira 37130-000 – Alfenas – Minas Gerais E-mail: [email protected] Universidade Federal de Alfenas Resumo O artigo examina a atuação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, órgão encarregado de regular e fiscalizar as lavras, registrar os terrenos diamantinos e administrar os direitos de lavra, no período compreendido entre os anos 1830 e 1870. Enfatizam-se as estratégias da repartição, bem como os conflitos e as negociações que envolveram os agentes que extraíam e comercializavam diamantes, especialmente nos municípios de Diamantina e Serro. Palavras-chave Mineração – Administração Geral dos Terrenos Diamantinos – regulação e fiscalização de lavras. 1 Agradeço à Fapemig pelo financiamento do projeto “O afã de diamantes e a letra da lei: negócios minerários, regulação, fiscalização e conflitos de interesses em Diamantina, 1832-1889”. 115 THE DIAMOND’S MINING AND THE GENERAL ADMINISTRATION OF DIAMOND LANDS: MINAS GERAIS, DECADES OF 1830-1870 Contact Marcos Lobato Martins Rua Belo Horizonte, 71. Residencial Oliveira 37130-000 – Alfenas – Minas Gerais E-mail: [email protected] Universidade Federal de Alfenas Abstract The article examines the action of the General Administration of Diamond Lands, governmental department responsible to regulate and inspect the mines, register the diamond lands and administer the rights of mining, in the years 1830-1870. It emphasizes the strategies of the department, as well as the conflicts and negotiations with the diamond’s miners and dealers, especially in Diamantina and Serro counties. Keywords Mining – General Administration of Diamond Lands – regulating and inspection of the mines. 116 Desde o século XVIII, a mineração na região de Diamantina foi objeto de enorme atenção das autoridades. O contrabando, a evasão fiscal, a clandestinidade dos serviços de lavra, a corrupção das autoridades constituíram elementos importantes do cenário regional.2 Em muitas ocasiões, estiveram contrapostos os interesses do Estado e dos proprietários locais. Por outro lado, a assimetria de forças dos atores envolvidos na mineração também gerou conflitos pela posse dos terrenos diamantinos e a repartição do produto das lavras. Entre os estudiosos da mineração diamantífera, predomina a visão de que esses conflitos foram resolvidos mais pela violência do que pelo recurso a instituições (como os tribunais), fato que demonstraria as dificuldades que o Estado encontrou para impor-se na região. É o que afirma, enfaticamente, José Martins Catharino, referindo-se à legislação minerária: Toda esta parafernália legislativa, que vem desde as Ordenações, para disciplinar querimas e querimônias, proprietarista exclusivamente, na Bahia, como em Minas – mais no passado que no presente, sempre esteve ao sabor dos mais poderosos – ter é poder. Na Bahia, p. ex., na época dos coronéis, dos quais Horácio Mattos foi pontífice, com corte na cidade de Lençóis (...), a lei efetiva era a que impunham, com força militar própria, constituída de jagunços. (...) No que tange à garimpagem, ao trabalho em garimpo, o direito consuetudinário, até hoje, embora menos, é dominante, manifestado e mantido à parte do “cascalho normativo formal”.3 O objetivo deste artigo é compreender a complexa gama de conflitos e negociações que enredou os agentes envolvidos com a extração diamantífera, na região de Diamantina. Mais especificamente, investigar a atuação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, órgão governamental encarregado de regular e fiscalizar os serviços de mineração, registrar os terrenos diamantinos e administrar os direitos de lavra. O recorte cronológico abrange o período compreendido entre os anos 1830 e 1870, período para a qual são escassos os estudos sobre a “economia do diamante”. Trata-se de época de afirmação dos pilares do Estado monárquico e, no plano da legislação minerária, da vigência do regime dominial.4 O ano de 1832 assinalou o declínio definitivo da Real Extração, reduzida a 2 3 4 FURTADO, Júnia Ferreira. O Livro da Capa Verde: o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Annablume, 1996. CATHARINO, José Martins. Garimpo, garimpeiro, garimpagem. Rio de Janeiro: Philobiblion; Salvador: Fundação Econômica Miguel Calmon, 1986, p. 217-218. Ver MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo de Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987. 117 um único feitor e pequena tropa de cativos.5 Já os anos 1870, marco final do recorte, assinalam o início de forte e longa crise regional da mineração, decorrente da queda internacional dos preços do diamante por causa da produção sul-africana. Crise que acelerou a concentração das terras minerais, estimulou investimentos industriais e comerciais das elites diamantinenses e acendeu debates na imprensa local sobre o futuro do nordeste mineiro, tudo isso no contexto de decadência do escravismo e do regime monárquico.6 As fontes utilizadas neste artigo são os registros da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos,7 almanaques de época, e o relato de viagem do naturalista e embaixador suíço Johann Jakob von Tschudi, que esteve em Diamantina no final da década de 1850. A legislação minerária no período imperial A Constituição de 1824 adotou o regime dominial, pelo qual os minérios eram considerados propriedade do Estado. Esse regime é aperfeiçoamento do regime realengo que vigorara na colônia, 8 tendo sido impelido pela dupla necessidade de racionalizar e fomentar a atividade mineradora. Nesse modelo, é “o Estado, representante dos interesses nacionais e o titular das riquezas minerais, que pode explorá-las diretamente, independente de concessão, ou conceder a sua exploração a particulares”.9 Ao Estado competiam as funções de controle e fiscalização da prospecção e do aproveitamento das jazidas. Ao concessionário impunha-se explorar efetivamente os recursos, em prol de um “interesse público”, e repassar aos cofres públicos os pagamentos de impostos cobrados sobre a atividade minerária. Quanto ao 5 6 7 8 9 SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Brasília: INL, 1978, p. 391. Para maiores detalhes, consultar MARTINS, Marcos Lobato. A crise dos negócios do diamante e as respostas dos homens de fortuna no Alto Jequitinhonha, décadas de 1870-1890. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 38, n. 3, 2008, p. 611-638. Estes documentos integram o Fundo dos Terrenos Diamantinos (TD) do Arquivo Público Mineiro (APM). Léo Ferreira Leoncy explica que, “no modelo realengo, os recursos minerais integram-se na categoria dos direitos reais, isto é, nos direitos do soberano. Os bens minerais constituíam no bloco apropriado pelo particular uma exceção em favor do rei (...). [Assim] Sendo o soberano o proprietário das minas e jazidas, delas podia dispor livremente, concedendo permissão de lavra a quem lhe aprouvesse”. LEONCY, Léo Ferreira. O regime jurídico da mineração no Brasil. Belém: NAEA/UFPA, 1997, p. 4-5. VASCONCELOS, José Matos de. Direito administrativo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936, p. 246. 118 proprietário fundiário, dono do terreno onde havia jazidas, a legislação garantia o direito à preferência para exploração e lavra do subsolo, bem como o direito à indenização por danos eventualmente causados pelos serviços de lavra conduzidos por terceiro. O regime dominial, todavia, não conseguiu eliminar as disputas entre mineradores, garimpeiros e proprietários de terras. Interpretações controversas da Constituição de 1824 criaram indefinição sobre a separação da propriedade do solo e do direito de explorar as riquezas minerais.10 Essa indefinição opôs mineradores e donos de terras.11 Os grandes mineradores tenderam a recusar o pagamento de percentual do resultado da “apuração” para os donos dos terrenos onde ficavam as lavras.12 Na década de 1830, a opção do governo imperial foi a de colocar nas mãos das províncias a responsabilidade pelo controle das lavras e dos mineradores. Para os diamantes, restou a obrigação de lapidar as pedras no Rio de Janeiro, nas dependências da “Fábrica de Lapidação” do Tesouro Nacional. O resultado prático dessa opção foi a progressiva alteração do tom da legislação minerária nas décadas seguintes. A ênfase deixou de ser a repressão aos descaminhos do ouro e do diamante, como no período colonial, para recair sobre a produção mineral, considerada fator importante para o desenvolvimento do país.13 10 11 12 13 Grosso modo, a controvérsia girou em torno do artigo 179, § 22, que garantia a propriedade em toda sua plenitude, sem fazer qualquer menção a solo ou a subsolo. Assim, houve quem defendesse a posição de que a propriedade da terra abrangia também a propriedade dos recursos minerais nela existentes. Esse entendimento conflitava, porém, com a lei de 20 de outubro de 1823 que determinara a vigência da legislação do Reino até que fosse expressamente revogada, com a diferença de que as minas e quaisquer outras riquezas do subsolo passaram a constituir domínio da nação. Um relatório enviado por Roberto Alves Ferreira Taioba, de 13 de setembro de 1856, indicava ao governo que, na busca de melhorar a atuação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, seria preciso esclarecer as atribuições da justiça fazendária e os limites dos direitos de mineradores e donos do solo, confusos no artigo 39 do decreto de 17 de agosto de 1846 (APM. TD-04, fls. 8v-9). O termo “apuração” nomeia a etapa final do processo tradicional de mineração, quando os cascalhos são lavados com o uso de peneiras e bateias, de modo a se proceder cuidadosamente à separação do ouro e dos diamantes. É então que se conhece o resultado bruto do serviço de lavra. Sobre as preocupações setecentistas com os descaminhos do diamante, ver FERREIRA, Rodrigo de Almeida. O descaminho de diamantes – relações de poder e sociabilidade na demarcação diamantina no período dos contratos (1740-1771). Belo Horizonte: Fumarc; São Paulo: Letra & Voz, 2009. E FURTADO, Júnia Ferreira. O Livro da Capa Verde: o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Annablume, 1996. 119 A peça-chave da engrenagem do controle e fiscalização da mineração diamantífera foi a Inspetoria da Administração e Extração Diamantina, criada pelo decreto de 24 de setembro de 1845, que extinguiu a antiga Junta Diamantina.14 A esse órgão, que se tornou mais conhecido como Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, competia fazer o registro das áreas das jazidas, das concessões e autorizações para lavra, evitar exploração indevida de terrenos diamantíferos e prestar contas à Tesouraria da Província da movimentação de exploração e arrecadação. Instalada na cidade de Diamantina, a repartição era subordinada à Tesouraria da Fazenda da Província. O órgão era chefiado por um inspetor geral e um procurador fiscal. Conforme o viajante Johann Jakob von Tschudi, que visitou Diamantina em 1858, o minerador tinha de obter nessa repartição uma permissão anual ao custo de dois mil-réis, que também o autorizava a trabalhar com escravos.15 A informação de Tschudi não é inteiramente correta. As taxas cobradas pela Administração Geral dos Terrenos Diamantinos variaram bastante no período 1832-1895. Disso dá mostras o ofício do inspetor geral para o deputado geral Teodomiro Alves Pereira, datado de 24 de janeiro de 1868.16 Nele são apontadas as alterações sofridas pelo imposto anual cobrado sobre os lotes diamantinos. O decreto de 6 de setembro de 1854 fi xara o imposto em um mil réis por braça quadrada de terreno explorado, e cinco mil réis para terrenos virgens. Mas a lei do orçamento de 26 de setembro de 1864 aumentou os valores: cinco mil réis para terrenos explorados e 10 mil réis para terrenos virgens.17 Um rápido parêntese. Para que se possa aquilatar o significado das cifras que são citadas nesse artigo, apresentam-se alguns preços que vigoraram em Diamantina, entre 1858 e 1861: o jornal diário de um pedreiro, de um mil e duzentos réis a dois mil réis; um cavalo, cerca de 25 mil réis; uma porca, cerca de seis mil réis; uma casa coberta de telhas, aproximadamente 150 mil réis; uma boa chácara nas proximidades da cidade, 500 mil réis; frango, cerca de 200 réis; a garrafa de leite, 80 réis.18 14 15 16 17 18 SANTOS, Joaquim Felício dos Santos. Memórias do Distrito Diamantino, 1978, op. cit., p. 404. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul. Trad. Friedrich E. Renger. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2006, v. 2, p. 127. APM. TD-04, fls. 49v-50v. Havia também a despesa dos arrendatários correspondente ao pagamento do prático responsável pela medição e demarcação dos lotes diamantinos (Relatório de Roberto Alves Taioba, substituto do inspetor geral, 13 de setembro de 1856. APM. TD-04, fls. 8v-9). Uma lista de preços de bens e serviços em Diamantina no período em tela pode ser encontrada em SOUZA, José Moreira de. Cidade: momentos e processos. Serro e Diamantina na formação do norte mineiro no século XIX. São Paulo: Marco Zero, 1993. 120 Os termos de contrato de arrendamento de lotes diamantinos fi xavam as relações entre os mineradores e a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, como mostra o documento transcrito abaixo, que solicita a revisão da medição de um lote mineral, para determinar sua área útil: Aos doze dias do mês de abril de 1869 nesta cidade do Serro, em casa do Advogado Antônio Caetano de Ávila e Silva, Delegado dos Terrenos Diamantinos deste município, onde eu Agente do Procurador Fiscal abaixo declarado fui vindo e sendo aí foi apresentada pelo Prático Tristão Cardozo Neves a medição do lote de terreno diamantino no Córrego do Amolar, arrematado em hasta pública em 1867, por José Pedro Lessa e Francisco Cornélio Ribeiro, como consta de uma petição que apresentaram, a qual fica arquivada; e como requereram nesta data que se procedesse a medição do referido lote assim ordenou o Delegado (...). Somando toda esta medição 24 mil braças quadradas, das quais abstraídas as inúteis, ficam líquidas 14 mil braças quadradas, que a preço fixo de um real por cada braça por ter sido a arrematação feita antes da nova lei, importa em 14$000 que os arrendatários ficam obrigados a pagarem na Coletoria desta Cidade anualmente enquanto não rescindirem do contrato ou o poder competente não mandar o contrário. (...) E de tudo para constar, mandou o Delegado lavrar o presente termo em que se assina com os arrendatários depois de lido por mim. Joaquim Ferreira de Araújo. Agente do Procurador Fiscal.19 O documento ilustra os procedimentos de gerenciamento da mineração empregados pela Administração Diamantina. Primeiro, fazia-se a medição dos lotes. Em seguida, os lotes demarcados eram levados a hasta pública. O(s) arrematante(s) registrava(m) os contratos na Administração, o que podia demorar alguns anos. Depois, pagavam os impostos na Coletoria provincial. Caso cessasse a exploração dos lotes ou ocorresse transferência ou venda de direito minerário, a Administração teria que ser imediatamente informada. Convém assinalar que a legislação minerária do período insistiu em penalizar os faiscadores. Estes continuaram marginalizados, tratados com desconfiança e hostilidade. Mal vistos tanto pelos grandes mineradores quanto pelas autoridades, os faiscadores foram discriminados pelo regulamento de 17 de agosto de 1846. O artigo 25 determinava que, em cada área de exploração diamantífera, a Administração Diamantina demarcaria um distrito específico dentro do qual os faiscadores poderiam trabalhar livremente. O artigo 29 vedava aos faiscadores a faculdade de minerar em todos os lugares devolutos. 19 APM. TD-08, fls. 135v-136. 121 Mais do que afinado com as posições liberais em voga, o regime de livre extração parecia estimular a atividade, justamente pela relativa modicidade das obrigações sobre quem extraía e comercializava pedras preciosas. A propósito, vale lembrar o comentário de Tschudi, feito logo após sua visita à rica lavra de São João do Barro: Atualmente, qualquer um que tiver tempo, vontade e dinheiro pode dedicar-se a essa tarefa [extração de diamantes]. O fisco desfruta vantagens modestas, visto que cada proprietário de uma lavra de diamantes (serviço) paga, anualmente, apenas um real por braça de terreno por ele trabalhado. Além disso, para cada diamante que sai da província cobra-se um imposto de exportação, correspondente a meio por cento de seu valor.20 A julgar pela observação de Joaquim Felício dos Santos, a legislação imperial para o setor teria causado onda de otimismo, ensejando a multiplicação das descobertas. Citando relatório de 1840 da Junta Diamantina ao presidente da Província, o grande tribuno do Tijuco escreveu: Cumpre observar que além da numerosa população, que tira sua subsistência imediatamente da mineração, um número muito mais considerável a obtém indiretamente. Sem falar na classe do comércio, que põe em giro neste país avultada soma de capitais, a agricultura não tem outro fiador, que não seja a mineração; e o município da Diamantina consome, além de seus próprios produtos agrícolas, o excesso de produção que superabunda no município da cidade do Serro, habitado por mais de 100 mil almas, e consideráveis exportações de outros municípios limítrofes, como os de Formigas, Curvelo e Minas Novas.21 Os serviços de lavra e os negócios de diamante em meados do século XIX Na região, as atividades de lavra abarcavam dois setores distintos, embora articulados e mesmo interdependentes: a grande mineração e o garimpo. Foi justamente a grande mineração que os viajantes estrangeiros conheceram, desde Eschwege, Saint-Hilaire até Richard Burton, passando por 20 21 TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, op. cit., v. 2, p. 96-97. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino, 1978, op. cit., p. 394-395. 122 Johann Jakob von Tschudi, que será nosso guia na reconstituição da economia do diamante na década de 1850.22 O que Tschudi conheceu da mineração de diamantes deve-se a sua visita à lavra de São João do Barro, em 1858. Ele esteve lá na companhia de Serafim José de Menezes (futuro barão de Araçuaí, o homem mais rico de Diamantina), Francisco José de Almeida e Silva (grande “diamantário” e proprietário de lavras no ribeirão do Inferno) e Rodrigo de Sousa Reis (também “diamantário” e dono da lavra do Barro).23 O viajante encontrou uma sociedade organizada para explorar 21.770 braças de terra, que tocava uma lavra que fornecia pedras muito boas, da mais pura água, e com muito pouco refugo.24 Esta lavra era um buraco enorme, com 60 pés de profundidade. Nela estavam ocupados 120 negros. Os donos da lavra pagavam, por semana, 4 mil-réis por escravo alugado. Além disso, eram obrigados a fornecer-lhes alimentação e, em caso de doença, assistência médica aos cativos, ao passo que os donos dos escravos davam apenas as roupas.25 Durante as poucas horas em que esteve na lavra do Barro, o viajante presenciou a extração de cerca de 30 quilates de diamante. Segundo relato de seus acompanhantes, na época da lavagem, durante os meses da chuva, eram achados diariamente entre 35 e 70 quilates, que perfaziam, em média, 100, 200, até 220 diamantes; desse modo, durante toda a estação, a lavra fornecia, no máximo, quatro mil quilates de diamantes.26 Tschudi foi informado de que, nas grandes lavras da região, o ouro era subproduto. Subproduto bem-vindo porque pagava pelo menos a alimentação dos escravos empregados.27 Ainda conforme o viajante, os custos de produção das grandes lavras estavam subindo. No início dos anos 1850, a produção de uma oitava 28 de diamante custava a média de 200 mil-réis. Mas, em 1858, 22 23 24 25 26 27 28 ESCHWEGE, Wilhelm L. von. Pluto Brasiliensis. Trad. Domício de Figueiredo Murta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Trad. Leonam de Azeredo Pena. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974. BURTON, Richard F. Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico. Trad. David Jardim Junior. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977. “Diamantário” é o nome regional para os comerciantes de diamantes, que compram diretamente dos mineradores as partidas de gemas e as revendem para as praças do Rio de Janeiro e da Europa. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 131. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 132. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 128-131. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 155. A oitava representa 17,5 quilates de diamante; o quilate, por sua vez, é equivalente a 200 mg de pedras preciosas. 123 o custo estaria, comparativamente, cerca de 10% mais alto.29 Dois fatores concorreram para a elevação do custo de produção das grandes lavras: o encarecimento da mão-de-obra escrava e a maior dificuldade de exploração do diamante de “massa” que, então, era o tipo mais comum das novas descobertas.30 Por isso, o viajante deu crédito à queixa dos grandes mineradores a propósito da rentabilidade baixa dos grandes serviços de lavra. Nas palavras de Tschudi: Os donos da lavra de São João, assim como a maioria dos proprietários de lavras, não consideram que o negócio de diamantes seja muito lucrativo. O custo da operação é muito alto. (...) Os produtores têm que se contentar com um lucro pequeno enquanto veem os comerciantes, que são os intermediários do produto, se enriquecerem.31 Sobre a produção de garimpeiros, Tschudi limitou-se a dizer que eles eram pessoas pobres que procuravam diamantes por meios simples e, em geral, apenas com a ajuda de seus familiares e amigos.32 Sua descrição do garimpeiro é carregada de indisfarçável preconceito: Em geral, os garimpeiros levam uma vida muito pobre e trabalham bastante para obter uma produção bem pequena. Às vezes, um ou outro tem sorte e encontra uma pedra grande, que compensa plenamente os esforços de muitos anos. Esses casos, porém, são raros. Durante o tempo de paralisação do garimpo, vivem de forma miserável junto com os seus. Na verdade, as turmas de garimpeiros atuaram em toda região da antiga Demarcação Diamantina, mobilizando milhares de homens em trabalhos manuais pesados e penosos. Por um lado, os garimpeiros foram historicamente responsáveis pelos maiores achados de diamante. Por outro lado, a produção dos garimpeiros, embora dispersa e fragmentada, sempre respondeu por expressiva parcela do volume total dos diamantes extraídos na região.33 Para enfrentar as obrigações impostas pela legislação minerária e contornar as dificuldades de acesso a lotes de terras minerais, os garimpeiros 29 30 31 32 33 TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 134. Na página 134 de seu relato, Tschudi informa que o negro escravo custava, em média, 1:200$000 rs na região de Diamantina. Já a expressão diamante de “massa” indica os depósitos de gemas encontrados longe dos cursos d’água, em morros que precisavam ser desmontados com água para se alcançar o cascalho diamantífero. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 132. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 127. Conforme MARTINS, Marcos Lobato. Identidades sociais e ação coletiva: o caso dos garimpeiros da microrregião de Diamantina. Dissertação de mestrado, Sociologia, FAFICH, UFMG, 1997. 124 frequentemente constituíram sociedades. Associações marcadamente informais, que operaram ancoradas nos valores, técnicas e práticas tradicionais da mineração regional, resultantes de acordos verbais entre amigos e familiares, poucas vezes registradas nos órgãos oficiais. Exemplo de rara associação de garimpeiros formalizada diante do Estado aparece no documento abaixo, datado de 1o de março de 1869, referente à exploração do córrego do Bernardino, no Serro: Sociedade que entre si fazem Paulo Fernandes Leão, Pedro Barreto Lima, Torquato Pinheiro das Neves, Antônio Raimundo da Costa e Marcelino José de Azevedo. Neste ato concordaram (...) de formarem entre si uma sociedade pela maneira seguinte, Que tendo os três primeiros seis mil braças de terreno diamantino no Córrego do Bernardino, e os dois últimos outro lote no mesmo córrego (...), cuja sociedade é fundada nos seguintes quesitos: 1o) Que os três primeiros sócios não poderão empregar na lavra mais do o número de 6 trabalhadores para cada um dos 3 sócios excetuando suas pessoas, e os 2 segundos sócios Antônio Raimundo e Marcelino poderão empregar nove trabalhadores cada um além de suas pessoas; 2o) Que observarão restritivamente a cláusula de que nenhum deles sócios poderão facultar a lavra a agregado algum; 3o) Que respeitarão os serviços uns dos outros, não estorvando-os de forma alguma; 4o) Que qualquer um dos sócios que não observar este contrato religiosamente pagará de multa a quantia de 100$000 que será repartida entre os outros sócios, cuja multa será verificada todas as vezes que houver infração do presente contrato, o que tudo foi aceito pelos sócios; 5o) Que qualquer um dos sócios que quiser vender o direito que tem na lavra, o poderá fazer, dando preferência aos outros sócios, e no caso de que estes não queiram comprar, poderá vender a qualquer estranho de combinação com os outros sócios. E de como assim se concordaram, e se sujeitaram mandar o Delegado lavrar o presente termo.34 Os numerosos faiscadores, indivíduos que trabalhavam isolados na cata de diamantes, exploravam locais anteriormente minerados ou terras distantes e de difícil acesso. Muitas vezes, “capangueiros”, comerciantes e donos de lavras ajudavam os faiscadores em suas despesas, em troca de participação na produção obtida e da preferência na compra dos diamantes. Dessa forma, como no caso das turmas de garimpeiros, também havia relações de complementaridade entre os faiscadores e os maiores agentes dos negócios de diamantes.35 34 35 APM. TD-08, fls. 125v-126v. Para discussão mais detalhada das interações entre grandes mineradores e faiscadores, ver CATHARINO, José Martins. Garimpo, garimpeiro, garimpagem. Rio de Janeiro: Philobiblion; Salvador: Fundação Econômica Miguel Calmon, 1986. SCLIAR, Cláudio. Geopolítica das minas do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1996. MARTINS, Marcos Lobato. Identidades sociais e ação coletiva: o caso dos garimpeiros da microrregião de Diamantina. Dissertação de mestrado, Sociologia, FAFICH, UFMG, 1997. 125 Tschudi notou que o “negócio de diamantes” era mais do que uma atividade econômica. Em Diamantina, havia se convertido numa “mania dos janotas”, verdadeiro emblema de masculinidade, maturidade e distinção social. É o que se depreende do trecho escrito pelo viajante: Houve um tempo em que todo mundo em Diamantina fazia negócio com diamantes (...). Hoje essa prática decresceu bastante (...). Contudo, ainda hoje é raro encontrar um jovem de boa família que não leve uma porção de diamantes em sua capanga, a fim de negociá-los na primeira oportunidade. O comércio de diamantes é uma paixão entre os jovens abastados de Diamantina.36 Em 1858, os preços praticados no comércio de diamante na praça da cidade eram atrativos. Os diamantes puros de uma oitava vendiam-se por três contos de réis. As pedras de duas oitavas custavam sete ou oito contos de réis. Já uma oitava de “mercadoria boa” vendia-se por 500 mil réis.37 Por isso mesmo, a condição de “diamantário” era bastante cobiçada, ainda que somente poucos conseguissem alcançá-la. A riqueza gerada pelo diamante forjou hábitos entre as camadas abastadas da cidade, a exemplo das frequentes viagens para a Corte. Conforme Tschudi, “quase todos os grandes comerciantes [de Diamantina] visitam a capital do império pelo menos uma vez por ano para fazer compras. Retornam com quantias de 200, 300, até 700 contos de réis, fruto da venda de diamantes”.38 Sobre as práticas dos negociantes de diamantes, o relato de Tschudi informa: Em Diamantina, os grandes comerciantes de diamante têm seus compradores, que viajam por todo o distrito e vão até Grão-Mogol e Sincorá [atual Coromandel, no Triângulo Mineiro] para comprar diamantes de pequenos proprietários de lavras, garimpeiros e negros. São conhecidos como capangueiros (...). Compram as pedras por conta e risco ou com um adiantamento dos grandes comerciantes e atacadistas. Em geral, esse negócio é muito lucrativo, porque eles compram boas mercadorias por preços relativamente baixos. Contudo, às vezes acontece de o preço baixar depois de uma viagem de alguns meses e, assim, eles perdem parte do capital aplicado.39 A passagem acima do relato de Tschudi é esclarecedora: em torno dos diamantários, estendiam-se imensas e capilares redes de “capangueiros”, que 36 37 38 39 TSCHUDI, TSCHUDI, TSCHUDI, TSCHUDI, Johann Johann Johann Johann Jakob Jakob Jakob Jakob von. von. von. von. Viagens através da América do Sul, Viagens através da América do Sul, Viagens através da América do Sul, Viagens através da América do Sul, 126 2006, 2006, 2006, 2006, v. v. v. v. 2, 2, 2, 2, op. op. op. op. cit., cit., cit., cit., p. p. p. p. 154. 152. 103. 154. vasculhavam as terras diamantinas mineiras e até baianas, no afã de adquirir boas pedras. Redes assentadas em relações pessoais, nas quais a confiança e a lealdade recíprocas eram valores centrais, e os lucros e os riscos eram repartidos de maneira assimétrica. Dessa forma, os negócios de diamante eram fortemente hierarquizados numa ponta como noutra, na extração e na comercialização.40 Apesar das estatísticas sobre a produção e comercialização de diamantes serem pouco confiáveis, em razão da tradicional clandestinidade de boa parcela das operações, vale apresentar os números compilados por Tschudi. Eles devem ser lidos muito mais como indicadores do vulto da atividade e de seu dinamismo. As tabelas seguintes trazem os dados: Tabela 1 – Quantidade e valor dos diamantes exportados pelo Rio de Janeiro (1857-1863) Período Oitavas Valor (mil réis) 1857-58 3.162 948:600 1858-59 5.021 1.506:450 1859-60 5.119 1.535:700 1860-61 5.863 2.506:320 1861-62 5.756 2.878:198 1862-63 6.970 2.468:725 Fonte: TSCHUDI, 2006, p. 145-146. Tabela 2 – Receita do Estado nos distritos diamantinos Período Receita (réis) 1856-57 41:945$000 1857-58 53:084$000 1858-59 58:300$000 1859-60 51:432$000 1860-61 37:523$000 1861-62 42:516$000 Fonte: TSCHUDI, 2006, p. 145-146. 40 MARTINS, Marcos Lobato. Os negócios do diamante e os homens de fortuna na praça de Diamantina, MG: 1870-1930. Tese de doutorado, História, FFLCH, USP, 2004. 127 As cifras da tabela 1 mostram o estado de aquecimento da mineração diamantífera na região de Diamantina, que era a principal origem das pedras exportadas pelo porto do Rio de Janeiro. Os números da tabela 2, por sua vez, demonstram que, a despeito da enorme evasão fiscal que historicamente marca a exploração de diamantes no Brasil, a economia do diamante gerava rendas anuais avultadas para o Estado brasileiro.41 Conforme a documentação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, na região do Serro, no período 1865-69, havia o registro de 174 termos de contrato de arrendamento de lotes. Alguns dos principais mineradores do município estão listados no anexo 1.42 As principais áreas de mineração eram: Rio do Peixe, Capivari, São Gonçalo e Pedra Redonda. As sociedades de mineradores e garimpeiros ocorriam com frequência, assim como era comum uma mesma pessoa ser titular de dois ou mais arrendamentos de lotes. Entretanto, raríssimas eram as concessões em nome de mulheres. No caso do Serro, dos 174 registros do período 1865-1869, encontra-se apenas uma mulher: dona Francisca Tereza d’Aguiar Souza, que possuía arrendamento no córrego de São Gonçalo.43 Bem mais animada era a mineração de diamantes no município de Diamantina. No período 1861-67, havia 2.447 matrículas de termos de arrendamento de lavra, sendo que os terrenos minerais variavam de 6.000 a 100 mil braças quadradas.44 Joaquim Felício dos Santos asseverava: “Durante o tempo das concessões, talvez se tirassem mais diamantes que a Extração 41 42 43 44 A inflexão para baixo da renda do Estado nos dois últimos períodos da tabela 2 pode ser explicada, pelo menos em parte, pelo comportamento do preço médio da oitava no Rio de Janeiro. Mantendo-se estável em 300$000 ao longo de quase toda década de 1850, o preço da oitava subitamente subiu para 427$000, em 1860-61, e depois para 500$000, em 1861-62, aumentos que devem ter estimulado o descaminho das pedras, de forma a engordar ainda mais os lucros dos comerciantes. Ver TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul, 2006, v. 2, op. cit., p. 145-146. O critério utilizado para classificar os mineradores foi o tamanho dos lotes, refletido na cifra de impostos anuais pagos. Em 1868, cada braça quadrada de terra mineral era taxada em cinco réis. Assim, os pequenos mineradores são aqueles que possuíam lotes que pagavam menos de 10$000 (lotes de aproximadamente 29 mil metros quadrados ou três hectares); os médios mineradores são aqueles que possuíam lotes taxados entre 10$000 e 20$000 (área entre cinco e 10 ha); os grandes mineradores eram os que possuíam lotes que pagavam mais de 20$000 anuais (área acima de 10 ha). APM. TD-08. APM. TD-06. Este dado do número de matrículas de terrenos minerais possibilita fazer estimativa dos trabalhadores diretamente envolvidos nos serviços de lavra. Conforme depoimentos de antigos garimpeiros, os garimpos manuais do início do século XX empregavam não menos do que oito ou dez pessoas. Como as técnicas eram as mesmas do século XIX, pode-se, portanto, calcular que o garimpo não empregava, nos anos 1860, menos que 19,5 mil pessoas. 128 no espaço de setenta anos de sua existência”.45 Felício dos Santos afirmava ainda: “não existe nesta demarcação córrego algum cujo leito esteja por se lavrar, e uma grande parte da mineração atual consiste em aproveitaremse os resíduos deixados pelos antigos contratadores e administrações, que minerando em grande, deixaram restingas ainda virgens”.46 Conforme sua avaliação, nos anos 1860, o produto anual em impostos de arrendamento das lavras alcançava a cifra de 16 contos de réis.47 A partir dos registros da Administração Diamantina, as principais áreas de mineração nos anos 1860-1870 eram: rio Pardo Pequeno, Caldeirões, Jequitinhonha, córrego do Quilombo, Bambá, Serrinha, Datas, riacho das Varas, rio das Pedras e Caetemirim. A localidade de Mendanha, por exemplo, era um dos principais centros de mineração da região. Ali, o Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Província de Minas Gerais do ano de 1869 (p. 203) anotou os nomes dos principais envolvidos com a mineração e o beneficiamento de produtos das lavras: • mineradores: Antônio de Aguiar Pinto Coelho, capitão Ezequiel Neto Carneiro Leão, Francisco Gomes Tibães, capitão José Floriano Quirino, dona Maria Madalena dos Santos e Modesto Ribeiro de Almeida; • capangueiros: Anselmo Pereira de Andrade, Joaquim Antônio de Oliveira e Joaquim Vieira Couto; • ourives: Antônio José Ferreira, José Cândido de Figueiredo e Prudêncio Pereira de Andrade. A partir dos cerca de 750 registros de lotes arrendados e dos arrendatários no município de Diamantina, constantes num livro da Fazenda Pública relativo ao período 1875-1890, tomou-se uma amostra aleatória de 252 nomes.48 Nessa amostra, pode-se verificar algo a respeito da distribuição dos tipos de lotes e do número de concessões por titulares de direitos minerários. As informações estão contidas nas tabelas seguintes: 45 46 47 48 Para depoimentos de antigos garimpeiros, ver MARTINS, Marcos Lobato. Identidades sociais e ação coletiva..., 1997, op. cit., cap. 2. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino, 1978, op. cit., p. 403. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino, 1978, op. cit., p. 396. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino, 1978, op. cit., p. 392. APM. FP-107, fls. 91-125. Chama-se atenção para o fato de que o documento da Fazenda Pública possui número bem menor de registros de lotes arrendados no município de Diamantina do que os existentes nos livros da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos. Uma explicação pode ser a seguinte: ele registra apenas os termos de contratos renovados no período. 129 Tabela 3 – Tipos dos lotes arrendados no município de Diamantina (1875-1890) Tamanho dos terrenos diamantinos N. de ocorrências % do total da amostra Pequeno 213 59,5 Médio 86 24,0 Grande 59 16,5 Fonte: APM. FP-107, fls. 91-125. Tabela 4 – Distribuição do número de concessões por titular no município de Diamantina (1875-1890) N. de arrendamentos/titular N. de ocorrências % do total da amostra 1 188 74,6 2 ou 3 58 23,0 4 ou mais 06 2,4 Fonte: APM. FP-107, fls. 91-125. Os números referentes à citada amostra indicam coisas importantes: a) os conhecidos garimpeiros, isto é, pequenos mineradores, constituíram a maioria dos agentes envolvidos com a economia do diamante no período em tela; b) embora houvesse mineradores titulares de muitas e grandes áreas, eles representaram fatia diminuta dos arrendatários registrados na Administração. O fato é que, embora os garimpeiros respondessem pelo maior número de arrendamentos, eles não produziram a maior quantidade de diamantes. A atuação da Repartição dos Terrenos Diamantinos: acomodações, tensões e conflitos Como se saiu a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos em suas funções de gestão, controle e fiscalização? A resposta deve começar pela análise da estrutura do órgão e sua dotação de recursos. Conforme o Livro de Matrícula dos Empregados da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, a repartição tinha sede em Diamantina e delegacias no Serro, Grão-Mogol, Conceição do Serro (atual Conceição do Mato Dentro), São Romão, Bagagem (atual Estrela do Sul, 130 no Triângulo Mineiro) e Uberaba.49 Na sede, ficavam lotados os ocupantes dos cargos de inspetor geral, substituto do inspetor geral, procurador fiscal, substituto do procurador fiscal, secretário, engenheiro e porteiro. Nas delegacias, existiam os cargos de delegado do inspetor geral,50 substituto do delegado (sempre vago, exceto no Serro), agente do procurador fiscal e substituto do agente (também sempre vago, exceto no Serro). Na Delegacia do Serro, havia ainda o cargo de prático, um auxiliar do engenheiro nos trabalhos de medição e demarcação dos lotes diamantinos. De imediato, vê-se que o pessoal da Administração era exíguo para o desempenho eficaz das missões que lhes eram atribuídas. Quadro que se agrava em função das distâncias entre as cidades e a imensidão das áreas que deviam ser cobertas, num cenário provincial de populações dispersas, estradas e comunicações precárias. Esta dificuldade é realçada em ofício do inspetor geral ao presidente da Província, conselheiro Vicente Pires da Mota, de 18 de maio de 1861, transcrito a seguir: Tenho a honra de acusar a recepção da Portaria de V. Exc. datada de 6 de abril último, ordenando-me nela que informe sobre os terrenos diamantinos da Serra do Cabral e rio Jequitaí que pedi em ofício de 29 de janeiro pp para serem declarados tais. 1o) Qual a época do descobrimento dos diamantes. 2o) Qual a extensão provável da área. 3o) Qual a sua população. 4o) Finalmente que quantidade de diamantes se teria ali extraído, e em resposta tomo a liberdade de dizer que, por enquanto, não me é possível cumprir minuciosamente as ordens de V. Exc. sem que obtenha para isso circunstanciados esclarecimentos de pessoas práticas dos lugares, visto que eles distam desta cidade 11 léguas pouco mais ou menos e ao presente pouco habitados pela razão dos motivos já ponderados em ofício de 10 do corrente mês que fiz subir a sua presença. Garanto porém a resposta da participação que V. Exc. se dignou fazer-me de ter pedido idênticas informações ao Delegado de Polícia do Termo de Passos acerca do descoberto diamantino nos terrenos adjacentes ao ribeirão das Canoas, fico inteirado e esperando as determinações de V. Exc.51 A forma encontrada pela Administração para contornar parcialmente o problema das distâncias foi recorrer às câmaras municipais. Por exemplo, 49 50 51 APM. TD-05. Aos delegados nos municípios competia: fornecer informações circunstanciadas do estado dos terrenos diamantinos, elaborar relatório anual em que se descrevem os inconvenientes e defeitos observados para facilitar a fiscalização, e sugerir melhoramentos que a experiência lhes tivesse apontado em prol dos interesses da Fazenda. APM. TD-04, fls. 34v-35. Grifos nossos. 131 em 11 de fevereiro de 1868, o inspetor geral solicitou ajuda aos vereadores de Santa Bárbara, no ofício transcrito a seguir: À Câmara de Santa Bárbara. Constando-me que apareceram diamantes na Serra de Cocais ou suas imediações, a bem do serviço público, vou pedir-lhes as seguintes informações. Primeiro= a extensão diamantina contida nesse lugar. Segundo= qualidade e (?) dos diamantes. Terceiro= quantidade aproximada do extraído. Quarto= finalmente número de trabalhadores empregados nesse serviço. Esperando com brevidade que lhes for possível as informações que venho de pedir devo acrescentar que serei a VV. SS. muito agradecido pelo obséquio que espero merecer. (...) Presidente e mais vereadores da Câmara Municipal da Cidade de Santa Bárbara.52 Com este expediente, todavia, a Administração ficava à mercê da boa vontade das câmaras municipais, que não dispunham de muitos recursos e eram bastante suscetíveis às pressões dos seus munícipes, no sentido de deixar correr a boca pequena o aproveitamento de novos descobertos. As tarefas da Administração eram embaraçadas também por problemas envolvendo os próprios funcionários. Um desses problemas era a interrupção frequente do expediente da Administração provocada pelas viagens do secretário. Afinal, era tarefa deste funcionário supervisionar, pessoalmente, os trabalhos de medição e demarcação dos lotes nas áreas de exploração diamantífera, preparar e acompanhar as hastas públicas nas diversas cidades onde havia delegacias da Administração.53 Por isso, ele permanecia dias fora de Diamantina e, então, a repartição praticamente ficava paralisada, causando o acúmulo de serviço. Para minorar esse problema, o inspetor geral sugeriu ao inspetor da Tesouraria da Fazenda, José João Ferreira de Souza Coutinho, em ofício de 31 de janeiro de 1861, que se autorizasse “chamar um jornaleiro que auxilie ao Secretário”.54 A solicitação parece ter caído no vazio. Outro problema era a morosidade dos processos internos da repartição, tanto em função de falhas dos funcionários quanto de espertezas, por assim dizer, dos mineradores. No primeiro caso, pode-se mencionar a demora das respostas das delegacias às solicitações da sede da Administração. Exemplo disso é fornecido pelo ofício de 11 de abril de 1861, enviado ao inspetor da Tesouraria da Fazenda, no qual o inspetor geral justifica-se diante da impos- 52 53 54 APM. TD-04, fl. 41. Ofício nos mesmos termos, e de mesma data, foi enviado à Câmara Municipal de Campanha, pedindo notícias sobre descobertos no rio Verde (freguesia de Mutuca), também na fl. 41. Exigência presente no artigo 21 do regulamento de 17 de agosto de 1846. APM. TD-04, fls. 20-20v. 132 sibilidade de entregar o relatório sobre movimento e arrecadação dos terrenos diamantinos, dizendo: “porque ainda não recebi das diversas delegacias desta Província as informações que já solicitei [o que] dificulta extraordinariamente os precisos dados para esse trabalho de tanta importância”.55 Outro exemplo encontra-se no ofício enviado a Antônio Hermógenes Pereira Rosa, inspetor geral da Tesouraria da Fazenda, em 11 de março de 1886, solicitando a demissão do delegado de Conceição do Serro, nos seguintes termos: Não tendo o atual Delegado dos terrenos diamantinos no município da Conceição dado a menor solução a ofícios que lhe dirigi, pedindo informações do estado daquela Delegacia, e tendo chegado a meu conhecimento diversas queixas contra o mesmo, quanto à falta de cumprimento de deveres, venho propor a sua demissão daquele cargo, e apresentar o nome do cidadão José Cândido da Costa Fonseca para substituí-lo, e a do cidadão Orozimbo de Paula e Silva para o de Agente do procurador Fiscal no mesmo município.56 O expediente do órgão ficava frequentemente paralisado pelo efeito das estratégias utilizadas pelos mineradores e seus advogados ou procuradores. Eram manobras que, explorando brechas da lei ou zonas cinzentas criadas pelos regulamentos, tinham o objetivo de arrastar os processos, evitando que chegassem a termo, quando isto convinha aos interesses dos mineradores. Exemplo desses estratagemas era a retenção de processos pelos advogados ou procuradores, de que se queixa o inspetor geral da Administração no ofício de 23 de março de 1886, enviado ao presidente da Província. Apesar de longo, vale transcrever esse documento: (...) Verá V. Exc. que com relação a matéria de recursos permitidos pelo Regulamento dado com o Decreto n. 5955 de 23 de junho de 1875, tem-se introduzido uma prática abusiva e prejudicial aos interesses das partes e da Fazenda Pública, que convém coibirse, é ela: que depois de interpostos os recursos pedem os recorrentes vista dos mesmos para razões; o Regulamento não marca prazo para tal vista, nem fala nela. Ficam os Advogados ou Procuradores com os autos por tempo que lhes apraz; em muitos casos este proceder só importa em um ganho de causa, como nos casos em que o recurso tenha efeito suspensivo. O regulamento em seus artigos 75 a 79 não autoriza semelhante vista que os advogados do cível querem transplantar para o processo destes recursos, mais administrativos e sumários do que os recursos do cível. Da leitura das disposições do Capítulo X do citado Regulamento convenço-me de que: a mesma petição que interpõe o recurso voluntário no prazo de 15 dias da intimação da decisão de que se 55 56 APM. TD-04, fl. 29v. APM. TD-04, fl. 52v. 133 quer recorrer, deve trazer em si as razões ou fundamentos do recurso, sobre as quais informa o Inspetor, sem mais vista ao recorrente. É esta a forma geral de recursos no administrativo, e que me parece foi adaptada pelo Regulamento; entretanto, consulto V. Exc. se devo pô-la em prática, ou se tolerar a praxe até agora seguida e introduzida, talvez, pelos Advogados, e neste caso, qual meio de que se lançará mão a fim de evitar o abuso de ficarem os mesmos Advogados ou Procuradores com os recursos a título de arrazoá-los, indefinidamente.57 Vê-se que os mineradores souberam usar chicanas jurídicas para suspender ou torcer a seu favor decisões da Administração. Os mineradores de maiores recursos e também os faiscadores souberam assimilar os procedimentos e ritos da repartição em proveito próprio. Obrigados pela legislação a tirar licenças individuais anualmente para trabalhar, pagando selo e direito correspondente, os faiscadores conseguiram impor à Secretaria da Administração Diamantina a prática de retirar “uma só carta para três, dez e mais indivíduos debaixo de um só selo”.58 Em contrapartida, cada faiscador satisfazia a obrigação de pagar dois mil réis anuais da taxa correspondente às licenças. Tal arranjo representou uma “acomodação” da legislação, aceita pela própria repartição encarregada de aplicá-la, diante das condições reais da região e dos trabalhadores da mineração. Acomodação que atendia interesses de ambas as partes e, por isso mesmo, contribuía para legitimar, em medida não desprezível, a convivência dessas mesmas partes. Estes exemplos reforçam a linha interpretativa de autores que, ao abordar as relações Estado-sociedade no período monárquico, realçam a existência de estratégias populares diversificadas, forjadas na vivência cotidiana e em resposta a demandas específicas, que foram capazes de implementar, em alguma medida, interesses das gentes mais simples por meio do recurso a determinadas instituições estatais e a lei. Assim, as relações Estado-sociedade não foram dadas apenas pelos diplomas legais, mas construídas na interação de experiências de grupos diversos que procuravam fazer valer seus direitos.59 Aliás, uma forma curiosa de ludibriar a legislação minerária e fazer de boba a Administração era, simplesmente, não comunicar a morte dos titulares de termos de contrato, o que muitos herdeiros fizeram. Tal “jeitinho” foi denunciado pelo inspetor geral no seguinte ofício: 57 58 59 APM. TD-04, fls. 53-53v. Ofício de 27 de abril de 1861, enviado ao inspetor da Tesouraria da Fazenda. APM. TD-04, fls. 31-31v. Ver, por exemplo, RIBEIRO, Gladys Sabina (org.). Brasileiros e cidadãos. São Paulo: Alameda, 2008. 134 Ao Coletor Geral, Sr. Antônio Pedro de Oliveira Catta Preta, 10 de junho de 1868. Denuncio a prática de que herdeiros de arrendatários já falecidos continuam fazendo pagamentos anuais na Coletoria do Município, fugindo à exigência legal de habilitação perante a Administração, atentando contra os interesses da Fazenda e o cumprimento da Lei. A Administração roga que não sejam mais fornecidos os talões, para boa ordem da Administração.60 Mais do que caso folclórico, o ofício acima revela certa confusão administrativa, pois órgãos governamentais distintos, que deveriam agir articuladamente, se limitavam a perseguir estritamente suas finalidades, gerando choques ou dificuldades para a atuação dos outros. Deve-se também mencionar a insistente desconfiança que a Administração nutria em relação à Polícia. O ofício de 27 de janeiro de 1861, enviado ao presidente da Província, conselheiro Vicente Pires da Motta, é esclarecedor a este respeito. Lê-se no referido documento: Acontecendo que se suscitem questões tão desagradáveis entre os mineiros da extração diamantina a ponto de se tornarem tumultuárias, casos estes que por várias vezes se tem reproduzido, e mesmo para que seja mais respeitada esta Administração, e haja uma restrita fiscalização, que melhor interesse resulte a Fazenda Geral, julgo de absoluta necessidade que esteja aqui o destacamento de que trata o art. 5o do Regulamento de 17 de agosto de 1846, visto que o existente além de ser insuficiente em número para executar as ordens das Autoridades Policiais, é composto de Guardas Nacionais do lugar que se tornam suspeitos para as diligências desta Administração, rogo pois a V. Exc. que se digne atender ao que levo exposto se julgar que assim convém, embora seja o número incompleto do merecido no dito Regulamento.61 Ora, a necessidade da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos de recorrer à Guarda Nacional de Diamantina constituía dificuldade real para o desempenho de suas funções. Afinal, muitos homens e os comandantes locais da Guarda Nacional eram mineradores, garimpeiros, familiares e amigos de mineradores, garimpeiros e faiscadores. Não estariam facilmente dispostos, portanto, a agir duramente contra os seus em nome da Administração. A legislação minerária produzia dificuldades adicionais para a atuação da Administração. Cita-se aqui o caso da aplicação de impostos diferenciados de acordo com a natureza do terreno mineral. Em terrenos já explorados, os arrendatários deviam pagar menos do que os arrendatários situados em 60 61 APM. TD-04, fl. 50v. APM. TD-04, fl. 20v. 135 terrenos virgens. A questão é simples: na região de Diamantina, Serro e Grão Mogol, como determinar precisamente quais terrenos eram virgens e quais já tinham sido explorados? A tipificação dos terrenos resvalava para o campo da controvérsia. Situação patente no ofício de 18 de maio de 1861, enviado pelo inspetor geral para o presidente da Província, transcrito a seguir: Recebido ontem um ofício do Delegado dos Terrenos Diamantinos do município do Serro trazendo junto do Engenheiro Prático ao mesmo dirigido e que tenho de passar às mãos de V. Exc. incluso por cópia, rogo a V. Exc. se digne dizer-me se o terreno descoberto e que contem diamantes está nas circunstâncias de ser declarado diamantino como deseja saber o mesmo Delegado; porque eu vacilo na decisão afirmativa de se dever entender já conhecido diamantino o dito terreno visto não ter sido ainda explorado e estar por isso sujeito a imposição de cinco reais por braça quadrada porque o terreno ainda não foi lavrado como se depreende da declaração do mesmo Delegado, conquanto esteja dentro do Município; neste sentido responde aquele Delegado aguardando a deliberação de V. Exc.62 Como entender a divergência entre o delegado do Serro e o inspetor geral a respeito da tipificação do terreno mineral? O delegado do Serro, por causa da proximidade mais vulnerável às pressões dos mineradores locais (que prefeririam pagar o imposto menor), inclinava-se por declarar a área diamantina, isto é, conhecida e explorada. O inspetor geral, mais distante e talvez aferrado à letra da lei, preferia tipificar a área como virgem, alegando que nela não havia lavra. Quem tinha razão? O tom anedótico da situação fica por conta do apelo ao presidente da Província, que, de Ouro Preto, daria a palavra final sobre a “virgindade” do terreno situado no Serro. No que concerne à fiscalização das áreas de lavra, a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos realizava inspeções de campo e tentava responder prontamente às denúncias que chegava a conhecer. O mecanismo das inspeções fica explicitado ao se ler a portaria de 28 de janeiro de 1861, assinada pelo inspetor geral José Ferreira de Souza Coutinho, que determinava: O Porteiro desta Administração se apresentará com a possível brevidade no Primeiro Distrito Diamantino, destinado aos faiscadores e exigirá dos mineiros ali empregados todas as licenças que houverem obtido desta Repartição para minerar, fazendo em vista delas uma relação circunstanciada com declaração dos nomes dos indivíduos que tiverem obtido as licenças, número dos trabalhadores marcados e as datas das 62 APM. TD-04, fls. 33v-34. Grifo nosso. 136 mesmas licenças, dando-me uma circunstanciada parte de tudo quanto encontrar para ser providenciado na forma prescrita nos Regulamentos em vigor.63 Inspeções deste tipo ocorriam nas áreas mais próximas da sede da Administração. Entretanto, praticamente não havia condições de estendê-las aos locais mais distantes de Diamantina. A fiscalização direta, realizada pela própria repartição, ficava comprometida. Por conseguinte, reativamente, a Administração passou a depender das denúncias para levar a termo sua tarefa fiscalizadora. Recebida a denúncia, a chefia da repartição acionava a autoridade que mais rapidamente pudesse cessar a irregularidade. Podia ser um delegado do inspetor geral ou um delegado de Polícia. Na invasão do lote contratado por dona Carolina Gabriela da Fonseca, a Secretaria da Administração oficiou, em 12 de março de 1886, o delegado dos Terrenos Diamantinos do Serro, informando-o do fato e dando-lhe as seguintes instruções: (...) Cumpre a essa Delegacia mandar intimar os invasores a que se retirem tomando ao mesmo tempo uma relação dos que ali forem encontrados trabalhando a fim de serem multados e executados; e no caso de resistência ou reincidência deve a arrendatária requerer à autoridade judiciária instaurar o respectivo processo. É esta a praxe seguida em casos idênticos, a qual essa Delegacia deve seguir.64 Já na denúncia da presença de faiscadores em uma área de Diamantina, a Administração acionou o delegado de Polícia do Termo, tenente João Teodoro Fernandes, da seguinte forma: 31 de março de 1868. Denunciando perante V. S. o Capitão Antônio Mendes de Magalhães que no lugar denominado Mata dos Crioulos acha-se um grupo de pessoas minerando, sem título legítimo, os terrenos diamantinos situados em aquele lugar, a bem do serviço público e para que sejam respeitados os direitos da Fazenda Nacional requisito de V. S. os praças que julgar necessários a fim de, auxiliados pelo Porteiro desta repartição, irem ao lugar vedar este ato criminoso.65 Mas a questão crucial quando se discute a atuação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos é, sem dúvida, a de saber a quem ela servia prioritariamente: ao Estado e ao interesse público, aos interesses privados 63 64 65 APM. TD-04, fl. 19v. APM. TD-04, fl. 52. APM. TD-04, fl. 43. O capitão Antônio Mendes de Magalhães era conhecido fazendeiro na mata dos Crioulos. Sua denúncia talvez fosse motivada pela impossibilidade de exigir de mineradores ilegais qualquer percentual sobre os diamantes extraídos. 137 dos grandes mineradores e diamantários, ou aos garimpeiros e faiscadores? Trata-se de identificar a presença recorrente de algum tipo de viés no desempenho da repartição, de saber se ela foi ou não firmemente capturada por certos grupos e, por isso, transformada em instrumento de promoção de determinados interesses.66 Entre os memorialistas de Diamantina, predomina a ideia de que a Administração cumpriu papel importante e positivo na região, não apenas porque teria conseguido organizar as áreas de lavra, mas porque teria estimulado a economia do diamante ao apoiar as sociedades mineradoras e, na virada para o século XX, as companhias estrangeiras e nacionais que entraram na região.67 Segundo Soter Ramos Couto, nos tempos da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, a mineração “não estava presa a firma ou pessoa, mas nas mãos de milhares de indivíduos e era mais bem repartida, fazendo a felicidade de centenas de lares”.68 Visão bem diferente encontra-se na memória de garimpeiros. Depoimentos de antigos garimpeiros, recolhidos na década de 1990, contêm muitas histórias, contadas de geração a geração, que afirmam o conluio de interesses entre a Administração e os grandes mineradores, enfatizando a perseguição contra garimpeiros e faiscadores com o objetivo de expulsá-los de ricas terras minerais.69 Quem está com a razão: os memorialistas ou a tradição oral garimpeira? O exame da lista de ocupantes dos principais postos da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos mostra que ela sempre esteve muito próxima dos grandes mineradores e comerciantes de pedras. Homens estreitamente vinculados aos negócios de diamante exerceram os cargos de inspetor geral, substituto do inspetor, procurador fiscal, substituto do procurador, delegado e agente do procurador fiscal (ver anexo 2): em Diamantina, pes- 66 67 68 69 Há longa tradição de análise que afirma a baixa capacidade operativa do governo imperial, no sentido de que o governo teria tido muito baixa presença efetiva no âmbito local. Assim, a maior parte do país viveria como se não existisse governo, porque as funções de governo seriam exercidas por agentes privados, configurando um quadro de fragmentação política real. Ver LESSA, Renato. Aventuras do barão de Munchausen: notas sobre a tradição presidencialista brasileira. In: LANZARO, Jorge (org.). Tipos de presidencialismo y coaliciones politicas em America Latina. Buenos Aires: Clacso, 2001. SCHWARTZMAN, Simon. A invenção republicana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999; Idem. São Paulo e o Estado nacional. São Paulo: Difel, 1975. ARNO, Ciro. Memórias de um estudante, 1885-1906. 2. ed. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1949. COUTO, Soter. Vultos e fatos de Diamantina. 2. ed. Belo Horizonte: Armazém de Ideias, 2002. COUTO, Soter. Vultos e fatos de Diamantina, 2002, op. cit., p. 241. Ver MARTINS, Marcos Lobato. Identidades sociais e ação coletiva, 1977, op. cit., cap. 2. 138 soas das famílias Caldeira, Andrade Brant, Alves Ferreira, Fernandes, Araújo Tameirão e Mourão, nas quais abundavam mineradores, diamantários e chefes políticos locais; no Serro, nomes como Ferreira Rabello, Ávila e Silva, Caldeira e Almeida e Silva, tradicionalmente dedicados à política, mineração e comércio.70 Vale ressaltar que a praxe da Administração era a de solicitar às câmaras municipais das cidades onde havia Delegacia dos Terrenos Diamantinos indicações de nomes para preencher os postos locais. Isto fica evidente no ofício de 30 de janeiro de 1868, enviado à Câmara de Uberaba, no qual se lê: Tendo sido declaradas diamantinas as terras do Município de Uberaba pelo Aviso do Ministério da Fazenda de 31 de janeiro de 1853 e bem assim nomeado para servir de Delegado da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos o cidadão João Quitério Teixeira, por Portaria de 10 de fevereiro do dito ano e não constando nesta Repartição mais nada a tal respeito, é do meu dever restabelecer a ordem e efetividade do cumprimento da Lei e por isso vou rogas a VV. SS., a bem do serviço público para dignarem-se prestar-me as seguintes informações. (...) Quinta= pessoas idôneas que possam com dignidade exercer os empregos de Delegado da Inspetoria e seu Substituto, de Agente do Procurador Fiscal e seu Substituto e finalmente para Prático medidor dos terrenos (...).71 As câmaras municipais, redutos das elites locais, indicavam nomes a elas afinados para ocupar os cargos da Administração. No caso da sede, em Diamantina, os políticos, os grandes mineradores e os diamantários da cidade tomaram como questão de honra (e de sobrevivência) influir sobre as nomeações, mesmo porque a mineração era a principal indústria da região e o município, o mais destacado produtor de diamantes do país. Também é verdade que a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos favoreceu e apoiou a formação de sociedades de grandes mineradores para explorar áreas ricas em diamantes, principalmente os novos descobertos. A repartição jogou seu peso no encaminhamento de propostas dessas sociedades para o governo provincial e o Ministério da Fazenda. Veja-se, por exemplo, o ofício de Roberto Alves Ferreira Taioba, substituto do inspetor geral em exercício, dirigido ao inspetor da Tesouraria, em 13 de agosto de 1856: 70 71 Para informações sobre a posição de algumas destas famílias, ver o almanaque escrito por MARTINS, Antônio de Assis. Almanak administrativo, civil e industrial da Província de Minas Gerais do ano de 1869. Rio de Janeiro: Typographia do Diário do Rio de Janeiro, 1870, p. 201 e ss. APM. TD-04, fls. 39-39v. 139 Remeto a V. S. para que submeta a aprovação do Exmo. Governo Imperial o contrato para arrendamento que acabo de celebrar com a companhia composta dos cidadãos Felisberto Ferreira Brant, Antônio Francisco dos Santos Fonseca, José Ferreira de Andrade Brant, Felisberto Ferreira Brant Jr., Augusto Ferreira Brant, Luis José Queiroga, José Ferreira Brant e Cândido dos Santos Fonseca para minerarem no Rio Preto que atravessa a estrada para Curimataí, tendo de permanecerem da ponte que existe na referida estrada para baixo.72 Favorecimento igual recebeu a companhia composta pelos cidadãos Felisberto Caldeira Brant, barão de Araçuaí (um dos cicerones da estada de Tschudi em Diamantina), Luiz Antônio Homem, Francisco Gomes Ribeiro, Antônio Francisco dos Santos Fonseca, Juscelino Joaquim de Menezes, Francisco Antônio Pimenta e Eduardo Soares Pereira da Silva, para minerar nas cabeceiras do rio Preto.73 Outro exemplo de companhia de grandes mineradores favorecida pela Administração foi a que se formou, em Diamantina, para minerar no rio Jequitaí, em área de uma légua em quadro (9 milhões de braças quadradas), sob a obrigação de empregar cem trabalhadores e de pagar 3$000 anuais por cada trabalhador, além de impedir a presença de faiscadores.74 Essa companhia era integrada, entre outros, por Francisco José de Andrade e Silva, Rodrigo de Souza Reis (um dos citados guias de Tschudi em Diamantina), Diniz Tameirão Pinto e João da Mata Machado (pai do conselheiro e ex-ministro João da Mata Machado Filho).75 Os exemplos anteriores são suficientes para mostrar que a Administração preferiu, quando possível, destinar áreas ricas em diamantes para as companhias de mineração ao invés dos garimpeiros, opção que tem a ver com a influência dos grandes mineradores diamantinenses sobre a repartição, mas também com a crença de que tal escolha seria melhor para a produção e, portanto, para a Fazenda e o país. O que não significa que a Administração se curvasse, dócil e imediatamente, o tempo todo, aos desejos dos mineradores. 72 73 74 75 APM. TD-04, fl. 7v. Ofício de 10 de agosto de 1856, enviado à Tesouraria da Fazenda. APM. TD-04, fls 7v-8. Ofício para a Tesouraria da Fazenda, 13 de setembro de 1856. APM. TD-04, fls. 9v-10. Os contratos celebrados com ambas as companhias foram feitos pelo mesmo Roberto Alves Ferreira Taioba, substituto do inspetor geral em exercício. Este cidadão diamantinense foi minerador e participou de sociedades diversas, das quais participaram nomes como Felisberto Ferreira Brant, João da Mata Machado e José Ferreira de Andrade Brant. Conforme MARTINS, Marcos Lobato. Os negócios do diamante e os homens de fortuna na praça de Diamantina ..., 2004, op. cit., cap. 3. 140 Em várias ocasiões, nos meados do século XIX, a repartição contrariou interesses dos mais poderosos agentes da economia do diamante na antiga Demarcação Diamantina. Fez isso, por exemplo, ao obstar ações de delegados de terrenos diamantinos que geravam favorecimentos a mineradores e ao impedir a exploração mineral de certas áreas, por temer prejuízos para populações próximas. Citam-se aqui somente dois casos ilustrativos. Em 10 de novembro de 1857, o inspetor geral Francisco de Paula Meireles expediu portaria para a Delegacia do Serro, referente à demarcação do rio das Pedras. Por meio desse instrumento, o inspetor geral mandava ao delegado do Serro que não mais aceitasse requerimentos de concessão de lotes minerais no ribeirão dos Borbas e outros confluentes do rio das Pedras, tal como ele vinha fazendo, porque estas áreas, embora dentro de sua jurisdição, não eram designadas claramente pelo governo como terrenos diamantinos, apenas as do rio das Pedras. Além de cessar as concessões, o inspetor geral ordenava que a Delegacia do Serro enviasse para a sede da repartição cópia de todos os contratos que foram feitos no Serro, para verificar eventuais irregularidades.76 Sem dúvida, esta decisão da Administração embaraçava a exploração das ricas lavras existentes nos confluentes do rio das Pedras, tão cobiçadas pelos grandes mineradores e garimpeiros do município do Serro. No ano de 1861, para preservar o abastecimento de água de Diamantina, a Administração impediu a exploração de diamantes no Guinda. O inspetor geral, em ofício de 16 de abril, enviado a João Pires Cardoso, ponderou: Tendo o cidadão Francisco Gonçalves Ferreira requerido para serem levados a hasta pública 6000 braças quadradas de terrenos diamantinos que se acham devolutos nos Campos do Guinda, na ponta da serra denominada Lapa dos Couveiros, estrada acima até a altura que fica defronte da casa de Francisco Alves de Lima, embaracei que fosse o seu requerimento levado a praça, temendo que havendo-se o dito terreno fosse prejudicada a água que se presta a servidão pública desta cidade, pelo que deliberei convidar a V. S. e aos cidadãos Joaquim Cassemiro Lages e Dinis Tameirão Pinto, a fim de que, a bem do serviço público, se dignem a ir ao lugar examinar o mencionado terreno e daremseu parecer de comum acordo sobre o que julgar mais conveniente. Espero já tanto ao zelo e patriotismo de V. S. que não se negará a um trabalho de tanta transcendência.77 76 77 APM. TD-04, fls. 15v-16. APM. TD-04, fl. 31. De posse de parecer da comissão contrário ao pedido de exploração dos campos do Guinda, a Administração não atendeu ao minerador Francisco Gonçalves Ferreira. Sobre o episódio, diz a tradição oral diamantinense que muitos mineradores ficaram furiosos e passaram a insuflar faiscadores e garimpeiros no sentido de ocupar a área. Em 1873, uma multidão de faiscadores invadiu o Pau de Fruta, nos campos do Guinda, e abriu catas. A Ad- 141 Os dois casos anteriores operam no sentido de exigir a relativização do ponto de vista que, focado no conceito de patrimonialismo e levando ao paroxismo a clássica interpretação de Raymundo Faoro,78 assegura ter sido completa a captura da máquina estatal pelos interesses dos segmentos mais abastados e poderosos das elites, nos tempos do Império. Sem essa relativização, não se poderá compreender porque inspetores gerais da Administração dos Terrenos Diamantinos propuseram mudar o tratamento conferido pela legislação minerária aos faiscadores, na direção de lhes oferecer mais áreas para lavrar e diminuir as suas obrigações. Roberto Alves Ferreira Taioba, no relatório enviado à Tesouraria da Fazenda em 13 de setembro de 1856, elenca, entre as sugestões para melhorar a atuação da Administração dos Terrenos Diamantinos, o estado dos arrendatários e as rendas diamantinas, providências como: “(...) Que se amplie aos faiscadores a faculdade de trabalhar em todos os terrenos devolutos. (...) Que é melhor que se aceite o zelo dos serviços dos faiscadores que assim só tenham de pagar a taxa de que trata o art. 7o do Decreto ou Resolução de 24 de setembro de 1845”.79 Anos depois, José João Ferreira de Souza Coutinho, em ofício para a Tesouraria da Fazenda, datado de 8 de fevereiro de 1861, aduziu motivos similares para sugerir ao governo alguma modificação relativamente aos faiscadores, aos quais, na forma do art. 29 do regulamento de 17 de agosto de 1846, não era dada a faculdade de minerar em todos os lugares devolutos. Souza Coutinho pensava que a experiência indicava que “essa modificação será conveniente, não só como um meio mais fácil de fiscalização, mas ainda como medida policial de segurança e garantia dos terrenos nacionais”, além de ter manifesta utilidade aos interesses da Fazenda.80 E acrescentava: a modificação interessava à própria Administração, ou melhor, à sua imagem, uma vez que ela se livraria de enfrentar desafios de homens “que não se sujeitam a ação das autoridades, as quais não têm nem a força e nem o prestígio de podê-los conter nos limites de sua obediência, para fazer cumprir a Lei em lugares longínquos e despovoados”. A linguagem de Souza Coutinho é a linguagem típica do magistrado, do funcionário de governo 78 79 80 ministração recorreu à Polícia e houve expulsão violenta dos invasores. Este acontecimento ficou conhecido como a “demanda do Pau de Fruta”. Ver MARTINS, Marcos Lobato. Identidades sociais e ação coletiva ..., 1997, op. cit., cap. 2. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 6. ed. Porto Alegre: Globo, 1984. 2v. APM. TD-04, fls. 8v-9. APM. TD-04, fls. 21-22v. 142 que tem em alta conta as atribuições e qualidades precípuas do Estado: a força e respeitabilidade da lei, o controle do território nacional, o interesse da Fazenda, o prestígio das instituições, a eficácia da administração. As preocupações de Roberto Taioba e de Souza Coutinho indicam certo grau de compromisso com a busca de racionalização da administração, da rotinização das ações de governo, o que tem a ver com aspectos de um processo, ainda que incipiente e mesmo lento, de consolidação do Estado e de formas modernas de gestão governamental, na direção da lógica burocrática. Também fica claro que inspetores gerais e procuradores fiscais da Administração Diamantina perceberam que o poder do Estado não poderia prescindir de espaços e margens de negociações, a fim de alcançar níveis abrangentes de controle da ordem e administrar eficazmente conflitos socioeconômicos, no interior das áreas de exploração diamantífera. A atuação da Administração Diamantina, nesse sentido, pode ser caracterizada como “uma contínua sondagem entre governantes e súditos, a fim de descobrir o que eles podem efetuar impunemente”.81 Noutras palavras, a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos operava como instância – tal como a Justiça – à qual recorriam homens livres pobres das camadas intermediárias e mesmo as elites locais, em maior ou menor grau, para tentar a solução de seus conflitos, demandando alguma ordem e previsibilidade para viver e trabalhar.82 O que significa que, no processo de construção da ordem legal, do aparato institucional e da contenção da violência nas áreas de mineração ao redor de Diamantina, no período em tela, a repartição produziu bem mais do que “cascalho normativo formal”. Na verdade, a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos enfrentou com algum sucesso a complicada tarefa de encontrar caminho entre a ordem legal produzida pelo Estado e o direito consuetudinário das comunidades de garimpeiros e faiscadores. Considerações finais O exame da documentação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos fornece indícios que corroboram a visão de viajantes e de memorialistas que assinalaram o dinamismo da economia do diamante, em 81 82 MOORE JR, Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 39. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça. Minas Gerais, século 19. Bauru, SP: Edusc, 2004. 143 meados dos Oitocentos, nas terras da antiga Demarcação Diamantina. A atividade envolvia diretamente milhares de trabalhadores e gerava arrecadação anual expressiva de impostos. A despeito das distâncias, do número escasso de funcionários e das ambiguidades da legislação do setor, a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos alcançou razoável sucesso no desempenho de sua missão. Sua atuação, mais notada nas proximidades de Diamantina, integrou-se à vida ordinária dos mineradores, que se acostumaram às medições, demarcações e hastas públicas realizadas pela Administração, bem como ao combate que ela promoveu contra as invasões de lotes minerais e irregularidades nos arrendamentos e concessões. Grandes mineradores, garimpeiros e faiscadores aprenderam a lidar com a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos e tentaram influir sobre suas decisões. Os grandes mineradores e comerciantes de diamante apossaram-se de muitos cargos na repartição e, com isso, obtiveram preferência nas concessões de novas áreas e apoio na formação de sociedades mineradoras. Contudo, a Administração Geral dos Terrenos Diamantinos não foi de todo insensível aos interesses de garimpeiros e faiscadores. Ajustando a legislação à realidade regional, permitiu aos faiscadores minerar em terras devolutas e adotou procedimentos que contribuíram para reduzir custos que pesavam sobre os pequenos mineradores. Nesse sentido, é preciso abandonar o lugar comum historiográfico que insiste na caracterização do aparelho estatal presente em Minas Gerais como ineficiente, inoperante e, sobretudo, inacessível aos de “baixo”. Ao contrário, o exame da atuação da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos traz elementos que autorizam pensar esta instância governativa como campo privilegiado do processo de negociação da ordem, no qual atores sociais diversos buscaram o reconhecimento e a efetivação de seus direitos. 144 Anexo 1 – Grandes mineradores do município do Serro (1865-1869) Local Ano Mineradores Imposto (R$) Córrego dos Ausentes 1866 Aureliano Augusto Leão Capivari 1866 Nicolau Teixeira de Araújo 43 mil Brogodões (rio do Peixe) 1868 Joaquim Carlos de Abreu, Dr. José Joaquim Ferreira Rabello, João José Simões, Henrique Carlos de Vasconcellos Lessa, Modesto Correia de Almeida e José Feliciano Correia da Almeida 35 mil Córrego Cadete (rio do Peixe) 1866 Major José Ávila Bittencourt Córrego Água Quente 1868 Firmiano Corrêa de Souza 30 mil Rio Capivari 1868 Joaquim Pereira de Assumpção 30 mil 56,6 mil 31,9 mil Córrego Duas Pontes 1868 Brumado (Descoberto) 1868 Joaquim Carlos de Abreu, dr. José Joaquim Ferreira Rabello, dr. Bernardino José Pereira de Queirós, Joaquim Antônio de Souza, Serafim Alves Pinheiro Vigário Agostinho Francisco Paraíso Córrego Bernardino 1869 Antônio Raimundo da Costa 30 mil Córrego Riacho (Pedra Redonda) 1868 Luiz Ferreira dos Santos, Luciano Jorge de Souza 30 mil Córrego Santana (Pedra Redonda) 1868 Luiz Ferreira dos Santos, Luciano Jorge de Souza 30 mil Córrego Malheiro 1868 Córrego São João 1869 Córrego Pai Félix 1869 Córrego Gales 1869 Pedro Vieira Pinto Joaquim Rodrigues de Loyola (confluente rio do Peixe) Francisco de Paula Araújo (confluente do Capivari) José Libânio Horta Massangano 1866 João Jacomeny 30 mil Rio do Peixe 1867 Pedro Generoso de Almeida e Silva 30 mil Córrego Retiro (Cafundós) 1864 José Ferreira 30 mil Córrego Sumidouro 1868 Manuel Francisco Lopes (Pedra Redonda) 30 mil Capivari Pequeno 1868 Serafim Ribeiro Caldas 30 mil Córrego Prata Grande 1868 José Pedro Lessa 30 mil Córrego Retiro e Ribeirão São Bartolomeu 1869 José Pedro Lessa 30 mil Córrego Mandiocal 1868 Córrego São Gonçalo 1865 Paulo Fernando Leão, Pedro Barreto Lima, Torquato Pinheiro Neves Capitão João Raimundo Mourão Rio do Peixe 1866 Dario Clementino da Silva 20 mil Acabasaco 1866 Francisco José de Souza 20 mil Córrego São Gonçalo 1867 Francisca Tereza d’Aguiar Souza 20 mil Rio do Peixe 1867 Dr. José Joaquim Ferreira Rabello 19 mil Rio do Peixe (Caeté) 1866 Francisco José Simões 20 mil 30 mil 30 mil 30 mil 30 mil 30 mil 30 mil 30 mil 20 mil Fonte: Livro de Termos de Contrato e Arrendamento de Lotes (Serro, 1865-69). TD-08. APM. 145 Anexo 2 – Ocupantes de cargos da Administração Diamantina (1860-1889) Cargos na sede da Adminstração (Diamantina) Período Inspetor geral Nicolau Antônio Tassara de Pádua Vicente José de Figueiredo João Evangelista Caldeira José Ferreira de Andrade Brant João Evangelista Caldeira 1860-1871 1871-1878 1878-1883 1883-1889 1889 Substituto do inspetor geral Major Roberto Alves Ferreira Taioba Manoel Ricardo Pires Camargo Ragosino Alves Ferreira 1860-1871 1884 1885 Procurador fiscal Manoel Severo Pires de Figueiredo Neto Advogado João Raimundo Mourão João Sebastião Roiz Bago Francisco Diogo de Araújo Tameirão Major Henrique José Afonso Fernandes Até 1878 1878-1880 1880-1882 1882-1885 1885-1887 Substituto do procurador fiscal Advogado Clementino Rabello de Campos Advogado João Raimundo Mourão Bernardino da Cunha Ferreira 1876 1884 1886 Secretário Elizeu Augusto de Assis Jardim Justiniano Luiz de Miranda Jr. João Batista de Mello Brandão Justiniano Luiz de Miranda Jr. 1860-1882 1882-1885 1885-1889 1889 Engenheiro Antônio Joaquim da Fonseca Francisco de Paula e Sousa Matos Joaquim Gonçalves Pimentel Tenente Antônio Joaquim da Fonseca Antônio Getúlio dos Santos 1875-1878 1878-1882 1882-1885 1885-1889 1889 Porteiro Possidônio da Costa 1871-1889 146 Continuação do Anexo 2 Cargos na Delegacia do Serro Período Delegado do inspetor geral Clarindo Ferreira Campos Advogado Antônio Caetano de Ávila e Silva Ângelo Martins Caldeira 1871-1878 1873-1887 1887-1889 Substituto do delegado Bento Ferreira Carneiro Antônio Cassemiro de Ávila Teodoro Generoso de Almeida e Silva 1871 1883-1886 1886 Agente do procurador fiscal Joaquim de Cássia e Souza Pedro da Cunha Ferreira Rabello Carlos Henrique de Siqueira Ayala Pedro da Cunha Ferreira Rabello 1871 1881 1883-1885 1885 Fonte: Matrícula dos empregados da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos. TD-05. APM. Referências bibliográficas Fontes manuscritas Arquivo Público Mineiro. Livro de Registro de lotes arrendados e dos arrendatários no município de Diamantina, 1875-1890. FP-107. Arquivo Público Mineiro. Livro de Registro dos Ofícios expedidos pela Administração Diamantina, 1855-1886. TD-04. Arquivo Público Mineiro. Livro de Matrícula dos empregados da Administração Geral dos Terrenos Diamantinos. TD-05. Arquivo Público Mineiro. Livro de Matrícula dos lotes arrendados. Administração Geral dos Terrenos Diamantinos, 1861-1867. TD-06. Arquivo Público Mineiro. Livro de Registros da Delegacia de Administração dos Terrenos Diamantinos do Serro, 1869-1908. TD-10. 147 Fontes impressas MARTINS, Antônio de Assis. Almanak administrativo, civil e industrial da Província de Minas Gerais do ano de 1869 para servir no de 1870, organizado e redigido em virtude da Lei Provincial n. 1447 do 1o de janeiro de 1868. Rio de Janeiro: Typographia do Diário do Rio de Janeiro, 1870. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2006. 2v. Bibliografia ARNO, Ciro. Memórias de um estudante, 1885-1906. 2. ed. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1949. BURTON, Richard F. Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico. Trad. David Jardim Junior. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977. CATHARINO, José Martins. Garimpo, garimpeiro, garimpagem. Rio de Janeiro: Philobiblion; Salvador: Fundação Econômica Miguel Calmon, 1986. COUTO, Soter. Vultos e fatos de Diamantina. 2. ed. Belo Horizonte: Armazém de Ideias, 2002. ESCHWEGE, Wilhelm L. von. Pluto Brasiliensis. Trad. Domício de Figueiredo Murta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 6. ed. Porto Alegre: Globo, 1984. 2v. FERREIRA, Rodrigo de Almeida. O descaminho de diamantes – relações de poder e sociabilidade na demarcação diamantina no período dos contratos (1740-1771). 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Será ressaltado o caso do comércio de gado e de cereais a partir de periódicos locais, mensagens de governos do estado, dados de embarque na Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e atas de câmaras municipais. Palavras-chave Minas Gerais – intermediação comercial – Primeira República. 1 Bolsista CNPq. Membro do Núcleo de Pesquisa Hermes e Clio, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e do grupo de pesquisas Formações Econômicas regionais, Integração de Mercados e Sistemas de Transportes. Orientador do doutorado: prof. dr. José Flávio Motta. 151 BETWEEN SÃO PAULO AND THE INTERIOR: THE MINING INTERMEDIATION OF TRADE IN GOIÁS IN THE EARLY TWENTIETH CENTURY Paulo Roberto de Oliveira Contact Rua José Urbano, n. 170 – Bloco B 1 – apto. 73 14091-190 – Ribeirão Preto – São Paulo E-mail: [email protected] Doctorate Student of Economic History at Universidade de São Paulo Abstract In this paper, it will be investigated the role played by Minas Gerais as an intermediary place in the commerce among Brazil’s central areas, the state of São Paulo and the world’s market. It will be emphasized the specific case of cattle and grain trades, analyzed from some sources as Brazilian local newspapers, reports provided by federative states’ governments, embarkation data regarding the Mogiana Railroad Company and the records done by some Brazilian town councils. Keywords Minas Gerais – trade intermediation – Brazilian First Republic. 152 1. Uma visão panorâmica sobre a economia paulista e o seu setor externo De acordo com a quase totalidade dos trabalhos que se debruçam sobre o estado de São Paulo na Primeira República, a principal preocupação da elite paulista era o café. Esta afirmação, apesar de retratar de maneira quase fiel o quadro de que tratamos, mascara um dos problemas a serem considerados por quem se dedica à questão. Temos que considerar a “elite paulista” daquele período não como um bloco imutável, mas, sim, como resultado da união de vários grupos político-econômicos que se articulavam ou se distanciavam de acordo com os interesses momentâneos. Mesmo sendo o café o produto principal ao redor do qual se moviam os principais interesses do estado, existiam comerciantes, agricultores produtores de alimentos, grupos ligados ao setor de transporte etc., que não se submetiam automaticamente ao controle de uma fração que diversificou os seus interesses a partir do café. Para que possamos compreender mais claramente a questão, basta retomar as complexas definições do “capital cafeeiro”. O primeiro autor a desenvolver a ideia de capital cafeeiro foi Sérgio Silva em: Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. Entendia a elite paulista como fracionada, formada por interesses e grupos que se articulavam em torno da atividade principal, o café. Mais tarde, o conceito foi retomado e desenvolvido por João Manuel Cardoso de Mello e Renato Perissinotto.2 Considerando esta discussão, admitindo e concordando com a preponderância do café, é necessário afirmar que, mesmo dentro das fronteiras paulistas, havia interesses diversos. Havia interesses ligados a setores de transportes, interesses político-estratégicos, além de interesses econômicos. Paulo Roberto Cimó Queiróz, em sua tese de doutoramento, mais tarde transformada em livro, investigou a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Ferrovia federal, partia de Bauru e seguia até Mato Grosso. No trecho paulista, como demonstra o autor, a Noroeste conseguiu incentivar a ocupação e o maior aproveitamento econômico das áreas da região noroeste de São Paulo. Já em Mato Grosso, o efeito não foi sentido com maior intensidade, pelo 2 PERISSINOTO, Renato Monseff. Estado e capital cafeeiro em São Paulo (1889 – 1930). Tomo 1. São Paulo: Fapesp; Campinas, São Paulo: Unicamp, 1999. 153 menos em relação ao avanço da agricultura – o que em parte se deve, para Cimó Queiróz, à estrutura agrária predominante.3 Dois pontos desenvolvidos pelo autor jogam luzes sobre o assunto que tratamos aqui. Em primeiro lugar, ao tratar do tráfego da EFNB,4 Cimó Queiróz encontrou uma significativa movimentação de gado que, de Mato Grosso, partia para o estado de São Paulo. Em segundo lugar, enfatizou o sentido político-estratégico desta via de comunicação. O trabalho detectou um circuito comercial relevante que, junto com o goiano, possuiu grande importância para a economia paulista. Mas como este movimento foi registrado? As fontes oficiais que deveriam tratar desses circuitos paulistas voltados para o interior pouco trazem. Os relatórios das secretarias concentram-se no comércio externo de São Paulo (com o mercado internacional) e, quando tratam do comércio interno, focalizam principalmente as entradas do café vindo de Minas Gerais e Paraná, além do café exportado por meio da Estrada de Ferro Central do Brasil. São as fontes de caráter mais geral e pouco quantitativo que trazem as informações sobre o comércio interestadual de outros bens, como gado e cereais. As mensagens dos presidentes das províncias de São Paulo e Goiás possuem dados importantes sobre a questão. Ao que parece, esse silêncio de alguns grupos de fontes, conjugado com uma opção teórica que privilegia as ligações externas da economia brasileira, foi responsável pelo fato das grandes sínteses feitas a partir da análise da economia paulista terem dado pouca relevância a este comércio voltado para o interior, o qual, em seu conjunto, pode ter alcançado grandes proporções e ter tido importância mais do que pontual. Wilson Cano passou por essa questão, entendendo o estado de São Paulo como um complexo econômico que se articulava pelo café, capaz de criar soluções para as suas principais necessidades. Daí a ideia de diversificação, marcante em grande parte da produção acadêmica paulista. Uma leitura atenta de Cano revela que, apesar de uma economia diversificada, São Paulo não se tornou uma ilha. Persistiram, segundo Cano, relações com o restante do Brasil, com importância pontual em alguns momentos, como durante a Primeira Guerra Mundial.5 Entendemos que a importância foi mais que pontual. 3 4 5 QUEIRÓZ, Paulo Roberto Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: A E. F. Noroeste do Brasil na primeira metade do século XX. Bauru, SP: Edusc; Campo Grande, MS: UFMS, 2004. Abreviação para Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. CANO, Wilson. As raízes da concentração industrial em São Paulo. Rio de Janeiro: Difel, 1997. 154 Trabalhos que analisam a economia do estado de São Paulo, muitos de grande qualidade, como o de Rogério Naques Faleiros, parecem reafirmar a autonomia paulista no que se refere à produção de alimentos. Ao analisar os regimes de trabalho no estado de São Paulo, o autor nota uma significativa produção deste item. A possibilidade de plantar outros produtos que não o café era um dos maiores atrativos para a fixação da mão-de-obra, segundo Faleiros.6 Estes trabalhos não invalidam o nosso. Como já sabemos e conseguimos comprovar por meio do testemunho de diferentes agentes históricos, o comércio entre São Paulo e Goiás existiu. Falta agora quantificá-lo e entender as redes que o compunham. 2. O Triângulo Mineiro e a intermediação mineira do comércio goiano Apesar de raramente quantificado, o comércio intermediado pelo Triângulo Mineiro e pelo centro comercial de Uberaba é citado por grande parte dos trabalhos que analisam a região até a primeira metade do século XX. Após isso, Uberaba perdeu sua posição privilegiada para Uberlândia. Podemos nos guiar pelas palavras de Hidelbrando Pontes para entender a perda da posição predominante por Uberaba: Uberaba era, até bem pouco, a praça comercial intermediária entre as grandes praças do Rio de Janeiro, São Paulo e Santos e as suas pequenas praças do interior, quer no Triângulo Mineiro, quer em Mato Grosso e em Goiás. As pequenas praças do Triângulo, algumas do sul de Goiás, e uma pequena parte do Mato Grosso faziam diretamente suas compras nesta cidade. (...) De modo que assim havia duas classes de comerciantes – uns fixos, que tinham suas transações nesta praça, e outros ambulantes, que tinham suas atividades nos centros de atividade pastoril sertaneja. Hoje, em virtude dos prolongamentos da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, no Sul de Mato Grosso e Estrada de Ferro Goiás, no estado deste nome, e os transportes em todos os sentidos pelo automóvel, Uberaba restringiu o seu comércio a este município apenas, exceto a parte sudoeste que se abastece das praças de Bebedouro e Barretos, Estado de São Paulo, para onde, igualmente, se desviaram todos os boiadeiros.7 Desde o início do século XIX, a cidade de Uberaba se colocou como o grande intermediário do comércio com os “sertões”. Era privilegiada pela sua 6 7 FALEIROS, Rogério Naques. Fronteiras do café: Fazendeiros e colonos no interior paulista (1917-1937). Bauru-SP: Edusc; Fapesp, 2010. PONTES, Hidelbrando. História de Uberaba e a civilização no Brasil central. Uberaba: Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1970, p. 382. 155 posição estratégica como cidade cortada por importantes vias de comunicação – entre elas a estrada de Goiás, ou estrada do Anhanguera. Em 1725, sete anos após a descoberta das minas de Cuiabá, uma bandeira paulista liderada por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, seguiu rumo à região do atual estado de Goiás, em busca dos sinais de ouro que o líder havia visto quando criança, no momento em que participava de expedição junto com seu pai. Com a descoberta das minas goianas por ele, a estrada do Anhanguera passou a ser percorrida por pessoas que iam e vinham das minas. Às suas margens formaram-se pousos, plantações, criações de gado e centros comerciais e de passagem importantes, como é o caso de Uberaba e Franca. Segundo Lucila Reis Brioschi, a estrada de Goiás se tornou a principal via de penetração a partir de São Paulo, sendo responsável por um importante movimento de ocupação no sentido sul – norte.8 No início do período republicano, encontramos a cidade de Uberaba passando por um novo momento de expansão comercial devido ao avanço da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Podemos ter uma ideia deste movimento por meio das tabelas seguintes:9 8 9 BRIOSCHI, Lucila Reis. Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas, 1999. OLIVEIRA, Paulo Roberto de. Entre rios e trilhos: as possibilidades de integração econômica de Goiás na Primeira República: 1889 – 1930. Dissertação de mestrado, História, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2007. 156 Tabela 1: Tráfego de mercadorias na estação da Companhia Mogiana em Uberaba 1890 Importações (toneladas) 3.323,24 Exportações (toneladas) 207,79 1891 4.573,17 395,37 1892 5.944,38 990,316 1893 10.754,55 740,42 1894 7.069,51 1.061,46 Ano 1895 8.908,3 729,30 1896 7.164,62 334,16 1897 6.030,28 1.909,29 1898 5.210,52 2.020,84 1899 5.744,46 2.705,94 1900 5.329,77 2.637,21 1901 5.224,48 2.951,31 1902 4.998,66 2.873,67 1903 4.430,75 2.133,61 1904 4.319,09 2.440,44 1905 4.955,33 2.607,78 Fonte: Relatórios para aprovação na Assembleia Geral da Companhia Mogiana 1890 – 1906. Tabela 2: Tráfego de mercadorias na estação da Companhia Mogiana em Uberaba Ano Animais (cabeças) Sal (toneladas) Café (toneladas) Alimentícios (toneladas) Diversos (toneladas) 1890 1.211 1.825,82 117,93 ----------- 1.476,54 1891 1.155 2.649,34 158,45 154,38 1.719,93 1892 1.311 3.315,83 143,93 472,18 2.297,93 1893 4.234 6.391,50 433,62 93,69 4.259,26 1894 3.751 2.667,64 327,84 111,30 4.284,40 1895 1.047 4.320,65 372,26 130,33 3.704,55 1896 118 4.526,14 62,83 639,32 3.704,55 1897 70 3.771,77 65,69 784,39 3.203,54 1898 418 2.757,36 348,44 1.142,97 2.694,33 1899 742 3.323,78 230,54 1.218,62 3.251,79 1900 339 3.074,08 94,84 824,47 3.665,20 1901 264 2.405,72 158,57 951,50 4.449,85 1902 573 2.503,43 80,70 804,29 4.123,45 1903 437 2.193,99 107,65 921,07 3.091,77 1904 486 1.949,30 188,73 832,98 3.449,38 1905 748 1.929,43 175,86 1.031,06 4.082,99 Fonte: Relatórios para aprovação na Assembleia Geral da Companhia Mogiana 1890 – 1906.9 157 As datas de 1890 a 1895 referem-se aos anos em que Uberaba permaneceu como ponta dos trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. É um período importante para a análise da cidade, já que, como ponto final dos trilhos, as suas funções comerciais de entreposto ganharam maiores dimensões. Além dos produtos vindos de Goiás e Mato Grosso, também devemos considerar que parte do que era exportado e importado satisfazia necessidades do próprio mercado uberabense. Mas como podemos distinguir o que era produzido localmente do que era atraído para a cidade? São necessários alguns esclarecimentos antes de avançarmos na análise. As fontes da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro não fazem distinção entre importações e exportações. Por isso, o que temos é o tráfego total para cada produto em cada uma das estações. Sendo assim, há a necessidade de utilização da bibliografia e do auxílio de outras fontes para esclarecer as questões sobre o que era importado e o que era exportado. Além disso, não é discriminado o item gado, mas, sim, animais. Não parece haver problemas neste ponto, pois a quase totalidade dos embarques neste item era composta pelo gado. Também não há problema na afirmação de que o gado era produto de exportação e não de importação. Analisando os dados acima, é fácil notar o declínio da exportação de gado quando Uberaba deixa de ser o ponto avançado da CMEF.10 Portanto, o gado que era exportado por Uberaba não era proveniente da própria região. Grande parte poderia ser oriunda de Goiás. Mesmo antes do período em tela, é possível notar a passagem de produtos goianos pelo Triângulo Mineiro. Antes do aumento do poder de atração exercido por São Paulo, as mercadorias que desciam de Goiás – principalmente o gado – passavam pela região em demanda ao mercado do Rio de Janeiro. Alcir Lenharo11 detecta esse comércio, que cruzava Minas Gerais e chegava até o atual Centro-Oeste, principalmente a partir da instalação da Corte no Rio de Janeiro em 1808; durante grande parte do século XIX, era um comércio realizado principalmente por negociantes de São João Del Rei que, além de concentrar a função de intermediação comercial, desenvolveu outras, como a de centro financeiro.12 Em meados do mesmo século, a passagem de gado por Uberaba aumentou: da média de 250 cabeças em 1850 10 11 12 Abreviatura para Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil 1808 – 1842. São Paulo: Símbolos, 1979. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João Del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume; São João Del Rei: UFSJ, Funtir, 2002. 158 – 1853, constatou-se aumento para 1.400 em 1853 – 55 e 2.500 em 1855 – 57. Nestes números estavam incluídas, segundo Restituti, boiadas provenientes do sul de Goiás e do Mato Grosso. Parte do gado tido como mineiro era goiano, apesar da impossibilidade de distinção.13 Por meio das Atas da Câmara Municipal é possível acompanhar com maior profundidade a passagem de circuitos comerciais por Uberaba, observando o seu aparecimento direto e seus desdobramentos para o centro urbano. São documentos que não tratam principalmente do comércio, mas de variados aspectos ligados a cidade e suas imediações. Como já ficou claro, o trabalho proposto, ao tentar traçar um panorama das relações comerciais, busca entender as mesmas de maneira complexa. O comércio e seus desdobramentos podem se manifestar em diferentes aspectos da vida de um centro urbano, como veremos para o caso de Uberaba. Sendo esta uma cidade privilegiada, de localização estratégica entre diferentes regiões, podemos entender que a intensidade de sua expansão em muito se deve ao comércio que por ali passava, em grande parte vindo de Goiás. Aí está a importância da análise que se segue para o nosso trabalho. A leitura das atas no início do período republicano nos apresenta uma cidade em expansão, tendo que lidar com os problemas consequentes. Há a preocupação com as melhorias das condições locais, com o estabelecimento da iluminação pública e particular, além das tentativas frequentes de melhoria das condições de higiene, por meio da construção de um novo mercado municipal e de um novo cemitério. Mesmo com a aproximação e com a chegada dos trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, os dirigentes de Uberaba não se descuidavam dos demais circuitos de comércio, formados por caminhos de terra. Em 1887, é possível encontrar discussões relativas à manutenção de uma ponte para São Miguel da Ponte Nova, na Zona da Mata mineira, local que, segundo os vereadores, era responsável por um terço do comércio uberabense. Neste 13 RESTITUTI, Cristiano Corte. As fronteiras da província: rotas de comércio interprovincial, Minas Gerais, 1839 – 1884. Dissertação de mestrado, Economia, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Unesp, 2006. Infelizmente, os dados de Restituti não alcançam o nosso período e, por isso, não auxiliam no dimensionamento das exportações de gado goiano para o momento de que nos ocupamos. Auxilia, contudo, de maneira importante, a entender a existência de um comércio de gado que ocorria de Goiás para o Rio de Janeiro antes que São Paulo passasse a drenar o gado de Goiás e Mato Grosso, principalmente na última década do século XIX e primeiras do século XX. 159 mesmo ano, a reconstrução da ponte para Ponte Nova foi aprovada pela Câmara e foi pedida urgência para os trabalhos.14 Apesar do pedido de urgência, os reparos, talvez por falta de verbas, não foram iniciados prontamente. Tanto que, em sessão posterior, foi lido requerimento do comércio pedindo que fossem realizados. O orçamento aprovado para a reconstrução da ponte foi de três mil contos de réis, quantia que posteriormente se mostrou insuficiente.15 Outro caminho que mereceu atenção das autoridades uberabenses foi aquele que, passando pelo rio Uberaba, ia até Goiás: na sessão de 13 de novembro de 1897, iniciou-se uma disputa entre a Câmara Municipal e Antônio Borges de Araújo. Na data, foi lido um requerimento solicitando que Borges de Araújo desfizesse os obstáculos que havia colocado na estrada no trecho que cruzava a sua propriedade. Era citado no requerimento que esta obstrução não prejudicava somente os comerciantes locais, mas também prejudicava a passagem das boiadas vindas de Goiás. A estrada era considerada pública. A disputa se estendeu durante os anos seguintes. Quando agentes municipais eram escalados para resolver a questão e desobstruir o caminho, negavam-se a fazê-lo. No início de janeiro de 1888, o parecer da comissão da Câmara sobre o fechamento do caminho afirmava que ele permitia que as boiadas vindas de Goiás desviassem do núcleo urbano. Sendo fechada a estrada, os animais teriam que passar pela cidade.16 Em setembro de 1888, a ponte sobre o rio Claro, no caminho para São Miguel da Ponte Nova foi reaberta. Persistia, contudo, o problema do caminho fechado por Antonio Borges de Araújo. Foi apresentada uma petição pelo fazendeiro que recorria da decisão que o mandava desobstruir o caminho para Goiás. A Câmara Municipal na ocasião respondeu à petição afirmando que o caminho de mais de cem anos era de servidão pública e que, caso continuasse fechado, todo o gado vindo do interior em direção a Passos teria que passar por dentro da cidade e causaria grandes inconvenientes.17 Em outubro deste mesmo ano, o governo provincial manifestou-se sobre a estrada fechada. O presidente da Província recomendou à Câma- 14 15 16 17 Atas da Câmara Municipal de Uberaba, 9 de agosto de 1887. A partir de agora, as Atas da Câmara Municipal de Uberaba serão abreviadas como ACMU. ACMU, 13 de novembro de 1887. ACMU, 19 de janeiro de 1888. ACMU, 15 de setembro de 1888. 160 ra Municipal que suspendesse qualquer trabalho que porventura houvesse mandado fazer para a desobstrução da estrada. O assunto ficaria suspenso até futura deliberação.18 A questão do comércio com Goiás reapareceu mais tarde, desta vez ligada a uma ponte sobre o rio Uberaba. O vereador José Bernardino apresentou proposta para que se empreendessem com urgência os reparos nas pontes sobre o rio, uma no caminho para São Pedro de Uberabinha (futura Uberlândia) e outra na estrada para Caiassu. Dizia que era desnecessário defender a importância destes reparos, já que por estas estradas passavam todas as carroças e tropas que do Triângulo Mineiro, estado de Goiás e parte do Mato Grosso iam a Uberaba fazer suas transações.19 Em 23 de outubro, ainda em 1893, este papel de Uberaba como posto de passagem do gado do interior foi mais uma vez ressaltado pela administração municipal. Na data, foi convocada uma sessão extraordinária para que fosse aprovado o envio de solicitação ao governo mineiro, com a intenção de que fosse ali estabelecida uma feira de gado. Era estimado que passavam pela cidade mais de oitenta mil reses por ano, importando uma quantia de seis mil contos de réis em média. Como argumento, também era destacado o importante comércio com São Paulo. As feiras de gado mereceram, durante o período pesquisado, uma grande atenção do governo estadual. Eram pontos privilegiados para o comércio de gado, mesmo não alcançando parte do seu objetivo, por não servirem a todo o estado. Por exemplo, grande parte do gado com destino aos estados de São Paulo e da Bahia escapavam das feiras. Em 1898, com a necessidade de construção de nova estrada para Goiás, a Câmara Municipal aceitou a oferta, feita pelo comércio local, de empréstimo para a concretização do projeto. Mais uma vez ficou claro o interesse local na manutenção e expansão dos negócios com Goiás.20 Percebemos que Uberaba constituía um entroncamento comercial, tendo ligações com Frutal, Passos, Sacramento, São Paulo, Rio de Janeiro, além de Goiás e Mato Grosso. Ao que parece, grande parte dos circuitos de comércio importantes que saíam do atual Centro-Oeste passavam por lá. Com a chegada da ferrovia, na penúltima década do século, o papel de Uberaba como intermediadora comercial potencializou-se. Daí os esforços dos 18 19 20 ACMU, 7 de outubro de 1888. ACMU, 6 de novembro de 1893. ACMU, 7 de julho de 1898. 161 administradores locais para mudar a cara da cidade, tentando apresentá-la como um centro de “civilização” e “progresso”. Havia preocupação com a sistematização do calçamento da cidade, principalmente nas ruas comerciais, com a saúde pública, com a construção de lazareto, com o recolhimento de animais mortos pelas ruas da cidade e com a fiscalização da utilização dos regos d’água.21 Apesar das tentativas, no início do século XX, a cidade ainda não havia alcançado as condições perseguidas pelos seus dirigentes. Exemplo disso foi uma discussão ocorrida na Câmara Municipal acerca de um prêmio que seria oferecido para um clube uberabense pela melhoria das raças de cavalos. O voto em separado de Alexandre Campos contra a proposta do prêmio foi justificado pela necessidade do município em atender a serviços públicos prementes que não eram atendidos pela escassez de verbas. Dizia que faltava água encanada, rede de esgoto, que as estradas eram péssimas e que as ruas estavam estragadas; faltavam condições que as cidades “inferiores” a Uberaba possuíam. Interessante que nenhuma voz se levantou contra os argumentos do vereador, apesar de não seguirem o seu voto contra o projeto que, sessões depois, acabou aprovado.22 O voto de Alexandre Campos não demonstra somente que havia diferentes interesses dentro da representação municipal, como não é de se estranhar. Mais do que isso, deixa a mostra as dificuldades do erário público, mesmo sendo a cidade um importante entreposto comercial, servido pelos trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Além disso, como diz João Carlos de Souza para o caso de Cuiabá, mais do que a cidade regulamentada pela aplicação de códigos também existia a cidade vivida. E esta fugia à cobrança de impostos e à imposição de normas; interpretava a sua maneira os ímpetos modernizadores consequentes da sua posição como importante entreposto comercial. A persistência de animais mortos nas ruas da cidade mineira, mais do que a ineficaz ação do agente público responsável por recolhê-los, traduzia a cultura persistente de livrar-se do que não era útil na rua. 21 22 Daniel Roche analisa como a água, em certo momento, passou a ser considerada um bem público. Como na Europa, o crescimento das cidades no Brasil também tornou necessária a criação de uma nova cultura, de uma nova maneira de lidar com a água que tornasse possível a sua utilização pela coletividade. Roche conta a história de uma aldeia francesa, aonde a água encanada chegou por volta de 1970. Uma das velhas moradoras, frente ao novo sistema, manteve a sua torneira aberta, desperdiçando um bem que se tornava raro e coletivo. ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo sec. XVII – XIX. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 183. ACMU, 9 de maio de 1902. 162 Houve uma série de mudanças na cobrança de impostos municipais, no sentido da regulamentação e do avanço da administração sobre os comerciantes. No início do século XX, foram suspensos os impostos municipais sobre a exportação e a importação pela ferrovia. Certamente, esta ação visava manter ou aumentar a quantidade de mercadorias que convergiam para a cidade; os comerciantes procurariam importar e exportar pagando o mínimo possível. As autoridades municipais tinham que se mover entre a necessidade de incentivar o comércio e o imperativo de aumentar a arrecadação para manter os serviços básicos na cidade que buscava se afirmar como a mais importante da região. Tarefa difícil, já que, como vimos nos quadros apresentados, a simples extensão da ferrovia retirou parte das transações comerciais de Uberaba a partir de 1895. Não é novidade a dificuldade de arrecadação de impostos e o contrabando que perpassam diferentes casos na história. Em Uberaba não era diferente. Nos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, foram recorrentes as reclamações contra os agentes municipais que deixavam de registrar o movimento comercial e de cobrar os impostos devidos. A população que passava pela cidade e os próprios residentes resistiam à cobrança de impostos não só por meio do contrabando, mas também pelo questionamento junto à Câmara Municipal.23 Constam várias reclamações relativas à classificação errônea dos contribuintes. Cada profissão pagava o seu próprio imposto e muitos tentavam ser enquadrados em profissões que pagavam menos.24 A estrada do Anhanguera – por terra ou trilhos – era um dos caminhos possíveis para os produtos que desciam de Mato Grosso e Goiás com destino aos mercados consumidores. Há a necessidade, para melhor entender este comércio, de aumentarmos o quadro de observação, incorporando o papel 23 24 Pelo trabalho de Restituti citado podemos acompanhar como a diferença na cobrança de impostos em certas regiões poderia influenciar os caminhos do comércio. Além disso, o autor nota que os dados oficiais subestimam os números de exportação, já que os comerciantes, em muitos casos, faziam o possível para fugir à fiscalização. Em sua reflexão sobre a palavra capitalista, Fernand Braudel percebe que, a partir do século XVIII, “capitalista” passa a carregar o sentido de possuidor de “títulos públicos, de valores mobiliários ou dinheiro líquido para investir”; até o final do século XVIII, na Europa, a palavra carregava ainda um sentido pejorativo, distinguindo aquele que possui capital, que o empresta, mas que não o torna produtivo. Não era o empresário. Em Uberaba, no final do século XIX e início do XX, a palavra capitalista era ligada ainda àquele que possuía dinheiro e o emprestava a juros. Pela maneira como as pessoas fugiram desta rubrica, devia ser uma das profissões que mais pagavam impostos. Ver: BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV – XVIII. Os jogos das trocas. Trad. Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 163 do estado de Minas Gerais, para que possamos entender como esses circuitos se desenvolveram durante o período. As principais fontes para esta investigação são as mensagens dos presidentes do Estado. 3. Aumentando o enquadramento: o papel do estado de Minas Gerais na intermediação do comércio dos “sertões” Durante as primeiras décadas do regime republicano, os administradores do estado de Minas Gerais depararam-se com a necessidade de aumento da produção interna e de estabelecimento de meios de comunicação que, auxiliando nesse sentido, tornassem as ligações mais estreitas com os mercados consumidores.25 No Relatório de 1891, apresentado pelo ex-presidente do estado ao presidente eleito José Cesário Alvim, já estava uma das maiores preocupações que apareceriam nos anos seguintes. Com suas grandes dimensões, Minas Gerais se deparava com a insuficiência de fiscais que garantissem a arrecadação dos impostos devidos nas diferentes regiões. A mensagem do mesmo ano, desta vez apresentada por Cerqueira César já no cargo de presidente do Estado, possui indicações sobre como se encontrava o mercado interno mineiro. A indústria agrícola era precária; havia carestia em algumas regiões do estado, como as próximas ao município de Passos. Também faltavam estradas que chegassem aos diferentes recantos de Minas.26 Numa primeira análise, as mensagens nos levam ao entendimento de certas relações comerciais “preferenciais” entre os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Enquanto o estado de Goiás, na falta de uma junta comercial, poderia reportar-se à Junta Comercial de São Paulo, Minas Gerais, no momento em que ainda não havia estabelecido a sua própria, reportava-se à Junta Comercial da capital federal. Essa situação, apesar de sintomática, durou pouco. Em 1893, a mensagem trazia a premente necessidade de criação de uma junta comercial própria.27 25 26 27 Trabalhos já citados neste artigo tratam da economia de Minas Gerais após o período da mineração e demonstram o dinamismo da economia regional, voltada não só para a intermediação comercial, mas com grande capacidade de produção de uma série de itens voltados tanto para o mercado local – interno a Minas Gerais – quanto aos mercados exteriores à província, como a cidade do Rio de Janeiro. Mensagem apresentada ao Congresso Mineiro pelo presidente de Estado, 1892, p. 14-17, a partir de agora abreviadas como MPEMG. MPEMG, 1893, p. 18. 164 Na mesma mensagem, algumas linhas são dedicadas à arrecadação de impostos mineiros feita por meio da Alfândega Federal, localizada no Rio de Janeiro. Podemos nos perguntar sobre a preocupação com a arrecadação de impostos sobre as mercadorias exportadas por São Paulo. Até a metade da segunda década do século XX, ela não aparece. Quanto ao comércio interno, Minas Gerais enfrentava as dificuldades de manutenção e aumento da estrutura de transportes. Uma quantia significativa era gasta anualmente com a manutenção de pontes e estradas, além da garantia de juros com as ferrovias. Grande parte deste trabalho de manutenção das estradas e pontes era prejudicada pela falta de clareza legal sobre as responsabilidades dos municípios e do estado. Em momentos de crise, essa discussão ganhava maior relevância, como percebemos na mensagem de 1902. Nela aparece uma interessante reflexão sobre o setor de transportes no estado, tratando das regiões leste e norte: Enquanto as regiões sul e oeste, embora de modo insuficiente relativamente à sua extensão e importância, vão se desenvolvendo graças às vias férreas que as percorrem do norte a leste, deixando de parte a Estrada de Ferro Bahia Minas e uma pequena porção da Leopoldina, estão completamente privadas do importante melhoramento (as regiões leste e norte), tendo apenas algumas estradas ordinárias, não poucas vezes intransitáveis.28 Mesmo com a importância das estradas de terra e com a possibilidade de utilização da navegação fluvial, em muitos momentos ocorria uma supervalorização da ferrovia. Só ela seria capaz de aproveitar toda a riqueza mineira que, segundo as mensagens, não poderia ser transportada por meios “bárbaros e coloniais”. Até a segunda década do século XX, o gado era o segundo principal produto mineiro, perdendo somente para o café. Em 1898, os produtores reclamavam da condição de monopólio exercida pelo mercado do Rio de Janeiro em relação ao seu produto. Pediam que o governo estadual agisse para minimizar os efeitos prejudiciais desta prática sobre o preço do gado mineiro.29 Para aumentar a arrecadação de impostos e melhorar as condições da indústria pastoril, era necessário que se incentivasse a formação de matadouros dentro dos limites do estado. Não era, contudo, somente a carne que figurava entre os importantes produtos exportados por Minas Gerais. Também os derivados da indústria pastoril possuíam grande importância. 28 29 MPEMG, 1902, p. 29. MPEMG, 1898, p. 14. 165 Segundo o governo, sua situação só não era melhor devido à concorrência desleal dos produtos estrangeiros. Por isso, diferentes mensagens pediam a atuação dos políticos brasileiros junto ao poder central com a intenção de criar tarifas que protegessem a indústria nacional. As feiras de gado foram um importante componente da política mineira para o auxilio à pecuária. Tinham como intenção eliminar os intermediários responsáveis pela especulação com o produto do estado. Ao que parece, em alguns momentos, as feiras visavam à manutenção de um circuito de comércio voltado para o Rio de Janeiro. Em 1904, o presidente do estado reclamava da diminuição do preço do gado. Apontava como solução que o mesmo fosse abatido nos próprios locais de produção, o que eliminaria parte dos intermediários e pouparia as grandes viagens nas quais os animais perdiam parte de seu peso. Esta solução não foi colocada em prática devido a uma exigência do mercado do Rio de Janeiro, que só comprava gado abatido no matadouro de Santa Cruz.30 No mesmo ano, surgiram queixas sobre o desvio do gado da feira de Três Corações. Fingindo encaminhar-se para São Paulo, as boiadas seguiam para Santa Cruz sem ter passado pela feira. Em 1905, mesmo ano em que Uberaba deixou de ser ponta dos trilhos da Companhia Mogiana, foi constatada a diminuição na entrada de gado; o caso foi atribuído ao aumento da exportação direta para o estado de São Paulo. A diferença para menos foi de 12 mil cabeças. O desvio do gado das feiras para Santa Cruz continuava. Mesmo com todos os esforços, o governo do estado não conseguia utilizar as feiras para concentrar o comércio do gado. Em 1915, reaparecem as reclamações com relação ao gado que não passava pelas feiras e encaminhavase diretamente para Bahia e São Paulo. Por que Rio de Janeiro não era citado? Certamente porque as feiras de gado privilegiavam aquele mercado. As que funcionavam naquele momento eram as de Três Corações, Benfica e Sítio.31 Os impactos da guerra sobre o comércio de gado e derivados mineiros logo foram sentidos. E foram positivos, aumentando a exportação de gado e de seus subprodutos. Em 1916 – um ano após uma constatação da diminuição das exportações de gado vacum – houve uma retomada. Foi o mesmo que ocorreu com a pecuária goiana durante este período. Com a Primeira Guerra Mundial, também os goianos conheceram um aumento das exportações de gado sem precedentes. 30 31 MPEMG, 1904, p. 64. MPEMG, 1915, p. 117, 118. 166 4. Os circuitos de comércio de Goiás – a intermediação mineira e a mudança de eixo pela atração paulista Escrevendo sobre a cidade de Uberaba de 1811 a 1910, Eliana Mendonça Marques de Rezende destacou o seu crescimento como ponto comercial estratégico para a difusão do que chama de capitalismo para novas áreas do Brasil. Estas regiões seriam Mato Grosso e Goiás. Neste mesmo trabalho, foram tratadas as relações históricas entre elas. Desde muito cedo, a cidade de Uberaba se destacou como ponto de passagem para o comércio que vinha de Goiás e Mato Grosso. Após sua chegada em Uberaba, os produtos poderiam dali por diante seguir basicamente por dois caminhos: poderiam descer rumo a São Paulo, seguindo o traço da estrada do Anhanguera, ou então se encaminharem para o leste, seguindo por São João Del Rei e Formiga rumo ao Rio de Janeiro; este segundo caminho também servia para a importação de produtos que serviriam às regiões centrais.32 A autora defende que, com a chegada da ferrovia, este papel se intensificou, sendo a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro o ponto de confirmação das relações comerciais entre o Triângulo Mineiro e São Paulo. Apesar destes avanços, houve a necessidade de consultarmos as fontes para traçar um panorama mais profundo sobre estas rotas comerciais e como diferentes agentes históricos as percebiam. Vimos que, nas atas da Câmara Municipal, esta questão é notada e os meandros do comércio e do papel de Uberaba tornam-se mais claros. Temos que pontuar que a análise de fontes parecidas não leva a resultados iguais; ao contrário, como sabemos, em história, as perguntas encontradas dependem das questões feitas. Fontes ricas como atas das câmaras municipais e mensagens estaduais trazem respostas para uma infinidade de perguntas. Isso só pode ser visto como positivo. Por isso, mesmo analisando fontes parecidas, o trabalho citado não alcança, e não se preocupa em alcançar, alguns aspectos do comércio que passava por ali, especialmente o vindo de Goiás. Em trabalho anterior, nos preocupamos com a quantificação do comércio via trilhos que passava pelo Triângulo Mineiro. Podemos destacar os seguintes dados: 32 REZENDE, Eliana Maria Mendonça de. Uberaba: Uma trajetória socioeconômica 1811 – 1910. Uberaba: Arquivo Público de Uberaba, 1991, p. 34. 167 Tabela 3: Movimentação dos principais produtos no Ramal Catalão da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro ANOS Animais (cabeças) Café (toneladas) Cereais (toneladas) Sal (toneladas) Diversos (toneladas) 1889 3.200 31,48 ----- 2.934,76 1.936,81 1890 3.968 134,99 ----- 3.718,81 2.503,62 1891 6.762 227,95 383,5 5.053,54 2.846,50 1892 5.335 231,54 1.085,10 4.897,86 5.335,00 1893 10.481 503,60 318,33 7.719,18 5.707,70 1894 7.736 374,92 740,78 2.970,34 5.238,00 1895 5.363 498,71 416,24 4.831,91 5.840,93 1896 1.200 771,83 1.138,40 7.065,71 5.443,32 1897 4.942 982,63 1.720,59 7.155,46 11.959,63 1898 5.814 1.623,75 2.475,10 5.751,65 12.019,95 1899 9.562 1.500,43 2.727,66 6.685,40 11.918,71 1900 8.551 1.985,38 2.357,25 7.065,80 11.740,84 1901 9.530 2.666,67 3.853,98 6.600,59 12.548,18 1902 17.082 2.395,48 3.861,22 7.008,73 12.262,74 1903 17.176 2.673,90 3.207,22 6.329,00 10.638,29 1904 15.176 1.944,06 3.925,34 6.556,77 11.017,96 1905 15.608 2.600,15 6.861,43 6.796,38 12.729,35 1906 22.928 2.981,49 8.683,71 7.781,16 13.989,24 1907 20.135 2.239,24 12.899,46 7.045,34 16.930,55 1908 18.800 2.350,26 14.741,51 8.147,05 27.027,53 1909 14.253 3.173,83 9.790,87 7.109,97 23.728,77 1910 24.318 1.899,19 ---- 7.690,90 18.625,16 Fonte: Relatórios apresentados para a aprovação em Assembleia Geral, 1889-1910. O ramal Catalão referia-se aos trilhos da CMEF em terrenos triangulinos; apesar do nome, não chegou a atingir o importante centro urbano do sul de Goiás, interrompendo sua progressão na cidade mineira de Araguari. 168 Mapa 1: Linha tronco e ramais da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro Fonte: <http://www.pell.portland.or.us/~efbrazil/cmef_map.html> Acesso em 11/05/2012. 169 Não havendo informações que discriminam embarques e desembarques, há a necessidade de uma análise baseada em outras fontes e bibliografia para podermos entender o tráfego nas estações do Triângulo Mineiro. Vemos o crescimento de todos os itens durante quase todo o período. Sabemos que Uberaba se voltou para a criação de gado após o prolongamento dos trilhos da Mogiana. Mesmo assim, podemos entender que parte do gado embarcado – não seria o gado produto de importação, certamente – não era uberabense, mas, sim, goiano. A análise das fontes aponta para a passagem de gado de Goiás pela cidade. Junto ao gado triangulino e matogrossense, poderia ser embarcado nos trilhos da Mogiana, constituindo os números colocados acima, seguir por terra para São Paulo ou então para Passos, talvez com a intenção de alcançar a feira de gado de Três Corações. Tabela 4: Volume de negócios da feira de Três Corações (gado vacum) Ano 1902 Cabeças Ano Cabeças Ano Cabeças 75.503 1909 101.589 1915 127.041 1903 78.873 1904 86.056(*) 1910 116.030 1916 156.332 1911 125.206 1917 126.937 1905 99.963(*) 1912 137.188 1918 116.186 1906 99.681(*) 1913 136.325 1919 93.928(*) 1908 102.885 1914 132.997 1922 81.867 Fonte: Relatórios do presidente de Província e Estado. Esses são números apresentados por Alexandre Macchione Saes e Elton Rodrigo Rosa. Os autores chamam a atenção para a não ocorrência da feira em 1921 e 1922, pela disseminação de epidemias nestes anos. Os números marcados com (*) são estimados com base no total negociado em todas as feiras, retirando-se o percentual médio das negociações em Três Corações.33 33 SAES, Alexandre Macchione; ROSA, Elton Rodrigo. Mercado pontual: atuação estatal na formação da feira de gado de Três Corações (1900-1920). Texto apresentado no Núcleo de Pesquisas Hermes e Clio, disponível em: <http://www.usp.br/feaecon/media/fck/File/Alexandre%20M%20Saes%20 &%20Elton%20R%20Rosa_Mercado%20Pontual.pdf>. 170 Já seria possível, neste momento, afirmar que parte do gado que passava por Uberaba encaminhava-se para a feira. A feira de gado de Três Corações canalizava a criação de várias regiões. Qual seria a importância do circuito goiano na sua composição? Para respondermos, podemos partir do seu movimento. Durante a primeira década do século XX e parte da segunda, até após a Primeira Guerra Mundial, o movimento da feira cresceu, decaindo um pouco em alguns anos. A diminuição mais acentuada ocorreu a partir de 1919. O que teria acontecido neste momento? Comparando especificamente os números até 1910 para os embarques no Triângulo Mineiro e a movimentação da feira de Três Corações, notamos que os embarques, em sua tendência, combinam com o crescimento da feira; crescem em conjunto. Não podemos, por esses dados, constatar uma mudança de circuito de comércio. Vejamos agora os dados de embarques no Triângulo Mineiro em relação ao trânsito de gado na feira de Três Corações desde 1900 até 1917: Gráfico 1: Comparação entre número de embarque de gado no Triângulo Mineiro e passagem de gado pela feira de gado de Três Corações – 1900-1917 Fonte: Relatórios da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro apresentados na Assembleia Geral 1890 – 1917.34 34 Também foram utilizados os dados de SAES, Alexandre Macchione; ROSA, Elton Rodrigo. Mercado pontual: atuação estatal na formação da feira de gado de Três Corações (1900-1920). Texto apresentado no Núcleo de Pesquisas Hermes e Clio, disponível em:<http://www.usp.br/feaecon/media/ fck/File/Alexandre%20M%20Saes%20&%20Elton%20R%20Rosa_Mercado%20Pontual.pdf>. 171 A comparação revela que, enquanto os embarques na CMEF no Triângulo Mineiro aumentaram na segunda década, a movimentação na feira de gado de Três Corações diminuiu. Os dados combinam com nossa análise anterior, em que notamos as ações do governo do estado de São Paulo para a atração do gado dos sertões, como aparece nas mensagens do presidente do estado de São Paulo: O Estado de São Paulo, onde a indústria pastoril passa por uma fase de franco desenvolvimento racional, intensivo, está em condições de participar desde logo das atuais vantagens que nos oferece o mercado europeu. Sendo a sua própria produção ainda não basta para o consumo interno, o seu aparelhamento zootécnico reserva-lhe excepcional vantagem, como intermediário beneficiador dos produtos e subprodutos da pecuária.35 De onde viria o gado dos “sertões”? Essa é uma pergunta que temos que nos fazer para esclarecer qual era o papel de Goiás e de Mato Grosso. Muitas vezes as informações tratam os produtos como “produtos de Goiás e Mato Grosso”, sem fazer distinção entre eles. Para o gado, podemos dar mais alguns passos, nos apoiando em números levantados por Paulo Roberto Cimó Queiróz: Tabela 5: Exportação de gado em pé pelo estado de Mato Grosso Ano Exportação Ano 1909 59.401 1913 1910 48.160 1914 1911 59.056 1915 1912 --- 1916 Exportação Ano Exportação --- 1917 66.689 51.409 1918 62.545 54.798 1919 128.091 51.034 1920 88.152 Fonte: QUEIRÓZ, Paulo Roberto Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: A E. F. Noroeste do Brasil na primeira metade do século XX. Bauru, SP: Edusc; Campo Grande, MS: UFMS, 2004, p. 396. Ao contrário do que ocorria com as exportações goianas e com os embarques no Triângulo Mineiro, as exportações de Mato Grosso não aumentaram durante a Primeira Guerra Mundial. Apesar do período para o qual não possuímos dados, podemos comparar as tendências de embarques de animais no Triângulo Mineiro com as exportações de gado em pé pelo estado do Mato Grosso. 35 Mensagem apresentada ao Congresso Paulista, 1915, p. 673, a partir de agora abreviadas como MPESP. 172 Gráfico 2: Exportação de gado em pé pelo estado de Mato Grosso e embarques de animais nas linhas da CMEF no Triângulo Mineiro, 1900-1917 Fontes: Queiróz, 2004. p. 396; Relatórios da CMEF para apresesntação em Assembleia Geral 1900 – 1917; Relatório apresentado ao exmo. sr. dr. Getúlio Vargas, chefe do governo provisório e ao povo goiano pelo dr. Pedro Ludovico Teixeira, interventor federal neste Estado, 1930 – 1933. Seção de Obras de Impressão Oficial, Goiás, 1933. Foi só a partir de 1909 que o estado de Mato Grosso passou a contabilizar o gado exportado pelo interior para Goiás e Minas Gerais. Também, para a compreensão dos números, temos que considerar o contrabando que certamente também existiu em Mato Grosso. Feitas estas ressalvas, podemos ver com maior clareza como os embarques nas estações da CMEF no Triângulo Mineiro aumentaram durante a Primeira Guerra Mundial; já as exportações de Mato Grosso obtiveram pequeno aumento. Portanto, a maior parte do acréscimo de gado em trânsito pela CMEF em terras triangulinas pode ter provido de Goiás – o que coincide com os números de exportações goianas de gado. Este circuito de comércio agora nos aparece mais claramente. Quanto ao sal no Triângulo Mineiro, ao contrário do gado, certamente era produto de importação, visando o gado não só de Uberaba e cidades do Triângulo, como também de Goiás e Mato Grosso. Por isso mesmo, acompanha o crescimento das exportações de gado que, por sua vez, traduz a expansão da pecuária na área citada. Os cereais poderiam ser tanto para importação quanto para exportação. Podemos conjecturar que, apesar disso, grande parte deste tráfego seria constituída pelo arroz goiano que, como sabemos, aumentou a produção 173 durante a Primeira República e colocou o estado como um dos maiores produtores do Brasil. Vejamos: Gráfico 3: Embarques nas estações da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro no Triângulo Mineiro, 1900-1917 Fonte: Relatórios da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro apresentados na Assembleia Geral 1889 – 1917. Apesar das lacunas, o gráfico permite enxergar o aumento do embarque de cereais, que se torna o segundo produto mais importante, perdendo apenas para o gado. O papel de intermediação tanto do Triângulo Mineiro quanto do estado de Minas Gerais só seria possível caso Goiás correspondesse com o aumento de sua produção. Como sabemos, a historiografia goiana defende o papel de Goiás como importante para a expansão da economia cafeeira, ao fornecer alimentos que os paulistas, envolvidos com o café, não poderiam produzir na quantidade necessária para o seu consumo. No início desta exposição, citamos Paulo Roberto Cimó Queiróz que, estudando a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, conclui que a ferrovia não teve grande impacto sobre a produção em seu trecho matogrossense, em grande parte devido à estrutura fundiária que foi incapaz de se transformar. Já em Goiás, segundo Maria Amélia de Alencar, a estrutura fundiária facilitou o recebimento de investimentos de fora do estado, principalmete em áreas de ocupação recente, como Rio Verde. Nas palavras da autora: 174 Em conclusão, poderia se afirmar que a estrutura fundiária em Rio Verde, por se tratar de uma área nova, recém-ocupada, apresentava no período em estudo um dinamismo que se caracterizava na evolução de negócios e nos grandes investimentos, com parcela significativa oriunda de outras regiões. Enquanto algumas das imensas fazendas antigas eram subdivididas pela herança, novos latifúndios se formavam, pela concentração de grandes áreas de terras em mãos de alguns indivíduos ou de grupos familiares. É possível também que a prática do apossamento tenha continuado, apesar da legislação que a proibia.36 Os dados da Estrada de Ferro Goiás apresentados por Barsanufo Gomides Borges confirmam o aumento da produção das regiões ao sul do estado de Goiás por meio dos embarques e dos resultados financeiros. Tabela 6: Resultado financeiro do tráfego da Estrada de Ferro Goiás, 1915 – 1930 Anos Extensão em tráfego Receita total anual (1:000$000) Despesa total anual (1:000$000) 1915 233 km 342.820,052 405.849,022 1916 233 km 478.592,875 384.823,380 1917 233 km 711.873,103 465.843,440 1918 233 km 773.524,997 488.661,669 1919 233 km 832.139,701 680.326,923 1920 233 km 969.626,200 913.908,774 1921 249 km 947.821,799 871.424,095 1922 257 km 1. 095.220,726 1.024.455,598 1923 292 km 1.286.582,516 1.286.582,516 1924 329 km 2.248.406,962 1.683.651,466 1925 349 km 3.047.580,422 2.861.593,097 1926 349 km 2.876.032,330 3.024.443,649 1927 349 km 2.528.964,662 4.751.401,840 1928 349 km 3.025.270,821 3.408.474,138 1929 349 km 3.398.516,505 3.227.527,839 1930 360 km 2.532.160,472 3.162.650,941 Fonte: Brasil. Ministério da Viação e Obras Públicas. Estatísticas das Estadas de Ferro da União, 1920.37 36 37 ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Estrutura fundiária em Goiás. Goiânia: UCG, 1993, p. 75. BORGES, Barsanufo Gomides. Goiás, modernização e crise 1920 – 1960. Tese de doutorado, História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994, p. 84. 175 4. Considerações finais Tanto quanto a cidade de Uberaba, ou mesmo o Triângulo Mineiro, o governo estadual de Minas Gerais possuía interesses no comércio goiano e matogrossense. No caso do gado goiano que se desviava para Passos após a sua passagem por Uberaba, o papel de intermediação de Minas Gerais era maior do que se poderia supor. Além disso, dentro da estrutura republicana, da divisão do poder entre diferentes níveis, parte do movimento que não era registrado pela administração local poderia ser registrado pela administração do estado. Partindo deste raciocínio, nos voltamos para as mensagens do governo de Minas Gerais e encontramos uma atração dupla, entre os mercados paulista e do Rio de Janeiro. Há muito, as regiões mais ao sul de Minas Gerais possuíam fortes ligações com o mercado do Rio de Janeiro. Alcir Lenharo estudou o abastecimento como uma temática política, ligada à formação de interesses e grupos sociais. Segundo Lenharo, existia uma rota interna de abastecimento que passava por Minas Gerais, chegando até Goiás e Mato Grosso. Os principais produtos fornecidos pelo sul de Minas eram porcos, galinhas, gado em pé, toucinho e queijos.38 Vemos, portanto, a importância de Minas Gerais para o entendimento dos circuitos de comércio que alcançavam Goiás. Era seu intermediador, mesmo quando este comércio não era quantificado – caso dos produtos isentos de impostos. Por outro lado, as mudanças com relação aos parâmetros da cobrança de impostos ou da cobrança de taxas nas ferrovias, empreendidos pelos governos estadual e municipais, poderiam influenciar as redes comerciais. Certamente, os comerciantes buscariam embarcar as suas mercadorias em locais onde pagavam menores taxas. Por último, e não menos importante, notamos, pela pauta de exportações de Minas Gerais, que este estado poderia ser colocado como concorrente de Goiás pelo mercado paulista. Muitos produtos eram coincidentes nas listas goianas e mineiras, crescendo inclusive ao mesmo tempo, como era o caso do gado e do arroz. 38 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil 1808 – 1842. São Paulo: Símbolos, 1979. 176 Referências bibliográficas Fontes Atas da Câmara Municipal de Uberaba 1889 – 1910. Relatórios da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro para leitura em Assembléia Geral 1888 – 1917. Mensagens apresentadas ao Congresso Mineiro 1889 – 1920. Disponíveis em http://www.crl.edu/pt-br/brazil/provincial/minas_gerais. Acesso em maio dezembro de 2010. Mensagens do Governo de São Paulo 1917. Disponível em: < http://www.crl.edu/ pt-br/brazil/provincial/s%C3%A3o_paulo>. Acesso em fev/nov. 2009. Bibliografia ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. 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Baseado fundamentalmente em fontes vaticanas, o texto acompanha as negociações entre o Estado brasileiro, a cúria romana, os bispos diocesanos e as missões capuchinhas italianas para encontrarem pontos de convergência para resolver questões de política institucional e de definição de esferas de poder entre o Estado e a Igreja Católica, e assim permitir a ação missionária. Esse acerto se deu no contexto de uma conjuntura em que a problemática agrária brasileira assumia a forma assustadora de uma série infindável de insurreições e revoltas de populações de homens e mulheres livres e pobres do interior nordestino. Palavras-chave Capuchinhos italianos – Pernambuco – relações Estado-Igreja – Sacra Congregação da Propaganda Fide – Placido de Messina – Caetano de Messina. 179 FOREIGN POLICY, AGRARIAN UNREST, AND MISSIONARY PRAXIS: THE ITALIAN CAPUCHINS AND THE RELATIONS BETWEEN BRAZIL AND THE VATICAN AT THE BEGINNING OF THE SECOND EMPIRE Contact El Colegio de México Centro de Estudios Históricos Camino al Ajusco 20 - Pedregal de Santa Teresa 10740 – DF – México E-mail: [email protected] Guillermo Palacios El Colegio de México Abstract This article deals with the role played by the Sacred Congregation of Propaganda Fide’s Apostolic Missions in the political relations between the Empire of Brazil and the Holy See. Based mainly on Vatican sources, the text follows the negotiations between the Brazilian State, the Roman Curia, the Brazilian bishops, and the Italian Friar Capuchin Missions, in search of a common ground to solve institutional policy problems as well as the definition of power spheres between the State and the Catholic Church for the missionary practice to take place. Agreements were reach in the context of a threatening series of insurrections and revolts performed by communities of free men and women in the Northeastern countryside. Keywords Italian Capuchins – Pernambuco – State-Church relations – Sacred Congregation of Propaganda Fide – Placido de Messina – Caetano de Messina. 180 1. Introdução Os frades capuchinhos italianos – sobretudo aqueles provenientes das províncias sicilianas de Messina e Calabria – foram agentes políticos de primeira importância na elaboração da nova estrutura de legitimação do sistema de controle social do trabalho que começou a ser montada no Nordeste do Brasil após a abolição do tráfico escravo. Originários de regiões camponesas do sul da península, mendicantes e rudes, especialistas na “tradução” da “palavra de Deus” para as massas rurais, os capuchinhos penetraram fundo no espaço e – no dizer das fontes disponíveis, todas elas das próprias missões e da sua “central” romana, ou dos governos provinciais – no coração e na mente das comunidades de pobres livres do Nordeste, sobretudo em Pernambuco, uma espécie de “laboratório” virtual das suas ações pastorais. Ali, como no resto da região, tornaram-se instrumentos de primeira importância para viabilizar a transição a uma nova ordem agrária, baseada no recrutamento de centenas de milhares de cultivadores pobres livres para o trabalho nas plantations.1 Evidentemente, a intervenção dos capuchinhos teve múltiplas facetas e gerou diversos processos que abrangem a complexa estrutura de relações internas e externas construída a partir da implantação das missões italianas. Em outros trabalhos, pretendo discutir questões tais como a constituição do discurso missionário e os mecanismos da sua adequação às estruturas culturais das comunidades camponesas pernambucanas na metade do século XIX, as peripécias da intervenção missionária propriamente dita e o modus operandi das suas ações “pacificadoras”, a mecânica da montagem da estrutura de novas relações de dominação, e outros assuntos derivados de um tema central: a maneira como operam os dispositivos culturais a disposição 1 A obra mais completa sobre os capuchinhos no Brasil é NEMBRO. Storia dell’attività missionaria del Minori Cappuccini nel Brasile. Roma: Institutum historicum Ord. Fr. Min. Cap., 1958; veja-se também seu I Cappucini nel Brasile. Missione e custodia del Maranhão (1892-1956). Milão: Centro Studi Cappuccini Lombardi, 1957; igualmente de utilidade são PRIMERIO, pe. fr. Fidelis M. de, O.F.M.C. Capuchinhos em terras da Santa Cruz nos séculos XVII, XVIII e XIX. São Paulo: Livraria Martins, 1942, e MELO, Joaquim Guennes da Silva. Ligeiros traços sobre os capuchinhos contendo a descripção do novo templo de N. S. da Penha. Recife: Typographia M. Figueroa de F. & Filhos, 1871. Sobre a receptividade popular aos capuchinhos italianos, veja-se FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação do Estado liberal (1840-1875). In: HAUCK, João Fagundes et. al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: segunda época, século XIX. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 226-227 e AZZI, Riolando. Os capuchinhos e o movimento brasileiro de reforma católica no século XIX. Revista Eclesiástica Brasileira, n. 35, março 1975, p. 138. 181 tanto dos grupos hegemônicos quanto das classes subalternas no processo de transição ao trabalho livre.2 Aquí, contudo, devo limitar-me apenas a tratar um substratum desse processo, aproveitando primordialmente fontes do cérebro institucional das missões, a Sacra Congregação da Propaganda Fide. Tentarei desvelar uma pequena parcela da sua obra negra, constituída pela engenharia política “subjacente” que permitiu, através de uma complexa rede de tramas e intrigas, que o Estado brasileiro, a cúria romana, os bispos diocesanos e as missões capuchinhas italianas encontrassem um ponto de convergência para resolver questões de política institucional e de definição de esferas de poder de maneira a deixar o campo livre à ação missionária. Esse acerto foi facilitado pela pressão de uma conjuntura em que a problemática agrária brasileira assumia a forma assustadora de uma série infindável de insurreições e revoltas camponesas.3 2. A reaproximação Em janeiro de 1840, após décadas de tensas relações, o governo brasileiro solicitou oficialmente à Santa Sé o retorno dos missionários capuchinhos italianos ao Brasil e a reativação das suas missões.4 Este pedido sinalizava, por um lado, uma nova fase de um longo contencioso diplomático entre o Império brasileiro e a cúria romana, iniciado a partir da separação de Portugal, e que girava basicamente em torno de questões de soberania, reconhecimento e participação (interferência) da Igreja nos assuntos de Estado. Parte integrante dessa disputa, a crise particular nas relações entre o Estado 2 3 4 Algumas dessas questões já foram parcialmente adiantadas em PALACIOS, G. Campesinato e escravidão no Brasil. Agricultores livres e pobres na Capitania Geral de Pernambuco, 1700-1817. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004; Campesinato e escravidão: uma proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres do Nordeste oriental do Brasil, 1700-1875. In: WELCH, C. A., MALAGODI, E., CAVALCANTI, J. S. B. e WANDERLEY, M. N. B. (org.). Camponeses brasileiros, vol. I. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 145-178; e em Revoltas camponesas no Brasil escravista. A “Guerra dos Maribondos” (Pernambuco, 1851/1852). In: Almanack Braziliense. Fórum n. 3. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, maio de 2006, p. 9-39. Sobre o contexto geral da ação missionária no Nordeste cf. QUINTAS, Amaro. O Nordeste, 1825-1850. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. Tomo II: Brasil monárquico. São Paulo: Bertrand Brasil, 2004. Sobre as missões capuchinhas na Amazônia, cf. AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito. Catequese e educação para índios nos aldeamentos capuchinos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37, 1998, e Entre os selvagens do Brasil: ensaios, memórias e diários dos frades capuchinhos sobre os aldeamentos do Império (1844-1889). ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. Anais. Caxambu, 22-26 de outubro de 2002. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 202. O Carapuceiro, n. 9, 1840, p. 3. 182 brasileiro e a Ordem dos Capuchinhos chegara ao ponto do rompimento em 1831, quando um decreto do regente Feijó tirou dos frades o Hospício de N. S. da Penha em Recife, a mais ativa sede capuchinha no Brasil, e restringiu severamente suas atividades.5 Por outro lado, a solicitação marcava o início da longa e ativa participação dos capuchinhos italianos, principalmente sicilianos, no equacionamento da problemática agrária brasileira, não mais apenas em torno de problemas de catequização indígena e, sim, sobretudo, de controle de populações camponesas através de um instrumento que os frades tinham aperfeiçoado: as missões populares.6 Em abril desse mesmo ano, uma longa comunicação do representante do imperador perante o Vaticano, J. de Macedo, confirmava ao cardeal Fransoni, prefeito da Propaganda Fide, a decisão do governo do Brasil de promover as missões “parmi les hordes de sauvages qui habitent l’interieur du pays”, definindo expressamente essa medida como sendo “non seulement un act de charite e de religion mais encore un act de politique”. Embora houvesse uma leve ambiguidade na natureza “política” do gesto, que tanto podia referir-se às funções que esperavam os missionários no Brasil quanto ao fato de que sua vinda marcava a normalização das relações entre o Império e a Santa Sé, o resto do comunicado era extremamente claro: os missionários capuchinhos estariam destinados 5 6 Cf. SCANDIANO. Esposizione succinta. AmMer, v. XI, fl. 91. Apenas a Prefeitura baiana, protegida pelo poderoso d. Romualdo de Seixas, conseguiu manter as suas portas abertas e, inclusive, receber novos missionários em 1836. Cf. Prefetto dell’Ospizio de N. S. della Pietà dei Missionari Cappuccini a cardinale prefetto di Propaganda. Bahia di tutti i Santi nel Brasile. 15.08.1836. AmMer, v. VI, fls. 225-225r. O longo período de suspensão de envio de missionários deve também ter sido fortemente influenciado pelas turbulências políticas na península italiana entre a Restauração e o início da década de 1830. Para uma visão concisa desses problemas cf. BEALES, Derek. The Risorgimento and the unification of Italy. Londres: Longman, 1981, p. 39-48. Sobre as missões populares, destinadas à reconversão de populações rurais fragilmente cristianizadas, cf. FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação do Estado liberal (1840-1875). In: HAUCK, João Fagundes et. al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: segunda época, século XIX. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p.209 e ss.; HAUCK., A Igreja, op. cit., p. 95 e ss.; FRAGOSO, Hugo, O. F. M. O apaziguamento do povo rebelado mediante as missões populares. In: SILVA, S. V. da (org.). A igreja e o controle social nos sertões nordestinos. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 11 e ss.; SCANDIANO. Esposizione succinta. AmMer, v. XI, fl. 100 e ss. Apesar de não serem os únicos a desenvolver essa atividade, os capuchinhos tinham sido os primeiros a praticar as missões populares – também chamadas de “ambulantes” – ainda em 1780 (Archivo Histórico Ultramarino. Pernambuco, caixa 71, 1780). 183 à aller dans les differentes provinces precher l’evangile a ceux qui n’ont pas encore le bonheur de vivre sous sa loi, et fortifier la foi des populations chretiens de l’interieur, qui a cause des distances se trouvent plusiers fois deprouvves de l’instruction religieuse qui leur est necessaire. Os bispos e as autoridades brasileiras encarregar-se-iam de distribuir os missionários “selon les necessités du pays”, ficando por conta do governo imperial todos os gastos com o transporte dos frades, além de uma diária de 500 rs. per capita durante um determinado período. Informava-se, outrossim, que a maior parte dos frades solicitados seriam direcionados à província do Maranhão.7 Finalmente, em 20 de junho de 1840, a Propaganda Fide enviava ao Rio de Janeiro um primeiro grupo de missionários comandados por fr. Fidele da Montesano, retomando, após um longo período de dez anos de interrupção, o fornecimento de capuchinhos ao Brasil.8 A lógica que trazia de volta os capuchinhos italianos ficava assim umbilicalmente ligada ao surgimento de movimentos populares, de origem basicamente rural – e de natureza camponesa –, que se tinham multiplicado pelo Brasil inteiro durante a década anterior, adquirindo feições ameaçadoras para a ordem agrária implantada pelos grandes proprietários de terras e de escravos no day after da independência. (No Maranhão, principal destino dessa primeira leva de frades italianos, como é bem sabido, a Balaiada desafiava violentamente, desde 1838, a estabilidade política do Império).9 Os frades, a rigor contratados pelo Estado, voltavam ao Brasil como agentes governamentais especializados na neutralização de revoltas populares agrárias e motins urbanos, e chegavam amparados por uma lenda de eficiência e preparo para esse tipo de tarefas que vinha de longe, e que fora em boa medida construída por eles mesmos e pelos poderes políticos aos quais serviam. 7 8 9 J. de Macedo a cardinale Fransoni. Legation du Bresil a Rome. 24.04.1840. AmMer, v. VI, fls. 437438r; sobre a escassa importância da catequização indígena em Pernambuco, cf. SCANDIANO. Esposizione succinta. AmMer, v. XI, fl. 89; [MESSINA, fr. Plácido de?]. Trabalhos apostólicos dos capuchinhos italianos. In: ACOC /Rio de Janeiro. Pernambuco, s/e, 1842, p. 11; no primeiro informe enviado ao prefeito da Propaganda Fide após a sua chegada a Pernambuco, fr. Plácido de Messina, novo prefeito dos capuchinhos, declarava: “[...] esta missão tem como objeto principal não os caboclos e índios selvagens mas, sim, os cristãos selvagens”. Fr. Plácido de Messina a padre Eugenio da Rumilly. Pernambuco, 28.01.1842. H-75 III. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 188-190; BRASILE, op. cit., p. 21-22. Sobre o tema veja-se SANTOS, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão. São Paulo: Ática, 1983; ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o imperador”. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão. In: DANTAS, Mónica Duarte (org.). Revoltas. Motins. Revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011. 184 Apresentavam-se como especialistas na restauração da autoridade civil e na recondução de populações superficialmente cristianizadas –“paganizantes” – ao leito da ortodoxia dogmática. Como diria posteriormente – e num claro ímpeto de exagerada apologia – o comissário geral, com a ação dos missionários no campo, “L’ordine e la subordinazione furono di subito ristabiliti”.10 Porém, apesar de serem solicitados – e terem atuado – em praticamente todos os cantos do Império, os capuchinhos fizeram de Pernambuco o centro das suas ações mais espectaculares e mais bem-sucedidas, aquelas que os converteram nos missionários “oficiais” do Império.11 Nessa qualidade, os frades tiveram um papel de primeira importância na redefinição das linhas de controle social do trabalho que facilitariam por essas décadas a construção das novas estruturas hegemônicas, necessárias para passar da disciplina da escravidão ao convencimento do trabalho livre. Essa tarefa, que misturava naturalmente problemas de legitimidade do poder civil com a restauração do dogma religioso, incidia tanto na reorganização dos sistemas de crenças populares quanto na definição precisa das linhas de autoridade governamental. Mas a chegada dos capuchinhos abriu – ou reformulou – também diversas frentes de negociação entre o Estado e a Santa Sé, entre a Igreja secular e as ordens religiosas, e misturou assim assuntos de política externa e de consolidação do Estado nacional com problemas ligados à questão agrária brasileira e à subordinação de populações camponesas que atravessavam, por esses anos, especificamente no Nordeste, agudos momentos de um amplo e longo processo de pauperização.12 De fato, essas negociações “internas” entre Estado e Igreja e entre diversas instâncias eclesiásticas desenvolveram-se simultaneamente à ação dos missionários no apaziguamento e na repressão dos movimentos populares, e estiveram orientadas por um multifacetário jogo de interesses que se converteriam em frentes consolidadas de conflito interinstitucional ao longo das décadas posteriores, e que desem- 10 11 12 Cf. SCANDIANO. Esposizione succinta. AmMer, v. XI, fl. 100r; sobre desvios dogmáticos, “valga quanto affermava l’arcivescovo di Bahia e cioè che, ‘senza l’opera dei missionari cappuccini le popolazioni dell’interno, nella sua archidiocesi, sarebbero ritornate al paganerismo’”. Cf. ADELHELM, ,Jann, O. F. M. Cap. Candidus Sierro aus dem Kapuzineorden: Ein Indianor Missionar. Ein Beitrag zur brasilianischen Missionsgeschichte. Stans, 1951, p. 45, apud. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 220. “[...] os capuchinhos eram considerados os missionários oficiais do governo. Sua ação se vinculava, portanto, mais diretamente ao governo imperial do que ao bispo diocesano. AZZI, Riolando. Os capuchinhos e o movimento brasileiro de reforma católica no século XIX. Revista Eclesiástica Brasileira, n. 35, março 1975, p. 132; In tal modo i Cappuccini diventavano i missionari ‘ufficiali’ dell’Impero. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 219. Cf. PALACIOS. Campesinato e escravidão, op. cit., p. 155-169. 185 bocariam, embora com os personagens trocados, na “questão religiosa” de inícios da década de 1870. Em mais de um sentido, a decisiva participação dos capuchinhos italianos no combate às revoltas camponesas nordestinas foi uma peça chave – um trunfo da Igreja – na definição das relações entre o Brasil e o Vaticano. Ao mesmo tempo, essa redefinição permitiu celebrar a aliança entre o Estado nacional e as missões barbadinas que resultou na relativa “pacificação” rural que permitiu pavimentar o pacto interoligárquico preparatório da transição, conhecido como a “política de conciliação”.13 No jogo de força entre o Estado e a Igreja, esta empregou, sistematicamente, o argumento da necessidade de liberdade das missões de qualquer controle oficial como condição da sua eficiência junto aos camponeses. Assim, o propalado sucesso dos capuchinhos sicilianos junto aos movimentos populares agrários nordestinos foi instrumentalizado para fazer o Estado ceder na arena da disputa política perante os interesses institucionais da Igreja romana, particularmente após o draconiano decreto de 1844, que colocou os frades barbadinos sob as ordens diretas do poder civil.14 Por outro lado, as missões capuchinhas e os seus sujeitos preferenciais, os camponeses do Nordeste do Brasil, foram igualmente empregados na disputa surda que se travava por esses anos no interior da Igreja brasileira entre setores favoráveis a um estreitamento dos laços com o poder civil e setores que se engajavam definitivamente na política de romanização dessa mesma igreja.15 Nesta segunda instância de negociação, o tópico central – que seria crescentemente fortalecido – aparece já desde esses inícios da década de 1840, e prega a necessidade da dissimulação e da ocultação das desarmonias internas, isto é, a necessidade de manter as aparências de uma ordem inalterada e coesa para não macular, com a revelação de intrigas e ambições terrenas, “uma corporação cujos sucessos dependem da alta confiança dos Povos nas virtudes apostólicas dos seos Membros”.16 Ambas as estratégias, pois, baseavam-se no 13 14 15 16 Sobre o tema veja-se, entre outros, ESTEFANES, Bruno Fabris. Conciliar o império: Honorio Hermeto Carneiro Leão, os partidos e a política de conciliação no Brasil monárquico (1842-1856). Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2010. Decreto n. 373 de 30 de julho de 1844. Fixando as regras que devem ser observadas na distribuição pelas províncias dos missionarios capuchinhos. AmMer, v. VII, fl. 535. A esse respeito, cf. FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação do Estado liberal (1840-1875). In: HAUCK, João Fagundes et. al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: segunda época, século XIX. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 182-183; AZZI, Riolando. A crise da cristiandade e o projeto liberal. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 229. Romualdo, arcebispo da Bahia, a cardenal prefeito da Congregação da Propaganda Fide. Bahia, 02.05.1840. AmMer, v. 6 fls. 442-443. 186 ocultamento das diferenças e no enaltecimento das semelhanças de propósito entre a Igreja e o Estado, entre a cúria brasileira e Roma. 3. Novos hábitos para novos missionários O sucesso dos capuchinhos no Nordeste começou a se desenhar no próprio momento em que os novos missionários sicilianos pisaram o chão do pitoresco (e sujo) porto do Recife, em princípios de setembro de 1841.17 Tratava-se, de fato, mais do que da simples renovação de uma antiga colaboração, de uma troca de guarda, de uma mudança generacional que teria profundas consequências no papel a ser jogado pela Ordem nos assuntos políticos brasileiros – e não apenas em torno da problemática agrária propriamente dita. Os novos frades tinham sido recrutados de maneira direta dentre as fileiras da Propaganda Fide ou selecionados sob a sua supervisão, e não, como parecera ter sido a prática anterior, embarcados nas suas respectivas províncias eclesiásticas. Estavam muito melhor preparados do que os seus antecessores para enfrentar os “tempos modernos”, embora não no sentido esperado pelo ancião prefeito do Hospício da N. S. da Penha em Recife, fr. Gioacchino d’Afrangola, que, ainda imerso na problemática da contrarreforma, os queria prontos para enfrentar “il tempi critici”,18 e “capaci d’opporsi alla grande torrente de filosofi liberali, ed heretice che stanno inondate queste infelice Prove del Vescovato di Per- 17 18 “Aos 11 de setembro de 1841, chegarão a este Hospicio em corpo de Missão, cinco Sacerdotes Missionarios e um Leigo, todos da provincia de Messina na Secilia, sendo Prefeito dos mesmos o Muito Reverendo Padre Mestre Lente Fr. Placido da Messina, Vice-Prefeito o Reverendo Padre Mestre Fr. Caetano da Messina, Missionarios Sacerdotes o Padre Fr. Sebastião da Melia, o Padre Fr. Caetano da Gratiere, e Padre Fr. Serafim da Catania, e Leigo Fr. Santos da Messina, todos chamados pelo seu Reverendissimo Geral, precisamente para esta provincia de Pernambuco, despachados em Roma por Decreto da Propaganda Fide em 20 de junho de 1841 [...]”. MESSINA, fr. P. Trabalhos, p. 8-9; MESSINA, fr. C. Apontamentos, fls. 1-2. A origem siciliana dos capuchinhos é um assunto interessante, dada a semelhança da paisagem agrária da ilha – uma sociedade dominada por grandes proprietários – com o Nordeste brasileiro, um dado não desprezível na adaptação dos missionários. A Prefeitura de Pernambuco era, de fato, um território tão “siciliano” que um frade de outra província negou-se a assumir a chefia da missão em 1863 com esta argumentação: “A missão desse hospicio é siciliana, pediram missionários sicilianos e eu não devo, nem posso [...] aceitar aqui nenhuma superioridade”. Fr. Egidio da Garezzo a fr. Fabiano da Scandiano. Pernambuco, 14.10.1863. H-75-IV. O tema da peculiaridade da origem, que reflete também intrincadas questões de alianças políticas entre o Vaticano e o Reino das Duas Sicílias num dos mais conturbados períodos da história italiana, será tratado com mais detalhe no texto sobre a adequação do discurso missionário mencionado na introdução. Fr. Gioacchino d’Afrangola a cardinale prefetto. Pernambuco, 01.04.1841. AmMer, v. 6, fl. 498. 187 nambuco”.19 Esse preparo incluía, tecnicamente, noções de história da cultura dos lugares de destino, direito missionário, pastoral sacramental, técnicas de catequização e teria sido instituicionalizado num Seminário de Estudos Missionários idealizado na primeira década do século XIX pela S. C. da Propaganda Fide.20 Mas, se não estavam interessados em discussões teológicas e filosóficas, os frades certamente chegaram ansiosos por intervir ativamente nas questões políticas que agitavam por esses meses os seus novos territórios de atuação. Poucas horas após ter desembarcado, o novo prefeito, fr. Plácido de Messina, mostrava o tipo de autopercepção de que eram portadores os novos missionários, e que funcionaria como motor das missões capuchinhas nas áreas rurais de Pernambuco: Aqui é usual as pessoas dizer que um Missionario capuchinho basta para colocar freio a uma grande multidão revoltada com a sua fala e um oráculo e a esta cede com o tempo a rebelião que não cedia por certo nem ao exército nem à própria morte.21 19 20 21 Fr. Gioacchino d’Arangola Napoletano, vice-prefetto dei Cappuccini in Pernambuco a cardinale prefetto. Pernambuco, 12.05.1840. AmMer, v. 6, fl. 450. SEUMOIS. La S. C. “de Propaganda Fide. In: SEUMOIS, André. Introduction à la missiologie. Schöneck-Beckenried: Administration der Neuen Zeitschrift für Missionswissenschaft, c. 1952. p. 456-457; Mgr. Domenico Coppola, secretario dalla S.C.P.F. Memoria ossia Piano sulla fondazione de Seminari per Missionari da spedirsi nelle parti di Acattolici ed infideli, e sulla erezione de Collegi per formare il Clero de naturali nelle dette parti. Roma, 1805 (?); METZLER, Josef. Missionsseminarien und Missionkollegien. Ein Plan zur Förderung des einheimischen klerus um das Jahr 1805, Zeitschriff für Missions-Wisenschaff. In: SCPF. Memoria Rerum, v. II, 1960, p. 268-281. A história desse – e de outros – plano para a fundação de um colégio missionário dentro da S. C. da Propaganda Fide é um assunto ainda não inteiramente desvendado. Nembro também fala de um centro de treinamento missionário em Roma, que incluiria igualmente estágios na África ocidental portuguesa para domínio das línguas locais que os missionários teriam que enfrentar nas senzalas dos engenhos e fazendas brasileiros. NEMBRO. Introduzione. In: Idem. I Cappuccinni nel Brasile, op. cit.; NEMBRO. Storia, op. cit., p. 102. Porém, existem evidências de que o plano não chegou a ser implantado. Seumois menciona instruções datadas de 1865 e 1883 dirigidas respectivamente aos vigários apostólicos das Índias Orientais e da China insistindo na necessidade de que os frades estudassem as línguas locais e examinassem teologicamente os valores culturais locais para tentar a sua adaptação ao dogma católico (NEMBRO, op. cit., p. 456). Analogamente, a hesitação dos recém-chegados em Pernambuco em sair a campo – que veremos logo mais – pode também sinalizar um preparo deficiente, e a ausência de estruturas profissionais de treinamento em Roma. Fr. Placido de Messina a signore Giovanni Polleri. Pernambuco, 12.09.1841. H-75 III. Polleri era um negociante que adiantava recursos para a viagem dos frades e os recuperava através de um correspondente no Recife. D’Afrangola, antes de Plácido de Messina, já tinha empregado esse mesmo esquema. Cf. fr. Gioacchino d’Afrangola, prefetto Capuccino a fr. Luigi da Borgnaga, procurador generale. Pernambuco, 23.08.1840. H-75-III; Placido de Messina a cardinale 188 Possivelmente, foi esse reconhecimento da importância central da língua (a “fala”) em que seria enunciado o discurso missionário a confirmação da natureza crucial da oralidade na relação com as comunidades camponesas, o que levou os frades a passarem os primeiros meses dedicados ao aperfeiçoamento do manejo desse precioso instrumento, adiando a estreia na difícil – e localmente desconhecida – prática da pregação pública –para dezembro desse mesmo ano, enquanto se empenhavam no preparo de missões no interior. A escassa receptividade ao primeiro sermão de fr. Placido de Messina, motivada tanto por dificuldades no manejo do português como pelo fato de ter sido a representação considerada excessivamente “italiana”, fez com que, ainda em meados de 1842, apesar do ímpeto original, os capuchinhos não se considerassem em condições de enfrentar as missões populares.22 Enquanto os frades sicilianos afiavam suas armas no recifense Hospício da N. S. da Penha, Roma preparava um programa de fortalecimento das prefeituras capuchinhas no Brasil que indicava claramente a importância que esses novos núcleos de poder da Igreja tinham nos planos do Vaticano. No final de 1842, um acordo entre o vigário geral da Ordem, fr. Eugenio de Rumilly, e o cardeal secretário da Propaganda Fide, mons. Ignazio Candolini, levou a um delicado remanejamento de velhos e novos missionários nas prefeituras existentes, à criação de novas sedes (Sergipe e Belém do Pará), e à elaboração de um protocolo para a reforma da rotina dos frades e dos hospícios, de maneira a adequá-los, certamente, a tempos de transição que a cúria romana percebia nos ares do Império brasileiro.23 Assim, por exemplo, foi acordado investir mais no preparo dos missionários a serem enviados em levas futuras e elaborou-se um esquema de padronização do funcionamento quotidiano das diversas missões, uniformizando a aparência dos frades.24 Mais importante, proibiu-se, a partir desse momento, a compra e venda de escravos por parte dos conventos capuchinhos no Brasil, determinando-se 22 23 24 prefetto della Propaganda. Pernambuco, 04.10.1841. AmMer, v. 6, fl. 521; Idem. a prefetto del Colegio Cappuccino. Pernambuco, 10.11.1841. H-75-III. Fr. Placido de Messina a p. Eugenio de Rumilly. Pernambuco, 14.05.1842. H-75-III. Vale lembrar que, por esses mesmos anos, discutiam-se no Parlamento brasileiro – um centro de intensa observação por parte do Vaticano – dois projetos de lei que seriam fundamentais para a engenharia da transição ao regime de trabalho livre, a saber, a que implantava diversos estímulos à colonização europeia, e a que regulamentava os novos mecanismos de acesso à propriedade fundiária, a Lei de Terras. AmMer, v. 6, fl. 715. 189 a imediata liberação de cativos de “boa conduta” recebidos de benfeitores da ordem.25 Estipulou-se que os prefeitos somente poderiam ter a metade dos frades no hospício, destinando o resto às missões no interior, e praticando rodízios anuais que incluiriam os próprios superiores locais.26 Por outra parte, estes ficavam a partir desse momento obrigados a enviar detalhados relatórios anuais das missões à Propaganda Fide e à curia da Ordem, destacando tudo aquilo que lhes parecesse importante. Não deixa de ser uma ironia do destino que o longo período de reaproximação entre a Santa Sé e o governo brasileiro, iniciado em meados da década de 1830, terminasse com o retorno a um clima de hostilidade e represálias mútuas, exatamente nos momentos em que a reativação das missões pernambucanas, a participação dos capuchinhos no controle da Balaiada no Maranhão e os primeiros contatos “pacificadores” dos religiosos com cabanos ainda mobilizados nas florestas das Alagoas e Pernambuco pareciam indicar a consolidação de uma nova aliança.27 De fato, poucas semanas depois da chegada dos frades sicilianos ao Recife, o internúncio papal no Rio 25 26 27 Fr. Eugenio de Rumilly, vicario generale di Cappuccini a mongr Ignazio Cadolini, secgreo della Sag. Congr. di Propaganda. Roma, Convento di Cappuccini, 17.12.1842. AmMer, v. 7, fls. 714-715. A questão da existência de escravos nos conventos e hospícios capuchinhos (no caso, sete ou oito “não necessários”) tinha vindo à tona em longas e envenenadas cartas de um membro da ordem que se queixava de ter sido perseguido pelos capuchinhos de Pernambuco – aí incluído d’Afrangola –, até ser por eles expulso da província. Em resposta, denunciou diversas irregularidades e violações da regra no Hospício, desde a presença de escravos até uma conduta “escandalosa”, horários abertos, entradas e saídas livres para quem bem o quisesse etc. Fr. Carlo Giuseppe del Porto Maurizio a cardinale Fransoni. Grão-Pará, 06.11 e 17.11.1842. AmMer, v. 7, fls. 689-690r e 693-693r. É bom lembrar que uma das críticas mais fortes às ordens regulares nos anos imediatos à separação de Portugal era o fato de muitas delas viverem de rendas e do trabalho escravo. Cf. AZZI. A crise, op. cit., p. 131. Como se sabe, a ociosidade e a “inutilidade econômica” dos frades pertencentes às chamadas ordens “tradicionais”, que passavam a vida no interior dos conventos, tinha sido um dos mais fortes argumentos dos setores anticlericais do tempo de Feijó. Cf. AZZI. A crise, op. cit., p. 133. Ainda em 1862, essa questão continuava a ser mencionada como um ponto de fricção nas relações entre a Igreja e o Estado. Cf. Pe. Relatório do presidente, 1862, p. 21. Em abril de 1842 começaram as missões populares dos capuchinhos italianos no Maranhão, dirigidas especialmente a neutralizar e desmobilizar grupos remanescentes da revolta dos balaios. A percepção por parte dos segmentos citadinos letrados do impacto das missões está claramente ilustrada no seguinte comentário: “Enfim é o povo bem a semelhança de um rebanho de gado que vai para onde o pastor o quer levar, e muito útil me parece a vinda d’estes frades para mostrar-lhes quaes são seus deveres, e ensinar-lhes boas doutrinas”. Recorte de jornal do Rio de Janeiro, Sentinel, n. 209, s/d aparente, reproduzindo correspondência oficial de abril e maio de 1842. Texto transcrito do Jornal Maranhense, de 26.04 e 13.05 de 1842. AmMer, v. 6, fl. 612. Sobre os capuchinhos no Maranhão, veja-se TAUBATÉ, Modesto Resende e PRIMÉRIO, Fidélis Motta. Os missionários capuchinhos no Brasil. São Paulo: Convento da Immaculada 190 de Janeiro tinha enviado ao prefeito da Propaganda Fide um longo informe sobre as ingerências do governo brasileiro – e não apenas do bispo da Bahia – nos assuntos da Ordem.28 O problema, de aparência técnica, se originava no longo tempo que transcorria entre a solicitação formal de missionários e o momento em que, depois de Roma dar a autorização oficial, chegavam de fato ao Brasil, muitas vezes quando as prioridades do governo já tinham mudado inteiramente – tal a volatilidade do quadro político brasileiro dessa metade do século XIX. Diante de novas instruções, dizia o internúncio, os missionários não tinham como resistir “alla violenta direzione che ricevono dal Governo, e compariscono senza lor colpa disubbidianti gli ordini de lor Superiori”. O governo, por sua parte, achava-se no inteiro direito de dispor dos missionários segundo as suas necessidades, dada sua decisiva participação na viagem e instalação dos frades no país.29 As alterações introduzidas pelo governo no encaminhamento dos missionários se chocavam diretamente com as faculdades concedidas a cada um dos frades pela S. C. da Propaganda Fide, que os autorizava a missionar apenas em determinados lugares, dificilmente coincidentes com os novos destinos que lhes assinavam as autoridades brasileiras à sua chegada ao país. Na impossibilidade de acelerar o trâmite romano e na inconveniência de afrontar desde o início o governo anfitrião, com o qual ainda se negociava o completo reatamento das relações, a solução sugerida foi a de se conceder aos frades enviados ao Brasil licenças válidas para todo o território do Império, como forma de evitar a desobediência forçosa em que incorriam com o sistema em vigência. Casos de conflito deveriam ser solucionados pela própria Nunciatura Apostólica.30 O governo brasileiro, da sua parte, preparava 28 29 30 Conceição, 1931, p. 195-198; AZZI, Riolando. Os capuchinhos e o movimento brasileiro de reforma católica no século XIX. Revista Eclesiástica Brasileira, n. 35, março 1975, p. 134. Dom Romualdo, apesar de ser considerado um dos campeões do movimento de romanização da Igreja brasileira no século XIX – e, antes, um defensor implacável do Ancien Régime –, foi inteiramente intransigente em todos os assuntos que diziam respeito a sua autoridade diocesana, e boicotou sistematicamente as tentativas da Propaganda Fide de implantar missões capuchinhas na Bahia, independentes da cúria provincial. Para neutralizar o considerável poder do bispo-deputado, Roma cedeu às suas pretensões uma e outra vez, e acabou pondo a nova Prefeitura capuchinha do Sergipe sob a sua jurisdição. Cf. Romualdo arcebispo da Bahia a Paulino José Soares de Souza, ministro e secretário d’Estado dos Negócios da Justiça. Rio de Janeiro, 21.10.1841. Cópia. AmMer, v. VI, fl. 652-652r; sobre a personalidade do bispo, cf. AZZI. A crise, op. cit., p. 162-163; HAUCK. A Igreja, op. cit., p. 78-82. Internunzio Campodonico a cardinale prefetto. Rio de Janeiro, 31.12.1841 [?]. AmMer, v. 6, fls. 716-717. O próprio caso da nova missão de Sergipe podia servir para ilustrar isso. Entre o momento da solicitação formal da Assembleia Legislativa da Província de Sergipe, comunicada por d. 191 modificações igualmente importantes nas suas relações com os missionários capuchinhos, como o estabelecimento de uma missão central sediada na Corte, hierarquicamente superior às outras e sempre ao alcance do controle do Estado.31 Enquanto isso, os missionários sicilianos tinham finalmente saído a campo em Pernambuco e, como no Maranhão, autoridades, proprietários de terras e de escravos, políticos de todos os partidos, enfim, os “homens bons” da sociedade pernambucana, diziam-se maravilhados com o que figuravam serem as habilidades dos frades para neutralizar revoltas e insurreições agrárias. O batismo de fogo acontecera nas matas de Jacuípe e Panellas, na fronteira entre Pernambuco e Alagoas, onde remanescentes arredios dos cabanos tinham finalmente acudido aos chamados do prefeito fr. Plácido, que obtivera inclusive uma longa entrevista com Vicente de Paula, o líder histórico dos rebeldes, e uma carta em que este manifestava o seu arrependimento e protestava fidelidade ao imperador.32 A fama de “pacificadores” espalhava-se rapidamente e se enfeitava, fazendo dos frades instrumentos excellentes, e quasi necessarios para os antigos christãos, especialmente para os do Interior, onde são respeitados e obedecidos, como outros tantos Anjos do 31 32 Romualdo ao ministro da Justiça do Império, Paulino José Soares de Souza em 21.10.1841, e a chegada efetiva dos frades, em fins de agosto de 1843, passaram-se exatos 22 meses. Vejam-se os excessos do trâmite burocrático em: Romulado arcebispo da Bahia a Paulino José Soares de Souza, ministro e secretario d’Estado dos Negócios da Justiça. Rio de Janeiro, 21.10.1841, cópia. AmMer, v. 6, fl. 252-252r; e pe Pier Luigi di Saravezza, prefetto dalla Bahia, a cardinale Fransoni. Bahia, 23.08.1843. AmMer v. VII, fl. 255. A conveniência de estabelecer uma “missão central” estava sendo considerada desde 1841. Cf. Fr. Campodonico a cardinale Fransoni, prefetto della Propaganda Fide. Rio de Janeiro, 13.12.1841. AmMer, v. 6, fl. 531r. Vicario general di Cappuccini a cardinale Fransoni. Roma. Convento di Cappuccini, 03.04.1843. AmMer v. VII, fl. 146-155r. Carta do chefe dos rebeldes cabanos que, desde muitos annos, estavão entranhados nas matas denominadas Panellas de Miranda, dirigida ao muito reverendo prefeito, que missionava em Panellas, s/l, outubro de 1842, apud [MESSINA, P. de?], Trabalhos, op. cit., p. 12-13; Manifesto do chefe dos cabanos ao público, em virtude da Santa Missão, no Diario de Pernambuco. In: Idem, op. cit., p. 15-16. A intervenção de fr. Plácido foi na época contrastada (insidiosamente) por d. Thomas, bispo resignatário de Olinda, com a fracassada tentativa anterior do bispo diocesano, d. João Marques da Purificação Perdigão, por pacificar os cabanos – uma alegoria da maior eficiência das ordens regulares no combate à subversão. Cf. D. Thomas, bispo resignatário de Olinda a cardeal Fransoni. Pernambuco, 10.05.1843. AmMer, v. VII, fl. 172-173. Sobre os cabanos, veja-se O clássico (e solitário) Manuel Correia de Andrade. A Guerra dos Cabanos. Rio de Janeiro: Conquista, 1965, e, mais recente, CARVALHO, Marcus J. M. de. Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho contra os “jacubinos”: a Cabanada, 1832-1835. In: DANTAS (org.). Revoltas. Motins. Revoluções, op. cit. 192 Céo. Mais fazem alli dois Missionarios, do q. dez mil baionetas. Logo q. lá apparecem, não ha mais guerra civil, reformão-se os costumes, acabão os odios, e se renova a união das familias.33 É difícil medir com exatidão o verdadeiro impacto da presença dos capuchinhos no meio das turbas de cabanos famintos e seminus que habitavam o interior das florestas de Jacuípe e Panellas. A maior parte dos registros foi produzida pelos próprios frades ou por membros de outras instâncias eclesiásticas ou do governo provincial e, naturalmente, é inteiramente apologética. A unificação externa do discurso é patente, apesar das sérias divergências que separavam, ainda nesses momentos, as missões e as estruturas de autoridade dos bispados diocesanos. As versões oficiais, por sua vez, seguem quase ao pé da letra o conteúdo dos informes dos missionários, e reforçam a visão de intervenções quase miraculosas, de efetividade cirúrgica no apaziguamento das revoltas camponesas do período. Pois se, por um lado, a Igreja e especialmente a Ordem dos Capuchinhos fortaleciam-se enormemente com essas ações, também não eram poucos os dividendos políticos que o governo e principalmente o partido no poder tiravam dessa associação, que “sujeitava” as massas de pobres livres do campo “aos poderes do Estado”.34 Isto, pelo menos, no nível superficial de ambos os discursos, o que não impedia que, no interior da pugna política, a interpretação dos fatos fosse diferente, certamente menos laudatória e unânime. Por outro lado, a inexistência de um discurso aberto de oposição à ação dos frades – que tinha sido dominante na década liberal dos anos 1830 – pode sinalizar uma popularidade efetiva da Ordem, o que a colocava acima de críticas públicas, politicamente inconvenientes. Assim, esses registros devem ser lidos – em primeiro lugar – como instrumentos da negociação política entre o Estado e a Igreja para definir os espaços de autonomia na atuação das missões mendicantes junto às populações pobres do interior, e não apenas como simples, inocentes relatos de acontecimentos históricos. Porém, nesse nível capilar do discurso da pacificação capuchinha, o sucesso foi rapidamente reconhecido. As primeiras intervenções dos frades italianos junto aos paupérrimos seguidores de Vicente de Paula e junto aos balaios do Maranhão e a aparente rendição do líder cabano aos apelos de fr. Plácido de Messina funcionaram como efeito demostração. Em agosto de 1843, 33 34 D. Thomas a cardeal Fransoni, doc. cit. Messina, fr. C. Apontamentos, op. cit., fls. 2-3. 193 enquanto chegavam ao Sergipe três missionários solicitados dois anos antes, o internúncio Campodonico avisava a Fransoni que o Ministério da Justiça, impressionado com o que se dizia ser a eficiência dos frades, tinha pensado em convidar formalmente mais 120 missionários italianos para vir ao Brasil. A constatação da irrealidade desse número baixara o pedido final para 60, mas, ainda assim, Campodonico achava a cifra exagerada, visto, sobretudo, que a seleção tinha que ser extremamente cuidadosa e evitar, a todo custo, mandar padres diretamente das províncias da Ordem. Para a delicada situação agrária brasileira, dizia o internúncio, era melhor enviar “un buoni che dieci mediocri”.35 4. A geração do novo conflito Porém, o que parecia ser a pedra fundamental da consolidação das missões capuchinhas italianas no Brasil converteu-se, de fato, na base de uma forte manobra do novo gabinete liberal instalado em fevereiro de 1844 por colocar, sob controle do governo central, uma força de dissuasão tão poderosa como pareciam ser os missionários barbadinos.36 Assim, em 30 de julho de 1844, o decreto nº 373, já citado, determinava “as regras que se devem observar na distribuição pelas Províncias dos Missionários Capuchinhos”.37 Longe da prática anterior dos gabinetes liberais de produzir mecanismos de exclusão simples e direta das ordens missionárias, o decreto, com os seus instrumentos de controle, era de fato um atestado da importância (e da periculosidade) crescente dos capuchinhos. O decreto n° 373 converteu-se, a partir desse momento e até 1853, quando se chegaria a um novo modus vivendi, no centro de uma intensíssima – e disimuladíssima – disputa entre o poder civil e os bispos diocesanos, por um lado, e a cúria romana e as missões capuchinhas, pelo outro. Nos seus termos, o decreto alterava, por decisão do governo brasileiro, a cadeia hierárquica que 35 36 37 Internunzio apostolico Campodonico a cardinale Fransoni. Rio de Janeiro, 04.08.1843. AmMer, v. VII, fl. 241. O pedido formal foi encaminhado ao prefeito da SCPF apenas dois meses depois da confidência de Campodonico. Dos 60 frades solicitados com extrema urgência – e a serem escolhidos através de rigorosa seleção – 35 iriam para o Rio de Janeiro e 25 para o Maranhão, de onde seriam redistribuidos para outras províncias na vizinhança. Cf. MONTINHO, L. Envoyé extraordinaire et ministre plenipotenciaire de S. M. l’empereur du Bresil près le Sant Siège a cardinal Fransoni. Legation de S.M. l’empereur à Rome, 30.10.1843. AmMer, v. VII, fl. il. Sobre o gabinete que administrou o Brasil durante o famoso quinquênio liberal, veja-se BETHELL & CARVALHO. 1822-1850. In: BETHELL, Leslie (ed.). Brazil: empire and republic. Cambridge, G.B., Nova York: Cambridge University Press, 1989. ‘Decreto nº 373 de 30 de julho de 1844... AmMer, v. VII, fl. 535. 194 subordinava até esse momento os missionários capuchinhos à S. C. da Propaganda Fide e ao Vaticano – via núncio apostólico –, sem nenhuma interferência dos bispos diocesanos ou qualquer outra autoridade eclesiástica local. A partir desse momento, pelo contrário, as missões capuchinhas ficavam inteiramente subordinadas ao governo que legislava, inclusive, sobre quais os assuntos em que os missionários deveriam obedecer aos bispos e em quais aos prefeitos – apenas em questões estritamente eclesiásticas e regulares. Mais grave ainda, proibia que os missionários obedecessem a ordens de Roma sem autorização prévia do governo. Finalmente, o decreto patrocinava a reentrada em ação dos bispos diocesanos, ainda sujeitos ao padroado e nomeados pelo imperador, como possíveis intermediários entre as missões e Roma.38 Tudo indica que o decreto tinha sido promulgado como resposta a um incidente que enfrentara diretamente os interesses e as estruturas de autoridade do Estado e da Igreja no Brasil no início do período do gabinete liberal. Dentro do remanejamento de missionários e prefeitos detonado pelo movimento de reforma comandado pela Propaganda Fide e pela Curia Generalizia dos capuchinhos em Roma a partir de fins de 1842, um velho capuchinho, fr. Fideles de Montesano que, por muitos anos, tinha chefiado o que restara da Prefeitura do Rio de Janeiro e que, nessa qualidade, tinha se vinculado estreitamente aos círculos palacianos, fora indicado por Roma em junho de 1844 para chefiar uma nova missão em Belém do Pará.39 Estava claro que se tratava de exercitar em plenitude a autoridade da cúria romana sobre os missionários, e de afastar de uma sede tão sensível como o Rio de Janeiro um personagem de grande poder junto à Corte e que, de maneira alguma, poderia ser considerado um homem do Vaticano. Estava claro também que o gabinete liberal não permitiria essa manobra, sob o argumento de que contrariava a vontade do imperador. De fato, em 12 de junho de 1844, assim que foi feita pública a determinação do internúncio para remover o velho 38 39 Ministro da Justiça, Manoel Antonio Galvão, a bispo capellão-mor. Paço, 03.08.1844. AmMer, v., fl. 578. A documentação referente à crise chega até o fl. 636; MELLO. Ligeiros traços, op. cit., p. 66; NEMBRO. Storia, op. cit., p. 220-223. Como é sabido, durante a década de 1830, a questão do padroado e, especialmente, da autoridade do poder civil para nomear bispos, tinha atingido seus momentos mais tensos com a nomeação de Feijó para a diocese de Mariana em 1835, que somente foi confirmada pela Santa Sé após retratação pública do sacerdote sobre suas anteriores posições de desafio à doutrina e à unidade da Igreja. É sabido que Feijó renunciou à investidura pela sua eleição em outubro de 1835 como regente do Império. Cf. ELLIS JÚNIOR, Alfredo. Feijó e a primeira metade do século XIX. 2a. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1980. Eugenio da Rumilly, vicario generale di Capuccini a mongr Ignazio Cadolini segrero della Sag. Congr. di Propaganda. Roma, Convento di Cappuccini, 17.12.1842. AmMer, v. VI, fls. 714-715. 195 frade, o governo imperial, através do ministro da Justiça, Manoel Antonio Galvão, deixou claras as novas diretrizes de relacionamento com a Igreja e, em especial, com as ordens missionárias: Constatando que alguns Missionarios Capuxinhos pretendem retirar-se desta Corte sem que para isso tenha precedido autorisação do Governo o que he contrario as intenções de S. M. o Imperador quando solicitou a sua vinda e as vistas do Governo para serem empregados onde com mais proveito dos povos possam espalhar a semente do Evangelho. Houve o mesmo Augusto Senhor por bem ordenar ao Prefeito dos referidos Missionarios que não permita que desta Capital se retire algum sem ordem positiva do Governo Imperial.40 Uma mudança de destino, de Belém para o Hospício de Pernambuco, não foi suficiente para que o Ministério da Justiça expedisse os passaportes necessários para a viagem de fr. Fideles, apesar da insistência do internúncio, que se apoiava na autoridade do próprio superior geral dos capuchinhos. Rapidamente, passou-se de um problema de incompatibilidade entre as necessidades administrativas da Ordem e a vontade pessoal do imperador (ao que tudo indica muito ligado ao velho capuchinho) a uma questão nítida de princípios de autoridade. Nas entrelinhas da disputa tinham surgido outros elementos de importância para a compreensão do caso. Por um lado, fr. Fideles aparecia como um forte candidato a bispo e, mais alarmante, como o homem que poderia ser imposto pelo governo no futuro cargo de comissário geral das Missões Capuchinhas no Brasil – o que significaria a perda total do controle romano sobre os missionários italianos. Mas a disputa transbordava para outras arenas, pois um dos mais fortes apoios de fr. Fideles era o embaixador napolitano perante a Corte do Rio de Janeiro, commendattore Gennaro Merolla, o que dava ao problema conotações de pugna entre os dois aliados, o Reino de Nápoles e os Estados Pontifícios, pelos espaços de influência no Brasil construídos pelos capuchinhos através das missões populares entre os pobres livres. A força do embaixador napolitano decorria certamente do fato de que as missões sicilianas, que predominavam no Brasil estavam sujeitas à supervisão da Concezione dei Cappuccini di Napoli.41 Criado o impasse, 40 41 Manoel Antonio Galvão a internunzio d. Mabrosio Campodonico. Rio de Janeiro, 12.06.1844. AmMer, v. VII, fl. 562. Nos fls. 562r e ss estão as cópias da correspondência trocada entre o governo imperial e o internúncio sobre a questão da jurisdição dos missionários. Dele dizia fr. Fideles: “i Missionari lo considerano come un Presidente della Missione”. Por outro lado, insinuara-se também que o affair Fideles tinha sido agravado por problemas de antipatia pessoal entre o internúncio e o ministro da Justiça. Cf. Internunzio a bispo de Chrysopoles, fr. Pedro de 196 os principais personagens trataram, por diversas maneiras, de consolidar suas posições e, ao mesmo tempo, abrir novos canais de comunicação. Em setembro de 1844, numa atitude aparentemente conciliatória, mas que na realidade procurava apenas ganhar tempo enquanto se armava a reação de Roma, o internúncio submeteu às autoridades brasileiras a necessidade de transferir diversos frades capuchinhos do Hospício do Rio de Janeiro para o de Pernambuco, o que foi rapidamente concedido pelo ministro da Justiça nos seguintes termos: Tem-de comunicar-lhe em resposta, que Sua Magestade o Imperador, a quem compete designar os lugares onde os Missionarios Capuxinhos devam ser empregados e exercitar o seo Apostolico Ministerio, tem resolvido que partam imediatamente para a Provincia de Pernambuco os Padres Eusebio de Sale, e Henrique do Castello de São Pedro, a fim de serem empregados n’aquella Provincia temporariamente, conforme lhes foi indicado pelo Bispo Diocesano, na conformidade do Decreto de 30 de julho passado.42 Mas, nesse mesmo mês de setembro, o representante do Vaticano no Rio de Janeiro apresentava a versão final do episódio num extenso relatório enviado ao cardenale prefetto da Propaganda Fide, traçando, em termos gerais, as mudanças ocorridas no panorama político do Império com a queda dos conservadores em fevereiro de 1844 e a instauração de um governo “che si chiamano di conciliazione, perchè nel voler pace con Dio non vogliono neppure romperla affatto col Diavolo”.43 Imediatamente após o envio do relatório, o internúncio formalizou a crise diplomática encaminhando ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil uma “nota de protesto”. Poucos dias depois apareciam evidências de que Roma suspendera o envio de missionários capuchinhos ao Brasil por tempo indeterminado, como represália pelo decreto.44 Tudo parecia indicar, porém, que a medida seria de curta duração 42 43 44 Souza de S. Marna, Elemosiniere (?) de S. M. l’emperateur. Rio de Janeiro, 07.07.1844. AmMer, v. VII, fl. 570; Bispo de Chrysopoles [capelão-mor] a internunzio. Santa Cruz, 09.07.1844. AmMer, v. VII, fl. 571-571r.; Internunzio a bispo de Chrysopoles. Rio de Janeiro, 11.07.1844. AmMer, v. VII, fls. 568-575; Bispo de Chrysopoles a internunzio. Rio de Janeiro, 15.07.1844. AmMer, v. VII, fl. 575. Internunzio a cardenale prefetto. Rio de Janeiro, 26.09.1844. AmMer, v. VII, fls. 638-649r. Manoel Antonio de Galvão a internunzio. Rio de Janeiro, 14.09.1844. AmMer, v.VII, fl. 636. Internunzio a cardenale prefetto. Rio de Janeiro, 26.09.1844. AmMer, v. VII, fls. 638-649. Em outubro de 1844, o representante brasileiro perante a Santa Sé reclamou da demora no envio das 60 missionários solicitados um ano antes, dos quais apenas 12, acompanhados por três irmãos leigos, tinham efetivamente embarcado. O enviado solicitara a intervenção direta de Fransoni junto ao superior dos capuchinhos para que “se cumpra a solicitação do imperador”. Porém, uma anotação manuscrita na margem esquerda do fólio condicionava a 197 – ou ao menos assim o estimavam as autoridades da cúria romana, pois na Itália prosseguiam com relativa normalidade os preparativos para o envio de novas levas de missionários capuchinhos italianos ao Brasil.45 Se a Propaganda Fide continuava preparando capuchinhos italianos para as missões no Brasil, no entendimento de que a crise provocada pelo decreto de 1844 teria um corolário rápido e satisfatório – o que mostrava, entre outras coisas, a confiança que Roma tinha na importância desses agentes para os planos de controle político das populações rurais do governo brasileiro – as missões já implantadas e principalmente a do Hospício de N. S. da Penha em Recife aceleravam o ritmo das suas ações, como que atiçadas pela crise institucional e amplamente favorecidas pelo incessante clima de conflito e tensão social que pairava por esses anos sobre os céus nordestinos.46 De acordo com os registros missionários, esse mesmo ano de 1844 foi de intensos trabalhos pastorais de “pacificação”, dirigidos a neutralizar uma violenta insurreição político-partidária com participação cabana na fronteira de Pernambuco com Alagoas, municípios de Água Preta e Jacuípe.47 Não 45 46 47 normalização do trâmite de envio dos frades à revisão “del Decreto de Juglio 1844 senza cui non manderanno Missionari”. L. Montinho, ministre plenipotenciaire [...] a cardinal Fransoni, préfet de la Propagande. Legation de S. M. [...] a Rome, 10.10.1844. AmMer, v. VII, fl. 650. Na metade de junho de 1845, por exemplo, seis frades encontravam-se já selecionados e “preparati per la spedizioni al Brasile”. Fr. Giusto da Camerino, prefetto del Collegio dei Missioni Cappuccini a mons Brunelli, secretario de Propaganda Fide. Roma, 16.06.1845. AmMer, v. VII, fl. 740. Não é este o lugar para discutir em detalhe o contexto socioeconômico das missões. Vale apenas lembrar que a década de 1840 em Pernambuco, especialmente a sua segunda metade, foi um período que combinou a maior expansão da agricultura escravista açucareira de que se tinha notícia desde a década de 1790 com a fase terminal da crise do algodão – que certamente afetaram de maneira direta milhares de pequenos cultivadores pobres, enquanto o avanço dos engenhos e canaviais pressionava os distritos camponeses da periferia da zona da mata. Os próprios capuchinhos registram frequentemente as deploráveis condições de vida da população rural de Pernambuco e Alagoas, como consequência de desemprego massivo. Vid. MESSINA. Apontamentos, op. cit., p. 2-3. EISENBERG, P. Sugar industry in Pernambuco. Modernization without change, 1840-1910. Berkley: University of California Press, 1974; BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1897-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1976, p. 214-216; PALACIOS. Campesinato e escravidão, op. cit., p. 155-161. MELO. Ligeiros traços, op. cit., p. 67; MESSINA. Apontamentos, op. cit., fl. 3; Frei Caetano, pfto. interino das Missões Capuchinhas em Pernambuco ao rvo. sr. pe me fr. Fabiano de Scandiano, commissario geral dos Missionarios Capuchinhos Italianos no Império do Brazil. Recife, 23.05.1849. AGOC/Rio; Requerimento do frei Caetano de Messina à Assembleia Provincial, 23.03.1852. Diário de Pernambuco, 30.03.1852. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 314-315, 387-388. A origem do conflito foi um levantamento de grupos conservadores das Alagoas, que contou com o apoio de tropas comandadas por Vicente de Paula, contra a presidência liberal de Bernardo de Sousa Franco. Cf. QUINTAS, Amaro, op. cit., p. 217. 198 menos importante do que os efeitos das missões era o fato de que os frades sicilianos tinham conseguido manobrar estritamente nos limites do novo status quo implantado pelo governo, pois a sua intervenção dera-se em “obediência” às ordens – também cheias de tato – do bispo diocesano.48 Por esses e outros feitos, a sede pernambucana tinha-se convertido, nesses anos, no foco mais brilhante de atividade missionária dos capuchinhos italianos no Brasil, em grande parte devido à habilidade com que o novo prefeito e o seu vice, após um difícil período de adaptação, conseguiam, com discrição e eficiência, executar as suas funções missionárias numa província que estava praticamente em pé de guerra desde 1817. Em 1845, quando um novo decreto, desta vez regulamentando as atividades missionárias entre as comunidades indígenas,49 aprofundara a crise iniciada em junho de 1844, e levara o internúncio a recomendar a Roma a suspensão imediata de envio de capuchinhos ao Brasil, a missão pernambucana tinha sido colocada como a única porta ainda aberta à continuidade dos frades italianos nas terras da Santa Cruz: “Ripeto che per adesso non conviene mandare cappuccini; che mandandoli, conviene, dirigerle a Pernambuco, e non altrove, per nessun motivo”.50 Algumas funções de política institucional da Ordem passaram a ser também uma incumbência do Hospício de Pernambuco que assumia, dessa maneira, um caráter oficioso de missão central capuchinha no Império. Após visitar todos os hospicios da Ordem no Brasil durante o primeiro semestre de 1845, antes do novo decreto, o internúncio Campodonico já tinha chegado à conclusão de que Nossa Senhora da Penha deveria funcionar como um estágio de aperfeiçoamento dos novos frades vindos da Itália, um complemento “empírico” 48 49 50 A cautelosa retórica do prelado pode ser apreciada nesta passagem: “Sendo-nos ora requisitado um Reverendo Missionario para exercer o seu ministerio na freguezia d’Agoa-Preta, Jacuipe, e por mais alguns lugares proximos a esta capital, conhecendo nós quão necessaria e util seja esta Missão, julgamos conveniente, que Vossa Reverendissima designe um Missionario, que se dirija áquella freguezia quanto antes, e, querendo, poderá embarcar-se d’aqui para o RioFormoso, onde encontrará conducção para aquella freguezia, qual promette prestar Francisco de Barros Rego, senhor do engenho Santo André [...]”. João Bispo Diocesano a prefeito Placido de Messina. Palácio da Soledade, 25.10.1844. In: [MESSINA, P. de?], Trabalhos, op. cit., p. 11. Decreto de 24 de julho de 1845. Colecção das Leis do Brasil, 1846. O decreto instituía a figura civil do diretor de índios nos aldeamentos e, embora drástico, não era, como o de 1844, um instrumento diretamente pensado para subordinar os missionários capuchinhos ao poder civil. Cf. Ata de 29 de maio de 1845. In: Atas do Conselho de Estado, v. III, p.105-106. AMOROSO. Mudança de hábito, op. cit. Internunzio a cardinal Fransoni. Rio de Janeiro, 16.08.1845. AmMer, v. VII, fl. 760. 199 à preparação recebida no Colégio dos Capuchinhos em Roma.51 Assim, em julho de 1845, ao se iniciarem as consultas para o estabelecimento de um comissariato geral das missões no Brasil, sediado no Rio de Janeiro, o internúncio recomendou que o commissario generale fosse empossado tendo, como próximos “consultori”, fr. Placido, de “destreza ammirabile”, e fr. Gaetano da Catania, ambos destacados em Pernambuco.52 No final de 1845, a crise tomou ares oficiais e públicos com a resposta formal do governo brasileiro, através do ministro dos Negócios Estrangeiros, Antonio Paulino Limpo de Abreu, à nota de protesto do Vaticano referente aos termos do decreto de julho de 1844, e com a confirmação, também pública, da suspensão formal por parte de Roma do envio de maiores contingentes de missionários capuchinhos ao Brasil. A extensão da resposta oficial, 14 fólios de letra manuscrita apertada e regular, poderia, à primeira vista, parecer um indício da importância que o governo imperial atribuía ao problema suscitado pela reação de Roma. Mas a razão era outra, a saber: mostrar às autoridades da Santa Sé a indiscutível capacidade do Ministério dos Negócios Estrangeiros brasileiro para discutir detalhada e minuciosamente, de igual para igual, diversos aspectos e intrincadas questões de direito canônico, no intuito de provar que o decreto em nada feria as prerrogativas do Vaticano, pois tinha sido elaborado conforme os manuais da legislação eclesiástica. Isso ficava patente nas justificativas apresentadas para a regulamentação que o decreto fazia da cadeia de obediências dentro 51 52 Dizia Campodonico: “L’Ospizio di Pernambuco è l’unico modello di regolarità cui io abbia incontrato. Quel Prefetto D. Placido de Messina é Superiore ad ogni elogio. Alla fermeza ed alla prudenza del commando accoppia tal suavità chi i suivi lo amano e lo rispettano [...]. O gli Ospizi del Brasile si uniformeranno a quel di Pernambuco [...] Affim de trare [?] frutto de questo mio convencimento, digo, eminentissimo, che d’ora innanzi qualunque Cappuccino si a mandato a questo impero (previa la buona scelta da Farnese di Roma) venha diretto a Pernambuco, dove abbia q formarse almeno sei mesi e[n] quell’otima scuola. Quella città, e non Bahia, e molto meno Rio-Janeiro potra servir di centro donde escano i Padri per gli altri Ospizi”. Loc. cit. Idem a idem, Rio de Janeiro, 29.07.1845. AmMer, v. VII, fls. 758-759r. O candidato do enviado do Vaticano era o “vecchio P. la Beforte”, um capuchinho chegado ao Brasil em 1842 e originalmente indicado para substiuir fr. Fideles como prefeito do Rio de Janeiro, após ter fracassado em tomar posse da Prefeitura da Bahia pela ferrenha oposição de dom Romulado de Seixas. Cf. Eugenio da Rumilly, vicario generale di Capuccini a mongr Ignazio Cadolini segrero della Sag. Congr. di Propaganda. Roma, Convento di Cappuccini, 17.12.1842. AmMer, v.VI, fls.714-715; Vicario general di Cappuccini a cardinale Fransoni. Roma, Convento di Cappuccini, 03.04.1843. AmMer, v. VII, fl. 146-155r.; RUBERT. A Propaganda e o Brasil, op. cit., p. 645. Uma pesquisa suplementar poderia verificar até que ponto essa notoriedade da missão pernambucana refletia também – no caso brasileiro – o fracasso dos esquemas de preparação de missionários elaborados pela Propaganda Fide e pela própria Ordem. 200 da própria hierarquia da Igreja católica no Brasil, baseadas todas no fato de que essa determinação apenas acompanhava as próprias linhas canônicas. Assim sendo, dizia o ministro, “da-se o status quo, que Sua Ema. deseja, e põe como condição da vinda de novos Missionarios para o Brasil”.53 Mas, ao mesmo tempo em que sustentava o litígio, o governo brasileiro continuou insistindo sem descanso para que novas levas de capuchinhos italianos fossem enviadas com urgência ao Brasil. Essa era, de fato, a tarefa mais importante da representação brasileira em Roma, por inteiro dedicada a acompanhar o pedido de 60 missionários feito em outubro de 1843 – ainda na vigência do gabinete conservador –, que Fransoni, “son Eminence Rma, a bien cru devoir suspendre à cause d’um Décret publié par le Gouvernement Imperiale le 30 juillet 1844”. A argumentação do enviado enfatizava uma interpretação absolutamente original do decreto, pois, segundo ele, longe de atentar contra a autoridade da Santa Sé, visava garantir a autoridade da Propaganda Fide diante de outras instâncias religiosas. Evidentemente, o governo imperial tratava de estabelecer planos diferenciados de relacionamento que permitissem separar as ordens regulares da Igreja secular – não apenas por questões do baixo prestigio dos párocos e demais integrantes das estruturas diocesanas, mas por questões absolutamente pragmáticas de utilidade e funcionalidade das corporações missionárias.54 5. As saídas para a crise Embora se negando a reiniciar o fluxo de missionários capuchinhos italianos ao Brasil enquanto não fossem modificados os termos do decreto n° 373, a Propaganda Fide também não descuidou, em momento algum, do cultivo das relações com o Império. Em 1847, ainda em pleno domínio do gabinete liberal, a Prefeitura do Rio de Janeiro foi convertida em Comissariado Geral das Missões Capuchinhas no Brasil, atendendo uma proposta do governo feita no próprio texto do decreto de 1844, embora o regulamento que 53 54 Antonio Paulino Limpo de Abreu, ministro das Relações Exteriores, a monsenhor Campodonico, internúncio apostólico. Rio de Janeiro, 19.12.1845. AmMer, v. VII, fls. 782-794r. Logo depois do envio da resposta formal do governo imperial, encaminhada através dos canais diplomáticos competentes, o plenipotenciario brasileiro em Roma reforçou a nota oficial perante o prefeito da Propaganda, cardeal Fransoni, mas interpretando e suavizando seus termos e minimizando o episódio como um “petit desacord”. L. Moutinho, envoyé extraordinaire et ministre plenipotentiaire de S. M. [...] a cardinale Fransoni. Legation de S. M. [...] à Rome, 05.03.1846. AmMer, v. VII, fls. 841-843r. 201 formalizaria o Comissariado fosse demorar ainda quatro longos anos.55 Mas, a partir de setembro de 1848, com a queda dos liberais e a ascensão ao poder do gabinete conservador chefiado pelo visconde de Olinda, o panorama das ligações Igreja-Estado assumiu novas feições. Por um lado, retomaramse as boas relações que tinham caracterizado os primeiros anos da década, quando os capuchinhos tinham sido entusiasticamente recebidos por um governo igualmente conservador. Pelo outro, Pernambuco convertia-se, com a Revolução Praieira, no foco central de tensão política e social de todo o Império e, naturalmente, num palco privilegiado para as “miraculosas” intervenções políticas dos missionários italianos.56 No clima de delicada e laboriosa consolidação da ordem conservadora que se seguiu à derrota da Praieira, rápidos avanços foram feitos no sentido de cauterizar a ferida aberta pelo contencioso em torno das missões capuchinhas nas relações entre o Brasil e o Vaticano. Embora o embargo geral fosse mantido, o papa interveio pessoalmente no segundo semestre de 1850 para dar um sinal de boa vontade, autorizando o envio de seis frades, enquanto a cúria romana reiterava os requerimentos para modificar o decreto.57 O sinal foi rapidamente entendido. No segundo semestre de 1851, o governo anunciou o início da revisão do decreto de 1844 e a redação de um novo instrumento legal regulamentando a atuação das missões capuchinhas 55 56 57 SCANDIANO. Esposizione, op. cit., fl. 96; RUBERT. A Propaganda no Brasil, loc. cit. A insurreição Praieira foi possivelmente o único caso em que os capuchinhos tiveram que confessar publicamente seus limites e sua incapacidade por controlar qualquer tipo de revolta. Cf. Requerimento do frei Caetano de Messina à Assembleia Provincial, 23.03.1852. Diário de Pernambuco, 30.03.1852. Sobre a Praieira, veja-se BETHELL & CARVALHO. 1822-1850. In: BETHELL. Brazil, op. cit., p. 104-106; CARNEIRO, Edson, A insurreição praieira. Rio de Janeiro: Brasilense, 1967; MARSON, Isabel Andrade. O império do progresso. A Revolução Praieira em Pernambuco (18421855). São Paulo: Brasiliense, 1987 e CARVALHO, Marcus J. M. de e CÂMARA, Bruno Dorneles. A Rebelião Praieira. In: DANTAS (org.). Revoltas. Motins. Revoluções, op. cit. Em junho de 1850, Moutinho alertou Fransoni da iminência da partida de um navio de Gênova para o Brasil, no qual poderia ser embarcado “un premier envoi des Missionaires Capucins”. L. Moutinho, ministre plenipotencieire de S. M. [...] a cardinale Fransoni. Roma, Legation Imperiale du Bresil, 05.06.1850. AmMer, v. VIII, fl. 280; isso está confirmado em Instruzioni per mr Gaetano Bedini, arcevescovo de Tebes, inviato straordinariamente del S. P. [...] s/l, 09.04.1853. AmMer, v. IX, fls. 49r-50. Por outro lado, a transformação da Propaganda Fide na única interlocutora oficial, exclusiva, das representações estrangeiras perante a Santa Sé em tudo quanto dizia respeito às missões apostólicas no exterior, determinada por esses dias pelo Vaticano, pode ter facilitado em grande medida a reaproximação, pois eliminava complexas problemáticas específicas de outras instâncias intermediárias, como o próprio Farnese. O recebimento da comunicação da mudança está em P. Felice Gispari, procurador general cappuccini, a monsgr Alessandro Barnabó, secretario da PF. Roma, Procura General de Cappuccini, 04.10.1850. AmMer, v. VIII, fl. 329. 202 no Brasil. Significativamente, em contraste com a atitude imperial da primeira versão, desta vez o projeto foi enviado com anterioridade ao representante da Santa Sé no Brasil, per fare le necessarie correzioni ed io con i Padre Commissario Generali dei suddetti Missionari le teci con la circonspezione devuta, e subito le rimissi al Sigr Ministro dimandando con efficacia che se dignasse di accetttare l’emendazione fatte nel Projetto af- finchè il nuovo decreto stabilisca una perfetta armonia tanto desiderata tra il Governo e la Santa Sede. Il resultato delle queste emendazioni da parte del Governo chemi será comunicato, subito participerò all’Emza Va [...].58 Logo depois, em fevereiro de 1851, o Vaticano dava mais um passo na distensão das relações com o Império oficializando o Comissariado Geral das Missões Capuchinhas no Brasil, instalado no Rio de Janeiro, e publicando finalmente seu regulamento.59 Continha apenas dois artigos, mas que atendiam plenamente às condições do governo imperial – e resguardavam os espaços da Igreja. O primeiro consagrava o Rio de Janeiro, a capital do Brasil, como o centro das missões. O comissário geral seria nomeado pela Propaganda Fide com obediência direta ao núncio papal, o que de fato dava a toda a estrutura missionária a natureza de uma organização estrangeira trabalhando em solo brasileiro. As missões das províncias, por sua vez, seriam dirigidas pelos respectivos prefeitos e vice-prefeitos. O segundo artigo designava o comissário como o vínculo oficial das missões com o governo brasileiro, enquanto que os prefeitos e vice-prefeitos se entenderiam com os presidentes das províncias. Implícitamente, os bispos eram dispensados de qualquer participação. Em diversas reuniões acontecidas nas semanas seguintes, o representante da Santa Sé e os ministros de Assuntos Estrangeiros e da Justiça negociaram os termos do novo decreto no meio de reiterados protestos de paz e harmonia, e de promesas de constantes consultas sobre as diversas versões do projeto antes da sua publicação. Embora tudo indicasse que terminava a longa disputa entre o Vaticano e o governo imperial, a proibição geral da vinda de novos missionários ficou 58 59 Antonio Vieira Borges, encarregado interino de Assuntos da Santa Sé na Corte Imperial do Brasil a cardinale Giacomo Filippo Fransoni, prefetto. Rio de Janeiro, s/d [agosto 1851]. AmMer, v. VIII, fl. 300. O documento indica que acompanha uma cópia do projeto de decreto. Articole di Regolamento per le Missioni Aposte dei P. P. Cappuccini nello Impero del Brasile. Rio de Janeiro, 20.02.1851. AmMer, v. VIII, fls. 382-383. O regulamento era justificado assim: “Non potendo le Missioni prosperare se non per una direzione certa, non soggeta a limitazioni arbitrarie per opinioni ed interessi particolari, lontana da quam voglia relazione a cosa politiche, ed in armonia con la disciplini regolare dei Missioneri [...]”. 203 mantida até que o teor efetivo do novo decreto fosse conhecido.60 Em março de 1852, logo após a decisiva participação dos capuchinhos no controle da insurreição contra o Registro dos Nascimento e Obitos no Nordeste, 61 a reaproximação chegava a um ponto culminante com a primeira nomeação, em décadas, de um núncio apostólico pleno perante o governo do Brasil62 – embora o novo decreto ainda não aparecesse; no ano seguinte, fr. Fabiano de Scandiano era confirmado pela Santa Sé como comissário geral das Missões Capuchinhas no Império.63 Porém, o trunfo maior do Vaticano, e o maior interesse do governo brasileiro, a retomada do envio de frades italianos, continuou negado pela Propaganda Fide, “finchè quel Governo non adotti altro temperamento verso i Missionari indigini”.64 Logo após, em agosto de 1853, o ministro do Império testou pela primeira vez o recém-aberto canal direto de comunicação com a Propaganda Fide, pressionando Scandiano no sentido de que “ci dica per quali mezzi opportuni si possa far venire d’Italia un numero sufficiente di Missionari”. O comissário respondeu sugerindo que o governo incorporasse as modificações no regulamento que tinha prometido à Propaganda Fide e, a instâncias do próprio ministro – que não confiava nas negociações encaminhadas pelo antecessor de Scandiano –, enviou novamente a relação das alterações decididas de comum acordo. As propostas indicavam que, após a revisão ambos os decretos, o de 1844 e o de 1845 seriam convertidos num 60 61 62 63 64 Mons. A.V. Borges a cardinal Fransoni. Rio de Janeiro, 23.06.1851. AmMer, v. VIII, fl. 417. Tudo indica que os ministros não continuaram as consultas sobre o projeto, como prometido, pois, em outubro desse mesmo ano, Borges advertiu Fransoni de que o novo decreto estava para ser publicado, mas que não sabia se as modificações por ele sugeridas tinham sido de fato incorporadas no texto final. Idem a idem, Rio de Janeiro, 06.10.1851. AmMer, v. VIII, fl. 445. Por outro lado, parecera que o projeto original do novo decreto nunca chegou às mãos da Secretaria de Assuntos Estrangeiros do Vaticano, que repreendeu o seu representante no Brasil por não ter informado nem dos termos iniciais nem das modificações que ele sugerira. Cf. Instruzioni per mr Gaetano Bedini [...]. S/l, 09.04.1853. AmMer, v. IX, fl. 50. Cf. PALACIOS. Revoltas camponesas, op. cit.; veja-se também PALACIOS, G. Imaginário social e formação do mercado de trabalho: o caso do Nordeste açucareiro do Brasil durante o século XIX. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 31, junho de 1996. Secretario della S. Congregazione degli Affari Esteri Straordinari a monsgr. Alessandro Barnabó, secretario della Propaganda Fide. Roma, 27.03.1852. AmMer, v. VIII, fl. 479. O indicado era mons. Bedini. Como acontecia com frequência, a confirmação era uma manobra de duplo sentido, pois, ao mesmo tempo em que atendia condições do governo brasileiro, mantinha posições do Vaticano, uma vez que Scandiano sabia-se politicamente desgastado e em “desinteligenza con la Persone del Governo”. Fr. Fabiano de Scandiano a cardinale Fransoni. Rio de Janeiro, 08.08.1853. AmMer, v. VIII, fl. 651r. Fr. Fabiano de Scandiano a cardinale Fransoni. Rio de Janeiro, 08.08.1853. AmMer, v. VIII, fl. 651r; Ministro general dei Cappuccini a monsr Alessandro Barnadò, secretario della Propaganda Fide. Roma, 23.08.1853. AmMer, fl. 659. 204 regulamento só. Os nove pontos eram: 1°. O centro das missões seria o Rio de Janeiro, e seu objetivo primordial era evangelizar indígenas. Concediase ao governo o direito de determinar onde seriam estabelecidos os novos pontos de concentração da população indígena; 2°. Os documentos oficiais não mencionariam a questão da obediência entre as diversas hierarquias eclesiásticas, com ao qual o governo nada tinha a ver, ou então seria citado apenas o direito canônico; 3°. Qualquer determinação governamental referente aos missionários seria encaminhada apenas através do respectivo superior; 4°. Nos hospícios, ficariam somente os frades necessários ao serviço do lugar; 5°. Nenhum missionário seria empregado como pároco onde não houvesse índios, a não ser por pouco tempo e com o consentimento do seu superior; 6°. Os missionários não seriam empregados em distâncias que lhes impossibilitassem a comunicação regular; 7°. A autoridade suprema nas novas povoações indígenas que se formassem seria o missionário, até que os índios estivessem suficientemente catequizados; 8°. O comissário geral não concederia licença aos missionários senão em caso de comprovada necessidade, ou para a manutenção da disciplina ou quando houvesse quem os substituisse; e 9°. Os missionários apresentariam ao governo, através dos seus superiores, relatórios anuais das missões.65 Em outubro de 1854, o governo brasileiro transmitiu discretamente à Propaganda Fide sua intenção de atender as sugestões do comissário geral, enquanto o Ministério da Justiça circulava instruções para que as recomendações de fr. Fabiano fossem cumpridas, no intuito de regularizar imediatamente o fluxo de missionários capuchinhos para o Brasil.66 Por último, em março do ano seguinte, já no quadro das novas relações, o representante brasileiro em Roma solicitou formalmente a Fransoni o envio de “ao menos 40 missionários Religiosos Italianos da Ordem dos Capuchinhos”. O comunicado formalizava os termos do armistício sugeridos por fr. Fabiano, pois nele o governo brasileiro requeria que cada missão tivesse um prefeito “et pour se conformer aux désire de la Propagande, qu’elles dependent du Comissaire Général residant à Rio de Janeiro”. Como d’antes, o governo imperial encarregar-se-ia de todos os gastos necessários ao translado Roma-Brasil, e pagaria uma “pensão” a 65 66 Fr. Fabiano de Scandiano a cardinale Fransoni. Rio de Janeiro, 08.08.1853. AmMer, v. VIII, fl. 651r. Le chev. Figueiredo a cardinal Fransoni. Legation du Brésil a Rome. 02.10.1854. AmMer, v. IX, fls. 143-145r; José Thomás Nabuco de Araujo, ministro da Justiça, a encarregado dos Assuntos do Brasil em Roma. Rio de Janeiro, 01.11.1854. AmMer, v. IX, fls. 148-153 (inclui uma memória do contencioso, segundo a ótica brasileira). 205 cada um dos frades para ajudá-los nos gastos das missões, atendimento ao culto e estabelecimento das novas aldeias. Confirmando a concessão de um dos pontos que mais resistência tinha provocado nas fileiras de gabinetes anteriores, o representante afirmava que “l’administration des hameaux sera de la competence exclusive des Missionaires sans intervention ou entrave de la part des Autorités Civiles”, devendo apenas os missionários, como ja se disse, apresentar aos seus superiores relatórios anuais sobre o andamento das missões. Garantia a inamobilidade dos missionários, “salvo casos de urgência e por pouco tempo”, e comprometia o governo, entre outras coisas, a estabelecer cátedras de línguas indígenas em cada província que tivesse missões capuchinhas. O governo reservava-se o direito de administrar a distribuição dos frades, mas apenas em termos da sua localização física. Prefeitos e comissários teriam plena liberade de nomear, trocar, retirar ou exonerar missionários, apenas informando o governo com certa antecedência. O documento terminava manifestando a vontade do imperador de que os direitos dos bispos com relação aos missionários obedecessem exclusivamente aos preceitos do direito canônico, pois os desejos de d. Pedro II eram – e sempre tinham sido – os mesmos que os da Propaganda Fide. 67 6. À guisa de conclusão Somente em 1867 foram enviados ao Nordeste novos missionários capuchinhos, e não tanto para atender às necessidades do Estado e, sim, para enfrentar outros, talvez mais formidáveis perigos: o retorno dos temíveis jesuítas às atividades missionárias no Nordeste e a propagação do protestantismo entre as populações do interior. Com relação aos primeiros, falava-se da “concorrencia que levantão contra nós os jesuitas, que nos obriga a novos trabalhos para não inutilizar-mos as fadigas dos nossos velhos”. Sobre os segundos, o encarregado da Prefeitura de Pernambuco, fr. Fidelis Maria de Fogman, advertiu, em fins de 1866, o comissário geral que “Os protestantes começam também aqui a levantar a cabeça espalhando biblias e folhetins. Não podia acontecer diversamente porque este governo assim como o italiano se não ajuda os protege”.68 A documentação não menciona a origem 67 68 Le chev. J. B. de Figueiredo a cardinal Fransoni. Legation du Brésil a Roma. 29.03.1855. AmMer, v. IX, fls. 45-47r. Fr. Fidelis Maria de Fogman a fr. Fabiano de Scandiano. Pernambuco, 13.09.1866. H-75 IV; em abril de 1867, foi feito o primeiro pedido de envio de novos missionários para enfrentar espe- 206 dos novos frades, o que impede saber se se tratava de um remanejamento interno ou de uma nova leva vinda da península. As razões para essa persistente negativa da Santa Sé não são claras, embora possam estar ligadas a acontecimentos alheios à problemática específica das suas relações com o Brasil, tais como maiores urgências no atendimento a missões em outras partes do mundo, ou problemas gerados dentro da própria Itália que afetavam a disponibilidade de missionários sicilianos.69 Parece evidente, porém, que o interesse da Santa Sé nas missões capuchinhas no Brasil estava longe de ser primordialmente apostólico, ou de obedecer, sequer, a uma preocupação voltada para a “cristianização” das classes subalternas do campo; era, sim, uma estratégia para expandir e consolidar espaços políticos junto ao aparelho de Estado. Por sua parte, o Estado negociara diversas concessões à Igreja em função da insubstituível instrumentalidade das missões mendicantes e, nesse equilíbrio de intenções, nesse jogo de cena, a crise provocada pelo decreto n° 373 não foi nunca resolvida e sim dissolvida no marco maior das relações permanentes entre o Vaticano e o Estado brasileiro. Por outro lado, para 1860, o Estado contava já com um conjunto respeitável de instrumentos institucionais e jurídicos de controle social que lhe permitia encarar com maior confiança a construção das estruturas e dispositivos de disciplina do regime de trabalho que substituiria o escravismo. A transição da transição chegara ao fim. Os capuchinhos voltavam-se agora para tarefas de ordem mais “intimista”, como a defesa política das suas posições diante das arremetidas dos jesuítas e dos protestantes, as suas ati- 69 cificamente os jesuitas. Fogman a Scandiano. Pernambuco, 12.04.1867. H-75 IV. O comunicado da chegada de três novos missionários está em Fogman a Scandiano. Recife, 14.05.1867. H-75 IV; pedidos suplementares de novos frades para enfrentar à Companhia podem ser consultados em Idem a idem. Pernambuco, 12.04.1868. H-75 IV. Nembro, porém, indica 1862 como o ano em que a crise terminou, “quando, con note scambiate in data 28 ottobre, fu dato per conchiuso l’insolubile problema suscitato dal decreto del 1844 che, praticamente, mantenne il suo valore”. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 223. Outra fonte vaticana indica um período de 22 anos sem envio de capuchinhos ao Brasil, entre 1843 e 1865; nesta última data, fr. Antonio da Gangi teria desembarcado em Pernambuco para treinamento suplementar – conforme determinado pela Propaganda Fide –, para daí seguir viagem ao Rio de Janeiro. Em outro estudo, o próprio Nembro parece situar o fim definitivo da crise apenas em princípios de 1888, quando o governo imperial, constatando o fracasso das missões franciscanas no Amazonas, e temendo ameaças à unidade territorial do país pela penetração nessa área de pastores protestantes, volta-se de novo para os capuchinhos. Cf. NEMBRO. I Cappucini, op. cit., p. 19; BEOZZO, José Oscar. A Igreja na crise final do Império (1875-1888). In: História geral da Igreja no Brasil. Tomo II: Segunda época – século XIX. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 303-304. Sobre o protestanismo cf. FRAGOSO. O protestantismo no Brasil, op. cit. NEMBRO. Storia, op. cit., p. 226. 207 vidades como capelães oficiais do exército brasileiro na Guerra do Paraguai, o desempenho de funções de assessoria ao primeiro escalão do governo imperial – fr. Caetano de Messina converteu-se, a partir da sua elevação a comissário geral, em 1861, em conselheiro do imperador – e, nesse contexto, o firme apoio ao poder civil durante a questão religiosa.70 Assim coroavam – e consolidavam – uma longa trajetória de serviços imprescindíveis para o Estado, construída sob as missões populares e a neutralização dos movimentos agrários no Nordeste do Brasil. Arquivos Consultados Arquivo da S. C. de Propaganda Fide – Roma (AmMer). Arquivo Central da Ordem dos Capuchinhos – Igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro (ACOC/H-75). Arquivo do convento de Santo Antônio – Largo do Carioca – Rio de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino – Pernambuco – IHGPe (AHU). Arquivo da Igreja de Nossa Senhora da Penha – Recife, Pe. Arquivo Geral da Custódia da Ordem dos Capuchinhos – Fiumicino, Roma. Recebido: 03/02/2012 - Aprovado: 13/08/2012 70 Sobre os capuchinhos e a questão religiosa, cf. PALAZZOLO, fr. Jacinto de, O.F.M.-cap. Crônica dos capuchinhos do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1966, p. 199; FRAGOSO. O apaziguamento, op. cit., p. 17. Sobre as funções de fr. Caetano como conselheiro de d. Pedro II durante esse período, PRIMÉRIO. Capuchinhos, op. cit., p. 328; NEMBRO. Storia, op. cit., p. 241. Sobre os capuchinhos e a Guerra do Paraguai, cf. fr. Fidelis Maria de Fogman a commissário geral. Acampamento em Tuytoy [sic: Tuyuti?], 22.08.1866. H-75 II; Fr. Fidelis Maria de Fogman a procurador generale. Tuyi [sic], 16.12.1867. H-75 II; Nembro. Storia, op. cit., p. 432-436. 208 O DESEMBARQUE NAS PRAIAS: O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS DEPOIS DE 18311 Contato Marcus J. M. de Carvalho Av. Boa Viagem 3020 – apto. 501 51020-000 – Recife – Pernambuco E-mail: [email protected] Universidade Federal de Pernambuco Resumo Depois de 1831, o tráfico mudou-se para os portos naturais do litoral, passando a empregar muita gente em diversas atividades. Barcos menores apoiavam os navios negreiros a alcançar a costa. A população local passou a ter novas oportunidades de emprego e negócios. Os traficantes tiveram que comprar ou arrendar os portos naturais ou se associarem a seus proprietários. O tráfico mudaria a economia e a política local. Palavras-chave Tráfico de escravos – lei antitráfico de 1831 – navios negreiros. 1 Agradeço ao CNPq pelo apoio a esta pesquisa. 209 LANDING ON THE BEACHES: THE FUNCTIONING OF THE BRAZILIAN SLAVE TRADE AFTER 1831 Contact Marcus J. M. de Carvalho Av. Boa Viagem 3020 – apto. 501 51020-000 – Recife – Pernambuco E-mail: [email protected] Universidade Federal de Pernambuco Abstract After 1831, the slave trade moved to natural harbors on the littoral, where it employed scores of people catering, healing, guarding the survivors, burying the dead. Smaller boats also helped the slave ships to reach the coast. The local population found new opportunities of employment and trade. Slave dealers had to buy or rent those lands, or associate themselves with their owners. The illegal slave trade would change the local economy and politics. Keywords Illegal slave trade – 1831 antislave trade law – slaveships. 210 Um assunto ainda pouco tratado pela historiografia é como se davam efetivamente os desembarques de cativos no litoral brasileiro depois de 1831. Isso é curioso, pois existe uma literatura muito vasta sobre o tráfico depois daquela data com aproximações confiáveis do volume de cativos que para cá vieram ilegalmente. Há estudos sobre navios negreiros em diferentes épocas, bem como sobre as estratégias empregadas para ludibriar as autoridades brasileiras e internacionais. A historiografia também tem trazido à tona a vida de inúmeros personagens do tráfico, de marinheiros a negociantes.2 Todavia, pouco sabemos sobre como o tráfico era efetivamente operacionalizado nas praias brasileiras, como era a chegada de um navio negreiro fora dos portos das capitais, como se davam os desembarques, quem trabalhava nisso, o que era preciso para a recepção, recuperação, manutenção, vigilância e tratamento da carga humana. O tráfico mudou a vida do litoral brasileiro. Um documentário de Hebe Mattos, Martha Abreu e Ana Lugão Rios mostra que, mesmo hoje em dia, os descendentes dos habitantes das praias controladas pelos irmãos Breves, no Rio de Janeiro, são capazes de relatar memórias do que acontecia sob as vistas dos seus antepassados.3 Neste trabalho, vamos investigar essa mudança do tráfico para as praias da Zona da Mata pernambucana. Ao sair das cidades portuárias, o comércio atlântico de escravos passou a envolver outros agentes, criou novas tensões na política local, empregou muita gente no litoral fora do perímetro urbano das capitais provinciais. Surgiram novas oportunidades e novas tensões para os proprietários rurais cujas terras margeavam os portos naturais das províncias. Depois de 1831, o desembarque de africanos deixou de ser um episódio mercantil a mais da vida urbana para se tornar um grande evento no litoral da Zona da Mata brasileira. O tráfico teve que se adaptar. Seus agentes também. Muita coisa mudaria para os ocupantes das terras no litoral, agora diretamente envolvidos no comércio negreiro, bem como para a população que vivia nas proximidades dos portos naturais mais apropriados para recepção de navios negreiros. Todos foram atingidos, dos agricultores aos pescadores. Sendo uma antiga capitania, Pernambuco serve de modelo para outros casos análogos nos imensos brasis. Explorando o impacto da lei antitráfico de 1831 em vários níveis sobre a sociedade brasileira, Elciene 2 3 Seria pretencioso elencar toda essa historiografia. As páginas seguintes exemplificam uma pequena parte dela. MATTOS, Hebe e ABREU, Martha (dir.). Passados presentes. Memória negra no sul fluminense. DVD, produção LABHOI/UFF, 2011 (www.labhoi.uff.br). 211 Azevedo, Beatriz Mamigonian e Keila Grinberg destacaram que esta não foi apenas para inglês ver, mesmo se deixarmos de lado seu uso pelos cativos em ações de liberdade depois da lei Rio Branco, em 1871.4 O objetivo deste artigo é contribuir para essa discussão. 1. A escolha da praia Quando foi decretada a lei antitráfico de novembro de 1831, existia toda uma rotina portuária para aquele tipo de negócio nas principais cidades costeiras. Rotina construída através de séculos de experiência, de tentativa e erro, de tal forma que, em 1654, já havia no bairro portuário do Recife uma rua da Senzala Nova e, obviamente, uma rua da Senzala Velha, onde eram aprisionados os africanos recém-chegados, confirmando que não fora em vão o pedido de Duarte Coelho, ainda em 1542, para que a Coroa facilitasse a vinda de gente da Guiné para a província.5 Mas não bastava apenas ter onde armazenar com segurança a carga humana recém-desembarcada. O esquema de recepção dos “negros novos”, como se dizia na época, era complexo. Primeiro os navios teriam que ser guiados barra adentro para o ponto de desembarque, função clássica dos práticos do porto. Em terra, invariavelmente, os africanos requeriam cuidados, além de água, alimentos e, é claro, vigilância. Tudo em larga escala e muito bem organizado para não 4 5 Veja-se o exemplar da revista Estudos Afro-Asiáticos, organizado por Beatriz Mamigonian e Keila Grinberg (Estudos Afro-Asiáticos, número 29, n 1/2/3, jan-dez 2007, passim). AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: Lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. Veja-se ainda: MAMIGONIAN, Beatriz. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Império (18081889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, vol. 1, p. 207-233. Sobre os desembarques, vistos da perspectiva dos próprios cativos, veja-se: CAÍRES SILVA, Ricardo Tadeu. Memórias do tráfico ilegal de escravos nas ações de liberdade: Bahia, 1885-1888. Afro-Ásia, vol. 35, 2007, p. 37-82. Sobre a demografia do tráfico, veja-se o site http://www.slavevoyages.org. Sobre Pernambuco, veja-se: DOMINGUES DA SILVA, Daniel Barros e ELTIS, David. The slave trade to Pernambuco, 1561-1851. In: ELTIS, David e RICHARDSON, David (eds.). Extending the frontiers: Essays on the new transatlantic slave trade database. New Haven: Yale University Press, 2008, p. 95129. Sobre a condução do problema no parlamento, entre o final do Primeiro Reinado e a lei antitráfico de 1850, veja-se: RODRIGUES, Jaime. O fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil: paradigmas em questão. In: GRINBERG e SALLES (orgs.). O Brasil Império (18081889), vol. 2, p. 297-337. NEEDELL, Jeffrey. The abolition of the Brazilian slave trade in 1850: Historiography, slave agency and statesmanship. Journal of Latin American Studies. Cambridge: Cambridge University Press, vol. 33, 2001, p. 681-711. Carta de Duarte Coelho, 27/04/1542. In: GONSALVES DE MELLO, José Antônio e XAVIER DE ALBUQUERQUE, Cleonir (orgs.). Cartas de Duarte Coelho a el rei. Recife: Imprensa Universitária, 1967, p. 86. 212 faltar nem desperdiçar, conforme ditava a contabilidade fria dos negociantes de escravos. O local de depósito deveria ser seguro, mas minimamente ventilado, atendendo a teoria miasmática que dominava a medicina na primeira metade do século XIX. Os doentes mais graves deveriam ser afastados dos demais. Os desenganados colocados a uma distância considerada segura para que os chamados “eflúvios pestilenciais” emanados dos seus corpos moribundos não se espalhassem. Poucos negócios davam tão pouca margem a improvisos como o comércio atlântico de escravos. Mau gerenciamento resultava em mortes e prejuízo. Morte que poderia se espalhar pela cidade, quem sabe dizimando até a família do consignatário da carga humana, já que nem os capitães e tripulantes escapavam do regime epidemiológico do tráfico. Não é difícil imaginar o impacto do comércio atlântico de escravos na tecnologia de navegação atlântica, no direito comercial, nos equipamentos portuários nos pontos de desembarque e nas rotinas médicas urbanas, afinal de contas nunca antes houve uma experiência semelhante com o transporte de bens semoventes em larga escala entre um continente e outro. E essa mercadoria viva era capaz de resistir, rebelar-se, fugir e até de interferir no processo de venda, apresentando-se bem ou mal, conforme sua interpretação do significado de sua venda. Depois de novembro de 1831, tudo isso iria mudar. Não seria mais viável desembarcar cativos nos principais portos brasileiros, todos em cidades importantes, geralmente sedes de governos provinciais. Continuaria havendo desembarques bem perto das capitais ou mesmo à vista da Corte, mas isso era um atrevimento de traficantes excessivamente ousados. Desobedecer à lei assim tão frontalmente era desafiar não apenas os governos provinciais, mas a marinha brasileira e a própria Coroa. A crescente demanda por cativos no Primeiro Reinado acelerou a expansão das importações de cativos antes de 1831. Os repetidos avisos sobre a iminência do fim do tráfico no final do Primeiro Reinado e a relativa queda do preço dos cativos na maioria dos portos da costa africana nessa época também justificam que tenha havido até certo aprovisionamento anterior à lei de novembro de 1831, o que provavelmente facilitou a diminuição do tráfico logo nos primeiros meses de 1832. Era como se o efeito imediato da lei tivesse sido realmente devastador, impactando as atividades dos negociantes de escravos. Mas como há sempre mistérios envoltos em práticas ilegais, talvez os observadores imediatos, que costumavam comentar sobre o influxo de africanos para o Brasil, particularmente os cônsules ingleses, estivessem apenas desatentos ao que acontecia nas praias das zonas agroexportadoras. Mas logo ficaram atentos e sabemos, através de uma longa literatura, que o comércio, quer dizer, daí em diante 213 apenas “tráfico” atlântico de escravos, continuaria até sua abolição final na década de 1850. Transferir todas essas rotinas para portos naturais no litoral não era simples. Nos portos urbanos, o comércio de gente empregava equipamentos e pessoal treinado nos seus vários processos, do desembarque aos cuidados antes da venda. Depois de quase 300 anos, havia profissionais especializados, processos rotinizados e práticas de gestão consolidadas. Mas as circunstâncias eram diferentes fora dos portos das capitais das principais províncias importadoras de cativos diretamente da África como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luiz. Mesmo os melhores portos naturais não dispunham dos equipamentos daqueles portos e dificilmente tinham espaço de ancoragem e estrutura em terra para receber mais de um navio simultaneamente. A própria chegada ao ponto exato de desembarque era complexa. Os traficantes não podiam mais se guiar por faróis permanentes encimados nas encostas contíguas às grandes cidades, evitando mais facilmente os arrecifes, os bancos de areia, sendo informados das correntes mais fortes e da direção a ser tomada para entrar na barra. Além disso, não havia apenas um traficante, havia muitos. Por mais aliados que fossem em torno da defesa do tráfico, no cotidiano do mundo dos negócios, eram concorrentes. Isso desde a costa da África, onde as relações entre os mercadores atlânticos foram sempre complicadas. Todos queriam o monopólio dos negócios. Sempre que possível, afastavam os concorrentes menos capitalizados ou militarmente mais frágeis. Não é à toa que, no século XVIII, no apogeu do comércio atlântico de escravos, os canhões das fortalezas europeias ou apontavam para o mar, ou para outras fortalezas europeias. Era na direção do forte inglês que estava apontada metade dos 30 canhões franceses em cabo Corso, segundo o testemunho de um comandante de navio negreiro em 1731.6 Essa competição armada, belicosa até, também existia entre os grandes proprietários rurais de Pernambuco, cujas terras chegavam ao litoral. Eles também eram concorrentes, inclusive na política local. Depois de 1831, ter o controle sobre uma praia apropriada para desembarque de africanos ganhou relevância nessa equação política. Essa é uma história sobre a qual ainda sabemos pouco, mas é fácil intuir que as praias mais apropriadas para desembarques, próximas aos mercados, valorizaram-se. Na equação da po- 6 HARMS, Robert. The diligent: A voyage through the worlds of the slave trade. Oxford: Perseus Press, 2002, p. 157. 214 lítica local e provincial, aumentaria muito o poder daqueles que detinham o controle sobre um bom porto natural próximo dos grandes engenhos de cana, fazendas de café e principais vilas e cidades brasileiras. Aqui cabe uma observação bastante simples que, por vezes, é relegada, quando pensamos no tráfico: não era qualquer lugar que servia para ancoragem de um navio do qual seria desembarcada uma carga delicada, complexa e que exigia cuidados especiais. E também vale ressaltar que descarregar um navio é diferente de carregá-lo. Sabemos que alguns dos principais pontos de embarque de cativos na costa da África estavam situados onde não era possível se aproximar muito da praia. Os navios tinham que ficar ao largo, ancorados por vezes a centenas de metros da costa. Os cativos tinham que ser levados em barcos a remo atravessando ondas por vezes muito violentas. Até a marinha inglesa temia essas vagas em vários pontos da África atlântica. Na entrada do rio Benin, o rio Formoso dos portugueses quinhentistas, na chamada “costa dos escravos”, eram essas ondas, o surf como diziam os ingleses, um empecilho real, não apenas à entrada dos cruzadores rio adentro para apreender negreiros, como também para os próprios traficantes, que sofriam com o mesmo problema, conforme relatou o capitão Henry James Matson ao parlamento inglês em 1850.7 Esse problema afligia outros pontos de embarque muito utilizados pelos comerciantes atlânticos de escravos. O capitão de navio negreiro Teophile (ou Theodore) Canot elogiou a destreza dos canoeiros no delta do rio Pongo, os kroomen, capazes de flanar através das imensas ondas com suas longas canoas, escapando da morte certa caso fossem menos hábeis.8 Mohammah Gardo Baquaqua, que desembarcou como cativo em Pernambuco por volta de 1846, contou essa parte de sua desventura, ao embarcar como escravo em algum dos portos no entorno de Uidá, provavelmente Little Popo (atual Aného), segundo Paul Lovejoy.9 Sua narrativa deixa claro que o embarque não era fácil naquela parte do litoral africano onde havia gente especializada 7 8 9 Minutes of evidence before Select Committee, 21/06/1849, Parliamentary papers. Reports from the select Committee of the House of Lords to consider the best means which Great Britain can adopt for the final extinction of the African slave trade with minutes of evidence, appendix and index, vol. 6, p. 201-202. CANOT, Theodore. Adventures of an African slaver (being a true account of the life of captain Theodore Canot, trader in gold, ivory & slaves on the coast of Guiena: His own story as told in the year 1854 to Brantz Mayer. Now edited with an Introduction by Malcolm Cowley). Nova York e Londres: Cornwell Press, Bonibooks series, 1935, p. 153, 272 e cap. XIV, passim. LAW, Robin e LOVEJOY, Paul (orgs.). The biography of Mahommah Gardo Baquaqua: His passage from slavery to freedom in Africa and America. Princeton: Marcus Wiener, 2001, p. 149. 215 no transporte de cativos até os navios ao largo, afinal de contas, foram inúmeras as pessoas que vieram dali para as Américas naqueles anos, gerando uma estrutura empresarial complexa. O primeiro barco com cativos a bordo alcançou o navio em segurança, foi o que contou Baquaqua. Mas o segundo foi virado por uma onda. Trinta pessoas acorrentadas afundaram para a morte. Diante da dimensão do barco, capaz de carregar trinta cativos com suas correntes e gente vigiando e remando, pode-se imaginar como era o mar ali. Apenas um sujeito extremamente robusto, na descrição do narrador, manteve-se agarrado ao barco e, mesmo acorrentado, conseguiu revirá-lo e subir.10 Ora, por piores que fossem as condições no trajeto do interior à costa da África, por maiores que fossem as privações, os cativos no ponto de embarque estavam mais bem hidratados e alimentados do que depois da travessia atlântica. Um traficante arrependido contou ao parlamento inglês que, depois de semanas de fome e sede, na hora do desembarque, muitas vezes os cativos tinham que ser carregados para fora do navio.11 Pode-se imaginar as consequências se esse desembarque fosse feito em condições análogas às descritas por Baquaqua, só que um pouco piores, já que as ondas pegariam o barco por trás, em direção à praia, quebrando em cima dele, virando, afundando ou impelindo a embarcação contra rochas e corais. Não era, portanto, qualquer ponto da costa que servia para desembarque de cativos. E mesmo nos locais adequados, não era a qualquer hora ou maré. O momento certo, de mar calmo, não podia ser desperdiçado. O local teria que ser exato, as circunstâncias também. O tráfico ilegal não era negócio para amadores. 2. Chegando e desembarcando A identificação de bons ancoradouros naturais não esgotava o problema dos traficantes para continuar seus negócios depois de 1831. Claro que havia muitas praias próprias para ancoragem e desembarque espalhadas pelo imenso litoral brasileiro. A existência desses portos naturais com água potável perto foi o que possibilitou a ocupação inicial da colônia. Mas foi justamente nesses locais que o Brasil começou. Era neles que se situavam as capitais provinciais das províncias costeiras. Esses portos, portanto, estavam vetados depois de 1831. A solução não era fácil, pois os escravos tinham 10 11 Apud LAW e LOVEJOY (orgs.), op. cit., p. 152. Depoimento de Joseph Cliffe. In: CONRAD, Robert. Children of God’s fire: A documentary history of black slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1983, p. 36. 216 destino certo. Não era muito prático desembarcá-los em portos naturais perfeitos, se depois fosse preciso caminhar dias, semanas, no meio da mata atlântica até o ponto de entrega, comercialização ou emprego direto da carga humana. O risco de fuga ou mesmo de roubo dos “africanos novos” aumentaria exponencialmente. Desembarcá-los e depois reembarcá-los para transporte de cabotagem poderia ser uma solução, mas obviamente também não era a mais racional. O ideal era que o porto fosse perto das propriedades agrárias produtivas ou então das povoações mais importantes, onde havia compradores certos, ou onde estavam os consignatários da carga. Resumindo: havia mercados a serem atendidos. A carga humana tinha que chegar até lá, ou pelo menos perto o suficiente para ser distribuída sem atropelos em poucas horas ou dias de caminhada. E mais, qualquer descuido e os cativos poderiam tentar fugir para o mato. A presença de negros boçais em quilombos pelo Brasil afora é o testemunho exato dessa possibilidade. Em Pernambuco, os portos ao sul do eixo urbano Recife-Olinda ficavam próximos às matas onde ocorreria a Cabanada (1832-1835). Aqueles ao norte margeavam as matas do Catucá, onde sempre havia negros fugidos, inclusive boçais. No Rio de Janeiro, como indicam os estudos de Flávio Gomes, havia negros aquilombados no entorno da própria capital imperial, depois de 1831, no auge do tráfico negreiro.12 Ora, se os cativos conseguiam fugir mato adentro assim tão perto dos pontos de revenda e distribuição, quanto mais se o desembarque se desse em pontos ermos da costa, impróprios para qualquer plantio, muito longe das principais propriedades agrárias e povoações. Quanto mais perto fosse o porto dos mercados a serem atendidos, melhor para os negociantes atlânticos de escravos. Além disso, para que um navio pudesse fundear em segurança, era preciso que suas âncoras alcançassem o fundo, é redundante, mas necessário lembrar isso. E a navegação era à vela, salvo exceções nos anos finais do tráfico. Assim, por vezes, era difícil alcançar o ponto exato de ancoragem na primeira investida, obrigando o mestre ou o piloto a manobrar, fazer até meia volta, seguir para o alto mar e retornar até chegar ao lugar certo. São inúmeras as narrativas coevas sobre as dificuldades de se alcançar o porto desejado quando os ventos e as correntes não ajudavam. Isso mesmo no comércio legal. É por essa razão que, ao chegar a um porto qualquer, navios de maior calado raramente dispensavam os serviços da gente da terra, do 12 Veja-se: GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, passim. 217 prático do porto, que guiava o barco até a entrada da barra rapidamente e em segurança. A vida é imprecisa, mas navegar não, dizia corretamente o grande poeta lusitano. Baquaqua também passou por isso, enquanto ainda era escravo. A primeira, no momento do desembarque como cativo em Pernambuco quando o navio ficou circulando um longo tempo antes de fundear. Havia risco de captura e de naufrágio. O navio demorou a jogar suas âncoras, navegando até o cair da noite. A segunda, quando trabalhava em um navio mercante que, devido aos maus ventos e correntes, penou muito para chegar ao porto de destino apesar de poder ser avistado a olhos nus.13 Essa dificuldade em chegar ao ponto certo criaria ainda um problema adicional para os traficantes, pois navios de maior calado que passavam direto pelos portos das principais cidades costeiras e seguiam adiante sem estarem à deriva, arribados ou simplesmente perdidos, não podiam estar fazendo outra coisa a não ser traficando escravos. Afinal de contas, quem iria trazer alguma carga de maior volume e desembarcá-la em uma praia qualquer, onde não havia sequer onde armazená-la adequadamente, muito menos vendê-la? Era essa uma das principais maneiras de identificar navios negreiros ainda no mar. Os cônsules ingleses ficavam atentos a isso, o mesmo acontecendo com as poucas autoridades brasileiras que porventura tivessem alguma preocupação sincera em reprimir o tráfico. Como disse um oficial da marinha inglesa, qualquer navio que fosse avistado em rota errante, sem estar em direção aos portos mais conhecidos, era, obviamente, um navio negreiro.14 Assim, não bastava o navio chegar a qualquer lugar do imenso litoral brasileiro. A navegação tinha que ser exata e tudo tinha que ser adaptado à nova situação, inclusive os navios que, paulatinamente, foram ficando cada vez menores. O uso de brigues, escunas e depois sumacas, palhabotes e até iates no tráfico, depois de 1831, era uma adaptação às novas circunstâncias. Barcos menores podiam ser carregados mais rapidamente na África, eram velozes e de fácil manobrabilidade e mais difíceis de serem espreitados à distância. Também custavam menos. Em caso de captura, o prejuízo era menor, tanto que, não raro, eram abandonados após o desembarque. Ubiratan Castro ressaltou o uso de navios baratos no tráfico ilegal, justamente para 13 14 Apud LAW e LOVEJOY (orgs.), op. cit., p. 155, 164. WILBERFORCE, Edward e HURLBERT, William Henry. Brazil viewed through a naval glass: with notes on slavery and the slave trade. Londres: Longman, Brown, Green and Longmans, 1856 [http:// books.google.com.br], pp. 200-201. 218 cortar o custo dos riscos.15 Às vezes, a natureza do negócio exigia tanta pressa que as evidências ficavam expostas, como no caso de um navio negreiro abandonado na praia de Porto de Galinhas, em 1844, com 37 pipas de água, caldeira, “alguns pares de machos” (tipo de algema para prender os cativos). A 600 passos dele havia o cadáver de um “infeliz africano agrilhoado em estado de muita putrificação” [sic].16 Aos poucos, os navios foram encolhendo ainda mais. Em 1845, o cônsul inglês em Pernambuco informava aos seus superiores que era frequente o uso de embarcações bem menores do que aquelas que haviam se tornado o padrão depois de 1831. Ressalte-se que, depois de 1815, os navios já haviam diminuído consideravelmente de tamanho em relação à época quando era legal traficar cativos ao norte da linha do Equador. Segundo o cônsul, ao invés de navios de 150 a 300 toneladas, agora apareciam barcos de apenas 45 a 60 toneladas. Esses iates saíam do Brasil com a carga já empacotada para poder ser descarregada rapidamente na África na cabeça de um único homem. Deixavam o Brasil com passaporte para navegação de cabotagem, mas, uma vez em alto mar, mudavam o rumo em direção à África. Transportavam 100 a 150 africanos, por vezes até 300 pessoas. Nesse caso, não havia espaço sequer para deitar.17 Barcos assim entravam mais facilmente nas barras dos pequenos portos naturais. Claro que era possível ficar ao largo, em alto mar até e desembarcar os cativos em canoas, barcaças e jangadas. Mas o barco ficaria a descoberto, desprotegido contra a marinha inglesa e a brasileira e ainda menos contra as intempéries naturais. Desembarques assim eram mais arriscados. Uma simples maré cheia ou um mar agitado poderiam atrapalhar a operação mais óbvia, que era descer os cativos até os barcos que os levariam à praia. Cativos estropiados, desidratados, esfomeados, muitos certamente incapazes de se segurarem com firmeza. Ao descer podiam facilmente cair na água e se afogarem ou serem devorados pelos tubarões que costumavam seguir 15 16 17 CASTRO DE ARAÚJO, Ubiratan. 1846: um ano na rota Bahia-Lagos. Negócios, negociantes e outros parceiros. Afro-Ásia. Salvador: Ceal/UFBA, vol. 21-22, 1998-1999, p. 90. Caetano José da Silva Santiago a Chichorro da Gama, 08/02/1844. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (Apeje). Polícia Civil, vol. 8, fls. 4042. José Venceslao Affonso Pereira Rigueira Pereira de Bastos para Caetano José da Silva Santiago, 15/02/1844. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (ANRJ). Fundo Justiça, pasta IJ-1-323. Mr. Goring a lord Aberdeen, 16/05/1845. Parliamentary papers. Slave trade. Correspondence with foreign powers relative to the slave trade [class B], vol. 30, p. 443. 219 os navios negreiros. Dentro das grandes baías, como a de Guanabara ou a de Todos os Santos, os navios podiam mais facilmente ficar ao largo, já que estavam relativamente protegidos do mar aberto. Mas, então, ficavam mais vulneráveis em relação ao cruzeiro inglês nos últimos anos do tráfico. E, mesmo ali, o mar não era sempre amistoso, que o digam as ressacas até os dias de hoje. As praias oceânicas, por sua vez, no infinito litoral brasileiro, escondiam melhor os negreiros, mas, nesse caso, era preciso adaptar o navio às circunstâncias dos portos naturais. Quanto mais próximo do litoral e quanto mais protegido das ondas e correntezas, mais seguro era o desembarque. O emprego de pequenos iates abarrotados de gente nos últimos anos do tráfico não era, portanto, o resultado de improvisos, nem falta de planejamento, sequer simples sadismo dos traficantes. E convém ressaltar, não era apenas para escapar do cruzeiro inglês em alto mar ou estratégia de pequenos negociantes sem capitais para comprar navios maiores. Era também uma adaptação aos portos de embarque e desembarque. O uso de embarcações menores permitia a entrada segura em pequenos portos naturais, nas baías mais estreitas e estuários de rios na África e no Brasil, quase na beira da praia, embarcando e desembarcando os cativos em segurança. Da perspectiva dos traficantes, essa lógica explica o sucesso de algumas viagens absolutamente grotescas da África para Pernambuco, como a do Conceição, um pequeno iate de 21 toneladas que carregou 97 pessoas nos seus porões, das quais 91 sobreviveram à viagem.18 Ou ainda o caso do Mariquinhas, um iate com o dobro do tamanho do Conceição, 45 toneladas, mas também com o dobro da carga, 203 africanos, dos quais 201 desembarcaram vivos em Pernambuco.19 Ou ainda de uma simples lancha, sem nome de tão pequena, que atravessou o atlântico apenas com o mestre e dois tripulantes, com 42 cativos a bordo dos quais 36 sobreviveram ao inferno, garantindo o lucro da empreitada.20 Barcos assim poderiam ser levados até encalhar na praia, sendo abandonados ou destruídos após o desembarque, sem o mesmo custo da perda de uma embarcação de maior tonelagem. 18 19 20 Mr. Cowper a lord Aberdeen, 01/01/1844. Parliamentary papers. Slave trade. Correspondence with foreign powers relative to the slave trade [class B and C], vol. 28, p. 407-408. First enclosure in n. 265, 01/01/1844. Parliamentary papers. Correspondence with foreign powers relative to the slave trade [class B and C], vol. 28, p. 411. Mr. Cowper a lord Aberdeen, Second Enclosure in 292, 31/12/1841. Parliamentary papers. Slave trade. correspondence with british commissioners and with foreign powers relative to the slave trade [class A and B], vol. 23, p. 437. 220 Os grandes negreiros chamavam muita atenção e eram mais facilmente capturados. O uso deles incrementou o tráfico, mas logo começaram a ser capturados, pois precisavam ficar ao largo, longe da praia, tanto no litoral africano enquanto eram carregados, quanto no Brasil, onde se davam os desembarques. O Providência, talvez o mais famoso deles, não fez mais do que cinco viagens levando cativos para a Corte imperial.21 O único vapor que reconhecidamente aventurou-se a trazer cativos para Pernambuco foi fabricado em Nova York, como inúmeros outros navios negreiros nessa época.22 Custou uma pequena fábula e saiu do Recife sob um daqueles velhos pretextos utilizados pelos traficantes: a navegação de cabotagem. Seu passaporte indicava Santos como porto de destino, mas o navio foi apreendido pelos ingleses a apenas 140 milhas de Cabinda. O Cacique não conseguiu completar sua primeira viagem à África, sendo apreendido no dia 25 de setembro de 1845. Segundo os ingleses, era capaz de carregar até 1.500 cativos.23 Em sua Corografia brasílica, Aires de Casal relatou que Pernambuco era talvez a província melhor aquinhoada com portos naturais, se bem que a maioria deles servisse apenas para embarcações menores, as sumacas.24 Ora, era disso que precisavam os negreiros. O entusiasmo de Aires de Casal explica-se pela linha de arrecifes que atravessa o litoral da província, em frente a qual existe uma fossa abissal. Os arrecifes de Pernambuco mereceram até um estudo de Charles Darwin que passou por Recife voltando de sua viagem no Beagle. Odiou tudo o que viu e zarpou para a Inglaterra feliz por deixar o país onde ouviu os gemidos de um cativo ou cativa sendo torturado(a). Mas não deixou de se impressionar com os arrecifes em frente 21 22 23 24 Relatório Alcoforado-Africanos. ANRJ, Justiça, pasta IJ6 – 525, fls. 7-8. Sobre o relatório desse agente pago pelos ingleses, veja-se RODRIGUES, José Honório. Brasil e Africa: Outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 216-217. BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 397. Sobre capitais, trabalhadores e navios americanos empregados no tráfico brasileiro, veja-se: HORNE, Geraldo. O sul mais distante: Os Estados Unidos e o tráfico de escravos africanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, cap. 2, passim. GRADEN, Dale T. O envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858. Afro-Ásia. Salvador: Ceal/UFBA, vol. 35, 2007, p. 9-35. Lord Aberdeen ao cônsul Cowper, 21/02/1846 e Enclosures 1 a 9. Parliamentary papers. Correspondence with foreign powers relative to the slave trade [Class B, C e D], vol. 33, p. 283-288. Edmund Gabriel a lord Aberdeen, 31/12/1845. Parliamentary papers. Correspondence with British commissioners and proceedings of the vice-admiralty courts relative to the slave trade, [Class A], vol. 32, p. 293. AIRES DE CASAL, Manuel. Corografia brasílica. Rio de Janeiro, 1817; reedição: Belo Horizonte: Itatiaia, 1976, p. 259. 221 ao porto da cidade. Uma linha reta com quilômetros de extensão. Nas suas palavras, talvez não houvesse no mundo uma estrutura natural com a aparência tão artificial quanto aquela.25 Essa mesma linha brota novamente ao sul do Recife, descendo a costa. Em cada corte nessa linha de arrecifes, há um porto natural, permitindo a existência de diversos ancoradouros seguros. Esses portos serviam para contrabando desde o período colonial. Foram eles, inclusive, que permitiram que a resistência luso-brasileira continuasse exportando seus açúcares durante a ocupação holandesa (1630-1654). Em 1821, o contrabando continuava sendo um problema para as autoridades provinciais do Reino Unido. Praias como Itamaracá, Cabo de Santo Agostinho, Porto de Galinhas, Rio Formoso e Tamandaré permitiam a entrada de navios de cem toneladas.26 Na época em que o comércio atlântico de escravos era uma atividade legal, um navio negreiro poderia receber até cinco cativos por cada duas toneladas de arqueação segundo o primeiro artigo do conhecido alvará de 1813 que regulava essa matéria.27 Cem toneladas, portanto, significavam poder transportar 250 africanos legalmente, atendendo as exigências das empresas de seguro e autoridades portuárias brasileiras. Ora, sabendo que os negreiros, depois de 1831, não obedeciam essas regras, fica claro que esses portos podiam receber bem mais gente em cada navio que lá chegava. No final da década de 1830, o pastor Kidder viu um desses barcos ancorado em Itamaracá, desembarcando cativos sem ser incomodado.28 Para que a operação pudesse transcorrer assim, na calma, sem sobressaltos, era preciso, portanto, encontrar o porto certo e entrar na barra em segurança. Isso não era para amadores. Era preciso habilidade, conhecimento da costa, embarcação ágil e de boa manobrabilidade. 25 26 27 28 “I doubt whether in the whole world any other natural structure has so artificial an appearance”. DARWIN, Charles. The voyage of the Beagle. Londres, 1860; reedição: Nova York: Anchor Books, 1962, p. 495-496. Joaquim Batista Moreira ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, 31/12/1850. Torre do Tombo (Lisboa): Coleção do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Pernambuco, caixa 3, s. n. Arquivo Público Estadual (Recife): Porto do Recife, vol. 15, 03/12/1821. Veja-se ainda FIGUEIRA DE MELLO, Jeronymo Martiniano. Ensaio sobre a estatística civil e política de Pernambuco. Recife, 1852; reedição: Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979, p. 56-63. Esse contrabando muito provavelmente já incluía cativos. Alvará de 24 de novembro de 1813. Colleção das leis brasileiras, desde a chegada da corte até a época da Independência - 1811 a 1816, vol. 2, p. 292-302. Veja-se ainda FLORENTINO, Manolo. Em costas negras, uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, p. 49. KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. São Paulo: Itatiaia, 1980, p. 119. 222 A adequação das embarcações para entrar nas barras dos portos naturais não esgotava as dificuldades para o sucesso da operação. Havia a questão da navegação atlântica e costeira em si. Era preciso que o navio chegasse em segurança em um determinado ponto exato. Em tese, era possível construir na praia alguma estrutura alta para sinalização, ou, no mínimo uma fogueira, mas isso não bastava. Qualquer descuido e o navio podia bater em arrecifes ou encalhar nos bancos de areia nos deltas dos rios maiores e botar tudo a perder. Era preciso atingir o ponto exato de entrada da barra. Talvez seja até redundante esticar este parágrafo, pois, para simplificar nosso argumento, até os dias de hoje existe a profissão de prático de porto. Profissão bem remunerada, inclusive, que no Brasil atual depende de concurso público. Tal como os tabeliões, o prático é pago pelos serviços prestados e não através de salário. É ele o profissional que traz o navio do alto mar para seu ponto de ancoragem. Cada porto tem os seus práticos. São profissionais valorizados, pois é o especialista que conhece as correntes locais, as pedras, os bancos de areia, os humores do mar, os ventos, a tecnologia de navegação e tudo o mais que é preciso para que o navio entre sem problemas no porto para desembarcar sua carga. Da habilidade do prático depende a celeridade e a segurança do desembarque. Não era diferente naquela época, tanto que Theodore Canot, já experiente na arte de navegar, ficou muito aflito quando lhe mandaram atuar como prático de um determinado porto na América do Norte. Àquela altura de sua carreira marítima, ele já se considerava um bom navegador, mas não tinha o conhecimento específico que era exigido para se chegar exatamente no ponto que lhe foi indicado, rapidamente e em segurança. Algum tempo depois, já comandante de navio negreiro, empregou um piloto local para entrar no rio Pongo na costa da África. Fez o mesmo, alguns anos depois, quando esperou a chegada de um piloto antes de entrar no rio Nunez na “Costa dos Escravos”.29 Tinha razão em preocupar-se nessas situações, conforme o traçado da costa, a localização de bancos de areia e arrecifes, o ritmo das correntes e ventos, o perigo de naufrágio era concreto. Um bom prático podia ganhar um bom dinheiro nos portos secundários, que se tornaram relevantes depois de 1831. Foi isso que aconteceu com o “patrão-mor” (ou seja, o prático mais graduado) da barra de Campos, no Rio de Janeiro, que, junto com um marinheiro, enriqueceu durante o tráfico ilegal de escravos, 29 CANOT, op. cit., p. 40-42 e p. 190. 223 segundo nos conta o famoso “relatório Alcoforado”, sobre o tráfico de escravos, datado de outubro de 1853. Os dois malandros terminaram se tornado até comendadores, tanto fizeram para facilitar o desembarque de cativos africanos para prover a capital imperial.30 Cedo os traficantes começaram a sinalizar na costa. Os traficantes no Rio de Janeiro criaram um sistema de sinais costeiros. Na Bahia, eram inúmeras as fogueiras.31 Em 1837, foi apreendida uma série de documentos em um navio negreiro no rio Benin. Entre os papéis havia uma série de instruções aos funcionários de uma empresa formada por negociantes envolvidos no tráfico para Pernambuco. Entre elas, havia um sistema de bandeiras e sinais que deveriam ser empregados tanto na costa da África como nas praias pernambucanas para onde iam os navios. Em ambos os lados do Atlântico, foram construídas estruturas altas para a comunicação entre os negreiros e seus cúmplices em terra utilizando o código de sinais estipulado.32 Barcos de diversos tipos e tamanhos também colaboravam na empreitada, indo encontrar os negreiros em alto mar nos dois lados do Atlântico, ajudando a guiá-los até o ponto certo, ou mesmo embarcando cativos na costa da África, ou desembarcando-os no Brasil, como veremos a seguir. As dificuldades em se chegar a um ponto certo da costa são confirmadas pelos inúmeros naufrágios nessa época. Sabemos que muitos deles eram propositais, pois não era incomum se sacrificar navios velhos, ou mesmo novos, trazendo-os abarrotados, abandonando-os ou destruindo-os após a viagem, principalmente nos últimos anos do tráfico. Mas uma coisa era fazer isso depois do desembarque, com a carga já em terra. Outra coisa era perder a preciosa carga humana já no fim da viagem. Os prejuízos poderiam ser imensos. A tragédia, terrível. Foi isso que aconteceu com um navio velho que naufragou na praia, em algum ponto entre Alagoas e Pernambuco. Pelo que se pode deduzir a partir dos relatos coevos, o navio foi levado por uma onda e rolou de tal forma que 60 crianças, que estavam confinadas na parte que inundou, simplesmente se afogaram. Originalmente, o navio trouxera uns 350 cativos. 160 morreram durante a viagem. Apenas uns 130 foram desembarcados em 30 31 32 Relatório Alcoforado-Africanos, fls. 2. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, p. 460. BETHELL, op. cit., p. 99. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, cap. 10. MARQUES, João Pedro. Tráfico e supressão no século XIX: o caso do brigue Veloz. Africana Studia. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n° 5, 2002, passim. 224 estado muito debilitado e foram mandados às pressas para o Recife. Não sabemos quantos sobreviventes foram parar nos engenhos das duas províncias.33 Uma boa medida para evitar acidentes era enviar ajuda aos navios ainda em alto mar. No Rio de Janeiro, na década de 1840, havia inúmeros barcos à espreita da chegada dos negreiros. Segundo os ingleses, eles se aproximavam dos negreiros e cobravam dez mil réis por cada cativo que desembarcassem em segurança ou mesmo para desembarcar os africanos. Por essa razão, viase muita gente sendo levada pelo interior, mas nem sempre era possível saber em que navio tinham vindo. O capitão do Anna recusou essa ajuda e terminou capturado pelos ingleses. Segundo a correspondência diplomática enviada a lord Aberdeen em 1844, devido a sua incompetência no episódio, o capitão não apenas perdeu seu emprego como ainda ficou muito mal visto entre os negociantes de escravos da Corte.34 No final de 1852, na foz do rio Bracuhy em Angra dos Reis, aconteceu um dos últimos desembarques nas terras de Joaquim José de Sousa Breves, um dos maiores traficantes do Império. Ao se aproximar, o navio foi logo recebido por inúmeras canoas que colaboraram no desembarque de 500 cativos de Moçambique e Quelimane.35 Os próprios consignatários da carga e possíveis compradores muitas vezes chegavam mais rapidamente aos pontos de desembarque de barco do que a cavalo.36 Percebe-se, portanto, que o tráfico se tornaria uma alternativa concreta de renda extra para os barqueiros da costa, antes envolvidos apenas com a pesca e o transporte de pessoas e mercadorias. Quem tinha barco e conhecia o litoral ganhou uma oportunidade de lucro com o contrabando de escravos, mesmo que não tivesse nenhum contato com a África, nem capital ou mesmo experiência nesse ramo de negócios. O tráfico deu emprego a muita gente antes dependente da pesca e do pequeno comércio de cabotagem. Esse cenário, superlativo no Rio de Janeiro, repetiu-se em menor escala nas outras 33 34 35 36 Cowper a lord Aberdeen, 01/04/1844. First enclosure in n. 266. Parliamentary papers. Correspondence with foreign powers relative to the slave trade, [Class B and C], vol. 28, p. 414. John Samo e Fred Grigg a lord Aberdeen, 20/02/1844. First Enclosure in n. 135. Parliamentary papers. Correspondence with British commissioners and with foreign powers relative to the slave trade (class A and D), vol. 27, p. 184. ABREU, Martha. O caso do Bracuhy. In: MATTOS, Hebe e SCHNOOR, Eduardo. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 167. Isso não apenas nas praias oceânicas, como as de Pernambuco, mas mesmo dentro das grandes baías, como atesta o depoimento de um diplomata francês, que acompanhou um traficante numa canoa até o fundo da baía da Guanabara onde se dera um desembarque. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 310. 225 províncias. O fim do tráfico liquidaria muitos negócios locais, vinculados aos inúmeros barracões para depósito de “africanos novos”, que viriam a ser queimados pelas autoridades brasileiras encarregadas de exterminar o tráfico. No Nordeste do Brasil, havia inclusive um tipo de embarcação, muito popular entre pescadores devido a seu baixo custo de fabricação, que podia se adaptar a esse novo uso. Eram as jangadas, feitas de pau de jangadeira, que tanto chamaram a atenção de europeus como Koster, Tollenare e Rugendas, perplexos diante de uma embarcação tão eficiente quanto simples e inusitada.37 Eram variados os seus empregos, inclusive transportar escravos fujões.38 Acrescento que, depois de 1831, foram muito úteis ao tráfico. Com leveza, quase voando sobre as ondas com uma única vela latina e leme de popa, eram elas que primeiro encontravam os navios negreiros, guiando-os até aqueles portos naturais elogiados por Aires de Casal no começo do século. Do alto mar podiam chegar até a areia da praia sem problemas. A participação delas no tráfico incomodava o cônsul britânico em Pernambuco. Dizia ele, em 1837, que as “jangadas”, literalmente, sem tradução alguma para o inglês, lançavam-se ao mar à espreita da chegada dos navios negreiros, do mesmo modo, portanto, dos barcos menores no Rio de Janeiro, como vimos acima. Eram elas que indicavam o local e o momento seguro para o desembarque.39 Colaboravam também com o desembarque dos cativos e da tripulação. O mestre de um pequeno navio negreiro, por exemplo, teve a pachorra de tentar entrar na barra à vista da fortaleza do cabo de Santo Agostinho, um dos pontos estratégicos mais importantes e bem vigiados do litoral brasileiro, por ser o cabo mais oriental da costa da América do Sul. O comandante da fortaleza atirou três vezes no navio que fez meia volta e foi desembarcar mais adiante, ainda à vista da fortaleza, mas fora do alcance de suas armas. O comandante mandou um barco, que capturou o mestre do navio que estava em uma jangada indo para a terra.40 Podemos inferir, portanto, que 37 38 39 40 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Londres, 1816; reedição: Recife: Secretaria de Educação, 1978, p. 27. TOLLENARE, L. F. Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil, em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Progresso, 1956, p. 20-21. RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Itatiaia, 1979, p. 233. SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs. XVII ao XIX). São Paulo: Papirus, 2001, p. 115. Consul Watts a mr. Hamilton, 09/05/1837. 3rd Enclosure to n. 84. Parliamentary papers. Correspondence with foreign powers relating to the slave trade, 1837 [Class B], vol. 15, p. 76. Vicente Thomas Pires de Figueiredo Camargo a Francisco Antonio de Sá Barreto, 01/08/1837 e 24/11/1837. Apeje. Ofícios da Presidência à Prefeitura, Repartição Central de Polícia, fls. s/n. 226 quando os navios ficavam ao largo, as jangadas também poderiam servir para desembarcar os cativos. O risco de naufrágio não era o único problema a ser enfrentado por um navio negreiro que errasse a rota. Nunca é pouco lembrar que o tráfico era um negócio ilegal, feito em freguesias onde as autoridades locais, regra geral, também eram proprietárias de terra e escravos. Assim, mesmo que fossem coniventes com o tráfico, não significava que iriam assistir seus vizinhos, muito menos concorrentes e adversários políticos, se beneficiarem sozinhos. Se um navio negreiro fosse parar na praia errada, o potentado local que controlava o acesso a ela por terra poderia muito bem aproveitar a situação para se apropriar dos cativos desembarcados sem sua autorização. Nesses casos, a vantagem estava com o pessoal de terra, pois a carga humana tinha que ser desembarcada rapidamente. Isso mesmo se relevarmos, como secundário, o risco de apreensão pela marinha brasileira ou pela inglesa, pois todos sabiam que quanto mais tempo os cativos permanecessem a bordo, mareados, sem higiene adequada, sequer “água fresca”, como se dizia na época, e expostos a um regime epidemiológico brutal, maior a mortalidade. Em Pernambuco, todas as praias próprias para o tráfico tinham dono.41 É possível até que fossem desprezadas antes de 1831. Mas depois daquele ano não. Principalmente aquelas onde havia portos naturais cuja barra e profundidade permitiam a entrada de navios negreiros em segurança. Assim, em 1845, quando um negreiro sem nome errou a rota, por engano ou por dificuldade de enfrentar as correntes e os ventos, o capitão teve que se virar. A praia certa, segundo o cônsul inglês era barra de Catuama, justamente um dos portos naturais mais elogiados por Aires de Casal quase quarenta anos antes. Mas o navio, tonteante, foi parar em Macaro, logradouro da comarca de Tejucupapo, próximo às praias de Carne de Vaca e Catuama. Área de plantation desde o século XVI, os proprietários das praias de Goiana não eram contrários ao tráfico. Mas como homens de negócios que eram, quiseram também lucrar com a situação. Antes mesmo de conseguir se comunicar com o consignatário da carga no Recife, o comandante 41 No litoral pernambucano, os principais portos naturais situavam-se em praias contíguas a grandes engenhos de cana, ou margeando povoações também submetidas à esfera de influência dos grandes potentados rurais. Uso aqui a expressão coloquial “dono da praia” para indicar o membro da oligarquia agroexportadora capaz de defender a posse do porto natural contra outros ocupantes, permanentes ou eventuais. Dependia de sua conivência o uso daquele porto por outrem, inclusive por navios negreiros. Assim, é como se a praia – a rigor terreno de marinha – também tivesse dono. 227 teve que vender 30 cativos, provavelmente a baixo custo, para poder custear suas necessidades imediatas, o que demonstra que os negociantes locais não iriam deixar barato a oportunidade de lucro. Não é difícil inferir que os cativos e a tripulação precisavam de cuidados, víveres e água. Isso tudo era urgente. Para garantir a segurança do desembarque, ele ainda repassou outros 11 africanos como propina para as autoridades locais. E não parou aí. Segundo o cônsul inglês, uma porção do resto da carga humana foi simplesmente roubada pela população local. No total, segundo o cônsul inglês, 146 africanos foram desembarcados nesta mal sucedida empreitada dos traficantes que operavam em Pernambuco. Imagine-se o prejuízo dos consignatários da carga humana.42 Esse tipo de situação podia acontecer em qualquer lugar. No Rio de Janeiro, onde os cativos eram mais valorizados, um negreiro teve que desembarcar às pressas, em local não combinado, devido ao risco iminente de ser apreendido por um cruzador que vinha em seu encalço. Desesperado, o comandante tentou vender os cativos a 200 mil réis cada para a população local. Ninguém quis. Terminou baixando o preço para pífios 20 mil réis por cada escravo. O dono da carga do Tentativa era ninguém menos do que Manoel Pinto da Fonseca, um dos maiores negociantes de escravos do Império. Mas, diante das circunstâncias, de nada lhe valeu sua influência.43 Sendo o tráfico um negócio ilegal, os traficantes não tinham recurso à lei nesses casos. Não podiam processar ninguém por lhe “roubar” os cativos. Ficava por isso mesmo o achaque dos donos da praia e da população circunvizinha. Chegar ao porto errado, portanto, só não era pior do que ser apreendido pela marinha inglesa. Esse último detalhe, o roubo da carga, provavelmente era o maior problema que poderia enfrentar um navio negreiro que fosse parar em local diferente do planejado. A propina, ou talvez, melhor dizendo, o ágio a ser pago pelo engano, era administrável, era parte do negócio, como observou Ubiratan Castro para o caso da Bahia.44 Mas o roubo não. Era insustentável. Numa praia estranha, a tripulação estava indefesa diante da população local. Nunca é pouco lembrar que, em uma sociedade escravista, todos tinham armas e a população masculina era organizada em batalhões hierarquizados, 42 43 44 Cowper a lord Aberdeen, 02/03/1845. Parliamentary papers. Correspondence with foreign powers relative to the slave trade [class B, C and D], vol. 33, p. 290-293. De acordo com as inferências de Robin Law e Paul Lovejoy foi nesse navio que Baquaqua viajou para o Brasil como cativo. LAW e LOVEJOY, op. cit., p. 45. James Hudson a lord Palmerston, 15/03/1851. In: WILBERFORCE e HURLBERT, op. cit., p. 236. CASTRO DE ARAÚJO, op. cit., p. 85, 102-103. 228 antes nos corpos de Ordenança, depois na Guarda Nacional. Não seria difícil para algum senhor de engenho assumir seu cargo de juiz de paz, ou sua patente de oficial da Guarda Nacional, ou mesmo do (oficialmente) extinto corpo de ordenanças, armar seus dependentes e até seus cativos de confiança e se apropriar de africanos ilegalmente desembarcados nos limites de suas terras.45 É por isso que os juízes de paz foram os que primeiro lucraram com as propinas do tráfico segundo o relatório Alcoforado.46 As autoridades locais se regalaram com o tráfico. Em um dos principais portos do tráfico de Pernambuco, na foz do rio Una, era o vigário quem cobrava 10 mil réis por cada cativo desembarcado em segurança.47 Dentro dos navios negreiros, a carga estava protegida da gente da terra, pois os navios navegavam bem armados, prontos para reagir até contra a marinha inglesa. Mas em terra, a coisa era diferente. Por melhor armados que estivessem os marinheiros, qualquer senhor de engenho era capaz de arregimentar mais gente em pouco tempo. Sem a proteção de algum potentado local, uma carga dessas na praia podia ser “apreendida”, digamos assim, até pelo sargento da guarda nacional da esquina, pequeno rendeiro ou comerciante de alguma povoação próxima, que também poderia juntar gente armada com essa finalidade. Roubar 300, 400 cativos talvez fosse difícil, mas surrupiar alguns não. Já em 1839, o Carapuceiro comentava esse problema com fina ironia. Segundo a bem humorada folha, o tráfico atlântico seria extinto por seus próprios excessos, pois haviam surgido “companhias”, cujo único negócio era “saltear por essas praias aos donos das partidas de escravos”, tomando-lhe os cativos “à força d’armas”.48 Aqueles que detinham o controle sobre os principais portos naturais, os donos das praias, tiveram que se armar. Estavam prontos para proteger seus desembarques e, havendo chance, tomavam os cativos dos outros. 45 46 47 48 Em Pernambuco, durante o quinquênio liberal (1844-48), a polícia civil, dominada pelos praieiros, apreendeu diversos carregamentos, apropriando-se dos cativos que raramente tornaram-se “africanos livres”, pois eram simplesmente distribuídos pelos engenhos dos aliados do partido. Veja-se: CARVALHO, M. J. M. A repressão ao tráfico atlântico de escravos e a disputa partidária nas províncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF , v. 27, 2009, p. 151 - 167. Relatório Alcoforado-Africanos, fls. 2. M. Goring a lord Aberdeen, 16/05/1845. Parliamentary papers. Correspondence on the slave trade with foreign powers, parties to treaties, under which captured vessels are to be tried by mixed tribunals, [class B], vol. 16, p. 443. O Carapuceiro (Recife), 23 de março de 1839, p. 3. 229 O desembarque de Sirinhaém, em 1855 em Pernambuco, só foi mal sucedido por causa desse tipo de engano, atracar na praia errada. O episódio ganhou projeção na imprensa da época por ter sido aquele palhabote sem nome o último negreiro apreendido na costa brasileira com cativos africanos a bordo. Na investigação, até o presidente da Província e os Cavalcanti foram considerados suspeitos. Mas tudo começou justamente porque o comandante do palhabote errou o local de desembarque. Ao invés de ir para o engenho de João Manoel de Barros Wanderley, foi parar na casa de outro senhor de engenho que denunciou o caso às autoridades locais. Foi um pequeno engano. O engenho certo ficava ali perto, mas foi o suficiente para atrapalhar tudo. O sujeito que apreendeu o desembarque, todavia, deixou escapar o comandante e a tripulação do navio. Nunca ficou claro se não tinha como mantê-los presos, como alegou, ou se deixou que escapassem mesmo. E mais, boa parte dos “africanos livres” desapareceu misteriosamente. Dizia uma parte da imprensa local, talvez roubados, quer dizer “apreendidos”, pelo próprio filho do denunciante, o coronel Drummond que, ressalte-se, havia se tornado amigo do cônsul inglês em Pernambuco, que o defendeu em sua correspondência.49 Essas circunstâncias, todavia, talvez pareçam excepcionais. Afinal de contas, em 1855, os envolvidos no tráfico, uma vez indiciados, caíam nas mãos da Auditoria de Marinha. Já se fora o tempo em que jurados localmente escolhidos, submetidos ou dependentes dos poderes locais, eram os encarregados de decidir o destino dos negociantes pegos em flagrante. Ao colocar o julgamento nas mãos da marinha e oferecer recompensa, o governo imperial inverteu a vantagem dos traficantes, antes julgados pela justiça local, incapaz de se desvencilhar das malhas clientelares e da influência dos potentados rurais. A aplicação desse dispositivo dificultaria muito o tráfico. Todavia, entre 1831 e a lei de setembro de 1850, os traficantes que “errassem” de praia também estavam se arriscando um bocado. E não falo aqui de apreensão, ou ter que pagar propinas, mas serem roubados simplesmente, como vimos acima. O prejuízo era enorme, apenas o navio se salvava. Claro que isso já era alguma coisa, mas imagine-se o impacto nas finanças de um traficante se a carga de gente fosse surrupiada depois de tanto trabalho e investimento. Devido à ilegalidade do negócio, são relativamente poucos os registros de ladrão roubando ladrão – quer dizer senhor de engenho roubando tra- 49 VEIGA, Gláucio. O desembarque de Sirinhaém. Recife: Imprensa Universitária, 1978, passim. O Liberal Pernambucano, 27 de junho de 1856. Arquivo Nacional. Série Justiça-Polícia, pasta IJ 6 -521. 230 ficante, ou senhor de engenho e traficantes roubando traficantes e senhores de engenho... Enfim, qualquer uma dessas possibilidades (o leitor pode até pensar em mais algumas) – mas os casos do Feliz e do Mariquinhas estão documentados. O Feliz, típico tumbeiro, embarcou 200 africanos, dos quais 70 morreram na travessia atlântica. Ao chegar ao Brasil, 80 foram roubados pelas autoridades locais e seus aliados que, depois, cumprindo a lei, enviaram ao Recife os remanescentes, um total de 50 pessoas, entre mulheres e crianças, todos muito doentes. Nenhum deles escaparia da morte nos dias subsequentes. O Mariquinhas teve destino semelhante em 1846. Foi parar na praia errada. Certamente, sabendo o que poderia acontecer, seu proprietário foi pessoalmente para o ponto de desembarque, provavelmente confiante na sua capacidade de comprar a conivência alheia, pagando ou repassando alguns escravos como propina. Não foi bem-sucedido. As autoridades locais eram mais ambiciosas do que pensava e não apenas ficaram com todos os cativos como ainda lhe deram uma bela de uma surra.50 3. Recepção, vigilância e morte Resolvido o problema da chegada do navio na praia certa, onde era esperado, havia ainda outros detalhes que requeriam cuidados. Primeiro, era preciso alguma estrutura de recepção para os cativos recém-desembarcados. Nunca é pouco lembrar as condições em que chegavam: esfomeados, desidratados, muitos enfermos, todos completamente nus, fizesse calor ou frio. Na época em que o tráfico era legal, a nudez incomodava as autoridades pernambucanas, ao ponto de emitirem um bando proibindo a exibição de “negros novos” despidos à venda no Recife.51 Eram assim que estavam depositados, no Arsenal da Marinha, as dezenas de cativos apreendidos no Bom Jesus em 1846.52 Mesmo na Corte, viajantes viram gente completamente nua exposta à venda.53 Canot explicava a nudez durante a travessia atlântica 50 51 52 53 Enclosure 2 in number 12, 04/05/1846. Parliamentary papers. Correspondence with British commissioners and proceedings of the vice-admiralty courts relative to the slave trade, [Class A], vol. 32, p. 46. Bando sobre a proibição dos negros pelas ruas, 18/03/1822. Apeje. Registro de Provisões (R-PRO) 09-01, fls. 108-108 verso. Antonio Brito Chichorro da Gama ao sr. desembargador chefe de Polícia interino, Manoel Rodrigues Villares, 17/03/1846. Apeje. Polícia Civil. vol. 327, fl. 80. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 78. 231 alegando que era a única maneira de manter os cativos limpos e saudáveis, mas podemos supor que também era uma forma de impedir que escondessem apetrechos para defesa pessoal.54 Mas, uma vez desembarcados, era preciso abrigo mínimo e vigilância máxima. As praias do tráfico encheram-se de barracões com essa finalidade. Eram estruturas impressionantes, aptas a receber centenas de pessoas de uma só vez. No litoral do Rio de Janeiro, muitos desses barracões foram destruídos depois de setembro de 1850.55 Deve ter sido alguma estrutura assim que Baquaqua encontrou ao chegar a Pernambuco. Segundo seu relato, ao desembarcar foi levado até a casa de um plantador que funcionava como uma espécie de mercado de escravos. Este é um detalhe relevante, pois indica uma situação que deve ter se tornado a regra e não uma exceção, ou seja, passou a ser difícil separar o traficante do senhor de engenho que controlava o acesso à praia. Depois de 1831, o acordo mercantil entre o dono da praia e o dono da carga humana deveria ser o mais estreito possível. No caso de Pernambuco, onde os portos naturais eram bem definidos, pode-se até falar nessa categoria social sem aspas, o senhor de engenho-traficante – ou vice-versa – ou seja, aquele potentado rural que se tornou traficante, ou o traficante que se tornou rendeiro ou dono de terra, enfim, alguma forma de aliança mercantil e política viabilizando a empreitada. Pois bem, ali onde desembarcou Baquaqua, havia abrigo e comida, essenciais para estancar a mortalidade da carga humana. O principal eram água e “alimentos frescos” como se dizia na época, pois não se conhecia a vitamina C, mas sabia-se, por uma longa experiência com o escorbuto, que o consumo de frutas frescas e misturas de carnes com ervas evitava o “mal de Luanda”, como se dizia na época.56 Da mesma forma que os navios negreiros tinham imensos caldeirões e inúmeras pipas de água para prover os africanos, o ponto de desembarque deveria ter cozinha, estoque de víveres, água potável e lenha suficientes para as necessidades das centenas de pessoas que lá estavam, entre africanos desembarcados, tripulação do negreiro, negociantes e trabalhadores engajados nos serviços necessários para a recuperação, manutenção e vigilância dos “africanos novos”. 54 55 56 CANOT, op. cit., p. 102. Relatório Alcoforado-Africanos, fls. 2. WILBERFORCE e HURLBERT, op. cit., p. 233. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cirurgiões e mercadores nas dinâmicas do comércio atlântico de escravos (séculos XVIII e XIX). In: MELLO SOUZA, Laura; FURTADO, Júnia; BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O governo dos povos. Relações de poder no mundo ibérico na época moderna. São Paulo: Alameda, 2009, p. 289. RODRIGUES. De costa a costa, op. cit., p. 261-265 e passim. 232 Entre as atividades desenvolvidas no ponto de desembarque, temos que incluir os cuidados com o próprio navio que teria que ser preparado para navegar até o porto oficial mais próximo, onde receberia passaporte e seria aprestado para outras aventuras mercantis, quem sabe até outra viagem à África. Não bastava livrar-se de correntes e outros equipamentos próprios do tráfico que poderiam chamar a atenção das autoridades no porto legal de destino. Significava também fazer pequenos consertos, alguns dos quais demandavam serviço próprio de trabalhadores portuários, como, por exemplo, carpintaria e calafetagem. Uma tarefa era rotina: a limpeza do barco, geralmente com alcatrão, para chamar menos atenção no porto de destino amenizando o chamado “cheiro de escravo”57 e, principalmente, por causa da crença de que os odores nauseabundos, os “miasmas pestilenciais” que emanavam do navio poderiam contaminar o ar, causando doenças difíceis de curar. O caso do Aracati, um brigue-escuna de 162 toneladas, traz algumas indicações do funcionamento desses procedimentos. O barco foi capturado em 1842, próximo ao cabo de Santo Agostinho, após desembarcar 385 africanos que sobreviveram em uma viagem onde outras 27 pessoas morreram de sede, segundo os autos de sua apreensão. Seu mestre Manoel José Fernandes era natural de Pernambuco e, portanto, provavelmente bom conhecedor daquele trecho da costa brasileira. Aliás, convém mencionar que o “piloto” também era pernambucano. Não havia, portanto, margem para erro na rota. Estava tudo bem planejado. Sabiam para onde ir e onde entrar. Conheciam os mares por onde navegaram e a barra onde foram capturados. Foi uma escuna da marinha brasileira que apreendeu o Aracati. No momento da apreensão, a tripulação estava no navio se regalando com melancia, manga, laranja e maracujá.58 A abundância e variedade de frutas demonstravam claramente que o navio viera de uma longa viagem, segundo deduziam as autoridades brasileiras. Ao serem questionados sobre elas, os tripulantes alegaram que as frutas não tinham vindo da praia imediata, o que seria um indício claro do desembarque, no entender das autoridades da marinha. De acordo com a tripulação, elas haviam sido compradas de uma barcaça que passou por ali. O que sabemos ao certo é que essas frutas eram essenciais para que a tripu- 57 58 RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p.. 149. Embarcação Aracaty, lata 2, maço 1, pasta 1. Arquivo Histórico do Itamaraty. Coleções Especiais. Comissões Mistas (tráfico e negros). Parliamentary papers. Slave trade. Correspondence with British commissioners and with foreign powers relative to the slave trade [class A and B], vol. 23, p. 268-273. REIS, GOMES e CARVALHO, op. cit., p. 161-162. 233 lação e os cativos se recuperassem. Nunca é pouco lembrar que o escorbuto também afetava a marujada, cuja mortalidade era altíssima. A praia também teria que acolher os tripulantes doentes e moribundos. Àquela altura, não se sabia que os cajus, onipresentes nas praias do Nordeste no apogeu do verão, tinham um teor de vitamina C maior do que as laranjas que a tripulação chupava. Mas, certamente, deviam ser consumidos pelos desembarcados por serem frutas praticamente sem custo algum durante a safra. Já se sabia que as frutas cítricas eram eficazes contra o escorbuto.59 Mas era março. Acabara-se a safra. Mas, como vimos, havia manga, laranja, melancia e maracujá no Aracati. Havia, portanto, variedade e abundância. Pensando bem, talvez os tripulantes tenham dito a verdade quanto à origem desse pequeno banquete. Talvez, realmente tivessem comprado as frutas de uma barcaça que passava carregada de alimentos frescos. Só que, se isso aconteceu, a tal barcaça não apareceu por acaso. Nos portos das grandes cidades, havia os chamados “barcos de quitanda”, como observou Silvana Jeha, que vendiam comida e outras mercadorias aos barcos maiores.60 A barcaça que passou pelo Aracati era uma adaptação à nova situação. Era um barco de quitanda, só que para navios negreiros. Um desembarque de 385 pessoas famélicas era uma excelente oportunidade para se comercializar frutas que, em outras circunstâncias, talvez não tivessem uma demanda tão grande e urgente. A variedade no Aracati expressa exatamente isso, pois juntar, em um mesmo barco, melancia, manga, laranja e maracujá em grande quantidade no exato momento de um desembarque de centenas de cativos, indica a existência de uma estrutura de distribuição bastante especializada. Melancia e maracujá são trepadeiras plantadas e colhidas anualmente. Mangueiras são árvores frondosas, laranjais, arvoredos que exigem cuidados. Demoram a produzir. Mas maracujá e melancia são frutas sazonais. Podem ser plantadas em um leirão simples, desde que se cuide para que os animais e insetos da roça não as devorem. Havia, portanto, pomares e gente capaz de plantar, colher, juntar e manusear frutas prontas para o consumo dos desembarcados. Não podemos garantir que eram todas vendidas em barcos de quitanda. Talvez o dono da praia tivesse pomares prontos para atender as necessidades do tráfico. Mas o que importa aqui apontar é a existência de mecanismos de produção e distri- 59 60 RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 262. WISSENBACH, op. cit., p. 295. JEHA, Silvana Cassab. A galera heterogênea: naturalidade, trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros da armada nacional e imperial do Brasil , c. 1822-c. 1854. Tese de doutorado, História, PUC-RJ, 2011, p. 95. 234 buição complexos e eficazes. Nesse sentido, é importante atentar para um detalhe: as frutas teriam sido adquiridas de uma “barcaça”, uma embarcação movida a vela ou remo de pau capaz de navegar em águas rasas, podendo assim entrar nos rios alcançando pontos distantes do litoral. Foi isso que notaram os oficiais da marinha inglesa perto de barracões no Rio de Janeiro. Num deles, havia vastas plantações de banana, laranja e mandioca.61 Talvez alguns senhores de engenho mais sintonizados com essa necessidade – aqueles senhores de engenho-traficantes mencionados acima – tenham até incentivado, ou obrigado, seus cativos a plantar melancias e maracujá, por exemplo, ou outras hortaliças. Assim, podem ter surgido roçados que não eram apenas o resultado direto da tensa e desigual negociação entre senhores e cativos, mas também uma necessidade das propriedades próximas das praias acolhedoras de navios negreiros. O emprego do trabalho escravo voltado para a manutenção do tráfico é uma possibilidade. Mas não é a única. Essa podia ser uma nova oportunidade para roceiros menores ou mesmo para moradores de engenho que vendiam seus excedentes nas feiras, ou ainda para pescadores que passaram a ter a possibilidade de ganhar alguns trocados, fazendo uso dos seus barcos, barcaças, canoas e jangadas. Importa repetir aqui que tudo tinha que ser rápido e eficaz. O dono da carga não podia esperar pelos “refrescos”, como se dizia na época. Era preciso recuperar os cativos imediatamente. Qualquer demora resultava em mais fatalidades e, consequentemente, prejuízos. Imagine-se o “vuco-vuco” que devia ser o desembarque de um navio negreiro em um ponto qualquer onde, antes de 1831, havia apenas pescadores e gente da clientela de algum senhor de engenho próximo. A massa de gente escravizada que desembarcou naqueles anos fora das capitais certamente mudou os mercados locais de víveres e a vida das comunidades costeiras, antes dependentes da pesca, de modestos roçados, cujos excedentes eram vendidos nos dias de feira no interior. O impacto do tráfico ilegal sobre o cotidiano das populações envolvidas não pode ser subestimado. Foi brutal, mesmo em mercados menores do que o Rio de Janeiro, como era o caso de Pernambuco. Uma injeção de capital mercantil imediata e profunda. A chegada de um navio negreiro representava o surgimento de um mercado de ocasião, restrito no tempo e no espaço. Mas, naquele momento exato, havia uma demanda a ser atendida. O receptador dos cativos não podia depender do dia de feira ou de fornecedores 61 WILBERFORCE e HURLBERT, op. cit., p. 235. 235 eventuais. Tinha que estar tudo pronto. Muita gente estava envolvida nessas operações, entre trabalhadores livres, roceiros, pescadores e até cativos. Feito o desembarque, a “desova”, como diziam na época, era preciso um local de depósito seguro e bem vigiado, o que significa que deveria haver gente preparada para essa finalidade com armas e outros tantos apetrechos de contenção. Cavalos, mulas e cachorros também eram úteis neste caso. Ressalte-se que havia gente também especializada em roubar escravos recémdesembarcados. A vigilância, portanto, tinha que ser muito bem orquestrada. Era preciso também que houvesse uma estrutura médica mínima, um bom barbeiro-sangrador ao menos, talvez até africano, para cuidar das centenas de pessoas que certamente desembarcavam estropiadas, muitas gravemente enfermas, inúmeras com diarreia, outras tantas com conjuntivites que podiam levar a cegueira e, talvez todos até, com alguma moléstia de pele, sarna principalmente, além de feridas várias devido às condições da viagem. Sabemos do descuido dos negociantes de escravos em relação às recomendações dos médicos sanitaristas, mas havia um limite, que deviam conhecer muito bem, entre deixar os cativos embarcados menos capazes de se rebelar devido à fome e à sede e simplesmente matá-los durante a viagem. Depois do desembarque, o problema continuava. Segundo o depoimento ao parlamento inglês de um homem envolvido no tráfico para o Brasil, os cativos precisavam de uns três meses para se recuperar da travessia atlântica.62 Ricardo Caíres Silva elencou uma série de depoimentos de africanos, que vieram para o Brasil depois de 1831, no qual ficou explícito que muitos ficavam vários dias, até meses, perto do local de desembarque antes de serem comercializados. Recuperavam-se da viagem, aprendiam melhor português e assim alcançavam melhores preços.63 Como indica Manolo Florentino, a taxa de mortalidade dos recém-desembarcados também era muito alta.64 Nem sempre era possível estancar totalmente a diarreia e demais doenças infecto-contagiosas contraídas na viagem, principalmente quando viajavam “apinhados”, como se dizia no Brasil, ou spooned, literalmente como colheres empilhadas, como diziam os ingleses.65 Na época do tráfico legal, observou Mary Karasch, era exigida até 62 63 64 65 Apud CONRAD, op. cit., p. 36. CAÍRES SILVA, op. cit., p. 50-58. FLORENTINO, op. cit., p. 154. HARMS, op. cit., p. 305. 236 certa atenção psicológica para evitar o banzo e o suicídio.66 Os ingleses computavam os óbitos dos “africanos livres” que levavam para Serra Leoa após a captura dos navios negreiros onde eles estavam viajando como cativos para as Américas. Numa amostra de 38.033 africanos livres desembarcados entre 1840 e 1848, 3.941 morreram antes que os navios em que estavam fossem leiloados.67 Isso significa que mais de dez por cento dos africanos transportados pelos ingleses para a sua principal colônia africana faleciam em terra devido aos padecimentos da viagem. Ao chegar ao Brasil, portanto, muitos morriam. O Temerário viajou com 913 cativos “apinhados”, dos quais apenas 816 desembarcaram em Catuama. Muitos foram distribuídos como propina para as autoridades locais durante o desembarque. Mas, no engenho onde estavam aprisionados, morreram outros 300. Imagine-se o terror que uma cena desse tipo provocava nas comunidades litorâneas recém-expostas ao tráfico. Como teria sido o enterro daquelas 60 crianças que se afogaram dentro do navio encalhado em uma praia entre Alagoas e Pernambuco? Maria Graham ficou aflita ao ver um cão arrastando na boca o braço de um pobre cativo mal enterrado no areal do istmo entre Olinda e Recife.68 As cenas presenciadas próximas ao Valongo no Rio de Janeiro eram ainda mais brutais, segundo os contemporâneos. Eram inúmeros os cadáveres mal enterrados, espalhando uma fedentina insuportável.69 Em Salvador, a busca pela dignidade na hora do enterro levou os cativos a se levantarem na Cemiterada.70 Não há porque subestimar o que acontecia nesse plano no litoral afora depois de 1831. Cenas dantescas de enterros em massa iriam se repetir nas praias. Só que piores, podemos inferir, pois, ao menos nas cidades, o tráfico sofria algum controle, por menor que fosse, por parte das autoridades que cuidavam da higiene urbana. Não por compaixão, mas simplesmente porque todos temiam o contágio. A desventura dos sobreviventes obviamente não era apenas o cativeiro. A tragédia do Temerário, por exemplo, não parou na morte de centenas de KARASCH, op. cit., p. 79-80. Report from the select Committee of the House of Lords, etc., 19/07/1850. Parliamentary papers. Report from the select Committee of the House of Lords to consider the best means which Great Britain can adopt for the final extinction of the African slave trade with minutes of evidence, appendix and index, vol. 6, p. 228. 68 GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil (e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823). Londres, 1824; reedição Belo Horizonte: Itatiaia, 1990, p. 140. 69 KARASCH, op. cit., p. 77. 70 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, passim. 66 67 237 pessoas após o desembarque. Pelo menos uns cem cativos ficaram cegos pela “ophtalmia” que os atacou, sendo, por isso, distribuídos gratuitamente. Os restantes foram vendidos normalmente, para escândalo do cônsul inglês no Recife que disse nunca ter visto uma ofensa à lei tão flagrante, pois tudo aconteceu quase às vistas de Olinda e com o conhecimento do então presidente da Província, o barão da Boa Vista.71 Isso também teria consequências para a população costeira. Não nos iludamos, conjuntivites viróticas ou bacterianas, facilmente curáveis hoje em dia, podiam resultar em cegueira permanente. E tudo isso com muita dor, muito sofrimento, além do isolamento devido ao temor que todos tinham do contágio. Imagine-se o terror dos infelizes passageiros do Temerário condenados à escravidão e à cegueira simultaneamente. O perigo de cegueira era tão real que os episódios mais aterrorizantes circulavam pelo Atlântico rapidamente. O caso do Rodeur foi narrado por Thomas Clarkson em seu livro publicado em 1830. Sem citá-lo, em janeiro de 1839, o Diário de Pernambuco contou o mesmo episódio, certamente chocando seus leitores. Segundo o jornal, o Rodeur, um negreiro de 200 toneladas, zarpou de Calabar em janeiro de 1819 com 22 tripulantes e 160 africanos, quando uma oftalmia, que começou entre os escravos, atingiu um dos marinheiros e daí se espalhou cegando praticamente toda a tripulação. Apenas um marinheiro ainda podia ver o suficiente para guiar o navio. No caminho, o Rodeur cruzou com um negreiro espanhol, o Leon, acometido pelo mesmo problema, mas foi incapaz de ajudá-lo. Doze tripulantes ficaram permanentemente cegos, inclusive o cirurgião-barbeiro do navio. O capitão conseguiu salvar apenas um dos olhos.72 Por último, depois do desembarque, começava outro processo que podia ter várias formas: a distribuição da carga. Baquaqua, por exemplo, não falou muito sobre como foi a sua própria comercialização, mas deixou a impressão de que foi vendido e revendido sucessivas vezes individualmente até chegar às mãos de um padeiro. Mas também havia caravanas que partiam das praias em várias direções. Incomodava o cônsul inglês em Pernambuco a tranquilidade com que essas inusitadas procissões seguiam pelas estradas sem serem incomodadas pelas autoridades que deveriam coibir o tráfico. Esquecia-se 71 72 National Archives (Londres). NA-FO 84/470, 08/05/1843. Ibid. FO 84/526, Slave trade, Brazil, 03/09/1844. Diario de Pernambuco, 04/01/1839. CLARKSON, Thomas. Abolition of the African slave-trade by the British Parliament. Augusta, P.A. Brinsmade, 1830, vol. 2, p. 221-225. Veja-se ainda: http://www. slavevoyages.org/tast/database/search.faces 238 que isso já era uma rotina em Pernambuco. A diferença é que essas caravanas não partiam mais do Recife ou de uma ou outra vila costeira que, eventualmente, recebia contrabando desde o período colonial. Agora, elas saíam dos portos do tráfico em direção ao interior ou mesmo para Recife e Olinda. Aqui, gostaria de ressaltar que o tráfico ilegal teve dinâmica própria. Ele não foi igual nos seus mais de vinte anos de existência. Houve adaptações às circunstâncias, tanto no mar como em terra. É bem possível que, no começo dos anos 1830, as caravanas com cativos realmente andassem tranquilamente pelo interior afora. Mas, com o passar do tempo, a vigilância deve ter se aprimorado, não apenas para coibir as fugas, mas também por temor dos ladrões de escravos, como vimos acima. Enquanto o tráfico existiu, os negreiros podiam ser atacados por piratas. Depois de 1831, isso passou a acontecer em terra. As caravanas eram o alvo. Vale ressaltar que, obviamente, os cativos não eram gado, mas gente, ou seja, eram capazes de participar do seu próprio roubo, trocando de senhor no meio do trajeto. Em 1837, o Diário de Pernambuco publicou uma carta que defendia explicitamente o comércio atlântico de escravos. O sarcástico missivista, que se assinava “Anjo Gabriel”, contou que viu passar na porta do seu engenho uma caravana levando uns 200 “colonos” africanos que haviam desembarcado ali perto. Além dos tais “colonos”, havia uns 40 homens armados vigiando a triste procissão.73 Em zonas de plantation próximas à costa não deviam ser raras essas cenas. Mas o que aconteceria se a caravana tivesse que atravessar algumas léguas antes de chegar ao ponto de distribuição dos cativos? Os vigilantes, como os 40 homens da estória do Anjo Gabriel, não estavam ali de graça. Além disso, todos tinham que ser providos de víveres e água durante o trajeto para que a distribuição fluísse a contento. Portos naturais em locais ermos do imenso litoral do Brasil poderiam servir emergencialmente, mas não para as rotinas do tráfico. Tudo tinha que ser muito bem arranjado, da chegada do navio à distribuição dos cativos. 4. Considerações finais Após 1831, o comércio atlântico de escravos passou a empregar muita gente em diversas atividades no imenso litoral brasileiro fora das capitais provinciais. Esta constatação permite algumas reflexões. 73 Correspondência. In: Diário de Pernambuco, 17/04/1837. 239 Agricultores e roceiros ganharam fregueses para escoar sua produção. Barqueiros, jangadeiros, pescadores em geral encontraram uma nova fonte de renda. Desocupados robustos passaram a ter empreitada na vigilância dos desembarcados ou nas caravanas de distribuição dos cativos. Barbeiros subempregados nas modestas povoações costeiras passaram a ter trabalho certo e intenso, mesmo que por poucos dias mal distribuídos no ano. Padres viram seus serviços valorizados nas capelas dos engenhos. Não se limitavam apenas a benzer as máquinas na primeira moagem. Batizavam turmas de “negros novos” e benziam enterros em massa, evitando assim malassobros, feitiços e maldições. Para alguns desses serviços, também podiam servir os especialistas religiosos locais mais afamados, inclusive africanos. Quando os navios negreiros deixaram de desembarcar nas capitais, muita gente deve ter perdido o emprego nos portos urbanos. Mas, talvez, ainda mais tenha se empregado pelo litoral afora. Não temos como aferir exatamente o impacto desse processo nas comunidades costeiras, mas não deve ter sido pequeno. O tráfico trouxe um novo uso para as embarcações antes devotadas apenas à pesca e à cabotagem de mercadorias menos valiosas do que a mão-de-obra escrava. Criou um novo mercado para víveres frescos, que muitas vezes tinham que ser levados até os barcos, principalmente quando eles ficavam a bordejar esperando um momento melhor para aportar ou esperando o desembarque completo em segurança. Sabemos que, no século XIX, o tráfico foi ganhando adversários nos mais variados estratos sociais. Em seus últimos anos, não havia muita gente afirmando nos jornais que era uma atividade boa e louvável, ao menos tão explicitamente como fizera o tal “Anjo Gabriel” no Diário de Pernambuco. Muito menos em textos assinados por pessoas reais, com nome e sobrenome. Isso mesmo sendo corriqueiro denunciar as arbitrariedades cometidas pelos ingleses contra a marinha mercante brasileira sob o pretexto de uma causa nobre, fomentando assim a anglofobia. O medo das rebeliões escravas, das doenças trazidas da África e a própria consciência de que a escravidão era um mal que devia ser erradicado adensavam a massa de defensores da abolição do tráfico. Havia emancipacionistas sinceros e boa parte da opinião pública concordava. Mas será que os agentes consulares britânicos e portugueses estavam simplesmente mentindo quando diziam que muitos brasileiros apoiavam o tráfico nessa mesma época? Estariam os ingleses apenas defendendo a expansão do seu império sob a fachada de uma causa humanitária? Estariam os agentes consulares lusitanos apenas defendendo seus cidadãos envolvidos no tráfico, jogando a culpa nos brasileiros? Sim, é a resposta óbvia. A hipocrisia humana é universal. 240 Mas é preciso qualificar essa resposta. Não podemos ser tão simplistas, pois, no mesmo momento em que crescia a opinião pública contra o tráfico – principalmente nas cidades –, havia muita gente no litoral que dele se beneficiava. Nos locais de desembarque, muitos passaram a depender do tráfico, senão para sobrevivência, ao menos como uma fonte de renda antes inexistente. Depois de 1831, muitas localidades costeiras receberam uma brutal injeção de capital mercantil, gerando renda nas mais diversas atividades. É ingênuo supor que a falta de denúncias de desembarques era apenas por temor aos traficantes. É duro admitir, mas havia gente que não podia ser radicalmente contra seu próprio ganha-pão. O famoso relatório Alcoforado narra uma complexa escala de propinas, desde os mais altos escalões até as autoridades locais menos expressivas.74 O dinheiro do tráfico pulverizava-se. Dizer que a maioria da população o apoiava é uma proposta absurda. Mas não podemos negar que muita gente dele se beneficiava. O cônsul inglês em Pernambuco achava que a população mais pobre era quem mais apoiava o tráfico por ser um negócio que gerava muita riqueza, empregando muita gente em pequenos serviços, distribuindo propinas em todos os níveis da burocracia imperial.75 Mais uma vez, é evidente o exagero da retórica consular. Bem própria da mentalidade de um representante da então maior potência do planeta. Não é razoável alicerçar o tráfico justamente na população não proprietária de escravos. Isso também é óbvio. Todavia, não devemos subestimar a participação das populações costeiras, reduzindo o tráfico a um negócio de grandes traficantes urbanos. O Nazareno, por exemplo, era uma folha que defendia os direitos dos caixeiros brasileiros e dos negros presos no Recife por seguirem a seita do Divino Mestre em 1846.76 Seu editor, Borges da Fonseca, era um admirador de Cipriano Barata e autor do manifesto mais radical da insurreição Praieira (1848/49), no qual, entre outras propostas, defendia o voto universal para os cidadãos brasileiros. Borges da Fonseca, todavia, não deixou de publicar um texto defendendo a anulação da lei antitráfico de 1831. Citou explicitamente Bernardo Pereira 74 75 76 Relatório Alcoforado-Africanos, fls. 3. NA-FO 84/470, 04/08/1843. ALMEIDA SANTOS, Mário Márcio de. Um homem contra o Império: Antônio Borges da Fonseca. João Pessoa: União, 1994, passim. CARVALHO, Marcus J. M. Que crime é ser cismático? As transgressões de um pastor negro no Recife patriarcal, 1846. Estudos Afro-Asiáticos, 1999, vol. 36, p. 97-122. 241 de Vasconcelos escrevendo que “a escravidão é um elemento de civilização para o Brasil”.77 Ele certamente não estava sozinho. Claro que o tráfico também trazia doenças terríveis para as populações do litoral. Da cegueira a diarreia mortal, passando por inúmeras enfermidades graves. Quem não se chocaria ao ver, pela primeira vez, a chegada de centenas de pessoas famélicas, desidratadas, com sarna, muitas cegas ou até moribundas nos últimos suspiros? Quem não se incomodaria ao testemunhar, ou mesmo participar, de enterros de dezenas, às vezes centenas de pessoas poucos dias após um desembarque? A maior presença africana também aumentava o temor de uma grande rebelião escrava, um problema tanto para os grandes como para os pequenos e médios proprietários de cativos. Mas, por outro lado, o tráfico empregava de pescadores a roceiros, passando por desocupados mais robustos, barbeiros, práticos de portos secundários, carpinteiros, calafates etc. Eram muitos esses empregados em Pernambuco. Mais ainda na Bahia e Rio de Janeiro. Vinha daí o tal apoio ao tráfico de que falavam os agentes consulares ingleses e portugueses. Quer dizer, talvez “apoio” seja uma expressão superlativa, mas conivência não. Partia daí a silenciosa, mas concreta, nesga de legitimidade que porventura ainda possuía o tráfico entre a população não proprietária de escravos depois de 1831. Muita gente lucrava com ele. Estamos falando, portanto, de um empreendimento de grande porte. Por mais discretos que fossem os traficantes, por mais silenciosas que fossem as velas recolhidas após a ancoragem, um desembarque era um grande evento. A notícia da chegada de um navio negreiro se espalhava como fogo na palha (wild-fire), na expressão do próprio Baquaqua.78 Euzébio de Queiroz tinha a mesma opinião. Segundo ele, bastava o governo querer para acabar com o tráfico, pois era impossível esconder uma operação dessa escala.79 Todo mundo via. Muitos participavam. Depois de 1831, os negociantes envolvidos no comércio atlântico de escravos procuraram também possuir terras no litoral, ou constituir alguma forma de acordo com os proprietários das terras próximas aos terrenos de 77 78 79 Apeje. O Nazareno. Typografia Nazarena de Antonio Borges da Fonseca, 23/03/1846. Ao discutir os roubos de escravos que ocorriam em Pernambuco na década de 1840, Borges também defenderia a propriedade sobre os africanos que entraram no país depois de 1831. Para ele, era preciso pegar os ladrões de escravos, mas o domínio propriamente dito, ou seja a propriedade, não deveria ser questionada. ALMEIDA SANTOS, p. 115. Apud LAW e LOVEJOY (orgs.), op. cit., p. 158. Relatório apresentado à Assembleia Geral, 1852. Center for Research Libraries, Brazilian Government Document Digitalization Project, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/660/000005.html. 242 marinha, as praias propriamente ditas. Assim viabilizaram seus negócios. Houve, portanto, um rearranjo nas relações entre os detentores dos melhores portos naturais e os traficantes. Como é voz corrente na literatura e nas memórias coevas que os senhores de engenho costumavam estar endividados com os traficantes, talvez fosse essa uma boa alternativa para aqueles cujas terras margeavam os melhores portos naturais, abatendo débitos em troca de proteção aos desembarques, ou sendo pagos em “negros novos”. Para os traficantes, não havia outro caminho, ou tinham acesso aos melhores portos naturais próximos dos centros de consumo da mercadoria contrabandeada, ou saíam do negócio. Quanto melhor o porto natural, quanto mais pronta e segura a estrutura de recepção, mais rápido, discreto e bem-sucedido o desembarque. Depois de 1831, dificilmente um navio negreiro iria zarpar da África “na louca”, sem destino certo, pronto a atracar em qualquer lugar. Quando isso acontecia, o risco de fracasso era iminente. Traficantes bem articulados poderiam até dispor de mais de um ponto de desembarque a sua disposição, inclusive em diferentes províncias, pois às vezes era preciso mudar a rota para escapar dos ingleses. Mas o essencial era garantir ao menos um local certo para o desembarque. Volto a lembrar que a possibilidade de apreensão pelos ingleses não era o único risco. Os negócios do tráfico eram concorridos e as disputas políticas e pessoais frequentemente resolvidas com violência. Nas localidades litorâneas onde esses atritos eram mais acirrados, havia o risco dos “negros novos” serem tomados pelos adversários dos responsáveis pelo desembarque. Em lugares mais remotos, a carga poderia ser roubada por ladrões de escravos. Proprietários rurais empossados de cargos no aparato repressivo também podiam tentar se apropriar de cativos desembarcados por seus adversários na política local. Esses riscos impeliam os traficantes a entrar em sintonia com os potentados locais, tecendo alianças políticas e mercantis nas imediações dos melhores portos naturais, ou mesmo comprando ou arrendando essas terras. Essa rede de apoio era a melhor garantia do sucesso de um desembarque. Depois de 1831, os negociantes de escravos não podiam mais se limitar a negócios urbanos e atlânticos. Era preciso consolidar alianças além das capitais provinciais. Agora também interessava a eles conhecer – ou tornarem-se – o juiz de paz, o comandante da guarda nacional, o subdelegado de polícia. Uma nova relação se estabelecia. Traficantes tornaram-se donos de terra no litoral e, provavelmente, vice-versa. No que diz respeito ao volume do tráfico, Pernambuco está em 3º lugar, atrás da Bahia e Rio de Janeiro. Todavia, a província serve como um microcosmo do tráfico mais amplo. Processos análogos devem ter ocorrido em outras províncias depois de 1831. 243 Referências bibliográficas ABREU, Martha. O caso do Bracuhy. In: MATTOS, Hebe e SCHNOOR, Eduardo. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. AIRES DE CASAL, Manuel. Corografia brasílica. Rio de Janeiro, 1817; reedição: Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. ALMEIDA SANTOS, Mário Márcio de. Um homem contra o Império: Antônio Borges da Fonseca. João Pessoa: União, 1994. AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: Lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos. Brasília: Senado Federal, 2002. CAÍRES SILVA, Ricardo Tadeu. Memórias do tráfico ilegal de escravos nas ações de liberdade: Bahia, 1885-1888. Afro-Ásia. 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Recebido: 08/02/2012 - Aprovado: 13/08/2012 246 REPRESENTAÇÕES DA MORTE INFANTIL DURANTE O SÉCULO XIX NO RIO DE JANEIRO E NA INGLATERRA: UM ESBOÇO COMPARATIVO PRELIMINAR Luiz Lima Vailati Contato Universidade Federal de Viçosa Av. Peter Henry Rolfs, s/n 36570-000 – Viçosa – Minas Gerais E-mail: [email protected] Professor visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa - Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo Resumo O presente artigo procederá a um esforço comparativo sobre as práticas e representações que cercam a morte infantil no Rio de Janeiro e na Inglaterra no século XIX. Considerando a diversidade radical que uma primeira leitura sugere entre os casos e a existência de estudo para ambos, buscar-se-á uma melhor apreensão das respectivas particularidades e reavaliar algumas hipóteses gerais acerca da evolução da sensibilidade em relação à infância no Ocidente. Palavras-chave História da infância – história da morte – Brasil e Inglaterra (século XIX). 247 REPRESENTATIONS OF CHILD DEATH IN NINETEENTH CENTURY’S BRAZIL AND ENGLAND: A PRELIMINAR COMPARATIVE SKETCH Luiz Lima Vailati Contact Universidade Federal de Viçosa Av. Peter Henry Rolfs, s/n 36570-000 – Viçosa – Minas Gerais E-mail: [email protected] Visiting Professor at the History Department of Universidade Federal de Viçosa – PhD in Social History at Universidade de São Paulo Abstract This paper will carry out a comparison between the data and discussions on the practices and attitudes surrounding child death at Rio de Janeiro and England in the nineteenth century. Considering the radical diversity that a first reading suggests between them and the existence of studies for both, it will seek a better capture of the specificity in each one and review some general hypotheses about the evolution of sensitivity on childhood in the West. Keywords Death history – childhood history – Brazil and England (XIXth century). 248 Introdução Os visitantes e exploradores estrangeiros que no Brasil estiveram ao longo do século XIX dispensaram, em suas memórias e diários de viagem, uma atenção especial ao gestual funerário testemunhado aqui, oscilando, em relação a essa experiência, da admiração à indignação. A razão disso coube, em parte, ao modo espetacular com que então se apresentava essa prática, traço que manifestava ali uma de suas formas mais salientes de nossa religiosidade. Assim, foram por eles interpretadas como expressão de uma espiritualidade primitiva, atribuída, sobretudo, à influência da Igreja católica no país e sua tolerância para com superstições de origens as mais diversas. Causavam profunda impressão, em especial, os funerais de criança. Segundo se observa nessas descrições, a surpresa se devia, de um lado, ao investimento material desproporcional à pequena importância social da criança e, de outro, a um colorido festivo e a manifestações de jubilamento. Assim, acrescentavam algo mais à interpretação que esses forasteiros tinham das práticas fúnebres brasileiras. Testemunhariam, de um lado, o uso indiscriminado e insensível que aqui se fazia dos eventos públicos para a ostentação de signos de distinção e, de outro, o fraco sentimento familiar de que sofria a sociedade brasileira, ambas características apresentando-se a eles como severo empecilho ao progresso da nação.1 Em vista dessa constatação, julguei pertinente, como complemento a um estudo das representações da morte infantil no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo) do século XIX,2 proceder a uma análise comparativa com o caso da Inglaterra, pátria de um dos viajantes (John Luccock, comerciante de Yorkshire, que desembarcou no Brasil em junho de 1808 e permaneceu neste país até 1818) que mais vivamente expressou estranhamento em relação às práticas em torno da criança morta aqui3 e que tem sido objeto de uma 1 2 3 VAILATI, Luiz Lima. A morte menina: infância e morte infantil no Brasil dos oitocentos (Rio de Janeiro e São Paulo). São Paulo: Alameda, 2010. Idem. A seguinte passagem de John Luccock ilustra bem essa reação: “‘Ó como estou feliz! Ó como estou feliz, pois que morreu o último de meus filhos! Que feliz que estou! Quando eu morrer e chegar diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar, pois que ali estarão cinco criancinhas a me rodear e puxar-me pela saia e exclamando: Entra Mamãe, entra! Ó que feliz que sou!’ repetiu ainda, rindo a grande. Se isso fosse considerado efeito de um desvio mental passageiro; o caso, porém, é que a satisfação em tais momentos é geral demais, e por demais ostensiva, para que deixe lugar a desculpas dessa espécie. Não posso ter uma opinião boa sobre o futuro de um estado onde assim se dissolvem os mais fortes laços dos seres desse mundo”. 249 série de estudos, em especial no campo da literatura, concernente às representações da morte infantil durante o período que nos interessa. Essa comparação corresponderá a um dos objetivos deste artigo que é iluminar, pelo confronto, a especificidade dos casos analisados. Isso consiste em indagar se estamos, de fato, em meados do XIX, diante de atitudes em relação à morte infantil absolutamente antagônicas entre os dois países, conforme sugerem as reações dos viajantes estrangeiros, e qual a natureza dessa diferença. O outro objetivo é tentar definir melhor – amparado pelo escopo mais abrangente que o exame desses contextos variados permite – algumas hipóteses a respeito da percepção e lugar social da criança e as transformações operadas nesse âmbito, em especial a assunção de que a história da infância no Ocidente, desde o final da Idade Média, resume-se fundamentalmente a uma crescente sensibilidade quanto a sua especificidade. A despeito das diferenças algumas vezes existentes no que toca aos problemas abordados e às fontes utilizadas entre a pesquisa sobre o Brasil e a dos autores sobre a Inglaterra, consultados aqui, e com o cuidado de se restringir a questões às quais os dados e análise autorizavam considerações suficientemente controladas, foi possível fazer a pretendida comparação e chegar a conclusões que julgo bastante pertinentes ao objetivo proposto. Tendo isto em vista, bem como uma melhor visualização da comparação realizada, estruturei o texto a partir de cinco pontos específicos nos quais serão confrontadas as diferentes atitudes inventariadas aqui e ali. Entendo que esses pontos de modo algum esgotam as possibilidades atualmente disponíveis de abordagem e exame das atitudes e representações da morte infantil, mas, como já foi dito, para a nossa história comparativa, são aqueles que as evidências sinalizaram com mais segurança e que a reflexão mostrou serem mais ricos em significado. São eles: (1) o modelo religioso e a vivência efetiva, no qual indagaremos a respeito da existência da diferença geral tanto para o caso inglês como para o brasileiro, entre os modelos, prescrições e normas que gravitam em torno da morte menina e a forma com que esse evento é de fato vivenciado pelos indivíduos diretamente envolvidos; (2) o público e o privado, em que se procurará observar quais tipos de comportamentos diante desse evento são vistos como adequados para a esfera pública e quais são restritos ao âmbito privado; (3) os cuidados espirituais, em que tratarei de verificar quais são (LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 80). 250 os cuidados prescritos e de fato agenciados para com a criança que está a morrer; (4) avaliar, para cada caso, os diferentes sentidos dados à morte infantil; e, por fim (5) procurar levantar, a partir de uma abordagem própria à história social, as forças históricas que permitem entender as diferenças e semelhanças entre essas representações e a forma como se transformaram e, em especial, delinear o estatuto da criança morta nesses dois contextos. Os “contextos” em questão Antes de dar início a este esboço, são necessárias algumas considerações para que possamos mais adequadamente precisar os universos cujas representações serão submetidas à comparação. A primeira delas diz respeito às fontes utilizadas e, por conseguinte, à representatividade dos dados que temos em mãos. Julgo ser mais oportuno fazer isso por meio de um panorama geral desses testemunhos, porque a própria natureza deste artigo, cujo desenvolvimento se constrói sobre informações resultantes, na maior parte das vezes, de um tratamento serial das fontes, não permite que a argumentação seja amparada na identificação individual delas, sem que isso exorbite as dimensões que cabem a um artigo. No caso dos dados sobre o Rio de Janeiro, as fontes utilizadas, em linhas gerais, são: os já mencionados relatos de viajantes estrangeiros que por aqui estiveram ao longo de todo o século XIX, desde a abertura dos portos em 1808 (na maior parte, ingleses, franceses e norte-americanos), cujas narrativas permitiram a reconstituição de determinadas práticas fúnebres, apesar dos eventuais exageros e da atenção quase exclusiva dada ao que é percebido como “pitoresco”; os compêndios e manuais eclesiásticos – alguns em vigência no período abordado e outros propriamente produzidos durante esse período – que nos dão a conhecer não apenas a ortodoxia a respeito dessas práticas e, consequentemente, as representações veiculadas pela Igreja em atuação no Brasil, mas, também, dado seu caráter repressor, as práticas efetivas da população, permitindo assim controlar melhor as informações obtidas dos viajantes; a documentação de caráter particular, no geral cartas e memórias, mais comuns para a segunda metade do XIX, mas não limitada a ela, as quais, ainda que restritas às elites, são testemunho importante no vislumbre das atitudes e sensibilidade leigas, sobretudo aquelas cuja expressão está, de algum modo, interditada à esfera pública; as inscrições tumulares, lugar privilegiado de uma nova manifestação pública face à morte infantil, principalmente a partir do final do último quartel do século estudado; e, por fim, as teses médicas que, produzidas a partir da segunda metade do século, 251 quando da criação da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, são índice de uma radical transformação nos significados da morte infantil. Com efeito, como se pode notar, as práticas e representações que minha pesquisa pôde melhor reconstruir, sobretudo em nível discursivo, são principalmente aquelas respeitantes às parcelas da população elas próprias capazes de deixar registro, ou seja, a elite e as camadas médias da cidade do Rio de Janeiro, ou seja, são aquelas não apenas sob uma maior influência da Igreja e mais capazes de responder à suas exigências, mas também aquelas cuja situação forçou uma assimilação maior às novas modalidades de vida e valores trazidas pela urbanização e mais direta integração do país ao mercado mundial, elementos diretamente implicados no fenômeno aqui abordado e suas transformações. Assim, é no tocante a esse grupo que minha pesquisa tem maiores condições de falar com segurança e é sobre ele que será feita a comparação. Lamentavelmente, esse não é o caso da população pobre e dos escravos, cuja recuperação das práticas e representações, nas poucas vezes em que foi possível, não foi suficiente para que ali se identificassem as particularidades decerto existentes. Não obstante, a pesquisa, ainda que assim limitada em termos de abrangência social, foi capaz de observar as diferenças coevas de visão e comportamento e suas transformações, das quais procurarei dar conta ao longo do texto. Sobre a Inglaterra, ainda que só tenha tido acesso, via de regra, às considerações já elaboradas dos autores consultados sobre as fontes por eles pesquisadas, é possível também, por meio do que eles nos apresentam, mapear a incidência sócio-histórica das representações abordadas em suas análises. Os testemunhos a partir dos quais os autores nos quais nos apoiamos trabalharam são, de modo geral, os seguintes: livros de educação religiosa infantil (pertencentes tanto à tradição evangélica como à puritana) em que a tópica da morte infantil é muitíssimo recorrente; a literatura romântica – poesia e prosa, ambas também permeadas pelo assunto; e os chamados “livros de consolação”, modalidade editorial dedicada a amparar psíquica e espiritualmente aqueles envolvidos com a perda de entes queridos, muitas vezes crianças. Editados e impressos, na grande maioria das vezes, em Londres e, em seguida, em Oxford, podemos dizer com mais segurança que é a estes contextos urbanos e aos grupos capazes de produzir e consumir esse material – os setores letrados da sociedade inglesa que esse material diz mais a respeito. Com efeito, se a maior alfabetização e a própria diretriz missionária de algumas das confissões envolvidas, como é o caso do metodismo (cuja 252 prédica se voltou especialmente às camadas populares),4 permitem presumir uma abrangência social mais dilatada que no caso brasileiro, as análises e os dados disponibilizados pelos autores não favorecem a percepção de diferenças significativas em termos de classe. Esse é também, grosso modo, o quadro quando o parâmetro é de ordem confessional, ainda que isso se apresente de uma forma muito mais matizada. Apesar da identificação de elementos cuja origem pode ser localizada em um registro doutrinário específico (como é, por exemplo, a tal “representação puritana”), o que fica sugerido da leitura dos estudos sobre a Inglaterra é que estes estão disseminados e combinados ao longo do espectro social e não se limitam, na sua expressão, a grupos religiosos específicos.5 Ainda assim, se as diferenças de ênfase são evidentes e não foram (tampouco serão aqui) negligenciadas, também é verdadeiro, em vista do que nos é oferecido pelas pesquisas disponíveis, que, para alguns grupos religiosos, como anglicanos não-evangélicos e, sobretudo, católicos, não é possível recuperar sua particularidade. Esse não é o caso dos puritanos e dos evangélicos (tradição esta na qual os autores englobam, indistintamente, metodistas e os anglicanos reformados) que são muito mais bem representados pelas análises utilizadas e cuja mútua especificidade pode ser delineada com um pouco mais de segurança. Assim, é mais prudente assumir que, na maior parte das vezes em que falamos da Inglaterra, estamos efetivamente tratando das camadas letradas entre os puritanos e evangélicos (ou sob sua influência, que, entre 1800 e 1870, é o caso de uma parte bastante considerável da sociedade inglesa, de alto a baixo, dada a força do movimento)6 residentes nas cidades como Londres e Oxford. 4 5 6 HALL, Catherine. Sweet home. In: PERROT, Michelle (org.). História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1981, p. 53-92. Como observa, por exemplo, Gillian Avery sobre a revista de orientação calvinista The Children’s Friend (1824-82), esta era procurada, durante o XIX, mesmo entre famílias de outra confissão. (AVERY, Gillian. Intimations of mortality: the puritan and evangelical message to children. In: AVERY, Gillian; REYNOLDS, Kimberley (eds.). Representations of childhood death. Nova York: St. Martin Press, 2000, p. 87-110). Esse também é o caso da chamada “representação romântica da infância” que, como o nome sugere, está francamente presente na literatura do período, não apenas porque seu enorme sucesso sugere que seu consumo não se limitou a grupos religiosos específicos, mas também elementos comuns a essa representação estarão mais tarde presentes, por exemplo, na literatura evangélica. JAY, Elizabeth. “Ye careless, thoughtless, worldly parents, tremble while you read this history!”: the use and abuse of the dying child in the evangelical tradition. In: AVERY, Gillian; REYNOLDS, Kimberley (eds.). Representations of childhood death. Nova York: St. Martin Press, 2000, p. 111-132. JALLAND, Pat. Victorian death and its decline: 1850-1918. In: JUPP, Peter; GITTINGS, Clare (eds.). Death in England: an illustrated history. New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 2000 (1999), p. 230-255. 253 Em segundo lugar, não é demais lembrar que o longo intervalo de tempo abordado (o século XIX) deu lugar, para ambos os casos, a importantes transformações no que toca ao objeto em questão. Nesse sentido, cabe dizer que aqui serão confrontados mais do que apenas dois contextos distintos (referentes aos dois lugares escolhidos), se considerarmos ao menos que o universo a que tivemos acesso nos dois casos apresenta, entre o início e o final do século XIX, configurações claramente distintas. Assim, as transformações observadas nas duas localidades serão, em cada uma das dimensões enunciadas acima, também objeto de comparação, bem como as forças históricas atuantes ao longo do século XIX (a serem abordadas no último item) que, para cada um dos dois casos, estão na origem dessas mutações. O modelo religioso e a vivência efetiva Ao compararmos os conjuntos de dados disponíveis para as cidades do Rio de Janeiro e para a Inglaterra, uma similitude fundamental salta aos olhos. É notável, para ambos os lados do Atlântico, como ficará exemplificado nos itens que se seguem, a coexistência entre duas formas gerais bastante distintas de significar a morte infantil, correspondentes, por um lado, ao que poderíamos chamar de ortodoxia religiosa e, por outro, às reações por parte daqueles concreta e diretamente envolvidos com a morte de uma criança, especialmente aqueles cujo parentesco ou convívio eram próximos. De fato, no caso brasileiro, no tocante ao entendimento da morte menina, bem como aos cuidados e expectativas associados a ela, é bastante saliente a diferença quando comparamos o que a esse respeito somos informados pela leitura dos manuais e compêndios eclesiásticos produzidos e circulantes no período em estudo e o que os testemunhos (como, por exemplo, os relatos de viagem, registrando comportamentos manifestados publicamente, e a documentação de caráter particular, que fi xam as reações exclusivas do foro íntimo) denunciam sobre as atitudes desencadeadas por ocasião desses eventos. Para a Inglaterra é observada essa diferença também, sendo evidente, como se verá a seguir, a distinção entre certa visão da morte infantil conforme propugnada pela literatura puritana e evangélica e as representações engendradas pelos fiéis, nas ocasiões em que morrem ou estão na iminência de morrer crianças cuja relação com estes fiéis é bastante estreita. É necessário observar apenas que, se no Rio de Janeiro fica claro que os veiculadores dessas representações são grupos sociais e indivíduos na maior parte das vezes distintos, ou seja, clero e leigos, assim não se passa no caso inglês. Ali, os representantes da ortodoxia são também os produ254 tores desse discurso diferenciado relativo àqueles que vivenciam a perda prematura de um ente querido, na maioria das vezes na condição de pais, o que oferece uma oportunidade ímpar para a observação dessa modulação de discursos e representações coexistentes nesse contexto e a distância efetiva que se instaura entre a norma e a prática. A natureza dos cuidados espirituais No que se refere à existência e à natureza dos cuidados de ordem espiritual dispensados à criança que morre, temos, em grandes linhas, o seguinte quadro: no que concerne às prescrições constantes dos manuais e compêndios eclesiásticos, constatou-se uma diferença marcada entre o que se exige em caso de morte para adultos e o que é mandatório para as crianças, sendo o elemento definidor da condição infantil a ausência do “uso da razão”. Uma característica geral dessas cauções específicas que a Igreja prescreve à criança ao morrer é o que se pode chamar de gravidade atenuada, que se manifesta pela exigência exclusiva, ainda que veemente, do batismo como caução salvífica, bem como por uma parca preocupação em regular outros aspectos do cerimonial fúnebre infantil, permitindo neste aquilo que se proibia nos funerais de adultos. Quanto a esse último aspecto, vale dizer que a Igreja parece incomodada particularmente com a tendência que a população tem em fazer uso dos mesmos sinais (cor e adereços) para crianças, moças virgens e solteiros. Por sinal, entre as práticas rituais efetivas levantadas para o Rio de Janeiro (auferidas nas denúncias e proibições constantes dos livros eclesiásticos, nos livros de registro de óbito e nos relatos dos viajantes), ficou evidenciada, em primeiro lugar, a identificação feita entre os três – crianças, moças virgens e solteiros –, sugerindo que, por parte da população leiga, é forte a associação entre infância e ausência de prática sexual. Em segundo, é notável, para a criança, a quase ausência de cuidados relativos à preparação para morte, em franco contraste com a imensa inversão social e material nos rituais post-mortem, insinuando que se trata menos de um cuidado para o bom encaminhamento da alma do que uma homenagem à criança que, ao morrer, é alçada a um novo e mais elevado estatuto social, representação que teremos oportunidade de discutir mais adiante. É precisamente o oposto o que observa no caso inglês, no qual o investimento ritual para com a criança que morre concentra-se todo na preparação para a morte, com a ênfase colocada na conversão do jovem moribundo. Em primeiro lugar, é necessário observar, como o fez Elizabeth 255 Jay,7 que, a despeito da descrença evangélico/puritana no papel decisivo das horas finais, era dada grande importância à catequese da criança fatalmente doente a ser feita por profissional apropriado, o que garantia dupla autoridade ao processo. De fato, como lembra Gillian Avery, 8 a doutrina da predestinação não eximia os pais de prover a educação religiosa dos filhos. Segundo o autor, a partir do século XVII, começam a surgir livros para audiência infantil que corresponderiam a essa preocupação protestante por uma formação que assegurasse a salvação – tendo-se em vista, sobretudo, a frequência de mortes prematuras. A esse respeito, Pat Jalland9 lembra o que era esperado da leitura desses textos: que a criança soubesse se conduzir em seu leito de morte com a esperada correção evangélica. É interessante observar também que o conteúdo destes textos daria, segundo Avery,10 acentuada importância ao medo, em franco contraste com uma pastoral católica mais preocupada em tornar a morte familiar. Assim, na fatura conjunta dessas prescrições da ortodoxia protestante, o resultado é o destaque dado, dentre o conjunto de momentos que pontuam a vivência social do morrer, no sermão fúnebre e não no momento da morte, instante assumido como decisivo na ritualística católica da morte adulta.11 A diferença não poderia ser maior, portanto, do que o que se verifica nos rituais de morte infantil no Rio de Janeiro que, como já se mencionou, enfeixam quase todos os seus cuidados espirituais após o leito de morte, quando são concentradas as inversões simbólicas e materiais. Isso, em conjunto, já sugere entendimentos distintos sobre infância e inocência, ainda que nos restrinjamos à ortodoxia religiosa. De fato, a necessidade do sermão já autoriza vislumbrar, no caso inglês, uma disposição muito menor em aceitar a ideia de uma pureza inerente à criança face à postura da Igreja católica brasileira, cuja despreocupação em relação aos cuidados anteriores à morte, ainda que acompanhada de uma insistência para com o sacramento do batismo, manifesta um entendimento de algum modo mais ambíguo em relação a isso. No entanto, quando nos voltamos às práticas populares, temos informações que nos sugerem aproximações nesse âmbito entre os dois países. Com efeito, a literatura sobre a Inglaterra oferece também indícios de comporta- 7 8 9 10 11 JAY, Elizabeth. “Ye careless, thoughtless, worldly parents, tremble while you read this history!”, op. cit. AVERY, Gillian. Intimations of mortality, op. cit. JALLAND, Pat. Death in the victorian family. Oxford: Oxford University Press, 1996. AVERY, Gillian. Intimations of mortality, op. cit. JAY, Elizabeth. “Ye careless, thoughtless, worldly parents, tremble while you read this history!”, op. cit. 256 mentos ligeiramente distanciados desse modelo em que é dado destaque exclusivo à conversão que antecede a morte infantil. Um deles é a preocupação em fornecer solo consagrado para crianças não batizadas, angústia também atestada em minha pesquisa sobre o Rio de Janeiro, com base nos relatos recolhidos pelos folcloristas. Como observa Jaqueline Simpson,12 a proibição corrente, ainda que não oficialmente instituída pela Igreja inglesa, de enterro em campo sancto daqueles que não recebiam o batismo, era fonte de grande ansiedade entre a população, conforme testemunhado pelos contos populares, onde não faltam assombrações de alminhas a reclamar o enterro cristão que lhes franqueasse o descanso eterno. Essa preocupação é manifestada também no subterfúgio de enterrar crianças não batizadas junto com um adulto num mesmo caixão.13 Outro dado de semelhança, para o qual não temos maiores detalhes (para a Inglaterra) e que reclama pesquisa mais aprofundada, é o uso comum de signos associados à ideia de inocência, que, como veremos, contrariava a doutrina protestante. Esse é o caso do uso do branco, cujo significado litúrgico remete à inocência, e cuja presença é marcante nos funerais de criança especialmente a partir da segunda metade do XIX no Rio de Janeiro, quando substitui o vermelho, conforme nos contam os registros de óbitos e as narrativas dos viajantes. Simpson14 lembra que era comum na Inglaterra do XIX enterrarem-se as crianças em caixões brancos acompanhados por meninas vestidas na mesma cor. Além da referência à pureza, esta prática também sugere, como no Rio de Janeiro – onde se sabe que eram comuns, segundo os viajantes do XIX e folcloristas do XX, as participações de crianças nas procissões e na encomenda das almas de falecidos adultos –, algumas prerrogativas especiais à criança, como intermediadoras entre os homens e as autoridades celestes, em particular nas questões que tocam à morte. Não é improvável que isso devesse representar um incentivo para a prática mencionada de enterrar crianças e adultos juntos. Antes de avançar para os pontos seguintes, antecipo que as diferenças/semelhanças constatadas em algumas dimensões rituais entre a morte infantil na Inglaterra e no Rio de Janeiro terão seus significados adequada- 12 13 14 SIMPSON, Jacqueline. The folklore of infant deaths: burials, ghosts and changelings. In: AVERY, Gillian; REYNOLDS, Kimberley (eds.). Representations of childhood death. Nova York: St. Martin Press, 2000, p. 11-30. SIMPSON, Jacqueline. The folklore of infant deaths, op. cit. Idem. 257 mente avaliados até o final do artigo, quando forem examinados os discursos acerca da morte menina. O público e o privado nas manifestações frente à morte infantil Outro aspecto em que o paralelo é seguro e sugestivo diz respeito ao que era entendido, dentro do conjunto das reações à morte infantil, como adequado à esfera pública e o que deveria estar restrito ao âmbito privado. No caso do Rio de Janeiro, a pesquisa mostrou para grande parte do século XIX que a morte infantil na sua dimensão pública (tal como registrada nas narrativas e descrições dos viajantes) é assumida como uma celebração comemorativa, se apresentando, por conseguinte, como reação positiva a uma ocorrência bem-vinda.15 A pesquisa permitiu constatar, não obstante, que esse quadro é bastante contrastante com o que se apreende do discurso íntimo, presente nas cartas e, sobretudo, nos diários e memórias. Apesar do tom de resignação e de por vezes enunciar uma argumentação que leva a crer que a morte da criança é encarada com naturalidade, esse discurso, com a intensidade daquilo que é confidenciado, é diversas vezes pontuado por uma profunda manifestação de dor que a morte prematura propiciava. É nessa disposição de emoções autorizadas ou não na esfera pública que mudanças importantes foram observadas no decorrer do XIX. Em primeiro lugar, algumas dimensões do cerimonial de morte infantil, em especial o cortejo fúnebre e a notória exposição do cadáver (conforme documentada nas descrições dos estrangeiros), vão paulatinamente se afastando de seu caráter público e coletivo para cada vez mais se restringir ao âmbito privado e, nesse movimento, aspectos antes vetados, como a participação dos parentes imediatos, passam a ser valorizados. Com efeito, a partir principalmente de meados do século, os rituais de morte infantil passam a ser, quase que exclusivamente, a celebração do amor que une a família nuclear. Os discursos presentes nas inscrições tumulares, testemunhos privilegiados dessa nova fase, confirmam essa constatação. A manifestação de dor, antes restrita ao foro íntimo, ganha com os novos cemitérios extramuros um espaço para ser celebrada publicamente. Nesse movimento, a 15 VAILATI, Luiz Lima. A morte menina, op. cit. 258 tristeza, cada vez mais pública, e os rituais fúnebres infantis, restringindose ao círculo familiar, se aproximam para então se tornarem inseparáveis. É possível também, a partir do que os textos sobre a Inglaterra sinalizam, reconstruir alguns elementos no que toca a essa questão em particular. A princípio, não há uma oposição tão marcada entre manifestações publicamente festivas e lamentação íntima como no caso brasileiro. Mas também constatamos uma determinada gramática das emoções que circunscrevia os lugares adequados para a manifestação dos sentimentos engendrados pela morte da criança. Nesse caso, observa-se que, no plano externo, são mais comuns manifestações que variavam das expressões de conformidade à mera contenção dos sinais de dor, deixando para a esfera da intimidade a vazão desta. Como reconhece Lawrence Lerner,16 a morte de criança sozinha poderia ser causa de um luto intenso, mas não de um luto público, documentando o contraste que havia entre as manifestações públicas sobre a felicidade da morte infantil e o doloroso desolamento dos pais em suas declarações particulares. Em todo caso, ali também são notáveis as mudanças no século XIX. Uma delas é o uso das cenas de crianças no próprio leito de morte na literatura ficcional, motivo que se torna extremamente variado e popular na era vitoriana.17 O que é evidente nesses textos é que a morte infantil se assume como um topos literário eficaz como dispositivo de condução dos leitores na direção de um pathos bastante apreciado à época, no qual as lágrimas são o objetivo maior.18 Tal é o apelo desse recurso ficcional, dada a descarga emocional que propicia, que este, segundo Reynolds,19 é revelador de uma complexa sensibilidade estético/sentimental na qual autores e público solicitam e apresentam como desejável, nestas narrativas, a morte das protagonistas crianças. O que a nós pode parecer manifestação de bizarra insensibilidade é, na verdade, a exaltação pública de uma inédita sentimentalidade face à imagem da criança que morre, tal como constatado nos cemitérios brasileiros. Se algo agora está interdito à esfera pública é a manifestação de indiferença em face à morte infantil. Isso é bastante evidente com a mudança, 16 17 18 19 LERNER, Laurence. Angels and absences: child deaths in the nineteenth century. Vanderbilt University Press, 1997. LERNER, Laurence. Angels and absences, op. cit.; REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies: the death of children in Victorian and Edwardian fantasy writing. In: AVERY, Gillian; REYNOLDS, Kimberley (eds.). Representations of childhood death. Nova York: St. Martin Press, 2000, p. 169-188. REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies, op. cit. REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies, op. cit. 259 assinalada por Lerner,20 nos poemas cujo tema era a morte de uma criança em particular. Depois do século XIX, é notável uma relutância em ostentar muito abertamente, como acontecia antes nos versos dedicados a tal assunto, habilidade métrica invulgar, como se se temesse ofuscar a atmosfera emocional adequada ao motivo enunciado e, assim, demonstrar insensibilidade. Diante dos dados que temos em mãos, o que fica atestado com razoável segurança, portanto, é que tanto para a Inglaterra como para o Rio de Janeiro o século XIX representa uma inflexão no que toca ao regime de exposição emocional relativa à morte menina. Com efeito, é nítida a transformação no sentido de uma inversão completa na etiqueta sentimental que, antes marcada pelo interdito à manifestação pública de luto em casos de criança morta, passa a se caracterizar pela valorização e fomento da manifestação pública e, em alguns casos, coletiva, da dor propiciada pela morte da criança, ainda que por vezes este se tratasse de um evento meramente ficcional. O conteúdo e os móveis dessa transformação serão mais bem esclarecidos agora. O significado da morte infantil Neste item, procurarei reconstruir e avaliar os significados da morte infantil partindo daqueles manifestamente expressos nos discursos de modo a dar início a um esforço compreensivo das práticas enumeradas nos itens anteriores. No que se refere aos textos eclesiásticos produzidos e (ou) publicados e consumidos pelos fiéis ao longo do período tratado, a Igreja no Brasil lança mão de uma representação da criança que, de algum modo, justifica sua postura no âmbito regulamentar, a qual caracterizamos acima por uma quase ausência de prescrições no que toca às cauções salvíficas e por uma relativa liberalidade nas regulamentações concernentes ao ritual e comportamento dos fieis ante esse evento.21 Por um lado, esse discurso procura salientar recorrentemente o papel inalienável do batismo na purificação do pecado original, interpretação esta que vincula o estado espiritual e, por consequência, a salvação dos homens a uma iniciação ritual e não a uma qualidade intrínseca a uma determinada faixa etária. Por outro lado, nele é evidente o entendimento de que, com as crianças, as coisas relativas à morte se passam diferentemente devido a um traço que lhes é peculiar. Em inúmeras passagens, fica claro que a criança, em que é ausente a razão, está impossibilitada 20 21 LERNER, Laurence. Angels and absences, op. cit. VAILATI, Luiz Lima. A morte menina, op. cit. 260 de pecar, o que explicaria, assim, a tendência da Igreja em avaliar as outras cautelas rituais como prescindíveis para com a criança que morre. A força dessa interpretação é também bastante evidente no impasse que se instaura entre a concepção que toma o batismo como instrumento determinante na conformação da alma e aquela outra que encara a criança como ente naturalmente puro, cuja solução é a identificação de um lugar específico no Além, o chamado “Limbo das criancinhas”. Se, do ponto de vista da escatologia cristã, essa “descoberta” parece resolver o paradoxo, o uso parcimonioso que a Igreja brasileira faz da representação do Limbo não exclui a ambiguidade observada já no nível das regulamentações. Em poucas palavras, o conjunto das práticas e discursos dos representantes da Igreja no Brasil não definia univocamente o futuro salvífico da criança morta, fosse ela batizada ou não. No que concerne à população leiga aqui no Rio de Janeiro, são bem menos frequentes os registros do que mais expressamente se pensava a respeito da morte infantil.22 O que podemos saber, em primeiro lugar, diz respeito à nomenclatura com que era costume dar nome à criança que morre - “anjo”, “innocente”, “pequeno Jesus” – que sugere um entendimento de sua condição específica em termos salvacionais. Aqui e ali encontramos elementos que definem um pouco melhor as concepções atuantes que justificam uma aceitação desses eventos. Em primeiro lugar, encontra-se o entendimento de que a morte infantil é um privilégio, pois ao morrer na condição de criança esta tem sua salvação garantida. Em segundo, aparece a convicção de que lamentar a morte de crianças é protestar contra a vontade de Deus que, como lembrou no texto sagrado, tem especial preferência na companhia destas. Por fim, há a ideia de que a criança morta é uma intercessora entre aqueles que a amaram aqui na terra e as potências celestes, significando assim um trunfo inestimável para a proteção dos familiares em vida e salvação destes na morte. Observou-se também a esse respeito que, ao longo do XIX, tais argumentações utilizadas para dar um sentido positivo à morte menina diminuem paulatinamente e o tom de resignação desaparece por completo, evidenciando que, aqui, morte infantil não é vista mais como uma bênção. O resultado é uma lamentação que, se nem sempre deixa transparecer uma revolta, faz da frustração um lugar comum. O acervo discursivo sobre a morte infantil na Inglaterra no século XIX mais facilmente disponível é infinitamente maior do que no Rio de Janei- 22 Idem. 261 ro, como se pode observar nas publicações a respeito. Em relação a isto, David Grylls23 divide-o entre duas concepções antagônicas: uma por ele chamada de “puritana”, em que é dada ênfase ao pecado original e à necessidade de se impor o quanto antes às inclinações viciosas que, comuns a todos os homens, já se manifestam na infância, e a outra, “romântica”, em que se salienta a bondade natural da criança. É quase desnecessário assinalar que essa distinção corresponde, em alguma medida, àquela já observada em ambos os contextos comparados entre um modelo religioso e uma disposição leiga. A despeito da divisão estrita de Grylls, é notável, na chamada concepção puritano/evangélica, uma clara ambiguidade de que a ortodoxia no Brasil também deu testemunho. De um lado, como salientam autores como Elizabeth Jay, Gillian Avery e Richard Heitzenrater,24 a tradição puritana e evangélica não entendia que fossem as crianças, por sua condição, mais inocentes que os adultos, do que se concluiria não haver vantagem em morrer nesta condição, visto que não é garantia de salvação. Nesse sentido, o interesse demonstrado pela morte infantil como assunto a ser explorado nos textos de educação religiosa dizia respeito à divulgação da verdade de que a morte não escolhe idade e que o bom cristão deve estar desde sempre preparado.25 Por outro lado, a convicção puritana da depravação própria do ser humano vê a morte infantil como o benefício de uma saída antecipada para uma vida que não é mais do que uma série de tentações.26 Daí o fato de ter sido a morte infantil, na literatura evangélica, o melhor exemplo da chamada “boa morte”, e sua popularidade como motivo entre os autores desse gênero até o início do XIX.27 Assim, não é incomum que, na ficção evangélica, o leito de morte infantil apareça como ocasião de atualização espiritual dos adultos que, diante da manifestação da “suprema fé” revelada, iniciam novas vidas ao se voltarem a Cristo.28 No que se refere à concepção romântica, ela está presente, entre outros suportes, na literatura de conforto e na ficcional, e se aproxima muito da 23 24 25 26 27 28 GRYLLS, David. Guardians and angels. Londres: Faber & Faber, 1978. JAY, Elizabeth. The religion of the heart: Anglican evangelicalism and the nineteenth century novel. Oxford: Claredon, 1979; AVERY, Gillian. Intimations of mortality, op. cit.; HEITZENRATER, Richard P. John Wesley and children. In: BUNGE, Marcia J. The child in Christian thought. Cambridge (U.K.): Eerdmans, 2001, p. 279-299. AVERY, Gillian. Intimations of mortality, op. cit. LERNER, Laurence. Angels and absences. JAY, Elizabeth. “Ye careless, thoughtless, worldly parents, tremble while you read this history!”, op. cit. Idem. 262 segunda inclinação observada na interpretação puritana em que se entende que, quando morre, a criança é poupada por Deus de um mundo infeliz de “pecado, tentação e dúvida”, mas vai além, acrescentando que isso se passa àqueles aos quais é reservado o paraíso. Minimizando o papel do pecado original e equalizando crescimento e degeneração, entende-se, portanto, que morrer criança é garantia de estar entre os justos junto a Deus.29 Visto isso, estamos em condições de compreender um pouco melhor os sentimentos mobilizados na acima citada valorização da morte infantil como topos na literatura romântica. Se grande parte da força dessa imagem reside no sentimento de dor de que ela é vetor, em um momento em que sua expressão nada mais é do que a manifestação dos sólidos sentimentos que alicerçam o então valorizado núcleo familiar, o entendimento romântico dos benefícios de morrer cedo presente nessas obras propicia a pacificação do turbilhão emocional desencadeado pelo evento narrado, nisso constituindo também o forte apelo que essas descrições encerram. Daí, como observa Kimberley Reynolds,30 a presença, nestes textos, de significados os mais ambivalentes, na medida em que neles as necessidades e reações de adultos são igualmente levadas em consideração. Temos informações que permitem também avaliar uma mudança na estrutura sentimental no que respeita às camadas mais baixas do espectro social através do que nos é mostrado pelas canções populares: as descrições de morte infantil no século XIX são mais melodramáticas do que os tratamentos anteriores.31 Para além desses dois modelos propostos por Grylls, dos quais os estudos posteriores reforçam a propriedade da divisão, é possível observar para o caso inglês outros entendimentos, especialmente por parte das pessoas que concretamente se veem às voltas com a morte de uma criança próxima. Uma concepção distinta desses dois modelos fica evidenciada nos já comentados contos populares que tratam do tema dos fantasmas de crianças que não foram enterradas em solo consagrado, representação muito próxima da medieval, na qual o destino do indivíduo está associado à coletividade dos fiéis e de que nos cuidados com o corpo estão implicados os destino da alma, não se concebendo com clareza uma separação entre essas duas esfe- 29 30 31 JALLAND, Pat. Death in the victorian family, op. cit.; REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies, op. cit. REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies, op. cit. GAMMON, Vic. Child death in British and North American ballads from the sixteenth to the twentieth centuries. In: AVERY, Gillian; REYNOLDS, Kimberley (eds.). Representations of childhood death. Nova York: St. Martin Press, 2000, p. 29-51. 263 ras (a corpórea e a espiritual). Outra representação da morte infantil fi xada nesse material é encontrada em narrativas nas quais uma criança morre como uma punição para o pecado do adulto.32 Essa imagem está presente especialmente em discursos de caráter mais privado, relacionados àqueles diretamente envolvidos na morte de uma determinada criança. De fato, é muitas vezes manifestada a ideia desse evento não como termo de uma trajetória que por felicidade se interrompeu antes que desencaminhasse, mas como resultado de uma falta de seus pais que, através da perda do filho, são punidos, ou como prova de obediência e fé cristã por parte dos genitores.33 Entendimento interessante, na medida em que atesta um deslocamento de ênfase, na tentativa de atribuir sentido para a morte da criança, de sua biografia para a de seus pais. Em todo caso, Pat Jalland34 nos mostra, a partir dos diários íntimos e cartas dos súditos britânicos, que a morte de uma criança era, entre eles, muito menos tolerada que a morte adulta, em especial a de velhos, e os significados que esta passa a ter estão associados exclusivamente à dor pungente que resulta desse evento. De fato, mesmo na literatura, há sinais das limitações sobre o alcance do consolo que a representação romântica da felicidade da morte prematura podia propiciar. David Lerner35 nos mostra, por exemplo, como no caso da poesia, que havia uma diferença entre escrever sobre a morte da criança-conceito e de uma criança em particular: o regozijo pertencia à criança imaginada e as lágrimas à criança real. Como se vê, se a atitude puritana é bastante distanciada do entendimento corrente de morte infantil no Rio de Janeiro, a postura romântica é evidentemente semelhante ao que se observava entre os cariocas, com a diferença, nada negligenciável, de que aqui a criança possui um papel adicional de intercessora entre a família e as potências numinosas. Outra semelhança bastante significativa diz respeito à forma diferenciada em que, no discurso íntimo, a morte infantil é abordada, sendo que, em ambos os casos, o lamento e a dor dão o colorido específico desse discurso. Ainda nesse caso, não obstante, é interessante observar a existência de uma interpretação religiosa por parte dos puritanos ingleses, que não se faz presente entre nós, a qual diz respeito a um entendimento da morte infantil seja como lição, teste ou punição aos pais. Isto nos dá condições, portanto, para entender melhor o 32 33 34 35 SIMPSON, Jacqueline. The folklore of infant deaths, op. cit. JALLAND, Pat. Death in the victorian family, op. cit. Idem. LERNER, Laurence. Angels and absences, op. cit. 264 estranhamento sugerido pelos viajantes, às voltas por aqui durante o século XIX, quando confrontados com funerais de crianças. Com efeito, a atribuição à criança morta, entre os brasileiros, de poderes de intermediadora entre os vivos e o sagrado, cuja correspondência ritual era a festividade nas quais o notável investimento material e social emprestava a essas manifestações um caráter de “homenagem”, estava bastante distante do que, à época, era corrente na Inglaterra em termos de sentimentos e ideias para com a criança que morre. Fosse porque a ideia mesma de pureza inerente à criança e de sua salvação garantida em alguns meios eram colocadas em questão, fosse por conta do entendimento de que quaisquer que pudessem ser os destinos de sua alma, sua partida só poderia significar uma provação divina, e provações demandam aceitação, talvez solene, mas nunca comemoração. Não obstante, afora essas diferenças fundamentais, algumas semelhanças de fundo são bastante significativas também. Em ambos os casos, é notável a diferença entre o que a ortodoxia propõe em termos de representação de morte menina e o que a esse respeito é revelado pelas falas e ações daqueles que enfrentam concretamente a morte de uma criança próxima. Não há melhor oportunidade para que seja possível vislumbrar a participação que os sentimentos têm na reformulação e escolha das representações que coexistem para um mesmo período. Nesse sentido, é importante lembrar que o registro sentimental de uma época, tal como as representações que o discurso organizado nos lega, é produto de condições históricas em grande parte compartilhadas, mas obedece a ritmos diferentes, ainda que relacionados. É isso o que, a meu ver, está na raiz da ambiguidade atuante em ambas as sociedades em sua definição de infância e no entendimento de sua morte. As forças históricas e o estatuto social da criança e da criança morta Neste último (e principal) item, ocupar-me-ei de duas tarefas principais: (1) esboçar, por meio de um escopo mais abrangente, algumas explicações para os dados acima levantados e (2) examinar melhor os significados de ordem social que esse fenômeno permite iluminar. Em outras palavras, procurarei apontar os móveis sócio-históricos que estão na origem do fenômeno em questão e, na sequência, refletir como essas representações e suas inflexões oferecem um ponto de vista privilegiado no vislumbre dos diferentes estatutos sociais assumidos pela criança que morre nesses diferentes contextos em transformação. 265 Invertendo o que temos feito até aqui, começaremos pelo caso inglês. Este, afora algumas importantes particularidades, vivencia alguns fenômenos que, mais tarde e em menor grau, estarão presentes no Rio de Janeiro. A virada do século XVIII para o XIX, vivida ainda sob o influxo da Ilustração, é marcada pela iniciativa em colonizar, via razão, esferas da sensibilidade e do entendimento dominadas seja pelas representações religiosas, seja pelas que, de modo mais amplo, recorriam ao sobrenatural. O resultado disso, para o que nos interessa, é que o início do período tratado conhece o estabelecimento de uma relação bastante característica com a morte cujo traço mais saliente é uma inédita naturalização do morrer.36 Um dos efeitos mais visíveis dessa transformação seria a presença de um novo protagonista junto ao leito de morte, o médico, cuja atuação, se ainda ineficaz para impedir que a morte se instale, foi fundamental (especialmente com o recurso aos opiácios) para que este processo ficasse cada vez mais livre do sofrimento e agonia que o costumavam acompanhar. Dessa nova experiência resultou, em termos de discurso, uma inflexão em relação aos períodos anteriores, isto é, uma diminuição da ênfase na condenação eterna/inferno, e na imagem idealizada do morrer como um suave adormecer. Esse modelo e a sua tendência evolutiva em termos de uma secularização e cientificização da morte, que deixariam, a longo prazo, marcas perenes, ganharão, não obstante, novos contornos e sofrerão significativos desvios sob influência de três movimentos surgidos ao longo do século XIX para, apenas ao final desse período e sob os auspícios de novas condições, se impor mais claramente.37 O primeiro deles, já atuante nas primeiras décadas do XIX, e que teve reconhecidamente longa vigência e enorme influência na sensibilidade oitocentista é o Romantismo, ethos burguês marcado por uma reação ao lugar privilegiado a que o Iluminismo deu razão e pela valorização, quase obsessiva, do indivíduo na sua irredutível particularidade, bem como do modo através do qual esta melhor se manifestaria, em suma, pela exaltação dos sentimentos. Uma consequência disso é a suma importância que é atribuída, especialmente nesse novo cenário de consolidação do modelo de família burguesa nuclear, aos sentimentos que unem os cônjuges e estes aos filhos.38 36 37 38 RUGG, Julie. From reason to regulation: 1760-1850. In: JUPP, Peter; GITTINGS, Clare (eds.). Death in England: an illustrated history. New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 2000 (1999), p. 202-229. RUGG, Julie. From reason to regulation, op. cit. e JALLAND, Pat. Victorian death and its decline, op. cit. JALLAND, Pat. Death in the victorian family, op. cit 266 Sobre isso é importante lembrar, com Lawrence Stone, 39 que houve efetivamente um significativo crescimento na afeição constituinte das relações familiares na Inglaterra, mudança notável especialmente a partir do século XIX e que seria resultante, segundo ele, do fato de que o casamento paulatinamente se distancia do modelo que assumia em torno de 1500, cujo papel era quase exclusivamente econômico/reprodutivo. Isso teria implicado o desenvolvimento de relações sentimentais mais calorosas não apenas entre os cônjuges, mas também entre estes e os filhos. No que respeita à morte, o que temos, de um lado, é a valorização da expressão quase selvagem de luto pela perda de um ente querido.40 De outro, ainda na esteira de uma visão mais benéfica do Além legada pela tradição clássica, ele propôs uma imagem do paraíso sobre o qual deixa-se de salientar como característica especial a contemplação divina para se enfatizar sua condição de lugar onde amantes e família voltam a se reunir. Esse rearranjo da já há muito edulcorada concepção da morte seria, de algum modo, interrompida durante a década de 1840 (não definitivamente, dado que tais elementos do Romantismo voltariam a ter grande apelo após esse intervalo) por um terceiro movimento, o chamado “reavivamento gótico”.41 Este fez parte de uma reação mais ampla à sociedade de fins do XVIII, em especial ao que se entendeu como um afastamento face às instituições, rituais, valores e vida cristãos. Como resultado desse renovado fervor que se manifesta em todos os aspectos da vida civil, as representações do inferno e da danação eterna reaparecem com força. Até que, ao fim década, tal visão do Além passa a ser fortemente questionada. Este breve interregno no qual ressurgem as representações dos tormentos infernais está relacionado, como se disse, a um processo maior e mais duradouro, o evangelicalismo, cujas transformações têm relação tanto com o ressurgimento e apelo social dessas imagens como com o seu segundo ocaso. Movimento reformador interno e externo (na vertente metodista) à Igreja anglicana que surge no século XVIII esteve associado (tal como o Romantismo) ao longo processo de afirmação e expansão, para outros grupos sociais, dos modelos e valores de vida burguesa, atuantes durante o XIX.42 Buscando o aprimoramento espiritual e 39 40 41 42 Stone, Lawrence. Family sex and marriage in England, 1500-1800. Londres: Penguin, 1990. RUGG, Julie. From reason to regulation, op. cit. Idem. JALLAND, Pat. Death in the victorian family, op. cit; JALLAND, Pat. Victorian death and its decline, op. cit.; HALL, Catherine. Sweet home, op. cit. 267 moral da sociedade por meio da conversão individual e da defesa de uma vida integral junto a Cristo, atinge enorme impacto social nas décadas entre 1850 e 1860 para, na decúria seguinte, entrar em descenso. Nesse processo, a família adquiriu importância inédita. Como observa Pat Jalland,43 o movimento evangélico na Inglaterra elevará a instituição familiar à condição de instância religiosa fundamental, uma vez que esse movimento assumiu-se a si mesmo enquanto religião do “lar e do coração”. Sobre as imagens e prática relativas à morte veiculadas por esse movimento, podemos afirmar que ele combinará, de forma distinta ao longo de sua existência, elementos dos três modelos anteriores, adequando-os aos seus fins. Ainda que inicialmente tenha feito largo uso das imagens do inferno, obedecendo a estratégia de conversão fundamentada no medo, a partir da segunda metade do XIX, reorientará essa abordagem e, sem abandonar de todo essa concepção bipartida do Além, dará ênfase aos aspectos positivos da bem-aventurança que aguarda os justos após a morte. Fará isso, em primeiro lugar, reapropriando-se da representação clássica do morrer como um adormecimento. Tal suave trespasse seria entendido, para os evangélicos, como manifestação da “boa morte”, a que todo cristão deve se fazer merecedor, visto que esta é nada menos do que a anunciação do ingresso no Céu. Sobre ele é que encontramos outra reutilização imagética operada pelos evangélicos: o paraíso celeste é lugar de reencontro da família que, como se viu, foi estimulada pelo imaginário romântico. Essa representação se mostraria bastante adequada ao entendimento evangélico do seio familiar como núcleo por excelência da vida religiosa. Segundo Pat Jalland, a partir da década de 1870, esse cenário muda completamente, implicando num gradual desaparecimento do imaginário religioso associado à morte. Isso se deu por meio de dois processos. O primeiro deles foi a forte redução nas taxas de mortalidade e numa visão cada vez mais medicalizada da morte, cuja ocorrência passa a ser encarada como monopólio natural daqueles em idade avançada. Em segundo lugar, a sociedade inglesa viverá, a partir desse período, um amplo e profundo processo de secularização, processo que iria se acentuar com a Primeira Guerra Mundial, tanto por explicitar a ineficácia das explicações de ordem religiosa para a hecatombe resultante como por tornar inviáveis os cuidados que caracterizavam a “boa morte” evangélica. 43 JALLAND, Pat. Death in the victorian family. op. cit; HALL, Catherine. Sweet home, op. cit. 268 Por um lado, a representação evangélica da condenação eterna permite entender a especial preocupação, entre os ingleses, dos cuidados que precedem a morte entre as crianças e a larga difusão dos livros de conversão tendo em vista este público. Por outro, o novo realce dado a uma representação mais benéfica da morte (seja pela associação ao adormecer beatífico, seja pela esperança do reencontro no Além) também está na origem do grande espaço que é reservado, nos livros evangélicos de instrução religiosa do século XIX e antes, às narrativas/descrições de crianças em seu leito de morte e o seu desaparecimento no século seguinte. Isto torna compreensível o largo uso dessa imagem como exemplo maior da “boa morte”, isto é, do ato final de uma vida cristãmente conduzida. Além disso, a reorientação das relações familiares e a valorização dos sentimentos que a presidem (de que nos fala Stone) e que é identificada tanto na expressão romântica, como no movimento evangélico explicam este e outros aspectos já assinalados nos comportamentos fúnebres infantis na Inglaterra e que se acentuam ao longo do século XIX: (1) o papel central que a família assume nas narrativas de morte infantil nos textos de natureza religiosa, seja enquanto concebida como instância privilegiada para a adequada preparação espiritual do jovem moribundo e condução do evento final, seja pela ideia de que a “boa morte” infantil é instrumento eficaz de reconversão dos parentes próximos à fé, visto que é ocasião em que se manifesta a graça divina; (2) a viva expressão dos sentimentos envolvidos por ocasião desse fenômeno por parte dos envolvidos, manifestações estas que vão paulatinamente deixar de se circunscrever ao foro íntimo; e (3) a febre literária pela temática da morte infantil que tem lugar no século XIX inglês. A conexão entre tais comportamentos e esse contexto é tamanha que, segundo Pat Jalland, o enfraquecimento da expressão aberta dos sentimentos familiares coincide com o ocaso de ambos os movimentos entre as décadas de 1870 e 1880, tendência acelerada, ao menos no caso dos homens, pelo ethos das escolas públicas, que se caracterizaria pelo culto à masculinidade e à reserva sentimental, entendida esta como traço daquela.44 Vale acrescentar, por fim, que, para explicar em particular a febre literária do tema da morte infantil, autores como Kimberley Reynolds45 avançam algumas explicações de ordem sócio-psíquica. Para ela, em primeiro lugar, e de modo mais geral, é possível que parte do apelo que esse tema possui entre adultos assenta-se na possibilidade que este abre de explorar o “úl- 44 45 Idem. REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies, op. cit. 269 timo tabu” que é o de desejar a morte de crianças, uma vez que os filhos em si mesmos estão a lembrar da mortalidade dos pais – uma vez independentes, os tornam inúteis biológico-socialmente. Mais curiosa, a nosso ver, é a hipótese específica que, a esse respeito, a autora constrói levando em consideração o contexto da Inglaterra vitoriana. Ela lembra que algumas representações da morte infantil desse período se apresentaram como ocasião para manifestações sensuais. Segundo ela, a celebração vitoriana da família fomentou a fantasia de relações incestuosas adultas, cujo tabu é de algum modo contornado ao ser esse desejo deslocado para a criança morta que, dada sua dupla condição (criança e morta), implicava na renúncia (ideal) à efetiva consumação desse desejo, sobretudo num momento em que a pedofilia ainda não é um conceito. A criança morta se tornaria, assim, depositária de desejos que não encontravam outra forma de expressão. Para o caso do Rio de Janeiro temos, para as primeiras décadas do XIX, grosso modo, o seguinte quadro. É possível afirmar que o mencionado interesse com que os textos eclesiásticos envolveram o batismo e as representações de morte infantil a ele associadas estiveram relacionados a uma disposição submetida a dois ditames cuja origem remonta ao início da ocupação do território brasileiro: a fidelidade aos princípios do Concílio de Trento e o projeto de conversão no Novo Mundo.46 Por outro lado, da impossibilidade de cumprir plenamente, por uma série de motivos, os objetivos assim definidos, resultou, por parte da Igreja, uma espécie de indiferença em relação à criança morta. Entre essas forças limitadoras estiveram, em primeiro lugar, as condições impostas pelo regime do padroado no Império luso, que submetiam os quadros eclesiásticos aos interesses do Estado e às exigências estruturais da colonização e, nesse sentido, o convertiam em divulgadores de um modelo de família adequado à empresa colonizadora, o modelo patriarcal. Além disso, a deficiência de material e de quadros com que a Igreja aqui se viu às voltas foi um sério obstáculo, senão o mais importante, para que a ortodoxia fosse seguida à risca. Esse panorama, além disso, torna plausível imaginar, como bem o fez Gilberto Freyre,47 que a crença na salvação garantida da criança deve ter ajudado na conversão do gentio – sobretudo quando se considera a carnificina (assassinatos e doença novas) que envolveu a conquista, principalmente no que tocou aos curumins –, pois suavizava a repulsa que os na- 46 47 VAILATI, Luiz Lima. A morte menina, op. cit. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1977. 270 tivos, nessas circunstâncias, votavam à religião dos padres, associada à truculência dos colonos e de suas moléstias. Mais importante ainda foi o papel estratégico que os primeiros missionários delegaram à criança para a conversão indígena, recurso de que resultou não apenas a ideia de que a criança é pura, mas, mais ainda, de que ela é especialmente propensa ao sagrado. São estas condições históricas que atuaram, certamente, na larga acolhida que esta faceta mais positiva da representação da morte infantil encontrou entre a população leiga brasileira também nas primeiras décadas do período em tela. Mas outros aspectos devem ser considerados para que a ênfase fosse colocada mais na propensão natural à salvação da criança do que na importância do batismo para tanto. Por um lado, este grupo representa quem sofre mais diretamente o impacto da perda da criança e, assim sendo, é o mais pronto a abraçar uma concepção muito mais tranquilizadora, uma vez que o recurso ao batismo nem sempre é uma opção. Por outro lado, o já citado modelo patriarcal de família, o qual estava de algum modo presente no discurso eclesiástico, é plausível supor que operasse de forma mais insidiosa no restante da população, em especial aquela mais bem representada pelos testemunhos aos quais tive acesso, as camadas altas e médias. É essa diferença de grau que, por sinal, presumimos estar na origem da outra diferença que encontramos entre a imagem de morte infantil expressa por eles face à representação eclesiástica da infância e de sua morte. Esta é a já mencionada identificação entre a criança, a virgem e o solteiro, em que resta claro um entendimento de infância caracterizado especialmente pela ausência da prática sexual. Isto sugere uma forte correspondência entre essa sensibilidade para com as idades da vida e a concepção de família derivada do modelo patriarcal, em que os filhos e filhas solteiras, à sombra do pai, tendem a ser, em sua posição subalterna, infantilizados.48 No que toca às transformações vislumbradas entre a população leiga, estas ganham inteligibilidade quando levamos em conta, em especial, toda uma nova ordem de fenômenos que têm lugar a partir de meados do século XIX. Estes, em primeiro lugar, dizem respeito às transformações pelas quais passou a cidade e que explicam a lenta, mas irreversível, consolidação de uma série de novos grupos sociais com seus valores e padrões de vida. Com a transferência da família real em 1808 e o recém-adquirido estatuto de sede do Império, a já assentada vocação comercial da cidade saltaria em 48 VAILATI, Luiz Lima. A morte menina, op. cit. 271 montante e complexidade de negócios,49 adicionando ao cenário social local a concentração e estabelecimento até então desconhecidos de uma elite político-econômica, composta pelo aparato político-administrativo, representantes diplomáticos, grandes comerciantes e capitalistas.50 Esse processo teria continuidade com a Independência, a expansão e a hegemonia da economia cafeeira na década de 1850 e o desenvolvimento do sistema viário que, ao garantir, por quase todo século, à Corte, o papel de centro de convergência do principal produto brasileiro, potencializaram a importância da cidade como polo de atração de coisas e gentes. Outro processo que tem, igualmente, como marco decisivo, a vinda da família real, significaria, por outro lado, uma série de tentativas de controle, intervenção e transformação das práticas cotidianas da população, nos (mal delimitados) âmbitos da vida pública e privada por parte do Estado brasileiro ao longo do período em questão. Isso decorreu da necessidade de, como lembra Paulo César Garcez Marins, “exteriorizar-se como metrópole”, exigência que seria reafirmada com a Independência e que, desde o início, se baseou num discurso higienista.51 Ilmar Rohloff de Mattos, ao analisar o processo de consolidação do Estado imperial e de ascensão ao poder de uma elite – que buscava legitimidade nos modelos “civilizados” do Velho Mundo, ao mesmo tempo em que trabalhava pela manutenção do regime escravista –, assinala o papel que nesse intento tiveram as tentativas de “ordenar as grandes famílias”: por meio disto, estaria o país a salvo das tão temidas rebeliões escravas e da má opinião internacional.52 A aliança com a classe médica, um dos tantos fornecedores dos argumentos necessários à ampliação do poder do Estado, seria um dos meios pelos quais a classe dirigente garantiu a consecução de seus interesses.53 Com efeito, no Brasil, a profissionalização da medicina caminhou de mãos dadas com a consolidação do Estado imperial: ainda no ano de 1808, são fundadas as escolas de Cirurgia da Bahia e do Rio de Janeiro, ambas transformadas posteriormente nas academias médico-cirúrgicas em 1832.54 Com isso se impõe a “ofensiva” dos bacharéis em medicina no sentido de ganhar espaço nos grupos dirigentes. Isso será feito por meio da defesa da saúde coletiva, 49 50 51 52 53 54 Idem. ENDERS, Armelle. História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. Idem. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987. Idem, p. 90. SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo, 1991. 272 justificando o estabelecimento de um novo instrumento de controle social – a “higiene pública”55 – e da ciência médica, que deve ser uniformizada e oficializada em contraposição a outras práticas de cura, uma vez que caberia a ela fornecer os fundamentos, a legitimação e, principalmente, os agentes dessa nova modalidade de poder.56 Duas orientações presentes na militância desses profissionais nos interessam em particular, uma vez que será também através dela que a morte infantil ganhará significados novos no Brasil. Em primeiro lugar, a defesa da profissionalização da prática médica através da luta contra o “charlatanismo”, muitas vezes identificado ao infanticídio ou ao erro médico, responsável, segundo esse discurso, por incontáveis mortes entre os recém-nascidos. Em segundo lugar, uma vez que é a higiene pública que fornecerá os argumentos para a intervenção do Estado na vida familiar, uma das estratégias que orientou esse novo discurso foi a defesa de dois dos personagens do universo doméstico: a mãe e a criança.57 Esse conjunto de transformações pelas quais a cidade passa ao longo do século XIX terá grande impacto nas atitudes frente à morte infantil no Brasil.58 Em primeiro lugar, por meio da disseminação de um modo de vida urbanizado e de padrões burgueses de comportamento, a qual participará no remodelamento das relações familiares e na forma de manifestar os sentimentos que as presidem, processo esse que ocorreria nos moldes do que antes já se observara no hemisfério norte, guardadas as devidas proporções e as significativas particularidades. Esse processo seria catalisado com a atuação das classes médicas, por tudo aquilo que mencionamos acima. De fato, não apenas essas ações ajudarão a fomentar um novo modelo de família, mas, dentro dessa nova orientação, a morte infantil e as atitudes que desencadeia, alcançarão o estatuto de problema de saúde pública. Nesse discurso, ela não só deixa de ser, por conseguinte, naturalizada, como a representação tradicional de morte infantil passa a ser identificada como parte do problema. É a partir da consideração dessas forças históricas que ganham sentido as transformações observadas nos comportamentos que cercam a morte infantil no Brasil. Em primeiro lugar, pelo crescente fechamento dos rituais à esfera familiar e pelo desaparecimento de alguns elementos, como aqueles 55 56 57 58 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. Idem. ENGEL Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1999. 273 associados às festas e à extrema exposição do cadáver. Em segundo lugar, pela valorização do luto, especialmente por parte dos parentes próximos. Por fim, a crescente publicitação das manifestações de tristeza pungente que passam a pontuar a morte menina, uma vez que se rarefazem os argumentos de natureza espiritual que tornavam inteligível e aceitável essa perda. Um bom exemplo do que resultou disso são as marcas perenes de dor fi xadas em seu suporte por excelência, a inscrição tumular, as quais têm uma função dupla: se prestam a homenagear a instituição familiar, registrando os sólidos sentimentos que a sustentam, como também manifestam a todos o doloroso reconhecimento de uma falta no cumprimento para com sua prerrogativa fundamental perante a sociedade e o Estado. Examinando lado a lado os dois contextos, é perceptível, especialmente para o começo do XIX, que o conjunto de forças sociais – especialmente no que se refere a sua origem – em atuação nas práticas e representações em torno da morte infantil é radicalmente distinto entre um caso e outro. O que resta semelhante, mas longe de ser surpreendente, é o papel que as instâncias e movimentos religiosos possuem em ambos. De todo modo, é possível desenhar algumas hipóteses sobre a existência de algumas variáveis históricas comuns – ainda que com uma defasagem de atuação de mais de meio século entre o Rio de Janeiro e a Inglaterra e da significativa diferença de abrangência social da incidência desses fatores –, hipótese essa plausível a partir mesmo das semelhanças observadas para cada país conforme expostas nos itens anteriores. Ainda que não haja reflexões e pesquisas mais aprofundadas para a inflexão que se observa nas manifestações das afeições familiares no Rio de Janeiro especialmente ao final do século XIX e início do XX – período no qual foram observadas transformações nas atitudes frente à morte menina que apresentam indícios inquestionáveis dela –, é possível conjecturar que dois dos elementos assinalados acima, que respondem pelas mudanças que, nesse âmbito, foram verificadas na Inglaterra, tenham atuado também aqui. Seriam aqueles relacionados ao lento, mas irresistível, processo de urbanização e aburguesamento das formas de vida e das relações sociais que gozaram as elites das grandes cidades do país nesse momento: um deles é o longo processo assinalado por Stone de ressignificação do matrimônio que deixa de representar exclusivamente uma estratégia familiar de reprodução econômico-social, para se assumir também como enlace afetivo entre os cônjuges; o outro, que deve ter atuado em escala muito menor, é o papel do movimento romântico. Agora resta avaliar como as atitudes frente à criança morta são reveladoras dos estatutos sociais assumidos pela criança nesses diferentes con274 textos. Com sua muito popular História social da criança e da família,59 Philippe Ariès legou a imagem forte de uma evolução no Ocidente no sentido de uma crescente percepção da criança nas suas particularidades a partir, sobretudo, do fim da Idade Média, como parte de um processo maior de constituição e valorização do indivíduo (tema caro a este historiador) e a consequente maior sensibilidade para com as idades da vida. Isso explicaria a importância que iria ter a criança como especialidade científica e, mais tarde, como a nova categoria etária cuja identificação essa disposição sensível favorecerá – o adolescente. Ariès observou que a representação medieval da criança era em grande parte a de uma espécie de adulto em miniatura, ou seja, em nada mais se distinguindo daquele do que em suas reduzidas dimensões. Ao longo do processo identificado por Ariès é que se constituiria uma percepção diferenciada da criança em sua esfera espiritual, moral, psíquica e física. Ainda que, em linhas gerais, sua avaliação se conserve válida, os resultados de nossa pesquisa exigiram que o movimento assim desenhado, já no caso do Rio de Janeiro, fosse recolocado em termos mais precisos. Assumindo por vezes formas marcadamente distintas, é essencialmente o mesmo o que se observa para a Inglaterra, reforçando a importância da constatação feita para o Rio de Janeiro. Vejamos como isso se dá. Em primeiro lugar, ainda que se confirme a existência de entendimento específico para a criança ao longo do período em questão, no qual efetivamente as particularidades físicas e psíquicas desta interessarão mais de perto a um olhar crescentemente cientificado, é necessário notar que esse processo significou também, para os dois países em questão, a substituição de ênfase em características que definiam a criança em sua positividade para aquelas que nela enxergam quase apenas as condições provisórias do futuro adulto e os cuidados especiais que essa situação – vista como precária – exige para a realização satisfatória dessa virtualidade. As representações da infância largamente disseminadas no Brasil do século XIX e com menor intensidade na Inglaterra vitoriana (no caso da chamada representação “romântica” da criança) ao enfatizar a pureza infantil e sua especial condição espiritual – características estas potencializadas quando a criança é morta – atestam a existência de um entendimento específico sobre a criança. Essas qualidades, como se vê, não têm qualquer relação com as eventuais projeções que a sociedade fazia sobre que tipo de adulto essa criança porventura viesse a se 59 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. 275 tornar (não se deve negligenciar, por sinal, que sua morte era vista tão ou mais “natural” que sua sobrevivência). Inversamente, é esse o caso das representações da infância divulgadas pelos escritos científicos especializados, os quais, ao se voltarem à criança, estão interessados, sobretudo, no futuro adulto/cidadão, saudável física e moralmente. E é nessas circunstâncias que a situação específica do morrer criança deixa de ser ocasião para se verem reforçadas as qualidades que a particularizavam para deixar um lugar vazio de sentido tanto no que toca à sua breve existência quanto ao seu termo. Mas isso ainda não é o mais importante. O entendimento específico de que era objeto implicava a atribuição, à criança (viva e morta), de uma função social particular, como também é verdadeiro, como procuraremos demonstrar, que, em determinadas condições, a criança se veja sem um lugar social exclusivo e sem as prerrogativas especiais dele decorrentes. Nossa hipótese é que, tanto para o Rio de Janeiro como para Inglaterra, ao deslocamento de ênfase, na identificação da criança, dos traços morais e espirituais para os de ordem psíquica e biológica, correspondeu o movimento que desembocará nessa espécie de “limbo” (o termo é duplamente apropriado) social que a criança hoje parece assumir quando comparada com o que observamos para o período estudado. No caso do Rio de Janeiro, isso se fazia por meio da crença na proximidade que a criança tinha com o numinoso, o que lhe garantia atribuições especiais, bem ilustradas na participação de destaque que tinha nas procissões e na condução de ofícios fúnebres. Quando morta, esse status alcançava um patamar muito maior, revestida do papel de intercessora entre os vivos e as potências celestes, condição que explica a vultosa inversão material e social e o caráter comemorativo observados nos funerais infantis. Ainda que manifestada de forma bastante diferenciada, na Inglaterra em questão, a criança que morre se vê igualmente investida de um estatuto social privilegiado. Nesse caso, vemos isso em atuação naquilo que os estudiosos chamaram de representação “evangélica” da criança. Elizabeth Jay60 lembra que, ao negar o traço de inocência localizada na criança pelo Romantismo, o entendimento puritano aumentava o valor da criança morta como instrumento de pregação: à espera de conversão e batismo, em seu estado original, era a ilustração perfeita que mostrava que a fé, e não as ações, era a única coisa necessária para a salvação. Assim, tornava-se o exemplo supremo de profissão de fé cristã. Papel de professora que implica- 60 JAY, Elizabeth. “Ye careless, thoughtless, worldly parents, tremble while you read this history!”, op. cit. 276 va, reconhece a autora, em ganho de dignidade. Em reforço a isto, Reynolds61 salienta como o salto de estatuto, propiciado nesse contexto pela criança moribunda que afirma a veracidade da ortodoxia religiosa, a aproxima do adulto, iniciando com a morte o movimento de separação e individuação característico da idade madura. Como se vê, tanto um caso quanto o outro se distinguem de uma representação de infância mais próxima de nós, na qual a criança, isolada até que atinja a idade adulta, não possui função social que lhe seja específica. Balanço final Neste esforço comparativo preliminar das práticas e representações da morte menina no Rio de Janeiro e na Inglaterra, estamos diante de um quadro que, se permitiu melhor compreender o estranhamento sugerido pelos viajantes às voltas por aqui durante o século XIX, também nos deu condições, pelo contraste, de melhor definição das variáveis históricas em jogo não apenas no que respeita às notáveis diferenças observadas ao longo século XIX, mas também para com importantes traços comuns que se tornam mais evidentes quando se encerra esse período. Dentre os móveis socioculturais em jogo não poderia deixar de ser evidente, para ambos, o papel da religião. Ela parece ter sido importante o suficiente para explicar grande parte das diferenças observadas entre esses dois países. Outros fatores, vinculados à estrutura familiar e a uma ordem social específicas para cada caso, e que são também matrizes de diferença, passam a propiciar semelhanças notáveis nesse âmbito, submetidas que estarão a algumas forças históricas comuns: o movimento romântico, mas, principalmente, a urbanização e a disseminação de um modo de vida burguês. No que se refere aos significados da morte infantil e à representação de infância que eles testemunham, afirmamos acima que, se as atitudes que na Inglaterra estão associados à chamada representação “evangélica” da criança são bastante distanciadas do entendimento corrente de morte infantil no Rio de Janeiro, a postura romântica é em alguns traços bastante semelhante ao que se observava entre os brasileiros, no que se refere ao entendimento de uma inocência inerente a essa condição etária. Esta relação, curiosamente, se inverte quando consideramos as funções sociais específicas para com a 61 REYNOLDS, Kimberley. Fatal fantasies, op. cit. 277 criança que morre, aspecto bastante saliente no Rio de Janeiro. Se não é claro, nas chamadas atitudes “românticas”, um papel social específico atribuído à criança que morre, no caso da disposição “puritana”, esta possui uma função social marcante, como exemplo e mestre da condução cristã no leito de morte, ganhando, por meio dela, a dignidade adulta. Ainda assim, nada menos parecido com a atribuição à criança morta, entre os brasileiros, de poderes de intermediadora entre os vivos e o sagrado. É importante notar também que tais contextos, animados por motivos imediatos diferenciados – um marcado pela ingerência dos poderes públicos no âmbito privado (Rio de Janeiro) e outro pelo movimento “evangélico” (Inglaterra) –, serão capazes de engendrar efeitos similares, como a inédita valorização da família nuclear e dos sentimentos que a une, os quais, por sua vez, vão replicar numa transformação comum: ela diz respeito à publicitação de um conjunto de reações antes restritas ao foro íntimo. O registro sentimental nos remete, por fim, a um traço comum entre esses dois casos que é notável não só por estar presente ao longo de todo o período abordado, mas também por poder ser identificado a um processo maior que, de algum modo, participa daqueles relacionados aos elementos descritos acima: o rearranjo afetivo nas relações entre cônjuges, pais e filhos de que nos fala Stone. Em ambos os casos, é notável a diferença entre o que a ortodoxia propõe a respeito da morte menina e o que é observado entre aqueles que enfrentam concretamente a perda de uma criança próxima, deixando espaço para ponderarmos melhor sobre o papel que os sentimentos – estes, bem entendido, igualmente históricos, mas obedientes a uma temporalidade de ritmo distinto – têm na reformulação e escolha das representações que coexistem num mesmo contexto. Estas representações, por sua vez, animam a ambiguidade que se observa em ambos os casos na definição de infância, no entendimento de sua morte e na função social da criança (viva ou morta) que delas é decorrente. 278 Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. AVERY, Gillian. Intimations of mortality: the puritan and evangelical message to children. In: AVERY, Gillian; REYNOLDS, Kimberley (eds.). Representations of childhood death. 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Este artigo analisa essa dupla atuação de Orville Adelbert Derby, que ocupou espaços importantes na vida social, científica e intelectual paulista, tanto como geólogo, quanto como pesquisador da historia regional. Palavras-chave Ciência – vida intelectual – mito bandeirante. 1 Projeto “Orville Adelbert Derby: ciência e vida intelectual em São Paulo (1886-1905)”, financiado pela Pró- Reitoria de Pesquisa e Pós Graduação (PROPP), da Universidade Federal de Uberlândia. 281 ORVILLE ADELBERT DERBY: NOTES FOR THE STUDY OF HIS INTELLECTUALSCIENTIFIC PERFORMANCE IN THE STATE OF SÃO PAULO (1886-1905) Contact: Rua Tiradentes, 380 – apto. 303 38400 200 – Uberlândia – Minas Gerais E-mail: [email protected] Marcelo Lapuente Mahl Universidade Federal de Uberlândia Abstract From 1886 to 1905, North-American geologist Orville Adelbert Derby led the Geographical and Geological Commission in the Province of São Paulo, created by the government of the state as a way of assisting, through the scientific knowledge of the territory, the agricultural expansion which at that moment had been following the growing pace of coffee based economy. At the same time, Derby also got involved directly, in the year of 1894, in the process of creating the Historical and Geographical Institute of São Paulo, which gathered, in the end of 19th century, groups linked to the intellectual elites in the state which were interested in writing a regional story that was successful in highlighting the important participation of São Paulo in the national scenario. This article analyzes Orville Adelbert Derby’s double performance, who occupied important spaces in social, scientific and intellectual lives in the state of São Paulo, both as a geologist and as a regional history researcher. Keywords Science – intellectual life – bandeirante myth. 282 I Na região central da cidade do Rio de Janeiro, em fins do século XIX, localizava-se, na avenida 1° de março, em frente à praça José de Alencar, um dos hotéis mais luxuosos do país, o hotel dos Estrangeiros. Servido, a cada dois minutos, pelos bondes da Cia. Jardim Botânico, segundo o material de divulgação do estabelecimento, o hôtel des Etrangers oferecia conforto aos abastados que procuravam hospedagem na capital da jovem República. Possuía itens necessários para satisfazer os sonhos de modernidade próprios do período, com salous, salons de lecture, billard, salles pour banquets, além de bains chauds et froids. A cozinha, ainda segundo o anúncio, era excellente – Les personnes malades auront une cuisine spéciales, d’accord avec les prescriptions du médecin. E, obviamente, mantinha uma hygiène parfaite, para a felicidade dos higienistas e médicos da época.2 Sãos e enfermos podiam assim desfrutar da civilização aqui mesmo, nos trópicos, realizando, no hotel, o simulacro brasileiro da Bèlle Époque, que prometia satisfazer os caprichos até dos hóspedes mais requintados. Porém, esse espaço de festas, encontros políticos e sonhos de civilização foi palco também de acontecimentos menos civilizados, como o assassinato de Pinheiro Machado, um dos mais influentes políticos da República, em pleno saguão do hotel, em setembro de 1915. Dois meses depois do assassinato do senador gaúcho, outra ocorrência macabra surpreendeu os meios intelectuais cariocas e paulistas. O geólogo Orville Adelbert Derby, após passar a noite em um jantar agradável na casa de amigos, segundo relato do compatriota J. C. Branner (1922), suicidou-se com um tiro na cabeça, sendo encontrado pelo mensageiro do hotel ainda com a arma presa à mão, em 27 de novembro de 1915. Segundo o relato de Branner, os jornais da época definiram o suicídio de Derby como uma “grande perda nacional”. Entretanto, tal demonstração de respeito e solidariedade parece ter vindo com atraso, uma vez que Derby vinha enfrentando uma série de dificuldades políticas para manter suas atividades no Serviço Geológico e Mineralógico, sediado na capital federal. Aparentemente, os dissabores dos embates políticos, muitos dos quais travados publicamente nas páginas dos jornais fluminenses, levaram ao ato extremo do suicídio, encerrando a vida deste norte-americano que viveu sessenta e quatro anos, quarenta deles transcorridos no Brasil. 2 O anúncio e outros documentos referentes ao Rio de Janeiro do século XIX podem ser acessados no site: www.rioquepassou.com.br. Acesso em 2/10/ 2011. 283 Não foi a primeira vez que Orville A. Derby enfrentou dificuldades para manter suas atividades profissionais no país. No começo do século XX, quando então chefiava a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, ele se envolveu em uma disputa, inicialmente de ordem científica, com professores da Escola Politécnica paulistana. O embate afetou a posição de liderança do norte-americano, o que culminou em seu afastamento da Comissão em janeiro de 1905 (Figuerôa, 1997). Encerravam-se, então, 19 anos de trabalhos e atuação destacada nos meios intelectuais paulistas, não somente no que se referia a sua área específica de competência – a geologia – como também em outras esferas do saber, como a história, a etnografia e a geografia, pluralidade que revela a diversidade de interesses que envolveram a produção científica de Derby. Produção científica plural, como era própria dos intelectuais de seu tempo. Com poucas instituições acadêmicas consolidadas no Brasil, ao longo do século XIX, era comum esse espírito multifacetado, de homens que buscavam em um autodidatismo abarcar conhecimentos de toda ordem, transitando livremente entre saberes tão díspares quanto a história, as ciências naturais e a etimologia. Nesse espaço de trânsito intelectual possível, pelo menos até o início do século XX, indivíduos com conhecimentos técnicos, em áreas específicas, como era o caso de Orville Derby, capacitavam-se com um capital simbólico3 – no caso, ter passado por uma instituição acadêmica 3 A expressão capital simbólico será aqui utilizada seguindo as reflexões do sociólogo Pierre Bourdieu, que, ao longo de sua longa trajetória intelectual, se dedicou a pensar, entre vários e complexos objetos de análise, os fenômenos sociais a partir de dois conceitos principais: campo e habitus. Compreende-se então o campo como um espaço social hierarquizado, construído por agentes específicos que, determinando regras e fronteiras de atuação e inclusão, acabam por delimitar uma área em que os seus membros disputam tanto capital material (dinheiro, propriedades, bens materiais) quanto capital simbólico (prestígio e distinção social, honrarias, deferência). O habitus, por sua vez, é aquilo que foi incorporado pelo sujeito, a partir de sua experiência na dinâmica social do campo. O habitus pode ser compreendido como as diversas formas de perceber o mundo, de agir socialmente, de avaliar a experiência social, e que, estando intimamente atrelado ao campo, acaba por dinamizá-lo e ordená-lo. Dessa forma, o capital simbólico é o que oferece distinção e reconhecimento dentro de um determinado campo; é o que permite ascender dentro de um espaço social delimitado, oferecendo retorno, material ou simbólico, nas relações de poder que se estabelecem entre os que aceitam as regras desse intrincado jogo. No caso específico deste artigo, compreende-se que Orville Adelbert Derby estava inserido em dois campos distintos, que muitas vezes se entrecruzavam e se relacionavam. Primeiramente, no científico, e seu capital simbólico principal estava fundamentado nos conhecimentos geológicos adquiridos em uma instituição de ensino já consagrada; e, em segundo lugar, no campo intelectual paulista. Neste, é certo que ocorreu uma reconversão de capital, isto é, seus conhecimentos acadêmicos favoreceram sua admissão neste novo campo 284 respeitável – o que dava credibilidade a suas afirmações, mesmo em áreas dessemelhantes (Gomes, 1986). No Brasil, a partir de meados do século XIX, algumas poucas instituições capacitavam essas elites nacionais, em meio ao grande número de analfabetos e dos espaços limitados de atuação acadêmica e intelectual. Em São Paulo, a Academia de Direito, fundada em 1827, no mesmo período que sua congênere, em Olinda, foi a mais destacada dessas instituições, berço de políticos e literatos que marcaram profundamente a vida intelectual brasileira. Outras instituições nacionais, fundadas no início do século XIX, como as academias médicas do Rio de Janeiro e da Bahia, continuaram, ao longo de sua história, qualificando, de forma proeminente, os quadros das elites dirigentes. Também merece destaque a fundação, em 1874, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e, um ano depois, o início das atividades de Escola de Minas de Ouro Preto; esta, em especial, tentando suprir a ausência de engenheiros no Brasil. Tais instituições possibilitaram a formação de juristas, engenheiros e médicos em território nacional. Homens de ciências, mas também homens de letras, que acabaram imersos no universo das humanidades e que encontraram, nas salas dos institutos históricos e geográficos, o local mais propício para a divulgação e afirmação dessa produção diletante. A pesquisa histórica foi particularmente porosa em relação a este tipo de produção não profissionalizada, sendo o historiador típico do século XIX um “homem erudito, que transitava, com fluência, por diferentes domínios intelectuais” (Ferreira, 2002, p. 123). Os institutos históricos foram repositórios privilegiados dessa produção plural, e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, o primeiro dessas agremiações no Brasil, tornou-se um espaço de construção de uma história nacional que destacava o papel da Corte carioca no processo de consolidação do estado monárquico brasileiro. Historiadores, literatos e que, na virada do século XIX, se formava, congregando membros das elites econômicas letradas, em locais como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ou nos salões privados das famílias mais abastadas. Sérgio Miceli (2001) já demonstrou de que maneira, no mesmo período, se gestava no país um incipiente, mas ainda pouco autônomo, campo intelectual, revelando as estratégias de inclusão e distinção utilizadas por vários literatos nacionais. Em São Paulo, Derby insere-se nessas disputas e esforços que levaram à formação de um campo intelectual, e tanto seus conhecimentos técnicos quanto sua circulação privilegiada nos meios intelectuais da capital do estado ajudam a compreender sua desenvolta e plural trajetória, entre os anos de 1886 e 1905. Sobre os conceitos aqui apresentados de campo e habitus consultar, entre outras obras do mesmo autor: BOURDIEU, Pierre. As regras de arte. São Paulo: Cia das Letras, 2002; BOURDIEU, Pierre. A distinção – crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008. 285 políticos passaram pela agremiação carioca, que tornou-se um dos locais de maior prestígio social e intelectual do país, ao longo do Segundo Reinado (Guimaraes, 1988; Schwarcz, 2007). Seguindo o exemplo do IHGB, outras agremiações surgiram no Brasil, mantendo o padrão de procura por uma história nacional, mas buscando as especificidades e contribuições regionais para a história pátria. Nesse sentido, Lilia Moritz Schwarcz (1993) destaca a fundação do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano em 1862, e a fundação, em 1894, do Instituto Histórico e Geographico de São Paulo. Especificamente sobre a produção intelectual realizada pelo instituto paulista, Antonio Celso Ferreira (2002) ressalta o caráter regional da casa, que procurou consolidar uma visão positiva sobre o povo e a história de São Paulo, construindo, nas páginas de sua revista, uma epopeia grandiosa que misturou, como um calidoscópio, ciência e literatura, com resultados apologéticos de amplo alcance político, cultural e social.4 O surgimento e a consolidação dessas novas iniciativas de produção científica e cultural, materializadas nos museus dedicados às ciências naturais, nas faculdades e institutos históricos, facilitou a formação de uma crescente rede de intelectuais, tanto nacionais quanto estrangeiros, que transitavam em vários campos do saber e que encontraram, nesses locais únicos, não raramente financiados pelo Estado, espaços de atuação e de discussão sobre assuntos que extrapolavam a esfera científica, versando sobre literatura, artes visuais e projetos para a nação. A chegada de d. João VI ao Brasil, em 1808, marcou esse momento de formação das primeiras instituições de pesquisa e ensino no país, objetivando fornecer quadros capazes de sustentar as demandas administrativas, sociais, políticas e burocráticas da nova sede do Império português. Como afirma Lilia Moritz Schwarcz (1993), “Data dessa época a instalação dos primeiros estabelecimentos de caráter cultural, como a Imprensa Régia, a Biblioteca, o Real Horto e o Museu Real” (p. 23). Em relação às instituições de pesquisa, aquelas voltadas para as ciências naturais tiveram um amplo crescimento, resultado do prestígio que as ciências naturais, especialmente a biologia, desfrutavam no ambiente intelectual do século XIX, tornando-se 4 Sobre organização e os componentes ideológicos dos vários institutos históricos criados no Brasil, ao final do século XIX, ver: Dossiê 1: Os institutos históricos e geográficos. Revista Patrimônio e Memória. Cedap, vol. 7, nº 1, junho de 2011. Disponível em: www.cedap.assis.unesp.br 286 um paradigma explicativo para o mundo, que extrapolou as frágeis fronteiras científicas, influenciando sobremaneira as ciências humanas.5 É importante ressaltar que os museus e institutos históricos fundados por todo o Brasil, ao longo do século XIX, cumpriram pelo menos dois objetivos primordiais durante o Segundo Reinado, época de formação e consolidação de várias dessas agremiações. Primeiramente, o modernizador, que buscava inserir o país nos caminhos da pesquisa internacional, principalmente nas áreas de ciências naturais, tentando superar uma condição periférica que, até então, reservara à nação somente o papel de fornecedora de material de pesquisa bruto para suprir o desejo das inúmeros naturalistas6 que, cada vez mais, por aqui aportavam. Por outro lado, coube também aos museus e institutos o papel de guardiões da história e do orgulho nacional, reservando para si um status simbólico de defensores da nacionalidade, efetivando o projeto de nação - uma monarquia esclarecida nos trópicos – incorporado, de forma convincente e alegórica, na figura de d. Pedro II. 5 6 A influência das ciências naturais, mais especificamente da biologia, nas ciências humanas, foi amplamente discutida por Michel Foucault, em vários momentos de sua vasta e complexa obra. Mais precisamente no livro As palavras e as coisas (1987), Foucault pensa a formação das especificidades e conceitos próprios das ciências humanas a partir de movimentos de aproximação e afastamento em relação aos modelos oferecidos pela biologia, economia e filologia. Da biologia, as ciências humanas construíram, segundo o autor, uma compreensão do homem “enquanto um ser que tem funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, inter-humanos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções” (p. 374). A filósofa Hannah Arendt (1998) também aponta para o nascimento, nas relações entre as ciências naturais e as ciências humanas, do pensamento racial, que influenciou demasiadamente diferentes campos do saber no mundo ocidental, ao longo do século XIX. A expressão naturalista é usada de forma genérica para designar os que exerciam as atividades ligadas às ciências naturais, uma vez que mesmo os campos específicos destas ciências, como a botânica ou a zoologia, ainda estavam em pleno processo de demarcação de fronteiras internas, ou de especialização. A própria constituição plural dos museus e institutos do século XIX, publicando trabalhos de várias áreas do conhecimento, revelam esse momento de hibridismo teórico. Neste sentido, afirma Maria Margaret Lopes (1997), que “Ciências como a Paleontologia, Arqueologia, Etnografia, Antropologia ocuparam papéis de destaque nas discussões da época, apelando à memória, à origem, à civilização, à construção de identidades imaginárias. Foi difícil ao espírito positivista do final do século XIX decidir qual ciência se encarregaria, por exemplo, do estudo dos fósseis, ou de traçar a linha demarcatória entre ossos e fósseis de animais e humanos. E estes domínios, partilhados entre as ciências da terra e da vida, tornaram-se ainda mais complexos com a intromissão das ciências humanas” (p. 71). 287 Com o surgimento dessas instituições de pesquisa, inúmeros estrangeiros estiveram em território nacional, não raro recebendo apoio desses museus e hortos florestais recém-formados.7 Outros continuavam participando de expedições de coleta, fornecendo todo tipo de material de pesquisa – principalmente plantas e animais –, às instituições estrangeiras, sempre ávidas por novidades vindas dos trópicos. Neste caso, o próprio Museu Real do Rio de Janeiro, fundado em 1818, e que pode ser considerado um marco no processo de institucionalização das ciências naturais no Brasil, serviu como fornecedor de material para uma série de museus europeus, seguindo um direcionamento bastante comum na Europa da Ilustração, que estimulava a existência de museus centrais abastecidos por uma rede de museus periféricos. No Brasil, a fundação do Museu Real respondeu não somente aos projetos de modernização científica, como também à necessidade de criar uma instituição centralizadora das pesquisas na área de ciências naturais. Para lá deveriam afluir as coleções recebidas de todo o reino, para catalogação, exposição e possíveis envios para o exterior (Lopes, 1997). Ainda segundo Margaret Lopes, o Museu Real, posteriormente rebatizado como Museu Nacional, teve um papel preponderante no desenvolvimento das pesquisas em ciências naturais, mantendo relações com instituições internacionais, como a Real Academia de Ciências de Lisboa e o Royal Botanic Gardens, da Inglaterra; além de vínculos com instituições pátrias, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ou o Jardim Botânico. Pelo museu passaram figuras que contribuíram definitivamente para o desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil, durante o século XIX, como Frederico Leopoldo César Burlamaque, Francisco Freire Alemão e Ladislau de Sousa Melo Neto. Além dos pesquisadores nacionais, naturalistas de vários países utilizaram as coleções do Museu. Neste sentido, vale destacar a passagem do naturalista Louis Agassiz que, em 1865, chegou ao Brasil em meio a uma disputa teórica com Charles Darwin, com quem debatia a respeito da validade, ou não, da teoria da evolução, exposta por Darwin em 1859 no livro A origem das espécies (Freitas, 2002). 7 Seguindo o caminho aberto pelo Museu Nacional, fundado em 1818, surgiram, ao longo de 1840 e 1850, o Gabinete de História Natural da Bahia e o Gabinete de História Natural do Maranhão. Também se destaca o Museu Paraense Emilio Goeldi (1866) e o Museu Paulista (1894). Todos atuando de forma efetiva para a institucionalização das ciências naturais no Brasil (LOPES, 1997; DANTES, 2001; SCHWARCZ, 1993; HEIZER, VIDEIRA; 2001). 288 Outros viajantes estenderam sua estada pelo Brasil, ocupando cargos administrativos no Museu Nacional, como Emílio Goeldi e Hermann Von Ihering. Estes dois, em especial, acabaram dirigindo outras duas instituições que contribuíram, de forma direta, para o fortalecimento das ciências naturais no país. O suíço Emílio Goeldi assumiu, em 1894, o Museu Paraense, após alguns anos de inatividade e inércia da instituição. Com o desenvolvimento do ciclo da borracha na região Norte, o museu acabou reconquistando defensores entre a classe política, o que levou a revalorização do espaço, agora sob a direção de Goeldi. O naturalista reformulou completamente a casa, trazendo vários pesquisadores internacionais, além de lançar o Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnográfica, que alcançou grande prestígio entre os pesquisadores da área. Em 31 de dezembro de 1900, o governador do Pará, José Paes de Barros Carvalho, alterou o nome do Museu Paraense para Museu Goeldi. Essa homenagem em vida foi resultado não somente do reconhecimento, pelas autoridades políticas, do trabalho desenvolvido pelo naturalista como diretor, mas também devido ao destaque alcançado por ele durante o período em que assessorou o barão do Rio Branco na definição dos limites territoriais entre o Brasil e a Guiana Francesa. Ao que tudo indica, os conhecimentos de Goeldi sobre a região Norte acabaram por contribuir decisivamente para a vitória nacional perante a França, na definição do rio Oiapoque como fronteira fluvial, em 1900, como desejava o governo brasileiro (Sanjad, 2009). Já Hermann Von Ihering, zoólogo alemão de grande prestígio internacional, assumiu, após passagem pelo Museu Nacional, a direção do Museu Paulista, em 1894, imprimindo à instituição uma forte marca administrativa, aliada ao rigor científico. A Revista do Museu Paulista também se tornou, sob a direção de Ihering, um periódico de referência, não somente nas áreas específicas das ciências naturais, com destaque para a zoologia, como também nas pesquisas etnográficas e antropológicas (Brefe, 2005).8 As atividades empreendidas pelos museus e institutos trouxeram ao Brasil dezenas de expedições de naturalistas, financiadas tanto por governos 8 A saída de Hermann Von Ihering do Museu Paulista envolveu uma polêmica bastante conhecida pela historiografia. Ele defendeu, em vários artigos publicados na imprensa paulista e carioca, o uso da força contra as tribos indígenas refratárias à “civilização”, em um momento de grande expansão agrícola, o que gerava, constantemente, confrontos entre índios e colonizadores, nas regiões mais fronteiriças do estado de São Paulo (GAGLIARDI, 1989). As afirmações polêmicas, iniciadas com um artigo publicado em 1908 pela Revista do Museu Paulista, acabaram desgastando a figura de Ihering, maculando sua posição na diretoria do Museu, o que levou ao seu afastamento em 1916. 289 quanto pela iniciativa privada. Como afirma Nogueira (2000), “o século XIX foi considerado o dos naturalistas no Brasil, com a realização de expedições científicas, de norte a sul” (p. 47). Seguir os passos de alguns desses esforços coletivos, em que ciência, interesses nacionais, curiosidade intelectual e impulso desbravador se misturavam, torna-se útil para compreender o longo movimento de gestação das ciências naturais no Brasil, do qual Orville A. Derby pode ser considerado um dos mais destacados colaboradores.9 Das expedições precursoras, merece destaque a missão artística francesa, trazida por d. João VI para desenvolver atividades científicas e culturais na recém-fundada Escola Real de Ciências.10 Dela participou, entre tantos nomes de relevo, o pintor francês Jean Baptiste Debret, que, apesar de não ser um cientista de formação, acabou, durante sua estada no país, entre os anos de 1816 e 1831, produzindo uma das mais completas descrições do 9 10 A geologia foi uma das áreas do conhecimento de maior interesse das expedições que chegaram ao Brasil no século XIX, devido às inequívocas implicações econômicas inerentes à atividade. Viktor Leinz (1955) dividiu a história das pesquisas geológicas no país em três momentos distintos: a primeira fase, entre os anos de 1810 e 1875, chamada de época dos viajantes, foi definida pelo autor como um momento em que as pesquisas dependiam exclusivamente dos cientistas estrangeiros que chegavam ao país; no segundo período proposto, o das comissões, criadas no país entre 1875 e 1907, encontra-se um número maior de brasileiros participando das atividades exploratórias, apesar da liderança inconteste dos estrangeiros; em uma última fase, que tem como marco a criação do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, em 1907, já se observa o papel preponderante dos cientistas nacionais nas pesquisas geológicas. Essa proposta de análise, um tanto quanto esquemática, e que pode ser confrontada por trabalhos mais recentes sobre a história das ciências geológicas no Brasil, ainda ajuda a esclarecer a forte presença de Orville A. Derby em nossa vida científica e cultural, colocando-o exatamente na transição de uma ciência liderada por estrangeiros para uma ciência feita preponderantemente por mãos nativas. Nesse sentido, Viktor Leinz chega a afirmar que Derby foi “o último dos grandes pesquisadores estrangeiros e o primeiro brasileiro” (1955, p. 251). As expedições científicas apresentadas ao longo do presente texto permitem vislumbrar de forma mais clara essa possibilidade de interpretação. Já existe uma bibliografia bastante extensa a respeito das viagens e dos viajantes naturalistas que exploraram o Brasil ao longo do século XIX. Para as análises que agora se seguem, foram utilizadas como obras de referência, entre outras: AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira. Brasília: UNB, 1963; AZEVEDO, Fernando. As ciências no Brasil, v.1 e 2. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1955; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; RAMINELLI, Ronald. Andanças pelo Brasil colonial. São Paulo: Unesp, 2009; FRANÇA, Jean Marcelo Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008; HEIZER, Alda, VIDEIRA, Antonio Augusto Passo. Ciência, civilização e Império nos trópicos. Rio de Janeiro: Acess, 2001; LOPES, Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997; PEREIRA, João Baptista Borges; SCHADEN, Egon. Exploração antropológica. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Tomo II, 3º v. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976; PINTO, Olivério M. Oliveira. Viajantes e naturalistas. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Tomo II, 3º v. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976. 290 ambiente físico, cultural, social e etnológico do Brasil do século XIX, a obra Voyage pittoresque et historique au Brésil, publicada na França entre 1831 e 1839. Outra expedição importante do período joanino foi a missão científica austro-bávara, que veio ao Brasil a convite da arquiduquesa dona Leopoldina, esposa do então príncipe d. Pedro. A viagem teve uma vocação muito mais científica que a precedente missão francesa, trazendo para o Brasil dois nomes destacados da botânica e da geologia: Johann Von Natterer e Johann Emmanuel Pohl. Também acompanhou a expedição Philip Von Martius, que desenvolveu importantes pesquisas botânicas no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Maranhão. Martius viajou em companhia do zoólogo Johann Baptiste Von Spix, que desenhou centenas de pranchas com descrições pormenorizadas de diversos grupos indígenas brasileiros, além da fauna e flora regional, principalmente amazônica. Os naturalistas Spix e Martius percorreram grandes distâncias pelo interior do Brasil, de São Paulo ao Amazonas, entre os anos de 1817 e 1820. As andanças deram origem a várias publicações na Europa, mas a Flora Brasiliensis, de Martius, é uma obra única, e talvez incomparável, na arte fitográfica do século XIX. A viagem liderada pelo alemão Langsdorff, a serviço do governo prussiano, entre os anos de 1825 e 1829, foi outra iniciativa importante no que se refere às atividades científicas e exploratórias em território brasileiro. Dela participou o desenhista Rugendas, que produziu a Voyage pittoresque dans le Brésil, publicada em Paris entre 1827 e 1835. Descrições da natureza, das tribos indígenas e da paisagem urbana do Rio de Janeiro, onde a escravidão negra se revelava com traços marcantes, transformaram o trabalho em uma das mais completas descrições sociais feita por um viajante do século XIX.11 Em 1848, ocorreu a chegada ao Brasil do inglês Alfred Russel Wallace, conhecido como um dos primeiros a vislumbrar o processo de seleção natural. Os resultados dessa viagem de coleta e exploração deram origem ao livro Narrative of travels on the Amazon e rio Negro, publicada em Londres, em 1853, um ano após Wallace deixar o país. O próprio Charles Darwin, durante sua famosa viagem no Beagle, também já havia aportado em terras brasilei- 11 Não se pode esquecer que muitas das descrições desses intrépidos naturalistas estavam permeadas por todo o pensamento racial do século XIX. Essas teorias tornaram-se base explicativa para o mundo social, e os desenhos e descrições desses naturalistas acabaram, muitas vezes, servindo a leituras raciológicas da história do Brasil. Quanto à questão racial no Brasil, ver: VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1991; ver também ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1998. 291 ras alguns anos antes, o que reafirma o interesse dos cientistas pelo mundo natural brasileiro.12 A expedição Tayer, chefiada pelo suíço Louis Agassiz, então professor de Cambridge, em 1865, foi outro momento importante para a história dessas atividades científicas no Brasil. Com os dados coletados, Agassiz publicou, em colaboração com sua esposa, Elisabeth Cary Agassiz, o livro A journey in Brazil, em 1868, com descrições do meio natural e das práticas culturais e sociais de várias tribos amazônicas.13 Acompanhando a expedição estava Charles Frederick Hartt, aluno de Agassiz em Cambridge, e que acabou dedicando boa parte de sua vida ao Brasil. Geólogo de formação, Hartt conseguiu, após o encerramento dessa primeira exploração, outro grande financiamento nos Estados Unidos, organizando uma nova viagem ao país, agora nomeada de Expedição Morgan, devido ao patrono incentivador da empreitada. Como afirma Silvia Figuerôa (1997), foi a dedicação e a perseverança de Hartt que levaram o imperador d. Pedro II a autorizar a formação, em 1874, da Comissão Geográfica e Geológica do Império, um marco na exploração do território, com recursos e iniciativa nacional.14 12 13 14 A respeito dos debates relativos aos conceitos de evolução, seleção natural e luta pela sobrevivência, expostos para o mundo científico no livro A origem das espécies, e algumas das principais controvérsias que tais ideias incitaram, consultar: BLANC, Marcel. Os herdeiros de Darwin. São Paulo: Ed. Scritta, 1994; HELLMAN, Hal. Grandes debates da ciência – dez das maiores contendas de todos os tempos. São Paulo: Ed. Unesp, 1999. O principal objetivo de Agassiz no Brasil foi recolher material, principalmente peixes da região amazônica, que pudessem servir como prova científica de suas teses criacionistas, refutando assim o evolucionismo de Charles Darwin, que começava a se consolidar nos meios acadêmicos. Ao lado dessas pesquisas zoológicas, o naturalista suíço aproveitou sua estada no Brasil para empreender estudos antropológicos com a população brasileira. Em Manaus, montou um estúdio fotográfico, onde retratou tipos físicos brasileiros, principalmente índios, negros e mestiços. Tais imagens serviram, aos olhos de Agassiz, para confirmar suas teses de degenerescência produzida pela mestiçagem indiscriminada; afirmação fundamentada nas teorias raciais vigentes no período (KURY, 2001). Esta não foi a primeira tentativa do gênero no país. Entre 1859 e 1861, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entrou em atividade a Comissão Científica de Exploração, com o objetivo de fazer o mapeamento das províncias do Norte e Nordeste. Nomes de destaque do IHGB se envolveram no projeto, como Francisco Freire Alemão, botânico do Museu Nacional, ou o poeta romântico Antonio Golçalves Dias, que ficou responsável pelos apontamentos etnográficos e pela elaboração da narrativa descritiva da viagem. Entretanto, a Comissão acabou se revelando um desastre, tanto por problemas de relacionamento entre os membros quanto pela falta de planejamento e organização da expedição, apesar do apoio de d. Pedro II e das verbas liberadas para a jornada. Em meio às críticas e ao escárnio da imprensa carioca, que, devido às inúmeras polêmicas, inclusive de ordem moral, apelidou a aventura de “Comissão das Borboletas”, o grupo foi dissolvido, recolhendo, contudo, uma boa coleção 292 A aprovação da Comissão Geográfica e Geológica aconteceu em um momento de grande expansão agrícola do país, impulsionada pela cafeicultura, que já avançava, partindo do Rio de Janeiro, em direção ao interior do estado de São Paulo e ao sul de Minas (Costa, 1998; Beiguelman, 2005). A demanda pelo conhecimento de novas áreas agricultáveis, assim como pelos tipos de solo disponíveis no Brasil, além da elaboração de cartas geológicas e mapas, facilitou o trabalho de Hartt em convencer Pedro II a financiar o projeto. O geólogo norte-americano também soube interpretar essas novas perspectivas econômicas, uma vez que sua proposta para a comissão seguia os padrões dos serviços geológicos (geological surveys), que apresentavam um direcionamento das pesquisas para os resultados práticos, com levantamento de solos e estudos que favoreciam o avanço econômico. Em outras palavras, o sucesso do modelo, utilizado também em vários países europeus no século XIX, explica-se pela união entre “ciência e aproveitamento dos recursos naturais” (Figuerôa, 2001, p. 114). Aparentemente, a demora da Comissão em apresentar resultados práticos além do acesso limitado de Hartt ao imperador levaram ao encerramento dos trabalhos em junho de 1877, pouco mais de dois anos após o início de suas atividades. Os materiais coletados e organizados por Hartt e seus colaboradores acabaram sendo enviados ao Museu Nacional (Figuerôa, 1997). Charles Frederick Hartt ficou extremamente abalado com a dissolução da Comissão, o que pode ter favorecido sua morte no ano seguinte, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 18 de março de 1878. Enterrado no cemitério S. Francisco Xavier, teve seus restos mortais transladados para a cidade de Buffalo, nos Estados Unidos, em 1882. Apesar da morte repentina do geólogo, com apenas 38 anos, vários de seus colaboradores científicos mantiveram laços com o Brasil. Entre eles, um de seus parceiros mais próximos, Orville A. Derby, que iniciaria então uma longa, produtiva e também conflituosa vida intelectual no Brasil. II O ano de 1869 foi decisivo na vida de Orville Adelbert Derby.15 Recém-matriculado na prestigiada Universidade de Cornell, em Ithaca (Estados 15 de objetos de mineralogia e botânica, vindas principalmente do Ceará, que fortaleceram o acervo do Museu Nacional (LOPES, 1997; KURY, 2009). Apesar dos esforços de alguns pesquisadores, as informações sobre a vida de Derby ainda carecem de pesquisas mais específicas, principalmente em busca de documentação fora do país. 293 Unidos), onde cursou geologia, Derby foi convidado pelo professor Hartt para acompanhá-lo ao Brasil. Aparentemente, o convite surgiu do empenho demonstrado por Derby como estudante em Cornell. Daí nasceria um relacionamento de amizade e parceria intelectual entre os dois geólogos, que só acabaria com a morte de Hartt, em 1878. Até então, Derby não tivera nenhum contato mais próximo com o Brasil. Nascido em 23 de julho de 1851, na pequena cidade de Kelloggsville, no estado de Nova York, passou sua infância em Finger Lakes, próximo de sua cidade natal. Aí também fez seus estudos preparatórios, na Albany Normal School, ingressando finalmente em Cornell em 1869. Graduou-se em geologia em 1873, tendo concluído sua tese de doutorado no ano seguinte, utilizando-se dos conhecimentos adquiridos em suas viagens ao Brasil, fruto de sua participação nas duas expedições Morgan, das quais fizera parte, junto com F. Hartt, entre os anos de 1870 e 1871.16 Entre os anos de 1873 e 1875, Derby continuou na universidade de Cornell, agora como instrutor de geologia e paleontologia. Apesar da pouca idade – vinte e dois anos –, ele já conquistava espaço na conceituada universidade, chegando a dar aulas como substituto de Hartt em 1874, posição que revela a força do capital simbólico e de seu círculo de relações, em boa parte conquistado em suas andanças pelo Brasil. Em dezembro de 1875, mais uma vez a convite de Hartt, Orville A. Derby retorna pela terceira vez ao Brasil, agora integrando a recém-instalada Comissão Geológica do Império. Além dos dois amigos, fizeram parte da Comissão, entre outros, Richard Rathbun, geólogo também da Universidade de Cornell; John Casper Branner, do Departamento de Botânica e Geologia da Universidade de Indiana, um dos mais próximos amigos de Derby; e o fotógrafo Marc Ferrez, um dos pioneiros da fotografia no Brasil. 16 As notas biográficas aqui apresentadas tiveram como fontes principais: BRANNER, J. C. Notas biographicas de geólogos. In: Revista do Brasil, nº 80, 1922; Orville A. Derby 1851-1951 – alguns aspectos de sua obra. Rio de Janeiro: Divisão de Geologia e Mineralogia, 1951; FIGUERÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional 1875-1934. São Paulo: Ed. Hucitec, 1997; LAMEGO, Alberto Ribeiro. Derby, o sábio incompreendido. In: Boletim Geográfico, n° 103. 1951; LEONARDOS, Othon Henry. A mineralogia e a petrografia no Brasil. In: AZEVEDO, Fernando. As ciências no Brasil, vol. 1. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1955, p. 267-313; TOSATTO, Pierluigi. Orville Adelbert Derby. “O pai da geologia do Brasil”. Rio de Janeiro: CPRM, PNPM, 2001. Informações importantes também foram compiladas e publicadas no Dicionário histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (18321930), da Fiocruz (disponível em www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br). Acesso em 7/10/ 2011. O título da tese foi “On the carboniferons brachiapoda of Itaituba, rio Tapajoz”, e foi publicada nos boletins da Universidade de Cornell, em 1874. 294 Durante os dois anos de atividades da Comissão, Derby teve a oportunidade de expandir seus conhecimentos sobre o território brasileiro. Conheceu a Bahia, viajou pelo rio São Francisco, além de retornar à região Norte (Amazonas e Pará). A extinção da Comissão, em 1877, apesar do empenho de Hartt em reverter a decisão, tomada pelo ministro dos Negócios da Agricultura, João Lins Vieira Cansanção de Sininbu, com o aval de d. Pedro II, fez com que muitos dos membros originais voltassem aos Estados Unidos, como Rathbun e Branner. Derby, entretanto, continuou em terras nacionais, mesmo após a morte de Hartt, em 1878. Com o final da Comissão Geológica do Império e a morte de Hartt, Derby começou a trilhar seu próprio caminho. Entre os anos de 1877 e 1886, o geólogo norte-americano exerceu várias funções, atendendo tanto interesses governamentais quanto privados. Trabalhou no Museu Nacional, sem remuneração fi xa, até ser nomeado oficialmente chefe da 3º seção de Geologia. Colaborou com o museu até 1890, desenvolvendo atividades de pesquisa, catalogação e organização de coleções. Também realizou trabalhos na bacia do São Francisco, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. O grande número de projetos em que se envolveu revela que Derby não teve dificuldades em manter suas atividades profissionais no Brasil, mesmo após a morte de Hartt e o fim da Comissão Geológica do Império. Tornara-se um exímio e agora experiente geólogo, além de conhecer profundamente muitas das regiões mais recônditas do país, em um momento de pleno desenvolvimento da agricultura nacional, que demandava conhecimentos cada vez mais aprofundados em sua área original de formação. Em 1879, fez parte da Comissão Hidráulica do Império, chefiada por William Milnor Roberts, criada para explorar o rio São Francisco. Pouco mais de um ano depois, trabalhou com Claude Henri Gorceix, diretor da Escola de Minas de Ouro Preto, na elaboração de cartas geológicas indicativas de Minas Gerais. Muito ativo intelectualmente, Derby publicou artigos nas áreas de mineralogia, petrografia e paleontologia. Definitivamente, sua vida profissional havia se consolidado no Brasil. Em 1885, Orville Derby respondeu ao pedido feito pelo presidente da província de São Paulo, João Alfredo Correa de Oliveira, para a elaboração de um plano de exploração geológica da província paulista. O projeto foi adaptado dos trabalhos que Hartt havia feito para a Comissão Geológica do Império e, aparentemente, chamou a atenção dos governantes, principalmente no que se refere à promessa da elaboração de uma carta geológica regional. Naquele momento, o estado de São Paulo estava em ampla expansão agrícola, impulsionada pelo desenvolvimento cafeeiro por todo o seu 295 território. Na região oeste, a cidade de Ribeirão Preto já aparecia como área de importância econômica vital, e a região noroeste, com a cidade de Araraquara como ponto culminante, revelava-se promissora para a agricultura (Marcílio, 2000; Monbeig, 1984). Havia, portanto, uma demanda por conhecimentos geológicos que pudessem respaldar tecnicamente essa expansão, ainda majoritariamente cafeeira, e os trabalhos de Derby respondiam a tais interesses. Em 1886, sob sua chefia, é instalada oficialmente a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. Este momento pode ser indicado como o auge de seu prestígio pessoal e profissional, uma vez que dirigia um grupo de profissionais indicados e liderados por ele, trabalhando para os interesses da província que já havia se tornado a mais importante área econômica do país. O geólogo transfere-se do Rio de Janeiro para São Paulo, e inicia uma nova fase de sua vida em terras brasileiras. Agora morando na capital paulista, Derby formou um novo grupo de trabalho, unindo antigos colaboradores com novos quadros técnicos. Um dos mais próximos foi o engenheiro Theodoro Fernandes Sampaio. Eles trabalharam juntos pela primeira vez em 1879, na expedição científica ao vale do São Francisco. A partir daí, tornaram-se amigos e companheiros de andanças exploratórias.17 Sampaio é autor de uma vasta obra que extrapolou os limites da engenharia e da geografia, publicando trabalhos nas áreas de história, etnografia e etimologia (Santos, 2010). Também dois engenheiros formados na Escola de Minas de Ouro Preto, Luis Felipe Gonzaga de Campos e Francisco de Paulo Oliveira, integravam a Comissão. As atividades do grupo originaram uma grande coleção de geologia, além de uma série de artefatos etnográficos recolhidos durante as missões exploratórias. Com o intuito de tornar público esse imenso material, Derby propôs ao governo a criação do museu da CGGSP, o que acabou por originar o Museu Paulista. O primeiro diretor do museu foi o zoólogo Friedrich Albrecht Von Ihering, que chegou a São Paulo por indicação do próprio Derby, em 1893, para assumir a direção da seção de zoologia da Comissão. Ao longo dos anos, Ihering foi o responsável por transformar a revista do Museu Paulista em um dos mais prestigiados periódicos das ciências naturais no Brasil, apesar das controvérsias que deflagraram seu afastamento do museu em 1916. 17 O geógrafo José Veríssimo da Costa Pereira (1955) destaca a importância da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo para o desenvolvimento dos conhecimentos e das pesquisas geográficas no Brasil, uma vez que os estudos liderados por Orville A. Derby forneceram uma importante base para a compreensão da geografia física e da geomorfologia nacional. 296 Atuando pelo desenvolvimento das ciências naturais em São Paulo, Derby também ajudou, juntamente com Francisco Ramos de Azevedo e o botânico sueco Alberto LÖfgren, na criação do Horto Botânico, que mais tarde daria origem ao Instituto Florestal de São Paulo. No mesmo ano, o chefe da CGGSP planejou a criação Serviço Florestal Paulista. Entretanto, sua atuação não ficou restrita às ciências naturais. Ele fez parte do grupo fundador do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, que começou suas atividades em 1894. O IHGSP era formado principalmente por membros da elite econômica, política e cultural paulista. Nas revistas do instituto, Derby pode exercitar sua curiosidade intelectual, publicando artigos na área de história, geografia e etnografia.18 Nessa agremiação, ele pode conviver de forma mais direta com boa parte das personalidades influentes da vida política paulista, além de estar inserido em um espaço de destacado prestígio intelectual, posição desfrutada pelo instituto pelo menos até a década de 1930 (Ferreira, 2002; Mahl, 2001). Entretanto, mesmo essa facilidade de circulação entre as elites paulistanas não impediu que Derby se envolvesse em uma controvérsia que acabaria enfraquecendo sua posição nos meios intelectuais da capital. Como explica Silvia Figuerôa (1997), a saída de Derby da Comissão Geológica de São Paulo começou a se desenhar a partir das críticas levantadas por Francisco Bhering, então professor da Escola Politécnica de São Paulo. Afora questões de ordem técnica apontadas pelo professor da Politécnica, que questionou os métodos utilizados pelo norte-americano em seus trabalhos geológicos, o grande desgaste se originou pela demora na divulgação dos trabalhos efetuados, principalmente em relação ao atraso na entrega da carta geológica completa do estado, uma das promessas mais aguardadas pelo governo de São Paulo.19 Os debates empreendidos na imprensa aca- 18 19 Após se estabelecer na cidade do Rio de Janeiro, em 1877, Derby passou a colaborar nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde muitos de seus colegas atuavam, já esboçando um tipo de curiosidade intelectual que viria exercer, de forma plena, tempos depois, no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Em 1910, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo publicou uma conferência realizada pelo sócio da agremiação, Gentil de Assis Moura, que produziu, ao longo de sua vida intelectual, várias obras sobre a história paulista. Nela, o autor indica o estágio em que se encontravam os trabalhos da Comissão, no que se referia à carta geológica do estado. Suas palavras também nos fornecem dados importantes sobre o projeto de Derby e o quanto ele era complexo, amplo e de difícil execução: “Em S. Paulo, como marco milliario para as explorações modernas, cria-se em 1886 a Commissão Geographica e Geológica que Orville Derby organiza e que João P. Cardoso prosegue com a mesma dedicação – e que se incumba de levantar a carta da Provincia na escala de 1:100.000 com representação da configuração 297 baram por desgastar a imagem pública e a posição política do diretor, que acabou por se demitir da Comissão Geográfica e Geológica em 1905. Outra questão pertinente, que ajuda a compreender o seu desgaste em meio ao governo paulista, refere-se ao confronto entre duas visões de ciência que, naquele momento, ainda dividiam o espaço acadêmico: de um lado, uma percepção mais romântica, tributária dos naturalistas do século XIX. De outro, a praticidade dos novos engenheiros e técnicos, então representados pela Escola Politécnica. Orville A. Derby, formado naquela primeira concepção, seguia um ritmo mais lento, ao mesmo tempo em que nutria interesses mais plurais, explicitados em sua própria obra diversificada e abrangente, que versava da história indígena às origens do povo paulista. Aparentemente, sua ciência não conseguia mais concorrer com a emergência das novas demandas econômicas, cada vez mais rápidas e exigentes de resultados práticos imediatos. Ainda segundo Figuerôa (1997): A visão naturalista de Derby acabou, entretanto, por confrontar-se com os interesses mais imediatos das elites e do poder público de São Paulo. Após quase vinte anos de trabalho, a CCG ainda não havia cumprido sua principal tarefa, explícita desde sua criação em 1886 – o chamado sertão de São Paulo – como era conhecida uma vasta região a oeste do Estado, que compreendia quase um terço do território – não se encontrava mapeado a fim de viabilizar sua ocupação e exploração. Em 1899 foram publicados os três primeiros mapas, saindo à luz mais catorze até 1905, sem, porém, contemplar a região mais a oeste (p. 171). Apesar do desgaste com o processo de desligamento da Comissão, ele rapidamente retomou suas atividades. Sua rede de contatos agiu novamente e, ainda em 1905, foi convidado, pelo secretário de Agricultura, Miguel Calmon Du Pin e Almeida, para trabalhar na Bahia, onde passou a dirigir o Serviço de Terras e Minas do Estado. Porém, sua permanência em Salvador não foi longa. Em 1907, Derby volta ao Rio de Janeiro para reorganizar o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil. Ele formou uma nova equipe de trabalho, que agora contava com o engenheiro Miguel Arrojado Lisboa, além de do terreno por meio de curvas de nível equidistantes de 25 metros e que se encarrega egualmente do estudo da Geologia, da Flora e da Meteorologia. O trabalho elaborado nas 23 das suas folhas publicadas, realizado no numero elevado das suas expedições e mencionadas em relatorios minuciosos ou descriptos nos boletins que se referem á Botanica, Antthopologia, Ethnographia, Meteorologia, Mineralogia, Geologia e Geographia, o seu trabalho digo, não pode ser senão enumerado por quem delle foi o ultimo dos operários (...)” (MOURA, 1910, p. 215). 298 Francisco de Paulo Oliveira e Luiz Felipe de Gonzaga de Campos, estes dois últimos antigos companheiros oriundos da Comissão Geológica Paulista. Contudo, as mesmas cobranças por resultados práticos que aconteceram em São Paulo voltaram a dificultar sua vida no Rio de Janeiro, agora comandando o Serviço Mineralógico do Brasil. A partir de 1910, a pressão sobre o serviço fica evidente, quando ocorre uma diminuição tanto no orçamento quanto nos salários dos funcionários. Derby passa a se sentir desprestigiado e insatisfeito, situação que piora com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O conflito foi usado como justificativa, pelo então ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, José Rufino Bezerra Cavalcante, para uma diminuição ainda maior nos gastos com a seção. Foi em meio a tantas dificuldades que ocorreu o suicídio de Orville Adelbert Derby em um quarto de hotel na cidade do Rio de Janeiro, em 1915, alguns meses depois de se naturalizar brasileiro. Após mais de quarenta anos dedicados à ciência nacional, morreu mais brasileiro que norte-americano um dos filhos diletos da Universidade de Cornell.20 III A vida de Orville A. Derby no Brasil coincidiu com um momento de profundas transformações no país, que podem ser observadas, de forma sintética, nas mudanças na estrutura econômica brasileira, deflagradas pelo desenvolvimento da cafeicultura, resultando em uma modernização conservadora; nas agitações republicanas e abolicionistas, influenciadas pelo debate positivista e evolucionista, presentes no fim do Império e no início da República; na maior diversificação social, fruto do grande afluxo de imigrantes que direcionavam-se tanto para o campo quanto para as cidades; e nos movimentos culturais refletindo sobre esse novo mundo onde as máquinas, o discurso científico e a vida urbana tornavam-se cada vez mais influentes, povoando os sonhos e os projetos de modernidade das elites. 20 José Veríssimo da Costa Pereira (1955) também destacou a contradição entre uma ciência menos voltada para resultados práticos e as emergentes demandas econômicas como um dos fatores que contribuíram para derrocada de Derby no Serviço Geológico e Mineralógico. Segundo o autor, “No tempo de Derby (1907-1915), o lado mais econômico nas pesquisas vinha apenas em caráter subsidiário (...)” (p. 369). Mais uma vez, seu perfil de naturalista, formado no século XIX, não se ajustou às necessidades daqueles novos e frementes, segundo expressão de Nicolau Sevcenko (2000), tempos nacionais. 299 Este geólogo norte-americano destacou-se na vida científica e cultural do Brasil nesse momento em que tantas mudanças fundamentais sucediam. Seu nome alcançou prestígio nos meios nacionais e internacionais, e ele participou ativamente, não somente como cientista, mas também como articulador político do processo de institucionalização das ciências naturais (com destaque para a geologia) no Brasil, atuando em locais como o Museu Paulista e o Museu Imperial, formando e organizando coleções ou lutando por recursos financeiros frente aos gabinetes governamentais (Figuerôa, 1997; Lopes, 1997). Entretanto, a profícua carreira como geólogo foi somente uma das vertentes de sua atuação intelectual. Mais precisamente durante os anos de trabalho em São Paulo, ele embrenhou-se em meios estranhos ao campo da geologia, quando desfrutou do convívio da elite paulista, em um momento em que o estado e a própria cidade de São Paulo buscavam espaço no cenário nacional, impulsionados pela força econômica trazida pela riqueza da cafeicultura. O café foi o grande responsável pela mudança na história da cidade de São Paulo. A estrada de ferro que, em 1868, ligou a capital paulista à cidade de Santos trouxe novo vigor ao até então acanhado povoado. A partir daí, ferrovias foram construídas rumo às novas regiões agrícolas do interior; e a cidade de São Paulo transformou-se no centro administrativo dessa expansão do capital. Chegaram os bancos e as casas financeiras, centros de distribuição de mercadorias e equipamentos, empresas de exportação e todos os demais empreendimentos e órgãos necessários para a expansão da cafeicultura. A cidade passou a exercer um forte poder de atração para essas novas elites, em grande parte oriundas do próprio interior paulista (Holanda, 1995). Espaços para uma incipiente vida cultural começaram a se formar, instituições de ensino se seguiram a já consagrada academia de Direito, e novos grupos intelectuais se estabelecem na capital. Exemplo dessa nova elite são os irmãos Prado (Antonio, Martinico e Eduardo) que, em meio a riqueza e a pujança do café plantado no interior do estado, tornaram-se figuras de destaque no cenário político regional e nacional. Antonio Prado (1840-1929) foi prefeito de São Paulo, entre os anos de 1899 e 1910. Seu irmão, Martinico, supervisionou as primeiras levas de imigrantes que chegaram para trabalhar nas fazendas de café do interior. Eduardo foi um dos mais ativos incentivadores da vida intelectual paulista, além de manter uma intensa atividade literária e jornalística na capital do estado. Antonio, Martinico e Eduardo fizeram parte de uma geração que contava com nomes como os de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, todos personagens que influenciaram fortemente a política brasileira na virada do século XIX (Morse, 1970). 300 Essas novas elites cafeeiras, que chegavam cada vez mais alto nos quadros políticos federais principalmente a partir da proclamação da República, não tardaram em incrementar e investir recursos financeiros na vida cultural paulistana. Assim como no Rio de Janeiro, livrarias, avenidas para o footing, bares e cafeterias serviam como ponto de encontro nesses novos tempos de novos homens (Sevcenko, 2000). As viagens para a Europa de muitos desses endinheirados do café ajudavam a dinamizar a vida cultural da cidade. Na ausência de espaços próprios, os saraus domésticos tornavam-se um ponto de encontro de homens que direcionavam um olhar curioso para fora do país. O mais famoso desses espaços privados, que se transformaram em verdadeiras academias informais, foi a chácara de Veridiana Valéria da Silva Prado, a dona Veridiana, no bairro Higienópolis. Matriarca da família Prado, recebeu em sua residência, junto com seus filhos, muitos letrados da época, em meio a jantares e discussões que animavam a vida cultural paulistana. Nesse ambiente cosmopolita e ao mesmo tempo familiar, Eduardo Prado foi um dos mais presentes, convivendo com Rui Barbosa, barão do Rio Branco, Joaquim Nabuco e Capistrano de Abreu. Fora do país, Eduardo também teve uma vida cultural bastante ativa. Seu apartamento, na rue de Rivoli, em Paris, tornou-se um importante ponto de encontro da elite intelectual brasileira na capital francesa, além de ser frequentado também por personalidades literárias europeias, com destaque para Eça de Queiroz (Lyra, 1965). Outro nome que não pode ser esquecido foi o de Fretias Valle, que transformou sua chácara na Vila Mariana em outro ponto de encontro da intelectualidade paulista. Em meio a jantares, música e dança, o mentor e anfitrião da illa Kyrial conseguiu estimular discussões a respeito das formas e expressões artísticas então em voga, em um momento em que conviviam, nem sempre em harmonia, parnasianistas, simbolistas, românticos e as vanguardas europeias. Seu papel aglutinador de nomes e tendências artísticas o posiciona como um dos que contribuíram de forma decisiva para a efervescência do movimento modernista em São Paulo; vale lembrar sua participação na organização da Semana de Arte Moderna de 1922, um dos marcos do modernismo nacional (Camargos, 2001). Durante o período em que morou e atuou na Comissão Geográfica e Geológica, entre os anos de 1886 e 1905, Derby moveu-se com desenvoltura em meio a esses círculos letrados, construindo o que Jean-François Sirinelli (2003; 1996) e Pierre Bourdieu (1998; 2008) chamam de uma rede de sociabilidade bastante atuante e influente, não somente nas esferas culturais e intelectuais regionais, como também no próprio mundo político e social que extrapolava as fronteiras do estado. Um dos seus mais próximos amigos foi Eduardo 301 Prado. Conheceram-se provavelmente pelas mãos de Teodoro Sampaio, outro participante assíduo dos grupos intelectuais paulistas. Derby também logrou da amizade de dona Veridiana, que mantinha sua casa aberta para o geólogo norte-americano, que acabou tornando-se convidado constante dos concorridos jantares da família Prado (Motta Filho, 1967). Esse contato estreito com esses grupos levou Derby ao Instituto Histórico de São Paulo, do qual foi um dos fundadores. Nesta agremiação, ele contribuiu ativamente para a construção de uma visão laudatória da história paulista, escrevendo artigos de história e etnografia, seguindo os modelos de exaltação da história regional, próprios desse tipo de instituição, na virada do século XIX.21 Foi durante a sua experiência paulista, quando circulava pelas esferas intelectuais da capital do estado e participava ativamente das atividades do IHGSP que estreitou relações com o escritor Euclides de Cunha. A obra máxima de Euclides, Os sertões, que geralmente é classificada por grande parte da crítica literária como uma obra híbrida,22 transitando entre a literatura e a ciência, contém referências aos trabalhos de Derby, principalmente sobre seus estudos da geologia brasileira. Durante o período de elaboração da obra, entre os anos de 1897 e 1901, Euclides manteve um contato muito próximo com o geólogo; eles se visitaram tanto em São José do Rio Pardo, onde Euclides trabalhava no momento de elaboração do livro, quanto em São Paulo, onde Derby mantinha uma chácara como residência (Andrade, 1960). Também estavam juntos quando Euclides leu uma parte de sua ainda inacabada obra no Instituto Paulista, fato que foi muito comemorado entre os sócios do IHGSP, e que acabou influenciando a própria produção historiográfica da agremiação (Ferreira, 2002; Santana, 2001). 21 22 Os vários institutos históricos e geográficos fundados no Brasil, na transição do século XIX para o século XX, possuíam um forte traço regional, buscando enaltecer valores próximos das elites intelectuais que, predominantemente, formavam seus quadros associativos, construindo aí histórias e identidades singulares arduamente enaltecidas e defendidas por seus seletos integrantes (Ferreira; Mahl, 2011; Schwarcz, 1993). Muitas das análises mais conhecidas sobre o livro Os sertões partem dessa premissa; de que se trata de uma obra que transita entre a literatura, no seu estilo e na forma de construção da narrativa, e as afirmações de teor científico, dialogando, em linhas gerais, com os paradigmas cientificistas da época em que foi escrita. Nesta linha de raciocínio, pode-se citar desde o trabalho pioneiro de Olímpio de Sousa Andrade, História e interpretação dos sertões (1960), até estudos mais recentes, como o livro inacabado de Roberto Ventura, Euclides de Cunha (2003), ou Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos (2009), escrito por Frederic Amory. Entretanto, críticos como Luis Costa Lima (2006) não concordam com a ideia de hibridismo da produção euclidiana, preferindo apontar para uma visão mais ampla de literatura, e uma separação menos rígida entre literatura e história. 302 Os conhecimentos sobre a constituição geológica do país devem ter facilitado a aproximação dos dois, uma vez que Derby era então considerado um dos maiores conhecedores dos sertões brasileiros, experiência adquirida em tantas andanças pelo interior do país. Euclides, como boa parte dos intelectuais de seu tempo, valorizava as relações entre o homem e o meio como um dos aspectos fundamentais para a constituição social e os vastos conhecimentos geológicos do amigo norte-americano contribuíram para fortalecer os argumentos científicos explicitados em Os sertões (Amory, 2009; Santana, 2001). Foi ao longo desse momento de contato estreito com várias figuras atuantes do meio intelectual paulista que Derby produziu uma obra que se afastou da geologia, expandindo seus interesses para a história, a geografia e os estudos etnográficos. Em conjunto com Teodoro Sampaio, seu grande parceiro nesse momento, ou mesmo individualmente, produziu uma série de artigos discorrendo sobre a história de São Paulo, em seus aspectos econômicos, sociais e étnicos. Se, por um lado, essa enorme ambição intelectual, que rompia com as limitações da especificidade científica, foi uma das causas de seu declínio, ela também lhe abriu as portas da vida social e científica paulista, campo fértil para a valorização de seus diversificados conhecimentos, que respondiam tão bem aos anseios de distinção dessas elites que ascendiam e se destacavam cada vez mais no cenário nacional. A estas, que durante algum tempo lhe acolheram entusiasticamente, Orville Adelbert Derby retribuiu, conscientemente (ou não), de uma forma que se revelou perene e vigorosa, empregando seu prestígio pessoal na fundação e consolidação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, um dos espaços privilegiados de gestação de toda a mítica bandeirante que ainda pode ser reconhecida nos dias atuais. Referências bibliográficas AMORY, Frederic. Euclides de Cunha - uma odisseia nos trópicos. São Paulo: Ateliê Editora, 2009. ANDRADE, Olímpio de Sousa. História e interpretação de “Os sertões”. São Paulo: Edart, 1960. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia das Letras, 1998. AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira. Brasília: UNB, 1963 __________________. As ciências no Brasil, vol. 1 e 2. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1955. BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro. São Paulo: Edusp, 2005. BLANC, Marcel. Os herdeiros de Darwin. Trad. 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